fernando domith - noites primitivas parte ii

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Fernando Domith - Noites Primitivas Parte II

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Noites primitivas II

Abri os olhos e por um momento esqueci completamente onde estava. O lugar era

escuro e cheirava a vômito, mijo e merda. Barras de ferro por todo lado, novamente uma cela. Ouvia os gritos insanos do lado de fora, os urros de satisfação. A lembrança veio então súbita. Sim, eu lembrava onde estava. Infelizmente.

Olhei para minhas mãos machucadas, feridas antigas e novas, nenhuma infectada. De tanto andar descalço, as solas dos meus pés pareciam feitas couro, e a boa e velha barriga de cerveja havia desaparecido completamente. Eu malhava agora, precisava disso. Meu cabelo havia crescido desordenadamente, assim como minha barba. Eu não precisava estar bonito naquele lugar, muito menos meus adversários ligavam para minha aparência. Eles estavam por todo lado, zumbindo baixinho, jogando-se contra as barras de ferro como se fizesse alguma diferença. Era até um pouco engraçado. Havia centenas deles no mesmo salão que eu, mas a minha cela era só para mim. Havia uma privada, até mesmo uma pia.

- Hei. Idiota. Pronto para o banho? Lance e seu fiel escudeiro Kurt. Eu não respondi ou me movi. - Acho que esse aí tá com os parafusos soltos, Lance. Os dois riram. - Bem, é o que normalmente acontece por aqui, mas parafusos soltos ou não, ele

vai ficar molhadinho. Os dois riram novamente e ergueram uma grande mangueira, como aquelas

usadas por bombeiros para apagar os incêndios mais severos, e Lance a acionou. Oh, Deus, a dor. A água atingia forte demais, rasgando minhas roupas e quase

minha pele. Mas eu suportava e guardava todos os esses momentos em um canto especial da minha mente. Eu não tinha dúvidas, as coisas mudariam. Demoraria, seria difícil, mas as coisas já começavam a entrar em seus devidos lugares.

Havia uma memória especial naquele sombrio canto. Donna havia morrido em meu colo. Sua garganta havia sido estraçalhada, ela tentava dizer algo, mas sua voz havia se perdido para sempre. Eu não precisava ouvir nada, sentia suas lágrimas escorrendo quentes pelo meu braço. Seus lindos cabelos espalhados por minhas pernas, empapados em sangue.

Eu prometi nunca me esquecer, pois eles me obrigaram a ver. Eu não falava, eu não sorria, eu não cantava, pois poderia esquecer aos poucos.

Felizmente eu me lembrava perfeitamente do desespero no rosto de Donna, depois de ter sido espancada e estuprada, e minha raiva queimava, queimava brilhante demais.

No início dessa história toda, enquanto eu corria para a casa de minha falecida noiva, o que agora parecia ter sido anos atrás, ingenuamente tive alguns pensamentos sobre como reverter tudo isso, como eliminar estas criaturas asquerosas e putrefatas da face da terra. Pensava no governo criando algum plano, ou algumas semanas depois um anúncio de que tudo estava terminado, que havia sido apenas um acidente isolado. Mas isso havia ficado para trás. Eu não odiava mais os zumbis, eles não tinham escolha alguma, não havia um fio de pensamento racional em seus cérebros. Meu ódio era um revólver com apenas uma bala, e eu precisava de mais tempo para acertar meu novo alvo e não havia espaço para erros. Eu me mantinha fixo ao plano: ser humilhado, nadar em sangue, sacrificar quem fosse preciso sacrificar. Mas sabia que no fim eu prevaleceria. Os zumbis haviam se tornado um meio, com certeza muito desagradável, para alcançar aqueles que agora eu odiava. Aqueles que haviam matado Donna e me

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jogado naquele poço imundo para lutar pela minha vida imunda. Os zumbis não eram mais inimigos, tampouco aliados, eram um meio. Meus verdadeiros inimigos estavam gritando lá fora, extasiados pelos espetáculos, pronto para mais um combate recheado de vísceras e lágrimas de horror. O meu verdadeiro inimigo era o homem.

Finalmente a mangueira foi fechada e Kurt falou novamente. - Vamos embora daqui, Lance, não gosto dos olhos desse homem. - Haha! Você não passa de uma vadia assustada, Kurt. Talvez você devesse entrar

na cela e fazer parte do espetáculo. Kurt ficou branco em dois segundos e agarrou a pequena medalha pendendo de

seu pescoço. - Meu Deus, não diga uma coisa dessas, Lance. - Hoje é dia desse aí lutar, parece que já é a terceira vez. Lance se inclinou para frente com um sorriso malicioso. - Hei, companheiro, quem sabe você não se torna um campeão, hã? Isso seria

bom, não? Poderíamos até lhe arrumar um cinturão feito de pele e alguns órgãos. Seria maravilhoso, não seria?

Lance deu uma gargalhada e eu continuei a encarar o chão. - Segure a mangueira, Kurt. Acho que nosso amigo Archer aqui não está limpo o

suficiente. Kurt obedeceu e eu fui açoitado novamente pela torrente impiedosa cuspida da

mangueira. A verdade é que não existe tal coisa como “acostumar-se com a dor”. É sempre

horrível, é sempre lancinante. É sempre triste. - Jogue um pouco nos idiotas, Lance! Lance gargalhou. - Boa ideia, rapaz! Os homens redirecionaram a mangueira para os zumbis na cela ao lado. Nenhum

reclamou enquanto a água os atingia, aqueles lá não sentiam nada, apenas caminhavam, caminhavam e se dessem sorte encontravam algo para mastigar. Vários haviam morrido, novamente, por inanição e não se moveriam nunca mais. O fedor daquele lugar era abissal, era absurdo, era um soco diretamente na alma, mas fazia parte do pequeno jogo psicológico dos militares. Sim, havia vários psicólogos trabalhando nos “jogos”, arduamente tentando e conseguindo deixar tudo aquilo o mais brutal possível.

Outro homem veio caminhando lentamente carregando uma bandeja. Possuía uma estranha mancha amarronzada na maior parte do rosto, horrível de se ver. Era o homem da comida, Roy.

- Bom dia, Lance, Kurt. Os homens desligaram a torneira enquanto ainda riam ofegantes. Lance

respondeu: - Olá, meu bom Roy. Como andas coisas? Bem calóricas, eu poderia dizer pela

sua barriga. - Por que não enfia essa mangueira no rabo enquanto chupa seu amiguinho Kurt?

Se você quiser posso acioná-la para te dar mais prazer. A expressão de Lance se crispou. Ele largou a mangueira e andou até Roy com os

punhos cerrados. Os dois agora se encaravam de muito perto. - O que disse? – Lance disparou. - Exatamente o que você ouviu. - Você gosta de comer, Roy? - Foda-se. - Bem, para comer, você precisa de seus dentes, certo?

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- Lance, se você se aproximar mais um centímetro, e puxarei minha faca, a qual já estou segurando, enfiarei pelo seu queixo até seu cérebro subdesenvolvido.

Lance olhou para baixo e a faca de Roy realmente não estava mais na bainha. Ele se afastou. - Um outro dia, parceiro. Um outro dia. Lance e Kurt se retiraram silenciosamente. Roy se abaixou e colocou a badeja de

madeira no chão. - Hora do almoço, Archer.

