artigo - ciencia na floresta - por uma antropologia no plural

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  • 7/24/2019 Artigo - Ciencia Na Floresta - Por Uma Antropologia No Plural

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    Cincia da floresta:

    Por uma antropologia no plural,

    simtrica e cruzada

    Gilton Mendes dos Santos & Carlos Machado Dias Jr.

    Departamento de Antropologia da UFAM

    RESUMO: Se opensamento selvagemopera com princpios e categorias ra-dicalmente distintos do pensamento tcnico-cientfico ocidental, o que nostm a dizer os intelectuais da floresta sobre temas tratados pela Cincia,pelo Cristianismo, pelo Estado? O que pensam os ndios, com suas balizasepistemolgicas, sobre os fatos sociais em suas prprias culturas e sobre aque-les concernentes nossasociedade? As pginas a seguir so uma tentativa de

    observao desta antropologia cruzada, de como nossas teorias so capta-das e traduzidas pelas teorias daqueles que sempre foram mantidos na con-dio de observados pela antropologia. Este texto ainda a base para umprograma de encontros entre intelectuais indgenas provenientes de diferen-tes cantos e contextos etnogrficos da Amaznia brasileira para a troca deidias, conceitos, narrativas e teorias nativas. Por fim, os autores deste artigolanam mo de alguns episdios etnogrficos que exemplificam e corrobo-ram a ao antropolgica indgena ancorada em parmetros conceituais dis-tintos daqueles praticados pelas cincias, servindo como fonte e estmulo

    explorao de uma etnoantropologia.

    PALAVRAS-CHAVE:Amaznia, intelectuais indgenas, antropologia cruzada.

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    Introduo

    Este texto objetiva abordar certos aspectos de uma antropologia ind-gena, o ponto de vista antropolgico daqueles que sempre se mantive-ram na posio de objeto da antropologia. Ele pretende destacar deter-minadas qualidades que marcam a diferena do pensamento amerndioem relao s balizas e modos de produo das teorias ocidentais ques-tes j exploradas por autores consagrados da disciplina (Lvi-Strauss,1962a, 1962b; Latour, 1991; Descola, 1992; Viveiros de Castro, 1996;Ingold, 2000 dentre outros).

    De outra maneira, ele a base de referncia para uma iniciativa emcurso na Amaznia brasileira (oficinas de saberes) que prope promoverencontros entre intelectuais indgenas, reconhecidos detentores doconhecimento tradicional de diferentes bacias e contextos etnogrficosda regio amaznica, para a troca de idias, narrativas e teorias indge-nas, de modo a nos permitir acessar os universos conceituais (cosmol-

    gicos e ontolgicos) em questo.1

    Seria exagero, pois, pensar numa cer-ta epistemologia do conhecimento indgena? Acreditamos que no e,desse modo, quem pode melhor constru-la so seus prprios autores.

    O que segue adequa-se a um pressuposto antropolgico consensual,isto , que o pensamento selvagem opera com princpios e categoriasradicalmente distintas do pensamento tcnico-cientfico ocidental esse,sintetizado na mxima do desencantamento do mundo, simbolizadopela trplice dissociao Natureza-Sociedade-Sagrado, tal como promul-gada pela Constituio Moderna (cf. Latour, 1983). Mas como pens-lo,buscando levar a srio, e s conseqncias mais longnquas, o estatutoda diferena?

    O percurso e argumentos destas pginas, portando, no se reduzem(e nem objetivam) a uma crtica ao pensamento cientfico, explorando

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    a oposio entre este e o pensamento indgena, mas antes, dizem respei-

    to a uma investida na diferena e nos princpios da construo antropo-lgica amaznica propriamente dita. Afinal, o que motiva a antropolo-gia no exatamente aquilo que o outro, seu observado, tem a dizer?

    Nessa perspectiva, para alm de uma disciplina (cientfica) no singu-lar, a antropologia tem assento nos demais contextos culturais, servindocomo uma via privilegiada para abordar, em mo dupla, os temas deprimeira grandeza da vida social. E se o estatuto da diferena (indgena)em relao aos primados cientficos for tratado fora do jogo dicotmicoque geralmente os associa, nos parece que esse um passo fundamentalque deve anteceder qualquer comparao entre as duas tradies, a cien-tfica e a indgena. Aqui, as diferenas podem ser achatadas e sua anliseremetida para o cerne de questes sociais fundamentais em ambos oscontextos, num exerccio de antropologia simtrica.

    Se a antropologia nos instrumentaliza a captar e conferir sentido aosfatos nos diferentes contextos culturais de outras sociedades e de nossa

    prpria de se apostar que os intelectuais indgenas estaro, assim,procedendo de igual maneira, tendo algo a nos dizer com base em seusprincpios epistemolgicos, no apenas sobre si, mas sobre ns, num efei-to de antropologia cruzada. o que este texto pretende explorar.

