anne rice as canções do serafim 02 - de amor e maldade

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Page 2: Anne rice as canções do serafim 02  - de amor e maldade

Quevocêsetornemeuajudante.Quevocêsetornemeuinstrumentohumanoparameajudar

afazeroqueeudevofazernaTerra.

Abandoneessavidavaziaquevocêcriouparasimesmoedepositeemminhasmãossuaperspicácia,

suacoragem,suasagacidadeesuararabelezafísica.

Digaqueestádisposto,equesuavidavoltouascostasparaomal.Confirmeissoevocêmergulharádeimediatonoperigoenosofrimentodetentarfazer

oqueéinquestionavelmentebom.

OanjoMalchiahfalandoaTobyO’Dare,emTempodosanjos

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DeusapareceeDeuséluzamadaParaaquelesquenanoitetêmmoradaEnaformahumanaseanuncia,Paraaquelesquevivemnasregiõesdodia.DeAugúriosdeinocência–WilliamBlake

Nóssomos,cadaumdenós,anjoscomumaúnicaasaesópodemosvoarabraçando-nosunsaosoutros.–LucianodeCrescenzo

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E

CAPÍTULOUM

USONHEICOMANJOS.EUOSVIEOSOUVIEM meioaumamaravilhosaeinterminávelnoitegalática.Euviasluzesqueeramessesanjos,voandoaquieali,emlinhasdeirresistívelresplandecência,ealgunstão

grandesquantocometasquepareciamaproximar-setanto,quetiveasensaçãodequeo fogo me devoraria e, no entanto, não senti nenhum calor. Não senti nenhummedo.Nãosentinenhumeu.

Eusentiamoraomeuredornessevastoeinconsútildomíniodesomeluz.Eumesentiíntimaecompletamenteconhecido.Eumesentiamadoeamparadoepartedetudooqueviaeouvia.E,noentanto,sabiaquenãomerecianadadaquilo,nada.Ealgosimilaràtristezatomoucontademimemisturouaminhaprópriaessênciaàsvozesquecantavam,porqueasvozescantavamameurespeito.

EuouviaavozdeMalchiahbemalta,brilhantee imensadizendoqueeuagoradeveriapertenceraele,queagoradeveriaircomele.Queelemeescolheracomoseucompanheiro e que eu deveria fazer o que me mandasse fazer. Como era forte ebrilhantesuavozerguendo-secadavezmais.Noentanto,surgiacontraeleumavozmenor,terna,lustrosa,quecantavaacercadaminhavidanaTerraeacercadoqueeudeveria fazer; cantava acerca daqueles que necessitavam de mim e me amavam;cantava acerca de coisas comuns e sonhos comuns e se opunha a essas coisas queMalchiahdesejavafazercomumacoragemirretocável.

Oh,queumatalmisturadetemaspudessesertãomagníficaequeessamúsicamecercasseemeabraçassecomosefosseumacoisapalpáveleadorável.EumeencontronocolodessamúsicaeouçoMalchiahtriunfandoaochamar-meparasi,aodeclararque eu lhepertencia.Aoutravoz fraquejava,masnãodesistia.Aoutra voz jamaisdesistiria.Aoutravozpossuíasuaprópriabelezaecontinuariacantandoparasempre,comocantavanaquelemomento.

Outrasvozesseerguiam;ouestavamláessetempotodo.Outrasvozescantavamao meu redor e acerca de mim, e essas vozes rivalizavam com as vozes angelicaiscomoseestivessemrespondendoaelasdooutroladodeumacaixa-forteinsondável.

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Formavamumatecedura,essasvozes,asangelicaiseasoutras,eeusubitamentemedei conta de quepertenciam apessoas que rezavam,que rezavampormim.Erampessoasquehaviamrezadoantesequerezariamdepoisenumfuturodistanteequerezariamsempre,etodaselastinhamavercomoqueeutalvezmetornasse,comoquetalvezviesseaser.Oh,tristealmadiminutaqueeuera,ecomoeragrandiosoessemundo amejante no qual eu me encontrava, um mundo que faz com que opróprio mundo em si pareça insigni cante quando todos os limites e todas asmedidasdesaparecem.

Ocorreu-me apercepção sagradadeque todas as almas vivas eramobjetodessacelebração,dessein nitoeincessantecoro,dequetodasasalmaseramamadascomoeu era amado, agora conhecidas da mesma maneira com que eu próprio eraconhecido.

Ecomopoderia serdeoutramaneira?Comopoderia eu, comtodasasminhasfalhas,todasasminhasamargasperdas,seroúnico?Oh,não,ouniversoestavacheiodealmasentretecidasnessatriunfanteegloriosacanção.

Etodaseramconhecidaseamadascomoeueraconhecidoeamado.Todaseramconhecidas, e inclusive as pessoas que pormim rezavam tornavam-se parte de seuprópriogloriosodesvelarnointeriordaquelaintermináveledouradatecedura.

–Nãometiredaqui.Nãomemandedevolta.Mas,setiverdefazerisso,deixe-mefazeraSuaVontade,deixe-mefazer issocomtodoomeucoração–eurezeieouvi minhas próprias palavras tornarem-se tão uidas quanto a música que mecercavaemesustentava.Ouviminhaprópriavozparticularedeterminada:–EuTeamo.EuTeamo,Vocêquefeztodasascoisasenosdeutodasascoisas,eparaVocêeufareiqualquercoisa,eufareioquequerquequeiraqueeufaça.Malchiah, leve-me.Leve-meparaEle.Deixe-mefazeravontaded’Ele!

Nem uma única palavra foi desperdiçada nesse grande útero de amor que mecercava, nessa vastanoite tãobrilhante quanto odia. Pois nemodianem anoiteimportavamaqui, eambosestavammisturadose tudoestavaperfeito, easpessoasquerezavamerguendo-seesobrepondo-seumasàsoutras,eosanjosquechamavameramumúnico rmamentoaoqualeumerendiainteiramente,aoqualeupertenciainteiramente.

Algomudou.Mas,aindaassim,euouviaavozchorosadaqueleanjoimplorandoparamim,lembrandoaMalchiahtudooqueeudeveriafazer.EeuouviadelicadaadmoestaçãodeMalchiaheposteriorinsistência,eouviasrezastãofervorosas,densaseesplêndidas,quetiveaimpressãodequejamaisprecisarianovamentedeumcorpo

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paraviverouparaamarouparapensarouparasentir.Noentanto,algomudara.Acenaeraoutra.EuviagrandeelevaçãodaTerraabaixodemimevagueiparabaixosentindoum

calafrio lento, porém certo e doloroso.Deixe-me car, eu queria implorar,mas eunãomerecia car.Nãoeraomeutempode car,eeutinhadesentiressainevitávelseparação.No entanto, o que se abria agora paramimnão era aTerra deminhasexpectativas,masvastoscamposdetrigosoprandodouradossobumcéutãovívidoaosolbrilhantecomoeujamaistestemunharaantes.Emtodasasdireções,euviasores silvestres,“os líriosdocampo”,eeuvi suadelicadezae sua resiliênciacoma

forçadabrisacurvando-asparaumladoeparaooutro.EssaeraariquezadaTerra,ariquezadasárvoresaovento,ariquezadasnuvensjuntando-seumasàsoutras.

–QueridoDeus, jamais carei longedeVocê, jamaisLhedesobedecerei, jamaisOtrairei– sussurrei–,pois issoaqui, tudo issoaquiVocêmedeu, tudo issoaquiVocênosdeuatodos.

E,aomeusussurro,seguiu-seumabraçotãoíntimo,tãototal,queeuchoreicomtodaaminhaalma.

Oscampos caramvagoseimensos,eumdouradovazioenvelopouomundoeeu senti o amorme abraçando,me tomando para si, como se eu estivesse sendorecebidoemseucolo,eas oresmudarame transformaram-seemmassasdecoresque eu não conseguia descrever. A própria presença de cores a nós desconhecidastocou-mebemfundoemedeixoudesamparado.QueridoDeus,comonosamacomtantaintensidade!

Formas não mais existiam. Cores haviam se soltado sem esforço algum dasformas,ea luzemsiestavaagorarolandocomosefosseumafumaçasuavequeseautoconsumia.

Apareceuumcorredore eu tivea impressãodistinta, empalavras,dequehaviapassadopor ele.Eagora, ao longodocompridocorredor, vinha atémima esguiagura de Malchiah, vestido como sempre, uma gura graciosa, como a de um

jovem.Euviseuscabelosescurosemacios,seurostooval.Euviseuternoescurosimples

comlinhasestreitas.Euviseusolhosamáveis,eentãoseulentoe uidosorriso.Euoviaproximar-se

demimcomosdoisbraços.– Amado – sussurrou ele –, precisomais uma vez de você. Precisarei de você

incontáveisvezes.Precisareidevocêatéofimdostempos.

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Amimmepareceu,naquelemomento,queasoutrasvozescomeçaramacantardeseuscorações,emprotesto,emlouvor,eunãosabiaaocerto.

Euqueria abraçá-lo.Queria lhe implorarquemedeixasse carumpoucomaiscom ele ali. Que me levasse novamente para os domínios das luzes celestiais. Euqueriachorar.Eununcasoubechorarquandoerapequeno.Eagora,nacondiçãodeadulto,euofaziarepetidamente,despertoeemsonhos.

Malchiahchegoucom rmeza,comoseadistânciaentrenósfossebemmaiordoqueeusupusera.

–Vocêtemapenasduashorasatéelesaparecerem–disseele–evaiquererestarpreparado.

Euestavaacordado.Osoldamanhãinundavaasjanelas.Oruídodotrânsitovinhadasruas.Eu estava na Suíte Amistad, no Mission Inn, recostado num ninho de

travesseiros, eMalchiah estava sentado, tranquilo e calmo,numadas cadeiras comasas perto da lareira de pedra eme disse novamente que Liona emeu lho logochegariam.

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U

CAPÍTULODOIS

M CARRO OS PEGARIA NO AEROPORTO DE LOSANGELESeoslevariadiretamenteparaoMissionInn.Eudisseraaelaque nós nos encontraríamos embaixo do campanário, que eu teria uma

suítepara ela eparaToby– esse eraonomedemeu lho– eque eu cuidariadetudo.

Maseuaindanãoacreditavaqueelaviriarealmente.Comoéquepoderiavir?Eudesapareceradavidadela,emNovaOrleans,dezanosatrás,deixando-acom

dezesseteanosegrávida,eagoraeuestavadevoltaatravésdeumtelefonemadaCostaOeste,equandoeudescobriraqueelanãoeracasada,nemmesmocomprometida,não estava sequer vivendo com alguém, quando eu descobrira isso, eu quasedesmaiaranoato.

Éclaroquenãopodiacontar a elaqueumanjochamadoMalchiahmedisseraqueeutinhaum lho.Eunãopodiacontaraelaoqueeufazia,nãosóantescomotambémdepoisdeconheceresseanjo,nemquandooucomoeutalvezpudessevoltaravê-la.

Tampouco podia explicar que o anjo estava me dando um tempo para vê-laagora,antesdeeupartirparamaisumamissãoparaele,e,quandoelaconcordouemvoaratéaquiparamever,emtrazerconsigoomeu lho,Toby,bom,eu caranumestadosuspensodejúbiloedescrença.

–Olha,peloqueomeupaiachadevocê–disseraela–,émaisfáciltomarumaviãoemeencontrarcomvocênaCostaOeste.Eéclaroquevoulevaroseu lhopravocêconhecer.Vocênãoachaqueelequersaberqueméopaidele?

Elaaindaestavamorandocomopaiaparentemente,ovelhodr.Carpenter,comoeumereferiaaelenaquelaépoca,enãomesurpreendianemumpoucosaberqueelepassaraanutrirdesprezoedesdémpormim.Euentrarasorrateiramentecoma lhadele em sua casa de hóspedes, e jamais sonhara durante todos esses anos que elativessetidoumfilhoemdecorrênciadisso.

Aquestãoéaseguinte:elesestavamvindo.

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Malchiah desceu comigo até a calçada da frente. Era absolutamente óbvio paramim que outras pessoas podiam vê-lo,mas ele parecia totalmente normal, comosempre,umhomemdaminhaalturaevestidocomumternodetrêspeçasbastanteparecidocomoqueeumesmousava.Aúnicadiferençaéqueodeleeracinzaeomeu,cáqui.Suacamisaerabrilhante,aopassoqueaminhaeraumacamisaazuldetrabalhador,engomada,passadaecombinandocomumagravataazulescura.

A mim, ele parecia um ser humano perfeito, seus olhos cheios de admiraçãovagando pelas ores e pelas altas palmeiras emolduradas pelo céu como se eleestivessesaboreandotudo.Elepareciaatéestarsentindoabrisaeregozijando-seumpouconela.

–Vocêestáumahoraadiantado–disseele.– Eu sei. Eu não estou conseguindo car parado. Sinto-memelhor esperando

aquimesmo.Ele fez que sim com a cabeça, como se isso fosse algo perfeitamente razoável

quando,narealidade,eraridículo.–Elavaiperguntaroqueeuandeifazendoessetempotodo–eudisse.–Oque

eudigoaela?– Você vai dizer apenas o que for bom para ela e para o lho de vocês –

respondeuele.–Vocêsabedisso.–Sim,eusei–concordei.–Láemcima,noseucomputador–disseele–,temumdocumentolongoque

vocêescreveuchamado“TempodosAnjos”.– Eu sei. Bom, eu escrevi aquilo enquanto esperava você voltar para mim de

novo.Euescrevitudoqueaconteceunaminhaprimeiramissão.–Issofoibom–disseele.–Umaformademeditação,efuncionoumuitobem.

Mas,Toby,ninguémdeveleraqueledocumento,nãoagora,e,quemsabe,jamais.Eu deveria ter imaginado isso. Eu me senti um pouco deprimido, mas

compreendi.Comembaraço,penseiemcomo caraorgulhosoemcontaraminhaprimeiramissãoparaosanjos.EumegabaraparaoHomemCerto,meuex-chefe,que mudara de vida, que estava escrevendo sobre isso, que talvez algum dia eleencontrassemeuverdadeironomenaslivrarias.Comoseeleseimportassecomisso,ohomemqueme enviara, sob a alcunhadeLucky, aRaposa, paramatar diversaspessoas.Ah,queorgulho.Mastambém,durantetodaaminhavidaadulta,eujamaiszeranadaantesquepudessemedarorgulho.EoHomemCertoeraaúnicapessoa

nesse mundo com quem eu mantinha conversas regulares. Quer dizer, até eu

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conhecerMalchiah.– Crianças dos Anjos vêm e vão assim como nós – disse Malchiah –, vistas

somenteporunspoucos,invisíveiseimperceptíveisparaosoutros.Euassenti.–Éissooquesouagora?UmaCriançadosAnjos?–Sim–disseele,sorrindo.–Issoéoquevocêéagora.Lembre-sedisso.Comisso,elepartiu.Eeu queiparatrás,percebendoquetinhaunscinquentaminutosdeesperaaté

Lionachegar.Talvez eu desse um passeio, tomasse um refrigerante no bar, sei lá. Eu sabia

apenasque,deummomentoparaooutro,estavafeliz,eestavamesmo.Enquantopensavanisso, girei o corpo e olheinadireçãodasportasdo saguão,

maspornenhummotivoemespecial.Viuma guralá,aoladodeumadasportas,queestavaempédebraçoscruzados,encostadanaparede,meencarando.Eleeratãovívidoquantoqualquerpessoaao redordele,umhomemaltocomoMalchiah, sóquecomcabelosarruivadoseolhosazuismaiores,evestiaumternocáquiidênticoaomeu.Dei-lhe as costas para evitar seu olhar xo, e então percebi o quanto eraimprovávelocaraestarusandoumternoexatamenteigualaomeu,emeencarandodaquelamaneira,comumaexpressãoquebeiravaaraiva.Não,nãoeraraiva.

Eumevirei.Eleaindaestavaencarando.Erapreocupação,nãoraiva.Vocêéomeuanjodaguarda!Elefezquesimcomacabeçademodoquaseimperceptível.Uma incrível sensação de bem-estar instalou-se em mim. Minha ansiedade

dissolveu-se.Euouvisuavoz!Euouvivocêcomosoutrosanjos.Euestavafascinadoeestranhamentereconfortado,etudoissonumafraçãodesegundo.

Umapequenamultidãodehóspedesatravessouasportasdosaguão,passandoemfrenteaessa guraeobscurecendo-a.E,assimqueelesviraramàesquerdaparaseguirporumaoutratrilha,percebiqueelehaviadesaparecido.

Meucoraçãoestavadandopulos.Seráqueeuviratudoissodemaneiracorreta?Seráqueeleestiveradefatomeencarandoemexeraacabeçaparamim?

Meuretratomentaldoeventoestavasumindorapidamente.Alguémestiveraempéali, sim,eraevidente,masagoranãohaviacomoveri caroqueacontecera;nãohaviacomosubmeteracoisaaqualquertipodeanálise.

Tirei o ocorrido da cabeça. Se ele era o meu guardião, só podia estar meguardando. E se não era, se fora alguma outra pessoa, bom, o que isso me dizia

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respeito?Minha lembrançadoeventoestava candocadavezmais embaçada.E, éclaro,eudiscutiriatodooacontecimentocomMalchiahmaistarde.Malchiahsaberiade quem ele se tratava. Malchiah estava comigo.Oh, nós somos criaturas com tãopoucafé.

Uma alegria extraordinária subitamente tomou conta de mim. Você é umaCriançadosAnjos,eupensei,eosanjosestãotrazendoLionaeofilhodela,seufilho,paravocê.

DeiumalongacaminhadaaoredordoMissionInn,pensandoemcomoaqueleeraumdia fresco,perfeitamentecaliforniano,passandopor todasasminhas fontesprediletas,pelasportasdascapelas,pelospátiosepor todasascuriosidadese tantasoutrascoisas,ejáestavamaisdoquenahoradeelaterchegado.

Volteiparaaextremidadedatrilha,pertodasportasquedãonosaguão,eespereique duas pessoas plausíveis começassem a percorrer o caminho e, em seguida,fizessemumapausasobocampanáriocomaarcadabaixaeseusmuitossinos.

Não mais do que cinco minutos depois de eu me postar lá, andando rápido,olhandoaoredor,veri candoashoraseentrandoesaindodosaguãodetemposemtempos,percebisubitamenteque,emmeioaum uxoconstantedepéscaminhandoaolongodatrilha,haviaduaspessoasempélogoabaixodossinos,exatamentecomoeupediraqueaquelasduaspessoasfizessem.

Porummomento,penseiquemeucoraçãofosseparardebater.Eu esperara reencontrá-la bonita porque tinha sido bonita quando jovem,mas

aquiloforaapenasobotãodessaflorradiantequeeutinhadiantedemeusolhos,eeunãoqueriafazermaisnadaalémdeolharintensamenteparaela,deabsorveramulhernaqualsetransformara.

Elaestavaapenascomvinteeseteanos.Mesmoeu,commeusvinteeoito,sabiaqueissoestálongedeserumaidadeavançada,maselapossuíaumjeitodemulherfeitaevestia-sedaformamaisdecenteedignapossível.

Usava umtailleur vermelho, justo na cintura e solto em cima dos quadrisestreitos,comumasaiacurtarodadacobrindo-lheosjoelhos.Suablusacor-de-rosaestavaabertanopescoço,eelausavaumsimplescolardepérolas.Haviaapontinhadeumlençocor-de-rosanobolsodafrente,esuabolsaeradecourolegítimo,assimcomoosgraciosossapatosdesaltoalto.

Queimagemeraelanaquelasroupas!Os cabelos pretos e compridos estavam soltos acima dos ombros, apenas uns

poucos os sobre a testa límpida, e presos com um pregador, do jeito como

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costumavafazerquandocriança.Tive a nítida sensação de queme lembraria dela daquelamaneira para sempre.

Poucoimportavaoquepoderiaacontecerdepois,oudaquelemomentoemdiante.Eu simplesmente jamais me esqueceria de como ela estava agora, absolutamenteencantadoradevermelho,comos fartoscabelospretosque lhedavamumjeitodemenina.

Naverdade,umapassagemdeum lmemeveioàmente,um lmequemuitaspessoas adoram:Cidadão Kane. A cena em que um homem idoso chamadoBernsteinre etesobreamemóriaesobrecomodeterminadascoisasquevemospormeros segundos podemnos arrebatar.No caso dele, está descrevendo uma jovemqueavistaranumabalsaquepassava.“Elaestavausandoumvestidobranco”,dizele,“elevavaumasombrinhabranca.Eusóaviporumsegundoeelanãomeviu,masapostoquenãopassouummês sequer emminha vida semque eu tenhapensadonaquelagarota.”

Bom, eu sabiaque sempreme lembrariadeLionadaquelamesmamaneira emrelaçãoacomoestavavestidaagora.Elaolhavaaoredoreexprimiaaautocon ançaeo autocontrole de que eu me lembrava muito bem, e também a pura edescomplicadacoragemquesempreassocieiaosseusgestosepalavrasmaissimples.

Eunãoconseguiaacreditarnoquantoestavaadorável.Eunãoconseguiaacreditarnoquantosetornarasimplesmente,inevitavelmenteadorável.

Masbemaoladodelaestavaomeninodedezanosdeidadequeerameu lho,e,quandoovi,euvimeuirmãoJacobquemorreracomessamesmaidadeesentiumnónagarganta,aslágrimasseformandoemmeusolhos.Esseéomeufilho.

Bom,eunãovoumeencontrarcomeleschorando,pensei,mas,assimquetireiolenço,elameviuesorriuparamime,pegandoamãodomenininho,elaoconduziupelatrilhaatéondeeuestavaedissecomamaisconfianteeefusivadasvozes:

–Toby,eureconheceriavocêemqualquerlugar.Vocênãomudounada.Osorrisodelafoitãovibranteetãogeneroso,queeunãoconseguilheresponder.

Eunãoconseguiafalar.Eunãoconseguiadizeraelaoquesignificavavê-la,e,quandobaixeiosolhosparaomenininhoqueolhavaparamim,aquelemenininhodecabeloseolhosescurosqueeraaimagemdemeuirmãoJacob,haviamuitotempomorto,aquelemenininhodeportenobreeombrosretos,aquelemenininhocon anteedeolhar inteligente que qualquer homem desejaria ter como lho, aquele belo eesplêndidomenininho,bom,eucomeceiachorar.

–Sevocênãoparar,eutambémvoucomeçarachorar–disseLiona.Elaestendeu

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amãoeagarrouomeubraço.Nãohavianelaqualquersinaldehesitaçãonemreticência,e,quandore etiacerca

disso,percebiqueessascaracterísticasjamaisexistiramnela.Elaeraforteecon anteepossuíaumavozsuaveeprofundaquesublinhavamuitobemseugenerosocaráter.

Generosidade, essa era apalavraquemeveio àmente enquanto euolhavabemfundo nos seus olhos, enquanto ela sorria para mim. Ela era generosa. Ela eragenerosaeamávelepercorreratodaessadistânciaatéaquiporqueeulhepediraquefizesseisso,eeumedescobridizendoissoemvozalta.

– Você veio. Você percorreu essa distância toda. Você veio. Até o últimomomento,euimagineiquenãofossevir.

Omenininhotiroualgumacoisadobolsodacamisaeestendeuamim.Eumecurveiparaterumavisãomelhordele,pegueioqueestavameentregando

eviqueeraumapequena fotominha.Fora tiradademeuanuárioescolareestavacomumamoldurademetal.

–Obrigado,Toby–eudisse.–Ah,eusempre levoelacomigo–disseelede imediato.–Eusemprefalopra

todomundo:“Esseaquiéomeupai.”Eu o beijei na testa. E então eleme surpreendeu. Abraçou-me, quase como se

fosseohomemeeu,omenino.Abraçou-meenãomesoltou.Eulhedeioutrobeijonabochechinhamacia.Eleolhouparamimcomosolhosmais límpidosesimplesdomundoedisse:

–Eusempresoubequeumdiavocêiaaparecer.En m,eusabiaqueumdiaeuiate conhecer. – Ele disse isso tudo com amesma simplicidade com que dissera asoutrascoisas.

Eumelevantei,engoliemsecoeentãoolheiparaambosnovamenteeabraceiosdois.Mantive-os junto amim,grudados emmim, epercebi a suavidadedela, suapuradoçura,umadoçurafemininatãoestranhaamimeàvidaqueeulevara,eumencantadorperfumefloralqueemanavadeseusescuroscabelossedosos.

–Vamosindo,oquartoestápronto–gaguejei,comoseessasfossempalavrasdegrandeimportância.–Eujáfizocheck-indevocês,vamossubir.

Percebi,então,queocarregadorestiveraempéalitodootempocomocarrinhodebagagem.Dei-lheumanotadevintedólaresedisseaelequeasmalasiriamparaaSuítedoProprietárioequenósnosencontraríamoscomelenoandardecima.

Porummomento,simplesmenteolheinovamenteparaela,emeveioàmenteoqueMalchiahdissera.Oquevocêdisseraela,vocêdirátendoemvistaosinteresses

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dela,nãoosseus.Umaoutracoisatambémmeatingiuemcheioenquantoeuolhavaparaela,eera

o quanto era séria, aquela seriedade era o outro lado da autocon ança quedemonstrava.Seriedadeeraomotivopeloqualelavieraatéaquisemummomentodehesitação sequerepermitiraque seu lhoconhecesseopai.Eessa seriedademefazialembraralguémqueeuconheceraeamaraemminhasaventurascomMalchiah,epercebiagoraque,quandoeuestivecomessapessoa–umamulherdeumaépocamuitoantiga–,eumelembrara,naocasião,dessabela,vivaepulsantemulherqueestavaempéaomeuladoemminhaprópriaépoca,nesseexatoinstante.

Essaéumapessoaaseramada.Essaéumapessoaaseramadadetodooseucoração,da mesma maneira com que você amou aquelas pessoas naquele momento, quandoestavacomosanjos,quandoestavacompessoasquejamaispoderiateremseucoração.Durantetodosessesdezanos,vocêviveuafastadodetodososseresvivos,masessaéumapessoatãorealquantoaspessoasdeMalchiaheram,umapessoaaquemvocêpodeamartotal e verdadeiramente.Pouco importa se você consegueque ela oameounão.Vocêpodeamá-la.Eessemenininho,vocêpodeamá-lo.

Enquanto estávamos juntos no pequeno elevador lotado, Toby me mostrououtras fotosminhasdoanuárioescolar.Ele tambémas levavaconsigohaviamuitotempo.

–Querdizerentãoquevocêsempresoubecomoeumechamava–eudisseaele,sem saber exatamente o que dizer, mantendo-me assim nas coisas óbvias, e elerespondeuquesim,elecontavaparatodomundoqueopaideleeraTobyO’Dare.

–Ficofeliz.Ficofelizporvocêter feito isso.Eunemseicomodizeroquantoestouorgulhosodevocê.

–Porquê?–perguntouele.–Vocênemsabecomoeusourealmente.–Eleerapequeno o su ciente para sua voz ter aquele trinado característico das criançasmenores,queasmaisvelhasjánãopossuem,e,quandodisseaquilo,osomdesuaspalavrasera límpidoebrilhante.–Eupoderiaserumalunoruimevocênemteriacomosaber.

–Ah,masasuamãeeraumaalunabrilhante–eudisse.–Eusei,eaindaé.ElafazcursosnoLoyola.Elanãoestásatisfeitaemdaraulas

paraoensinofundamental.ElasótiraA.–Evocêtambémnãoé?–perguntei.Elebalançouacabeçaemconcordância.–Seelesdeixassem,eupoderiaatépularumano.Elesachamqueseriaruimpara

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omeudesenvolvimentosocial,eomeuavôachaamesmacoisa.Nóshavíamoschegadoaoterraço,eeuosconduziaoredordassacadaseaolongo

da varanda de ladrilho vermelho. As suítes em que estavam cavam no m davaranda,próximasàminha.

Agora a Suíte do Proprietário noMission Inn é a única realmentemoderna eluxuosa,segundooscritériosdoshotéiscincoestrelas.Sóestádisponívelquandoosproprietários dohotel não estãopresentes, demodoque eume certi quei de quepoderiareservá-lanessaépocadoano.

Eles caram apropriadamente impressionados com as três lareiras, a imensabanheirademármore,aadorávelvarandaabertaeaindamaisimpressionadosquandodescobriramqueeureservaraasuíteadjacenteparaToby, imaginandoque,aosdezanosdeidade,talvezelequisesseterseupróprioquartoesuaprópriacama.

Emseguida,euosleveiparaaSuíteAmistad,minhafavorita,paramostraraelesobelodomopintado,acamadebaldaquimeaexóticalareiraquenãofuncionava,eeles repararamque eramesmomuito “parecido comNovaOrleans”,mas eu achoque caramencantadoscomaluxuosaresidênciadequedispunham,eacoisatodafoicomohaviasidoplanejada.

Nós todosnos sentamosàmesade ferroevidro,eeupedivinhoparaLionaeumaCocaparaTobyporqueeleadmitiuque,devezemquando,mesmonãosendomuitobom,bebiauma.

ElepegouseuiPhonedaAppleememostroutodasascoisasquepodiafazercomele.Colocaranoaparelho todasasminhas fotoseagora, seeunãome importasse,tirariaummontãodeoutras.

– Problema algum – eu disse, e ele virou instantaneamente o fotógrafopro ssonal, afastando-se, estendendo o telefone da mesma maneira como se umpintorantigo talvezestendesseopolegar, enos fotografandode inúmerosângulos,enquantosemoviaaoredordamesa.

Naquelaaltura,enquantoTobytiravafotoatrásdefoto,eumedeicontadealgoe sentiumcalafriopercorrendo-meo corpo.Eu cometeraumassassinatonaSuíteAmistad.CometeraumassassinatoaquinoMissionInne,noentanto,trouxeraessasduaspessoasparacácomoseissojamaistivesseacontecido.

ÉclaroqueMalchiahapareceraparamimaqui,umSera mquemeperguntaraporque,emnomedeDeus,eunãomearrependiadavidamiserávelquelevava.Eeumearrependera,etodaaminhaexistênciaforaalteradaparasempre.

Ele me alçara para fora do século XXI e me enviara de volta no tempo para

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impedirqueocorresseumdesastrenumacomunidademedievalinglesaqueestavaemperigo.E,depoisde nalizaressaprimeiramissãoparameunovochefeangelical,euacordei aquinesse local,noMission Inn, e foi aquiqueescrevi todoomeu relatodessaprimeiramissãonoTempodosAnjos.Omanuscritoestavanorecinto.Estavaemcimadaescrivaninhaondeeumataraminhaúltimavítimacomumaagulhanopescoço.Efoiaquiqueeutelefoneiparameuex-chefe,oHomemCerto,elhedissequejamaisvoltariaamatarparaele.

Ainda assim, eu cometera um assassinato aqui. E fora uma ação fria, umassassinatocalculado,dotipoqueangariaraaLucky,aRaposa,umafamajusti cada.Estremeci internamente,murmurandoumaoraçãoemqueprometiaquenenhumasombra daquele mal jamais chegaria a Liona nem a Toby, que nenhumaconsequênciadaquelemaljamaisosameaçaria.

Esselugareraomeualívioantesdesseassassinato.Eraoúnicolugarondeeumesentia tranquilo, e fora certamente por essemotivo que eu trouxera Liona emeulho para esse mesmo local, essa mesma mesa onde Malchiah e eu havíamos

conversado. Parecia natural eles estarem aqui, parecia natural eu experimentar essanovaalegriade tê-los aquinesse localondeasminhas amargas e sarcásticasoraçõesporredençãoforamatendidas.

Tudobem,omeu jeito faziaalgumsentidoparamim.Eque localpoderia sermaisseguroparaLucky,aRaposa,doqueacenadeseumaisrecentecrime?Quemalgumdiaesperariaqueumassassinodealuguelvoltasseàcenadocrime?Ninguém.Euestavacon antenisso.A nal,trabalharacomoassassinodealuguelpordezanosenuncavoltaraàcenadeumúnicocrimesequer,atéagora.

Mas,tinhadeadmitir,eutrouxeraessesadoradosinocentesaumlocaldenotávelsignificância.

Eumerecia tão pouco omeu amor de tanto tempo atrás e meu lho recém-descoberto,mereciatãopoucoeelesnemimaginavamisso.

Eémelhorvocêgarantirqueelesjamaissaibam,porque,sesouberemquemvocêeraeoquefazia,sealgumavezelesavistaremumagotículadesangueemsuasmãos,vocêlhesteráfeitoomaisindescritívelmal,evocêsabedisso.

Eusentiterouvidoumavozbaixinha,nãomuitodistante,dizercomclareza:–Éissomesmo.Nenhumapalavraquepossaferi-los.Erguiosolhoseviojovemandandoporali,aolongodaparede,passandopela

portadaSuíteAmistadesaindodemeuângulodevisão.Eraomesmojovemqueeuvira lá embaixo perto das portas do saguão, omesmo terno idêntico aomeu, os

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cabelosarruivadoseosolhosurgenteseengajados.Eunãovouferi-los!–Vocêfaloualgumacoisa?–perguntouLiona.–Não,medesculpa–sussurrei.–Euestavafalandosozinho,éisso.Desculpa.Mirei aportadaSuíteAmistad.Euqueria tirar aquele assassinatoda cabeça.A

agulhanopescoço,obanqueiromorrendocomosetivessetidoumataquecardíaco,umaexecuçãolevadaacabodemodotãolimpo,queninguémjamaissuspeitoudequealgomal-intencionadohouvesseocorrido.

Vocêéumhomemfrio,TobyO’Dare,pensei.Imaginarquepoderiafacilmenteinaugurarumanovafasedesuavidanasmesmasencruzilhadasondedestruiuavidadeumaoutrapessoacomtamanhodescaso.

–Vocêmedeixouumpoucoperdidaagora–disseLiona,comdelicadezaeumsorrisonorosto.

–Desculpa–eudisse.–Sãomuitospensamentos,muitas lembranças.–Olheiparaelaeeracomoseeuaestivessevendopelaprimeiravez.Seurostoeratãoviçoso,tãoconfiante.

Antesqueelapudesseresponder,nósfomosinterrompidos.Umdos guias viera atenderuma solicitaçãominha, e eu lhe con eiTobypara

que,juntos, zessemumaturnêpelas“catacumbas”eportodasasoutrasmaravilhasqueogigantescohoteltinhaaoferecer.Elevibrou.

–Nós vamos almoçarquandovocê voltar – assegurei a ele.Embora, para eles,evidentementearefeiçãopudesseserencaradamaiscomoumaceiaadiantada,jáquehaviamalmoçadonoavião.

Agora era o momento que eu abominara e ao mesmo tempo pelo que maisansiara, porqueLiona e eu estávamos a sós. Ela tirara o paletó vermelho e pareciaestar em ótima forma na blusa cor-de-rosa, e eu senti um desejo enorme eassoberbantedeestarcomela,edenãoternadaeninguémaliparainterferir,oqueincluíatambémosanjos.

Euestavacomciúmesdemeu lho,temendoqueelepudessevoltaraqualquermomento.Eestavatãocientedosanjosmeobservando,queachoqueenrubesci.

– Como é que você pode me perdoar por eu ter sumido daquele jeito? –pergunteiaeladesúbito.

Nãohavianenhumturistavagandopelavaranda.Nósestávamosalisozinhosnamesadevidrocomoeuestiveratãofrequentementenopassado.Estávamossentadosentreosvasoscomárvoresfrutíferaseosgerâniosdelavanda,eelaeraamaisbelade

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todasasflores.–Ninguémculpouvocêporteridoembora–disseela.–Todomundosabiao

quetinhaacontecido.–Sabiam?Como?–Quandovocênãoapareceunaminhaformatura,elesimaginaramqueestivesse

emalgumlugar,tocandoparaarrumaralgunstrocados.Efoimuitofácildescobrirquevocêtinhapassadoanoitetodatocando.Aívocêchegouemcasademanhãeosencontrouládaquelejeito.E,depoisdisso,bom,vocêsimplesmentesumiu.

–Simplesmentesumi.Eunemfuiaoenterrodeles.–OseutioPatrickcuidoudetudo.EuachoqueoCorpodeBombeirosdeveter

pagotudo,ounão,oseupaierapolicial.En m,achoqueelespagaram.Nãotenhomuita certeza. Eu fui ao enterro. Todos os seus primos estavam lá. As pessoaspensaramque,de repente,você fosse aparecer,mas todomundoentendeuquandoviramquevocênãoiamesmo.

– Eu peguei um avião paraNova York. Peguei omeu alaúde, o dinheiro quetinhaealgunslivrosqueadorava,entreinumaviãoenuncamaispenseiemolharpratrás.

–Eunãooculpoporisso.–Masevocê,Liona?Eununcadeiumúnicotelefonemaparasabercomovocê

estava.Nemligueijamaisparadizeravocêondeeuestavanemoquetinhafeito.–Toby,vocêsabequandoumamulherperdeacabeçadessejeito,dojeitocomo

asuamãeperdeu,quandoelamataos lhos;en m,quandoumamulherfazumacoisadessas,elatambémpodematarummeninodasuaidade.Tinhaumaarmanoapartamento. Eles a acharam. Ela podia ter atirado em você, Toby. Ela estavatotalmente fora de si. Eu não estava pensando em mim, Toby. Eu só estavapensandoemvocê.

Fiqueicaladoporumlongotempo.Então,finalmentedisse:–Eunãoligomaisparaisso,Liona.Oquemeimportaagoraévocêmeperdoar

poreununcater-lhedadoumtelefonema.VoumandarumdinheiroparaomeutioPatrick. Vou pagar pelo enterro. Isso não é nenhum problema. Mas o que meimportaévocê.EumeimportocomvocêecomToby,emeimportocom,bem,comoshomensnasuavidaeoquetudoissopodesignificar.

–Não temnenhumhomemnaminhavida,Toby.Pelomenos,não tinha atévocêaparecer.EnãopensequeeuesperoquevocêsecasecomamãedoToby.Euotrouxeatéaquiporvocêeporele.

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CasarcomamãedoToby.Seeuachassequeconseguiriafazerumacoisaassim,eumeajoelhariabemaquinessavarandaeapediriaemcasamento.

Maseunão zisso.Euestavaolhandoemoutradireçãoepensandonosdezanosdeminhavidaqueeupassaratrabalhandoparaa“agência”,ouparaos“CarasLegais”,ou seja lá quem fosse a quem eu vendiaminha almadedezoito anos de idadedemaneiratãoentusiásticaeexuberante.

–Toby,vocênãoprecisamecontaroquefezdurantetodoessetempo–disseelasubitamente. – Você não precisa me explicar como era sua vida. Eu não tenhonenhum homem na minha vida porque não quero que o meu lho tenha umpadrasto,eeusempreestivebastantedeterminadaagarantirqueelejamaistivesseumpadrastoacadamês.

Euassenti.Estavamaisgratoporissodoqueconseguiaexprimirempalavras.–Eunãotivenenhumamulher,Liona.Ah,aquieali,sóparaprovarqueeuera

homem,euacho,houveumououtrocontato.Masnãopassavadisso:contato.Comdinheiro envolvido.Nunca foi uma coisa... íntima.Nunca foi nada que sequer seaproximassedisso.

– Você sempre foi um cavalheiro,Toby. Você era assim desde criança. Vocêsempreusaaspalavrasapropriadasparaascoisas.

– Bom, isso não ocorreu commuita frequência, Liona. E palavras imprópriasdariamumacoloraçãoexuberantequandoissojamaisexistiu.

Elariu.–Ninguémfalado jeitocomquevocê fala,Toby.Eununcaconhecininguém

como você. Nunca conheci ninguém que pudesse ao menos remotamente melembrarvocê.Sentisaudadesdevocê.

Percebiqueenrubesci.EstavadolorosamentecientedapresençadeMalchiahedemeuanjodaguarda,estivessemelesvisíveisounão.

E quanto ao anjo de Liona? Deus do céu. Por uma fração de segundo, euimagineiummagistral seraladoatrásdela.Felizmentenenhumacriaturadessetipomaterializou-se.

–Vocêaindapareceinocente–disseela.–Aindatemaquelemesmoolhar,comosetudooqueestivessediantedeseusolhosfosseummilagre.

Eu?Lucky,aRaposa,oassassinodealuguel?– Você nunca vai saber –murmurei entre dentes. Eu lembrei que oHomem

Certomedisserananoiteemquenosconhecemosqueeutinhaosolhosmaisfriosqueelejamaisviranavida.

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–Vocêestáumpouquinhomaispesado–disseela,comosehouvesseacabadodeperceber isso.–Maismusculoso,mas euachoque isso énormal.Você eramagrodemais quando criança.Mas a sua cabeça ainda tem omesmo formato, e os seuscabelosestãocheioscomosempreforam.Eupodiajurarquevocêestámaislouro;derepente,éo soldaCalifórnia.Eos seusolhosparecemquaseazuis, àsvezes.–Eladesviouoolharedissesuavemente:–Vocêaindaéomeumeninodourado.

Eu sorri. Lembrei-me agora de como ela costumavame chamardessamaneira,seumeninodourado.Eladiziaissosussurrando.

Murmurei qualquer coisa suavemente sobre como eu não sabia lidar com oselogiosdemulheresbonitas.

–Falaumpoucodosseusestudos–eudisse.–Literaturainglesa.Euquerodaraulasnumauniversidade.Querodaraulassobre

ChaucerouShakespeare.Aindanãodecidiqual.Eumedivertimuitodandoaulasnoensinofundamental,medivertimuitomaisdoqueTobygostadeadmitir.Eleolhacomdesprezoparaosgarotosdaidadedele.Eleécomovocê.Achaquejáéadultoeconversa com adultosmais doque com as crianças.É anatureza dele, exatamentecomoasua.

Nósrimosdissoporqueeraverdade.Esseéotipomaissimpáticoderisosuave,quandovocêricomoresposta,oucomopontuação,easpessoasdosul fazemissocomfacilidadeeotempotodo.

–Lembraquandoagenteeracriançaeosdoisqueriamdaraulasemuniversidade?–disseela.–Lembraquevocêdisseque,sepudessedaraulasnumauniversidadeepossuirumacasabonitanaavenidaPalmer,seriaapessoamaisfelizdomundo?Porfalarnisso,TobyestudanaNewman,e,assimquevocêperguntar,elevai lhedizerqueelaéamelhorescoladacidade.