***

O soldado Mcferrin abriu a grade para que eu pudesse entrar na arena. Era um bom rapaz, sempre com sua pele de bebê pingando suor, sempre com um sorriso hesitante no rosto. Um tipo assustadiço, eu diria. No início parecia morrer de medo de mim, mesmo com aquele grande rifle M-16 pendurado em seu ombro pronto para cuspir carinhosos beijos de fogo. A partir da minha segunda vez em combate passei a cumprimentá-lo, e sua tensão dissipou-se desde então. Mcferrin. Um bom rapaz. Talvez eu o poupasse quando destruísse todo aquele lugar.

Eu estava em uma base militar em algum lugar ao norte de Garden City, comandada por um tal de Major Brakefield, o primeiro filho da puta que iria morrer quando eu tivesse meu próprio M-16 no ombro. Ele havia idealizado a arena, e ele era o que mais berrava e gargalhava com as tripas espalhadas pelo chão. As coisas funcionavam da seguinte maneira, todo e qualquer autor de um crime grave, como assassinato e estupro ia parar na arena. Eu havia cometido os dois, pelo menos de acordo com o sargento Boyter, o homem que havia efetuado minha prisão.

Donna e eu estávamos escondidos em uma igreja, compartilhando uma última refeição e os planos para as próximas horas, quando o grupo de militares entrou. Suspiramos de alívio, finalmente algum sinal de ordem no meio daquele caos. Mas aqueles homens não estavam lá para salvar ninguém, fui atingido por um coronhada assim que me aproximei para fazer algumas perguntas e amarrado em uma cadeira bem em frente ao altar. O pelotão havia pensado que Donna fosse minha esposa, namorada, ou qualquer coisa do tipo.

A partir daí houve apenas gritos, todos os homens do pelotão, aproximadamente dez, a penetraram, bateram e fizeram tudo o que mais os deixava com tesão. Eu não acredito em Deus, mas juro por qualquer outra coisa que guardei o rosto de cada um, os olhos insanos de cada um, principalmente do sargento Boyter, o homem que a enforcara até partir todos os ossos de sua garganta. Eu nunca havia me sentido daquela maneira, nem mesmo quando vi Lizzie morta na cama. Eu me lembro do momento em que meu inimigo mudou e me lembro do que nasceu a partir daí. Um ódio eterno, uma convicção fria como a alma daqueles homens. Eles iriam perecer. Todos iriam perecer.

Depois de se satisfazerem soltaram minhas amarras. Eu estava chocado demais ouvindo o choro baixinho de Donna, e logo meu choro se juntou ao dela. Eu segurei sua cabeça em meu colo, pouco ligando para a sujeira ao seu redor. Eu não soube o que dizer, e nunca me perdoarei por isso. Seus olhos castanhos me pediam algo, mas minha voz estava morta como minha esperança. Ela se foi, e os homens me agarraram logo em seguida. Ainda não sei por que se deram ao trabalho de me levar para a base e me acusarem de seus crimes, talvez a arena estivesse em falta de combatentes.

A arena era precária, consistia de uma antiga quadra cercada por grades fortificadas. Uma grande arquibancada havia sido construída em volta, de modo aos

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espectadores terem uma boa visão acima da grade. Não eram raros casos de quedas por ali.

As regras eram as seguintes: o combatente inicialmente lutava contra um zumbi, apenas com armas brancas que ficavam espalhadas pela arena. Aqueles que ganhavam recebiam dois zumbis no próximo combate, assim por diante. Aquela era minha terceira vez, então, consequentemente, lutaria contra três monstros. Sem falsa modéstia, eu era bom naquilo. Eu era um corredor, mas quando entrava em combate possuía uma violência singular. O segredo era simples, imaginar rostos nos infectados e deixar o sangue correr. Golpear com toda a força, com todo o ódio que houvesse em seu coração. Era a única maneira de combater o terror e a merda que ocasionalmente terminava em suas calças. Assim como ninguém se acostuma com a dor, ninguém fica livre do medo. Ele está sempre lá, e não necessariamente como um inimigo.

Um simples arranhão, uma simples mordida, e meu amigo, bem vindo ao clube dos mortos.

Cumprimentei, então, pela segunda vez em três semanas, Mcferrin, e pisei na velha tinta verde da quadra. Do outro lado havia três soldados com aquele tipo de bastão com um laço na ponta que se usa para capturar cães, nunca soube o nome da porcaria e nunca me dei ao trabalho de perguntar. Os zumbis não eram exatamente ferozes, apenas se movimentavam lentamente com os braços estendidos em direção aos soldados, sem nunca cansar, sem nunca desistir. Por ser minha terceira batalha eu era um pouco conhecido, talvez até um pouco apreciado pela plateia, de onde ouvi assovios e palmas enquanto caminhava para o centro. Ao meu redor havia canos, marretas, correntes, machados, socos ingleses, uma variedade de armas. Peguei o machado, pois queria terminar as coisas rapidamente. Assim que um alarme soou os zumbis foram liberados e os guardas correram para a saída.

Como sempre, eu corri. Descrevi um meio círculo em volta dos idiotas e acertei o da direita com uma machadada precisa no pescoço, mas era um zumbi acima do peso e não consegui cortar sua cabeça de uma vez. Mas consegui derrubá-lo com o impacto e aproveitei para cortar suas duas pernas na altura do joelho. Esses golpes foram mais fáceis e quando terminei meu trabalhinho sujo pus-me novamente a correr, pois seus amiguinhos se aproximavam.

O dia estava quente e minha camisa esfarrapada começava a ficar molhada. Limpei o suor da testa enquanto corria e pensava como pegar os outros dois. Vi, então, uma estaca em uma das extremidades da quadra. Corri para lá. Um dos zumbis era bem veloz para sua condição, então resolvi eliminá-lo em seguida. Joguei o machado no chão e peguei o pedaço de madeira com uma ponta bastante boa. Corri da direção do desgraçado como um cavaleiro em uma justa e quando a estaca o atingiu no peito eu continuei empurrado para afastá-lo dos outros dois. Quando parei precisei apoiar o pé em seu peito para retirar a estava, uma manobra perigosa, pois ele continuava mordendo ferozmente em minha direção. Quando a madeira finalmente saiu de seu peito podre ele perdeu o equilíbrio e caiu com a barriga pra cima. Pensei em pisar em sua cabeça para finalizá-lo, mas aquilo não seria uma boa ideia, se minhas botas não fossem resistentes o suficiente seus dentes poderiam acabar provando da carne do meu querido pé. Aproveitei a estaca e a enfiei com toda a força no meio de sua boca, empurrando seus dentes para o fundo de sua garganta. Depois de alguns espasmos ele parou de se mover.

Os outros dois continuavam vindo lentamente em minha direção. Sim, aquele sem pernas e com metade da cabeça descolada continuava se movendo. As criaturas eram tão resistentes quanto a maldade no coração do homem.

Em seguida, para a surpresa geral, corri novamente. A plateia continuava urrando das arquibancadas, mas, honestamente, eu pouco ouvia. O que realmente chegava aos

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meus ouvidos eram os barulhos que as criaturas faziam ao sentir meu cheiro, ou ver minha silhueta, eu não sabia realmente como eles detectavam suas presas. Peguei um bastão de beisebol de alumínio do chão e me aproximei do que ainda estava de pé. Eu jogava na faculdade, então quando o metal atingiu o osso eu senti e ouvi o último ceder e um conteúdo nada agradável de se ver vazando da abertura no local. Este também parou de se mover.