    As reflexes aqui empreendidas, como anunciamos, tero seu desen-volvimento e extenso na realizao dos encontros entre tericos dediferentes procedncias geogrficas e etnogrficas da Amaznia (as ofici-nas de saberes), mas se apiam, preliminarmente, em alguns episdiosetnogrficos que exemplificam e corroboram a ao antropolgica quese sustenta em outros parmetros conceituais.

    Por sua vez, as crticas feitas a certos veculos de produo do conhe-cimento cientfico a exemplo da prtica educacional pedaggica e dapesquisa de campo, envolvendo grupos e informantes indgenas no

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    so o foco principal da questo aqui em apreo, servindo apenas de con-

    tra-referncia para esta antropologia que se posiciona do outro lado, aqual queremos perscrutar.

    A condescendncia cientfica perversa

    Tm sido crescente, nos ltimos anos, a busca e o acesso de povos in-dgenas e outros povos tradicionais ao conhecimento cientfico-acad-mico. Isso parece acontecer mediante posturas cada vez mais claras deinsubordinao, metamorfoses ou redues. O enfrentamento da dife-rena, no entanto, tem ficado a desejar, o que evidencia o quanto aindaprecisa ser feito para o estabelecimento de uma relao menos assimtricae um dilogo mais fecundo entre conhecimentos cientficos e conheci-mentos indgenas.

    Nota-se, por exemplo, que nos projetos de educao no Brasil, em

    seus mais diferentes nveis, no h lugar nem ambiente reservados parauma prtica simtricaentre o conhecimento cientfico-acadmico e oconhecimento tradicional-indgena. O que se assiste a propagao deum pensamento e de uma prtica em que o outro, com suas concepese teorias, acolhido para aprender o que a cincia tem a (lhe) dizer. Issose encontra organizado na estrutura dos cursos com suas reas discipli-nares, na obrigatoriedade e formato dos projetos e programas, no papele na posio do professor e do aluno, nos mecanismos de avaliao, naorientao dos produtos monogrficos etc.

    Seu pano de fundo, invariavelmente, a reproduo da desigualdadee da dominao, cuja ordem e orientao pedaggicas se estruturam pelorebaixamentoou diminuio, como bem reclama Larrosa (2004, p. 277),para quem situar-se no discurso pedaggico significa, em muitos casos,adquirir certa legitimidade e certa competncia para olhar os outros de

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    cima, para falar deles, para lanar sobre eles certos projetos de reforma

    ou de melhoramento. Numa escala mais ampla, trata-se daquilo queSousa Santos (2006) classificou como monocultura do saber, uma arro-gante posio da cincia moderna de tomar-se como critrio nico depostulao da verdade e transmisso do conhecimento.

    Este quadro tem se revelado, por exemplo, no contexto dos diferen-tes projetos educacionais e econmicos conduzidos junto aos povosamaznicos: a dificuldade de se estabelecer um dilogo mais simtricoentre o que propem as teorias e tcnicas cientficas e o que postulam ascosmologias e as prticas indgenas. De maneira geral, esta questo temsido acomodada nos cognominados projetos de educao intercultural,intertnica, integrada, diferenciadaetc. ou de iniciativas econmicasde desenvolvimento sustentvelpautadas, no fundo, pela lgica do mer-cado, com pouca ou nenhuma preocupao na identificao das unida-des sociais de funcionamento da economia local, seus princpiosnorteadores e formas de distribuio.

    Embora haja um esforo cada vez mais amplo em criar cursos espe-ciais voltados exclusivamente para o pblico indgena, a matriz episte-molgica funcional aquela da tradio cientfico-acadmica, na qualprevalece a hierarquia do saber ocidental com todo o seu sofisticado apa-rato de veiculao: as reas segmentadas de conhecimento, a escrita comoponto de partida e suas bases conceituais como princpios operantes dareflexo, suas categorias a priori de espao e tempo, seus instrumentosde aferio etc. Isso tem servido tanto aos cursos de ensino bsico emdio, quanto aos de terceiro grau, nas aldeias ou nas cidades.

    Nos espaos acadmicos, especialmente nas universidades, a disper-so dos alunos indgenas que neles ingressam, a resistncia de seus parese o esforo quase nulo dos professores (considerando, de igual maneira,os princpios da formao cientfica como referncia) distancia-se deuma prtica de dilogo entre saberes e tradies distintas.

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    Nesse contexto, o empenho feito tem se traduzido, nos ltimos anos,

    em um mecanismo especial de acesso ao ensino superior atravs dosistema de cotas, no mbito da propagada ao afirmativado Estado bra-sileiro. Esquema no qual, uma vez admitido, o aluno passa a ser con-templado com uma bolsa que, em teoria, lhe confere condies mni-mas de sobrevivncia na cidade ou universidade, longe da aldeia e desua comunidade.