–Semprefoi.AJesuítavemlogoatrásnoensinomédio.–Bom,algumaspessoasdiscutiriamquemestáemprimeiro lugar segundoesse

critério.MasaquestãoéqueTobyéjudeu,entãoestudanaNewman.Minhavidatem sido feliz, Toby. Você não me deixou desamparada, você me deixou umtesouro.Eéassimqueeusempreviisso,eéassimquevejoissoagora.–Elacruzouosbraçosecurvou-sesobreamesa.Seutomerasérioeaomesmotempoobjetivo.–Quandoentreinaqueleavião,pensei:euvoumostraraeleessetesouroqueeledeixouparamim.Evoumostraraeleoqueessetesouropodesignificarparaele.

Ela parou. Eu não disse nada. Não conseguia dizer nada. E ela percebeu isso.Percebeu pelas minhas lágrimas. Eu não conseguia exprimir em palavras toda a

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felicidadeetodooamorqueestavasentindo.Malchiah,possomecasarcomela?Eutenhoessaliberdade?Eaqueleoutroanjo,ele

estápertodemim?Elequerqueeumeaproximedelaeaabrace?

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N

CAPÍTULOTRÊS

AQUELATARDE,FOMOSDECARROATÉA MissãodeSanJuanCapistrano.

Imaginei que existissem diversas coisas maravilhosas para ummenininho da idade de Toby ver na Costa Oeste, Disneylândia, obviamente, oparquedaUniversalStudioseoutroslocaiscujosnomeseunemconhecia.

Masolugaraondeeuqueriadefatolevá-loeraamissão,eelepareceuter cadocompletamentedeliciadopela ideia.Embora eu tenha tidoqueprovidenciarbonésparaambos,tantoLionaquantoTobygostarambastantedoBentleyconversível.

Quandochegamosàmissão,euosleveiparadarumpasseionascercanias,pelosjardinsqueadoravaeaoredordafontekoi,quedeixouTobymaravilhado.Olhamosalgunsdosobjetos emexibiçãonamissão,que têma ver comamaneira comoaspessoasfaziamascoisasnaqueletempo,masfoiahistóriadograndeterremotoquedestruiuaigrejaoquemaisfascinouToby.

Ele estava sedivertindomuito coma câmerade seu iPhone e tiroudezenasdefotosnossasempraticamentetodososlocaisimagináveis.

Emalgummomentoououtro,quandoestávamosdandoumaolhadanalojinha,emmeioaosrosárioseàsjoiasindígenas,pergunteiaLionasepodialevarTobyatéacapelaparafazermosumaoração.

–Euseiqueeleéjudeu–comentei.–Tudo bem – respondeu ela. – Pode levar e conversar com ele sobre isso da

maneiracomovocêacharmelhor.Nós entramos na capela na pontinha dos pés porque o lugar estava escuro e

quieto,easpoucaspessoasquerezavamnobancodemadeirapareciamestarbastantecompenetradas,easvelasforneciamumapenumbrasuaveereverente.

Euo leveiatéa frenteenosajoelhamosnopardegenu exóriosquehaviaparaacomodarosnoivosenoivasnoscasamentos.

Percebiquantascoisas tinhamacontecidocomigo juntodeMalchiahdesdequeeu viera a essa capela e, quando olhei para o tabernáculo, quando olhei para a

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pequenacasadeDeusnoaltareparaaluzdosantuárioaoladodela,fuitomadoporumasensaçãodegratidãosimplesmenteporestarvivo,quantomaisporterrecebidouma chance na vida como a que havia recebido, quanto mais por ter recebido adádivadeToby,meufilho.

Curvei-me em direção a ele. Estava ajoelhado lá, com as mãos dobradasexatamentecomoestavamasminhas,enãopareciaternenhumaobjeçãoaofatodeaquelaserumacasacatólicadeorações.

–Querodizerumacoisapravocê,umacoisadequeeuqueroqueselembreparasempre–eudisse.

Elebalançouacabeçaemconcordância.–AcreditoqueDeus estápresente aquinessa casa.Mas eu seiqueEle também

estáemtodososlugares.Eleestáemtodasasmoléculasdetudooqueexiste.Tudofazparted’Ele,dacriaçãod’Ele,eeuacrediton’Ele,emtudooqueElefez.

Eleouviaminhaspalavras semolharparamim,mantendoosolhosbaixos.Eleapenasassentiuquandoeumecalei.

– Eu não espero que você acredite n’Ele porqueeu acredito – eu disse. –Masqueroquevocêsaibaqueeuacrediton’Ele,e,seeunãoachassequeElemeperdoariaporterabandonadovocêesuamãe,bom,eunãoseisealgumdiateriaacoragemdepegar aquele telefone e ligar para ela e dizer a ela onde eu estava. Mas realmenteacreditoqueElemeperdoou,eagoraéminhatarefafazercomquevocêmeperdoe,efazercomqueelameperdoe,eesseéexatamenteomeuobjetivo.

–Euperdoovocê–disseele,baixinho.–Perdoo,perdooeperdoo.Eusorri.Beijeioaltodacabeçadele.– Eu sei que perdoa. Soube disso assim que vi você pela primeira vez.Mas o

perdão não acontece assim de imediato, e às vezes ele precisa se manter durantealgum tempo, e eu estou preparado para fazer esse tipo de manutenção que seránecessária.Mas...essanãoéaúnicacoisaquetenhoadizeravocê.Euprecisodizerumaoutracoisa.

–Euestououvindo.–Lembre-sedisso–eudisse.Euhesitei.Eunãosabiamuitobemcomocomeçar.

–ConversecomDeus.Não importacomovocêesteja se sentindo,não importaoque o esteja magoando, desapontando ou confundindo. Converse com Deus. EnuncaparedeconversarcomEle.Estámeentendendo?ConversecomEle.Entendaque,pormaisqueascoisasandemmalnessemundo,ouandembem,pormaisqueascoisasestejamfáceisoudifíceis,bom,issonãosigni caqueDeusnãoestejaaqui.

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Eunãoestouquerendodizer aquinessa capela.Estouquerendodizer em todososlugares.ConversecomEle.Nãoimportaquantosanospassem,nãoimportaoqueaconteça,sempreconversecomEle.Vocêvaitentarselembrardefazerisso?

Eleassentiucomacabeça.–Quandoéqueeucomeço?Eurisuavemente.– Assim que você quiser. Você pode começar agora, com ou sem palavras, e

simplesmentecontinueconversandoenuncadeixenadasecolocarentrevocêeessasuaconversacomDeus.

Elepensousobreissocommuitagravidadeeentãoassentiucomacabeça.–EuvouconversarcomEleagora–disse.–Derepente,émelhorvocêesperarlá

fora.Eufiqueiimpressionado.Levantei-me,beijei-onovamentenatestaedisse-lheque

ficariaesperandoláforaequeelepodialevarotempoquebementendesse.Maisoumenosquinzeminutosdepois,ele saiuenóscomeçamosapercorrera

trilhadojardimjuntos,eelerecomeçouatirarfotosenãofaloumuitacoisa.Masandavabempertodemim,aomeulado,comoseestivessecomigo,e,quandoeuviLionasentadanumbanquinhoesorrindoparanósaonosverjuntos,sentitamanhafelicidade,quenãofuicapazsequerdeencontrarpalavrasquepudessemcontê-la.Eeusoubequejamaisseria.

Nós voltamos,Toby e eu, para a gigantesca casca da igreja arruinada, amaiorpartequehaviasobradodoantigoterremoto.

Pelaprimeiravez,euviMalchiahaliporperto,encostadocasualmente,apesardesuasroupasdeboaqualidade,noempoeiradomurodetijolos.

–Olhaláeledenovo–disseToby.–Vocêestádizendoquejáviueleantes?–perguntei.–Vi,sim,eleestáobservandoagente.Eleestavanacapelaquandoagenteestava

lá.Euvielesaindoquandoagentesaiu.–Bom,vamosdizerqueeutrabalhoparaele–eudisse.–Eeleestámeioquede

olhoemmim.–Eleéjovemdemaispraserchefedealguém–disseToby.–Aaparênciadeleàsvezesengana.Esperaumminutinho.Euachoqueelequer

falaralgumacoisacomigo,masnãoquernosinterromper.Atravessei o piso quebrado até me encontrar com Malchiah e me aproximei

tanto,quenenhumdosturistaspoderiaouviroqueeutinhaadizer.

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–Euaamo–eudisse.–Issoépossível?Épossíveleusentiramorporela?Euoamotambém,eleémeu lho,e issoeraoqueeuqueriafazer,eagradeçoaoscéusporele,maseela?Hámundoetemposuficientespraeuamá-la?

–Mundoe tempos su cientes– repetiu ele, sorrindo.–Ah,quepalavrasmaislindas,ecomovocêmedeixapreocupadocomoqueeutepeço.Mundoetemposuficienteséoquevocêtemdedaramim–disseele.

–Mas,eela?–insisti.–Sóvocêsabearesposta,Toby–disseele.–Outalvezeudevessedizerquevocês

doissabem.Euachoqueelatambémsabe.Euestavaprestesaperguntarsobreooutroanjo,maselesefoi.Oqueosoutrosacharamdissoeunãofaçoamenorideia.Encontreimeu lhoocupadonafontekoicomsuacâmara,decididoacapturar

umpeixequenãoqueriasercapturado.Atardepassourapidamente.Nós zemos compras em San Juan Capistrano, e então eu os levei para um

passeiodecarropelo litoral.Nenhumdosdois jamaistinhavistooPací co,enósdescobrimosalgunspontosdeslumbrantes,eTobyquistirartantasfotosquantoerapossível.

OjantarfoinaatmosferaescuradacasadecarnesDuane,noMissionInn,emãeelho caram apropriadamente impressionados. Quando não havia ninguém

olhando,LionadeixouTobytomarumgoledeseuvinhotinto.NósconversamossobrecomoestavaNovaOrleansnessesdiasquesesucederam

aos horrores do furacão Katrina e sobre como fora difícil a situação durante atempestade.FicouclaroparamimqueforaumagrandeaventuraparaToby,muitoembora seu avô o tenha mandado fazer seus deveres de casa nos motéis que elesforamobrigados a alugar durante as piores partes dos dias seguintes à catástrofe, eque,paraLiona,algodavelhaNovaOrleansaindapermaneciadesaparecida.

–Vocêachaquealgumdiaaindavoltaamoraremlá?–perguntouToby.–Não sei– respondi.–Eu souumacriaturado litoral agora, euacho,mashá

motivosdiferentesquelevamaspessoasamorarememlugaresdiferentes.Emuitorapidamente,comumavelocidadedecortarocoração,eledisse:–Eumorariatranquilamenteaqui.Uma dor súbita surgiu no rosto de Liona. Ela olhou para o outro lado e, em

seguida, para mim. Eu mal podia disfarçar o que estava sentindo. Impulsos,esperanças,umrepentino uxovulcânicode sonhosobliterarammeupensamento.

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Havia uma característica de tragicidade em tudo aquilo. Um amargo pessimismotomoucontademim.Nenhumdireitoaela,nenhumdireitoaisso.

Na penumbra nebulosa do restaurante, eu não via nada. E então percebi queestavaolhandoparaumadupladehomensnamesamaispróximadenós.Malchiahemeuanjodaguarda.Elesestavamsentados,imóveiscomoumquadro,olhandoparamim da mesma maneira que guras em um quadro normalmente olham, peloscantosserenosdosolhos.

Engoli em seco. Sentia um desejo surgindo em mim. Eu não queria que elessoubessemdisso.

Na porta de sua suíte, ela fez uma pausa.Todo orgulhoso,Toby correra emdisparadaparaseuquarto,ondequeriatomarbanho.

Emalgumpontodassombrasdavaranda,aquelesdoisestavamposicionados.Eusabiadisso.Euosviraquandoestávamospercorrendoatrilha.Elanãosabia.Talvezelesnãoestivessemvisíveisparaela.

Fiqueiparado,emsilêncio,semousarmeaproximardela,nemtocarseusbraços,nemmecurvarpara lhedaromais levebeijoque fosse.Euestavadestroçadopelodesejo.Estavaemagonia.

Épossívelquevocêsdoisentendamisso,quenomomentoemqueeutomaressamoçaemmeusbraços,elavaiesperarmaisdemimdoqueapenasumabraçofraternal?Quedroga,essaseriaaatitudedeumcavalheiro,aomenosparadaraelaachancedemedizernão!

Silêncio.Seráquenãodariaparaeupersuadi-losairatrásdeoutrapessoaporalgumtempo?Ouvi o somde uma gargalhada commuita nitidez.Não eramal-intencionada

nemdebochada,apenasumagargalhada.Eu a beijei rapidamente no rosto e voltei para omeu quarto. Sabia que cara

desapontada.Euestavadesapontado.Queinferno,euestavafurioso.GireiocorpoemeencosteinaportadaSuíteAmistad.Éclaroqueelesestavamsentadosnamesaredonda.Malchiahexibiaamesmaexpressãoserenaeamávelquesempreteve,masmeuanjodaguardaestavaansioso, seéqueessaeraapalavracorreta, emeolhavacomoseestivesseligeiramenteamedrontado.

Umatorrentedepalavrasraivosasescapou-medaboca,masaduplasumiunumpiscardeolhos.

Mais oumenos às 23h, levantei-meda cama e fui até a varanda.Nãodormiranada.

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Estavafrioeúmido,comofrequentemente cavanasnoitescalifornianas,mesmodepoisdeumdia tépido.Deliberadamentepermitiquemeucorpo sofressecomofrio. Contemplei a possibilidade de bater na porta do quarto dela. Rezei. Fiqueipreocupado. Vigiei. Se alguma vez na vida eu desejei algo mais do que estavadesejandoagora,nãoconseguiamelembrar.Simplesmentequeriatê-la.Nadanessemundopareciamaisrealdoqueocorpodela,dentrodaquelasuíte,deitadonaquelacama.

Fiqueisubitamentetomadodevergonha.Desdeaprimeiravezemquefalaracomelaaotelefone,euaimaginaraemmeusbraços.Eeusabiamuitobemdisso.Quemeuestavaenganandocomtudoisso,emrelaçãoaelaestaresperandoalgumacoisaeemrelaçãoaeuagircomoumcavalheiroe,ah,aaltivezdoamoreestarreunidoetodaessacoisa.Euqueriabeijá-laepossuí-la.Eporquenão?Eporacasoeracertoeusertorturadodessamaneira?Queinferno,euaamava.Eunãotinhaamenordúvidadequeaamava,dofundodocoração.Podiaamá-laatéodiademinhamorte.Eunãomeimportavacomoqueissopoderiasigni car,estavapreparadoparaisso,paratudoisso.

Eu estava prestes a retornar ao meu quarto quando vi Malchiah em pé nasproximidades.

–Tudobem,oqueé?–perguntei,comraiva.Isso o deixou visivelmente sobressaltado, mas ele se recuperou imediatamente.

Pensei ter visto uma pontinha de decepção em seu rosto. Mas ele apenas sorriaenquanto falava. Sua voz estava aconchegante como sempre, cheia deuma ternurareconfortantequefaziacomquesuaspalavraspenetrassememmeusouvidos.

–OutrossereshumanosdariamquasetudoparaverasprovasdaProvidênciaquevocêviu–disseele.–Masvocêaindaéumserhumano.

–Oquevocêpoderiasaberdisso?–perguntei.–Eoquefazvocêpensarqueeunãoseitudosobreisso?

–Vocênão está falandode coração–disse ele,demaneira tranquilizadora.Elepareciabastanteconvincente.

–Vocêpodeobservarsereshumanosdesdeosprimórdiosdostempos–eudisse–,masissonãosignificaquevocêsaibaoquesignificaserum.

Elenãorespondeu.Suaexpressãoamávelepacientemedeixoufurioso.– Você vai car comigo para sempre, até o dia em que eu bater as botas? –

perguntei.–Eununcamaisvou carsozinhocomumamulhersemquevocêsdoisestejamporperto,vocêeaqueleanjodaguarda?Issoéoqueeleé,certo?Meuanjo

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daguarda?Qualéonomedele?Vocêsdoisvão carpairandoemcimademimparasempre?–Eumevireieentorteiodedonadireçãodelecomosefosseocanodeumrevólver.–Eusouhomem.Humano,homem!Eunãosoumongenempadre.

–Vocêcertamenteviveucomoumquandoeraumassassino.–Oquevocêestáquerendodizercomisso?–Vocênegouasimesmooaconchegoeoamordeumamulheranoapósano.

Você não achava quemerecia isso.Você não conseguia suportar estar próximo dainocênciadasmulheres,oudocalorhumanodeumamulherquepudesseviraaceitá-lo.Vocêmereceissoagora?Estáprontoparaisso?

–Eunãosei–murmurei.–Vocêquerqueeuváembora?–perguntouele.Euestavaencharcadodesuor,emeucoraçãoestavaamilporhora.–Omaissimplesdesejoestámefazendodebobo–sussurrei.Achoqueeuestava

implorandoaele.–Não,eunãoqueroquevocêváembora–murmurei.–Eunãoqueroquevocêfaçaisso.–Balanceiacabeça,derrotado.

–Toby,osanjossempreestiveramcomvocê.Elessempreviamtudooquevocêfazia.NãohásegredosnoCéu.Aúnicadiferençaéqueagoravocêconseguenosver.Eissodeveriaserumafontedeenergiaparavocê.Vocêsabedisso.OnomedeseuanjodaguardaéShmarya.

–Escutaaqui,euqueroestarcheiodeadmiração,degratidão,dehumildade,desentimentosnobres!Queinferno,euqueroserumsanto!–gaguejei.–Maseunãoconsigo,nãoconsigo...Comoémesmoonomedele?

–Nãoconsegueoquê?–perguntouele.–Nãoconsegueviver comrestrições?Não consegue negar a si mesmo a grati cação imediata de seus desejos por essamulhertendoestadocomelapormenosde24horas?Nãoconsegueimpedir-sedeser rude em função da vulnerabilidade dela?Não consegue ser o homemhonradoquetalvezoseufilhoesperequevocêseja?

Suaspalavrasnãopoderiamtersidomaisincisivassefossemproferidascomraiva.Adelicada voz persuasiva era fatal em relação a todas asmentiras que eu dissera amimmesmo.

–Vocêachaqueeunãoentendo–disseelecalmamente.–Voutedizeroqueacho,quesevocêdominasseessamulheragora,elaseodiariaporisso,eodiariavocêtambémquandotivessetempoparapensarnoassunto.Pordezanos,aquelamulherviveu sozinha,por simesmaepelo lhodela.Respeite-a.Ganhe a con ançadela.Issolevatempo,nãoleva?

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–Euqueroqueelasaibaqueeuaamo.–Poracaso,eudissequevocênãopodiadizerissoaela?Poracaso,eudisseque

nãopodiaterdemonstradoaelaumapequenamedidadoquevocêtemmantidoemestadodelatência?

–Ah,conversadeanjo!–eudisse.Volteiaficarfurioso.Maisumavez,eleriu.Por um longo momento, nós dois camos lá parados em silêncio. Eu estava

envergonhadonovamente,envergonhadoporterficadocomraiva.–Eunãoposso carcomelaagora,posso?–perguntei.–Eunãoestoufalando

dedesejo.Estoufalandodeamorecompanheirismogenuínos,edeaprenderaamartudo em relação a ela, de ser salvo todos os dias por ela. Você queria que euconhecessemeu lho para o bem dele e dela.Mas eu não posso ter os dois, nãocomoparteíntimadaminhavida,posso?

–Oseutemsidoumcaminhoescuroeperigoso,Toby.–Eunãofuiperdoado?–Sim,você foiperdoado.Mas seráqueéumapostura sábiavocê seafastardo

tipodevidaquelevava,semprecipitarrepercussões?–Não.Eupensonissootempotodo.–Seráqueécorretovocênãofazernenhumareparação?–Não.Eudevofazerreparações.–Seráqueécorretovocêrompersuapromessadetrabalhocomigoparafazero

bemnessemundoemvezdomal?–Não–respondi.–Eununcavouquererromperessapromessa,nunca.Tenho

umadívidaesmagadoraparacomomundopelascoisasque z.GraçasaDeus,vocêmemostrouumaformadepagaressadívida.

–E vou continuarmostrando.Enquanto isso, seja forte por ela, amãe de seulho,sejaforteporeleepelohomemqueelepodevirasetornar.Enãoseiludaem

relaçãoàscoisasquevocê já fez,aenormidadedelas.Lembre-sedequeaquelabelamulher possui um anjo também. Ela nem começou a adivinhar quem você foidurantetodosessesanos.Sesoubesse,talveznãopermitissequevocêseaproximassedaquelacriança.Ou,pelomenos,foiassimqueoanjodelameinformou.

Balancei a cabeça em concordância. Era doloroso demais pensar nisso, e óbviodemaisparasernegado.

–Deixe-melhedizerumacoisa–disseele.–Mesmoqueeutedeixasseagora,sevocê jamaisvoltasseamever,seviesseaacreditarqueminhasvisitaçõesforamum

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sonho,vocêjamaispoderiadarinícioaumavidadomésticasemquesuaconsciênciao destruísse. Feitos extraordinários requerem reti cações extraordinárias. Narealidade,aconsciênciapodeexigircoisasdesereshumanosqueoCriadornãoexige,e que os anjos não sugerem, porque eles não têm necessidade de fazer isso. Aconsciênciaépartedoserhumano.Easuaconsciênciaestavatedestruindoantesdeeu vir até você. Você jamais foi desprovido de consciência, Toby. Seu anjo daguarda,Shmarya,poderialhedizerisso.

–Eusintomuito.Sintomuitoportudoisso.Eufalheicomvocêaqui,Malchiah,nãomeabandone.

Eleriu.Eraumrisogentiletranquilizador.–Vocênãofalhoucomigo!–disseelecomdelicadeza.–Milagresacontecemem

seudevidotempoparaossereshumanos.Enãohámundoetemposu cientesquefaçamcomqueoshumanosseacostumemcomeles.Elesnuncaseacostumam.Eeutenhoobservadooshumanosdesdeosprimórdiosdostempos.Eoshumanosestãosempremesurpreendendo.

Eu sorri. Estava esgotado e longe de poder encarar com serenidade aquelaspalavras,massabiaqueeleestavafalandoaverdadeabsolutaevidentemente.Araivapassara.

–Maisumacoisa–disse ele com ternura.Seu rosto estava suavizadoporumainegávelcompaixão.–Shmaryaestáinsistindoparaqueeudigaisso–confessouele,erguendo umpouco as sobrancelhas ao falar. – Ele está dizendo que, se você nãoconsegueserumsanto,ouummongeouumpadre,entãopensenapossibilidadedeserumherói.

Euri.–Issoéumaboa–eudisse.–Issoéótimo.Shmaryasabeexatamentequaissão

os botões que ele temde apertar, não sabe? – eu disse, rindo novamente. Eu nãopudeevitar.–Quandoeusentirvontade,voupoderfalarcomele?

– Você tem falado com ele há anos – a rmou Malchiah. – E agora ele estáfalandocomvocê.Equemsoueuparaimpedirumaconversatãolinda?

Euestavasozinhonavaranda.Exatamenteassim.Sozinho.Anoiteestavavazia.Euestavadescalçoemeuspésestavamgelados.Namanhãseguinte,fuiatéasuítedelestomarcafédamanhã.Toby estavadepé, vestido com seublazer azul e calças cáqui, e anuncioupara

mimquedormiraemseupróprioquartoeemsuaprópriacama.

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Euassenticomacabeçacomoseaquilofosseoqueomundoesperavadejovensdaquela idade, mesmo que suas mães possuíssem gigantescas camasking-size emsuntuosassuítesdehotel.

E nós todos tomamos café da manhã juntos, numa elegante mesa repleta depratariaecomastampasapropriadasparamanterospratosdeliciosamentequentes.

Eusentiaquenãoconseguiriameseparardeles.Sentiaquenãoconseguiriafazerumacoisadessas,massabiamuitobemqueera

exatamenteissooquedeveriafazer.Trouxeracomigoaminhabolsadecouroe,depoisdocafédamanhã,quandoa

mesajáhaviasidotirada,pegueiasduaspastasdedentrodelaeascoloqueinasmãosdeles.

–Oqueé isso?–perguntouela,naturalmente,equandoeutenteiexplicarquepoderia ler todoomaterialnoavião,ela insistiuparaqueeu lheexplicassenaquelemomento.

–Fundosdeinvestimento,entreoutrascoisas,umparavocêeoutroparaele,euma renda anual a ser sacada mensalmente, uma quantia que não vai me fazernenhumafaltaequedevedarcontadesuprirtodasasdespesasdevocêsdois.Eissoésóocomeço.

–Eunãopedinadaavocê–lembrou-meelasempestanejar.–Vocênãoprecisamepedir.Issoéoqueeuqueroquevocêsdoistenham.Aqui

temo su cienteparaqueele estudenoexterior, sevocêassimdesejar.Elepode irparaaInglaterra,paraaSuíça,paraondesepuderobteromelhorensino.Elepodeirno verão, quem sabe, e passar o resto do ano com os estudos regulares. Eu nãoentendo muito bem desse tipo de coisa. Nunca entendi. Mas você entende. E opessoaldaNewmanSchooltambémentende.Eoseupaitambémdeveentender.

Ela cou lá sentada, segurando aquelas pastas, sem abri-las, e então lágrimascomeçaramaescorrerpeloseurosto.

Euabeijei.Euaabraceicomtodaaternuradomundo.–Tudo o que tenho agora está destinado a vocês dois. Vou lhemandarmais

informações assim que tiver. Os advogados estão sempre fazendo um monte deperguntas,eacoisalevaumpoucodetempo.

Hesitei,eentãodisse:–Olhasó,temváriascoisasquevãodeixá-laumpoucoconfusa.Omeunome

nãoaparecenessesdocumentos,maspode carcertadequeonomequeapareceéumnomequeeuusonosnegóciosotempotodo.JustinBooth.Sempreuseipara

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pagarpassagensaéreasefazerreservasnessehotel.Epodedizeraoseuadvogadoqueos impostos de doação foram totalmente pagos sobre toda a quantia transferida avocêeaopequenoToby.

–Toby,eununcaespereinadadisso–disseela.–Temmaisumacoisinha.Issoaquiéumcelularpré-pago.Fiquesemprecomele

porperto.O“nome”eopinestãoatrásdele.Issoétudodoqueprecisapararenovaroserviço.Vocêpodefazerospagamentosemdiversoslocais.Éacoisamaisfácildomundo.Vouligarparavocênessetelefone.

Elaassentiuseriamente.HaviaalgoprofundamentecortêsemLionaaceitartodasaquelascoisas,emnãoquestionaromotivodosegredo,omotivodocodinome.

Novamente eu abeijei,beijei suaspálpebras, suasbochechas edepois suaboca.Ela estava terna e receptiva como sempre esteve.A fragrânciade seus cabelos era amesma de tantos anos atrás. Eu queria colocá-la no colo, levá-la para o quarto,possuí-laegrudá-laeternamenteamim.

Tardedemais.Ocarrojáestavaesperandoláembaixo.OpequenoTobyacabaradeaparecerparadizerquejáestavademalasprontasepreparadoparapegaroavião.Achoqueelenãogostoudeeuterbeijadosuamãe.Postou-seaoladodela,olhandopara mim de maneira resoluta. E, quando o beijei, ele perguntou em tom dedesconfiança:

–Quandoéqueagentevaisevernovamente?–Assimqueder–respondi.SóDeussabequandoissoserápossível.A descida até o térreo foi a caminhadamais longa que eu já zera em toda a

minha vida, emboraToby tivesse cado maravilhado em subir e descer os cincolancesdeescadanarotundaeemescutarsuavozecoandonasparedes.

Eleperdiaumpouquinhodesuasmaneirascavalheirescasnaquelesmomentos.Logo,logochegamosàfrentedohotel,eocarroestavaláesperando.Maisum lindodiadecéuazul eclimaamenonaCalifórnia, todasas oresdo

localpareciamestarnoaugedabelezaeospássaroscantavamsuavementenasárvores.–Euteligoassimqueder–disseaela.–Fazumacoisapormim–disseelabaixinho.–Oquevocêquiser.–Nãodizquevailigarsenãoforrealmenteligar.–Não,querida.Euvouligar.Euvouteligardequalquermaneira.Eusónãosei

exatamente quando vai ser. – Pensei por um instante e então disse: –Me arranjamundoe temposu cientes.Não seesqueçadessaspalavras.Seeudemorarmuito,

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lembre-sedefalaressaspalavras.Mearranjamundoetemposuficientes.Eu a abracei e dessa vez a beijei e não dei a mínima para quem pudesse ver,

mesmoque fosseopequenoToby, e,quandoa soltei, eladeuumpassopara tráscomoseestivessedesequilibrada,comoeumesmoestava.

LevanteiTobynocoloeolheiparaele.Então,beijei-onatestaenasbochechas.–Eusabiaquevocêiaserassim–disseele.–SeeutivesseditoaDeusempessoaquequeriaum lhoperfeito–eudisse–e

tivesse tido a coragemdedizer aDeus comoeledeveria ser feito,bom,Deusnãopoderiaterfeitonadamelhor,dissoeutenhocerteza.

Entãoocarropartiueelesseforam,eobeloegrandiosomundodoMissionInnpareceuterficadovaziocomojamaispareceuterficadoantes.

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C

CAPÍTULOQUATRO

HEGUEI À MINHA SUÍTE E DESCOBRI QUEMALCHIAHestavaláesperandopormim.Estavasentadoàmesadeferropretoechorava.Tinhaoscotovelosemcimadamesaeasmãosnorosto.

–Qualéoproblema?–perguntei.–Oqueestáacontecendo?–Eumesentei.–Issoéculpaminha?Oquefoiqueeufiz?

Eleendireitouocorponacadeirae sorriu lentamenteparamim,o sorrisomaissuaveetristequealguémpoderiaexpressar.

–Vocêrealmenteficoupreocupadocomigo?–perguntou.–Bom,fiqueisim,vocêestavachorando.Pareciamagoado.–Eunãoestoumagoado.Masachoquepoderia car.Culpaminhaporouviros

acadêmicos–disseele.Eleestavasereferindoaosteólogosdasuniversidades,homenscomoSantoTomásdeAquino.

–Vocêestásereferindoaoshomensquedizemquevocênãotemcoração.–Vocêsmefizeramchorar,vocêstrês–disseele.–Porquê?Eledeudeombros.–Noamorquevocêsdoisnutremumpelooutro,euouvioecodofirmamento.–Agoraévocêqueestámefazendochorar–eudisse.Eunãoconseguiapararde

olharparaele,paraaprofundidadedesuaexpressão.Euqueriaabraçá-lo.– Você não precisa me confortar – disse ele com um sorriso. – Mas co

emocionadoporsaberquetemessaintenção.Vocênãotemcomosaberoquantoémisteriosa para nós a maneira como os seres humanos se amam, ansiando pelacompletude.Todososanjossãocompletos.HomensemulheresnaTerrajamaisosão,mas,quandoalcançamessacompletudenoamor,elesalcançamoCéu.

– Por falar em mistérios – eu disse – , você parece um homem, tem voz dehomem,masnãoéhomem.

–Não,certamentenãosou.–ComoéasuaaparênciaquandoestádiantedoTronodeDeus?–perguntei.

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Eleriudaquelejeitosuaveereprovador.–EusouumespíritodiantedoTronodoCriador–disseelesuavemente.–Sou

umespíritoquehabitaumcorpofeitoparaessemundo.Vocêsabedisso.–Vocênuncasesentesolitário?–Oquevocêacha?–perguntou.–Eutenhocondiçõesdesersolitário?–Não–respondi.–OsanjosdosfilmesdeHollywoodsãosolitários.–Verdade–disseelecomumsorrisoamplo.–Atéeusintopenadeles.Chegará

ummomento emque você compreenderá o que eu sou, porque você será igual amim,maseununcasabereirealmentecomoésercomovocêagora.Omáximoqueconsigoéficarembevecidocomisso.

– Eu nunca vou querer me separar deles – eu disse. – Minha mente estáconcentrada24horaspordianisso.Seeunãopuderestarcomeles,elesvãoouviraminha voz à distância com regularidade e frequência. Eles vão ter tudo o que eupuderdaraeles.

Uma aguda sensação de pânico me fez parar subitamente. O dinheiro que eujuntaradurantetodosessesanoseraumdinheirosujodesangue.Maseratudooqueeutinha,eeupoderiautilizá-loparaeles,eelepoderiaserlavadodessamaneira,nãopoderia?Eunãotinhacomopegardevoltaosfundosdeinvestimentoquejáhaviacriado.RezeiparaqueMalchiahnãodissessenadaaesserespeito.

–Vocêspertencemumaooutro–disseele.–Oquevocêestásugerindo?–perguntei.–Issosigni caquealgumdia,deuma

forma ou de outra, pode ser que eu consiga viver comLiona eToby debaixo domesmoteto?

Elepareceurefletirporummomentoeentãodisse:–Reflitasobreoquejáaconteceu.Peloamorquevocêsdoisagoracompartilham,

você já se transformou.Olhe bempara você. E, nessa breve visita, você alterou ocursodavidadeLionaedeTobyparasempre.Vocêjamaisdeixarápassarumdiaemsua vida sem saber que os possui, que eles necessitamde você, que vocênãodevedesapontá-los.Eelesjamaisexperimentarãoummomentosemsaberquetêmoseuamor e o seu reconhecimento. Você não consegue identi car asmudanças que jáestãoocorrendo?Viverdebaixodomesmotetoseriaapenasumaspectodissotudo.

–Essaéumamaneiraanêmicadeencararacoisa–eudisse,antesdepodermecorrigir.–Vocênãosabeoquesigni caparaoshumanosviverdebaixodomesmoteto.

–Eusei,sim–afirmouele.

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Eunãorespondi.Ele esperou. Eu conseguia de fato enxergar a coisa. Enxergar a enormidade da

situação, o que acontecera com Liona e com o pequenoToby. Muito embora agamadaspossibilidadesin nitasqueseapresentavaapartirdosmomentosquenósdoishavíamoscompartilhadonãome impedissedeansiarpormuitasoutras coisasmais,euprecisavaconfessar.

–Você sabecomoamar–disse ele.–Essaéa chave.VocêconsegueamarnãoapenasaquelaspessoasqueconhecenaacolhedorailuminaçãodoTempodosAnjos.Vocêconsegueamaraspessoasemseuprópriotempo.Amulhereomeninonãooassustaram.Seucoraçãobatecomumamornovoeprático,quedoisdiasatráserainimaginávelavocê.

Eu estava bastante abismado para responder. Visualizei-os de novo, Liona e opequenoToby,aoolharemparamimdaprimeiravezemqueeuosvi.

–Não,eunãosabiaquepodiaamardessaforma–admiti.–Euseiquevocênãosabia–disseele.–Eeununcavoudecepcioná-los.Massejamisericordioso,Malchiah.Digapara

mimquetalvezalgumdiaeupossaviversobomesmotetoemqueeles.Diga-meque isso é pelo menos concebível, merecendo eu ou não. Diga-me que talvez eupossaalgumdiamerecerisso.Digaquevocêvaimeampararnisso.

Ele cou quieto por um momento. As lágrimas sumiram de seus olhos. Eleestava com a aparência plácida emaravilhada. Seus olhosme percorriam como seestivessemeestudando.Entãoolhoudiretamenteparamim.

–Talvez–disseele–,talvezhajamundoetemposu cientesparaisso.Comodevidotempo.Masvocênãodevepensarnissoagora.Porqueagoraémuitopoucoprovável que haja alguma possibilidade de isso vir a ocorrer. – Ele fez uma pausacomoseestivessedispostoafalarmaisalgumacoisa,masentãomudoudeideia.

–Vocêpodeerrar?–perguntei.–Nãoqueeuqueira.Sóquerosaber.Vocêpodeestarerradoemrelaçãoaalgumacoisa?

–Posso–respondeuele.–SóoCriadorconhecetodasascoisas.–Masvocênãopodepecar.– Não – disse ele simplesmente. – Muito tempo atrás, eu z a escolha pelo

Criador.–Deusdocéu,vocênãopodemecontaressa...–Nãoagora, talvez jamaispossa–disseele.–Eunãoestouaquiparacontara

você a história doCriador e a de seus anjos, belo homem. Eu estou aqui para te

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conhecer,eparateguiar,eparapedirquevocêmepresteseusmaisdevotosserviços.AgoradeixesuasperguntascósmicasparaoCéuevamosdiscutirotrabalhoquevocêdevefazer.

–Ah, por que você nãome dámundo e tempo su cientes para compensar ascoisasqueeufiz,emundoetemposuficientes...

–Certo, lembre-sedessaspalavras–disse ele–,no localparaonde eu estou teenviando,porqueessaseráumacomplexasériedetarefas.VocênãoiráagoraparaaInglaterra,nemparaaquelaépoca,massimparaumoutromundonoqualasituaçãodascriançasjudiasdeDeuséaomesmotempomelhorepior.

–Entãonósvamosatenderaprecesdejudeus?–Sim–disse ele.–Edessavez éum jovemchamadoVitale.Ele está rezando

com desespero e com fé em busca de ajuda, e você irá até ele e encontrará umacomplexarededemistériosquesomentevocêpoderácompreender.Masvenha.Estánahoradeiniciarmosnossapequenamissão.

EMINSTANTES,NÓSDEIXAMOSAVARANDAPARATRÁS.Eunãoseioqueoutraspessoasviram,seéqueviramalgumacoisa.EusabiaapenasquenóshavíamosdeixadoosólidomundodoMissionInn,eo

sólidomundodeLionaeToby,eestávamosmaisumaveznoaltodasnuvens.Seeutinhaumaforma,nãoconseguiavê-lanemsenti-la.Tudooqueeuviaeraaumidadebrancarodopiandoaomeuredor,eaquiealiodiminutobrilhodeumaestrela.

Ansiei pelamúsica celestial,mas ela não veio com tanta intensidade quanto ascançõesdovento,velozese refrescantese tirandodemim,aoqueparece, todososmeuspensamentosdopassadorecente.

De repente, abaixo de mim, vi espalhar-se uma imensa e aparentementeinterminávelcidade,umacidadededomosejardinssuspensos,etorresaltasecruzesabaixodeumacamadadenuvenseternamentemutantes.

Malchiah estava comigo, mas eu não conseguia vê-lo muito mais do queconseguiaveramimmesmo.MaspodiaverascolinasfamiliareseosaltospinheirosdaItália,esoubeentãoqueeraaliolocalparaondeeuestavaindo,apesardeaindanãosaberparaqualcidade.Issoeusódescobririamaistarde.

–IssoquevocêestávendoaíembaixoéRoma–disseMalchiah.–LeoXestánotrono papal, eMichelangelo, exausto com os notáveis trabalhos empreendidos noteto de sua grande capela, participa de uma dezena de outros projetos e logo seentregarádecorpoealmaa restaurar aprópria catedraldeSãoPedro.Rafaelpinta

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com toda a sua glória os aposentosquemilhões visitarão séculos e séculosdepois.Masnadadissoéimportanteparavocê,nemeulhedareiomínimodetempoquesejaparasequervislumbraropapaoualguémdeseuséquito,poisvocêfoichamadoatéaqui,comosempre,paraumcoraçãoespecífico.

“Esse jovemhomem,VitaledeLeone, reza fervorosaeardorosamente,eoutrostão apaixonadamente rezampor ele, que chegarama formarumamultidãoque seencontraàsportasdosCéus.”

Estávamos descendo, chegando cada vez mais próximo dos jardins do terraço,maispróximodosdomosecampanários,atéquefinalmentepudemosverolabirintodeescadariasevielasenviesadasqueconstituíaasruasdeRoma.

– Você nesse mundo é um judeu, chamadoToby, e é alaudista, como logodescobrirá,equeessasejaumachaveparavocêarespeitodequantodeseutalentovariado será necessário para que essa iniciativa prospere. Agora você é conhecidocomoalguémimperturbávelequepodetrazerconsoloaosperturbadospormeiodesuamúsica,demodoqueserábem-vindoaochegar.

“Seja corajosoeamável, e seja abertoa todosaquelesquenecessitamdevocê–principalmentenossoaturdidoebastantedesencorajadoVitale,queé,pornatureza,umhomemdeféequerezacomtamanhavalentiaporassistência.Contocomsuasagacidadecomosempre,seusnervosesuaastúcia.Masnamesmamedidaemquecontocomseucoraçãogenerosoeculto.”

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A

CAPÍTULOCINCO

SSIMQUEEMERGINOINTERIORDEUMApequenapiazzadiantedeum imensopalazzo,umamultidão irrompeucomoseestivesseàminhaespera.

Nãoeraa turbaqueeuencontrarana InglaterranaminhaúltimaaventuraparaMalchiah,mas era evidente que havia alguma coisa acontecendo aqui, e eu estavasendomergulhadoemdireçãoaoprópriocernedoevento.

Amultidãoeracompostadejudeus,quaseemsuamaioria,oupelomenoseraoque parecia, já que muitas pessoas portavam um círculo amarelo preso em suasroupas,eoutrasestavamcom tasazuisnasextremidadesdesuaslongastúnicasdeveludo. Esses eram homens ricos, homens de in uência, e a maneira como seportavammediziaissotãobemquantosuasvestimentas.

Quantoamim,euestavavestidocomuma natúnicadeveludo,commangastalhadas com forros de prata, perneiras visivelmente caras e botas de couro altastingidas num tom verde vivo.Usava um par de nas luvas de couro e pele.Nasminhascostas,eucarregava,presoemsua nacorreiadecouro,umalaúde!Tambémeuportavaopedaçodepanoamarelo.E,quandomeapercebidisso,sentiumacertavulnerabilidadequejamaisconheceraantes.

Meuscabelos,louroseencaracolados, cavamnaalturadosombros,eeuestavamaisestupefatodereconheceramimmesmonessaelegânciadoquecomqualquercoisaqueaquelamultidãodiantedemimpudessevirafazer.

Todoselesseafastavamdemimegesticulavamparaoportãodacasaatravésdoqualeupodiaveraluzqueemanavadopátiointerno.

Eusabiaqueforadestinadoparaisso.Nãohavianenhumadúvidaaesserespeito.Antes,porém,queeupudessealcançaracordadeumsino,ouchamaronomedealguém, um dos anciãos da multidão deu um passo à frente como se estivessebarrandoomeucaminho.