Restava agora o rastejante, eu não mais precisava correr. Recuperei meu machado e sem mais demoras terminei o que havia começado. Sua cabeça rolou e sua expressão estúpida se congelou para sempre.

Os soldados entraram novamente na arena e se aproximaram de mim. Eu não larguei o machado, nunca largava a arma com a qual terminava. Era, obviamente, um ato idiota, pois sempre terminava da mesma maneira: 50000 volts correndo pelo meu corpo e o despertar dolorido na cela. Mas eu não acordava tão mal assim, sabia que cada combate era um passo em direção à minha vitória final. O que eu não sabia era o que me aguardava nos combates ainda por vir.

***

Quando retornei à minha cela tudo estava em seu lugar, menos uma reluzente

garrafa de uísque vagabundo sobre meu catre. Caminhei até lá um pouco desconfiado, isso nunca havia acontecido antes. Sentei sobre o colchão fino e dei uma espiada no rótulo e em todo o resto, a tampa estava lacrada e tudo. Foda-se. Abri a garrafa e dei uma boa golada que desceu como fogo líquido pela minha garganta seca. Minhas pernas ainda estavam um pouco bambas e um pouco de suor ainda escorria pela minha testa. Adrenalina não era brincadeira.

- Querem um trago, camaradas? Estendi a bebida para os zumbis que me cercavam dos dois lados e ninguém

pareceu muito interessado. Seus braços atravessavam as barras de metal, e felizmente era só isso. Tive um pouco de medo de ficar bêbado demais e acabar chegando muito perto. Belo jeito de morrer depois de passar por tantos combates com os desgraçados. As celas eram dispostas da seguinte maneira naquele pavilhão: um combatente, um grupo de zumbis, um combatente, um grupo de zumbis. Não havia contato entre os azarados que lutavam por suas vidas miseráveis na arena, mas eu ouvira algumas histórias de Roy, o cara da comida. Este também não era uma alma má, sempre trazia alguma coisa a mais que sobrava da cozinha pra mim. Havia ao todo oito celas ocupadas por homens livres da infecção, e eu era o segundo colocado em combates na arena. Havia um tal de Harden, ex-capitão do segundo pelotão, que no meio de uma ronda havia executado todos os seus homens. Roy não sabia o porquê, na verdade ninguém sabia. Ele havia combatido cinco vezes e vencido todas, obviamente. O homem era bom naquilo, rápido e impiedoso. O resto era de novatos e veteranos de um combate, e não me interessava nem um pouco com eles.

Quando a garrafa estava quase na metade ouvi passos ecoando no corredor. Logo pararam em frente à minha cela três homens. O do meio era grande como um boi, com um impecável uniforme verde-oliva e uma boina da mesma cor enfeitando sua cabeça careca. Os outros dois se vestiam da mesma forma, mas eram menores e eclipsados pela grande figura que me encarava com um meio sorriso no rosto.

- Belo combate, Archer. - Foda-se. O homem da direita se adiantou indignado. - Seu idiota desgraçado, sabe com quem está falando?

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- Não, e não me importo em saber. O idiota puxou o cassetete e praguejou novamente. - Seu filho da puta! Eu simplesmente gargalhei. - Todos os homens do exército são tão burros assim? Encarei o homem da direita. - O que pretende fazer com esse cassetete a essa distância? Seu verme estúpido. Ele berrou para alguém lá atrás: - Abra a cela seis! Finalmente o grandalhão abriu a boca novamente. - Ninguém vai abrir porra nenhuma! Tire a mão dessa alavanca, Cabo Wendland! Os zumbis encarcerados ao nosso redor pareciam estar aproveitando o espetáculo,

pois zumbiam mais alto que nunca e forçavam ainda mais seus corpos contra a barra de ferro. Isso pareceu irritar o gigante, que tirou a pistola do coldre e abateu meia dúzia deles com tiros certeiros na cabeça. Não mentirei, isso me impressionou bastante.

- Meu Deus, esse lugar é o inferno. E depois de guardar a pistola no coldre acrescentou com um sorriso maníaco no

rosto: - Exatamente como eu planejei. Dei uma golada na garrafa. - Você é Brakefield, certo? Ele sorriu novamente. Dentes impecáveis. - Isso mesmo, Thomas Archer. Eu me levantei do catre fervendo de indignação: - Você sabe que sou inocente não é mesmo, seu desgraçado? Aquele seu sargento

de merda junto com todo o resto do pelotão foderam Donna e colocaram a culpa em mim.

- Shh, shh. Acalme-se, companheiro. Eu não me importo com qualquer coisa que você tenha a dizer. Sou um homem muito ocupado para ficar aqui ouvindo suas reclamações esganiçadas. Siga meu conselho, aproveite bem essa garrafa, durma o sono sem sonhos dos bêbados e fortaleça sua mente e corpo, pois gastei uma boa parte do meu tempo planejando coisas grandiosas na arena para você e o maluco do Harden. Será maravilhoso, será algo nunca visto antes, e você meu amigo, se fizer sua parte como espero que faça, poderá ser a estrela principal.

Ele se virou e encarou os zumbis idiotas ao nosso redor e fez uma cara de nojo. Olhou novamente para mim:

- E não pense que sou um homem mesquinho. Haverá uma bela recompensa para você se sobreviver aos desafios, algo como uma patente respeitável em meu pelotão principal.

Ele sorriu novamente como um maníaco enquanto se retirava. - Boa sorte, Archer. Mantenha-se vivo. Quase joguei a garrafa em sua direção, mas pensei melhor e tomei um trago. Isso

poderia ser interessante, uma patente poderia me proporcionar uma chance de destruir tudo de dentro para fora. Sorri encostado na parede fria. Sim, isso poderia ser interessante.

Continuei bebendo a garrafa lentamente e as coisas pareciam melhorar a cada segundo, incluindo meu humor. Caminhei até algumas mãos estendidas e rindo como um idiota apertei algumas delas.

- Muito obrigado, senhores. É uma honra compartilhar aquela linda arena com vocês. Muito obrigado.

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Apertei umas boas oito mãos achando aquilo a coisa mais engraçada do planeta. Talvez eles estivessem certos, meus parafusos estavam afrouxando.

Foi assim que minha segunda visita da noite me surpreendeu. Demorei um pouco para perceber a presença das pessoas do lado de fora da cela, e achei bastante estranho elas não estarem de farda.

- Olá? Sr. Archer? - Meu Deus, eu realmente devo estar fazendo um trabalho e tanto naquela arena.

Tantos fãs vindo me visitar! Dessa vez era uma dupla. Havia uma mulher, muito bonita, diga-se de passagem.

Possuía cabelo castanho cortado na altura do queixo e olhos de um azul opaco como eu nunca havia visto antes. Seu rosto parecia completamente simétrico, com lindas bochechas gordinhas. Usava roupas normais, jeans e uma blusa verde sem nenhum detalhe especial e parecia um tipo bem vulnerável. O homem ao seu lado tinha os cabelos brilhantes e muito negros penteados para trás, com a barba bem aparada se movendo no ritmo do maxilar que mascava um chiclete verde. Seus olhos eram muito frios e usava um casaco estilo camuflado, mas aparentemente não pertencia ao exército. A mulher, então, falou novamente.