    Diante de resultados pouco animadores repetidamente reclamadospor meio de uma participao a desejar, de rendimentos escolares abai-xo da mdia, da no adaptao ao novo ambiente, da desistncia do cursoetc. , as ltimas adequaes desse esquema apontam para uma iniciati-va de acompanhamento dos alunos ingressos; isto , ao estudante ind-gena admitido na universidade pelo sistema de cotas lhe estaria assegu-rado, como principal estratgia de permanncia na instituio, uma tutoriaacadmica. E o resultado desse esforo, por sua vez, seria aferido no seudesempenho em sala de aula, na qualidade acadmica dos trabalhos de

    curso, na dedicao pesquisa e, sobretudo, no nvel do texto produzi-do, na escrita e na defesa do texto monogrfico.Salvo engano, o objetivo ltimo de tal iniciativa parece ser o inves-

    timento na qualificao de profissionais indgenas para atender e atuarem nossas prprias instituies, intelectuais e administrativas, veculosde uma velha poltica a eles dirigida. Vale frisar que no se pretende,com tais crticas, retirar o valor ou o reconhecimento das conquistasadquiridas historicamente pela educao formal e as profisses pormeio delas adquiridas ou dos tantos projetos econmicos em curso en-tre os povos.

    No mbito dapesquisa acadmica de campo, por sua vez, a situao ainda mais preocupante: os ndios, considerados portadores de infor-maes de interesse das cincias, aparecem to-somente como mateirosou informantes, coadjuvantes auxiliares do pesquisador, que detm o

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    monoplio do saber verdadeiro e ltimo das coisas. Para as universida-

    des e demais centros de ensino e pesquisa no Brasil, inadmissvel con-ceber o conhecimento tradicional (na maioria das vezes tido comopr-cientfico) em p de igualdade com a cincia. Nas instituies nacionaisfinanciadoras de pesquisa no h uma maneira de incluir o indgenacomo pesquisador, e nem existe a uma categoria de pesquisadorou de

    pesquisador tradicional, como j apontou e sugeriu Almeida (2006).Alis, a aproximao da cincia com o conhecimento indgena tem

    sido historicamente motivada pelo seu interesse naquilo que este tem,no de diferente, mas de cientfico. Essa atrao instrumental v nasculturas indgenas um repositrio de saberes e tcnicas a serem desco-bertas e adaptadas aos diferentes campos do saber acadmico aesbastante em voga nas reas de ecologia e farmacologia.

    Este utilitarismo busca, enfim, apropriar-se do conhecimento ind-gena, selecionando o que lhe interessa e desprezando o que no lhe con-vm, centrifugando-o assim de sua lgica diferencial. Em outros termos,

    o interesse cientfico recai no pelaformado conhecimento tradicional,mas pelo seu contedo voltaremos a isto mais adiante. a isso que nosalerta Viveiros de Castro, para quem a imagem que a cincia tem desteltimo em nada modificar a nossa imagem do conhecimento dele pr-prio: o que distingue os conhecimentos tradicionais indgenas dos nos-sos conhecimentos (...) a idia mesma de conhecimento; a imagem dequem conhece, a imagem do que h a conhecer, e a questo de paraque, ou melhor, por que se conhece (Viveiros de Castro, 2007, p. 1).

    Em suma, seja por parte das instituies acadmicas, das agncias doEstado, das ONGs, da Igreja ou das organizaes indgenas, a criaode cursos e o desenvolvimento de projetos ao modo costumeiro vm semostrando acanhadas diante de uma postura verdadeiramente simtri-ca entre as tradies epistemolgicas em jogo.

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    Por uma antropologia no plural, simtrica e cruzada

    Diante desse cenrio, vale perguntar: qual , afinal, o papel da antro-pologia, uma vez que ela se arvora em descrever e analisar outros esque-mas sociais, em captar o ponto de vista do outro!? Dessa forma, cabe antropologia no apenas valorizar, mas esforar-se em apreender tal di-ferena (no sentido de aprender com ela), sem no entanto eclips-laou suprimi-la.

    Portanto, para uma postura de valor devido, o conhecimento tradi-cional reclama por uma abordagem, da antropologia e das demais cin-cias, que seja atenta a outros parmetros; exige ser reconhecido comouma outra variedade de conhecimento, portador de competnciascognitivas e epistemolgicas distintas das nossas, mas de mesma nature-za e valor heurstico.

    Afinal, possvel criar condies intelectuais, sociais ou polticas ob-jetivas de reconhecimento do saber tradicional em condies equiva-

    lentes com o saber cientfico? At onde elevaramos as formas e meca-nismos de transmisso do conhecimento indgena como uma prticadistinta, mas simtrica dos cientistas? Antes de buscar respostas a taisindagaes, o que propomos a compreenso dos pressupostos da dife-rena entre as tradies epistemolgicas em questo, da imagemconstruda pelo ponto de vista desta diferena (do outro, indgena) so-bre os pressupostos e prticas cientfico-acadmicas.

    Devemos a Lvi-Strauss o pioneirismo no tratamento das idias e for-mulaes amerndias em outros patamares. Como nunca deixou de in-sistir esse autor, os povos primitivos so dotados de um pensamentodesinteressado, exatamente como faz um filsofo ou um cientista mo-derno; isto , movido por uma necessidade ou um desejo de compre-ender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade em quevivem (Lvi-Strauss, 1978, pp. 30-31). Assim, para ele, em lugar de

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    oporo pensamento mitolgico mentalidade cientfica, seria melhor

    coloc-losem paralelo, dois modos de conhecimento com resultados te-ricos e prticos distintos, mas idnticos em suas operaes mentais(Lvi-Strauss, 1962a, 1962b).