–Você entra naquela casa por sua própria conta e risco – disse ele. – Ela estápossuída por umdybbuk. Nós reunimos os anciãos três vezes para exorcizar esse

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demônio,masfracassamos.“Noentanto,ojovemcabeça-duraproprietáriodacasarecusa-seasair.Eagorao

mundo, que já con ou nele e já o respeitou, começou a encará-lo com temor edesprezo.”

–Nãoobstante–eudisse–,aquiestoueuparavê-lo.–Issonãoébomparaninguémaqui–disseumoutrohomempresente.–Evocê

tocar alaúde para o paciente dele não vai mudar o que está acontecendo debaixodaqueleteto.

–Oqueentãovocêdiriaparaeufazer?–perguntei.Umrisoatormentadopercorreuogrupo.– Fique longe dessa casa e que longe deVitaleBenLeone até ele determinar

abandoná-laeoproprietáriodecidirqueeladeveserdemolida.Acasapareciaimensa,comquatroandaresdejanelasredondasarqueadas,eaação

descritapareciaumaatitudedesesperada.–Eu te digo, alguma coisa domal tomou essa habitação aqui – disse umdos

outroshomens.–Vocêconsegueouvir?Consegueouvirosruídosládentro?Euconseguiaefetivamenteouvirosruídosládentro.Pareciaumsomdeobjetos

sendo jogadosdeum ladoparaooutro.Epareciaquealgumacoisa feitadevidroestavasendodespedaçada.

Eubatinoportão.Entãoviacordadosinoepuxei-acomforça.Seosinosoou,osomfoiouvidobemnointeriordacasa.

Oshomensaomeuredorderampassosparatrásassimqueoportãofinalmenteseabriueumjovemcavalheiro,maisoumenosdaminhaidade, couempénasoleira.Eletinhaoscabelosencaracolados,pretoseespessos,naalturadosombros,eolhosmuito pretos. Estava tão bem-vestido quanto eu próprio estava, numa túnicarevestidaeperneiras,eusavamocassinsdecouromarroquinosnospés.

–Ah,quebom,vocêveio–disseeleparamime,semdirigirumapalavrasequeraosoutros,puxou-meparaointeriordopátiodacasa.

–Vitale,saiadesselugarantesdevocêsearruinar–disseumdoshomensparaele.–Eumerecusoafugir–respondeuVitale.–Nãosereiretiradodaqui.Alémdo

mais,SignoreAntonioéproprietáriodessacasa,émeupatrãoeeufaçooqueelediz.Niccolòéfilhodele,nãoé?

Oportãofoifechadoeapesadaportademadeira,trancada.Eumvelho serviçal cou lá empé segurandoumavelaqueprotegia com seus

dedosesqueletais.

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Masaluzfortevinhadotetoaltoepenetravanopátio,e,sóquandocomeçamosa subir a ampla escadaria de pedra, nos encontramos mergulhados nas sombras enecessitadosdeumapequenachamaparanosguiar.

Era uma casa comomuitas outras casas italianas, visíveis do exterior apenas asparedescomjanelassemcor,mascomuminteriordignodapalavra“palazzo”,eeuquei cativado pelo vistoso tamanho e pela solidez da construção à medida que

avançávamosemmeioavastoselustrososambientes.Vislumbreiparedeslindamenteadornadascomafrescos,pisoscomomaisricoladrilhodemármoreeumapletoradetapeçariasescuras.

Umruídobemaltodealgosendoquebradosoouemalgumlugar,oquefezcomquenossopequenogrupoparasse.

Ovelhoserviçalproferiualgumasoraçõesemlatimefezosinaldacruz,oqueme deixou surpreso, mas o jovem que estava comigo não parecia ter medo emantinhaumaposturadesafiadora.

–Eunãovousairdaquiàforçaporcausadisso–disseele.–Voudescobriroqueessacoisaquer.EquantoaNiccolò,vouacharumamaneiradecurá-lo.Eunãoestouamaldiçoadoenãoenveneneininguém.

–Édissoquevocêestásendoacusado?Deestarenvenenandoseupaciente?–Éporcausadofantasma.Senãofossepelofantasma,eunãoestariasobsuspeita

decoisaalguma.E,porcausadofantasma,eunãopossotratardeNiccolò,queéoqueeudeveriaestarfazendoagora.Eumandeichamá-loparaquevocêtoquealaúdeparaNiccolò.

–Entãovamosatéele,eeutocareioalaúdecomovocêmepediu.Ele me encarou, indeciso, e então estremeceu novamente por causa de um

estrondofortequeveiodoquetalvezpudesseseroporão.–Vocêacreditaqueexistaumdybbukaqui?–perguntouele.–Nãosei.–Venhaatéomeuestúdio–disseele.–Vamosconversarporalgunsminutos

antesdeirmosatéNiccolò.Agoraos sons vinhamde todas aspartes, portas rangendo, e o somde alguém

batendoospésnoandarinferior.Por m, abrimos asportasduplasdo estúdio e o serviçal rapidamente acendeu

diversas outras velas para nós, já que as persianas estavam fechadas.O local estavaempilhado de livros e papéis, e eu podia ver gabinetes de vidro com volumesencadernados em couro gastos por intenso manuseio. Estava claro que alguns

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daqueles livros eram impressos, ao passo que outros não. Em cima das váriasmesinhas,haviacódicesescritosàmãoabertoseemoutras,papéispreenchidoscomoque pareciam ser rabiscos, e, no centro da sala, encontrava-se a escrivaninha dohomem.

Elefezumgestoparaqueeumesentassenacadeiraromanaaoladodele.Entãodesabounacadeira,pôsoscotovelosemcimadaescrivaninhaeenterrouorostonasmãos.

–Euachavaquevocênãoviria–disseele.–EunãosabiaquememRomatocariaalaúdeparaomeupaciente,agoraqueestouemtamanhadesgraça.Sóopaidemeupaciente,meubomamigoSignoreAntonio,acreditaquequaisquermedidasqueeutomepossamviraserdealgumaajuda.

–Eufareioquequerquevocênecessitequeeufaça–eudisse.–Imaginoseumalaúdepodemesmoacalmaresseespíritocausadordetumulto.

–Ah, que pensamento interessante – concedeu ele –,mas nesses dias da SantaInquisição, você acha que um de nós pode ousar tentar envolver o demônio emalgum encanto? Nós seríamos estigmatizados como bruxos ou feiticeiros, sezéssemos isso. Além disso, eu preciso muito de você ao lado do leito de meu

paciente.–Pense emmimcomo a resposta a suaspreces.Eu tocarei para seupaciente e

também farei o que quer que esteja ao meu alcance para ajudar você com esseespírito.

Eleolhouparamimporummomentolongoepensativoeentãodisse:–Eupossoconfiaremvocê.Euseiqueposso.–Bom.Queeufiqueaseuserviço.–Primeiro,ouçaaminhahistória.Elaébreveenós temosdepartir logo,mas

deixe-mecontaravocêcomotudoissosedesenrolouatéaqui.–Sim,conte-metudo.–SignoreAntoniotrouxe-meparacádePádua,juntocomseufilhoNiccolò,que

tornou-se o amigomais íntimo que eu jamais tive nessemundo, embora eu sejajudeueesseshomenssejamgentios.EstudeimedicinaemMontpellier,efoiláqueconhecipai e lho, e imediatamente comecei a copiar textosmédicosdohebraicoparaolatimparaoSignoreAntonio,quepossuiumabibliotecacincovezesmaiordoqueessa,equesigni catudonomundoparaele.Niccolòeeugostávamosdebeberjuntos além de ser colegas, e todos seguimos para Pádua e depois nalmentechegamosanosso lar,Roma,ondeSignoreAntonioestabeleceu-menessacasapara

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prepará-laparaNiccolò.EssacasaestavadestinadaaNiccolòesuanoiva,masentãoofantasmaapareceunaprimeiranoiteemqueeumeajoelheiefizminhasprecesaqui.

Ouviu-seumoutroestrondodapartedecimadoimóveleocaracterísticosomdealguémcaminhando,emboraamimparecesseque,numacasacomoessa,nãoseouviriaosomdeumapessoacomumcaminhando.

Oserviçalaindaestavaconosco,agachadopertodaporta, segurandoavela.Suacabeça estava calva e rosada à luz, comapenas alguns osde cabelos escuros, e eleestavainquietocomosolhosfixossobrenós.

–Vá,Pico,saiadaqui–disseVitale.–CorraatéSignoreAntonioedigaaelequeeujáestouindo.–Comtodaagratidãodomundo,ohomemsaiucorrendodelá.Vitaleolhouparamim.–Euteofereceriacomidaebebida,masnãohánadaaqui.Osserviçaisfugiram.Todos,excetoPico.Picomorreriapormim.Talvezelepensequesejaissoexatamenteoqueestáparaacontecer.

–Ofantasma–eulembreiaele.–Vocêdissequeeleapareceunanoiteemquevocêrezou.Issosignificoualgoparavocê.

Elefixouosolhosemmimcomseriedadeporummomento.–Eutenhoaimpressãodequeoconheçodesdesempre–disseele.–Sintoque

possolhecontarossegredosmaisprofundosdeminhaalma.–Vocêpode–a rmei.–MasseéquedevemosverNiccolòdaquiapouco,você

terádefalarrapidamente.Elecontinuouolhando xamenteparamim,eseusolhosescurospossuíamum

fogoqueeuacheideverasfascinante.Seurostoestavarepletodeanimação,comoseelenãoconseguissedisfarçarnenhumaemoção,mesmoquequisesse,epareciaestarprestesairromperaqualquermomentocomalgumaselvagemexplicação,mas,emvezdisso,ficouquietoecomeçouafalaremvozbaixa.

–O fantasma sempre esteve aqui, esse é omeu temor.Ele estava aqui e estaráaquidepoisqueformosforçadosasair.Acasaestevefechadaporvinteanos.SignoreAntonio me contou que há muito tempo ele a deixou para um dos primeiroseruditos judeus com quem conviveu. Ele não diz mais nada acerca do homem,excetoqueviveuaquiduranteumaépoca.Agora,elequeracasaparaNiccolòesuanoiva, e eu devo permaneçer aqui na função de secretário de Niccolò, e médicoquandonecessário,epossivelmentetutordeseus lhosquandoestesnascerem.Eraumesquemacheiodefelicidade,esse.

–ENiccolòaindanãoestavadoente.–Ah,não,longedisso.Niccolòestavaótimo.Niccolòesperavaansiosamenteseu

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casamentocomLeticia.EleeLodovico, seu irmão,estavamfazendováriosplanos.Não,nadaderuimhaviaacontecidoaNiccolò.

–Eentãovocêrezounaquelaprimeiranoiteeofantasmacomeçouateperturbar.–Sim.Vejabem,euacheiasalanoandardecimaondeeraasinagoga.Acheia

Arca e,nela, os antigosmanuscritosdaTorá.Elespertenceramàquele eruditoqueAntoniodeixaramoraraquimuitotempoatrás.Eumeajoelheierezei,etemohaverrezadoporcoisassobreasquaisnãotinhanenhumdireitoderezar.

–Conte-me.–Rezeiporfama–disseelecomumavozinhamiúda.–Rezeiporriqueza.Rezei

por reconhecimento.Rezei para que, de algummodo, eume tornasse um grandemédico em Roma, e para que me tornasse um erudito destacado para SignoreAntonio,quemsabetraduzindotextosparaelequeninguémaindahaviadescobertooutornadodisponíveis.

–Issomepareceumconjuntodeprecesabsolutamentehumano–eudisse–,que,tendoemvistaosseustalentos,soabastantecompreensível.

Eleolhouparamimcomumagratidãodecortarocoração.–Vejabem,eutenhomuitostalentos–disseelehumildemente.–Eutenhoum

talentoparaaescritaeparaaleituraquepoderiamemanterocupadodurantetodosos dias.Mas também tenho talento para amedicina, uma habilidade para tocar amãodeumhomemesaberoquehádeerradocomele.

–Então,poracaso,eraerradorezarparaqueessestalentosflorescessem?Elesorriuebalançouacabeça.–Vocêpode tervindopara tocar alaúdeparaomeuamigo–disse ele–,mas,

nesse exatomomento, você estámedandomais confortodoque amúsica jamaispoderia dar.A questão é a seguinte: naquelamesmanoite, o fantasma começou aproduzir seus ruídos, suas pisadas, a atirar coisas no chão.Os distúrbios ocorriamlogodepoisdaminhaprecee,todasasvezesdepoisdeeledespedaçaresseestúdio–ecreia-me, ele consegue fazer os tinteiros voarempelos ares –, ele se retirava para oporão.Eleseretiravaebatiaospunhoscontraoassoalhodoporão.

– Meu amigo, esse fantasma pode não ter nada a ver com suas preces. Agoraprossiga.OqueaconteceucomNiccolò?

–Bom,porvoltadessaépocaNiccolòsofreuumaquedadecavalo.Nãofoinadaquelhetrouxessemaioresconsequências,eaferidasarouinstantaneamente.Niccolòémaisfortedoqueeu.Mas,desdeentão,elesótemdecaído.Suatez coupálida.Eletremee,eutedigo,acadadiaestápioreacoisaestácorroendosuamente,essa

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enfermidade,essaociosidade,esseestardeitadonacamasemnadamaisafazeranãoserobservarsuasprópriasmãostremerem.

–Aferidaestálimpa?Vocêtemcertezadisso?–Certezaabsoluta.Elenãotemfebredaferida.Eosrumores,osrumoresestãose

espalhando agora, como sempre acontece, que eu, seu médico judeu, o estouenvenenando!Ah,graçasaDeusqueSignoreAntonioacreditaemmim.

– Isso éumperigo terrível, ser acusadode envenenamento– eudisse.Eu sabiamuitobemdissoporestudarhistória.Ninguémprecisavamedizer.

–Ah,compreenda,eu tenhoaminha imunidadedeferidapelopróprioSignoreAntonio,tudoapropriadamenteassinado,paraqueeutrateopaciente,ea rmandoque eu serei pago, ele vivendo ou morrendo, e que nenhuma acusação pode serformalmente endereçada a mim. Essa é a praxe em Roma, e eu tenho a minhadispensadopapaparatratarcristãos.Eutenhoissoháanos.Soudispensadodeusaropanoamarelo.Tudoissoestáemordem.Minhapreocupaçãonãoéoqueacontecerácomigo.Minhapreocupaçãoéessefantasmaeomotivodeeleestaraqui.Eminhapreocupação é o que acontecerá com Niccolò. Eu amo Niccolò! Se não fosse ofantasma,eunãoestariasendoacusado.Emeusoutrospacientesnãoteriamsumido.Maseupoderiaviversemeles.Eupoderiaviversemtudoisso.SeaomenosNiccolòestivessebemdesaúde.SeaomenosNiccolòestivesserecuperado.Maseutenhodedescobrir por que esse fantasma estáme amaldiçoando e por que eu não consigocurarNiccolònaquele leitoonde ele se encontra, anãomaisdoque trintametrosdaquinessamesmacasa,enfraquecendocadavezmais.

–VamosverNiccolò.Podemosconversarsobreofantasmamaistarde.–Ah,sómaisumacoisaantesdeirmos.Eurezeicomorgulhonaquelaprimeira

noite.Euseiquefizisso.–Nós todos fazemos isso,meuamigo.Éorgulho,nãoé,pedir algumacoisa a

Deus? E, no entanto, Ele nos conclama a pedir. Ele nos conclama a pedir comoSalomãopediuporsabedoria.

Eleseafastouumpouco,eissopareceutê-lodeixadomaiscalmo.–ComoSalomãopediu– sussurrouele.–Sim,eu z isso.EudisseaEleque

queria ter todosessesmuitos talentos, talentosdoespírito,damenteedocoração.Masseráqueeutinhaodireitodefazerisso?

–Agoravamos–eudisse.–VamosverseuamigoNiccolò.Ele faz uma pausa como se estivesse ouvindo algum som distante. E nós dois

percebemosqueacasaestavaquieta,eassimestiveradurantealgumtempo.

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–Vocêachaqueodybbukestavaouvindo?–perguntouele.–Quemsabe–eudisse.–Seeleconsegueproduzirsom,entãotambémconsegue

ouvirsons.Nãopareceprovável?–Ah,queoSenhorteabençoe,euestoutãocontenteporvocêtervindo.Vamos

indo.Eleagarrouaminhamãocomambasassuas.Eleeraumhomempassional,um

homemvolátil,eeupercebioquantoeradiferenteemespíritodaquelesqueeuhaviavisitadoemminhaúltimaaventura,que,apesardetodaapaixãoquedemonstravamter,nãopossuíamosanguequentemediterrâneodeVitale.

–Vocêpercebequenãoseioseunome?–disseele.–Toby.Agoravamosveroseupaciente.Enquantotocoalaúde,podereiouvir,

observareversedefatoessehomemestásendoenvenenado.–Ah,masissonãoépossível.–Nãoestoudizendoporvocê,Vitale,estoudizendoporalgumaoutrapessoa.– Mas eu lhe digo,Toby, não existe ninguém que não o ame, ninguém que

poderiasuportarperdê-lo.Aíresideoabominávelmistério.Nósencontramosamesmamultidãonarua,masdessavezaosjudeushaviamse

juntadoalgunspassantesealgunsindivíduosdefeiçãomaistosca,eeunãogosteidaaparênciadeles.

Passamospelomeiodaturbasemfalarumapalavrasequere,enquantoseguíamosemmeioaoemaranhadodepessoasreunidasnaviela,Vitalesussurravaparamim:

–AscoisasestãoboasagoraparaosjudeusaquiemRoma–disseele.–Opapatemummédicojudeueeleémeuamigo,ehádemandaporeruditosjudeusemtodaparte.Euachoquetodocardealdeveterumeruditohebreuemsuaequipe.Masissopode mudar a qualquer momento. Se Niccolò morrer, que o Senhor tenhamisericórdia de mim. Com essedybbuk, eu serei acusado não apenas deenvenenamentocomotambémdebruxaria.

Assenti com a cabeça,mas estava principalmente tentandopassar pelomeio damultidão de passantes, vendedores ambulantes e mendigos. As casas de repasto etabernasadicionavamseusaromasefermentosàsruasestreitas.

Mas,emquestãodeminutos,nóshavíamoschegadoàcasadeSignoreAntonioefomosadmitidosdeimediatoatravésdosimensosportõesdeferro.

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E

CAPÍTULOSEIS

NTRAMOS IMEDIATAMENTE EM UM ENORME pátio,repletodeárvoresdispostasemvasosearranjadasaoacasoaoredordeumafonteresplandecente.

Ovelhohomemcurvadoecarcomidoquenosabriuoportãobalançavaacabeçaetinhaaaparênciaarrasada.

–Eleestápiorhoje,jovemMestre–disseele–,eeutemoporele.Seupaiestáaquiembaixoenãoseafastadacamadele.Eleestáàsuaesperaagora.

– Isso é bom,MestreAntonio saiu da cama, isso émuito bom– disseVitaleimediatamente. Eleme con denciou: –QuandoNiccolò sofre, Antonio sofre.Ohomemviveparaseus lhos.Eletemseuslivros,seuspapéis,seutrabalhoparamimotempotodo,mas,semosfilhos,nãohárealmentenadaparaele.

Juntos,nóssubimosumaimponenteescadariabemampla,dedegrausestreitosepedra polida. E então prosseguimos através de uma longa galeria. Havia objetosespetacularespenduradosemtodasasparedes,tapeçariasdeprincesascaminhandoaesmoejovensgalantesemcaçadas.Grandesseçõesestavampintadascombrilhantesafrescospastorais.Otrabalhomepareciatãore nadoquantosetivessesidofeitoporMichelangeloouporRafaele,atéondeeusabia,umapartedaquelasobrashaviasidofeitaporseusaprendizesoualunos.

Passamos para o interior de uma cadeia de antecâmaras, todas com piso demármore e carpetes persas e turcos espalhados.Magní cas cenas clássicas deninfasdançando em jardins paradisíacos adornavam as paredes nuas. Apenas uma mesalonga de madeira polida encontrava-se no centro de uma das salas. Não havianenhumoutromóvel.

Finalmente as portas duplas foram abertas para revelar um quarto vasto edecorado,totalmenteescurecidoanãoserpelaluzquenosacompanhava,eláestavadeitado Niccolò, obviamente, pálido e de olhos vívidos, com o corpo encostadonuma montanha de travesseiros de linho embaixo de um imenso baldaquim nascoresvermelhaedourada.

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Oscabeloslourosecheiosestavamemaranhadosnatestaúmida.Narealidade,elepareciaestartãofebriletãoinquieto,queeusentivontadedeexigirquealguémlhebanhasseimediatamenteorosto.

Também couabsolutamenteclaroparamimqueeleestavasendoenvenenado.Davaparadizer que sua visão estava embaçada eque suasmãos estavam trêmulas.Porummomento,elenosmirouatodoscomosenãoconseguissenosver.

Tiveadevastadorasensaçãodequeoveneno jáalcançaraumnível fatalemseusangue.Sentiumlevepânico.

Será queMalchiahme enviara até aqui para que eu conhecesse a amargura dofracasso?

Ao lado da cama, estava sentado um venerável cavalheiro num longo robe develudocordevinho,commeiaspretasemocassinsdecouroadornadocomjoias.ElepossuíaumavastacabeleirabrancaquaselustrosaeumbicodeviúvaquelhegarantiaumaconsideráveldistinçãoevibroudiantedavisãodeVitale.Masnãofalounada.

Naextremidadedacama,encontrava-seempéumhomemquepareciaestartãoprofundamente emocionado com tudo isso, que seus olhos estavammolhados delágrimas e suas mãos tremiam quase com a mesma intensidade que as mãos dopaciente.

Eupodiaverqueeletinhaumacertasemelhançacomovelhoecomojovemnacama, mas alguma coisa bastante diferente marcava sua aparência. Faltava a ele acabeleira,issoeraumacoisa,eeletambémpossuíaolhosazuismaioresebemmaisescurosdoqueosdosdoisoutroshomens.Alémdisso,enquantoovelhoexpressavasuapreocupaçãodeumamaneiradevotada,essejovempareciaestaràbeiradeterumcolapsonervoso.

Esplendidamente vestido em uma túnica com pespontos dourados e mangastalhadaserevestidascomseda,eletraziaumaespadanacintura,estavabembarbeadoetinhaoscabelospretoscurtoseencaracolados.

Tudoissoeupercebiquasequeimediatamente.Vitalebeijouoaneldocavalheirosentadoaoladodacamaedisseemvozbaixa:

–SignoreAntonio, cofelizemverqueosenhordesceu,emboratristeporsaberqueencontraseufilhoemtaiscondições.

–Diga-me,Vitale – perguntouo velho–, qual é o problema com ele?Comopode um ferimento simples provocado pela queda de um cavalo produzir umacondiçãotãodeplorávelquantoessa?

–Issoéoquetenhoaintençãodedescobrir,Signore–disseVitale.–Eulhedou

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meucoraçãocomogarantia.–Vocêumavezmecurouquandotodososmédicos italianosmehaviamdado

comomorto–disseSignoreAntonio.–Euseiquevocêpodecuraromeufilho.Ojovemnaextremidadedacamaficouaindamaisagitado.–Pai, embora sejadoloroso,paramim,dizer isso, émelhornósescutarmosos

outrosmédicos.Euestouextremamente temeroso.Meu irmãodeitadoaquinãoémeuirmão.–Aslágrimasescorreramporseusolhos.

–Sim,essadietadecaviareuaceito,Lodovico–disseopacienteparaojovem.–Mas,pai,eutenhototalcon ançaemVitaledamesmamaneiracomqueosenhorsempreconfiounele,e,seeunãoficarcurado,éporqueassiméavontadedeDeus.

Ele estreitou os olhos ao olhar para mim. Estava confuso diante da minhapresença,ecadapalavraquediziaeraumesforço.

–Dietadecaviar?–perguntouopai.–Eunãocompreendo.–Paraquemeuirmãocomacaviarporcausadesuapureza–disseLodovico,o

jovem–,eparaqueelecomaissotrêsvezesaodiaemaisnenhumaoutracomida.Euestivecomosmédicosdopapaparameaconselharacercadisso.Sóestoufazendooqueelesmedisseramquedeveriaserfeito.Eleestáseguindoessadietaagoradesdeaqueda.

–Porqueninguémmecomunicouisso?–perguntouVitale,olhandoderelanceparamimenquantofalavae,emseguida,paraLodovico.–Caviarenadamais?Vocênãoestásatisfeitocomacomidaqueeurecomendei?

EuviaraivabrilharnosolhosdeLodovicoporuminstanteeentãodesaparecerdeimediato.Aparentementeeleestavaperturbadodemaisparasesentirinsultado.

–Meuirmãonãoestavasedandobemcomaquelacomida–disseelecomummeiosorrisoquesumiurapidamente.–OSantoPadreempessoamandouocaviar–prosseguiuelepacientementecomaexplicaçãoaseupai,expressandoumacon ançaquase terna. – Seu predecessor acreditava piamente nisso. E viveu bem e comdisposição,eoalimentolhedavaforças.

–SemquererinsultarSuaSantidade,demaneiranenhuma–disseVitalemaisdoquerapidamente–,eémuitabondadedapartedeleenviarocaviar,evidentemente.Maseununcaouvinadatãoestranho.

Ele lançouumolharbastante signi cativonaminhadireção,maseuduvidodequequalquerumdospresentestenhanotado.

Niccolòtentousentar-seapoiadonoscotoveloseentãovoltouàposiçãooriginal,fracodemais,masaindadeterminadoafalar.

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–Eunãomeimportocomisso,Vitale.Ogostoéatébom,eparecequeeunãoconsigosentirosabordemaisnada.–Elesuspiravamuitomaisdoquefalavaeentãomurmurou: –Contudo, queima osmeus olhos.Mas eu acho que provavelmentequalqueroutracomidafariaamesmacoisa.

Queimaosmeusolhos.Minhamenteestavaponderandoaspalavrascomumacertainquietude.Ninguém

tinha amenor noção, é claro, de que eu era um homem que produzira venenos,venenos disfarçados, e sabia muito bem como administrá-los. E, se havia algumalimento que podia mascarar um veneno, este era, pura e simplesmente, o caviarpreto, porque nele é possível misturar praticamente qualquer coisa que exista nomundo.

–Vitale–perguntouopaciente–,queméessehomemqueveiocomvocê?–Elelevantou os olhos para mim. – Por que você está aqui? – Era uma luta para eleconseguirfazercomqueessaspalavraspudessemsairdesuaboca.

E nalmente,parameugrandealívio,umaserviçalapareceucomumabaciacomáguaeaplicouumpanofrioemsuacabeça.Elaenxugouumpoucodosuordorostodele. Ele cou irritado com isso e fez um gesto para que parasse, mas o velhoorientou-aacontinuar.

–Eu trouxe essehomemaquipara tocar alaúdepara você– explicouVitale. –Você sabe comoamúsica sempre te acalmou.Ele vai tocar suavemente,nadaquepossadeixá-loagitado.

–Ah,sim–disseNiccolò,recostando-sedevoltanotravesseiro.–Issoémuitagentilezasua,comcerteza.

–Osboatosnas ruasdizemque você contratou essehomempara tocarpara odemônioemsuacasa–disseLodovicoderepente.Novamenteeledeuaimpressãodeestarprestes a chorar.–Foi issooquevocê fez?Eagoramente, fala sobre issocomosefosseumestratagema?

Vitaleficouchocado.–Lodovico,pare–disseopai.–Nãoexistenenhumdemônionaquelacasa.E

jamaiseuouvivocêfalarcomVitaledessamaneira.Esseéohomemquemetrouxede volta a saúde quando todos os médicos de Pádua, onde existem de fato maismédicosdoqueemqualqueroutrapartedaItália,mehaviamdadocomomorto.

–Ah,mas,pai,existeumespíritodomalnaquelacasa–disseLodovico.–Todososjudeussabemdisso.Elestêmumnomeparaele.

–Dybbuk –disseVitale, como ar cansado e ligeiramentedesprovidodemedo

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paraumhomemquetinhaumfantasmaemcasa.–Essehomemtemsidoperseguidoporessedybbukdesdequevocêlheentregou

as chaves– continuouLodovico.–E, logodepoisdessedybbuk passar a residir nacasaecomeçaraquebrarjanelasnacaladadanoite,ashabilidadesmédicasdeVitalecomeçaramasedesintegrardiantedenossosprópriosolhos.

– Desintegrar? – Vitale estava perplexo. – Quem está dizendo que as minhashabilidadessedesintegraram?Lodovico, issoéumamentira!–Eleestavaofendido,confuso.

–Masospacientesjudeusnãoaparecemmais,aparecem?–perguntouLodovico.Subitamente elemudoude tom.–Vitale,meuamigo,pelo amordomeu irmão,digaaverdade.

Vitale estava entravado.MasNiccolò só olhava para ele com con ança e comamor,eovelhoestavapensativoesemagilidadeparadizeroquequerquefosse.

–Os judeusmedisseram isso elespróprios–disseLodovico.–Três vezes elestentaramtiraressedybbukdesuacasa.Essedybbukestáemseuestúdio,nasalaondevocêguardaseusremédios,essedybbukestáemtodososcantosdesuacasaetalvezemtodososcantosdesuamente!

Ojovemestavaentrandoemfrenesi.–Não,vocênãodevedizertaiscoisas–disseNiccolòemvozalta.Emvão,ele

tentounovamenteseerguersobreoscotovelos.–Aminhadoençanãofoicausadaporele.Vocêachaquetodohomemqueaparececomfebreemorreemvirtudedelaéporqueexisteumdemônionumacasanamesmarua?Parededizeressascoisas.

–Calma,meu lho,calma–disseovelho.Elecolocouasmãosno lhoetentouforçá-loaserecostarnotravesseiro.–Elembrem-se,meus lhos,acasaemquestãoéminha. Portanto, o demônio, ou odybbuk como os judeus o chamam, devecertamentepertenceramim.Eudevoiratéacasaeconfrontaresseespíritofantásticoque desbarata exorcistas não só judeus como também romanos. Eu devo ver esseespíritocommeusprópriosolhos.

– Pai, eu te imploro, não faça isso! – disse Lodovico. – Vitale não está teinformandoacercadaviolênciadesseespírito.Todomédicojudeuqueveioaquinosinformou.Elelançacoisasnoarequebraoutrastantas.Elebateospés.

–Ah,tolices–disseopai.–Euacreditoemdoençaseacreditoemcurasparaelas.Mas em espíritos? Espíritos que lançam coisas? Isso eu terei de ver com meusprópriosolhos.Paramim,ésuficientequeVitaleestejaaquicomNiccolò.

–Sim,pai–disseNiccolò–,e issotambémésu cienteparamim.Lodovico,

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vocêsempreamouVitale–disseeleparaoirmão–,assimcomoeu.NóstrêssomosamigosdesdeMontpellier.Pai,nãoouçaessascoisas.

–Nãoestououvindo,meu lho–disseopai,masesteestavaagoraobservandocuidadosamenteo lho,porque,quantomaiseleprotestava,maisdoenteaparentavaestar.

Lodovicoajoelhou-seaoladodacamaechoroucomatestanobraçodoirmão.– Niccolò, eu faria qualquer coisa que estivesse em meu poder para ver você

curadodessacoisa–disseele,emborafossedifícilentendê-loemmeioàslágrimas.–Eu amo Vitale. Sempre amei. Mas os outros médicos estão dizendo que ele estáenfeitiçado.

–Pare,Lodovico–disse opai. –Você está alarmando seu irmão.Vitale, olheparaomeufilho.Examine-onovamente.Éparaissoquevocêestáaqui.

Vitale estava observando tudo isso atentamente, assim como eu. Eu nãoconseguia detectar o veneno a partir de nenhum cheiro no recinto, mas isso nãosigni cavacoisaalguma.Euconhecia inúmerosvenenosque,misturadosaocaviar,fariamotruque.Umacoisaestavaclara,entretanto.Opacienteaindacontavacomumaforçaconsiderável.

– Vitale, sente-se comigo – disse o paciente. – Fique comigo hoje.Os piorespensamentos têm surgido em minha mente. Eu vejo a mim mesmo morto eenterrado.

–Nãodigaisso,meufilho–disseopai.Lodovicoestavaalémdequalquerconsolo.–Irmão,eunãoseioquesigni caavidasemvocê–disseelecomternura.–Não

mefaçacontemplaressarealidade.Aprimeiracoisadequeeumelembroédevocêempéaoladodemeuberço.Paramim,assimcomoparanossopai,vocêprecisaserecuperar.

–Todosvocês,saiam,porfavor–disseVitale.–Signore,con eemmimcomosemprecon ou.Euqueroexaminaropaciente,evocê,Toby,assumaseulugarali–disse ele, apontando para a extremidade da cama – e toque suavemente paraapascentarosnervosdeNiccolò.

–Sim,issoébom–disseopaielevantou-seefezumgestoparaqueohomemmaisjovemsaísse.

Ohomemmaisjovemnãoqueriafazerisso.– Olhe, ele mal tocou a última porção de caviar que deram para ele – disse

Lodovico.Eleapontouparaumapequenabandejadepratanamesinhadecabeceira.

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Ocaviar estava disposto emumpequenino prato de vidro no interior da bandejajuntocomumadelicadacolherinhadeprata.Lodovicoencheuacolherelevou-aaoslábiosdeNiccolò.

–Não,nãoqueromais.Eutedigo,issoqueimaosmeusolhos.–Ah,vamoslá,vocêprecisacomer–disseoirmão.–Não,nãoqueromais,eunãosuportonadaagora–disseNiccolò.Então,como

separaaquietaro irmão,elepegouacolhereengoliuocaviare,de imediato, seusolhoscomeçaramaficarvermelhosealacrimejar.

Maisumavez,Vitalepediuparaquetodossaíssem.Elefezumgestoparaqueeume sentasse no canto, onde uma imensa cadeira preta fantasticamente entalhadabrilhavacomoseestivesseesperandoparamedevorar.

–Euquero caraqui–disseLodovico.–Vocêdeviamepedirpara caraqui,Vitale.Sevocêforacusado...

–Tolice – disse o pai e, pegando o lho pela mão, conduziu-o para fora dorecinto.

Eumesenteiconfortavelmentenaquela imensacadeira,umverdadeiromonstrocomexuberantesgarraspretasealmofadasvermelhasnascostasenoassento.Retireiasluvas,deslizei-asparatrásdomeucintoecomeceiaafinaroalaúdecomomáximodesuavidadepossível.Efoiumabeleza.Masoutrospensamentosestavamtocandoemminhamente.

O paciente não havia sido envenenado antes do aparecimento dodybbuk.Certamenteoenvenenadorestavaaqui,nessacasa,eeuestavabastantecertodequeeraoirmão,queestavatirandovantagemdaapariçãodofantasma.Euduvidavadeque o envenenador fosse inteligente o su ciente para produzir um fantasma. Narealidade,eutinhacertezadequeoenvenenadornãoproduziraofantasma.Maseleerainteligenteosu cienteparacomeçarseutrabalhomalévoloporcausadaapariçãodeumfantasma.

Comecei a tocar uma das mais antigas melodias que conhecia, uma pequenadança baseada em algumas variações harmônicas básicas, e mantive a execução damúsicanotommaisdelicadopossível.

Comoera inevitável,umpensamento se apoderoudemim.O fatode eu estarrealmentetocandoumexcelentealaúdenomesmoperíodoemqueoinstrumentosetornara amplamente popular. Eu estava namesma época emque ele talvez tivesseatingidooápicedesuamusicalidadeeforçaestética.Masnãohaviatempoparaeumedeliciarcomessetipodecoisa,muitomenosparaquemedirigisseàBasílicade

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SãoPedroparaverpormimmesmosuaconstrução.Euestavapensandonoenvenenadoreemcomonósestávamoscomsorteporele

terescolhidopararporumtempo.Quanto aomistério dodybbuk, isso teriadeesperarpela resoluçãodomistério,

porqueclaramenteoenvenenador,emborapaciente,nãonecessitavademuitomaistempoparaalcançaroqueplanejaraobter.

Euestavadedilhandolentamente,quandoVitalefezumgestodelicadoparaqueeuparasse.

Eleestavasegurandoamãodeseupaciente,ouvindosuapulsação,eagoraelesecurvaracommuitadesenvolturaepuseraoouvidojuntoaopeitodeNiccolò.

ColocouambasasmãosnacabeçadeNiccolòeolhouemseusolhos.EupodiaverNiccolòtremendo.Ohomemnãoconseguiasecontrolar.

–Vitale–sussurrouele,pensandoquetalvezeunãopudesseouvi-lo.–Eunãoqueromorrer.

–Eunãovoudeixarvocêmorrer,meuamigo–disseVitaledesesperadamente.Ele agora estava afastando a roupa de cama para examinar os tornozelos e pés dopaciente.Verdade,haviaumamanchaantigaesemcornaalturadotornozelo,masnão era motivo para alarme. O paciente conseguia mover os membrossu cientemente bem, embora estivessem trêmulos. Isso podia signi car diversostiposdevenenosatacandoosistemanervoso.Masquais?Ecomoeupoderiaprovarquemestavafazendoissoecomo?

Ouviumsomnapassagem.Eraosomdeumhomemchorando.Eusabiapeloprópriosomquetratava-sedeLodovico.

Levantei-me.–Euvou falar como seu irmão, se vocêmepermitir– eudisse suavemente a

Niccolò.–Console-o–disseNiccolò.–Digaaelequenadadissoéculpadele.Ocaviar

meajudou.Elenutretantasesperançasemrelaçãoaisso.Nãopermitaquesintaqueaculpaédele.

Encontrei Lodovico em estado lastimável na antecâmara, parecendo perdido econfuso.

–Possofalarcomvocê?–pergunteicomdelicadeza.–Enquantoeledescansa,ouéexaminado.Possoconfortá-lodealgumamaneira?

Eu sentiaum fortedesejode fazer issoquando,naverdade,no rumoatualdascoisas,issoeraalgoqueeunãoteriafeitoemhipótesealguma.

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Entretanto, ele olhou para mim naquele momento como um dos seres maissolitáriosque eu jamais avistei emminhavida.Parecia existir empuro isolamentoenquantochorava,mirandoaportadoquartodoirmão.

–Eleéomotivopeloqualmeupaimeaceitou–disseelebaixinho.–Porqueestou lhedizendo isso?Porque eudevodizer a alguém.Eudevodizer a alguémoquantoeumeencontroperturbado.

– Venha, existe algum lugar onde possamos conversar em paz? É tão difícilquandoaquelesqueamamosestãosofrendo.

Euoseguipelaamplaescadariadopalazzoemdireçãoaointeriordeumgrandepátio,e,emseguida,paraointeriordemaisumpátiofechadoporportõesequeeratotalmentediferentedoanterior,jáquerepletodeflorestropicais.

Sentiospelosdanucaeriçando-se.Uma boa quantidade de luz vazava para o interior da área, embora opalazzo

devesseterquatroandares,eaáreaeranaturalmenteprotegidadevidoaseutamanhomenor.Atemperaturaeraextremamenteagradável.

Eu podia ver laranjeiras e limoeiros, e ores púrpuras e orações brancas elustrosas. Algumas delas eu conhecia e algumas, não. Mas, se aqui nessa sala nãohouvesseplantasvenenosas,entãominhamãehaviacriadoumimbecil.

No centro do pátio, onde as faixas de luz do sol produziamuma suave e belaluminosidade,encontrava-seumaimprovisadamesadeescreverdepernascruzadaseduascadeirasaolado.Haviaumdecantadordevinhoedoiscopos.

Eohomemdesalentado,movendo-sequasecomoseestivessenointeriordeumsonho,pegouodecantador,encheuocopoesorveuoconteúdo.

Sóentãopensouemoferecer-meabebida,eeudeclinei.Ele parecia exausto e esvaziado de tanto chorar.O fato de estar genuinamente

arrasado era indubitável.Na verdade, ele estava atormentado, e eu imaginava se otormentonãoseriaporque,emsuamenteecoração,seuirmãojáestariamorto.

–Sente-seali,porfavor–disse-meeleeentãodesabouemsuamesadeescrever,permitindoqueummaçointeirodepapéiscaíssenochão.

Atrásdele, emumgrande vaso, cresciauma árvore esguia ede folhas lustrosas,árvore esta que nãome era de todo desconhecida.Novamente os pelos deminhanuca e de meus braços eriçaram-se. Eu conhecia as ores púrpuras que cobriamaquelaárvore.Etambémconheciaasdiminutas sementespretasqueeramdeixadasquandoas orescaíam,comoalgumasdelasjáhaviamfeitoemcimadaterraúmidadovaso.

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Recolhiabagunçadepapéiseosrecoloqueinaescrivaninha.Coloqueimeualaúdeaoladodacadeira.

O homem parecia atônito enquanto observava isso e então curvou-se sobre oscotovelosechoroulágrimasasmaisgenuínas.

–Eunãopossuograndestalentosparaapoesia,e,noentanto,soupoetapormefaltaremalternativas–disse-meele.–Viajeipelomundo,e tivemuitoprazercomisso;não,talveztodooprazertenhasidoescreverparaNiccolòemeencontrarcomele se equandoeleviesseatémim.Eagoraeu tenhodepensarnovastoe imensomundo, o mundo pelo qual viajei, sem ele. E, quando penso nisso, não existemundo.

Eu olhei atrás dele para a terra no vaso. Estava coberta de sementes pretas.Qualquer uma dessas poderia ser mortífera para uma criança. Várias delas,cuidadosamentepicadas, seriammortíferasparaumhomemadulto.Umapequenaporção dada regularmente no caviar, perfeição das perfeições, poderia adoentar ohomemlentamenteeaproximá-lodamorteacadadoseingerida.

Ogostodassementeserahorrível,comocostumasercomdiversosvenenos.Mas,sealgumacoisapoderiaescondê-lo,essacoisaeraocaviar.

–Eunãoseiporqueestoucontandoessascoisasparavocê–disseLodovico–,todaviavocêmeparecegentil,pareceotipodehomemqueenxergadentrodaalmadeumaoutrapessoa.–Elesuspirou.–Vocêpercebecomoumhomempodeamarseu irmão insuportavelmente. Como um homem pode considerar-se um covardequandoconfrontadopelafraquezaeamortedoirmão.