- Sr. Archer, o senhor está bem? Franzi o cenho diante dessa pergunta inesperada. - O que quer dizer com isso? - Bem, está ferido? Está sendo bem tratado aqui? Meu Deus, como eu gargalhei depois dessa. Eu simplesmente não conseguia

parar, as lágrimas desciam enquanto sentia até mesmo ânsias de vômito. Os dois me olharam assustados. Novamente o papo dos parafusos frouxos.

- Garota, eu sobrevivo de rações e água. Três vezes por dia, sempre a mesma merda. Não vejo a luz do sol a não ser quando vou para a arena e o tempo todo meus amigos aqui do lado parecem clamar por meu nome em sua estranha língua zumbida. Não toco em uma mulher por semanas e não consigo nem me masturbar com todos eles olhando. Eu mergulho minha alma em vísceras podres para sobreviver sem ter nada para contemplar no final de todo esse trabalho.

Tomei um gole da garrafa. - Bem, sim, estou bastante bem. Bando de idiotas. A garota quase partiu meu coração com sua carinha triste. - Sr. Archer, por favor, nos ouça. Nós queremos tirá-lo daqui, assim como todos

os outros. Fazemos parte de um movimento contra tudo o que acontece naquela arena. Os militares também são nossos inimigos, como pode ver.

Novamente eu gargalhei e o homem finalmente falou com uma bela voz: - Vamos embora, Stella, esse não tem mais jeito. - Não, espere. Por favor, Sr. Archer, Tom, me escute. Nós temos contatos, já

temos um plano quase pronto para tirar todos vocês daqui. Você não deseja ser livre novamente?

- Garota, a que ponto chega sua ingenuidade? Ser livre? Quem gostaria de ser livre num mundo tomado por criaturas como essas? – gesticulei para que ela olhasse ao redor.

- Os militares são seus inimigos, você disse? Isso só pode ser algum tipo de piada. De onde vem a comida do seu grupo tão maravilhoso?

Nenhum dos dois abriu a boca para responder. - Essa não é uma pergunta retórica. - Dos militares – a garota finalmente respondeu.

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- De onde vem a proteção para seu grupo? De onde vêm suas roupas? Quem mantém vocês seguros atrás dessas malditas muralhas?

A garota olhou para o chão: - O exército. - Então, garota, o que sua hipocrisia pode fazer por mim? Há! Os militares são

seus inimigos? Tomei outro gole da garrafa, que chegava ao fim. -Sim, dessa vez são retóricas. Sumam da minha frente, não preciso da ajuda de

ninguém. Ela olhou tristemente para mim mais uma vez, e, então, o homem ao seu lado a

puxou. - Vamos, Stella. Finalmente fui deixado sozinho. Terminei a garrafa e a coloquei embaixo do catre.

Eu tinha meus próprios planos e não me importava que ainda fossem precoces. Com o tempo eles se estruturariam para logo em seguida entrarem em ação. Eu não tinha ideia como as coisas andavam no mundo lá fora, se haviam encontrado algum tipo de solução contra os zumbis, se os grandes líderes militares sabiam sobre o que acontecia na base, mas isso não importava. Eu prevaleceria, não importa o desafio que colocassem à minha frente.

Levantei do catre e apertei algumas mãos novamente: - Boa noite, meus amigos. Logo, logo será a vez de vocês.

***

Eu já havia perdido a conta de quantas flexões havia feito. Uma pequena poça de suor se acumulava no chão cinzento, e eu simplesmente não podia parar. As lutas eram terríveis, mas em minha nova rotinha terminei por conhecer um terror bem maior do que correr de zumbis sedentos por minha carne. Entenda, eu sempre fui um homem simples, despreocupado, desorganizado, irresponsável e injustamente sortudo demais. Pouco conhecia de sentimentos sombrios como solidão, angústia ou medo. Eu havia nascido protegido, o dinheiro era meu escudo. Eu havia sido idiota minha vida inteira, e minha fala bonita, conquistadora de corações simplórios, havia me carregado por aí, pelo ensino médio, pela faculdade, pelo meu antigo emprego. Eu não tinha tempo para pensar em coisas como o sentido da vida, o sentimento do próximo, morte, ou qualquer outra coisa desagradável do gênero. Meu tempo era ocupado com sexo, bebidas e sorrisos de triunfo sobre criaturas patéticas que viam meu desprezo como superioridade.

Algumas semanas atrás eu ainda era a maior parte assim. Pensava que alguém resolveria toda aquela calamidade e eu voltaria para o lado vencedor da vida. Aquele que pisa, aquele que finge que não vê, aquele que recebe o doce beijo da mulher que quiser. O primeiro golpe real foi a morte de minha esposa. Naquele momento a ponta de um punhal se infiltrou levemente na base de meu crânio, mas como qualquer choque ele é imediatamente rechaçado e coberto com um pouco de descrença, como se fosse algum tipo de pegadinha, como se tal brutalidade não pudesse existir. Mas o metal ainda estava lá, e com o passar do tempo ele não poderia ser mais ignorada.

O segundo golpe foi outra morte, a de Donna. Dessa vez alguém deu uma marretada no punhal, de maneira que ele nunca mais seria retirado. Eu vi a coisa real, eu vi a fragilidade da vida, eu vi a simplicidade do assassinato, e, amigo, dessa vez eu não me recusei a acreditar. Por trás de olhos embaçados eu olhei, olhei e olhei. Vi cada detalhe sujo, cada risinho insano, cada grito horrendo saindo diretamente das tripas daquela pobre mulher. Eu me obriguei, eu mesmo forcei o punhal, pois agora aquilo era

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a realidade. Agora, eu estava do lado perdedor da vida, e a apesar de fútil eu não era estúpido. No estilo mais clichê das palavras, um Thomas Archer morreu com Donna naquela noite, tão penetrado, perfurado e choroso como ela. A convicção de que eu nunca mais permitiria qualquer tipo de fé depositada em mim surgiu como um estalo em meu coração, e com essa convicção veio algo muito mais poderoso: o ódio. Eu realmente acreditava que já havia odiado alguém, talvez algum folgado perto demais de alguma mulher com a qual eu não me importava, talvez algum homem fraco que inacreditavelmente se curvava diante do meu absoluto não-direito de impor minha vontade. Bem, isso tudo era uma ilusão, e desapareceu como a chama de uma vela na tempestade.

O meu novo terror agora era o silêncio. Era olhar para a lua lá fora através da janela quadriculada de minha cela, sentir o ar frio da noite penetrar por entre as barras e escutar o silêncio. Entenda, o silêncio é a voz que nos diz tudo aquilo que não queremos ouvir, e essa voz é alta demais. Eu não conseguia dormir, girava e girava em meu catre tentando angariar distantes memórias felizes, mas eu terminava sempre ouvindo o riso do silêncio. Por algum motivo ele é algo muito zombeteiro, algo muito esperto, pois sussurra exatamente aquilo que não queremos ouvir, e como alguém pode ouvir tudo isso e permanecer são? Compreende? Foda-se os zumbis, foda-se a dor, foda-se Major Brakefield, foda-se todo o resto. Eu apenas queria não ouvir, apenas gostaria de por alguns segundos deixar de atear fogo em minha própria mente e dormir, ter um sono tranquilo, sem qualquer olhar brilhando na deturpada luz onírica dos sonhos, sem pensar em me jogar nas mãos dos zumbis ao lado de minha cela e deixá-los devorar o silêncio. Minha loucura rosnava baixinho, e por quanto tempo ela continuaria assim eu não poderia dizer.