    No encalo da crtica epistemolgica feita por Latour (1983) gran-de diviso entre o esprito cientfico epr-cientfico, Eduardo Viveiros deCastro tem se esforado numa reflexo sobre o sentido e a necessidadede uma antropologia que remeta para o centro (nervoso) do conheci-mento ocidental certos problemas colocados pelo pensamento indge-na. Entretanto, em vez de recorrer cincia, como fez Lvi-Strauss, elevai buscar na filosofia seu aporte (antropolgico) para apreender e ana-lisar os pressupostos ontolgicos da socialidade amerndia. Para esse au-tor, afilosofiaselvagemprocede, acima de tudo, sob a condio de que,para alm da conscincia varivel, o mundo que varia.

    Dessa idia-guia, o autor (Viveiros de Castro, 1996; 2002) conse-guiu extrair importantes conseqncias para o enfrentamento da dife-

    renacolocada pelas teorias nativas. Desse modo, ele tem nos apresenta-do, com expressivo flego analtico, o estatuto epistemolgico dadiferena (ou a diferena epistemolgica) que marca a tradio intelec-tual ocidental (cientfica) e amerndia.

    Numa palavra, a preocupao de nivelar, colocando no mesmo planoo saber cientfico-acadmico e o conhecimento tradicional, no frutode um decreto benevolente ou de um biasterico, mas o resultado deum esforo que tem sido pouco comum. Esse esforo se traduz, ainda,no empenho de tratar os conceitos e temas esboados pelos pressupostosindgenas, articulando-os quilo que h tambm de mais caro aos esque-mas do pensamento ocidental, isto , suas bases cientfico-filosficas.

    Levando adiante tal empreitada, propomos aqui, acima de tudo, bus-car a compreenso e a elaborao tericas que o outroesfora por elabo-rar; no apenas enfatizar a sntese antropolgica j alcanada, mas pen-

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    sar na prpria produo intelectual do outro. O exerccio antropolgi-

    co, pois, no certamente uma prerrogativa exclusiva nossa, ele tem lu-gar tambm no lado de l (etno-antropologia), com refinado instru-mental etnogrfico e interpretativo, falando tanto de si para si quantodo outro para si.

    A pergunta que se faz : como nossos conceitos e prticas so capta-dos e traduzidos pelas teorias e pelos tericos indgenas? O que os ndiosesto pensando e falando sobre a Cincia, o Estado e o Cristianismo?O que nos tm a dizer os intelectuais da floresta, a partir de suas balizasepistemolgicas, sobre temas semelhantes ou no queles tratados pelasreas cientficas, como a origem do universo e das espcies, ou sobresubstncias concretas, como as espcies animais e vegetais (insetos,peixes, abelhas, animais de caa, plantas cultivadas etc.), as estruturassociais, os sistemas de parentesco, jurdicos, religiosos? Enfim, o que nosreserva a antropologia indgena (melhor, a antropologia dos ndios),uma vez admitido que seus formuladores tambm adotam a posio de

    observadores, traduzindo o que fazem e o que dizem seus nativos, comas mesmas prerrogativas intelectuais e interpretativas concedidas ao an-troplogo (acadmico)?!

    Nessa perspectiva, reserva-se aos intelectuais indgenas, aqui toma-dos como equivalentes funcionaisdos antroplogos acadmicos, a tradu-o dos esquemas sociais observados, com base nas referncias tericasde sua tradio. O que no significa, porm, como bem sublinhou

    Almeida (2006, p. 4): (...) um colocar-se no lugar do outro, ou mistu-rar as duas formas de gerar e usar conhecimentos afinal, eles possuemteores, finalidades e procedimentos tambm distintos.

    A captura da vida social daqui feitapor l assenta-se em basesepistemolgicas e conceituais cujo locusde reflexo ancora-se em outrosesquemas cosmolgicos e ontolgicos diferentes dos nossos. Esquemasesses que, por sua vez, encontram-se articulados com os sistemas mito-

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    lgicos, classificatrios, conceituais e vinculados s qualidades do sens-

    vel. Desse modo, assim como a antropologia (acadmica) define suasbases para abordar os fatos sociais sobre sua prpria sociedade e sobreaqueles concernentes a outras, tambm estas arquitetam seus recursosantropolgicos para falar dos seus e dos demais esquemas e aes sociais. o que poderamos cognominar de uma antropologia cruzada.