–Euquerocompreender–eudisse.–Quantosfilhospossuiseupai?–Nóssomosseusúnicosfilhos,evocênãoimaginaoquantoelemedesprezaráse

Niccolò partir? Ah, ele me ama agora, mas como me desprezará se eu for osobrevivente. Foi unicamente por causa deNiccolò que eleme trouxe da casa daminhamãe.Nós não precisamos falar sobreminhamãe.Eununca falo sobre ela.Vocêpode entendermuitobem.Meupai não tinhanenhumaqueixa reconhecidacontraela.MasNiccolòmeamou,meamoudesdeoprimeiromomentoemquebrincamosjuntose,umbelodia,euetudooqueeupossuía,fomospegoselevadosdo bordel no qual vivíamos e trazidos para cá, para essamesma casa.Minhamãerecebeuumpunhadodegemasedeouropormim.Elachorou.Eupossodizerissoporela.Elachorou.“Masissoéporvocê”,disseela.“Você,meupequenopríncipe,seráagoralevadoaocastelodeseussonhos.”

–Certamente,elaestavasendosincera.Eovelho.Elepareceamá-lomuito,tanto

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quantoaseuirmão.–Ah,sim,ehouvemomentosemqueelemeamouaindamais.NiccolòeVitale,

quetratanteselespodemserquandoestãojuntos.Eutedigo,nãohámuitadiferençaentreum judeueumgentionoquediz respeitoaogostopela libertinagemepelabebedeira,pelomenosnãootempotodo.

–Vocêéobommenino,nãoé?–perguntei.– Eu tentei ser. Com meu pai, eu viajei pelo mundo. Ele não permitia que

Niccolòseafastassedauniversidade.Ah,eupoderialhecontarhistóriasdasvastidõesda América, das vastidões dos portos portugueses e de selvagens tais que você sópoderiaimaginar.

–MasvocêvoltouparaPádua.–Ah,elequeriaqueeuestudasse.E,naépoca,issosigni cavaauniversidadepara

mim,assimcomoparameuirmão,maseununcaconseguialcançá-losnosestudos,Vitale,Niccolò,nenhumdeles.Elesmeajudavam.Elessempremedeixaramdebaixodesuasasas.

–Entãovocêteveseupaiparavocêduranteaquelesanos–eudisse.–Sim–disseele.Aslágrimasagoraestavamcongeladas,nãomaisescorriampor

seurosto.–Sim,evocêdeviatervistocomoeleabraçourapidamentemeuamadoirmão.Ora,vocêimaginariaqueeletivessemedeixadonasselvasdoBrasil.

–Aquelaplantaali,aquelaárvore–eudisse.–ElavemdasselvasdoBrasil.Eleolhou xamenteparamimeentãosevirouepareceumiraraplantacomose

jamaisahouvessevistoantes.– Pode ser – disse ele. – Eu não me lembro. Nós trouxemos para cá muitas

mudas emuitos cortesdemadeira.Flores, vejabem, ele as ama emprofusão.Eleamaasárvoresfrutíferasquevocêpodever orescendoaqui.Elechamaesselocaldesuaestufa.Éojardimdele,narealidade.Eusóvenhoaquidevezemquandoparaescrevermeuspoemas,comovocêpodever.

Nãohaviamaisnenhumsinaldelágrimas.–Comovocêpoderiaconheceraquelaplantasódeolharparaela?–perguntou.–Hum,eujáaviemoutroslocais–aventurei-meadizer.–Euaviinclusiveno

Brasil.O rostodelemudoude tome agorapareciahaver calculadamente suavizado as

feiçõesenquantoolhavaparamim.–Euentendosuapreocupaçãocomseuirmão,mastalvezeleserecupere.Ainda

hámuitaforçanele.

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–Sim,eentãotalvezosplanosdemeupaiparaelepossamcomeçarseriamente.Excetopelofatodequeexisteumdemônioentreeleeessestaisplanos.

–Eunãoestouseguindoasualinhaderaciocínio.Certamentevocênãoimaginaqueseuirmão...

–Ah,não–disse ele friamente, suas lágrimas já secas.–Nadanesse sentido.–Entãoeleexpressounovamenteaquelaaparênciaperplexaepreocupada,ergueuumasobrancelha e sorriu como se estivesse perdido em meio aos mais recônditospensamentos.

–Essedemôniorepresentaumobstáculoparameupai,deummodoquevocênão tem condições de ter percebido. Permita-me contar-lhe uma pequena históriasobremeupai.

–Porfavor,prossiga.–Bondoso ele é, e durante todos esses anosmanteve-me a seu lado comoum

macacoamestrado,debarcoembarco,seuadoradobichinhodeestimação.–Essesforamtemposfelizes?–Ah,bastante.–Masmeninostornam-sehomens–interpus.– Sim, precisamente, e homens possuem desejos, e homens podem sentir um

amortãopenetrantecomoseumaadagafurasseseucoração.–Vocêsentiuumamorsemelhante?–Ah,sim,eporumamulherperfeita,umamulherquenãotinhamotivospara

olharparamimdecimaabaixo,nascidanoberçoemquenasceu,a lhasecretadeumricopadre.Eunãoprecisolhecontaronomedeleparaquevocêidenti queosos condutores deminha narrativa. Só preciso dizer que, assim que pus os olhos

nela,nãohaviamundoanãoseromundonoqualelaexistia,nãohavialugarparaondeeudesejassemedirigiramenosqueelaestivesseaomeulado.–Elemaisumavezolhoufixamenteparamim.–Quesonhomaisfantásticofoiaquele!

–Vocêaamaeadeseja–eudisseparalisonjeá-lo.– Sim, e riqueza eu tenho, proveniente da generosidade e da afeição cada vez

maiores demeu pai, abundantemente em caráter privado e ainda na presença dosoutros.

–Aoqueparece.–Noentanto,quandopropusaeleonomedela,querumovocêimaginaquea

açãotomourepentinamente?Ah,euimaginoqueeunãotenhavisto isso.Imaginoquenãotenhacompreendido.Filhadeumpadre,sim,masnãoumpadrequalquer,

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umcardealmuitobemposicionadocommuitas lhas ricas.Comoposso ter sidotãotoloapontodenãoatervistocomoajoiadacoroadestinadaaseuprimogênito?

Eleparou.Olhoufixamenteparamim.– Eu não sei quem você é – disse ele, devaneando. – Por que eu estou lhe

contandoamaisnefastaderrotademinhavida?– Porque eu tenho condições de entendê-la – respondi. – Ele lhe disse que a

mulhereraparaNiccolò,nãoparavocê.Orostodele couduroequasemaligno.Todasassuaslinhas,queummomento

antes pareciam prenhes de pesar e preocupação, agora estavam endurecidas numaassustadora máscara de frieza, e dariam essa impressão a quem quer que o vissenaquelascondições.

Eleergueuassobrancelhasedesviouosolhosdemimfriamente.– Sim, para Niccolò, minha amada Leticia fora designada. Por que eu não

souberaqueasconversasjáhaviamcomeçadonessesentido?Porqueeunãoforaatéelemaiscedo,antesdeempenharminhaprópriaalma?Ah,eleerabondosocomigo.–Eledeuumsorrisodeaço.–Elemepegouemseusbraços.Eleseguroumeurostoentre as mãos. Seu bebezinho ainda. Seu pequenino. “Meu pequeno Lodovico.Existemmuitasmulheresbelasnomundo.”Foiissooqueeledisse.

–Issoodeixouenfurecido–comenteicalmamente.– Enfurecido? Enfurecido? Isso trituroumeu coração como se não passasse de

alimentoparaabutres.Foiassimqueeu queidepoisdisso.Equecasa,dentretodasasvillasecasasqueelepossuiemRoma,vocêachaqueeleescolheuparadaraofelizcasal quando o casamento fosse realizado? – Ele riu gelida e, em seguida,irresistivelmente,comosefossealgoengraçado.–AmesmacasaquedeixouparaqueVitalepreparasseparaeles,paraqueelearejasse,mobiliasse,equeagoraéolardeumbarulhentoemalignodybbukjudeu!

Elemudaratãocompletamente,queeunãooteriaidenti cadocomoohomemque estivera chorando no corredor. Mas cou novamente envolto naquelanebulosidade, duro como as linhas de seu rosto haviam permanecido.Olhou porcima demim para as árvoresmescladas e as ores no pátio. Ergueu, inclusive, osolhoscomoseestivessemaravilhadodiantedoserrantesraiosdesol.

–Certamenteseupaicompreendeuaferidaqueinfligiuavocê.–Ah,sim–disseele.–Eexisteumaoutramulherdeimensariquezaedistinção,

à espera atrás da inevitável cortina, para fazer sua aparição no palco. Ela será umaótimaesposaparamim,embora eunão tenha trocado sequerquatropalavras com

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ela.EaminhaadoradaLeticiasetornaráminhadevotadairmãquandomeuirmãoselevantardaqueleleito.

–Nãoédeseestranharoseuchoro–comentei.–Porquevocêafirmaisso?–Porquesuaalmaestádespedaçada–eudisse.Edeideombros.–Comovocê

podenãoacompanharaenfermidadedeseuirmãosemessespensamentos...– Eu jamais desejaria a morte dele! – declarou. Ele bateu com o punho na

escrivaninha.Penseiqueelafosserachareceder,masissonãoocorreu.–Ninguémseempenhou tanto para salvá-lo quanto eu. Eu trouxe os médicos um a um paraexaminá-lo.Eumandeibuscarocaviarqueéaúnicacoisaqueeleaguentacomer.

De repente, as velhas lágrimas retornaram e com elas uma dor profunda eexaustiva.

–Eu amomeu irmão– sussurrou ele. –Euo amonessemundomaisdoquequalqueroutroservivoqueeujátenhaamadoatéhoje,mesmoaquelamulher.Maseulhedigoquehouveumdiaemquemeupaimelevouparapercorreraquelacasavazia,enquantoVitaleeNiccolòestavamemPáduabebendoeseembriagando,semdúvida nenhuma, um dia em que meu pai me levou até aquele lugar e nóspercorremossalaapóssalaparaqueelememostrasseoquantoela cariabelae,sim,atémesmoacâmaranupcialparaqueeuvissecomo caria lindaparaeles,ecomoissoecomoaquilo!–Eleparou.

–Elenãoestavacientenaquelemomento.–Não.Erasegredo,onomedamulhertãocuidadosamenteescolhido.Eeufuio

primeiroamencionaronomedelanessespoemasqueescreviparaelaeosquaiseufuitoloosuficiente,toloosuficiente,eutedigo,pararevelaraele!

–Coisascruéis,terrivelmentecruéis.– Sim – disse ele –, e coisas cruéis produzem homens cruéis. – Ele desabou

novamentenacadeiraemanteveosolhos xosdiantedesi,comosenãosoubesseosignificadodesuaprópriahistória,ouoqueelapossivelmentesignificariaparamim.

–Perdoe-meporlhetercausadotamanhador–eudisse.–Não,nãoénecessárioperdão.Adorestavaemmimeadorsairiademim.Eu

temoamortedele.Estouaterrorizadocomisso.Estouaterrorizadocomomundosem ele. Estou aterrorizado commeu pai sem ele. Estou aterrorizado comLeticiasemele,porqueelajamais,jamaismeserádada.

Eunãoestavamuitocertosobrecomoavaliaraquelanarrativa,excetopelofatodequeeleestavasendosincero.

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–EudevovoltarparaVitale–eudisse.–Elemetrouxeatéaquiparatocarparaseuirmão.

– Sim, é claro.Mas primeirome diga. Essa árvore... – Ele girou na cadeira elevantou os olhos para a esguia forma de folhas verdes. Olhou para as oraçõespúrpuras.–VocêsabecomoeleschamavamessaárvorenasselvasdoBrasil?

Penseiporummomentoeentãodisse:–Não.Eusómelembrodetê-lavistolá,emelembrodesua oraçãoedecomo

eramfragrantesebelas.Imaginoqueumatinturapossaserfeitaapartirde oraçõestãopúrpuras.

Alguma coisa mudou em seu rosto. Ele adquiriu uma expressão calculista,ligeiramentefria.Eupoderiajurarquesuabocarevelouumcontornodedureza.

Segui falando como se não houvesse notado isso, mas estava começando adesgostarintensamentedessehomem.

–Essas oraçõesmefazempensaremametistas,eexistemametistastãolindasnoBrasil.

Eleficouemsilêncio,seusolhosestreitando-secadavezmaisligeiramente.Eunão conseguia suportar a sensaçãodedesprezo ededescon ançaque crescia

dentrodemim.Certamenteeunãohavia sido trazidoatéaquipara julgarouparaodiar,masmeramenteparaimpedirqueohomemláemcimafosseenvenenado.

Eumelevantei.–TenhodevoltarparaVitale–repeti.–Você foi gentil comigo–disse ele,mas,quando sorriu, apenas seus lábios se

moveram,eeraumacenafrancamentehedionda.–Éumapenavocêserjudeu.Um calafrio percorreu-me o corpo, mas, eu não desviei os olhos dos dele.

Novamente senti aquela vulnerabilidade que conhecera quando percebi que estavausandoopedaçodepanoamareloemminharoupa.Nósapenasolhamosumparaooutro.

– É mesmo? – perguntei. Fiz uma leve mesura como quem diz: estou a seuserviço.

Elesorriunovamente,comtantafrieza,quequasepareciaumacareta.Sentiosanguelatejandonosouvidos.Luteiparapermanecercalmo.–Vocêjáamouumamulherquenãopodiater?–perguntouele.Pensei por ummomento, sem saber ao certo o que dizer ou por que dizê-lo.

Pensei em Liona. Não vi nenhuma razão para pensar nela agora, aqui, com esseestranhojovem.

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–Rezoparaqueseuirmãoserecupere–eudissederepente,atônito,confuso.–Rezoparaquetalvezelepossacomeçaraserecuperarhoje.Trata-sedealgopossível,a naldecontas.Mesmodoentecomoestá,elepodecomeçaraserecuperardeumahoraparaaoutra.

Eleemitiuumhorrívelsomdeescárnio.Osorrisonãoestavamaislá.Agorameolhavacomódioincontido.Eeutemiaestarolhandoparaeledamesmamaneira.

Elesabia.Sabiaqueeuestavaaopardele,edoquehaviafeito.–Uma tal recuperação poderia acontecer – persisti. Eu lutei. – A nal, tudo é

possívelcomDeus.Novamenteelemeestudou,e,dessavez,seurostoeraoretratodaameaça.–Eunãoesperoqueissoaconteça–disseele,avozlentaeférrea.Empertigou-se

na cadeira como se estivesse reunindo forças enquanto falava. – Acho que ele vaimorrer.E, se eu fossevocê, sumiriadaquiantesquevocês, judeus, sejamculpadospelamortedele.Ah,nãoproteste.Éclaroqueeunãotenhonenhumadescon ançaemrelaçãoavocê,mas,seforsábio,deixaráVitaleporcontaprópria.Escaparádaquiagoraeseguiráseucaminho.

Eu passara pormuitosmomentos horrorosos e violentos emminha vida.Masnuncasentiratamanhaameaçaemanandodeumoutroserhumanocomoeusentiaemanardeleagora.

OqueMalchiahesperavademimaqui?Oqueeudeveriafazerparaessehomem?Emvão,tenteilembraroconselhoqueMalchiahmederaacercadasdi culdadesqueeuencontrariaaqui, acercadapróprianaturezadessamissão,maseunãoconseguiarememorarnemaspalavrasnemseuspropósitos.

Aquestãoeraqueeuqueriamataressehomem.Horrorizadocommeusprópriossentimentos,tenteiescondê-los.Maseuqueriamatá-lo.Queriaagarrarumpunhadodaquelas sementespretasmortíferase forçá-loa ingeri-lasantesqueelepudessemeimpedir.Devoterqueimadocomavergonhade taispensamentos,como fatode,longe de ser a resposta às preces de alguém, estar pensando eumesmo como umdybbuk. Respirei fundo e lentamente e falei com a voz mais calma que conseguiproduzir:

–Nãoé tardedemaisparaseu irmão.Talvezelecomeceamelhorarapartirdehojemesmo.

Uma rajada de algo inominável perpassou seus olhos, e entãomais uma vez arígidaimobilidade,aprofundahostilidadesemdisfarces.

–Vocênãopassadeumtolosepermaneceraquimaisuminstante–sussurrou

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ele.Baixeiosolhosporummomentoeproferiumapequenaprecesempalavras,e,

quandofalei,ofizcomomáximodesuavidadeedelicadezaqueconseguiexprimir:–Eurezoparaqueseuirmãoserecupere.Eentãoparti.

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S

CAPÍTULOSETE

AÍ COM VITALE DO QUARTO ONDE SEENCONTRAVAodoenteeadentramosapassagem.

–Seuamigoestásendoenvenenado,eovenenoémortífero.Dêaquelecaviarparaumcãovira-lataeoverámorrerdiantedeseusprópriosolhos.

–Masquemfariaisso?– Temo dizê-lo: o próprio irmão dele. Mas você não pode confrontá-lo.

Ninguémacreditaria.Vocêdeve fazer o seguinte: insistaparaqueopaciente tomeleite, uma grande quantidade de preferência.Diga que somente alimentos brancospoderãorestaurarseusespíritos.Nadaalémdealimentosbrancos,nosquaisnenhumelementonegrodevesermisturado.

–Vocêachaqueissofuncionará?–Euseiquefuncionará.Ovenenoéprovenientedeumaárvoredopomarláde

baixo.Épreto.Emanchadepretotudooquetoca.Éasementepretadeuma orpúrpura.

–Oooh,euconheçoesseveneno!–disseele.–ElevemdoBrasil.ElesochamamdeMortePúrpura.Eusóliarespeitodeleemmeusmanuais,eemhebraico.Eunãoachoquesejaconhecidopelosdoutoreslatinos.Eujamaisovi.

– Bom, eu já o vi e posso te dizer que existe uma grande quantidade delecrescendo na árvore lá debaixo. As sementes são tão venenosas, que eu não possocolhê-lassemessasluvas,eaindaprecisodeumsacodecouroparaacondicioná-las.

Eleretirourapidamenteumsacodecourodeumdosbolsosdesuatúnica,tirouoouro,colocou-onabolsaemedeuosaco.

–Aquiestá,agoravocêpodecolhê-lasemsegurança?Seráqueapessoaculpadasaberáquevocêestáfazendoisso?

–Nãosevocêomantiverocupado.ChameSignoreAntonio.ChameLodovico.Insistaparaqueambosescutemoquetemadizer.Digaquevocêdescon adequeocaviarnãotenhaajudadoopaciente.Digaqueeledevetomarleite.Digaqueoleiteirá forrar o estômago e absorver quaisquer elementos malignos que estejam

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atormentandoNiccolò.Digaqueoleitedeumamulheréamelhoropção.Masleitede vaca também serve, leite de cabra e queijo, puro queijo branco da melhorqualidade.Quantomaisopacienteconseguir ingeriresse tipodealimento,melhorserá.Enquantoisso,eucuidareidoveneno.

–Mascomodireiquechegueiaessaconclusão?–Diga que você rezou, que ponderou e avaliou o que aconteceu desde que o

caviarfoidadopelaprimeiravez.–Issoeufiz,sim.Nãohánenhumamentiranisso.– Insista para que o leite seja tentado.Opai amorosonão verámal algumno

leite. Ninguém verá mal algum nisso. Enquanto isso, eu retornarei ao pomar ecolhereiomáximoquepuderdesementesvenenosas.Masnãohácomodizerquantoo envenenador já colheu, ele próprio, com seu propósito. Descon o de que nãotenhasidomuito.Eleéletaldemais.Niccolòtemtomadoapenasdosesdiminutasnamedidadesuanecessidade.

OrostodeVitaleescureceu.Elebalançouacabeça.–VocêestámedizendoqueLodovicofezisso.–Euacreditoqueelefez,sim.Masoimportanteagoraévocêconseguiroleite

paraseupaciente.Corriemdisparadaparaopequenopátio.Osportõesestavamtrancados.Tentei

forçá-loscombastantedelicadeza,maseraimpossível.Aúnicaalternativaviávelseriaarrebentarafechaduraporcompleto,oqueeuteriaescassascondiçõesdefazer.

Um dos inúmeros serviçais veio até mim, um ser devastado cujos trajes maispareciamtraposdoqueroupas.Eleperguntousuavementesepoderiaserdealgumaajuda.

– Onde está Signore Lodovico? – perguntei, para indicar apenas que estiveraprocurandoporele.

–Comseupaiecomospadres.–Padres?–Permita-medar-lheumaviso–sussurrouessedesdentadoedesmilinguidoser.

–Saiadessacasaoquantoantes.Euoolheidealtoabaixo,mastudooquefezfoibalançaracabeçaeseafastar

murmurandoqualquer coisa consigomesmo,deixando-menoportão trancadodopátio. Bem no interior do pátio, eu podia ver as vívidas ores púrpuras quetencionara colher. Eu agora sabia que não havia tempo para tal plano. E,possivelmente,oplanonãoeramesmodosmelhores.

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Assim que cheguei novamente aos aposentos de Niccolò, vi Signore Antonioaproximando-se de mim com dois padres anciãos em longas batinas pretas comcruci xos resplandecentes nos peitos e Lodovico, segurando o braço do pai. Eleestavachorandonovamente,mas,quandomeviu,lançou-meumolharagudocomoumalâmina.

Nãohavianenhuma cordialidade ngida.Na verdade, em seu rostohaviaumaexpressão muito parecida com triunfo. E os outros me encararam com óbviadescon ança, embora o próprio Signore Antonio desse a impressão de estarprofundamenteperturbado.

Dointeriordorecinto,eupodiaouvirVitaleordenandoquealguémretirasseocaviar. Essa pessoa estava discutindo com ele, assim como Niccolò, mas eu nãoconseguiaentendermuitobemtudooqueestavasendodito.

–Jovem–disseSignoreAntonioparamim–,venhaaquicomigoagora.Dois outros homens vieram atrás dele, e eu vi que eram guardas armados.

Portavamadagasbemvisíveisnoscintos,eumdelestinhaumaespada.Euentreiprimeironasala.EraPicoqueestavadiscutindocomVitale,eocaviar

permaneciaondeestavaantes.Niccolóestavaládeitado,comosolhosparcialmentefechados,eoslábiossecose

rachados.Suspirouinquieto.Rezeiparaquenãofossetardedemais.Osguardasdeslizarampelaparedeatrásdacadeiraondeeuhaviatocadooalaúde

antes.Nósnosreunimosaoredordacama.SignoreAntoniome encarou por um longomomento e, então,mirouVitale.

Lodovico,porsuavez,retornaracomsuaslágrimas,demodobastanteconvincente,comoantes.

–Acorde,meu lho–disseSignoreAntonio.–Acordeeouçaaverdadedabocadeseuirmão.Eutemoqueelanãopossamaisserevitada,esomenteoatodecontá-lapoderáevitarodesastre.

–Oqueéisso,pai?–perguntouopaciente.Elepareciamaisfracodoquenunca,emboraocaviarcontinuasseondenósohavíamosdeixadoantes.

–Fale–disseSignoreAntonioaLodovico.Ojovemtitubeou,enxugouaslágrimascomumlençodesedaeentãodisse:–EunãotenhoescolhaanãoserrevelarqueVitale,nossocon ávelamigo,nosso

confidente,nossocompanheiro,enfeitiçoudefatomeuirmão!Niccolò sentou-sena cama commais força doque eu testemunhara até aquele

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momento.–Comoousadizerumacoisadessas?Vocêsabequeomeuamigoéincapazdisso.

Enfeitiçou-mecomoecomquaispropósitos?Lodovicodeuvazãoaumanovatorrentedelágrimaseapelouaseupaidebraços

abertos.–Commeutotaldesconhecimento,meu lho–disseAntonio–,essehomem

implorouparamanteracasanaqualmora,acasanaqualeuodeixeimorarenquantovocêconvalescia,acasaqueeuescolheraparadaravocêeàsuanoiva.Eleinvocouoespíritomalignonolocalparafazersuaoferta,efoisemdúvidanenhumapormeiodesse espíritomaligno que ele tornou você gravemente doente, e espera que vocêmorraparaqueacasapossaserdele.ElerezouaoDeusdeleparaqueissoacontecesse.Elerezouporisso,eLodovicoouviuestaspreces.

– Isso émentira.Eunão rezeiparanada semelhante a isso–disseVitale.–Eumoro na casa por vontade do senhor, e procuro manter a antiga biblioteca emordem, por vontade do senhor, e para achar quaisquermanuscritos hebraicos quepossamter sidodeixadosanosatráspelohomemquedeixouacasaparao senhor.Mas eu jamais rezei para nenhum espíritomalignome ajudar em coisa alguma, ejamaispoderiaengendrarcoisastãomalignasparameuamigoíntimo.

ElemirouSignoreAntonio,incrédulo.–Comoo senhor podeme acusar disso?O senhor acha que por causa de um

palazzo que possomuito bem adquirir, eu sacri caria a vida domeumais íntimoamigonessemundo?Signore,osenhormeferecomoseestivesseportandoumafaca.

Signore Antonio escutava as palavras como se ainda não estivesse totalmenteconvencido.

–Você temumasinagogadentrodessacasa?–demandouomaisaltodosdoispadres, obviamente o mais velho. Era um homem de cabelos grisalhos escuros efeiçõesseveras.Massua sionomianãoeracruel.–VocênãopossuiospergaminhosdesuaToránaquelasinagogaguardadosnumaarca?

–Essas coisas estão lá, sim–disseVitale.–Elas estavam láquandoeupassei amorarnacasa.Édeconhecimentopúblicoqueum judeumorou láedeixouessascoisas,eporvinteanoselasestiveramcobertasdepoeira.

Ao ouvir isso, Signore Antonio pareceu ter cado particularmente comovido.Masnãofalou.

–Vocênuncausouessascoisasemsuasprecesmalignas?–quissaberosegundopadre, um homem mais tímido, mas que estava agora tremendo com um mal

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disfarçadoentusiasmo.–Bom,devoconfessarnamaispuraverdadequenãoasuseiemminhaspreces–

disseVitale.–Devoconfessarquesoumaisumhumanista,poetaemédicodoquesouumdedicadoepiojudeu.Perdoe-me,maseunãoasusei.Estivenasinagogademeus amigos para as preces do Sabá, e os senhores conhecem esses homens, ossenhoresosconhecemmuitobem,elessãorespeitadosportodosvocês.

– Ah – disse o padre alto. – Quer dizer então que você admite não haverproferido preces nem sagradas nem pias a esses estranhos livros e, no entanto,devemos assumir que esses são livros sagrados e não obras estranhas ou exóticasrepletasdesegredoseencantamentos?

–Vocênegapossuirtaiscoisas?–perguntouopadremaisjovem.–Porquevocêsmeacusamdisso?–disseVitale.–SignoreAntonio,euoamo.

EuamoNiccolò.Amosua futuranoivacomose fosseminha irmã.DesdePádua,vocêssãocomoaminhaprópriafamília.

Signore Antonio estava visivelmente abalado, mas mantinha a postura ereta,comoaindicarqueessasacusaçõesrequeriamtodaasuacapacidadededecisão.

– Vitale, fale-me a verdade – disse ele. – Você enfeitiçou meu lho? Vocêverbalizouparaeleestranhosencantamentos?FezpromessasaoTinhosodequelheofereceriaessamortecristãemtrocadealgumpropósitosinistrodesuaparte?

–Jamais,jamaiseuproferiumasílabadepreceaoTinhoso–disseVitale.–Entãoporquemeu lhoestánesseestadodedebilidade?Porqueelepioraa

cadadiaquepassa?Porqueestáperturbadodessamaneira,enquantoumdemôniorugeemsuacasanesseexatoinstante,comoseestivesseesperandoparaveroquantovocêconsegueevocarcomdesenvolturaosseusencantosmalignosemproveitodele?

–Lodovico,issoécoisasua?–perguntouVitale.–Vocêcolocouissonasmentesdetodasessaspessoasaquipresentes?

–Permita-mefalar–eudisse.–Eusouestranhoavocêstodos,masnãoestranhoàcausadaenfermidadedeseufilho.

– E quem é você paramerecer que o escutemos? – exigiu saber o padremaisvelho.

–Umviajantedomundo,umestudantedascoisasnaturais,deplantas e oresobscuraseatémesmodevenenos,comointuitodeencontraracuraparaeles.

– Silêncio! – disse Lodovico. – Você ousa introduzir-se aqui num assuntoestritamente familiar.Pai,ordenequeessemúsico saiaagoradesse recinto.ElenãopassadeumcapangadeVitale.

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–Nãosetratadisso,Signore–disseVitale.–Essehomemmeensinoumuito.–Elesevirouparamimeeupudeveromedoestampadoemseurosto,adescon ançageraldequetalvezascoisasqueeulhecontaranãofossemverdade,equeagoratudodependiadaveracidadedelas.

–Signore–eudisseparaovelho.–Osenhorestávendoocaviarali.–Dopaláciodopapa!–declarouLodovico.Entãoeledeuinícioaumatorrente

depalavrasparamefazersilenciar.Maseupersisti.–Osenhorestávendoali!–eudisse.–Eleépreto,salgadoaopaladar.Osenhor

sabemuito bem o que é aquilo. Bom, eu lhe asseguro, senhor, que, se o senhoringerissequatrooucincocolheresdele,osenhorlogoficariapálidoecomeçariaasuarexatamentecomoo seu lho,e também cariabrancocomoele.Naverdade,umhomem de sua idade poderia morrer imediatamente ingerindo uma quantidadesimilar.

Ospadresmiraramopratinhodepratacontendoocaviareambosseafastaramdeleinstintivamente.

–Signore–prossegui.–Emseupomar,nopátioprincipalaquiembaixo,existeumaplanta conhecidados brasileiros comoMortePúrpura.Eu lhedigoqueumaúnica semente preta daquela árvore é su ciente para fazer com que um homemadoeça. Uma dieta constante dela, moída e colocada em meio a um alimentopungentecomoaquele,certamenteomataria.

–Eunãoacreditoemvocê!–sussurrouovelho.–Quemfariaisso?–Vocêestámentindo–gritouLodovico.–Vocêcontamentirasfantásticaspara

protegersuacoorte,equemsabequaispecadosvocêscometeramjuntos.–Entãocomao caviar– eudisse.–Comanãoapenasumapequena colherada

dele, como a que você tenta dar a seu irmão, coma todo ele, e nós veremos se averdadenãoaparece.E,seissonãoforsu ciente,eulevareitodosvocêsláembaixoelhesrevelareiaplanta,elhesrevelareiseuspoderes.Achemumpobrecoitadodeumvira-latanasruasdeRoma,deemaeleassementesdessaplantaeoverãotremer,sesacudiremorrerimediatamente.

Lodovicosacouaadagadabainha.De imediato, os padres gritaram para que ele casse parado, para que se

contivesse,paraquenãoagissedemodotolo.–Você precisa de uma adaga para comer o caviar? – eu disse. – Basta pegar a

colherdeprata.Veráqueémaisfácilcomela.–Essehomemestá contandouma coleçãodementiras – gritouLodovico–, e

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quem,debaixodesseteto,quemfariaumacoisaassimameuirmão?Quemousaria!EessecaviarveiodacozinhadeSuaSantidadeopapaempessoa!Issoéumavilania,eulhesdigo.

Umsilênciopairounoambiente,comosealguémhouvessetocadoumsino.SignoreAntoniomirou seu lhonaturalqueaindameencaravacomsuaadaga

desembainhada.Permanecicomoestavaantes,oalaúdependuradonascostas,apenasolhandoparaele.Vitale,porsuavez,estavabrancoetrêmuloeàbeiradaslágrimas.

–Porquevocêplanejouisso?–perguntouSignoreAntoniocomumavozsuave,suaquestãoclaramenteendereçadaaLodovico.

–Eunãoplanejeinadadisso.Eessaplantanãoexiste.–Ah,masexistesim–disseSignoreAntonio.–Evocêatrouxeparadentrodessa

casa.Eumelembro.Eumelembrodesuasinconfundíveisflorespúrpuras.–UmpresentequenosfoidadoporaquelesqueridosparentesnossosnoBrasil–

disseLodovico.Ele pareciamagoado.Parecia triste. –Umabela oraçãopara umjardimdebelas orações.Eunão znenhumesforçopara esconder essaplantadosenhor. Eunão sei nada a respeito de seus poderes.Quem sabe a respeito de seuspoderes?–Eleolhouparamim.–Você!–disseeleparamim.–Eseuamigojudeu,Vitale,seuasseclanessecomplô.VocêsdoissãoadoradoresdoTinhoso!OTinhosocontouparavocêsoqueessaplantapoderiafazer?Seessecaviarestámaculado,écomo veneno que vocês dois puseram nele. – Suas maravilhosas e copiosas lágrimasestavam uindomaisumavez.–Tamanhavilaniadapartedevocêsfazerumacoisacomoessaameuirmão.

SignoreAntoniobalançouacabeça.SeusolhosestavamfixosemLodovico.–Não–sussurrouele.–Nenhumdessesdoishomenspoderiaterfeitoisso.Você

trouxeaplanta.Vocêtrouxeocaviarparaessacasa.–Pai,elessãofeiticeiros,esseshomens.Sãomalignos.–São?–perguntouSignoreAntonio.–EqueamigonossodoBrasilnosenviou

essaexótica or?Eupre ropensarquevocêacomprouaquinessacidademesmoetrouxe-aparacasaecolocou-abempertodamesaondevocê faz seusescritos, suastraduções.

–Não,foiumpresente,eulhedigo.Euagoranãoconsigomelembrardaépocaemquechegou.

–Maseusim.Enãofoimuitotempoatrás,efoinaquelamesmaépocaemquevocê,meu lho,Lodovico, tevea ideiadequeocaviarmelhorariaoestadodeseuirmãoacamado.

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Tudoissosedesenrolaraenquantoopacienteobservavaosacontecimentoscomhorror.Eleolharaàesquerdaparaseupai,àdireitaparaoirmão,estudaraospadresquandofalavam.Fixarasobremimseuolharesgazeadoenquantoeufalava.

Eagoraelecurvavaocorpoparaafrenteepegavaatigelacomocaviarcomsuamãotrêmula.

–Não, não toque nisso! – eu disse. –Não aproxime isso de seus olhos. Elesqueimarão.Vocênãoselembradisso?

–Eumelembro–disseopai.Umdospadres aproximou-sedoprato,masopacienteo colocara emcimada

montanha formada pelas colchas de brocado, e cara olhando xamente para ele,comoseoobjetotivessevidaprópria,comoseeleestivesseolhandoparaachamadavela.

Eleergueuapequenacolher.Seupaiimediatamentearrancou-adeleejogouocaviarparaolado,quecaiuna

colchaemanchou-adepreto.Lodovico,antesdeconseguirseconter,afastou-sedapartedacamaondeocaviar

foraderramado.Deuumpassoparatrásinstintivamente.Esóentãopercebeuoquefizera.Eleolhouparaopai.

Permaneciacomaadaganamão.–Osenhorachaqueeusouculpadodetudoisso?–demandoueleaopai.–Não

há veneno aqui, eu lhe digo. Não há nada além de uma mancha que a lavadeiratentaráemvãoretirar.Masnãohánenhumveneno.

–Venhacomigo–eudisse–atéopomar.Euvoulhemostraraárvore.Acheumanimaldesafortunado.Eu vou lhemostrar oque esse venenopode fazer.Vou lhemostrarcomoébempretaessasemente,ecomoocaviar funcionouperfeitamenteparamascará-la.

Derepente,Lodovicocorreunaminhadireçãocomaadaga.Eusabiamuitobemcomo me defender e bati com toda a força a parte dura de minha mão em seupunho,obrigando-oasoltaralâmina,masentãoeleatacouomeupescoçocomosdedos esticados. Eu cruzei instantaneamente os braços e golpeei, separando seusbraçoscomumgestosúbitoebrutal.

Elecaiuparatrás,derrotadoporessessimplesmovimentos.Nenhumdelesteriasido grande surpresa em nossa época, quando as artes marciais são ensinadas àscrianças.Euestavaenvergonhadopelotantoquehaviadesfrutadodaluta.

Umdosguardaspegouaadaga.

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Lodovico permaneceu trêmulo, e então, desesperadamente, passou a mão aolongodamanchanacolcha,juntandounspoucosovinhosdocaviarepondo-osnaboca.

–Veja,eulhesdigo,estoudifamado.EstoudifamadoporjudeusnefastosqueseassociaramparamedestruirpeloúnicomotivodeeuconhecerseustruquesesaberoqueelesfizeramaNiccolò.

Ele lambeu os lábios. Ingerira uma diminuta quantidade do caviar e podiafacilmenteesconderosefeitos.

Novamente um profundo silêncio pairou sobre o recinto. Apenas o súbitoestremecimentodeNiccolòquebrouosilêncio.

–Irmão–sussurrouele.–TudoissoéporcausadeLeticia.–Émentira!–disseLodovicoemaltoebomsom.–Comoousa?–Ah,seaomenoseusoubesse–disseNiccolò.–Elanadamaisédoqueuma

entretantasadoráveisjovensdonzelasquepoderiatersidoumanoivacarinhosaparamim!Seaomenoseusoubesse.

SignoreAntonioolhoucomraivaparaLodovico.–Leticia,entãoéisso?–sussurrouele.– Eu lhe digo, esses judeus enfeitiçaram-no. Eu lhe digo que foram eles que

colocaramovenenonocaviar.Eulhedigoquesouinocente.–Eleestavachorando,estava enraivecido, sussurrava emurmurava e,mais uma vez, falou: – Foi esse aí,Vitale,quemtrouxea orparaessacasa.Agoraeumelembro.Docontrário,comoele e seu amigo poderiam saber de seu poder? Eu lhe digo, esse aí, esse Toby,confessouaculpapelaprópriaboca.

Ovelhobalançouacabeçadiantedalamentávelsituação.– Venha – disse Signore Antonio. Ele fez um gesto para que seus serviçais

armadoslevassemLodovico.Emseguida,olhouparamimedisse:–Leve-meatéopomarememostreesseremédio.

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O

CAPÍTULOOITO

ROSTODOJOVEMESTAVACONTORCIDODE rancor.A própria plasticidade que lhe havia dado anteriormente aquelafácilexpressão de pesar agora lhe proporcionava uma máscara de fúria.

Empurrouoshomensarmadosparaosladoseseguiucomacabeçaerguidaenquantodescíamos a escada e nos reuníamos, todos nós, com exceção de Niccolò,evidentemente,nopomar.

Láencontrava-seaplanta,eeuaponteiasmuitassementespretasquejáhaviamcaídonosolo.Aponteiasfloresparcialmentemurchasjáabrigandooveneno.

Umserviçal foienviadoparaencontrarumcãovira-lataquepudesseser trazidoatéacasa,elogoosganidosdopobrequadrúpedeecoavamnaamplaescadaria.

Vitale mirava as ores púrpuras tomado de horror. Signore Antonio apenasdirigiaaelasumolharraivoso,eosdoispadresolhavamparamimeparaVitalecomfrieza,comosenósaindafôssemosdealgummodoresponsáveispeloqueaconteceraaqui.

Umamulher idosa, assaz desnorteada e assustada, pegouumpratinhode argilaparaopobrecachorroesfomeadoepôs-seaenchê-locomágua.

Eurecoloqueiasluvasqueremoveraparatocaroalaúdee,requisitandoaadagadeLodovico, recolhi as sementesnummontinhoe entãoolhei ao redor embuscadealgocomoqualpudesseesmagá-las.Apenasocabodaadagaestavaàmão,demodoque o utilizei para produzir um pó, uma boa salpicada do qual eu coloquei emseguidanaáguadocão.Coloqueimaisumpouquinhoedepoismaisumpouco.

Oanimalsorveuolíquidocomumardordedarpenaelambeuopratovazioe,então, imediatamentecomeçoua se tremer.Caiuparao lado, emseguida sobreascostasesecontorceuemagonia.Emuminstante, courígido,seusolhosmirandoobtusamentenadaeninguém.

Todosassistiramaessepequenoespetáculocomindignaçãoehorror, incluindoeumesmo.

MasLodovicoestavaencolerizado,mirandoospadres, seupai e, emseguida,o

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cão.–Eujuroquesouinocente!–declarouele.–Osjudeusconhecemoveneno.Os

judeusotrouxeramparacá.Céus,foiesseprópriojudeu,esseVitale,quemtrouxeaplantaparaessacasa...

– Você contradiz sua própria história – disse Antonio. – Você mente. Vocêgagueja.Vocêimploracomoumcovardeparaquelhedemoscrédito!

– Eu lhe digo que não tomei parte em nada disso! – gritou o desesperadohomem.–Essesjudeusmeenfeitiçaramcomoenfeitiçarammeuirmão.Seessacoisafoifeitapormim,foiduranteumsononoqualeunadasabia.Euestavanumsononoqualvagava,realizandoasaçõesqueelesmeforçavamarealizar.Oqueosenhorsabedessesjudeus?Osenhorfaladoslivrossagradosdeles,mascomoosenhorsabequeesseslivrosnãocontêmafeitiçariaquemelevouacometeresseato?Seráqueodemônionãoestáenraivecidonacasaamaldiçoadanesseexatoinstante?

–SignoreAntonio–disseopadremaisvelho,oquepossuíafeiçõesseverasaindaquegentis.–Algodeveserditosobreessedemônio.Aspessoasnasruasouvem-nouivar.Estarátudoissoalémdoqueumdemôniopodefazer?Euachoquenão!

Lodovico exprimiamilharesdeprotestos–que sim, eraodemônio, e sim, eleperpetrarasuamagiasinistranele,equeninguémpodiaimaginaramalignidadedessedemônioeassimpordiante.

Mas o solene Antonio não acreditava em nada daquilo. Ele mirava seu lhonatural com um olhar de tristeza que beirava as lágrimas, mas nenhuma lágrimaescorriadeseurosto.

–Comovocêpôdefazerumacoisadessas?–sussurrouele.Derepente,Lodovicosoltou-sedosdoishomensqueestavamaoladodele,suas

mãosmalsegurando-o.Elecorreuparaaárvorede orespúrpuraseagarrouassementespretasnaterrado

vaso.Pegouomáximoquesuamãoconseguiureter.–Detenham-no–eugritei.Evoeinadireçãodele,empurrando-oparatrás,masa

mãodele alcançouos lábios antes que eupudesse impedi-lo, forçando a terra e assementesparadentrodesuabocaaberta.Eupuxeisuamão,masjáeratardedemais.