Finalmente meus braços cederam e eu desabei ofegante. Estava completamente molhado de suor e meus músculos choravam lágrimas de fogo. Fiquei assim por um tempo, sentindo o granito áspero contra minha pele, e poucos minutos depois escutei passos no corredor. Eu não fazia ideia da hora, talvez fosse o café da manhã, ou o almoço. Não que fizesse alguma diferença, todas as refeições eram as mesmas. Mas dessa vez não era Roy, o cara da comida, mas sim um soldado desconhecido.

- Você foi convocado, verme. Sorri, ainda no chão e me mantive imóvel. - Cabo Wendland! Abra a cela... O homem não terminou a frase. Deu uma nova olhada para mim e estalou os

lábios. - Wendland! Mande alguém trazer a mangueira! Levantei-me, sentei-me no catre e perguntei despretensiosamente: - O que querem comigo? O homem de um berro surpreendente: - Cale sua maldita boca, idiota! E berrou ainda mais alto: - Wendland! Não me faça pedir duas vezes! Malditos militares, sempre gritando por aí. Talvez os zumbis o deixassem

nervoso, pois ele se mantinha exageradamente afastado das celas. - Não se preocupe, soldado, esses aí são mansos como poodles. Outro berro estava a caminho, e era, de certa forma, um espetáculo ver todos os

músculos faciais do homem contraírem-se enquanto sua pele se avermelhava e sua boca formava um “o” muito parecido com aquele que eu havia visto nas mulheres que se ajoelhavam na minha frente eras atrás.

Ninguém mais se ajoelhava.

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O berro foi impedido por Lance e Kurt que corriam desengonçados como Quasimodos carregando aquela maldita mangueira. Mais uma pequena dose de dor para o pobre Tom.

- Imbecis, não pretendo esperar que vocês tirem o pau da bunda do outro toda vez que vier aqui. Andem, lavem esse verme, o idiota parece ter corrido uma maratona.

Dei uma risadinha, apesar de nervoso o homem era engraçado. - Hei, qual seu nome? Você parece ser... Eles, então ligaram a mangueira. Não pude terminar minha frase, aquela água não era brincadeira. Encolhi-me no

canto e fiquei lá, até mesmo um pouco grato, pois a voz daquela dor calava completamente a do silêncio.

- É o suficiente – disse o soldado desconhecido – tragam agora alguma roupa nova para o idiota, e rápido. O Major espera.

Bem, isso era inesperado. Não perdi meu tempo perguntando mais nada, estava cansado dos gritos do

homem. Ao invés disso aproveitei para memorizar suas feições para o momento em que elas seriam destruídas por balas cuspidas do meu M16 futuramente.

Ele parecia ser mais velho que o Major Brakefield, tinha a pele muito morena e grandes pés de galinha perto dos olhos, que eram acinzentados como o de um peixe morto. Tinha um bigode abundante e parecia ter orgulho dele, pois estava muito bem aparado. Era grisalho como o pedaço de cabelo que podia ser visto por baixo da boina verde. Tinha uma estatura média, mas parecia ser bem forte.

As roupas chegaram em dois minutos: nada espetacular, apenas um par de tênis, uma calça preta de brim e uma camisa verde oliva. Eu poderia ser confundido com um militar sozinho em casa, talvez bebendo uma garrafa de gim e pronto para dormir. Sorri silenciosamente: Deus, eu era realmente engraçado.

- Coloque as mãos para fora da cela – disse o homem enquanto retirava o cassetete do cinto.

Obedeci e perguntei enquanto estendia as mãos e olhava as insígnias em seu ombro:

- Tenente? Num golpe preciso e veloz o homem acertou meu nariz com o grande instrumento

de madeira. Eu ouvi o osso quebrar. - Santa Maria! – gritei diante daquela dor lancinante – Pra que isso, seu

desgraçado filho de uma puta? - Mãos. Esse não estava de brincadeira. Retirei as mãos do meu nariz e uma grande

quantidade de sangue caiu nas minhas roupas novas. - Viu? Agora não está tão bonito. O Major não vai gostar disso. Fui algemado e carregado para fora da cela. Meus olhos lacrimejavam e meu nariz

pulsava. Eu não me sentia mais tão engraçado. Logo que me aproximei da arena pude ouvir os gritos da audiência. Era dia de

combate. Pensei com um certo desespero que seria levado para a quadra, eu não estava preparado, aquele golpe no nariz havia me deixado completamente desnorteado, mas por algum estranho motivo fui conduzido por uma pequena escada em um canto, e aonde emergi foi o último lugar no qual eu esperaria estar.

Havia três cadeiras abaixo de uma tenda branca, e apenas uma, a do meio, estava ocupada. Brakefield estava lá, de óculos escuros, seu tradicional uniforme militar, sentado como um lorde inglês do século XVIII, bebendo alguma coisa cheia de cubos de gelo. Eu estava nas arquibancadas. Ao me vir pareceu um pouco surpreso:

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- Por Deus, Archer, o que aconteceu com você? Tropeçou no caminho para cá? O homem que me levava riu baixinho. - Mais ou menos – respondi num muxoxo. - Bem, por que não se senta aqui para desfrutarmos de um belo espetáculo? Fui empurrado para a cadeira ao lado do Major e logo dois soldados grandalhões

fizeram mira com seus fuzis para garantir minha imobilidade. - Espero que não se incomode – disse Brakefield – sou um homem precavido. Havia várias cadeiras atrás de nós, eu podia ouvir os murmúrios de desagrado dos

outros soldados e aposto que não atiraram nada em mim porque o Major estava do lado. O homem que me carregara até ocupou a outra cadeira.

- Springfield! – gritou o Major. - Sim, senhor! – ouvi uma voz atrás de mim. - Sirva um pouco de limonada para o senhor Archer e para o Tenente Barnes. - Sim, senhor! De fato Tenente... poderia simplesmente ter confirmado. Havia mesinhas redondas ao lado de cada cadeira, e rapidamente copos

atraentemente suados e com belos canudos foram depositados nelas. - Fique a vontade, Archer, hoje você apenas assiste. - Quem lutará? Brakefield se virou para meu lado e sorriu. - Harden.

***

A limonada estava deliciosa, descia gelada e doce e azeda pela minha garganta que não conhecia nada além de água e uísque por várias semanas. Tomei o primeiro copo de uma vez e senti uma pontada aguda na parte da frente do cérebro.