    Episdios e experimentos da cincia da floresta

    Uma iniciativa pioneira que merece destaque encontra-se na coleoNarradores indgenas do Rio Negro. Organizada pela Federao das Or-ganizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN) e lanada no ano de 1995,esse conjunto de publicaes j alcanou o nmero de oito volumes,envolvendo dezenas de narradores de diferentes povos da regio, ve-lhos e jovens detentores do conhecimento indgena. Para alm de seus

    objetivos especficos, de valorizao cultural e importncia do registroescrito, a coleorevela uma base cosmolgica e ontolgica comum quecaracteriza a socialidade amerndia a despeito de um pensamentocaleidoscpico, cuja urdidura das narrativas expressa claramente dife-renas e singularidades de propriedade tnica, clnica e frtrida.

    Abordando temas diversos, essa coleo tem sido uma indispensvelfonte de consulta para pesquisadores e estudantes da regio. De modoparticular, ela tem servido, em momentos de confrontos e dilogos te-ricos interculturais, aos prprios ndios, que as tm levado a tiracolo,colocando-a lado a lado comA origem das espcies(a Cincia), a Bblia(o Sagrado) e os textos da Constituio(o Estado) do Brasil.

    Vale apontar ainda o seminrio Vises do Rio Babel, realizado na ci-dade de Manaus em maio de 2007. Organizado pelo Instituto Socioam-biental (ISA) e pela Fundao Vitria Amaznica (FVA), o evento reu-

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    niu cerca de 150 representantes de vrios povos indgenas e instituies

    (ONGs, governos e universidades), tendo sido marcado por depoimen-tos epalestras especiais.

    O ponto alto desse seminrio foi a participao do antroplogoEduardo Viveiros de Castro que, preocupado em estabelecer um dilo-go com os cientistas presentes, apresentou sua teoria sobre operspecti-vismo amerndio (cf. ISA, 2008). O esforo, como muitas vezes o autortem repetido ao traduzir o pensamento amerndio em suas diferenas,foi evidenciar o quanto ns (cientistas) equivocadamente ainda insisti-mos em separarformae contedodos chamados conhecimentos tradi-cionais. Os problemas desse procedimento so inmeros e, alm de nosafastar (de fato) de um outro saber, anula a possibilidade (de direito)daquele se estabelecer. Como destaca o prprio autor: valorizar as cul-turas indgenas porque estas constituem um reservatrio potencial de tecno-logias teis para o desenvolvimento sustentvel da Amaznia umainstrumentalizao da nossa relao com esses povos, fruto de uma atitude

    utilitarista e etnocntrica... (ISA, 2008, p. 86).Ao traar as premissas do pensamento indgena amaznico, em acor-do com o conceito doperspectivismoe, como observamos, em busca deum dilogo com os cientistas presentes, fez-se revelador para ns, tantoquanto para o prprio expositor, a reao dos ouvintes.

    Ao abrir para a participao da platia, um grupo de interessados seapresentou para o debate. Para surpresa do expositor (e dos presentes emgeral), a fila foi formada, exclusivamente, por participantes indgenas uma clara demonstrao de que no s tinham compreendido o antro-plogo, como estavam dispostos a estabelecer um dilogo ancorado numadiferena epistemolgica em jogo, isto , os princpios da cincia e aque-les concernentes cosmologia indgenas suscitados pelo palestrante.

    Era a primeira vez que, desde que havia anunciado para a academiasuas idias sobre operspectivismoem 1996, o autor apresentava sua teo-

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    ria para um pblico indgena. O que presenciamos do dilogo, infeliz-

    mente limitado pela agenda do seminrio, foi algo sofisticado e revela-dor. Notemos nos fragmentos de fala a seguir a reao de uma partici-pante, Maria Miquelina Tukano:

    Eu sei que o senhor fez o possvel para fazer comparaes de sentido...

    assim mesmo. Mas existem problemas: a traduo na linguagem indgena

    possvel, mas como que eu vou explicar esse sentido em uma linguagem

    tcnica para que vocs assimilem, como estudiosos, como pesquisadores?

    (ISA, 2008, p. 91)

    Ao que respondeu Viveiros de Castro:

    Eu acho que a idia de fazer os intelectuais dos diferentes povos indgenas

    conversarem entre si para discutir teorias e informaes a respeito dessas

    coisas que ns falamos aqui uma coisa muito interessante e muito impor-

    tante de se fazer porque, em geral, quem faz as comparaes sou eu, ouseja: o branco de fora. (ibid.)

    Percebe-se nesse breve trecho uma explcita maturidade dos intelec-tuais indgenas de debaterem entre si seus conceitos e teorias, e, ao mes-mo tempo, um convite s cincias acadmicas para um dilogo menosassimtrico entre as distintas tradies. Dessa maneira, o encontro entrepessoas de notrios saberes de diferentes cantos e culturas da Amazniaindgena tal como procedem e se comunicam cientistas de diferenteslnguas e pases, estimulados antes de tudo pelo fato de compartilharemuma idntica matriz epistemolgica pode se constituir em momentosprivilegiados para o avano das anlises antropolgicas sobre os pressu-postos cosmolgicos, classificatrios e ontolgicos amerndios.