Osguardasestavamemcimadele,assimcomoseupai.– Façam-no vomitar – gritou Vitale desesperadamente. – Deixem-me chegar

pertodele,afastem-se.Maseusabiaqueerainútil.Eumeafastei,totalmenteatormentado.Oqueeupermitiraaconteceraqui!Que

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coisa horrível. Era exatamente o que eu mesmo desejara fazer com ele, o que eumesmovisualizara,recolhendoassementes,forçando-oaingeri-las,maselefizeraissopor conta própria, como seminhas intenções nefastas tivessem se apoderado dele.Comoeupermitiraqueelecometesseesseatoabominável?Porqueeunãoimaginaraalgumamaneiradedemovê-lodeseuintuito?

Lodovicoolhouparaopai.Eleestavasemaretrêmulo.Osguardasseafastarameapenas Signore Antonio mantinha-o nos braços enquanto ele começava a terconvulsõesecairnochão.

–Senhormisericordioso–sussurrouSignoreAntonio,eeufizamesmacoisa.Senhormisericordioso,tenhapenadessaalmaimortal.SenhordosCéus,perdoe-opor

suainsanidade.–Feitiçaria!–disseohomemmoribundo,suabocamanchadadesalivaeterra,e

foisuaúltimapalavra.Dejoelhos,elecurvou-separaafrente,orostocontorcido,easconvulsõesestremeceramtodaasuaestrutura.

Emseguida,elerolouparaolado,aspernasaindatremendo,eseurostoadquiriuacaretarígidadopobreanimalquemorreraantesdele.

E eu, eu que em uma vida centenas de anos adiante no tempo, e numa terramuito, muito distante, usara esse mesmo veneno para despachar incalculáveisvítimas, podia apenas car parado olhando para aquela outra vítima com a maisprofunda sensação de desamparo. Ah, que erro crasso o fato de eu, enviado paraatenderpreces,terproporcionadoumsuicídio.

Umsilênciocaiusobrenóstodos.–Eleerameuamigo–sussurrouVitale.Quandoovelhocomeçouaselevantar,Vitaletomou-lheobraço.Niccolòapareceunoportão.Semdarumapalavra,elelápermaneceuempéem

sua longa camisola branca, descalço, tremendo,mas sem deixar demirar o irmãomorto.

–Saiam,todosvocês–disseSignoreAntonio.–Deixem-me caraquicommeufilho.Saiam.

O padre mais idoso, no entanto, não arredou pé de onde estava. Ele estavaextremamenteabalado,assimcomonóstodos,masreuniuseusrecursosedisseemvozbaixaedesdenhosa:

–Não imagine nem por ummomento que não há feitiçaria sendo perpetradaaqui – disse ele. – Que seus lhos não foram contaminados pelo intercurso quemantiveramcomessesjudeus.

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–FreiPiero,silêncio–disseovelho.–Issoaquinãofoifeitiçaria, issoaquifoiinveja!Eeunãovioquenãoquisver.Agorasaiamdaqui,todosvocês.Deixem-mecarasósevelaro lhoqueeutireidosbraçosdamãe.Vitale,leveseupacientepara

acama.Eleagoraserecuperará.–Masodemônionãocontinuaenraivecido?–perguntouopadre.Ninguémo

estavaescutando.Baixei os olhos em direção ao morto. Eu não conseguia falar. Não conseguia

pensar.Sabiaquetodossairiamdali,excetoovelho,eeutambémdeveriasair.Noentanto, eunãoconseguia tirarosolhosdaquelecorpo semvida.Pensei emanjos,mas sem palavras. Invoquei um domínio invisível, misturado ao nosso, seres desabedoria e compaixão que talvez pudessem estar cercando a alma desse homemmorto agora, mas nenhuma imagem reconfortante me veio à mente, nenhumapalavra. Eu falhara. Falhara com aquele, embora talvez tivesse salvado um outro.Seriaissotudooqueeutinhaafazer?Salvarumirmãoelevarooutroadestruir-se?Erainconcebível.Ehaviasidoeuoresponsávelporlevá-loaisso,quasecomcerteza.

Ergui os olhos e vi o velho Pico no portão, fazendo um gesto para que eucorresse.Todososoutroshaviamsaído.

Eu zumamesura,passeiportrásdeSignoreAntonio,saídopomareentreinopátiomaior.

Euestava aturdido. Imaginoque freiPiero talvez estivesse lá,masnãoolheidefatoparatodosqueestavamnasproximidades.

Vioumbralquedavanarua,comassilhuetasparcamenteiluminadasdeumcasaldeserviçaismantendovigilância,memovinadireçãodaportaepasseiporela.

Ninguémmequestionou.Ninguémpareceuhavernotadoaminhapresença.Caminheientorpecidamenteemdireçãoaumapiazzalotadae,poruminstante,

erguiosolhosemireiocéucinzento.Oquantoeraperfeitamentesólidoerealessemundonoqual eu foramergulhado, com suas casas de pedra apinhadas de gente,construídas umas ao lado das outras, e suas torres que eram vistas aqui e ali. Oquantoeramreaisosmurosdospalazzosemfrenteàscasas,sombriosemarrons,eoquanto eram reais os ruídos dessa multidão indistinta, com suas conversasdespreocupadaserompantesderiso.

Paraondeeuestavamedirigindo?Oquetencionavafazer?Euqueriarezar,entrarnuma igreja, cair de joelhos e rezar.Mas como eu poderia fazer isso com o panoamareloemminharoupa?Comopoderiaousarfazerosinaldacruzsemquealguémpensassequeeuestariadebochandodeminhaprópriafé?

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Sentia-meperdidoesabiaapenasqueestavavagandoparalongedascasasparaasquaiseuhaviasidoenviado.E,quandopenseinaalmadohomemmorto,seguindoagoraparaototalmentedesconhecido,fiqueidesesperado.

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P

CAPÍTULONOVE

AREI. ENCONTREI-ME NUMA ESTREITA RUELAenlameada,dominadopelofedordeimundíciequefluíadosesgotos.Penseinovamenteemtentaralcançaruma igreja,umlugarondepudesse carde

joelhosnasombraerezaraDeusporajudanessasituação,masnovamenteaimagemdopanoredondoamarelodoladoesquerdodemeupeitofezcomqueeuparasse.

Pessoaspassavampormimdeambososlados,algumaseducadamentemedandoespaço,outrasmetirandodocaminhocomosombros,eoutrasaindazanzavamemfrente às casasde repasto e às casasdepães.As fragrânciasde carne grelhada epãoassadomisturavam-seaofedor.

Eu me senti subitamente fraco demais em espírito para seguir em frente e,encontrandoumaestreitamargemdemuroentreabarracaabertadeumcomerciantede tecido e um vendedor de livros, deslizei meu alaúde entre os braços e então,segurando-ocomosefosseumbebê,meencosteinomuroealidescansei,tentandoacharalgoacimadaestreitamargemdecéu.

A luz rareava rapidamente. Estava esfriando. Lamparinas queimavam nas lojas.Umarchoteiro seguia seu caminhopela rua, comdois jovensmuitobem-vestidosatrásdele.

Percebi que não fazia a menor ideia do mês em que estávamos, nem secorrespondiadealgummodoao naldooutonoqueeudeixaraemminhaépoca.MasoMissionInneminhaamadaLionapareciamcompletamenteremotos,comoalgo que eu sonhara.Ter sido em outra época Lucky, a Raposa, um assassino dealuguel,tambémpareciairreal.

NovamenterezeipelaalmadeLodovico.Masaspalavraspareceramsubitamentedesprovidasdequalquer signi cado,diantedemeufracasso,eentãoouviumavozdizerbempertinhodemim:

–Vocênãoprecisausaressedistintivo.Antesquepudesse levantarosolhos,sentiodistintivosendoarrancadodaparte

aveludadademinhatúnica.Euviumjovemaltoaliempé,muitobem-vestidoem

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umbrilhantetrajedeveludocordevinho,comcalçõesescurosebotaspretas.Tinhauma espada numa bainha cravejada de joias, e, por sobre os ombros, um mantocurtodeveludocinzatãofinoquantoodesuatúnica.

Oscabeloseramlongos,muitoparecidoscomosmeus,mastinhamumasuavecoloração castanha; eram bastante lustrosos e encaracolados e caíam-lhe pelosombros.Seurostoeranotavelmentesimétricoeabocacarnuda,bastantebonita.Eletinhagrandesolhoscastanhos.

Nosdedosenluvadosdamãodireita,seguravaodistintivoredondoeamareloquearrancara com tamanha facilidade de seus pontos, e agora o amassava da melhormaneirapossíveleoenfiavanocinto.

–Vocênãoprecisadisso–disseeledojeitomaisdelicadoecon dencialpossível.–Vocêé serviçaldeVitale,eelee todaa suacriadageme familiares são isentosdautilizaçãododistintivo.Eledeveriaterselembradodeavisá-loquevocêpoderiatirá-lo.

–Masporquê?Queimportânciatemisso?–perguntei.Ele ergueu a capa curta de veludo vermelho que carregava por cima do braço

esquerdoeacolocousobreosmeusombros.Entãocolocouumaespadaemmim,afivelandoocinto.Euolheiparaela.Paraocabocravejadodejoias.

–Oquesignificatudoisso?–perguntei.–Quemévocê?–Estánahorade você terumpoucodedescanso eumpoucode tempopara

pensar–disseele,comamesmavozsuaveecon dencial.–Euolevareiparalongedaquiporumtempo,paraquedisponhadeumpoucodetempopararefletir.

Elepegouomeubraço.Pendureinovamenteoalaúdeemminhascostasedeixeiquemeconduzisseparaforadobeco.

O céu estava quase que completamente escuro.Tochas passavam por nós, aschamascrepitando,ealgumasdaslojasagoradirecionavamsuasluzesparaoestreitocalçamento.Eunãoconseguiaenxergarmuitobemdevidoaobrilhodasluzes.

–Quemoenviouamim?–perguntei.–Quem você acha? – disse ele. Eleme abraçara abaixo do alaúde e estavame

pressionandodelicadamenteparafrente.Seucorpopareciaimaculadamentelimpoetinhaolevíssimoaromadeumdoceeobscuroperfume.

Osoutrosqueeuencontraraaquinãoeramemhipótesealgumasujos,masatémesmo omelhor deles tinha uma aparência ligeiramente empoeirada e um cheironaturaldepeleedecabelo.

Essehomemnãorecendiaanadadisso.

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–Mas, eVitale? –perguntei. –Nãoháproblema emdeixá-lonummomentocomoesse?

–Nadaaconteceráhojeànoite–assegurou-meohomem,olhandodiretamenteemmeusolhosàmedidaquesecurvavaligeiramentenaminhadireção.–ElesvãoenterrarLodovico,enãoseráumterrenoconsagrado,éclaro,masopaiacompanharáocorpoatéolocal.Acriadagem carádevigília,sendopermitidoounãoquesefaçavigíliaaumsuicida.

–Mas aquele padre, frei Piero, e as acusações que fez sobre a possibilidade dodybbukaindaestarenraivecido?

– Por que você não se coloca em minhas mãos – disse ele, com a mesmadelicadezaqueteriatidoummédico–epermitequeeucureadorqueestásentindo?Deixe-mesugerirquevocênãoseencontraemcondiçõesdepoderajudarquemquerquesejanesseexatomomento.Vocênecessitadeumrefresco.

Passamos por mais uma enormepiazza. Tochas queimavam nas entradas dasimensas casas de quatro andares, e luzes brilhavam em miríades de torres, tendocomopanodefundooescurocéuazul.Umchuviscodeestrelasestavavisível.

Notei que homens ao meu redor estavam ricamente vestidos, exibindo dedoscheios de anéis, ou vívidas luvas coloridas, e muitos deles estavam correndo emgruposcomoseacaminhodeumimportantedestino.

Mulheresemluxuriosassedasebrocadosdes lavamtodooseure namentopelasruasempoeiradas,suasserviçaisdesleixadamentevestidascorrendoparanão carparatrás.Liteiras namentedecoradaspassavam,osqueaslevavamnosombrostrotandosobopeso,ospassageirosocultosatrásdecortinasextravagantementecoloridas.Eupodiaouvirmúsicaaolonge,masoruídodevozesengoliaosom.

Eu queria parar e absorver todo aquele espetáculo eternamente mutante, masestavainquieto.

–PorqueMalchiahnãoapareceuparamim?–euquissaber.–Porquemandouvocê?

Ohomemdecabeloscastanhossorriue,olhandoparamimcomamor,comoseeufosseumacriançaaseuscuidados,disse:

–NãoseimportecomMalchiah.Vocêperdoaráumtomlevementedebochadodaminhapartequandoestiverfalandodele,nãoperdoará?Ospoderosossãosempreridicularizadosumpoucopelosmenospoderosos.–Seusolhosbrilharamcheiosdebom humor. – Venha, esse é o palazzo do cardeal.O banquete está acontecendodesdeatardedehoje.

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–Quecardeal?–sussurrei.–Queméele?–Issoimporta?IssoaquiéRomanumaépocadeesplendor,eoquefoiquevocê

viudissotudoatéagora?Nadaalémdoslúgubresacontecimentosdeummiserávellar.

–Espereummomento,eunão...–Vamoslá,éhoradeaprender–disseele.Enovamenteeracomoseeleestivesse

falando com uma criança pequena. Achei isso ao mesmo tempo atraente eextremamentedesagradável.–Vocêsabeoqueestavaansiandoverdurantetodoessetempo–continuouele–,eexistemcoisasquevocêdeveriaveraquiporquesãoumapartegloriosadessemundo.

Sua voz possuía uma rica ressonância, e parecia que ele estava pensando nessascoisas demodo natural àmedida que falava.Nemmesmo o sorriso deMalchiahpossuía essa ternura toda.Oupelomenos era o queparecia naquela luminosidadeintensa.

Nósnosjuntamosaumaverdadeiracorrentedepessoasluxuosamentevestidasepassamosporbaixodeumaimensaarcadadouradaparaentrarnoquepoderiamuitobem ser um enorme pátio ou hall, eu não saberia dizer quais das duas opções.Centenasdepessoasestavamperambulandopeloambiente.

Nasmargensdesseespaço,haviaaltaseimponentessempre-verdesenfeitadascomvelas,e,bemdiantedenós,umainterminável leirademesas forradasporpesadascortinasqueseestendiaàesquerdaeàdireita.

Algunsconvidadosjáestavamsentados,incluindoumgrupocomricastúnicasecapas, seus rostos voltados para o grande espaço aberto além dasmesas onde umgrande número de serviçais do sexo masculino ia e vinha com odres de vinho,bandejascomcoposepratoscomoquepareciaserfrutasfolheadasaouro.

Bemacimadenós,haviagrandesarcadasdemadeirapintadas,engrinaldadascomfloresesustentandoumintermináveldosseldeumcintilantetecidoprateado.

Tochasqueimavamnasmargensdasala.Epesadoscandelabrosdeouroedeprataestavamsendodispostosacadapoucosmetrosaolongodasmesas,juntocompratosdourados.Aspessoasestavamtomandoseuslugaresnosbanquinhosacolchoados.

Eu fui conduzido à extremidade direita, onde diversos homens já estavamsentados, e nós rapidamente tomamos nossos lugares. Eu achei estranho estarmanuseandoaespada.Coloqueioalaúdeemsegurançapertodemeuspés.

Olugarestavaagorarepletodeconvidados.Deviahavermaisdemilpessoasnolocal.Emtodososcantos,asmulhereseram

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umbanqueteparaosolhos,comseusombrosbrancosàmostraeosseiosparcamentecobertos,emvestidosbastantecoloridoscommangastalhadas,cordõesdepérolasegemas preciosas e penteados minuciosamente elaborados. Mas os homens maisjovens pareciam igualmente interessantes, com seus longos e lustrosos cabelos ecalçõesemcoresbrilhantes.Asmangastalhadasdesuascamisaseramtãoenfeitadasquantoasdasmulheres,eelestambémusavamumain nitavariedadedecores.Oshomensdemonstravamumavaidadeaindamaisousadadoqueadasmulheres,masumcontagiosoentusiasmopareciauniratodos.

Subitamenteumatropadegarotossurgiu,vestidaemdiáfanastogasamarradasnacintura, obviamente com a intenção de evocar os gostos dos antigos gregos eromanos. Seus braços e pernas estavam nus, e eles usavam sandálias douradas eguirlandasdefolhasefloresnoscabelos.

Certamente seus rostos haviam recebido ruge, e quem sabe alguma pinturatambémforaaplicadaparaescurecer seusolhos.Eles riam,sorriamemurmuravamcom facilidade, enchendo copos e oferecendo pratos com doces, como se jáhouvessemnascidofazendoessetipodecoisa.

Umdessespequenos e graciososGanimedes encheuos coposprateados ànossafrenteapartirdeumenormeodredevinhoquemanuseavacomdestreza,comosejádesempenhasseessafunçãopormilharesdeanos.

Bem à nossa direita, um grupo demúsicos começara a tocar, e parecia que asvozes ao nosso redor haviam cadomais altas, como se excitadas pelamúsica. Amúsica em si era incomumente adorável, com uma ricamelodia ascendente, umamelodiaquemesoava familiar,masque,naverdade,nãoeraexecutadaporviolas,alaúdes e sopros. Certamente havia outros instrumentos, mas eu não sabia o queeram.Umoutrogrupodemúsicosbemàminhaesquerdajuntou-seaoprimeironaexecução damesmíssima canção.Umabatida lenta sublinhava amelodia, e outrasmelodiastornaram-seintercaladasàprimeira,atéqueeuperdiporcompletoorumodaestruturamusical.Podiasentirabatidadapercussãoemmeusouvidos.

Euestavacativadoportudoaquilo,mastambémestavaperturbado.Meusolhosestavamaquososnãosóemfunçãodoperfumecomotambémdasvelas.

–Malchiahquerqueeufaça isso?–eupressionei.Eumeaproximeie toqueiopulsodireitodojovem.–Elequerqueeuparticipedessebanquete?

–Vocêachaqueelepermitiriaissocasonãoquisesse?–respondeuohomemcomaexpressãomaisinocentequealguémpodeter.–Aqui,bebaumpouco.VocêestáaquiháquaseumdiainteiroenãoprovouodeliciosovinhodaItália.–Eleexibiu

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novamenteaquelesorrisodoceeamável,enquantocolocavaocopoemminhamão.Eu estava a ponto de protestar que jamais bebia, não conseguia nem mesmo

suportar o cheiro de bebida, quando percebi que isso não era inteiramenteverdadeiro,eraapenasumaquestãodepostura,eodeliciosoaromadevinhoestavaseelevando com um notável poder de sedução. Peguei o copo e provei da bebida.Estavadojeitocomoeuadorava,secoecomumligeirosabordefumado,umvinhotão bom como os que eu já havia tomado em outras oportunidades.Tomei umoutro gole, e uma quentura tranquilizadora começou a percorrer o meu corpo.Quemera euparaquestionaroqueos anjosqueriam?Para todosos ladosque euolhava as pessoas estavam degustando iguarias de pratos dourados e conversandoconfortavelmenteumascomasoutrase,assimqueumterceirogrupodemúsicossejuntouaosoutrosconjuntos,eusentiquecomeçavaameentregardecorpoealmaaeles,comoseestivessenumsonho.

–Aqui,bebamaisumpouco–dissemeucompanheiro.Eleapontouparaumaloura esguia que estava passando por nós na companhia de diversas pessoas maisvelhas, uma verdadeira visão com seus cabelos dourados entrelaçados com oresbrancasejoiasbrilhantes.

–Aquelaéajovemquecausoutodoesserebuliço–disse-meele.–SuaLeticia,que Lodovico tanto cortejou, embora ela fosse prometida a Niccolò, que quaseperdeuavida.–Seutomeraquasereverente,masalgumacoisaemsuaescolhadepalavrasmeperturboueeuatépenseiemdizerqualquercoisaarespeito,maselemeofereceumeucopomaisumavez.

Eubebi.Ebebinovamente.Minhacabeçagirou.Fecheiosolhoseosreabri,vendoaprincípionadaalémde

miríadesdevelasqueimandoemtodososlugares,eapenasagoraeumedavacontada existência de mesas embaixo das arcadas ao longo de ambos os lados dessemajestosoespaço.Elasestavamtãolotadasquantoaquelasnasquaisestávamos.

Um dos garotos encheu novamente o meu copo e me sorriu com canduraenquantoseafastava.Eubebimaisumpouco.Lentamenteminhacabeçacomeçouacarmaislímpida.Paratodososladosqueolhava,euviacoremovimento.Pessoas

semoviamno espaço aberto ànossa frente, e amúsica estava candomais alta, emuitosubitamentedoistrompetessoaram,seguidosdeumentusiásticoaplauso.

Umatrupededançarinosadentrouoespaçoabertodiantedenós,brilhantementevestidosparasugerirdeusesedeusasclássicos,emarmadurasdouradaseelmos,comescudos e lanças, e nos apresentaram uma espécie de balé lento, gracioso e

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meticuloso. As pessoas aplaudiam ansiosamente, e o vozerio por todos os ladosaumentoumaisumavezdevolume.

Eupoderiaterassistidoparasempreaesseslânguidosdançarinosexecutaremseuscuidadosos círculos, giros e formações. De repente, a música cou mais alta, osdançarinosseafastarameumalaudistaentrouemcena.Colocandoumpéemcimade um pequeno banco de prata, ele começou a cantar em latim, numa voz alta,porémgraciosa,acercadasvariedadesdoamor.

Uma espécie de tontura me acometeu, mas eu me sentia confortável eabsolutamente à vontade, edeslumbrado comoque viadiantedemeusolhos.Oalaudista saíra.Havia atores novamente, alguns dos quais representando cavalos, eencenavamumabatalhacommuitobarulhoefrequentesrompantesdeaplausos.

Havia comida no prato dourado à minha frente, e eu me dei conta de queefetivamente havia comido de maneira bastante entusiasmada quando os serviçaisvieramretirarospratoseatoalhadamesapararevelarumoutrotecidoporbaixo,decoloraçãocarmesimedourada.

Tigelascomáguaaromatizadaestavamsendopassadasparaquepudéssemoslavarasmãos.

Oprimeiropratohaviasidolevadoeeumalreparara,eagoravinhamosserviçaiscombaixelascompostasdeavesassadaselegumesfumegantes.Enósmaisumavezcolocávamos comida em nossos pratos. Não havia garfos, mas isso não mesurpreendeu nem um pouco. Comíamos com os dedos e com a ajuda de facasdouradas.Seguidamenteeubebiaovinhoàmedidaqueosgarotosenchiamnossoscopos, emeus olhos foram atraídos de volta à área àminha frente, quando umaenorme tela de fundo, contendo ruas e edifícios pintados, foi empurrada para olugar,transformandoopavimentodepedranumpalcoaindamaiselaborado.

Eunãoconseguiadistinguirotemadaencenaçãoqueseseguiu.Estavadistraídopelamúsicadefundoe,por m,simplesmentesonolentodemaisparaprestarmuitaatençãoaqualquercoisabela.

Umaoutra rodadade aplausos tirou-medemeuestupor.Leitõezinhos estavamsendotrazidosagoraeoaromaeraassoberbante,emboraeunãoestivessemaiscomvontadedecomernada.

Um repentino alarme fez com que eu recobrasse os sentidos.O que eu estavafazendo?Porqueestavaaqui?EutinhaaintençãodevelareprantearporLodovicoepelomeu próprio fracasso em salvá-lo.No entanto, aqui estava eu banqueteandocom estranhos e rindo com eles de exageradas dramatizações que a mim faziam

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poucoounenhumsentido.Euqueriafalar,masohomemquemetrouxeraparacáestavaconversandocomo

outropróximoaeleedizendocomavozmaisséria:–Faça.Façaoquevocêquerfazer.Vocêvaifazerdeumjeitooudeoutro,não

vai? Então por que se torturar com isso, ou com qualquer outra coisa, a nal decontas?

Elefixouoolharàsuafrenteebebeudeseucopo.–Vocênãomedisseoseunome–eudisse,tocandoamangadesuacamisa.Elesevirouparamimeproduziuumdosmaiscarinhosossorrisos.–Eletemsílabasdemais–disseele.–Evocênãoprecisasaber.Acarnenosestavasendooferecida.Elecortouumgrandepedaçonabaixelaea

depositou emmeuprato.Comumagigantesca colherdourada, serviuo arroz e orepolhoetambémmedeuumaajudanisso.

–Não,nãoqueromais–eudisse.–Eutenhodeirembora,naverdade.Precisovoltar.

–Ah,quebobagem.Vocênãodeveriair.Eleslogo,logovãocomeçaradançar,para todos. E depois teremosmais divertimentos. A noite apenas começou. Essascomemoraçõesseguempelanoitetoda.–Eleapontouparaumgruponasmesasmaisdistantesquemargeavama lateraldireitadohall. –Está vendo ali?Aqueles sãoosconvidados do cardeal que vieram de Veneza. Ele está fazendo o máximo paraimpressioná-los.

– Está tudo muito bom e bonito – eu disse –, mas eu tenho de ver o queaconteceucomVitale.Achoquefiqueiaquitempodemais.

EuouviumadoráveleleveacordedegargalhadapróximoamimemevireiparaveraquelaincomparavelmentebelaLeticiacurvandoacabeçanadireçãodohomemaoseulado.

–CertamenteelanãosabequeNiccolòperdeuoirmão–eudisse.–Não,éclaroqueelanãosabe–disseomeucompanheiro.–Vocêachaquea

famíliavaitornarpúblicaadesgraçaperpetradapeloidiotaquetirouaprópriavida?Eles vão enterrá-lo e deixem-nos em paz para fazê-lo. Deixem-nos fazer a coisasorrateiramenteesemaparticipaçãodemaisninguém.

Eusentiumaraivagélidasurgindoemmim.–Porque você faladelesnesse tom?–perguntei. –Eles estão sofrendo, todos

eles,eeuestouaquiparaajudá-losemseusofrimento,estouaquicomoumarespostaàsprecesdeles.Vocêdáaentenderquenãoosaprovanemsuaspreces!

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Eupercebi que erguera a voz.Ela soara áspera.Eu estava confuso. Será que euestavamesmofalandocomumanjo?

Ele olhou xamente paramim, e eu quei subitamente perdido avaliando seurosto.Suassobrancelhaseramescuraseretaselocalizadasbemnoalto,eseusolhosemsierambemgrandeselímpidos.Suabocaerasuave,carnudaeestavasorridente,comoseeleestivessemeachandoumapessoadivertida,masnãodemonstravaumaatitudenemumpoucodebochadaoudesdenhosa.

–Vocêéarespostaàsprecesdeles?–perguntou,comdelicadeza.Elepareciaestarbastantepreocupado.–Vocêé?Vocêrealmenteachaqueéporissoqueestáaqui?–Ele parecia estar falando muito suavemente, muito suavemente para esse lugarimenso,emuitosuavementeparaserouvidoemmeioàquelamúsicaurgenteelindaquevinhadetodososladosdohall.Maseuconseguiaouvircadapalavraquedizia.

–Eseeutecontassequevocênãoéarespostaàsprecesdeninguém,quevocêéotrouxainventadoporespíritosquequeriamfazervocêacreditarnissoporrazõesdelespróprios?–Elepareciaestarpreocupadoedepositousuamãoquenteemmeupunhoesquerdo.

Eu quei aterrorizado.Não disse nada. Apenas olhei para ele, para os suaves eespessos cachos de seus longos cabelos, para seus olhos rmes. Eu não estavaaterrorizadocomele,mas comoque ele acabaradedizer.Se fosse issomesmo,omundo carecia de sentido e eu estava perdido. Tive essa impressão aguda einstantaneamente.

–Oquevocêestádizendo?–perguntei.–Quementiramparavocê–respondeuele,comamesmasolicitudecarinhosa.–

Não existem anjos, Toby, existem apenas espíritos, espíritos desencarnados e osespíritosdaquelesqueviveramemcarneeossoenãomais se encontramvivos emcarne e osso. Você não foi enviado até aqui para ajudar quem quer que seja. Osespíritos que estão te manipulando estão se alimentando das suas emoções, sealimentandotãoverdadeiramentequantoaspessoasnessa salaestão sealimentandodessespratos.

Elepareciadesesperadoparafazercomqueeucompreendesseisso.Eupoderiaterjuradotervistolágrimasescorrendodeseusolhos.

–Malchiahnãomandouvocê,mandou?Vocênãotemnadaavercomele–eudisse.

–Éclaroqueelenãomemandou,masvocêprecisaperguntar-seporqueelenãoconseguemeimpedirdetecontaraverdade.

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–Eunãoacreditoemvocê–eudisse.Tenteimelevantar,maseleseguroucomrapidezomeubraço.

–Toby,nãová.Nãodêascostasparaaverdade.Meutempocomvocêpodesermaiscurtodoqueeuesperava.Deixe-meteasseverar,vocêestápresonumsistemadecrençaquenãoénadaalémdeummecanismovoltadoparaaencenaçãodementiras.

–Não.Eunãoseiquemvocêé,masnãovououvirnadadisso.–Porquenão?Porque issotedeixacomtantomedo?Euviajeinotempoaté

aqui para tentar te alertar contra essa crença supersticiosa em anjos, deuses edemônios.Agoramedeixeporfavortentaralcançarteucoração.

–Porquevocêfariaisso?–perguntei.–Existemmuitasentidadesdesencarnadascomoeunouniverso–disseele.–Nós

tentamosguiar almas comoa sua,que estãoperdidas em sistemasde crenças.Nóstentamos convencer vocês a retornarem às trilhas do verdadeiro crescimentoespiritual.Toby,suaalmapode carenclausuradanumsistemadecrençacomoesseporséculos,vocênãopercebeisso?

–Comoeuchegueiaqui,comoeuviajeinotempocincoséculossetudoissoéumamentira?–euquissaber.–Deixe-meirembora.Euvousairdaqui.

– Cinco séculos de volta no tempo? – Ele riu da maneira mais suave e tristepossível.–Toby,vocênãoviajoudevoltanotempo,vocêestáemoutradimensão,ésóisso,umadimensãoqueosmestresdeseuespíritoconstruíramparavocêporqueisso lhes é conveniente enquanto eles tentam colher suas emoções e as emoçõesdaquelesseresàsuavoltaparaoprazerdelespróprios.

–Parededizerisso–eudisse.–Essaéumaideiaabominável.Vocêachaqueeununcaouviideiascomoessaantes?

Eu estava commedo. Estava chocado e commedo.Meu intelecto se rebelavacontra cada palavra que ele pronunciara,mas eu estava abalado.Um terror gélidopoderiamesubjugaraqualquermomento.

–Ostermosquevocêestáusandonãosãonovosparamim–eudisse.–Vocêachaqueeunãoliteoriassobremúltiplasdimensões,históriasdealmasqueviajamparaforadeseuscorpos,queencontramespíritosterrenosaprisionadosemrealidadesdasquaiselesprecisamescapar?

–Bom,sevocêleuessascoisas,peloamorquenutreporvocêmesmoeportodosque lhe sãoqueridos, questione esses sereshorrendosque estão temanipulando!–insistiuele.–Livre-sedeles.Vocêpodesairdessaarmadilhagrotesca,dessaelaboradaboladetempoeespaço,simplesmentedemonstrandodesejodesair.

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–Fazendooquê?–euzombei.–Batendoostornozelosedizendo:“Nãohálugarcomoanossacasa”?Escuteaqui,eunãoseiquemévocê,masseioqueestátentandofazer.Vocêestá tentandome impedirdevoltarparaVitale,de fazeroqueeuvimfazeraqui.Easuaurgência,meuamigo,fazmaisparasolaparsuasanêmicasteoriasdoqueaminhalógica.

Elepareceuterficadomagoado.–Você está certo – confessou ele, os olhos brilhando. –Eu estou tentando te

deter,fazercomquevocêvolteaseuprópriocrescimentoeàsuaprópriacapacidadedebuscaraverdade.Toby,vocênãoqueraverdade?Vocêsabequeascoisasqueesse,porassimdizer,anjotecontounãopassavamdementira.NãoexisteSerSupremoouvindoasprecesdeninguém.Nãoexistemanjosaladosenviadosparaimplementaravontadedele.–Suabocaalongou-senumaexpressãozombeteira.Mas,emseguida,seurostoexprimiunovamenteamaiscompletacompaixão.

– Por que cargas d‘água eu deveria acreditar em você? – perguntei. – O seuuniverso é vazio, um universo implausível, e eu o rejeitei hámuito tempo. Eu orejeitei quando minhas mãos estavam ensanguentadas e minha alma, negra. Eu orejeiteiporqueelenãofaziasentidoparamimecontinuanãofazendosentidoparamimagora.Porqueessesistemadecrençasseuémaisplausíveldoqueomeu?

–Crença,crença,crença.Eupeçoquevocêutilizesuaracionalidade–implorouele.–Ouça,os fanfarrõesdo seuespíritopodemvoltar aqualquermomentopararecolhê-lo. Por favor, eu te imploro, con e no que eu tenho a dizer.Você é umpoderoso ser espiritual, Toby, e não precisa de um deus ciumento que exigeadoração,oudeseuscapangasangelicaisteenviandoparaatenderpreces!

–Eporquemvocêveioaqui,comtantapaixãoecomtantoesforço?–Eu tedisse.Eu souumadasmuitas entidadesdesencarnadas enviadaspara te

ajudar em sua jornada. Toby, essa sua religião miserável é o tipo mais baixo eextenuantedesistemadecrença.Vocêprecisaultrapassá-lo se temalguma intençãodeevoluir.

–Vocêfoienviado,masenviadoporquem?–Comoeupossofazervocêentender?–Elepareciagenuinamentetriste.–Você

viveumuitasvidas,massemprecomumaúnicaalma.–Euouviessahistóriaummilhãodevezes.–Toby,olhebememmeusolhos.Eusouapersonalidadedeumavidaquevocê

jáviveumuitotempoatrás.–Issomedávontadederir–eudisse.

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Osolhosdeleencheram-sedelágrimas.–Toby,eusouohomemquevocêfoinessetempo,vocênãovê?Eeuvimpara

despertá-loparaoqueouniversorealmenteé.Elenãotemnadaavercomcéuouinferno.Nãoexistemdeusesexigindoadoração.Nãoexistebemoumal.Essascoisassão constructos teóricos. Você caiu numa armadilha que torna o crescimentoespiritualimpossível.Desafieessesseres.Recuse-seaobedecer-lhes.

–Não–eudisse.Algumacoisaestavadiferenteemmim.Otemordesaparecera,e a raivaque eu sentira antes, também.Umacalma tomoucontademim, emaisumavezeutomeiconsciênciadamúsica,daquelamesmaencantadoramelodiaqueeu ouvira quando aqui cheguei. Havia na música uma eloquência tão intensa dejustiçaebeleza,tãoexpressivadevirtude,quepoderiadilacerarocoraçãodealguém.

Eumevireieolheiparaafesta.Haviapessoasdançando,homensemulheresemcírculos,segurandoasmãosunsdosoutros,ocírculointeriorgirandoemumsentidoeoexterior,emoutro.

Avozdelechegoubememmeuouvido.–Vocêestácomeçandoapensarnisso,nãoestá?–Eupenseinisso,sim,nasideiasquevocêestáoferecendo.Comoeutedisse,eu

jáasouviantes.–Eumevireieolheiparaele.–Maseunãovejonadaconvincenteemseuargumento.Comoeudisse,vocêestádescrevendoumsistemadecrençadesuapróprialavra.Queprovasvocêtemarespeitodaexistênciadeoutrasdimensões,oudainexistênciadeDeus?

–Eunãoprecisoterprovasdoqueinexiste–disseele.Elepareciaestarirritado.–Eufaçoumapeloaoseubom-senso.Vocêviveumuitasvidas,Toby,emuitasvezesespíritoscomoeuvieramemseuauxílio,eàsvezesvocêaceitouessaajuda,eàsvezesnão.Vocêreencarnoudiversasvezescomumplanodeaprendercertascoisas,e seuaprendizadonãopodeprogredirsevocênãosedercontadequeéassimqueacoisafunciona.

–Não, trata-se com certeza de um sistema de crença, tudo isso que você estádizendo, e, como todo sistemade crença, ele apresentaumacerta coerência eumacerta beleza,mas eu o rejeiteimuito tempo atrás. Eu te disse e vou repetir: eu oconsiderovazio.

–Comovocêpodedizerumacoisaassim?–Vocêquerrealmentesaber?Vocêquerrealmente,verdadeiramentesaber?–Euteamo.Eusouvocê.Euestouaquiparateajudaraavançar.–EuseiporquebemnofundodaminhaalmaeuseiqueexisteumDeus.Existe

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alguém a quem eu amo que eu chamo deDeus. Esse alguém tem emoções. EssealguéméoAmor.EeusintoapresençadesseDeusnaprópriaestruturadomundonoqualvivo.EuseiqueDeusexisteetenhoumaprofundaconvicçãoaesserespeito.EuseiqueofatodeEleenviaranjosaseus lhospossuiumaelegânciaqueamiméinegável. Eu estudei as suas ideias, o seu sistema, e o considero estéril e poucoconvincente e frio,numaavaliação nal.No fundo,no fundo ele éhorrivelmentefrio.NãopossuiapersonalidadedeDeuseéfrio.

– Não – protestou ele, sacudindo a cabeça. – Ele não é frio. Eu estou teimplorando. Você está errado. Você está colocando no centro de seu sistema umdeusquejamaisexistiu.Somenteacriançaemvocêinsistenaexistênciadessedeus.Essacriançadevedarlugaraohomemadulto.

Eume levanteidamesa, levandoo alaúde comigo.Parei,desa velei a espada edeixeiquecaíssenochão.Solteiomantoqueelemederaquandonosencontramos.

Derepente,aminhacabeçacomeçouagirar.–Nãová,Toby–disseele.Eleestavaparadopertodemim.Não.Nósestávamosandandojuntosemmeioà

multidão.Euestavatonto.Alguémempurrouumcopodevinhoemminhadireção,eeuodispenseicomumbalançardemão.

Elemeabraçouetentoumedeter.–Deixe-meir,euestouteavisando–eudisse.–Eunãoestouinteressadonoque

vocêmeofereceu.Eunãoseisevocêémalignoouseestásimplesmenteperdidoemalgumajornadapessoal.Maseuseioqueeutenhoafazer.EutenhodevoltarparaVitaleeajudá-loemtudoquepuder.

– Você pode ser livre – sussurrou ele, seu rosto muito próximo ao meu. –Desa e-os, amaldiçoe-os!–disse ele, seu rosto candovermelho.–Denuncie-os erepudie-os.Elesnãotêmdireitodeteusar.–Osussurrodelehaviasetransformadonumsibilo.

Ele olhava para a esquerda e para a direita. Ele me soltou, mas, em seguida,colocousuasmãosemmeusombroseosseguroucomforça,eeusentiaapressãodeseusdedosficandocadavezmaisforte.

Euodiei aquilo.Tivedeme conterparanão lhedarum soco e jogá-loparaolado.

–Vocêvaiacreditaremmim–disseele–seeu zertudoissodesaparecer?Seeujogar vocêde volta à sua camanoMission Inn?Ou seráque eudeveriamandá-loparaaruaarborizadaemNovaOrleansondesuaamigareside?

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Eusentiosanguesubindo-mepelorosto.– Saia daminha frente – eu disse. – Se você é o que diz ser, então sabe que

nenhummalpodeadvirdofatodeeuvoltarparaVitale.Deeuajudarumoutroserhumanoextremamentenecessitado.

–QueVitaleváparaoinferno!–rosnouele.–Queeleeseusobstáculosnojentosvãoparaoinferno.Eunãovoudeixarvocêseperder.

Os dedos dele estavam penetrando em minha carne, e a sensação eraabsolutamente dolorosa.O somdamultidão e damúsica cara aindamais alto eagorapareciaensurdecedor,assimcomoas luzeshaviamse tornadoumaespéciedebrilhocegantequeatudoenglobava.

Euestavalutandocomtodososmeussentidosparaidenti caromomento,paraidentificaroquediziamosmeuspensamentos,paraidentificaroquefazer.

Umenormetumultodeaplausosegritosvindodamultidãomedeixouaturdido.E,nesseinstante,elemeprendeunumabraçoecomeçouamearrastarpelochão.

Eumesoltei.–Saidemim,satanás!–sussurrei.Ejogueiopunhoparatrásedei-lheumbelo

soconacaraquefezcomquesaíssevoandoparatrás,afastando-sedemim,comoseelefossefeitodenadaalémdear.

Euvi sua forma saindoemdisparada, como se atravésdeumenorme túneldeluz.Narealidade,aprópriaestruturadomundoaomeuredorestavaarrebentada,eseu corpo explodiu naquela ssura produzindo enormes fagulhas de um fogocegante.Eufecheiosolhos.Nãoconseguievitar.Caídejoelhos.Aluzeravulcânicaeabrasadora. Um grito hercúleo preencheu meus ouvidos e transformou-se numaespéciedeuivo.

Umavozfalou:–Diga-meseunome!Eu tentei enxergar,mas a luz ainda estavame cegando. Cobri o rosto com as

mãos,tentandoespiaratravésdosdedos,mastudooqueconseguiavereraessefogoincessante.

–Diga-meseunome!–vinhaavoznovamente,eeuouviaresposta,comoumsibilo:

–Ankanoc!Deixe-meir.A voz falou novamente, num inequívoco tom de denúncia, embora eu não

conseguisseouviraspalavras.Ankanoc,váparao inferno.Ele forabanido,ea forçaqueofizerasumiraindaestavapróxima.

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Ouviu-se um rosnado intenso, que foi cando cada vez mais alto, e, muitoemborameusolhosestivessemfechados,eusabiaquealuzsefora.Ankanoc.Estavareverberando em minha mente e eu tinha a sensação de que jamais o esqueceria.Pensei conhecer aquela voz que exigira saber o nome, que exigira que o serdesaparecesse, e a voz pertencia a Malchiah, mas eu não estava certo. Eu estavaabaladoatéosossos.

Abrimeusolhos.Encontrei-me ajoelhado na laje. A multidão estava ao meu redor, próxima de

mim, as mesmas gargalhadas, vozes e notas musicais indistintas pairando no ar.Minhacabeçalatejava.Meusombrosdoíam.