- Droga – disse massageando o local. O Major riu. - Vá com calma, companheiro. Tem muito mais da onde essa veio, não precisa se

apressar. Precisa de um pano para limpar todo esse sangue na sua roupa? - Não, obrigado, gosto do toque sinistro que me dá. E um segundo depois meu copo era novamente preenchido com aquele néctar dos

deuses. Dessa vez tomei um gole considerável e perguntei enquanto sorria zombeteiro: - Pedir por um pouco de vodka seria demais? Minha voz estava anasalada devido ao nariz quebrado. Brakefield nem me olhou. Harden entrava na arena, e fiquei surpreso ao constatar a ausência de qualquer

arma jogada pelo chão. Nunca havia visto isso antes. A dor no nariz começava a desaparecer

- Onde estão as armas? Brakefield deu um pequeno sorriso com o canto da boca, enquanto uma pequena

gota de suor escorria de sua costeleta. - Bem, caro Archer, você deve compreender que as coisas não poderiam continuar

sempre tão fáceis para vocês dois, certo? - Fáceis? Lutar contra esses monstros nunca é fácil, idiota. Recebi um grande tabefe do lado da cabeça. - Cuidado com suas palavras, imbecil – disse um homem atrás de mim. Brakefield estalou os lábios em desgosto. - Por favor, Archer, seja mais educado. E você, Springfield, menos violento.

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- Senhor! Sim, Senhor! Tomei um gole da minha limonada. Harden parecia pelo menos vestir um uniforme resistente, parecendo um soldado

do batalhão de choque. Ele não parecia muito assustado, seus passos eram firmes, assim como seus olhos. Ele olhou diretamente para onde estávamos, mas não poderia dizer exatamente para qual de nós olhava, mas eu não tinha muitas dúvidas quanto a isso.

Ali estava um aliado, mas como trazê-lo para meu lado? Vi que ele ajustava dois objetos de metal em seus punhos, socos ingleses. Já era

alguma coisa, com o golpe certo pode-se fazer um grande estrago com eles. - Sabe, Archer, temos estudado essas criaturas. Elas parecem herdar um pouco de

uma característica bem específica de seus hospedeiros: a personalidade violenta. Como você poderá ver logo, um homem violento quando mordido se torna um infectado igualmente violento.

Brakefield bebericou sua limonada e continuou: - O Dr. Burrows pareceu encontrar níveis diferentes de inteligência nos idiotas, o

que nos leva a crer que é algo igualmente herdado de seus hospedeiros. Brakefield fez um sinal com a mão. - Bem, o que quero dizer com isso tudo é que fizemos uma seleção especial hoje

para o Sr. Harden. Pegamos cinco dos prisioneiros que sobreviveram por mais tempo na arena e eles constituirão o novo desafio do nosso ex-capitão lá embaixo.

Brakefield tirou os óculos e sorriu olhando profundamente para mim. - Entende, verme? Os mais violentos e os mais inteligentes contra Harden. Brakefield gargalhou até engasgar. Era maluco até as raízes dos ossos. - É uma pena, era um bom soldado. Mas hoje ele morre. Os portões foram abertos e eu nada pude fazer além de olhar boquiaberto. A dor

de meu nariz quebrado havia desaparecido completamente, estava como novo. Estranhamente eu nunca havia reparado nenhuma diferença na violência das criaturas, muito menos em sua inteligência. Aquilo não podia acontecer, eu precisava de Harden, ele sabia das coisas, ele poderia encontrar uma abertura para a quebra do sistema por dentro. O que eu poderia fazer? Permaneci em silêncio e atento para qualquer oportunidade de ajudar o homem lá embaixo.

A luta começou. Um zumbi irrompeu do portão emitindo um ruído que pude apenas supor como

um grito raivoso. Era o primeiro corredor que cruzava minha vista. Harden ergueu os punhos e assumiu uma postura de boxeador. Isso era bom, ele parecia saber o que fazia. A criatura se aproximou rapidamente e em menos de 5 segundos estava pronta para agarrar Harden com os braços, mas tudo o que conseguiu foi um grande murro na testa, que imediatamente rompeu seu crânio e acabou com sua pós-vida horrenda do monstro. Imediatamente fiquei otimista, lá embaixo estava um homem capaz.

Bem, tudo mudou quando olhei novamente para o portão de três zumbis surgiram tão furiosamente quanto o anterior. Dois deles embolaram as pernas e tombaram no chão verde da quadra, espalhando manchas de sangue podre ao redor. O outro continuou, e Harden preparou o mesmo golpe com o soco inglês. Nesse momento a inteligência do monstro pareceu irromper e ele se abaixou no momento certo evitando o soco direto na cabeça. Fez como um lutador de jiu-jitsu, tentando agarrar a cintura de Harden e morder diretamente sua barriga. Mas o ex-capitão não era qualquer, no mesmo momento jogou seu corpo pra trás com as pernas abertas, jogando todo seu peso nas costas da criatura, fazendo sua cabeça se chocar com força no chão. Depois levantou-se rapidamente e pisou com toda a força, esmigalhando mais um crânio na quadra.

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Prendi minha respiração nos próximos segundos, pois quando ele olhou para cima um braço vinha em sua direção, os dois tropeções haviam se levantado silenciosamente, e a mão fechou-se sobre seu cabelo escuro, inclinando sua cabeça para o lado, revelando seu pescoço desnudo. Harden gritou, creio que tanto de horror quanto raiva, e deu um soco no braço estilhaçando algum osso, apenas para o tropeção II agarrá-lo pelo ombro. A criatura deu uma mordida mortal, mas Harden, com rápidos reflexos, levantou o braço e os dentes do monstro abocanharam sua cotoveleira, levando-a embora entre suas mandíbulas. Harden aproveitou a oportunidade para se chacoalhar e correr, homem esperto, era o melhor a se fazer naquela situação.

Infelizmente a partir daí nada mais vi da luta, pois um grande homem se colocou a minha frente.

- Major, permissão para falar com o prisioneiro? Brakefield nem olhou para o lado. - Concedida. O tempo todo eu tentava me mexer na cadeira, tentando me livrar da incômoda

silhueta à minha frente, mas quando ele se abaixou para me encarar meus olhos se congelaram nos dele. Fazia muito tempo que não o via, mas seu rosto estava tão claro em minha mente quanto o da mulher que ele havia matado. Sargento Boyter, o estuprador.

- Hei, Archer, estou quase recebendo uma promoção por ter encontrado um animal como você, acredita?

Meu estômago congelou. Meu cérebro silenciou. Tudo ao redor se escureceu, e toda a atenção do meu ser estava ali, naquele homem vestido de oliva, com aquela boina ridícula, seus bonitos olhos azuis, sua barba crescendo em meio a pequenos rios de suor. Era como um zoom, eu via cada detalhe, e a partir daí minha mente tão gelada quanto meu estômago tomou uma decisão por mim, uma decisão da qual eu me arrependeria profundamente no futuro.

- E você não sabe o melhor – ele continuou, aproximando-se do meu ouvido – acho que nunca comi uma mulher tão apertada quanto sua namoradinha.

A partir daí foi simples, joguei todo meu peso pra trás e trouxe minhas pernas junto ao peito, eu estava algemado, minhas mãos não teriam a força necessária, e coloquei toda a força nas minhas cochas e joelhos, plantando meus pés no peito de Boyter como uma luva de boxe saída de uma caixinha de surpresas.

Tudo isso durou apenas um segundo: se bem me lembro Boyter esboçou uma reação no momento em que joguei meu corpo para trás, mas ele não foi rápido o suficiente. O empurrão foi forte demais e quando me dei conta vi suas grandes pernas darem passos desajeitados para trás e logo em seguida todo seu corpo passar pela pequena amurada que separava a arquibancada alta da quadra lá embaixo.