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    Um terceiro episdio, que evidencia esta crescente necessidade antro-

    polgica de estimular e abordar uma antropologia indgena pde seridentificado durante um curso de antropologia na comunidade deTaracu, no Alto Rio Negro com a participao dos autores deste arti-go. Antes de tratarmos diretamente das anotaes de Taracu, vale re-gistrar o entusiasmo, interesse e disposio incansvel dos alunos e pro-fessores indgenas para o debate intelectual proposto. L tambmpudemos antever que, de fato, os pressupostos da diferena epistemo-lgica em jogo so, no mnimo, um tema de grande relevncia para odebate. Vejamos, pois, alguns fragmentos extrados dessa breve experi-ncia, os quais apontam na direo de uma antropologia cruzada.

    Taracu um importante vrtice do chamado tringulo tucano, for-mado pelo rio Uaups e seus tributrios Tiqui e Papuri. Neste local serenem, de dois em dois anos, por aproximadamente um ms, cerca deoitenta estudantes do ensino mdio,2dos mais diferentes lugares e po-vos da regio: Tukano, Desana, Tuyuka, Tariano, Kubeo e Wanano.

    Dentre outros critrios de participao, o curso exige que os es-tudantes sejam moradores de comunidadese falantes da lngua nativa(porque devem, inclusive, ensinar na lngua nativa). As etapas de for-mao, por sua vez, so planejadas a partir de temas definidos pelosprprios cursistas.

    O tema eleito para esta quarta etapa (realizada em setembro de 2008)foiA origem do mundo. Na condio de professor oupalestrante, inte-graram a equipe, Pedro Poeny Tuyuka, Raimundo Galvo Desano e osautores deste texto. Ao longo do curso os palestrantes expuseram as ver-ses indgenas sobre o tema, e ns, as verses cientficas. Neste contex-to, alm das cosmologias em destaque, as referncias no-indgenas parao debate foram buscadas nos enunciados da fsica (baseadas nas teoriasastrofsicas do universo) e da biologia (ancoradas nas teorias da evolu-o). Ademais, o ponto de vista sobre a origem do mundo judaico-cris-

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    t, classicamente sintetizada no primeiro captulo de Gnesetambm foi

    inserido no debate.Anotemos algumas passagens da participao e viso indgenas sobre

    os temas e questes em apreo. Para Jos Lucas Tukano, um agente desade e estudante em Taracu, o Deus cristo exatamente o mesmoque o Av do Universo da mitologia indgena, uma vez que, segundoconta, ambos os deuses, cristo e tukano, so chamados de Umukho

    Yhku. assim tambm que aborda tal questo a estudante piratapuiaMargarida Brasil, para quem ambas as cosmologias dizem a mesma coi-sa, ressaltando, porm, que o Av do Universo criou o mundo median-te a fora do benzimento. Para Aluzio Yupuri Tukano, a diferenaentre as duas explicaes muito sutil: desde a origem ns j fomosseparados em sociedades diferentes, quer dizer, por etnias. E assim re-sume a estudante tariana Lucinia Matos:

    A Bblia diz que Deus criou o cu e a terra e tudo que tem nela em seis

    dias, e que no stimo descansou. O meu pai disse que o Senhor do Univer-so criou o mundo atravs do benzimento, isto , com a fora do pensa-

    mento: Ele benzia e as coisas se faziam conforme a imaginao dele, usan-

    do tudo que ele tinha no corpo, como brincos, ipadu, cigarro, saliva... so

    seis coisas tambm. Enfim, a cosmologia crist apenas o resumo de tudo

    isso, e a cosmologia indgena tenta explicar de uma forma detalhada. Logo,

    as duas coisas so sim compatveis.

    Embora no tenha encontrado a mesma homologia entre a teoriacrist e a indgena, a comparao entre esta e a teoria cientfica vistacom diferenas, porm com traos importantes de similitudes. Compouca discrepncia ou variao, as reflexes circularam em torno de umaconsonncia entre ambas as cosmologias. o que se pode concluir des-te argumento de um grupo de alunos que escreveu:

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    A teoria cientfica fundamentada nas provas, e afirma que isso aconteceu

    h bilhes de anos. E essa teoria no abre espao aos seres mticos. Mas ateoria indgena fundamentada na crena, onde os deuses criadores do

    universo so atores principais da criao. Ento, h uma diferena muito

    grande entre a teoria cientfica e a teoria indgena, mas em se tratando de

    alguns momentos da evoluo, na teoria cientfica, h uma compatibilida-

    de. (...) na teoria cientfica da evoluo, os seres passaram da gua para a

    terra, e a Seleo Natural bate com a nossa subida com a Canoa da Trans-

    formao, pois os primeiros humanos-peixe passaram por vrias dificulda-

    des e empecilhos, correndo at mesmo o risco de extino.

    E continua:

    De acordo com a cosmologia indgena, o universo foi criado pelos deuses

    Umukho ehku, Basebo, Buhpo Mahk. Tambm havia quatro inhambus

    que se transformaram nas quatro cuias de terra vindas dos quatro cantos

    do mundo. Elas trouxeram as cuias e derramaram a terra sobre um panode tururi, que o deus Basebo tinha esticado no espao. Assim, ento, a

    terra se espalhou para todo o canto. Esse momento, na teoria cientfica,

    corresponde ao Big-Bang, a partir do qual se formaram as galxias, os pla-

    netas e outros astros.