Malchiah estava ajoelhado perto de mim, amparando-me, mas não estavarealmente visível paramim.Eu sentia suasmãosme equilibrando.Comuma vozdesprovidadesom,eledisse:

–Agoravocêsabeonomedele.Chame-opelonome,sejalácomquaisdisfarcesele apareça para você, e ele deverá responder! Lembre-se disso, agora,mais tarde esempre.Ankanoc.Agoraeuodeixoparaquevocêfaçaoquedevefazer.

Mentiras,sistemadecrença,seressealimentando...–Nãomedeixe!–sussurrei.Maselesefora.Umhomemestavaempéaomeulado,umhomemcomrostoredondoetraços

suavesvestindoumlongorobevermelho.Euvisuamãodescendoaomeuencontroenquantoeledizia:

–Aqui,deixe-meajudá-loaselevantar,jovem,vamoslá,acaboudebatermeia-noite.Aindaestácedodemaisparavocêestartropeçandodessejeito.–Outrasmãosmeajudaramameerguer.

Então, dando-me um tapinha no ombro, o homem sorriu e seguiu com seuscompanheirosparaointeriordasaladebanquete.

Euestavadiantedasportasabertasdopalazzo.Epodiaverqueestavachovendoláfora.

Eutenteiclarearamente.Tenteipensaremtudooqueacontecera.Acaboudebatermeia-noite.Euestiveratodoessetempoausente.Oquepassarapelaminhacabeçaparaqueeudeixasseumacoisaassimacontecer,

eoqueeuimaginavaqueacontecera?Otemortomoucontademimnovamente,otemorgradualmenteseacumulandoatéqueeunãoconseguiamaispensarousentir.SeráqueMalchiahaparecera realmente?Seráqueelede fato espantaraodemônio?

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Ankanoc.Derepente,tudooqueeuconseguiavisualizareraasuacarasatisfeita,suasmaneirasaparentementesolícitas,seuindubitávelcharme.

Percebiqueestavadepénachuva.Euodiavachuva.Eunãoqueria carmolhado.Eunão queria que o alaúde cassemolhado. Fiquei parado na escuridão, a chuvaestavamegolpeandoeeuestavacomfrio.

Fecheiosolhoserezei,aoDeusemquemacreditava,aoDeusdomeusistemadecrença,penseieuamargamente,pedindoaElequemeajudasseagora.

Eu acredito emVocê. Eu acredito queVocê está aqui, independentemente de eusentirounão,oualgumdiaviratercertezaabsolutadequeéverdade.EuacreditonouniversoqueVocêfez,construídoapartirdeSeuamoredeSeupoder.EuacreditoqueVocêvêesabetodasascoisas.

Penseiemsilêncio,euacreditoemSeumundo,emSuajustiça,emSuacoerência.Acreditonoqueouvinamúsicahápoucosmomentos.Acreditoemtudoquenãopossonegar.Eháofogodoamornocentrodisso.Queeusejaconsumidodecorpoealmanessefogo.

Vagamente,euestavacientedequefaziaumaescolha,maseraaúnicaescolhaquepodiafazer.

Minhacabeçaclareou.Ouviaquelamelodiadointeriordopalazzo,amelodiaqueeuouviraquandoos

músicoscomeçaramatocarpelaprimeiravez.Eunãosabiaseaestavaformandoemminha mente a partir dos distantes os sensíveis da música ou se eles a estavamrealmente tocando, tão tênue era aquela canção. Mas eu conhecia a melodia ecomeceiacantarolá-laparamimmesmo.Euqueriachorar.

Eunãochorei.Fiquei láparadoatévoltara carcalmoeresolutoeaescuridãonãomaisparecerumapenumbrafatalenvolvendoomundointeiro.Ah,seaomenosMalchiahvoltasse,pensei eu, seaomenoseleconversassemaisumpoucocomigo.Porque eledeixara aqueledemôniovir atémim, aqueledybbukmaligno?Porquepermitiraisso?Mastambém,quemeraeuparafazeressetipodeperguntaaele?Eunãoestabeleciasregrasparaessemundo.Eunãoestabeleciasregrasparaessamissão.

EutinhadevoltaragoraparaVitale.Malchiahestavamedandoaoportunidadedefazer isso,decumpriramissão,e

eraexatamenteissooqueeutencionavafazer.Euvi,bemàminhaesquerda,obecoatravésdoqualeuvieraatéesselocal,esaí

emdisparada na direção dele, e depois pela longa viela até apiazza que cava emfrenteàcasadeVitale.

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Euestavacorrendocomacabeçabaixaquando,poucoantesdoportãodacasa,Picomealcançouejogouummantoporcimademinhacabeçaeombros.Levou-meparadentrodosportões, tirando-medachuva, e rapidamente secoumeurostocomumpanosecoelimpo.

Uma solitária tocha amejava em seu castiçal de ferro e, em cima de umapequenamesa,encontrava-seumsimplescandelabrodeferrocomtrêsvelasacesas.

Eu queiparado,tremendo,odiandoofrio.Estavaapenasumpouquinhomaisquenteaqui,masgradualmenteadurezadafriagemestavasedissipando.

Emminhamente,euviorostodeAnkanoceouvisuaspalavrasnovamente:“umsistema de crença”, e ouvi as longas sentenças que ele proferira e todas as frasesfamiliaresquehaviamvazadodesuaboca.Euviapaixãoemseusolhos.Entãoouviaquelesibiloquandoeleconfessouseunome.

Eu vi o fogo novamente e ouvi o rosnado ensurdecedor que o acompanhou.Encosteiopesodocorponaúmidaparededepedra.

Umaconscientizaçãocadavezmaisnítidafoiseapoderandodemim:vocênuncasabenadacomcerteza,mesmoquandoasuaféégrande.Vocênãosabe.Suaânsia,suaangústia,podeserinterminável.Mesmoaqui,nessacasaestranhaemumoutroséculo, com todas as provas que oCéumeproporcionou, eunão sabia realmentetudooquedesejavasaber.Eunãotinhacomoescapardomedo.Nãomaisdoqueuminstanteatrásumanjofalaracomigo,masagoraeuestavasozinho.Eodesejodesabereradoloroso,porqueeraumdesejodequetodasastensõesetodasasmisériasacabassem.Eelasdefatonãoacabamnunca.

–Meumestredisseque vocêdeve ir embora–dissePicodesesperadamente. –Aqui está uma quantia em dinheiro que ele deixou para você. Ele disse que estáagradecido.

–Eunãoprecisodedinheiro.Elepareceuterficadocontenteaoouvirissoeafastouabolsa.–Mas,mestre–disse ele–, eu te imploro.Nãová.Meumestre está trancado

agoranacasadeSignoreAntonio.FreiPieroexigiuqueelefossedetidoatéquemaispadresapareçam.Elesoestãomantendopresoporcausadodemônio.

–Eunãovouabandoná-lo–afirmei.–Graçasaoscéus–dissePicoecomeçouachoramingar.–Graçasaoscéus–disse

eleseguidamente.–Semeumestreforjulgadoporfeitiçaria,overedictoserácerto.Elemorrerá.

–Eufareiomáximopossívelparaqueissonuncaaconteça!

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Eumevireiparaentrarnacasa.–Não,mestre,porfavor,nãoentre.Odemônioestáquietoháapenasalgumas

horas.Senósnosaproximarmosdaescada,elesaberáecomeçarátudonovamente.– Fique aqui então,mas eu vou falar com esse demônio – eu disse. Peguei o

candelabrodeferro.–Euestavaagorahápoucoconversandocomumoutro,eessedemônionãotemnenhummedonovodemim.

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A

CAPÍTULODEZ

SSIM QUE ALCANCEI A ESCADA DE PEDRA, eu ouvi odybbuk.Eleestavabemacimademim.PenseinaspalavrasdeVitalequandoelemedisse que, no andar “de cima”, encontrara a sinagoga da casa, com

seus livros sagrados. Eume pus a subir, protegendo as trêmulas chamas das velas,passandopelasportasdoestúdiodeVitaleeseguindonadireçãodoúltimoandardacasa.

Os ruídos cavam mais altos e mais insistentes. Alguma coisa se despedaçou.Houvepancadasebatidasàmedidaqueobjetosaparentementesechocavamcomasparedes.

Finalmenteeumeencontreidiantedaportaabertadeumasalagrande.Silêncio.Otetodorecintoera,decertaforma,maisbaixodoqueosdoandardebaixo,masnãomuito.

De imediato, a luz revelou o brilho distante das portas prateadas da arca ourepositórioque,semdúvidanenhuma,guardavaoslivrossagradosdeMoisés.Estavadisposta na parede leste. De um dos lados, algo parecido com um pódio estavavoltadoparaasala,comdiversosbanquinhosempoeiradosàsuafrente,e,maisparaadireita,haviaumagrandetelapintadaedourada.Atrásdisso,haviaumlongobancocuja função, no passado, devia provavelmente ser a de acomodar asmulheres quepodiameventualmenteparticipardosserviçosesermõesaquirealizados.Asparedes,muito ricas, eram revestidas de madeira escura, mas não tão escura que eu nãopudesse ver nelas asmuitas inscrições, pintadas de preto em letras hebraicas.Umamesa encontrava-se em um dos lados do pódio, e, sobre ela, havia uma pilha depergaminhos.

Finos lustresdeprata estavampenduradosno teto.As janelas estavam fechadascomvenezianasetrancadas.Eomeucandelabroera,evidentemente,aúnicafontedeluz.

Derepente,osbanquinhosàminhafrentecomeçaramavibrar,depoisasemover,umbanquinhochocando-secomooutro,eoslustrescomeçaramarangeremsuas

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correntesdeprata.Umpequenolivroencadernadofoierguidodeumdosbanquinhoseveiovoando

emminhadireção,demodoquefuiobrigadoameabaixar.Oobjetoaterrissounochãoatrásdemim.

–Quemévocê?–perguntei.–Sevocêéumdybbuk,euexijoquemedigaseunome!

Todos os banquinhos estavam se movendo, batendo uns nos outros, e a telapintadacaiucomumestrondo.Novamenteobjetosestavamsendoarremessadosemmim,eeutivedesairdovãodaporta,protegendo-meinstintivamentecomminhamão direita. Ouvi um som oco, um rugido, muito similar ao ruído que ouviraquandoAnkanocforabanido,masessepareciafeitoporumavozhumana.Eratãoalto,queeufuiobrigadoacobrirosouvidos.

–EmnomedeDeus–eudisse–,euexijoquevocêmedigaseunome.–Masisso apenas intensi cou a fúria da criatura. Um dos lustres começou a baterfuriosamenteparaafrenteeparatrásatéserarrancadodacorrenteecairemcimadosbanquinhoscomumestouro.

Eudesabeinochão,comoseestivessemeencolhendo,masnãoestava.Observeiumoutrolustreseesfacelarnosbanquinhosetenteinãopiscarnemtremerdiantedoimpactantebarulho.

Coloqueiocandelabronochãoe queisentado,imóvel.Seessacoisaapagasseasluzes,eu carianumasituaçãobastantedesconfortável,masatéagoraelanão zeraissoe,comoeuestavalásemmemovernemfalar,elavoltouaseaquietar.

Lentamente alcancei o meu alaúde e o coloquei no colo. Eu não tinha muitacerteza do que faria,mas apertei as cordas do instrumento, dedilhando-o bastantesuavementeparaa ná-lo.Fecheiosolhosecomeceiatocardecabeçaaquelamelodiaque ouvira no palácio do cardeal. Eu pensei, sem palavras, no que aquelamúsicasigni cara para mim no momento em que eu discutia com Ankanoc. Pensei nacoerência,na eloquênciadela,namaneira como falavaparamima respeitodeummundonoqualaharmoniaerain nitamentemaisdoquesonho,noqualabelezaapontavaparaodivino.Euestavaquasechorandoàmedidaqueabsorviaamúsica,con andoamimmesmoatarefadereconstruiramelodiaetorná-laminhaapartirdequaisquermudançasqueamemórianãoteriacomosustentar.

Asnotassuavesdoalaúdeecoavampelasparedes.Fiqueiumpoucomaisousado,tocando com mais rapidez, e com uma gama maior de variações, e lentamenteconduzindoamelodiaparaummelancólicocomentáriosobreelaprópria.Comeceia

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cantarolarcomasnotasmaisbaixaseentãoacantarbaixinhoemmonossílabos,nanah,nanahnah,na,deixandoquemeusdedoseminhavozmelevassemparaondedesejassem. As lágrimas brotaram em meus olhos. Eu deixei que elas escorressempelorosto.Comeceiacantarbaixinhoaspalavrasdeumsalmo.

–Oh,Deusdaminhasalvação,quandoeuchoronaescuridãodiantedeti,queasminhasprecestealcancem.–Eulutava,incapazdemelembrar,parafraseando.–EuestoupróximoaolimiardeSheol.Curveseusouvidosàminhador.

Continueicantando,pronunciandopalavrasquando frasesmevinhamàcabeça,cantarolandosenenhumasurgia.Meusolhosmoveram-sepelasalasombriaàminhafrente,eeupercebiquenãoestavasozinho.

Empé diante do repositório, e nãomuito distante demim, encontrava-se umpequeninoancião.

Nósolhamosumparaooutro,eseurostorevelouumgrandeespanto,enãoeradifícilimaginaromotivo.Eleestavaimpressionadoporeupodervê-lo,assimcomoeumesmoestava.

Eupararade tocar.Apenasolhavaparaele,decididoanãodemonstrarnenhummedo,e,defato,eunãoestavasentindomedoalgum.Sentiaapenasumentusiasmoeumaadmiraçãocrescentes,eumdesesperoporsaberoquefazer.

– Você não édybbuk coisa nenhuma – sussurrei baixinho. Ele não pareceu terouvidoaspalavras.Olhava-medealtoabaixo,avaliando-medetalhadamente.Eeuestavafazendoomesmocomeleagora,memorizandotudooqueviacomavelhapráticadeassassino,determinadoanãodeixarescaparnadadoquemeestavasendoapresentadoaqui.

Ele eradiminuto,umpoucocurvadoe extremamente idoso, comumacacholacalvaeumaricajubadecabelosbrancosquelhecaíampelosombros.Tinhabigodeebarba brancos. Suas roupas de veludo escuro, embora tivessem sido elegantes nopassado,estavamagorasurradas,cheiasdepóerasgadasaquieali.Havia tasazuiscosturadasnasextremidadesdeseumanto,eeleportavaoodiosodistintivoamarelonaalturadocoração,queoidenti cavacomojudeu.Estavatranquilo,examinando-meatentamentecomseuspequenosolhos amejantesportrásdeumpardeóculoscintilantes.

Óculos.Eunãosabiaqueaspessoasnessaépocapossuíamessetipodecoisa.Masele de nitivamente usava óculos, e, vez por outra, as chamas de minhas velasbrilhavamnaslentes.

Malchiah,dê-meagraçadefalarcomele.

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–Vocêpercebequeeupossovê-lo–eudisse.–Eunãoestouaquicomoinimigo.Estouaquiapenasparadescobrirporquevocêassombra.Oqueodeixoutãoa ito?Oqueodeixousemdisposiçãoparaaparecernaluz?

Por um segundo, ele cou em silêncio, imóvel e re exivo. Então começou aandaremminhadireção.

Eupenseiquemeucoraçãofosseparardebater.Elecaminhouresolutoatépararbemnaminhafrente.Eucontivearespiração.Eleeraaparentementesólido,humanoerespirava,enquantoolhavaparamimporbaixodassobrancelhasbrancas.

Nãoeranenhumconsoloparamimofatodeeumesmoserumespíritonaqueledomínio, de ele ser um milagre tanto quanto eu era. Eu estava com medo, masdeterminadoaescondê-lo.

Elepassoupormim,saiudorecintoeentrounapassagem.De imediato,pegueiocandelabroe,esquecendooalaúde,gireiocorpoe segui

atrás dele. Ele foi em direção à escada e então procedeu a uma descida rápida esilenciosa.

Euosegui.Nemuma vez sequer ele olhou para trás. Arqueado e pequeno,movia-se com

rapidez,comadestrezadeumfantasma,quemsabe,atéalcançaraportatrancadadeumporão.Passouporela,eeu,maisdoquerapidamente,destranquei-aparasegui-lo, descobrindo-o perto do pé da escada enquanto eu corria atrás dele, as velaslentamenterevelandoosdestroçosdoporãoaonossoredor.

Mesasecadeirasquebradasencontravam-seportodapartenalaje.Barrisdevinhoempoeirados estavam encostados na parede. Montes de móveis velhos, amarradoscom cordas, estavam empilhados acima dos barris, alguns deles quebrados ederramando o conteúdo despedaçado no chão. Centenas de livros mofadosencontravam-seempilhados,comlombadasrachadasepáginasesmagadas.

Estrados de luminárias e candelabros haviam sido revirados, e cestas estavamespalhadasportodososlados.

Opequenoanciãoagoraestavaempénomeiodochão,olhando xamenteparamim.

–Oquevocêdesejaqueeu saiba?–perguntei.Euqueria fazero sinaldacruz,masissoseriaumaafrontaaele.–EmnomedoSenhornoCéu,oquepossofazer?

Eleficouenfurecido.Berrou e rosnou para mim, batendo o pé seguidamente no piso do porão e

olhandoparaochãocomraiva,eentãocomeçouaseaproximardaquelaspequenas

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coisas que já estavam espalhadas. Agarrou uma garrafa e arrebentou-a nas pedras.Arremessoulivrosnaspedras.Rasgoupáginassoltasdepergaminhosetentouemvãojogá-las no chão, furioso ao ver que utuavam e rodopiavam ao seu redor. Elepisoteavaeapontavaeberravacomosefosseumanimalselvagem.

– Pare com isso, por favor, eu imploro! – gritei. – Você não é dybbuk coisanenhuma, eu sei disso.Eu escuto os seus gritos.Conte-meoque se passa em seucoração.

Maseunãotinhacomodizeraocertoseeleouviraasminhaspalavrasdevidoaosseusprópriogritos.

Elecomeçouaarremessarobjetosemmim.Pernasdecadeiras,pedaçosdepotes,garrafasquebradas–oquequerqueconseguisseagarrar,elejogavaemmim.

Pareciaqueoporão inteiro estava tremendo;móveis amarrados tombavamdosbarriscomosenósestivéssemosemmeioaumterremoto.Umagarrafadevinhomeatingiucomforçana lateraldacabeçaeeusentio líquidoavinagradoescorrerpelomeu ombro. Dei um passo para trás, a cabeça girando, sentindo-me tonto. Mascontinuava segurandoo candelabro com rmeza, como se o objeto fosse aminhagarantiadevida.

Euestavatentadoacondená-loporissoeaempreenderumadiscussãocomele,aapelaràsuagratidãoa rmandoqueeumedignaraaviratéaquiemproldele,maspercebi imediatamente que a ideia era jactanciosa, orgulhosa e estúpida. Ele estavaarrasado.Quaiseramasminhasintençõesparacomele?

Baixeiacabeçaerezeisuavemente.Senhor,porfavor,nãopermitaqueeufracassecomo fracassei com Lodovico. Novamente eu escolhi um salmo que não lembravainteiramentee,àmedidaquecantavaasantigaspalavrasdesúplica,ele foiparandogradativamente.

Ficouimóvelapontandoparaochão.Sim,eleestavaapontando.SubitamenteeuouviPiconaentrada,doaltodaescada.–Mestre,peloamordosCéus,saia!–gritouele.Não,nãoagora,eupenseidesesperadamente.Ofantasmadesaparecera.Todososobjetosmanipuláveisna salapareciamestar,deummomentoparao

outro,voandopelosares.Asvelasforamapagadas.Envoltoemirremediávelescuridão,eusolteiocandelabro,gireiocorpoecorrina

direçãodapenumbranoaltodaescada.Eutinhacertezadeestarsentindomãosmepuxando,dedosagarrandoosmeuscabeloseumabocarespirandoemmeurosto.

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Totalmenteempânico,continueicorrendoatéconseguirseguraramãodePico,tirá-lodocaminhoebateraportadoporãocomtodaaforça.Fecheiatranca.

Fiqueiprostrado,tentandorecuperarofôlego.–Mestre,temsanguenoseurosto–gritouPico.Dooutroladodaporta,ouviu-seouivomaislastimávele,emseguida,umruído

trovejante,comoseosbarrismaioresdevinhoestivessemsendoroladospeloporão.–Nãosepreocupecomosangue–eudisse.–Leve-meatéSignoreAntonio.Eu

precisofalarcomeleagora.Euseguinadireçãodacasa.–Aessahora?–protestouPico,maseunãodesistiriacomfacilidade.–Elesabequeméessefantasma,eledevesaber–eudisse.Tenteimelembrardo

quehaviammecontado.Umeruditohebreumoraranacasa,sim,vinteanosatrás.Esse erudito hebreu arrumara a sinagoga no último andar da residência. Será queSignoreAntoniojamaisimaginaraqueessehomempudesseserofantasma?

NósbatemosnasportasdacasadeSignoreAntonioatéqueoporteirodanoiteapareceue,vendoqueméramos,deixou-nosentrarcomolhossonolentos.

– Eu preciso ver omestre imediatamente – disse eu ao velho, mas ele apenasbalançou a cabeça como se fosse surdo. Era incrível, pensei eu, a quantidade dehomensidososeserviçaisinválidoscirculandonessacasa.FoiPicoquempegouumavelaenosconduziuescadacima.

O quarto de dormir de SignoreAntonio estava cheio de lamparinas acesas. Asportasestavamescancaradaseeupodiavê-lobastantebem,emseulongorobedelãajoelhadonochãoaopédacama.Suacabeçaestavanuaesuandoàluz,esuasmãosestavamesticadasnaformadecruz.Certamenteeleestavarezandoparaseufilho.

Eleseassustouquandoeuaparecinaporta.Eentãoolhou xamenteparamimcomumultrajemudo.

–Porquevocêveioaqui agora?–demandouele.–Eupenseiquevocê tivessefugidoparasalvaraprópriavida.

–Euviofantasmaqueestáassombrandoaoutracasa–eudisse.–Euoviporinteiroecertamenteosenhorsabequemeleé.

Euentreinoquartoeofereciasmãosparaajudá-loase levantar.Eleaceitou, jáqueissoerabemdifícilparaelenaquelaidade,e,emseguida,eleseafastoue,girandocorpo,foinadireçãodeumadesuasenormesepesadascadeirasentalhadas.Desabounas almofadas e, esfregandoonariz por um instante como estivesse sentindoumador,levantouosolhosparamimedisse:

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–Eunãoacreditoemfantasmas!Dybbuks, sim,demônios, sim,mas fantasmas,não.

–Bom, émelhor pensar novamente no assunto. Esse fantasma é umpequenoancião.Eleusaumatúnicapretadeveludolonga,comoadeumerudito,mastemtas azuis costuradasnas extremidadesdomanto.Eleusao“distintivoamareloda

vergonha”natúnicaeenxergaomundoatravésdeóculos.–Eufizogestocommeusdedos para descrevê-los na frente de meus olhos. – Ele tem uma cabeça calva ecabelosebarbaslongosebrancos.

Eleficoumudo.–Éesseoeruditohebreuquemorounessacasavinteanosatrás?–euperguntei.–

Osenhorsabeonomedessehomem?Ele não respondeu, mas cou vivamente impressionado com o que eu havia

descrito.Eledesviouoolhar,perplexoeaparentementeentristecido.–PeloamordeDeus,homem,diga-mesesabequeméessehomem–eudisse.–

Vitaleestápresodebaixodeseuteto.EleserájulgadopelaInquisiçãoporterum...–Sim,sim,eutenhotentadoparartudoisso–gritouele,erguendoamão.Ele

respirou fundoe,depoisdeummomentode silêncio,pareceu render-se, comumlongosuspiro,aoquehaviafeito.–Sim,euseiqueméessefantasma.

–Osenhorsabeporqueeleestáassombrandoacasa?Sabeoqueelequer?Elesacudiuacabeça.Estavamuitoclaroqueaquilotudoeraexcrucianteparaele.–Oporão,oqueeletemavercomoporão?Elemelevouatélá.Eleapontava

paraochãodepedra.Eledeixouescaparumlongoeagonizantegrunhido.Colocouasmãosnorostoe

entãofixouosolhosemseusprópriosdedosqueestavamàfrente.–Vocêrealmenteviuisso?–sussurrouele.– Sim, eu vi isso.Ele ca enraivecido, berra, ele grita dedor.E aponta para o

chão.–Ah,não,nãodigamaisnada–implorouele.–Porqueeufuitãotoloaponto

de pensar que não se tratava disso? – Ele deu as costas a mim, como se nãoconseguisse suportar o meu escrutínio, ou mesmo o de quem quer que fosse, ecurvouacabeça.

–O senhornãopode contar a todos o que sabe? – euperguntei. –Nãopodetestemunhar que essa coisa não tem nada a ver com Vitale, ou com o pobreLodovico,oucomNiccolò?SignoreAntonio,osenhorprecisafalaroquesabe.

–Puxeacordadosino–disseele

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Eufizoqueelepediu.Quando seu serviçal apareceu, uma outra relíquia ancestral em forma de ser

humano, ele disse para o velho que, demanhã cedo, reuniria todas as pessoas daresidência na casa vizinha onde o fantasma estava enraivecido. Essa reunião deviaincluirFreiPiero,NiccolòeVitale,etodosdeveriamsereuniraoredordamesadasala de jantar, que deveria ser limpa e equipada com lamparinas e cadeiras. Pão,frutas,vinho,tudodeveriaestaràdisposição,jáqueeletinhaumahistóriaacontar.

Eusaídelá.Pico, que estivera pairando na passagem, levou-me para o aposento de Vitale.

QuandochameionomedeVitale,elerespondeucomumavozbaixaeinanimada.Eulhedissequenãotivessemedo.Euviraofantasma,eomistériodacriaturalogoseriaexplicado.

Entãoconsentiemserconduzidoatéumpequenoquartodedormircomparedespintadase,apesardebastantecuriosoemrelaçãoatudoaquilo,desabeinacamadealcovaedormirapidamente.

Acordei com os primeiros raios da manhã. Eu sonhara com Ankanoc. Nósestávamos sentados lado a lado, conversando em algum lugar confortável, e eledissera,comtodooseuaparentecharme:“Eunãotedisse?Existemmilhõesdealmasperdidasemsistemasdedorepesarelaçossemsentido.Nãoexistejustiça,nãoexistemisericórdia, não existe Deus. Não existe nenhuma testemunha das coisas quesofremos,excetoonossoprópriosofrimento.”Espíritosteusando,sealimentandodetuasemoções,nãohádeus,nãohádiabo...

No pequeno quarto de dormir, eu respondi a ele, ou a mim, com muitatranquilidade:

– Existe misericórdia – sussurrei. – E existe justiça, e existe o Uno quetestemunhatudo.E,acimadetudo,existeoamor.

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A

CAPÍTULOONZE

FAMÍLIA ESTAVA REUNIDA NA SALA DE JANTAR dadesafortunada casa quando cheguei. O fantasma estava tendo ataques noporão e vez por outra emitia uivos e rugidos impressionantes que

atravessavamosrecintos.PercebideimediatoquehaviaquatroguardasarmadosvigiandoSignoreAntonio,

pairandosobre suacadeiranacabeceiradamesa.Elepareciadescansado,decididoesolene em seus trajes de veludo preto, a cabeça curvada, as mãos juntas como seestivesserezando.

Niccolòestavacomumaaparênciaestupendamentemelhor,eessaeraaprimeiravezemqueeuovirausandoroupasnormais.Estavavestidodepretocomoopai,assimcomoVitale,queestava sentadoao ladodele eolhavaparamimcomolhostímidos.

FreiPieroestavasentadoaopédamesae,aoladodele,àsuadireita,haviadoisoutrosclérigoseumapessoacomumapilhadepapéis,umtinteiroeumapenaequeparecia ser, evidentemente, um escrivão. Comida em abundância encontrava-se àdisposiçãonoimensoaparador,eumacoleçãodeassustadosserviçais,incluindoPico,mantinha-segrudadanasparedes.

– Sente-se aqui – disse SignoreAntonio, apontandoparamim a posição à suadireita.Euobedeci.

– Eu a rmo novamente que não estou de acordo com tudo isso! – disse freiPiero.–Comessacomunhãocomespíritosoucomoquequerquesejaessacriatura!Essacasadeveserexorcizadaagora.Estoupreparadoparacomeçar.

– Chega disso tudo – disse Signore Antonio –, eu sei agora quem estáassombrandoessacasaevoucontaravocêsquemeleéeporqueestápromovendoessa assombração. E os conclamo que jamais permitamque palavra nenhuma ditaaquisejarepetidaforadesterecinto.

Relutantemente os padres concordaram, mas pude notar que não viam-seacatandoarecomendação.Possivelmenteissonãoterianenhumaimportância.

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Osruídosvindosdoporãocontinuavame,maisumavez, queiconvencidodequeofantasmaestavarolandoospesadosbarrisdevinhopelopiso.

ComumgestodeSignoreAntonio,osguardasfecharamaportadasaladejantarenóstivemosumadosedesilêncionaqualSignoreAntoniocomeçouafalar.

–PERMITAM-MECOMEÇARMUITOSANOSATRÁS, quando euera um jovem estudante emFlorença e desfrutava consideravelmente da corte dosMedici e não estava nem um pouco contente em ver o duro Savonarola chegaràquelacidade.Vocêssabemdequemsetrataessapessoa?

–Conte-nos,pai–disseNiccolò.–Nósouvimosessenomedurantenossasvidasinteiras,masnãosabemosaocertooqueaconteceunaquelaépoca.

–Bom,eutinhamuitosamigosentreosjudeusdeFlorença,naquelaépocacomotenhohoje, entre eles amigos eruditos eumprofessor, emparticular,que erabemsério e que estava me ajudando a traduzir textos médicos do árabe que ele, nacondiçãodegrandeprofessordehebraico,conheciamuitobem.Euveneravabastanteesse homem, assim como vocês, meninos, passaram a venerar seus professores dehebraicoemPáduaeemMontpellier.SeunomeeraGiovanni,eeutinhaumadívidaprofundaparacomelepelotrabalhoque zeraparamim.Àsvezeseusentiaquenãoo pagava o su ciente por todas as vezes em que ele me dava um manuscritoesplendidamentepreparado,prontoparaserlevadodeimediatoparaoimpressore,comolivro,entraremcirculaçãoparatodososmeusamigosveremedesfrutarem.EudiriaqueastraduçõeseanotaçõesqueGiovannifezparamimcircularamportodaaItália, já que ele trabalhava commuita rapidez em cópias de boa qualidade e, namaioriadasvezes,semumerrosequer.

“Bom,Giovanni,meubomamigoecompanheirodecopo,dependiadaminhaproteção quando os freis apareciam para pregar seus sermões, que tinham comointuito jogar a população contra os judeus.Também dependia dessa proteção seuamadofilhoúnico,Lionello,queeraumbomamigoecompanheirocomoeujamaistiveraigualemtodaaminhavida.EuamavaLionelloeamavaseupaidofundodocoração.

“Mas vocês sabem que, em toda Semana Santa em nossas cidades, ocorre amesmacoisa.Asportassãofechadasparatodososjudeus,daQuinta-feiraSantaatéoDomingo de Páscoa, não só para a proteção deles como também para quaisqueroutras coisas. E, como o teor dos sermões diz respeito ao castigo que eles devemreceberpor terem sidoos assassinosdeCristo,os jovens ru ões invademas ruas e

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jogam pedras em todas as casas judias que encontram pela frente. Os judeuspermanecem em suas residências, seguros desses ataques, e raramente os incidentessãomais sérios do que uma ou outra janela quebrada, e, quando oDomingo dePáscoaseencerra,amultidãoseaquietanovamenteeaspessoasjávoltaramparaseusafazeres,osjudeussaem,consertamosvidrosdesuasjanelasetudoéesquecido.”

–Nóstodossabemosdissoesabemosqueelesmerecemoquerecebem–dissefreiPiero–,jáqueforamefetivamenteosassassinosdeNossoSenhorAbençoado.

– Ah, não julguemos os judeus aqui com novas acusações – disse SignoreAntonio. – Certamente Vitale aqui é respeitado pelos médicos do papa e possuiváriosmembros de sua família trabalhando para romanos ricos que estão bastantefelizesemtê-loaseuserviço.

–Osenhorpoderianosdizer,porfavor,oqueaSemanaSantatemavercomosataques de fúria desse espírito? – rebateu frei Piero. – Será ele por acaso algumfantasma judeu que imagina a si mesmo erroneamente acusado do assassinato deCristo?

Signore Antonio olhou com raiva e desdém para o padre. E muitorepentinamenteouviu-seumbarulhovindodoporão,cujaintensidadeeramaiordoquequalquerumregistradoanteriormente.

OrostodeSignoreAntonio coumuitosério.EelemiroufreiPierocomoseodesprezasse,masnãorespondeudeimediato.FreiPiero couabaladoeenraivecidocom o ruído. Assim como os outros padres que estavam com ele. Na realidade,todos caramabalados,atémesmoeu.Vitaleestremeciaacadanovoassaltovindodoporão.Eportasemtodaacasacomeçaramabatercomoseestivesseocorrendoumapoderosaventania.

Elevandoavozacimadossons,SignoreAntoniofalounovamente:–UmacoisaterrívelsucedeuameuamigoGiovanni,emFlorença–disseele.–

UmacoisaqueenvolveuLionello,aquemeutantoamava.–Seurostoempalideceu,eelesevirouparaoladoporummomento,comoseestivesseimpedindoqueseusolhostestemunhassemapróprialembrançaqueestavaprestesarelatar.–Sóagora,nacondiçãodeumpaiqueperdeuseu lho,euconsigocomeçaraentenderoqueissosigni cou para Giovanni – disse ele. – Na época, eu senti a minha própria doragudamente.Masoquesucedeuaoúnico lhodeGiovannifoimaisterríveldoqueoqueaconteceuatémesmoameuLodovicosobomeuteto.

Eleengoliuemsecoe,comumavoztensa,prosseguiu.–Vocêsdevemselembrardequeaqueleseramdiasdiferentesdosdiasdequenós

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hojedesfrutamosemRoma–disseele–,quandooPaiSagradomantémumpulsormesobreosfreisnosentidodequeelesnãodeveminsu arapopulaçãocontraos

judeus.–Nuncafoiintençãodosfreisfazeressetipodecoisa–dissefreiPiero.Suavoz

estavatãopacienteedelicadaquantopossível.–QuandopregamnaSemanaSanta,eles desejam apenas lembrar-nos a todos de nossos pecados. Nós todos somosassassinosdeNossoSenhorAbençoado.Nós todos somos responsáveispelamorted’Elenacruz.E,comoosenhormesmodisse,essahistóriadejogarpedrasemcasasde judeus não é nadamais do que uma encenação, e todos voltam a ter relaçõesnormaisemquestãodedias.

– Ah, ouçam-me. Em Florença, naquele último ano em que lá vivi, durantetempostãofelizescommeusamigosnacortedograndeLorenzo,umaabominávelacusação foi feita contra Lionello, o amado lho deGiovanni, durante a SemanaSanta,efoiumaacusaçãoquenãopoderiaconterumaúnicapartículadeverdade.

“Savonarola dera início a suas pregações, começara a insistir na ideia de que opopulachodeverialivrar-sedasimpurezasdospecados.Elecomeçaraarecomendaraqueimadetodasascoisasquetinhamavercomumavidalicenciosa.Ehaviaentreseus comandados um grupo de jovens, brutamontes todos eles, que começaram atentar colocar empráticaosdesejosdele.Era sempredesse jeito comos freis.Elestinhamaoseuladooqueeracomumentechamadodegarotosdosfreis.”

–Ninguémaprovaessetipodeconduta–dissefreiPiero.– No entanto, eles se reúnem – disse Signore Antonio. – E uma turba deles

deixoucairsobreLionelloseufantásticofardo,acusando-odeprofanarpublicamenteas imagensdaVirgemAbençoada,eemtrês lugaresdiferentes.Comoseumjudeupudesseserloucoosu cienteparafazerumacoisacomoessaaomenosumavez.Eentãoelesestabeleceramtrêsacusaçõescontraele.E,aocomandodosfreisedeseufrenesicoletivo,umtriplocastigofoidecretadocontraojovem.

“Agora,marquemminhaspalavras,ojovemerainocente.EuconheciaLionello!Eu o amava, como contei a vocês.O que teria levado umhomemde intelecto elustre,deamorpelapoesiaepelamúsica,adebochardeNossaSenhorae,diantedeoutraspessoas,emtrêslugaresdiferentes?E,paramostraravocêsoquantotudoissoé ridículo, imaginemque ele tenha cometido algum ato de blasfêmia emumdoslugares.Seráqueteriatidopermissãoparairembuscadeumsegundoeumterceirolugarpararealizaromesmocrime?

“MasesseseramtemposloucosemFlorença.Savonarolaestavaangariandopoder.

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OsMediciestavamperdendoocontrole.“Eentãoessasentença foidecretadasobreodesafortunadoLionello,aquemeu

conhecia, compreendam,conhecia e amava comoamavaGiovanni,meuprofessor,conhecia e amava comoamoVitale,o amigodemeu lho,que está sentadoaquiconosco.”

Ele fez uma pausa, como se não estivesse mais com vontade de continuar.Ninguémfalounada.Esóentãopercebiqueofantasmaestavaquieto.Ofantasmanãoestavaproduzindoumúnicosomsequer.

Eunãosabiasemaisalguémrepararaisso,porqueestávamostodosolhandoparaSignoreAntonio.

–Quesentençafoiessa?–perguntoufreiPiero.O silêncio semanteve.Emparte algumada residência, ouviu-se qualquer coisa

bater,seespatifarousequebrar.Eu não chamaria a atenção de ninguém para isso. Ao contrário, continuei

ouvindo.– Foi decretado – disse Signore Antonio – que Lionello deveria ser levado,

primeiro, à esquina doHospital de SantaMariaNuova, em SanNofri, até umaimagemqueelesupostamentedes gurara,para,nesselocal,tersuamãodecepada,oquedefatoocorreu.

O rosto de Vitale cou rígido e seus lábios caram brancos. Niccolò couabsolutamentehorrorizado.

–De lá – disse SignoreAntonio – , o jovem foi arrastadopela turba até umaPietápintadaemSantaMariainCampo,ondesuaoutramãotambémfoidecepada.Eentãoeraa intençãodopopulachoarrastá-loatéo terceiro localde suas supostastransgressões,aNossaSenhoraemOrSanMichele,paraláterosolhosarrancados.Masaturba,jáumasduasmilpessoasnaqueleestágio,nãoesperouesseúltimoatoabominável ser cometidoao infeliz jovem,mas, isto sim,puxou-odaquelesqueoacompanhavameomutilaramlámesmo.

Osdoispadresficaramabatidos.FreiPierobalançouacabeça.– Que o Senhor tenha misericórdia de sua alma – disse ele. – As turbas de

FlorençasãotodaselaspioresdoqueasdeRoma.–Sãomesmo?–perguntouSignoreAntonio.–O jovem, semmãos,osolhos

arrancados, o corpomutilado, cou entre a vida e amorte por algunsdias.E emminhacasa!

Niccolòbaixouosolhosebalançouacabeça.

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–Eeumeajoelhei ao ladodele comseupai,quenãoparavadechorar–disseSignore Antonio – e foi depois disso, depois desse belo jovem que havia sidoLionello nalmente expirar, que eu insisti para que Giovanni viesse para Romacomigo.

“PareciaimpossíveldeterSavonarola.TodososjudeusacabariamsendoexpulsosdeFlorençaempoucotempo.Eeutinhaminhaabundantepropriedadeaquiemeuscontatosnacortedopapa,quejamaisacatariamtamanhabarbárienaCidadeSagrada.Pelomenos,eraissooquenósesperávamoseeraparaissoquerezávamos.DemodoquemeuMaestroGiovanni,abalado,chocado,malcapazdefalarnempensarnemtomarumgoledeágua,veiocomigorefugiar-seaqui.”

–Efoiparaessehomemquevocêdeuessacasa?–perguntoufreiPiero.–Sim,foiparaessehomemqueeudeiabibliotecaqueacumulara,umestúdio

noqualtrabalhar,luxosqueeuesperavaoconfortariameapromessadealunosqueviriam até ele em busca de sabedoria assim que seu espírito pudesse ser curado.Anciãosdacomunidadejudaicavieramestabelecerasinagoganoúltimoandardessacasa e lá se reuniam em orações comGiovanni, arrasado demais em espírito paraatravessaraportadafrenteesairàrua.

“Mas como, eu pergunto a vocês, pode um pai que testemunhou tamanhabarbáriecontraseuúnicofilhoalgumdiarecobrarasanidade?”

SignoreAntonio olhou para os padres.Olhou paraVitale e paramim.OlhouparaseufilhoNiccolò.

–E lembrem-sedeminhaalmaferida–sussurrouele.–PoiseumesmoamarabastanteojovemLionello.Eleeraocompanheirodomeucoração,Niccolò,assimcomoVitalesemprefoioseu.Elefoiomeututorquandomeuprofessornãotinhapaciênciaparamim.Foicomelequeescreviversosemaisversosnamesadataberna.Eraelequetocavaalaúde,comovocêtoca,Toby,eeuvirasuasmãossendocortadas,lançadas aos cães como se fossem lixo, e seu corpo sendodestroçadoantesde seusolhosseremfinalmentearrancados.

–Melhor ele termorrido, pobre alma – disse frei Piero. –QueDeus perdoeaquelesquefizeramessascoisasaele.

–Sim,queDeusosperdoe.EunãoseiseGiovannipoderiaperdoá-los,ouseeumesmopoderiaperdoá-los.

“MasGiovannivivianessacasacomoumfantasma.Masnãoumfantasmaquearremessa garrafas contra paredes ou bate portas ou joga tinteiros no ar ou lançacoisasnochãodeumporão.Eleviviacomosenãotivessemaiscoração.Comose

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nãolherestassemaisnada,enquantoeu,diaenoite,falavadetemposmelhores,decoisasmelhores,sobreelevoltarasecasar,jáqueperderaaesposatantosanosantes,sobreeletalvezterumoutrofilho.”