Finalmente Brakefield se virou e pela primeira vez o vi realmente assustado: - Puta que pariu! Eu estava suando e respirando alto. E depois da forte pancada em minha têmpora

tudo o que vi foi escuridão.

***

Quando despertei estava em um grande galpão com várias caixas empilhadas ao meu redor. Sentia meu cabelo empapado de sangue no lado direito da cabeça. Havia vários homens parados, eu estava zonzo demais para contar, sete, talvez oito. Ao longe pude ver o Major Brakefield parado junto ao portão de entrada, fechado no momento. Seu rosto era impassível, nada podia ser lido em suas feições, mas nas dos soldados a

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mensagem era perfeitamente entregue por seus músculos faciais contraídos. Ódio, o mais puro e brilhante que se encontra por aí. Sede de sangue, sede de sofrimento alheio, e infelizmente não havia como negar que eu era o alvo. Provavelmente era o grupinho de Boyter, os mesmos que haviam estuprado Donna e me obrigado a assistir. Sim, reconheci alguns me rodeando.

Um grande negro de dentes muitos claros foi o primeiro a falar. - Seu filho da puta. Você compreende o que fez? - Um bem para o mundo? Deus, como eu era estúpido. A bota do homem veio veloz e acertou com a ponta a lateral de minha barriga.

Imaginei sentir algo estranho por dentro e ouvir um estalo partindo de lá. - Boyter tinha mulher e filhos, seu desgraçado. - Todos legítimos? Ou ele acolhia também os bastardos das mulheres estupradas? Dessa vez um outro homem se adiantou para me chutar, não tive tempo nem

mesmo de dar uma olhada em seu rosto, apenas outra bota se chocando dessa vez no meu rosto, exatamente na boca, e por algum milagre todos os meus dentes pareceram se manter no lugar.

- Você vai morrer nesse galpão sujo, Archer. Ninguém se importa, você não compreende? Sua existência é um grande vazio, você não passa de uma ferramenta, eficiente, devo dizer, de entretenimento para os idiotas que se aproveitam da nossa compaixão dentro desses muros.

Mais um chute em meu rosto, dessa vez abrindo um grande corte na sobrancelha. O festival de sangue havia começado. O homem negro voltou a falar:

- Boyter era um bom homem, cuidou de todos nós quando não havia mais ninguém além daquelas monstruosidades caminhando pelas ruas. Ele nos trouxe até aqui, por menores que fossem as chances. Era um bom pai, um bom marido, um bom amigo. Agora não resta muito mais dele além de vários pedaços espalhados por aquela quadra idiota. E alguém deve pagar, Archer. Sangue por sangue. Finalmente seu dia chegou, aproveite enquanto pode.

Virando-se para trás disse: - Cavalheiros, não se contenham. A partir daí não me lembro muita coisa, fechei os olhos e esperei pela chuva de

golpes dolorosos. Senti dores agudas, senti ossos partirem-se, senti meu próprio sangue jorrar. Eles acertavam o corpo todo, e quando a dor começou a diminuir, mesmo que o ritmo de pancadas não, comecei a compreender que morria. Abri os olhos e não vi nada, estava cego. Era hora da passagem, finalmente. Muito ao longe ouvia algumas risadas e comentários em alguma língua desconhecida. Não havia remorso de minha parte, havia vingado Donna, ninguém mais tinha esperanças em mim, poderia ir em paz. A voz do silêncio seria finalmente calada, eu não mais precisaria chorar encolhido na cela. Esses homens se enganavam, eles não me davam sofrimento, faziam exatamente o contrário, me livravam dele. Sorri e deixei-me levar.

Mas ninguém viria me buscar naquele momento. Muito ao longe ouvi uma voz, familiar, ecoar calmamente. - Chega. As pancadas diminuíram, mas não pararam. Um tiro soou então, e dessa vez não

pareceu um eco. Pareceu mais como um puxão de volta à realidade. - O Major disse “chega”. Ouvi protestos indignados. Os homens realmente me queriam morto, tinham suas

razões, claro, assim como eu tinha as minhas.

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Apaguei novamente. Por um segundo pensei que fosse a morte e realmente temi, não era tão corajoso quanto pensava, mas naquele ponto não havia muito mais a ser feito, não havia mais resistência. Deixei-me levar novamente.

Abri os olhos novamente, para meu desgosto. Na escuridão do sono as dores não

podiam me alcançar, mas ao retornar para a cela que era meu corpo toda a dor veio como uma onda. Todos os lugares doíam, cabeça, tronco, braços, cintura, pernas. Isso sim era uma surra bem dada, companheiros. Imaginei qual seria o tempo de recuperação, e se haveria oportunidade para tal coisa.

Enquanto as dores tentavam chamar minha atenção, aproveitei para dar uma olhada no novo local onde estava. Conhecia pouco daquela base, quando fui levado até lá, logo depois ser detido, tive um rápido vislumbre da parte central, mas não armazenei nada específico pois minha mente ainda estava enevoada e em choque devido a morte de Donna. Fui levado direto para a cela que sempre habitei, mas agora estava em lugar muito claro e limpo, com várias camas ao meu redor. Obviamente a enfermaria, ou algo do gênero. Os leitos estavam praticamente vazios, e eu ficava afastado de todo o resto, provavelmente por ser um perigoso criminoso. Notei os dois soldados muito bem armados ao meu lado somente depois de um deles ter tossido discretamente. Ponderei sobre a possibilidade de levantar, mas sabia que apenas pioraria as coisas.

- Hei, soldadinho, que tal me arranjar um pouco mais de morfina? Pelo menos ainda possuía meu senso de humor. - Cale a boca imbecil, a Dra. Stella já está a caminho. Eu realmente gostaria de dar

mais algumas pancadas nesse seu rosto idiota, mas você já está quebrado demais. Não há mais espaço, haha!

O outro soldado deu um risinho. Eu não tinha resposta para isso. Dessa vez eu estava realmente arrebentado. Por volta de cinco minutos depois uma mulher entrou na sala, carregando uma

prancheta. Uma mulher que eu conhecia. Ela caminhou segura, como se já estivesse muito familiarizada com o local,

passou por dois leitos no caminho, parando por alguns minutos em cada um, sempre sorrindo, fazendo algumas perguntas, escrevendo algumas anotações e continuando com sua caminhada, até que finalmente chegou onde eu estava. Estava exatamente como da última vez que a havia visto, cabelos castanhos curtinhos, olhos azuis, belas bochechas. A única diferença agora era o jaleco, que de certa forma impunha um certo respeito. Olhou para mim séria, com olhos puramente profissionais.

- Sr. Archer? Sua voz também soava profissional. - Yep. - Vejo que aquela brincadeirinha sem graça na quadra vem lhe trazendo sérios

prejuízos. Os dois homens atrás de mim deram risinhos perversos. - Pode-se dizer que sim, doutora. Ela mexeu em sua prancheta passando algumas folhas. - Você precisou de um total de 96 pontos, teve três luxações em suas costelas,

afundamento leve no crânio, um nariz quebrado e um braço partido em dois lugares. Imagino que não se sinta muito bem.

- Bem, doutora, isso depende somente de você. Se pudesse, por favor, chamar a Irmã morfina eu ficaria eternamente grato.

Ela não sorriu, apenas olhou para os dois homens ao lado da cama. - Não preciso de vocês dois aqui, podem embora.