    E assim concluiu o tuyuka Drio Wamir:

    Os cientistas so como os xams, estudiosos do mundo e explicadores das

    coisas e suas transformaes. Assim como existe diferena entre a explica-

    o tuyuka, desana, tukana, tariana e kubeo, tambm a cientfica mostra

    sua diferena. Mas no fundo todos falam a mesma coisa.

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    Como se nota, as aes e a forma apresentadas pela explicao

    criacionista crist encontram correspondncia estrutural direta comaquelas definidas pela explicao indgena: a presena de um criador eseus poderes miraculosos so fundamentais no aparecimento e ordena-o do mundo e dos seus habitantes.

    O mesmo no parece acontecer quando se aproxima a teoria indge-na com aquela proposta pela Cincia: a semelhana entre ambas vistaem alguns traos processuais (dos fenmenos em anlise), notando-seuma ruptura primordial no aparecimento e ordenamento do cosmos.Tal diferena, no entanto, no concebida como algo radical e sem co-municao entre elas.

    Assim, podemos dizer que as tradies aqui em jogo, percebidas pe-los estudantes de Taracu, so, inicialmente, dessemelhantes, mas quese comunicam e se complementam no seu sentido global; ou melhor, adiferena terica notada no uma construo paralela ou irredutvel,mas a derivao de uma nica tradio do pensamento, o pensamento

    indgena. Os traos distintivos observados parecem ancorar numa mes-ma base explicativa, tais como elevaes de uma mesma rocha. Este idn-tico e nico substrato a lgica indgena, em que a diferena notada nada mais que um caso particular da semelhana de fundo.

    Disso, poderamos concluir que aposioadotada pela reflexo ind-gena antes uma ao de ator-autor, isto , quem pensa a diferena estpensando-a a partir de um ponto de vista prprio, amparada numamatriz conceitual particular. Numa palavra, tudo indica que o pensa-mento indgena, de base mitolgica, a chave da leitura de todos osfenmenos, um backgroundepistemolgico apriorstico e englobante.

    Assim concebido, ele funcionaria como um operador cosmopolita, umtipo de eficiente mquina da tradio.

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    No entanto, as diferenas percebidas na explicao dos fenmenos

    no passam por uma questo de relatividade terica alis, a teoria amesma para todas as verses do mesmo fato. A interpretao indgenade outras cosmologias, exemplificada em Taracu, aparece como o re-verso de uma etnocincia, ou antes, um tipo de etnomitologia. Assim, ahermenutica sobre uma (outra) tradio feita, com todos os recursos,discursivos e mentais, com base na prpria episteme de quem a pensae traduz.

    Por um lado, notamos os astrofsicos buscando objetividade em seusprocedimentos, adaptando ferramentas tericas e tecnolgicas cada vezmais sofisticadas, descrevendo o que os olhos no alcanam (da mate-mtica grega ao telescpio de Hubble), arranjando e descrevendo umambiente csmico reduzido aos cem elementos qumicos classificadosem recintos laboratoriais. Por outro lado, vimos que a lgica indgenano se preocupa com frmulas (matemticas) para comprovar o conhe-cimento que tm do mundo.

    As referncias amerndias indicam que as teorias no so construdaspara explicar o mundo, pois, assim como este, elas esto por a (nas pe-dras, plantas, benzimentos etc.) e so simplesmente apreendidas, sempreocupao com objetividade, com o que os olhos alcanam ou po-dem ver. Sem objetos inanimados, sem lugar privilegiado para os hu-manos, a natureza, a cultura etc., a (cosmo)lgica indgena informa que,em seu universo, mais do que teorias (cientficas) e clculos (matemti-cos), a composio do mundo passa por uma arranjo de apreenses ecomunicao entre seres e coisas.

    Alm dos elementos qumicos e seus arranjos complexos, a forma dohumano ganha excelncia e notoriedade em acordo com pontos de vis-ta distintos. O invisvel constitutivo do Universo amerndio desde aorigem e isso no traz nenhum problema para suas teorias.

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    Isso nos faz pensar que, de fato, a natureza epistemolgica (o dado)

    e cognitiva (a teoria) dos conhecimentos em jogo parece ser mes-mo distinta.

    Podemos seguir com a idia de que as distintas explicaes sobre aorigem do universo ou qualquer outro tema uma questo de visada

    perspectivista, que v da mesma maneira coisas diferentes. Isto , a cons-cincia sobre o mundo a mesma, o que muda a realidade observada(cf. Viveiros de Castro, 1996). Assim, as explicaes, encontradas emTaracu so diferentes maneiras (ou modos) de ser da teoria indgena.