Eleparouebalançouacabeça.– Talvez isso tenha sido a coisa errada a sugerir a ele. Talvez isso o tivesse

magoadomaisprofundamentedoqueeupoderiasupor.Tudooqueeuseiéqueelemanteve consigo seuspoucos artigos, seus livros, e jamais entravanabibliotecaoudemonstrava se sentir em casa comigo em alguma refeição. Por m, eu desisti daideia de fazer com que ele vivesse na casa e desfrutasse dela como se fosse ummoradorcomooutroqualquerevolteiàminharotinanormal.Passeiavê-loquandopodia,apenasparaencontrá-lo,frequentementeounão,noporão,evidentemente,erelutante emmevisitar, amenosque estivesse certodeque eu estava sozinho.Osserviçaismecontaramqueelehaviaescondidoseutesouronoporãoealgunsdeseuslivrosmaispreciosos.

“Eleera,emessência,umhomemdestruído.Oeruditonãomaisexistianele.Aslembrançaseramdolorosasdemaisparaele.Opresentenãoexistia.

“EntãochegavaaSemanaSanta,comoaconteciatodososanos,eaquelesquesãojudeusnessasruasfechavamsuasportascomosempreepermaneciamdentrodesuascasascomomandavaalei.Eosdurõesdavizinhança,osmalnascidos,osidiotas,iamcomosempreatrásdossermõesdaquaresma,jogandopedrasnascasasdosjudeuseamaldiçoando-ospelamortedeNossoSenhorJesusCristo.

“EuachavaquenadadissopoderiaatingirGiovanni,jáqueeleestavaemumadasminhascasas,ejamaisespereiquequalquercoisaderuimpudesseacontecercomele,mas,nanoitedaSexta-feiradaPaixão,fuichamadopormeusserviçaisacomparecerde imediato. A turba atacara a casa, e Giovanni saíra para enfrentá-los, chorando,uivando de raiva, jogando pedras neles damesmamaneira com que eles jogavampedrasnele.

“Meusguardaslutavamparapôrum maoentrevero.EuarrasteiGiovanniparadentro.

“MasasaçõesdesesperadasdeGiovannideraminícioaumtumulto.Centenasdepessoasestavambatendonasportasenosmurosdacasa,ameaçandoderrubarolocal.

“Ocorreque existemmuitos esconderijosnessa casa, atrásdeparedes revestidas,em escadas que alguém levaria anos para descobrir. Mas o local mais seguro é oporão,embaixodaspedrasnomeiodopiso.

“Com toda aminha força, eu arrasteiGiovanni lá para baixo. ‘Você precisa se

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esconder’,eudisseaele,‘atéqueeuconsigafazeressaturbairembora.’“Eleestavaensanguentadoe sangrando,commuitoscortes feiosnacabeçaeno

rosto.Achoquenão conseguiame entender.Levantei a falsa laje que escondeumespaço de estocagem subterrâneo e forcei-o a descer, ríspida e desesperadamente,insistindo para que permanecesse ali até que o perigo cessasse. Acho que ele nãoentendia o que estava acontecendo. Lutava contra mim de maneira insana.Finalmenteeulhedeiumsocoquefezcomque cassequieto.Comoumacriança,elesevirouparaoladoe,levantandoosjoelhos,colocouumadasmãosnorosto.

“Foi então que eu vislumbrei seu tesouro e seus livros nesse local escondido epensei:ébomessascoisasestaremescondidas,poisosru ões láforaestãoprestesainvadiracasa.

“Ele estava tremendo e gemendo enquanto eu colocava as pedras de volta nolugar.

“As janelas da casa estavam sendo quebradas, a porta estava sendo socadaseguidamente.

“Finalmente,cercadopelosserviçaisearmadodamelhormaneirapossível,abriaportaedisseàturbaqueojudeuqueprocuravamnãoestavaaqui.Deixeioslíderesentraremparaveremcomseusprópriosolhos.

“Eu os ameacei a todos com uma dura retaliação caso ousassem causar algumdano a qualquer item de minha propriedade. E meus guardas e serviçais osobservarampercorreremosprincipaisaposentos,desceremaoporãoesubiremparapassarporalgunsquartosdedormirantesde nalmentesairem,umpouquinhomaistranquilos do que haviam entrado. Nenhum deles havia se dado ao trabalho devisitar o último andar. Eles não viram a sinagoga nem os livros sagrados. O quequeriamerasangue.Elesqueriamojudeuqueoshaviaenfrentadoeatacado,eesteelesnãopuderamencontrar.

“Umavez retomadaa segurançadacasa, eu fuiatéoporão.Levanteiaspedras,ansioso para libertar meu pobre amigo e cuidar dele, e o que vocês acham queencontrei?”

–Eleestavamorto–dissefreiPieroemvozbaixa.SignoreAntonioassentiucomacabeça.Emseguida, touovaziomaisumavez,

como se desejasse, por tudo que fosse sagrado nesse mundo, estar absolutamentesozinhoemvezdenarrandoaquelahistória.

–Euomatei?–perguntouele.–Ouseráqueelemorreuporcausadosgolpesquerecebeudosoutros?Comoeupodiasaber?Eusabiaapenasqueeleestavamorto.

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Seusofrimentoacabara.E,naquelemomento,apenasrecoloqueiaspedrasnolugar.“Naquelanoite,umaoutraturbaapareceu,eacasafoimaisumavezalvodeseu

abuso.Maseuahaviadeixadotrancadaeemsegurança,e,quandoosbrutamontesviramquenãohavianenhumaluzacesaemseuinterior,finalmenteforamembora.

“Soldadosvieramnasegunda-feiradepoisdaPáscoa.EramesmoverdadequeumjudeuconhecidomeuhaviaatacadocristãosnaSemanaSantaquandoeraproibidoqueumjudeufossevistonasruas?

“Eudeiascostumeirasrespostasevasivas.Comopoderiasaberumacoisadessas?‘Não há mais nenhum judeu aqui. Vasculhem a casa se assim desejarem.’ E foiexatamente o que eles zeram. ‘Ele se foi, fugiu’, insisti. Eles foram embora semmaisdelongas.Masvoltarammaisdeumavezparafazerasmesmasperguntas.

“Eu estava arrasado de pesar e culpa.Quantomais remoía o assunto,maismeamaldiçoavapela rispidezcomGiovanni,por tê-loarrastadoatéoporão,por tê-loagredidoparaqueseaquietasse.Eunãoconseguiasuportaroquehaviafeito,enãoconseguiasuportaradorqueestavasentindoaolembrartudooqueaconteceraantes.E,emmeusofrimento,dealgummodoeuousavaculpá-lo.Euousavaculpá-lopornão ter sido capazdeprotegê-lo ede curá-lo.Euousava amaldiçoá-lopela imensatristezaqueestavasentindo.”

Novamenteeleparouedesviouoolhar.Umlongomomentosepassou.–Osenhorodeixoulá,enterradonoporão–dissefreiPiero.Signore Antonio concordou com a cabeça, virando-se lentamente para encarar

maisumavezopadre.–Éclaroqueeudisseparamimmesmoquelogo,logocuidariadeseuenterro.

Esperaria atéqueninguém se lembrassedo tumultodaSemanaSanta e iria até osanciãosdesuacomunidadedizeraelesqueGiovannideveriareceberumfuneral.

–Masosenhorjamaisfeztalcoisa–dissefreiPierosuavemente.–Não–disseSignoreAntonio.–Jamaisfiz.Eutranqueiacasaeaabandonei.De

temposetempos,euestocavacoisaslá,móveisvelhos,livros,vinho,oquequerqueprecisassesermexidodelugarnessacasa.Maseununcamaisentreinacasa.Essaéaprimeiravez,aprimeiríssimavezdesdeentão,queeuentronacasa.

Quando cou claro que ele mais uma vez zera uma pausa, eu disse comsuavidade:

–Ofantasmaaquietou-se.Ofantasmaaquietou-sequandoosenhorcomeçouafalar.

SignoreAntoniobaixouacabeçaecolocouamãonosolhos.Penseiqueelefosse

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começarasoluçar,masapenasrespiroubemfundoeentãocontinuou.– Eu sempre pensei – disse ele – que algum dia teria de cuidar disso. Eu iria

providenciarparaqueasprecesadequadaslhefossemditasporpessoasdasuaprópriareligião.Masjamaisfizisso.

“Antesdo mdoano,euestavacasado,ecomeceiaviajar.Minhamulhereeuenterramosmaisdeumacriançaaolongodosanos,masmeuamado lhoNiccolò,que vocês veem aqui, enganou a morte mais de uma vez. Sim, mais de uma. Esemprehouve algummotivoparanão se aproximarda casa abandonada, paranãoremexerapoeiradopisodoporão,paranãoencararasquestõesqueosjudeusfaziamarespeitodeseuvelhoamigoeeruditoGiovanni,paranãoexplicarporqueeu zeraoquehaviafeito.”

–Maso senhornãooassassinou–disse freiPiero.–Não foi responsabilidadesua.

–Não – disse SignoreAntonio – ,mas ele foi assassinado de um jeito ou deoutro.

Opadresuspirouebalançouacabeça,concordando.SignoreAntonioolhouincisivamenteparaVitale.– Quando eu o conheci, amei-o de imediato – disse ele. – Você não pode

imaginar o prazer que foi trazê-lo para a velha casa, mostrar-lhe a sinagoga e abibliotecaecolocardiantedevocêtantoslivrosdeGiovanni.

Vitaleassentiugravemente.Havialágrimasemseusolhos.SignoreAntonioficouemsilêncio.Emseguida,voltouafalar:–Euimagineisemeuvelhoamigonão cariasatisfeitoporvocêmorardebaixo

dovelhoteto,seelenão cariasatisfeitoporvocêtercontatocomtodosaquelesseuslivros.Imaginei,inclusive,maisdeumavez,setalveznãopudesselhepedirpararezarparaaalmadaqueleeruditoquemoraranacasaantes.

–Eurezareiparaele–sussurrouVitale.SignoreAntonioolhoudiretamenteparafreiPiero.–O senhor ainda insiste na tese de que existe um demônio assombrando essa

casa,umdyybukjudeu?Ouosenhornãovêquesetratavadofantasmademeuvelhoamigocujamemóriaeuconsigneiaooblívioporquenãoconseguisuportarsuadoroumesmoaminhaprópria?

Opadrenãorespondeu.SignoreAntonioolhouparamim.Eupodiaverqueelequeriacontaraosoutrosa

descriçãoqueeuhaviafeitodofantasma,masnãofezisso.Elenãoqueriameindiciar

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porverespíritosouporconversarcomeles.Eupermanecicalado.–Porquenãoconsidereiaverdadeembutidanissonocomeço?–perguntouele,

olhandonovamenteparafreiPiero.–Equemagoraéacusado,justamente,decuidarpara que os restos de meu velho amigo sejam nalmente postos para descansaradequadamente?

Nós camossentadosemsilêncioporumlongotempo.FreiPierofezosinaldacruzemurmurouumaprece.

FinalmenteSignoreAntoniolevantou-se,etodosnósnoslevantamoscomele.–Tragamluz–disseeleparaosserviçais,enósoseguimossaladejantaraforae

descemosparaoandarprincipal.Lá,elepegouumcandelabrocomPicoe,tirandoatrancadaportadeacessoao

porão,seguiunafrentedogrupoescadaabaixo.Acena estavamuitopiordoque estiverapoucashoras atrás,quandoeuviera à

procura do fantasma. Todos os móveis estavam despedaçados. Todos os livrosvisíveis haviam sido rasgados. Diversos barris, aparentemente vazios, haviam sidoamassados,evidrosquebradosbrilhavamaolongodetodaalaje.

Mas não havia nenhum som estranho no local. Na realidade, não havia somalgum, excetoodenossas respirações e os suavespassosdeSignoreAntonio ao seaproximardomesmopontoondeeuviraofantasmasepostar.

Signore Antonio deu ordem para que o piso fosse limpo. De imediato, seusserviçaiseguardasvarreramosdetritos.Suasbotasmarcaramospoucosburacosnalaje.

Rapidamente, com dedos ágeis, as pedras foram reviradas e viram-se livres doespaçoqueseencontravaabaixodelas.

E lá, à luz do candelabro, à vista de todos, havia o pequeno esqueleto de umhomem,umacadeia soltadeossosmantidaunidapelos restosapodrecidosde suasroupas.

Aoredordele,empilhados,encontravam-seseuslivros.E,aoladodoslivros,seussacosdetesouros.Maseleemsi,comoeledevetersofridonaquelelocaldiminuto,chorando,ferido,semcuidados.Osossosdeixavamissobemclaro,osossosdamãoqueestavamesticadosparaagarrarapilhaqueacomodavasuacabeça,eosossosquetentavamsegurarparasempreopreciosolivroaoseulado.

Como parecia diminuto e frágil aquele crânio. E como brilhavam à luz ospequenosóculos.

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N

CAPÍTULODOZE

AQUELA TARDE, OS ANCIÃOS JUDEUS FORAMconvidados à casa.SignoreAntonioencontrou-se comelesprivadamente,semaminhapresença,adeNiccolòeadeVitale.

Um caixão foi trazido naquela noite para acondicionar os restos mortais deGiovanni, e nós, à luz de tochas, acompanhamos os anciãos judeus no longopercursoatéocemitériojudaicoondeosrestosforamdepositados.Todasasprecesforamditascomoeradeseesperar.

Nenhum ru ão recebeu permissão para apoquentar o féretro. E já era tardequandoretornamosàcasaquieta.Eracomoseofantasmajamaishouvesseestadolá.Osserviçaisaindavarriamoscorredoreseasescadas,apesardoadiantadodahora,evelasqueimavamemmuitoscômodos.

SignoreAntonioconvocouVitalea juntar-seaelenabiblioteca,e ládisseaele,como mais tarde Vitale me contaria, que a riqueza de Giovanni fora dividida.MetadeseriadadaaosanciãosjudeusemetadetransferidaaVitale,quenãosomenterezariapelaalmadeGiovanniecelebrariasuamortedetodasasmaneirasaceitáveis,comotambémcomeçariaacoletarearestaurarassuasmuitasobrasliterárias.SignoreAntonio possuía cópias de muitos desses livros, e Vitale iria atrás daqueles queestavam perdidos. Essa seria a principal tarefa que Vitale realizaria para SignoreAntonioduranteumbomtempo.

Enquanto isso,Niccolòmudar-se-ia para a casa, como fora planejado, eVitalecomeçariaatrabalharcomoseusecretárionovamente.

Emoutraspalavras,asprecesdeVitalehaviamsidoatendidase,emcertosentido,também haviam sido atendidas as preces que proferira na sinagoga na qual estavaagora,graçasàherançadeGiovanni,edeondesairiaumhomemrico.

Eusabiaqueomeutempoestavaseencaminhandoparao m.Narealidade,eunãosabiaporqueMalchiahaindanãovieramebuscar.

FizumavisitaaSignoreAntonioemsuacasanomomentoemqueeleestavasedirigindoparaacamaelhedissequelogo,logoestariapartindo,jáquemeutrabalho

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estavaencerrado.Elemelançouumolharlongoerepletodesigni cados.Eusabiaquequeriame

perguntarcomo,ouporque,euviraoespíritodeGiovanni,masnãoperguntou,jáque esse era um assunto perigoso emRoma, e ele estava disposto, obviamente, adeixarque fosse esquecido.Euqueriadizer a eleoquanto sentiaporLodovico tertiradoaprópriavida.Tenteipensarnaspalavras,masnãoconsegui.Por m,estendiosbraçoseeleseaproximouparamedarumabraçoemeagradecerportudooqueeufizera.

–Vocêsabequepodepermanecerconoscopelotempoquedesejar–disseele.–Éumprazerenormeparamimpodercontarcomumalaudistaemminhacasa.Eeuadorariaescutartodasascançõesqueconhece.NãoestivesseeudelutoporLodovico,eulhesuplicariaparaquetocassealgoparamimagora.Masaquestãoéaseguinte:vocêpodeficarconosco.Porquenãofica?

Eleestavasendoabsolutamentesérioaodizeressaspalavrase,porummomento,nãomeocorreunenhumaresposta.Euolheipara ele.Pensei em tudooquehaviaacontecidonessesdoisdias,easensaçãoquetivefoideconhecê-loháanos.Sentiamesma dor que experimentara emminha primeiramissão paraMalchiah, quandometornaratãodemasiadamenteíntimodaspessoasaquemhaviasidoenviadoparaajudarnaInglaterra.

Pensei em Liona e no pequenoToby e na garantia queMalchiahme dera nosentidode que eu sabia como amar. Se isso fosse verdade, tratava-se entãodeumpequeno aprendizado recente, e eu ainda era um iniciante rudimentar na arte doamoreteria,dealgummodo,decompensardezanosdeamargurae fracassosparapoderamarquemquerquefosse.Sejaláqualforocaso,euamavaessehomemagorae não queria partir. Assim como queriamuito voltar para Liona eToby, eu nãoqueriapartirdeondeestava.

Niccolò estavadormindoquandoeu fui até seuquarto, e consentiqueminhasdespedidas fossem um simples beijo em sua testa. Sua cor voltara e ele estavadormindoprofundaetranquilamente.

Quandovolteiparaa“outra”casa,encontreiVitalenabibliotecaondehavíamosconversadopelaprimeiravez.ElejáestavalendoalgumasdastraduçõesdeGiovannieestavacomumapilhadelivrosprontaparafuturosexames.

Aquelesvolumesnoesconderijodoporãoestavambastanteestragadosdevidoàumidadeeaomofo,maselepodiadistinguirmuitobemostítuloseosassuntosdecada um e iria atrás de substitutos em todos os lugares. Ele estava agora

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completamente absorvido na vida e nas conquistas de Giovanni e falou sobre apossibilidade de procurar outras pessoas que haviam sido pupilas dele em anospassados.

AcontecequePicolhecontaraacercadenossavisitaàcasademanhãcedo,ePicoouviraminhaconversacomofantasmaetambémaquelacomSignoreAntonionaqualeudescreveraofantasmadetalhadamente.Portanto,Vitalesabiadetudo.

Eledisseque, senão fossepormim, certamente a Inquisiçãoo teriadestruído,dissoeleestavabemciente.

–Você jamais teve culpanisso, emnadadisso– eu lembrei a ele.Ele estava lásentado,tremendo,comosenãoconseguissetirardamenteoperigoanterior.

– Mas as minhas preces, as minhas preces por fama e fortuna, você acha quedespertaramesseespírito?

–Aaberturadacasaemsidespertouoespírito–eudisse.–Eagoraoespíritoestácompletamenteempaz.

Quandonósnosabraçamos,euestavaquaseaosprantos.Perto de meia-noite, quando todos estavam dormindo, eu fui até a sinagoga,

retireioalaúdedolocalnochãoondeodeixaraemesenteiemumdosbanquinhosnaescuridão,imaginandooquedeveriafazer.

Osserviçaishaviamvarridoo local, limpadotodososcandelabrosquecaírametiradoapoeiradetudo.Eupodiavertudoissoporumanesgadeluzquevazavadeumatochaemcimadaescadapróxima.

Fiquei lá sentado imaginando: por que eu ainda estou aqui? Eu havia medespedido porque sentira um desejo arrebatador de fazê-lo, uma certeza de quedeveriafazê-lo,maseunãosabiacomoagiragora.

Porfim,decidisairdacasa.HaviasomentePicomontandoguardanaportadafrente.Deiaelegrandeparte

doouroquetinhanosbolsos.Elenãoaceitou,maseuinsisti.Guardeiapenasoquepenseisernecessárioparaencontrarumlugarquentenuma

tabernaondepudesseouvirmúsicaeesperarqueMalchiahaparecesse logoparamebuscar,etiveafortesensaçãodequeeleapareceria.

Logo, eu me vi andando numa parte da cidade bem distante daquela queconhecia, passando por ruas escuras onde eventualmente um cachorro latia oualguma gura encapuzada passava correndo. Meus pensamentos estavam pesados.Meu fracasso em salvar Lodovico pesava emmim, não importa quantas vezes eulembrasseamimmesmoqueoCriadorconheciaoscoraçõesementesdetodosnós,

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eElee somenteElepodia julgaramisériaouaconfusão,ouoveneno,que levaraLodovicoàsuatrilhasombria.Maisdoquenunca,eupercebiaqueoquesabemosarespeitodasalvaçãodeumaoutraalmaéessencialmentenada.Nósestamossemprepensandoefalandosobrenossasprópriasalmas,edenossasprópriasalmasnósnãosabemosoqueoCriadorsabe.

No entanto, eu estava muito contente com o fato de não haver previsto osuicídiodele.Penseiemmimmesmoquandoeramaisjovemeemquantasvezeseusentiraatentaçãodetirarminhaprópriavida.Haviameses,atémesmoanos,emqueeu cavaobcecadocomapossibilidadede suicídio,momentosmesmoemqueeuinclusive planejara minha própria morte sem esquecer nem mesmo os detalhesreferentes ao que fazer com os restos mortais. Na verdade, todas as vezes que euconcluíaumassassinatoparaoHomemCerto,despachandohabilidosamenteumaoutraalmaparaodesconhecido,eu cavatãotentadoatirarminhaprópriavida,queparece uma proeza eu ter sobrevivido. A que se resumiria aminha vida tivesse eudadoessepasso?Subitamenteeuestavaquasechorandodegratidãoporterrecebidoaoportunidadedefazeralgumacoisa,qualquercoisa,quepudesseserboa.Qualquercoisa, eu sussurrava para mim mesmo enquanto caminhava, qualquer coisa quepudesseserboa.VitaleeNiccolòestavamvivosebem.EaalmadeGiovannihavia,aparentemente,encontradoseudescanso.Seeutivessedesempenhadoamínimapartequefosseemqualquerdessascoisas,eujáestariaindescritivelmentegrato.Entãoporque estava chorando? Por que eu estava tão triste? Por que não parava de verLodovico morrendo com o veneno em sua boca? Não, essa não era uma vitóriaperfeita,longedisso.

EdepoistinhaAnkanoc,overdadeirodybbukdessaaventura,esuaspalavrasaindaecoavamemminhamente.QuandoecomoeuteriadelidarcomAnkanocdeagoraemdiante?Éclaroqueforatolicedaminhapartepensarqueeutalvezpudesseveranjos e não demônios, que umnão pressuporia o outro e que algumpersonagemsinistro não conseguiria sermais do que uma voz negativa emminha cabeça.Noentanto, eunãohavia esperadopor isso.Não, nãohavia.E aindanão sabia comointerpretar isso.OfatoeraqueeuacreditavaemDeuse sempreacreditara,maseunãoseisejáacrediteinodiabo.

Eu não conseguia tirar o rosto de Ankanoc deminhamente, aquela expressãoagridoce, charmosa. Certamente, antes de sua queda, ele fora um anjo tão beloquantoMalchiah,oupelomenoseraoqueparecia.Chocantepensarnisso,ovastormamentocomseusanjosedemônios,omundoaoqualeupertenciaagoracom

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maiscertezadoquequalquermundoqueeujamaisconheceraantes.Euestava candocansado.PorqueMalchiahnãometiraradali?Talvezporque

eu tivessemeu coração concentrado em realizarmais um experimento aqui, e estediziarespeitoaencontrarumatabernaalegre,cheiaderisoeluz,ondenãohouvessenenhumalaudistatocandonomomento.

Por m, cheguei a tal lugar cheio de vida e alegria, com sua porta totalmenteabertaparaanoite.Umfogocrepitavanuma lareiraquemaispareciaumacavernatosca, e asmesas e bancos rústicos estavam apinhados de homens jovens e velhos,ricosepobres,muitosdosquaiscomresplandecentesrostosoleosos,algunscomascabeçasbaixas,cochilandonassombras,ehaviatambémalicriançasadormecidasnoscolosdeseuspais,ouemtrouxasdepanosnochãoempoeirado.

Quandoaparecicommeualaúde,umgritosensualergueu-sedamultidão.Coposforam levantados em saudação.Curvei a cabeça e fui na direção de umamesa nocantoonde,deimediato,duascanecasdecervejaforamdepositadasàminhafrente.

–Toque,toque,toque.–Osgritosvinhamdetodasasdireções.Fecheiosolhoserespireibemfundo.Comoeradoceoaromadovinho,como

eradelicioso omalte.E comoo ar estava acolhedor, cheiode sons de conversas egargalhadas. Eu abri meus olhos. No outro extremo da taberna, estava sentadoAnkanoc,comamesmíssimaaparênciadobanquetedocardeal, tando-me,osolhoscheiosdelágrimas.

Balanceiacabeçacomosedissessenãoatudooqueeleestavadispostoaoferecer,eagorapararesponder-lhedamelhormaneiraqueconhecia:commúsica.

Comecei adedilhar e então a tocar, e, emquestãode segundos, o local inteiroestavacantandocomigo,emboraacançãoqueeuestivessetocandoeomotivodelesa conhecerem fossem um enigma para mim. Todas as melodias que eu ouviradaquela época eupodia tocar agora com facilidade, e amimparecia que eu estavamaisfelizaquinessemomento,cercadoporessescantorestoscoseousados,doquejamais estivera em toda aminha estranha vida nesse tempo, e talvez em qualqueroutrotempo.Ah,quecriaturasfragmentadassomosnósecomoaguentamos.

De fato, lembranças profundas e sombrias voltaram amim,nãodessemundo,masdomundoque eudeixarahaviamuito tempo,quandogaroto,quando cavanas esquinas dedilhando antigas canções renascentistas pelas notas que as pessoasjogavam aos meus pés. Eu me sentia tão triste por aquele garoto, triste por suaamargura,tristepeloserrosqueelecometeria.Eumesentiatristeporeletervividotantotempocomocoraçãofechadoeaconsciênciarompida,a andoaamargurade

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suavidaemcadalembrançadedoracalentadaquecarregavaconsigodiasim,dianão.E então eu me senti impressionado com o fato de que as sementes de bondadecaramdormentesportantotemponele,esperandoohálitoprovenientedoslábios

deumanjo.Ankanocse fora,emboraeunãosoubesseparaondenemcomo.Tudoaomeu

redoreramrostosfestivos.Pessoasbatiamseuscoposecanecasnasmesasnoritmode minha música. Eu cantava algumas das velhas frases que lembrava, mas,principalmente,tocavaoqueelesestavamcantando,jáquemelodiasqueeujamaisouviraantessaíamdoalaúdequeestavaemminhasmãos.

Toqueietoqueiseguidamenteatéaminhaalma carpreenchidacomocaloreoamor aomeu redor, preenchida com a luz do fogo e com a luz de tantos rostos,preenchidacomosomdascordasdoalaúdeecomaspalavrasquesetransformavamem música, e então pareceu que – bem no meio da minha canção mais ousada,minha canção mais doce, ousada e de difícil execução – eu estava sentindo o armudar, e a luz car mais brilhante, e eu sabia, eu sabia que todos esses rostosbrilhantes queme cercavam estavam sendo transformados em algo que não tinhanenhuma corporeidade,mas eram, isto sim, notasmusicais, e era umamúsica daqualeueraapenasamenorparte,eamúsicaestava candocadavezmaisaltaecadavezmaisalta.

–Malchiah,euestouchorando–sussurrei.–Eunãoqueroabandoná-los.Umalongafaixaderisoquebrousuavementeaescuridãoquemecercava,ecada

sílabadelaeraescolhidacomosefosseoâmagodeumamelodia,cheiaecompleta,edestinadaagoraasemisturarumacomaoutra.

–Malchiah–sussurrei.Esentiseusbraçosmeenvolvendo.Euosentimeaconchegandoemseusbraços

enquantomeerguia.Amúsicaera feitadeespaçoassimcomode tempo,epareciaquecadanotaeraumabocadaqualumaoutrabocanasciaeentãoumaoutraeumaoutraeassimpordiante.

Eleestavameaconchegandoemseucoloenquantomecarregavaparacima.–Seráqueeusempreosamareitanto?Seráquesempreodiareiabandoná-los?Isso

fazparte?Fazpartedoqueeutenhodesofrer?Mas a palavra “sofrer” era a palavra errada porque tudo havia sido grandioso

demais,esplêndidodemais,douradodemais.Epudeouvirseuslábiosgrudadosemmeuouvidolembrando-medissoedizendonostonsmaissuavesqueexistem:

–Vocêtrabalhoubem,eagorasabequeexistemoutrosàsuaespera.

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–Essaéaescoladoamor–eudisse–,ecada liçãoémaisprofunda,maisrica,maisrequintadadoqueaanterior.

Eutiveumavisãodoamor;viquenãosetratavadeumaúnicacoisa,masdeumagrandemistura de coisas, aomesmo tempo luz e escuridão, dureza e suavidade, emeucoraçãosepartiuàmedidaqueasperguntasespocavamemminhaboca.

Masnãohouverespostaalguma,anãoseroshinoscelestiais.

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A

CAPÍTULOTREZE

LGUÉMESTAVAMESACUDINDO.EUACORDEI de umpesadelo. Shmarya estava em pé no escuro, de costas para a tênueluminosidadequevinhadajanela.Abaixo,ruasimersasnanoite.

–Vocêestádormindohávinteequatrohoras–disseele.NósestávamosemmeuquartonoMissionInn,eeuestavadeitadoemcimadocachecolamassado,minhasroupasretorcidaseúmidas,meucorpocheiodedoresmusculares.Oquartoestavafrio.

O pesadelo não me saía da cabeça – repleto de todos os indícios típicos desonhos,asmudançasincoerentes,osrostosdistorcidos,ospanosdefundoabsurdoseincompletos.EraalgocompletamentediferentedaclarezadoTempodosAnjos.

Tenteiouvirnovamenteosanjoscantando,mashaviaapenasecosdébeis,eumfragmentodopesadeloaflorouparaofuscá-los.

AnkanocestiveradiscutindocomigoarespeitodosuicídiodeLodovico.–Deacordocomoseusistema–disseraeleseguidamente–,essapobrealmavai

pararnuminferno amejante.Mastallugarnãoexiste.Aalmadelevaireencarnar,eeleterádeaprenderoquedeixoudeaprenderdaprimeiravez.–Euvirao infernoamejante.Euouviraosgritosdoscondenados.Ankanoccontinuavarindo.–Você

pensa que eu sou um demônio? Por que eu ia querer viver em tal lugar? – Umsorrisodebochadoeentãoumaexpressãorija.–VocêachaquefoivisitadoporanjosdoSenhor?Porquevocêestariaemtal tormentopor tantascoisas?Seo seuDeuspessoalteperdoou,sevocêdefatovoltou-separaEle,oEspíritoSantoporacasonãoteria te inundado de consolação e luz? Não, você não sabe nada sobre EspíritosCelestiais.Masnãopermitaqueissoteassuste.Bem-vindoàRaçaHumana.

Eumesentei,curveiacabeçaerezei:–Senhor,livre-medisso.–Euestavatontoeterrivelmentesedento.Asensaçãode

ter fracassado, de ter deixado Lodovico deslizar para amorte, estava tão forte emmimcomo estivera emRoma.E eu estava com raiva, com raivaporAnkanoc tervindo para o meu mundo, para dentro de meus sonhos, para dentro de meus

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pensamentos.SeoseuDeuspessoalteperdoou,sevocêdefatovoltou-separaEle,oEspíritoSanto

poracasonãoteriateinundadodeconsolaçãoeluz?–Está tudo acabado, agora –disse Shmarya. Sua voz era tranquila, ressonante,

masjovem,eeleestavavestidocomoeu,comumacamisaazuldealgodãoecalçascáqui.

Eleme ajudou a sair da cama.Fui até a janela e olhei para o relógio.Duas damanhã.Ospostesdeluzforneciamaúnicailuminaçãodasruasabaixo.

Lembranças demeu tempo emRomanão paravamde assolar aminhamente,permeandoosfragmentosdepesadelo.

–Façaessesonhoirembora,porfavor!–sussurrei.Paraminha surpresa, senti amãodeShmarya emmeuombro.Nós estávamos

olhonoolho.EufracasseicomLodovico.Aquelesefoi.– Pare de lutar – disse ele. Sua expressão era inocente, perscrutadora, as

sobrancelhasjuntando-seporuminstanteenquantoelefaziasuaargumentação.–Aalmadessehomemnãoestáemsuasmãos.

–OCriadortemdesabertodasascoisas–eudisse.Minhavoz couembargada.EupodiaouvirAnkanocrindo,masissonãopassavadelembrança.Shmaryaestavaaqui.–EoCriadoréoúnicoquepodejulgar.

Eleassentiucomacabeça.–Ondeestáochefe?–perguntei.EstavamereferindoaMalchiah.–Elevaichegarlogo,logo–disseShmarya.–Vocêprecisacuidardevocêmesmo

agora.–Porqueeutenhoasensaçãodequevocênãogostadele?– Eu o amo – disse ele simplesmente. – Você sabe disso. Mas ele e eu nem

sempre estamos de acordo. A nal de contas, eu sou seu anjo da guarda. Meucompromissoésimples.Estouencarregadodevocê.

–EMalchiah?– Mais uma vez, você sabe a resposta para a sua própria pergunta. Ele é um

Serafim.Eleéenviadoparaatenderasprecesdemuitaspessoas.Elesabecoisasqueeunãotenhocomosaber.Elefazcoisasqueeunãosouenviadoparafazer.

–Maseupenseiquevocêstodossoubessemtudo–eudisse.Aspalavrassoaramimediatamenteidiotas.

Elebalançouacabeça.–Então vocênão tem comomedizer seLodovico foi ounãopara o inferno,

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tem?–insisti.Elebalançouacabeça.Euassenti.Puxeiaspersianaseacendialuminárianamesinhadecabeceira.Erapoderosamentereconfortantevê-lotãocompletamenteperceptívelàluz.Ele

pareciatãosólidoquantoqualquercoisanoquarto.Euqueriatocá-lo,masnãoo zeentãolembrei-medequeeleacabarademetocar.

Eunãoconseguialercoisaalgumanaquelesolhosazuis,nemnamaneirarelaxadacomaqualmeestudava.Eleergueuligeiramenteassobrancelhaseentãodissenumsussurro:

–Con enoCriador.Oquevocêachaouoqueeuachonãomandaumhomemparaoinferno.

–Vocêsabeporqueeuestoucomraiva?Eleconcordoucomacabeça.Euprossegui:–Porque,antesdeveraquelehomemtiraraprópriavida,eunãoacreditavano

inferno.Eunãoacreditavanodiabonememdemônios,equandoeuvimparaDeus,nãofoipormedodoinferno.

Elebalançouacabeça,concordandonovamente.–EagoraexisteAnkanoc,eexisteoinferno.Eleponderouoqueeudissera,eentãodeudeombros.–Vocêouviuvozesdomalnopassado–disseele.–Vocêsempresoubedoque

setratavaomal.Vocênuncamentiuparavocêmesmo.–Éverdade,maseupensavaqueasvozesviessemdedentrodemim.Pensavaque

todoomalqueeu testemunharavinhadedentrodos indivíduos,quedemônioseinferno eram construtos arcaicos. Senti que estava eu mesmo me tornando mau,quando tirei uma vidahumanapela primeira vez. Sentia queme tornava cada vezpior àmedidaquematavaoutros sereshumanos.Consigoviver comummalqueexistia dentro demim, talvez porque eu tenha sido capaz deme arrepender.MasagoraexisteAnkanoc,umdybbuk,eeunãoqueroacreditaremtaiscoisas.

–Issorealmentefaztantadiferençaassim?–Enãodeveriafazer?–Comomediromal?Peloqueomalfaz,nãoéassim?–Eleesperou,eentão

disse:–Nadamudou.VocêabandonouosmétodosdeLucky,aRaposa,issoéoqueimporta. Você é uma Criança dos Anjos. Uma loso a do mal não altera essascoisas.

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Eu assenti. Mas não achava aquilo perfeitamente reconfortante, por mais quefosse verdade. Uma onda de tontura tomou conta de mim. E a sede estavaqueimandominhagarganta.

Fui até a geladeira na salinha de jantar, encontrei uma garrafa de refrigerantegeladoebebioconteúdoemváriosgoles.Opuroprazersensualproporcionadoporesse atome tranquilizou e fez com que eume sentisse um pouco envergonhado.Pensamentosabstratoscedemcomtantafacilidadeaoconfortofísico,pensei.

–Vocênãonosodeiaàsvezes?–pergunteiaele.–Nuncae,repetindo,vocêsabequenão.–Vocêestátentandomepersuadirafazerperguntasgenuínasemvezdeperguntas

retóricas?Eleriu.Umrisocurtodeconcordância.Acafeínanorefrigeranteestavaindoparaaminhacabeça.Fuiatéasoutrasjanelas,umaauma,efecheiascortinas,acendendoasluminárias

pelasquaispassava– emcimada escrivaninha e ao ladoda cama.Oquartodeuaimpressãodeestarumpoucomaisseguroagora,pornenhummotivoespecial.Emseguida,ligueioaquecedor.

–Vocênãovaimeabandonar,vai?–perguntei.– Eu nunca te abandono – disse ele. Seus braços estavam cruzados. Ele estava

encostadonaparedepróximaàjanela,olhandoparamimdooutroladodoquarto.Embora seus cabelos fossem ruivos, as sobrancelhas erammaisdouradas, apesardesu cientementeescurasparagarantiràsuaexpressãoumcaráterde nitivo.Eleusavasapatosiguaisaosmeus,masestavasemrelógio.

–Oqueeuestouquerendosaberésevocênãovai carinvisível!–eudisse,comumgestoligeirodeambasasmãos.–Vocêvai caraquiatéeutomarumbanhoemudarderoupa.

–Vocêtemcoisasafazer–disseele.–Seeuestivertedistraindo,émelhoreuirembora.

–EunãopossoligarparaLionanumahoradessas.Elaestádormindo.–Masoquevocêfeznaúltimavezquevoltou?–Pesquisei.Escrevi.Escrevitudooquetinhaacontecido.Pesquiseimaissobrea

história que havia vislumbrado. Mas você sabe que o chefe nunca vai me deixarmostraro textoque z sobre tudo issoaninguém.Aquelepequenosonhodepôrtudonopapel,deserumescritor,defazerumlivro,jáera.

Penseinovamenteemcomoeumegabaraparaomeuex-chefe,oHomemCerto,

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arespeitodeescreversobreessegrande“algo”queaconteceracomigo,esobrecomoeuderaumaguinadaemminhavida.Eulhedisseraque cassedeolhonaslivrarias,porquealgumdiatalvezencontrasseomeunomenacapadeumlivro.Comoaquilotudo parecia agora uma tremenda tolice, um tremendo ato de impetuosidade daminhaparte.Eutambémrecordavaque lhehaviacontadomeunomeverdadeiroedesejavanãoterfeitoisso.Porquetivedecontaraelequeseuassassinodecon ança,Lucky,aRaposa,eranaverdadeTobyO’Dare?

ImagensdeLionaedeTobypulsavamemminhamente.AquelaspalavrashorrorosasdeAnkanocretornaramamim.OEspíritoSantopor

acasonãoteriateinundadodeconsolaçãoeluz?Bom,euforapreenchidodeconsolaçãoeluzquandopronunciaraaquelaspalavras

paraoHomemCertoeagoraestavaconfuso.Eunãomeimportavatantoemjamaisdizer a qualquer pessoa o que havia feito paraMalchiah.UmaCriança dosAnjosdevemanteremsegredooquefaz,seé istooqueseesperadela,damesmaformacomosemprefoiesperadoqueeumantivesseemsegredoostrabalhosquerealizavapara o Homem Certo quando era seu assassino. Como eu poderia dar aos anjosmenosdoquehaviadadoaoHomemCerto?Mashaviamaiscoisas,essainquietudeeessaconfusãoqueeuestavasentindo.Euestavasentindomedo.Estavanapresençadeumanjovisívelesentiamedo.Nãoeraumacoisaassoberbante,masdoía,comosealguémestivessemesubmetendoaumacorrenteelétricaforteosu cienteparamequeimar.

Tomei outro gole do refrigerante, saboreando a temperatura fria do líquido,muitoemboraeuaindaestivessesentindofrio,e,emseguida,bebinovamente.

Sentei-menacadeiraaoladodaescrivaninha.–Tudobem,vocênãonosodeia,éclaroquenão–eudisse.–Mascomcerteza

você deve car impaciente conosco, com nossa busca constante por uma soluçãosimples.

Elesorriu,comosegostassedamaneirapelaqualeuescolheraaspalavras,eentãodisse:

–Qualseriaopropósitodeeu car impaciente?–perguntou,delicadamente.–Narealidade,qualéopropósitodevocêindagararespeitodosmeuspensamentoseemoções?–Maisumavez,eledeudeombros.

–Eunãoentendoquandoecomovocêintervémequandoecomovocêdeixadeintervir.

– Ah, essa sim é uma pergunta válida. E eu posso lhe fornecer uma regra –

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respondeuelecalmamente.Suavozera,emtodosossentidos,tãogentilquantoadeMalchiah, mas parecia mais juvenil, quase de um garoto. Era como se fosse umgarotofalandocomaprudênciadeumhomemmaisvelho.–Seulivre-arbítrioéoquemais importa–explicouele–,enósjamais interferiremosnisso.Então,oquenós dizemos ou fazemos, ou como aparecemos, sempre será governado por esseimperativo:quevocêpossuiolivre-arbítrioparaagir.

Euassenti.Termineiosegundorefrigerante.Meucorpopareciaumaesponja.–Tudobem–eudisse–,masMalchiahmemostrouaminhavidainteira.–Elemostrouoseupassado.Oqueestáperturbandovocêagoraéofuturo.Você

estáfalandocomigo,masestápensandoemmilharesdecoisas,todasrelacionadasaofuturo.Você está imaginandoquando e comopoderá voltar a ver Liona, e o queaconteceráquandoissoocorrer.VocêestápensandoemcoisasquetemdefazernessemundoparaapagarasevidênciasdeseupassadoabominávelcomoLucky,aRaposa.VocênãoquerqueosfeitosdeseupassadopossamvirafazeralgummalaLionaeaToby. E você está imaginando por que essa última missão de Malchiah foi tãodiferentedaúltima,eoqueapróximamissãopoderáquemsabeenvolver.

Tudoaquiloeraperfeitamenteverdadeiro.Minhamenteestavafervilhandocomessasquestões.

–Porondeeucomeço?–perguntei.Maseusabia.Entrei no banheiro e tomei o banhomais longo daminha história pessoal. E

parecia mesmo que a minha história pessoal estava consumindo os meuspensamentos.LionaeToby.Oqueapresençadelesemminhavidarequeriaqueeuzesse em seguida?Eunão estavapensandoem telefonemasnememchequespara

eles, nem mesmo em visitas. En m, o que era solicitado de mim no que diziarespeitoameupassadohorrendo?OqueLucky,aRaposaprecisavafazeremrelaçãoàquelepassado?