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- Mas, doutora, esse homem é perigoso. - Ele não fará nada, além do mais, vocês podem ficar na sala de espera logo ali ao

lado. Qualquer gracinha desse sujeito chamarei por vocês. - Mas, doutora... - Agora, não pedirei duas vezes. Os homens não pareciam nada felizes. - Você tem dez minutos, doutora. Depois disso estaremos de volta. Ela nem os olhou, tinha os olhos estranhamente fixos em mim. Os homens se puseram a caminho pisando forte no chão imaculado da enfermaria.

Quando a porta se fechou a doutora se sentou na cadeira ao lado de minha cama, deixando que todo seu ar profissional fosse pelos ares.

- Uau, não sabia que uma doutora tinha toda essa autoridade. - Não tem, mas eles tem medo do meu pai. Em um segundo o medo se apossou de minha mente. Por favor, do Major não. Stella sorriu belamente enquanto respondia. - Você provavelmente o conhece como Tenente Barnes.

***

- Você não sobreviverá. Simples e direta. Meu tipo. - Você matou um sargento, um muito apreciado, para piorar. O público está em

chamas, querem ver seus pedaços tão espalhados quanto os de Boyter naquela arena. - Bem, não me arrependo de nada. Aparentemente tudo o que me espera é o

inferno, vivo ou morto. - Eles querem você pronto para lutar em dois dias, três no máximo. Não importava mais. Tudo havia desmoronado, meus planos de vingança

encontraram outra forma de se concretizarem, e por mim era mais do que suficiente. Eu não sentia mais necessidade de matar todos e começava a abraçar a resignação como uma mãe há muito não vista.

- E Harden? - Vivo. As criaturas foram atraídas por Boyter quando ele caiu. Não houve como

escapar, quebrou as duas pernas na queda. Dei um risinho. - Deve ter sido um espetáculo e tanto. Stella me olhava sério. - Às vezes você me parece tão mau quanto os homens que o obrigam a lutar. Foi minha vez de retornar o olhar. - Eu sou pior, e não importa o quanto você queira que seja diferente. - Por que você se recusa a ser ajudado, Thomas? A minha proposta ainda está de

pé, ainda existem pessoas sãs aqui dentro, e por mais que dependamos dos militares você não precisa continuar a sofrer tudo isso.

- A última vez que recebi ajuda minha amiga foi estuprada e eu surrado. Você não entende, criança. A doença real não é aquela que transforma as pessoas em zumbis, as doenças são as pessoas. Você vê toda a loucura da arena, você vê as pessoas tendo orgasmos ao verem o sangue de seus semelhantes jorrar. O apocalipse é a salvação. Se eu pudesse apertaria a mão da pessoa que trouxe tudo isso até nós.

Estalei a língua e cobri os olhos com as mãos. - Droga, sempre fico filosófico demais quando falo com você. Stella tristemente sorriu.

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- É uma pena. Você poderia criar um novo começo – sua mão pousou levemente sobre a minha – com quem quisesse.

Eu apertei sua mão tão macia e quente. - Novos começos trazem apenas novos fins catastróficos. - Então sinto muito, Thomas. Realmente sinto muito que você queira assim. Uma porta foi escancarada. Stella se levantou. - Não nos veremos mais, mas rezarei por você. Eu sorri. - Talvez seu deus esteja sentado em algum lugar assistindo o espetáculo da arena. Antes de se virar vi uma linda lágrima descer rapidamente por seu rosto, e assim

ela partiu, resoluta, passos rápidos. Passou pelo Major Brakefield e por seu pai, Tenente Barnes, como se fossem invisíveis.

- Archer, você é um homem impressionante, devo admitir. Você inflamou aquela arena como se o próprio messias tivesse retornado em roupas de palhaço fazendo malabarismos sobre a água.

Gargalhei. - Aprecio seu humor, Major. - Como vai a dor? - Solidária como sempre. Brakefield puxou um banquinho e sentou-se ao lado do meu leito enquanto o

Tenente me olhava com cara feia. - Desculpe por aquela surra no galpão, não pude impedi-la. Queria você na melhor

forma possível para seu último combate. - Estou pronto para outra, Major. Apenas me dê mais uma garrafa aquele bom

uísque e sujarei mais um pouco sua arena com sangue infectado. Brakefield inclinou a cabeça, parecendo um pouco consternado. - Bem, Archer, a garrafa pode ser arranjada, mas já o sangue... muito improvável. - O que será dessa vez? Brakefield sorriu com seus belíssimos dentes brancos e olhos vidrados. - Podemos chamar de execução. Você não pode sobreviver. Por mais que eu o

aprecie, você transformou todo o populacho numa horda furiosa desejosa de sua morte. - Nada surpreendente. - De fato. Você lutará em três dias. - Uma escolha interessante de palavras. - Sim – Brakefield sorriu – você morrerá em três dias. - Quais serão as condições? - Você e Harden lutarão juntos. Nus. Cinco zumbis de elite, como chamamos os

mais inteligentes e violentos, pra cada. Nenhuma arma. Brakefield sorriu. - Mas como sou grato a toda diversão que vocês nos proporcionaram cada um

receberá uma injeção de morfina antes de caminharem para a chacina. Eu encarava o teto. Não havia resposta a isso. Brakefield bateu nos joelhos, levantando-se. - Acredito que isso seja um adeus, Archer. Honestamente, muito obrigado pelos

serviços prestados. Ele se virou para o tenente Barnes, apoiou o queixo na mão por alguns segundos,

esticou o braço, retirou a faca do cinto sob o olhar curioso de seu Tenente e a colocou sobre o criado ao lado do meu leito.

- Veja, Barnes, meu amigo, parece que alguém esqueceu uma faca por aqui.

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Virou-se, olhou-me divertido, sorriu e foi-se com seu subordinado olhando para mim sobre os ombros.

Esse era um homem realmente insano, queria apenas ver o circo pegar fogo, pouco se importando com as consequências que não o afetassem diretamente.

Fiquei sozinho por alguns minutos, peguei a faca e a escondi dentro do meu gesso. Talvez esse não fosse o fim, mas eu precisaria conversar com Stella mais uma vez se desejasse sair vivo daquilo tudo.

Toquei a campainha para chamar a enfermeira. Uma gorda com cara simpática apareceu.

- Gostaria de conversar com a doutora Stella. Tenho algumas perguntas para ela. - Seu turno terminou, ela já foi para casa. Mas provavelmente ela o visitará

amanhã, ela sempre dedica um tempo especial para os lutadores da arena. - Tudo bem. Amanhã está ótimo. A enfermeira sorriu e se foi. Brakefield havia cometido um erro. Amanhã estava ótimo.

***

Harden sentava-se ao meu lado de cabeça baixa, com as mãos entrelaçadas, murmurando uma prece silenciosa. Tinha a cabeça raspada, barba por fazer e brilhantes olhos azuis. A multidão lá fora berrava, esperando pelo espetáculo de nossas mortes.

O dia havia chegado. Esperei que ele terminasse e quando ele se virou perguntei: - Sabe o que tem que fazer, certo? - Archer, fui um militar por 15 anos da minha vida, se existe algo que sei fazer é

seguir planos. - Ótimo. Hoje é um dia importante, Harden. Hoje vivemos, ou hoje morremos.