    Da mesma maneira como procede a Cincia, o crivo da cincia in-dgena percebe as semelhanas e diferenas com aquela, e buscaapropriar-se de certas coisas e refutar outras. Se, por outro lado, a Cin-cia toma do contedodo conhecimento tradicional apenas aquilo quelhe compreensvel e de interesse, a interpretao indgena v, justa-mente naformada explicao cientfica, o fundo de semelhana consi-go, recusando o seu contedo, isto , sua dimenso materialista e seu

    mtodo experimental.Nesse sentido, o contedo, para a Cincia, seria, por exemplo, o com-posto bioativo da plantax, a qual, por sua vez, pode ser uma poderosaportadora (sua forma fonte principal do interesse indgena) de umprincpio espiritual que atrai e conduz as foras xamnicas ou provoca amorte das pessoas questes em nada prestigiadas pela cincia.

    Na mitologia tukano, os humanos emanam diretamente dos peixes(questo de forma), e isso, de certa maneira, o que diz a biologia evo-lutiva quando apregoa a evoluo das espcies, embora numa outra cla-ve epistemolgica, ancorada no mecanismo biolgico e no fenmenoda especiao(questo de contedo), que nada tem a ver com a explica-o (mitolgica) transformacional.

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    Mas, para alm (ou antes) de um dilogo entre o pensamento ind-

    gena e as cincias, o que mais importa ater-nos, antes, diferena esingularidade das teorias indgenas. O que pressupe pens-las fora do

    jogo da oposio cincia versuspensamento tradicional, como bem su-gere Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 101), para quem tal disso-ciao permite pensar os termos das dicotomias fora das articulaes erelaes de poder que os unem.

    O esforo etnogrfico e as snteses produzidas at o momento parapensar os povos da Amaznia (e do continente sul-americano como umtodo) nos permitem ir adiante. Grosso modo, no s atentando para oque dizem os intelectuais indgenas sobre suas teorias, o que j no pouco, mas, sobretudo, prestar ateno e entender o que eles tm a di-zer sobre nossasteorias, antropolgicas ou no. Isso nos auxiliar to-mando aqui emprestado as palavras de Geertz (1989, p. 24) a ganharacesso ao mundo conceitual no qual nossos sujeitos vivem, e, assim, possibi-litar-nos, no sentido lato, conversar com eles.

    Por fim, o resultado dessa antropologia cruzada, alm de exprimircertos princpios epistemolgicos, elaborados pelos prprios intelectu-ais indgenas, pode apontar para um dilogo em outro patamar entre asteorias antropolgicas de ambos os lados e daquela com as demais reasdas cincias naturais.

    Notas

    1 Longe de um test drive de teorias antropolgicas produzidas, estes encontros (ofici-nas de saberes) so uma tentativa de fazer emergir e captar a antropologia do ou-tro, a explicao e traduo do nosso sistema simblico pelo deles. Para alcanarseus objetivos, o projeto tem como meta a realizao de quatro oficinas: a primeiraacontecer na regio do Alto Rio Negro, a segunda no Mdio Purus, a terceira no

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    Alto Solimes e a quarta, com a presena dos participantes das oficinasanteriores,

    na cidade de Manaus. Das oficinas de saberes, planeja-se extrair produtos diversos,escritos, narrados, filmados etc. que possibilitaro melhor enxergar a complexida-de dos temas abordados em seus mais diversos aspectos, mitolgicos, rituais,cognitivos, classificatrios etc. Este material, por sua vez, servir de base para asanlises antropolgicas sobre o conhecimento indgena na Amaznia. Adiantamos,porm, que estamos interessados menos no conhecimento tradicional associado biodiversidade, e mais nasformas de produo do conhecimento, naquilo que poucoou nada interessa cincia, ou melhor, naquilo que para essa tido como iluso,crena, imaginrio ou simples representao do real.

    2 Trata-se do cursoMagistrio Indgena, um projeto da Secretaria Municipal de Edu-cao de So Gabriel, subsidiado pela Secretaria Estadual de Educao do Amazo-nas. Organizado em etapas, e em funcionamento desde o ano de 2005, o cursoatende cerca de 330 alunos de cincoplos-baseda regio do Alto Rio Negro.

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    ABSTRACT: Given that indigenous thought operates with principles and

    categories that are radically distinct from western technological and scien-tific thought, what do the intellectuals of the forest have to say to us aboutthemes treated by Science, Christianity and the State? What do the nativepeoples think, based upon their own epistemological paradigms, about so-cial facts in their own cultures and about those that concern our westernsociety? In the pages that follow an attempt to observe this cross-culturalanthropology is presented, highlighting how our theories are captured andtranslated by the theories of those who were always observed by anthro-pologists. This text also serves as a basis for a program of encounters bet-

    ween indigenous intellectuals from various places and ethnographic con-texts in Brazilian Amazonia to exchange native ideas, concepts, narrativesand theories. We also present several ethnographic episodes that confirmindigenous anthropological action within conceptual parameters that aredistinct from those practiced by western science, hopefully serving as a sourceand stimulus for the exploration of an ethno-anthropology.

    KEY-WORDS: Amazonia, indigenous intellectuals, crosscultural anthropology.

    Recebido em novembro de 2008. Aceito em abril de 2009.