Fizabarbaevestiumacamisaazul limpaecalças jeansbempassadas.Eutinhaumpequenodesejomaliciosodeversemeuanjodaguardatrocariadetrajeporqueeutrocaraomeu.

Bom,elenãotrocou.Estavasentadonacadeiradeespaldaraltoaoladodalareiraquandoeusaí,mirandoolocaldesprovidodelenha.

–Vocêtemrazão–eudisseaele,comosenuncativéssemosparadodeconversar.–Euquero saber todas as respostas com relação ao futuro, e com relação aomeufuturo.Tenho de lembrar que você não está aqui para tornar issomais fácil para

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mim.–Bom,numcertosentido,nósestamos,enumoutronão–disseele.–Masvocê

tem coisas a fazer agora, e émelhor fazê-las. Faça novamente o quemais lhe deuproveitoantes.

Ele estava com as sobrancelhas ligeiramente inclinadas, as pupilas se movendocada vez mais ligeiramente, porém com constância, como se, me observando, eleestivesseobservandoumaimensademonstraçãodemovimentoedetalhesqueeunãoconseguiacompreender.

–Vocêpassatempodemaisestudandonossosrostos–ofereceuele.–Vocêjamaisserácapazdenoslerdessamaneira.Nósnãopoderíamoslheexplicaromodocomopensamos,mesmoquequiséssemos.

–Asuaexpressãofacialpodeserdesonesta,ouenganadora?–perguntei.–Não–disseelecomumsorrisoplácido.–Vocêgostadeservisívelparamim?–Gosto–disseele.–Nósgostamosdouniversofísico.Nóssempregostamos.

Gostamosdacorporeidadedevocês.Achamosissointeressante.Euestavafascinado.–Vocêgostadeconversarcomigoparaqueeupossarealmenteouvirsuavoz?–

perguntei.–Vocêgostarealmentedisso?–Gosto–respondeuele.–Gostomuito.–Vocêdevetertidodezanoshorríveisquandoeueraummatador–comentei.Eleriusememitirnenhumsom,seusolhosmovendo-sepeloteto.Emseguida,

olhouparamimedisse:–Nãoforamosmeusmelhoresmomentos.Vouterdeadmitirisso.Balancei a cabeça, concordando, como se o tivesse pegadonuma surpreendente

sériedeadmissões,maséclaroqueeunãoohaviapegadoemnada.Entreinaáreadapequenacozinhae zcafé.Finalmente,quandoaprimeiraxícara

cou do jeito como eu queria, voltei para ele, bebericando o café, saboreando aquenturadamesmamaneiracomquesaborearaantesafriezadorefrigerante.

–PorqueAnkanoctevepermissãoparametestar?–perguntei.–PorqueeletevepermissãoparameconduzirdaquelamaneiraemRoma?

– Você está perguntando amim? – respondeu ele. Novamente surgiu aquelepequenodardeombros.–Anjosespeciaisaparecemparaaquelesquepossuemumdestinoespecial.Edemôniosespeciaistêmcomoalvoaquelesmesmosindivíduosdeumjeitoespecial.

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–Querdizerentãoqueeupossoesperarnovasinvestidas?Elenuncavaidesistir?Ele ponderou acerca disso e indicou que não tinha como dar uma resposta.

Apenasumpequenogestocomasmãoseumleveerguerdassobrancelhas.–OquevocêaprendeusobreAnkanoc?–perguntou.–Eleescolheuocaminhodarazãoparameatacar,velhosargumentos,teoriasque

eujáhavia lido.Aventurou-sepela loso adaNovaEra,ostestemunhosdaquelesque viajaram para fora de seus corpos, a rmaram ter tido experiências quandoestiveramàbeiradamorte.Maselemisturoutudo.Aquestãoéaseguinte:eleatacouaminhafépelarazão,muitomaisdoqueomeuabaladoautocontrole.

Elenovamenteimergiuempensamentos,ouemalgosimilaraisso.Pareciateraminha idade, imaginei,mas por que escolhera aparecer com cabelos ruivos eunãoconseguiaadivinhar,epareciaqueseucorpoeraumpoucomaisrobustodoqueodeMalchiah. Essas coisas tinham de signi car alguma coisa, mas o quê? Deve haverregras para tudo isso, um vasto sistema delas,mas talvez seja intrincado demais ecomplicadodemaisparaqueeuconsigaentender.

Elefalousubitamente,trazendo-medevoltaàconversa.– Existe uma velha história – disse ele –, sobre um santo que uma vez disse:

“MesmoquandooPríncipedasTrevasassumeaformadeumanjoda luz,vocêoreconhecerápeloraboreptiliano.”

Euri.– Eu já ouvi essa história – eu disse. – Eu sabia quem era esse santo. Bom,

Ankanocnãotinharaboreptiliano.–Masele seentregoudeumaformaoudeoutra.Vocêentendeuquemeraele

muitocedo;pelodiscursodele,pelasobservações indelicadasque fez sobreos sereshumanos.

– Foi exatamente isso – concordei. – E também pelamaneira como usava ospontos de vista da Nova Era em questões de vida e morte e do motivo de nósestarmos aqui. O que é fascinante sobre esses pontos de vista é que eles sãoapresentados por toda uma variedade de pensadores, que determinados padrões depensamento emergem de pioneiros psíquicos por todo o globo. Mas Ankanoctratou-oscomosefossemdogmaetentoudarumaênfaseespecialaeles.

–Tenhaemmenteoseguinte–disseele.–Nãoimportaoqueelefaçaediga,elesempresemostrarácomorealmenteé.Demôniossãomuitocheiosdeódioeraivaparasersuficientementeinteligentes.Nãoossuperestime.Issopodevirasertãoruimquantosubestimá-los.Esevocêchamá-lopelonome,eledeveráatendê-lo,demodo

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queébastanteimprovávelquetentesedisfarçarnovamente.–Entãovocêestádizendoquedemôniosnãosãotãoespertosquantoanjos.–Talvezpossamser–disseele–,masoestadodamentedelesinterferecomsua

inteligência.Interferecomacapacidadedeobservaçãoedeconclusãodeles.Interferecomtudooqueelesfazem.Osapurosnosquaiselesseencontramsãoatrozes.Elesserecusamaadmitirqueperderam.

Aquiloeralindo.Eugostei.Gosteidocaráterenigmáticoedaverdadeembutidanaquelaspalavras.

–Vocêoconhecepessoalmente?–perguntei.–Pessoalmente?–Eleteveumataquederiso.–Pessoalmente!–disseeleoutra

vezcomumsorrisoresplandecente.–Toby,vocêéumjovemfascinante.Não,eunãooconheçopessoalmente.Eunãoachoqueelemedariaessaoportunidade.–Eleriunovamente.–Elenãoachaqueprecisasepreocuparcomigo,“ummeroanjodaguarda”.ÉMalchiahqueotiradosério.Eleaindatemmuitoaaprender.

–Então,depoisdotrabalho,quandoeuestiverdormindo,porexemplo,vocêeAnkanocnãopodiamsairparatomarumdrinquejuntosnoTempodosAnjos?

–Não–disseele,rindonovamente.–E,porfalarnisso,eunãoestoudefolgaquandovocêestádormindo.Provavelmentevocêsabemuitobemdisso.

–VocêestavacomigoemRoma?–perguntei.–Claroquesim.Euestousemprecomvocê.Eusouseuanjodaguarda,eu te

disse.Euestoucomvocêdesdeantesdevocêternascido.–Mas,emRoma,vocênãopodiaestarcomigo,aparecerparamim,meajudar?–

perguntei.–Oquevocêacha?–perguntouele.–Ah,denovonão.Vocêsanjosestãosemprevirandoasperguntaspeloavesso.–Nãoéquenósfazemosissomesmo!–sussurrouele.–Maspelomenosagora

nósdoissabemosumarazãoparavocêestarassimtãoperturbado.Vocêestázangadoporeunãotervindoemseuauxílio.MasMalchiahveio,nãoveio?

–No m, ele veio, sim– respondi. –Ele veioquando tudo já tinha acabado.Masseráquenãodavaparaumdevocêsdoistermedadoalgumadicadequeaquelacriaturaestavamecercando,utilizando-sedemeiosextraordinários?

Eledeudeombros.–EuachoquevocêdevesecurvaraosdesejosdeMalchiah–eudisse.–Essaéumamaneiradedescreverascoisas–disseele.–MalchiahéumSera m.

Eu,não.

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–Porquevocêestáaquiagora?–perguntei.–Porquevocêprecisademimequerqueeuestejaaqui,evocêestáa itoesuas

ideiasacercadoquefazerdaquiparafrentesãoinsípidas.Isso,pelomenos,épartedaresposta.Maseuachoquejáestánahoradevocêcomeçarafazeroquefezdepoisdesuaúltimamissão.Portanto,talvezsejamelhoreupartir.

–Eugostariaquevocêestivessesemprevisível.–Vocêachaqueé issooquedeseja.Vocêpossuimemóriacurta.Eunãoestou

aquiparainterferirnoseucaráterhumano.–AsCriançasdosAnjossentem-sesós?–perguntei.– Você está se sentindo só, não está? – perguntou ele. – Você acha que uma

presença ostensiva de seres angelicais pode anular o desejo humano?Nós estamosaquiporquevocêéhumano.Vocêseráhumanoatéodiadesuamorte.

–Eugostariadesabercomoéasuaaparênciareal!–eudisse.Aatmosferaaomeuredormudouinstantaneamente.Eracomosealgumaforça

houvesse sacudidooquartotodo, talvezoedifício todo,ecertamente todoomeupontodevista.

Osobjetosnoquartosumiram.Agravidadedesapareceu.Eunãoestavaempartealguma.Umsomimensopreencheuosmeusouvidos,umsomvagamentesimilaràsreverberações de um gongo gigantesco e, ao mesmo tempo, uma in ndável luzbranca preencheu a minha visão em grandes rajadas douradas. Tudo o que euconseguiaenxergareraessaluzexplodindo.Haviaumâmagonela,umapulsação,umâmago vibrante do qual emanavam enormes rajadas de ouro e, muitorepentinamente, tudo cou bem além de qualquer linguagem que eu possuísse.Lutavaemmeucérebroembuscadeconceitosquepudessemdescreveracena,fazercom que eu me apossasse dela e a mantivesse em meu poder, mas isso não erapossível.Houveummovimento,umtremendomovimento,algumacoisaparecidacomcircunvoluçõesouerupções.Masaspalavrasnãotêmomenorsigni cadoemcomparaçãoaoqueeuvia.Eutiveumamomentâneasensaçãodereconhecimento.Euouvi a mim mesmo arquejar em alto e bom som: “Sim”, mas isso acabou antesmesmo de ter começado. A luz de nia um espaço vasto demais para eu poderenxergarouperceberalgoe,noentanto,euvia,euviaseusinalcançáveis limites.Osomalcançaraumaintensidadedolorosa.Aluzcontraiu-seedesapareceu.

Euestavadeitadonochão,mirandootetoemdomoacimademim.Fecheiosolhos.Oqueconseguiareproduziremminhamentenãoeranada,nãoeranadaemcomparaçãoaoqueeuacabaradeveredeouvir.

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–Perdoe-me–sussurrei.–Eujádeviasaber.

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A

CAPÍTULOCATORZE

NTES DE QUALQUER COISA, FUI ATÉ OCOMPUTADORatrásdasinformaçõesquequeriasobreoperíodoquepasseiemRoma.

Não quei surpresopornãoencontraremnenhumregistrohistóricoosnomesdaquelesquevisitara.

Masohorrendoecruelincidenteenvolvendoo lhodeGiovanni,emFlorençaestava registrado em mais de um lugar. Nenhum nome era fornecido, nem dohomemacusadodeblasfemaras imagens,nemdesuafamília.Maseracomtodaacertezaomesmoincidente,eeufiqueicomumalembrançafortedoanciãoGiovannimeencarandonasinagogadepoisqueeupararadetocaroalaúde.

Eunão tinhadúvidasdequeminhamissãohavia sedadoentrepessoas reais.Econtinueiestudandoasvárias fontesdequedispunhasobreoperíodohistóricoemfoco.

Logodescobrioquejamaisdeveriateresquecido,queRomahaviasidosaqueadaem1527,ocasiãonaqualmilharesdevidasforamperdidas.Algumasfontesdiziamquetodaacomunidadejudaicahaviasidoaniquiladaporvoltadessaépoca.

Isso signi cava que praticamente todas as pessoas que eu conhecera em Romapodemterperdidosuasvidasnessemomentodahistória,apenasnoveanos,ouatémenos,depoisdaépocademinhavisita.

AgradeciaDeuspordesconheceressapartedahistóriaenquantoestava lá.Mas,muitomais importantedoque isso,percebiemuminstanteoquenãoconseguiraentender ao longo de toda aminha vida egoísta: que é imperativo para nós nessemundonãosaberaocertooqueocorreránofuturo.Podenãohaverumpresenteseofuturoforconhecido.

Podeserqueeutenhatidoconhecimentointelectualacercadissoaosdozeanosdeidade.Mas agora a coisa apareciadiantedemimcomouma forçamística.E faziacomqueeumelembrassequeestavalidandocomcriaturas,doportedeMalchiaheShmarya,quesabiammuitomaissobreofuturodoqueeudesejavasaber.Terraiva

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delesou carressentidocomelesporqueviviamcomessefardonãofaziaomenorsentido.

Haviamuitascoisassobreasquaiseugostariaderefletir.Emvezdisso,digiteiumrelatobreveeconcisodetudooqueaconteceracomigo

desde omeu último “relato”.Redigi não apenas a história daminha aventura emRoma, como também a história do meu encontro com Liona eToby e o queocorreranaquelacircunstância.

Enquanto terminava a tarefa, ocorreu-me que havia motivos distintos para aminhasegundamissãotersidodiferentedaprimeira.Naprimeiraaventura,euforaenviadoparafazeralgoatécertopontodireto:salvarumafamíliaeumacomunidadedeuma acusação injusta.Eu resolveraoproblema amimapresentado commá-fé,masnãohouvenenhumasombradedúvidaemminhamentedequeatrilhatomadahaviasidoacorreta.

Talvez os anjos não pudessem estimular o uso de mentiras como as que euutilizaranoTempodosAnjos,maselespermitiramqueeuo zesse,eeusentiaquesabiaoporquê.

Muitaspessoasnessemundomentiramparasesalvardomaledasmaisdiversasinjustiças.Quem,emnossoprópriotempo,nãoteriamentidoparasalvarjudeusdogenocídionasmãosdoTerceiroReich?

Aminhasegundamissão,noentanto,nãoenvolveunenhumasituaçãocomoessa.Eu procurara usar a verdade para resolver os problemas que estava enfrentando edescobrique,narealidade,issoeraumacoisabastantecomplexaedifícildeserfeita.

Entãoeraseguroa rmarquecadaumadasminhasmissõesseriamaiscomplexadoqueaanterior?Euestavaapenascomeçandoare etirsobreessascoisas,quandofinalmenteparei.

Erameio-dia.Estiveraacordadopordezhoraseescrevendodurantegrandepartedessetempo.Nadahaviacomido.Poderiamuitobemcomeçaraenxergaranjosquenãoestavampresentes.

Vesti meu paletó e desci para almoçar no restaurante do Mission Inn. Lá,encontrei-memaisumavezrefletindoapósospratosteremsidoretirados.

Estava tomando minha última xícara de café quando reparei num jovem emoutramesaolhando xamenteparamim.Mas,quandoeuoencarei,ele ngiuestarlendojornal.

Permiti-me mirá-lo por um bom tempo. Ele não parecia ser nem anjo nemdybbuk.Apenasumhomem.Eramaisjovemdoqueeue,enquantooobservava,ele

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meolhoumaisdeumavezefinalmenteselevantoudamesaefoiembora.Eunão queisurpresodevê-lonosaguão,sentadoemumadascadeirasgrandes,

comosolhosvoltadosparaaentradadorestaurante.Eumemorizeioquevi:eleerajovem,talvezquatrooucincoanosmaisnovodo

queeu.Tinhacabeloscastanhoscurtoseencaracoladoseolhosazuisquasebonitos.Usaraóculosdearosescurosenquantoestiveralendo.Eestavavestidodeummodorazoavelmenteelegante,comumpaletóNorfolkdecormarrom,umsuéterbrancodegolarulêecalçascinzas.Haviaumacertavulnerabilidadeemsuaexpressão,umaansiedade, que negava por completo qualquer possibilidade de perigo em minhamente,massaberqueestavasendopercebidoporalguémnãomeagradavanemumpoucoeimagineiquemseriaeporqueestariaali.

Seelefossemaisumanjonocaso,euqueriasaber.E,sefossemaisumdemônio,bom,elenãotinhaapresençaouacon ançadeAnkanoc,enãoconseguisentirsuaaproximação.

Aquestãodoperigoerabemreal.Lucky,aRaposa,sempretiveraaantenaviradaparaaquelesquepudessemestardetocaiaaoseuredor,fossemelesenviadosporseusinimigos,fossemelesenviadosporseuchefe.

Mas esse homem simplesmente não parecia se incluir, emhipótese alguma, naclasse dos indivíduos perigosos.Nenhumpolicial, nem agente doHomemCerto,teria olhado para mim de maneira tão óbvia. Um outro assassino jamais teriapermitido ser descoberto.De uma forma ou de outra, o incidente servia paramedeixar ciente do quanto eume sentia seguro, embora ainda permanecesse comigoumaansiedadeemrelaçãoaterfornecidoomeuverdadeironomeaoHomemCerto.

Esqueci aquilo, acheium lugar tranquilonumpátio externo, ondeo sol estavaagradavelmentequenteeabrisa,fresca,eligueiparaLiona.

O som de sua voz quaseme trouxe lágrimas aos olhos. E, somente enquantoconversávamos,eupercebiqueelaeTobyhaviamvoadodevoltaparacasahavianãomaisdoquecincodias.

–Podeacreditaremmim–eudisse.–Euquisteligarantes.Andopensandoemvocêdesdequevocêfoiembora.Euquerotevernovamenteesemdemora.

Elatambémqueriaisso,eladisse.Tudooqueeutinhaafazereradizerolocaleahora.Elaexplicouquelevaraparaoadvogadotodososdocumentoslegaisqueeulhedera.Seupaiestavasatisfeitoporsaberqueeuassumiraaresponsabilidadepormeufilhodaquelamaneira.

–Mas,Toby,temumacoisameincomodando–explicouela.–Osseusprimos

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aquisabemquevocêestávivo?–Não,nãosabem–admiti.–E,seeuvoltarparaNovaOrleans,bom,tenhoa

impressãodequevouterdemeencontrarcomeles.–Temumacoisaqueeunãotefaleiantes,masachoqueprecisasaber.Maisou

menostrêsanosatrás,quandovocêfoideclarado...–Legalmentemorto?–sugeri.–Isso.Bom,oseuprimoMattpegoutodasas suascoisas,veioaquiemcasae

nos entregou alguns dos seus livros velhos.Toby, ele sabia. Pelomenos, eu tinhacontadoaelequeTobyeraseufilho.

–Issoébom,Liona.Ficocontente.EunãomeimportonemumpoucocomofatodeMattsaber.Eunãopossoteculparporcontaraele.

–Bom,temmaisumacoisinha.Vocêsabequeomeupai,vocêsabequeacimadetudoeleémédico.

–Eaí?–ElepediupermissãoaMattparafazeralgunstestesdeDNAnasprovasretiradas

doapartamentodasuamãe.Papaidissequequeriaissopormotivosmédicos,parasabersehaviaalgumproblemamédiconafamíliaqueTobypoderiavira...

–Eu compreendo. –Gelei por inteiro. Lutei paramanter a voz equilibrada. –Tudoótimo.Issoécompletamenterazoável–menti.–Mattdissesim,eoseupaifezotestedoDNAdaminhafamíliaeocomparoucomoDNAdopequenoToby.–Oquesigni caqueexisteumregistrodeDNApróximoàqueledeLucky,aRaposa,numarquivo.Meucoraçãoestavaaossolavancos.–Vocênãoestátentandomedizerquehaviaalgumproblemacongênito...

– Não. Eu só queria que soubesse. Nós pensamos que você estivesse morto,Toby.

–Liona,nãosepreocupe.Estátudobem.E cocontenteporvocêsteremfeitoisso.SeupaisabecomcertezaqueopequenoTobyémeufilho.

–Bom,issotambémteveavercomadecisão–confessouela.–Eletemprovadeafinidade,éassimqueeleschamamacoisa,eissojáserve.

–Escuta,meuamor.Eutenhoalgumascoisasparafazer.Precisofalarcomomeuchefe.E, assimque eudescobrir como éque vai car aminha agenda, eu te ligo.Agoraestoucomocelularpré-pagoevocêtemonúmero.Podeligarquandoquiser.

–Ah,podedeixarqueeunãovouteincomodar,Toby–insistiuela.–Seeunãoatender,significaquenãopossofalar–eudisse.–Toby?

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–Oi?–Euqueriaquevocêsoubesseumacoisa,maseunãoqueroquefiqueassustado.–Éclaro.Oqueé?–Euteamo–disseela.Deixeiescaparumlongosuspiro.– Ficarei eternamente feliz depois de ouvir isso – sussurrei. – Porque o meu

coraçãoestáemsuasmãos.Desliguei.Eu estava imensamente feliz e imensamente estressado. Ela me amava. E eu a

amava,eentãotodasasoutrassombriasverdadesseintrometeram,commaisrapidezdo que eu conseguia nomeá-las ou mesmo reconhecê-las. Ninguém no rastro deLucky,aRaposa,jamaisobtiveraumaamostradeDNA,masagoraoHomemCertosabiaqueLucky,aRaposa,eTobyO’Dareeramumaúnicapessoa,ehaviaoDNAdafamíliadeTobyO’DareemumarquivoemNovaOrleans.EeuhaviatolamentecontadoaoHomemCertoquehavianascidoemNovaOrleans.

“Há coisas que você tem de fazer”, dissera Shmarya com tantas palavras, e eleestava certo. Eu não podia fazer nada em relação a essa questão do DNA e, narealidade, talvez isso nem tivesse importância, tendo em vista como as minhasdiversasvítimasforameliminadas,mashaviaoutrascoisasqueeupodiafazeredeviafazerprontamente.

Fizocheck-outnohoteledirigiatéLosAngeles.Meu apartamento estava como euodeixara, comasportas escancaradasparao

pátioeas orescaídasdasárvoresdejacarandáaindaseacumulandonasossegadaruaabaixo.

Vesti umas roupas velhas e dirigi até a garagem onde havia deixado meuscaminhões,meusdisfarcesemeusoutrosmateriais,porunsdoisou trêsanos.Porduashoras, após tero cuidadodevestir luvas eumcapuz,destruí asmaisdiversascoisas.

Eujamaisprepararaminhasmisturasvenenosasapartirde,digamos,“substânciascontroladas”.Praticamentetodososcoquetéisletaisqueeubolaraemtodaaminhavidaforamfeitosapartirderemédiosquenãonecessitavamdeprescriçãomédicaoude ores e ervas disponíveis em todos os lugares. Utilizara microsseringas quequalquer diabéticopode comprar semmaiores di culdades.Todavia, a reuniãodeitensnagaragemconstituíaumaespéciedeevidência, e eume sentimuitomelhorquandoaúltimagarrafahavia sidoesvaziadaeoúltimopacote,queimado.Cinzas

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descerampeloralo.Eumagrandequantidadedeáguadesceuatrásdelas.Limpei os caminhões com muito cuidado e, em seguida, os levei para áreas

diferentes do centro de LosAngeles, onde os deixei com as chaves na ignição. Asplacas e os registros eram todos frios, de modo que não me traziam nenhumapreocupação. Caminhei por mais ou menos seis quarteirões depois de deixar oúltimocaminhão,especulandoque,àquelaaltura,todoselespoderiammuitobemjátersidoroubados,epegueiumtáxiparavoltaraosarredoresdagaragem.

Olugarestavaagoravazio.Deixeiasportasabertasedestrancadas.Emquestãodehoras,pessoassem-tetoentrariamnolugarembuscadeabrigoou

desejaláquaisutensíliosdevalorqueporventurapudessemencontrar.Seuspertencespessoais, suasdigitais e seuDNA logoestariamemtodosos cantos, e esse eraumdesfecho bastante adequado, assim como fora no passado, para qualquer garagemdessetipoqueLucky,aRaposa,houvesseutilizado.

Dirigidevoltaparacasasentindo-meumpouquinhomaisseguro,esentindoqueLionaeTobytambémestavamumpouquinhomaisseguros.Eunãotinhacomotercertezade coisa alguma,naverdade.Mas estava fazendooquepodiapara impedirqueLucky,aRaposa,fizessealgummalaeles.

A ansiedade que eu estava sentindo era considerável e inevitável. Percebi que,independentementedoqueacontecessecomigo,comMalchiahecomShmarya,euestavametornandoTobyO’Darenomundo,eTobyO’Darejamaisexistiradefatoantes como existia agora. Eu estava me sentindo nu e vulnerável, e não estavagostandodisso.Narealidade,estavasurpresoporestargostandotãopoucodisso.

Naquelanoite,pegueiumaviãoevoeiparaNovaYork.E,nodiaseguinte, zasmesmascoisasnagaragemquemantinhapor lá.Fazia

quase um ano desde a última vez que eu estivera naquele pouso especí co, e nãogostei nem um pouco de estar de volta. Nova York tinha muitas lembrançaschocantesparamim,eeuestavaparticularmentesensívelaelasagora.Massabiaqueisso precisava ser feito. Deixei os veículos em áreas nas quais certamente seriamroubadose,por m,deixeiagaragemexatamentecomo zeracomaoutra,abertaaquemquerqueestivessedispostoaentrar.

SentivontadedesairdeNovaYorknaqueleinstante,mashaviamaisumacoisaque queria muito fazer. Eu precisava pensar bastante antes de executar o meupequenoplano.Passei a noite e amanhã seguinte fazendo exatamente isso.Estavamuitocontentecomofatodeosanjosnãoestaremvisíveisparamim.Compreendiaagoraporquenãoestavam.Eostermosdaminhanovaexistênciaestavamfazendo

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umpoucomaisdesentidoparamim.Quando a tarde chegou, saí do hotel e fui andando até encontrar uma igreja

católica.Devo ter caminhado horas e horas até achar uma igreja que parecia ter as

características que eu queria; e tudo isso não passava de sensações, já que eu nãodedicaranenhumpensamentoaoassunto.

Eu sabia apenas que estava em algum lugar de Midtown quando toquei acampainhada reitoriaedisseparaamulherqueatendeuàportaqueeuqueriameconfessar. Ela olhou xamente para as minhas mãos. Estava quente, e eu estavausandoluvas.

–Asenhorapodechamaropadremaisvelhodacasa?–pergunteiaela.Eunãotinhamuitacertezadequeelahaviaouvidoouentendido.Levou-meaté

um pequeno salão esparsamente mobiliado com uma mesa e diversas cadeiras demadeiraretas.Haviaumapequenajanelacomcortinasempoeiradasrevelandopartede um pátio asfaltado. Um grande cruci xo fora de moda estava pendurado naparede.Eumesentei,fiqueiimóvelerezei.

Tiveaimpressãodeteresperadomeiahoraatéumpadrebastanteidosoaparecer.Fosseeleumpadremaisjovem,provavelmenteeuteriadeixadoumadoaçãoesaídosemdizer uma palavra.Mas aquele homem era um ancião, umpouco encolhido,com uma cabeça quadrada extremamente grande e óculos de aros de metal queretirouedepositouemcimadamesaàsuadireita.

Tirousuaindispensávelestolapúrpura,umalongae nafaixadesedanecessáriapara a audição de con ssões, e colocou-a no pescoço. Seus cabelos grisalhos eramespessoseestavamdesgrenhados.Elerecostou-seemsuacadeirademadeiraefechouosolhos.

–Abençoe-mepadre,porqueeupequei–eudisse.–Pequeiaolongodedezanosdesde aminha última con ssão e tenho estado longe demais do Senhor. Por dezanos, eu cometi pecados terríveis e mais numerosos do que consigo mencionar epossoapenasestimarquantasvezesfizcoisaserradas.

Nãohouvenenhumamudançaemseusemblante.–Eutiravavidasobstinadaedeliberadamente.Eudiziaamimmesmoqueestava

matandohomensmaus,mas, na verdade, eu estava destruindo as vidas de pessoasinocentes,principalmentenoinício,eeuagoranemconsigoa rmarquantasforam.Depoisdaquelesprimeirosemaisterríveiscrimes,fuitrabalharparaumaagênciaquemeusavaparamatar outraspessoas, e euobedecia às ordensdeles semquestionar,

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aniquilandoemmédia trêspessoasporanoao longodedezanos.EssaagênciamedissequenóséramososCarasLegais.Eeuachoqueosenhorentendeporquenãopossofalarmaissobreissodoquejáfaleiatéagora.Eunãopossocontarquemeramessaspessoasnemparaquemespeci camente eu fazia essas coisas. Sóposso contarquesintomuitoporelasejureidejoelhosquejamaistirariaavidadeoutrapessoanovamente.Eumearrependidetodoocoração.Tambémdeciditrilharumcaminhode reparação, compensarnos anosqueme restamoque eu znessesúltimosdez.Tenhoummentor espiritual que sabe tudooque eu z e estádirigindo aminhareparação. Tenho con ança que Deus me perdoou, mas vim aqui receber aabsolviçãodosenhor.

– Por quê? – perguntou ele. O padre tinha uma profunda e sonora voz debarítono.Elenãomoveunemabriuosolhos.

–Porqueeuquerovoltaramecomungar–respondi.–EuqueroestarnaminhaIgreja na companhia de outras pessoas que acreditam em Deus como eu e querovoltaraparticipardamesadebanquetedoSenhor.

Elepermaneceucomoestavaantes.– Esse mentor espiritual – disse ele. – Por que não te dá a absolvição? – Ele

pronunciouaúltimapalavracomforça,suavozprofundaquaseumrugidonopeito.–ElenãoéumpadredaIgrejaCatólicaRomana–eudisse.–Éumapessoacom

credenciais impecáveis e grande capacidade de julgamento, e seus conselhosorientaramomeuarrependimento.Maseusouumhomemcatólico,eéporissoquevimatéaqui.–Continueiexplicandoquecometeraoutroscrimes,crimesdeluxúriaeganânciaecrimesvulgaresdeindelicadeza.Listeitudooquemevinhaàcabeça.Éclaroqueeudeixaradefrequentarasmissasaosdomingos.Abandonaraasobrigaçõesdosdiassantos.Deixaradecomemorarosdiasdefesta,taisquaisoNataleaPáscoa.ViveradistantedeDeus.Prosseguicomaminhanarrativa.Contei-lheque,devidoàsminhasimprudênciasdejuventude,eutinhaumfilhoefizeraagoracontatocomessacriançaequetodoodinheiroqueeuhaviaganhocomminhasaçõespassadasestavasendodisponibilizadoparaacriançaeparaamãedacriança.Eumanteriaapenasonecessárioaomeuprópriosustento,masjamaisvoltariaamatar.

“Euimploroqueosenhormedêaabsolvição”,eudissefinalmente.Umsilêncioseinterpôsentrenós.–Vocêpercebequealgumaspessoasinocentespodemacabarsendoacusadasdos

crimes que você cometeu? – aventurou-se ele a dizer. Sua vozde barítono tremeuligeiramente.

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–Queeusaiba,issojamaisaconteceu.Bom,tirandoasminhasaçõesdisparatadasno início, tudo o que eu z quando era contratado era sigiloso.Mesmo no casodaquelesprimeirosassassinatos,atéondesei,ninguémjamaisfoiacusado.Eeutinhaumbomconhecimentoaesserespeitoeachoque,não,ninguémjamaisfoiacusado.

–Sealguémforacusado,vocêterádeseapresentar–disseele.Elesuspirou,masnãoabriuosolhos.

–Eufareiisso.–Evocênãovoltaráamatar,nemquesejaparaessaspessoasquechamamasi

mesmasdeCarasLegais–murmurouele.–Correto.Nuncamais.Nãoimportaoqueaconteça,eununcamaisfareiisso.Eleficouquietoporummomento.–Essementorespiritual...–começou.–Peço-lhequenãomeforcearevelaraidentidadedele,assimcomopeçoquenão

me forcea revelara identidadedaquelesparaquemeu faziaasmatanças.Peçoqueconfiequeestoudizendoaverdade.Euvimatéaquiexatamenteporisso.

Elerefletiu.Avozprofundaroloudedentrodelemaisumavez.–Vocêsabequementirnaconfissãoéumsacrilégio.– Eu não omiti nada. Não menti sobre nada. E agradeço ao senhor pela

compaixãoemnãomeforçararevelarmaioresdetalhes.Elenãorespondeu.Amãoenrugadaecheiadenódoasaterrissoucomesforçona

superfíciedamesa.– Padre, é difícil para um homem como eu ser uma pessoa responsável nesse

mundo. É impossível para mim conseguir algum dia preencher o vácuo que meseparadaquelessereshumanosinocentesquejamais zeramascoisashorrorosasquez.EuagoraestouconsagradoaDeus.VoutrabalharparaElee somenteparaEle.

Mas eu souumhomemquevivenessemundoequero irparaminha IgrejanessemundocomoutroshomensemulheresequeroassistiràmissacomelesequeromeaproximareapertarasmãosdelesenquantorezamosjuntosoPaiNossosobotetodoSenhor.Euquerocomungarcomeles.Quero fazerpartedaminhaIgrejanessemundonoqualeuvivo.

Elerespiroufundoecomdificuldade.–DigaoseuAtodeContrição–disseele.Umpânico súbito.Essa era a única parte do processo que eunão estudara em

detalhes.Eunãoconseguiamelembrardaoraçãotoda.Forcei-meatirartudodacabeça,excetoqueestavafalandocomoCriador.

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–Oh,Deus, sinto do fundo domeu coraçãoVos haver ofendido, e desprezotodososmeuspecadosporqueelesmesepararamdeVós,e,emboraeutemaaperdadocéueasdoresdoinferno,sintomuitopormeuspecadosporcausadessaseparaçãoeporcausadoterrívelmalque zàsalmascujas jornadas interrompi,eeuseiquejamaispodereidesfazerosequívocoscometidosaelas,pormaisqueeumeesforce.Porfavor,queridoDeus,rati caimeuarrependimentoedai-meagraçadevivenciar-vosdiariamente.Permitiqueeusejavosso lho.Permitiqueosanosquemerestamsejamanosvoltadosparavosservir.

Semjamaisabrirosolhos,elelevantouamãoemedeuaabsolvição.–Penitência,padre?–perguntei.–Façaoquelhedisseroseumentorespiritual–disseele.Eleabriuosolhos,tirouaestola,dobrou-aerecolocou-anobolso.Estavaprestes

asairsemterolhadoparamimumaúnicavezsequer.Tirei um envelope do bolso. Estava recheado de notas altas, todas elas já

devidamentelivresdequaisquerimpressõesdigitais.Euoentregueiaele.–ParaosenhorouparaaIgrejaouparaoqueosenhorquiser,minhadoação–

disse.–Não énecessário, jovem, você sabedisso –Opadre lançou sobremimuma

únicavezseusgrandesolhosmarejadose,emseguida,desviouoolhar.–Euseidisso,padre.Euquerofazeressadoação.Elepegouoenvelopeesaiudorecinto.Eusaída igreja, sentioarquentedaprimaveraaomeuredor,acariciando-mee

tranqulizando-me,eentãocomeceiaandardevoltaparaohotel.Aluzestavasuaveeagradável,eeusentiumamorassoberbantepelasmuitaspessoaspelasquaispassavaaoacaso.Atémesmoacacofoniadacidadeestavamereconfortando,o rugidoeobarulhodotráfegosimilaresàrespiraçãodeumservivoouàbatidadeumcoração.

QuandochegueiàCatedralSt.Patrick,entrei,sentei-menumbancoeespereioiníciodamissanoturna.

Esseespaçovastoebeloestavatãoreconfortanteparamimquantosemprefora.Euvinhaaquicomfrequência,nãosóantescomotambémdepoisdeiniciaraminhavidaparaoHomemCerto.Sempre cavamirandooaltardistanteporhorasehoras,ou cavaandandoparacimaeparabaixonoscorredoresdaigreja, inspecionandoamagni cênciadaarteeosdiversossacrários.EssaeraparamimaIgrejaCatólicaporexcelência,comseusarcosnotetolongínquoesuagrandezainjusti cável.Euestavadolorosamente contente por estar aqui agora, dolorosamente contente por tudo o

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quehaviaacontecidorecentementecomigo.Umarazoávelmultidãocomeçouasereuniràmedidaqueescureciado ladode

fora.Eumeaproximeidoaltar.Queriaouviramissaetambémvê-la.Nomomentodaconsagraçãodopãoedovinho,baixeiacabeçaechorei.Eunãoligavasealguémhavianotado.Poucoimportava.QuandonósnoslevantamospararezaroPaiNosso,tirei as luvas e estendi a mão para as pessoas que estavam nos meus dois ladosenquantopronunciávamosaspalavrassagradas.

Quando me dirigi à comunhão, não consegui disfarçar as lágrimas. Mas issopoucoimportava.Sealguémreparou,eunãorepareinessapessoa.Euestavasozinhocomo sempreestive, confortável emmeuanonimatoenesse ritual.E,noentanto,estavaconectadoatodosaqui,euerapartedesselugaredessemomento,easensaçãoerasimplesmentegloriosa.

E é perfeitamente aceitável chorar quando se está comungando numa IgrejaCatólica.

Posteriormentehouveummomentoemque,quandoestavaajoelhadonobancocomacabeçabaixa, queipensandoemcomoomundo,ograndemundorealaomeu redor, encarariaoque eu estava fazendoaqui.Omundomodernoque tantodetestarituais.

Oqueosrituaissigni cavamparamim?Tudo,porqueeleseramospadrõesquerefletiamosmeusmaisprofundossentimentosecompromissos.

Euhaviasidovisitadoporanjos.Euseguiraoseuamorosoconselho.Masaquelefoi um milagre. E esse, o Milagre da Verdadeira Presença de Nosso SenhorAbençoado em carne e vinho, era outro. E essemilagre era o que importava paramimagora.

Eu não me importava com o que o grande mundo pensava. Eu não meimportavacomquestõesdeteologiaoulógica.Sim,Deusestáemtodososlugares,sim,Deuspermeiatudonouniverso,eDeustambémestáaqui.Deusestáaquiagoradessamaneira,emmim.Esseritualtrouxe-meparaDeusetrouxeDeusparamim.Deixeiqueaminhacompreensãodissoabandonasseomundodaspalavraseentrassenumsilenciosoprocessodeaceitação.

–Deus,porfavor,protejaLionaeTobydeLucky,aRaposa,edetudooqueelefez,por favor.Permitaqueeuvivapara servirMalchiah;permitaqueeuvivaparaLionaemeufilho.

Fizmuitasoutrasorações.Rezeiporminhafamília;rezeiparacadaumadasalmasqueenviaraprecocementeparaaeternidade;rezeiporLodovico;rezeipeloHomem

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Certo; rezei pelos anônimos e pelas inúmeras pessoas cujas vidas haviam sidodespedaçadaspelasmaldadesqueeu zera.EentãodeivazãoàOraçãodaQuietude,apenasouvindoavozdeDeus.

Amissaterminarahaviamaisdemeiahora.Saídobanco,genu exionandocomonosvelhostempos,epercorriocorredor,sentindoumamaravilhosasensaçãodepazepurafelicidade.

Assimquealcanceiosfundosdaigreja,noteiqueaportadalateralesquerdaestavaaberta,masnãoasportasprincipais,demodoquemedirigiàruaporessecaminho.

Haviaumhomemempéao ladodaportacomascostasvoltadasparaa luz,ealgonelemechamouaatenção,oquefezcomqueeuolhassediretamenteparaele.

Erao jovemdoMissionInn.Usavaomesmopaletómarromdeveludocotelêcom uma camisa branca aberta no colarinho debaixo de um colete. Ele olhouxamenteparamim.Pareciaestaremocionado,comoseestivesseprestesafalar.Mas

nãofalounada.Meucoraçãoretumbavanosouvidos.Oquediaboeleestavafazendoaqui?Passei

porele,saídaigrejaepus-meacaminharnadireçãoopostaàdemeuhotel.Euestavatrêmulo.Tentei vasculhar todas aspossibilidadesquepudessem talvez explicar essaestranhavisão,mas,naverdade,nãohaviamuitas.Ouissoeraumacoincidênciaoueleestavameseguindo.E,seeleestivessemeseguindo,entãotalveztivessemevistoiratéasgaragensemLosAngeleseNovaYork!Issoeraabsolutamenteinsuportável.

Nunca, em todososmeus anos comoLucky, aRaposa, eu senti a presençadealguém me seguindo. Mais uma vez, amaldiçoei o dia em que dissera o meuverdadeiro nome aoHomemCerto.Mas eu não estava conseguindo encaixar essejovemdeaparênciaestranhamentevulnerávelemqualquercenárioqueenvolvesseoHomemCerto.Entãoquemeraele?

QuantomaiseusubiaaQuintaAvenida,maiscerto cavadequeessecaraestavabematrásdemim.Eupodiasentirisso.NósestávamosnosaproximandodoCentralPark.Otráfegoemdireçãoaocentroestavapesadoebarulhento,osomirritantedasbuzinas acabando com osmeus nervos, a fumaça dosmotores deixando osmeusolhosúmidos.Noentanto, eu estava agradecidopornós estarmos aqui, emNovaYork,emmeioàsprimeirasmultidõesdanoite,compessoasdetodososlados.

Masoquediaboeuiriafazercomaquelecara?Oquepoderiafazer?Eocorreu-me, com um peremptório senso de nalidade, que eu não podia, em hipótesealguma, fazer o que talvez Lucky, a Raposa, tivesse feito. Eu não podia cometernenhum ato de violência com ele. Independentemente do que ele soubesse, essa

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opçãonãomeeramaisviável.Fiqueisubitamenteenlouquecidopelofato.Senti-mepresonumaarmadilha.

Euqueriaolharparatrásparaverseconseguiaavistá-loe,assimquetireiopédomeio- o para atravessar a rua, olhei de relance por cima do ombro com muitainquietude.

De repente, duas mãos rmes agarraram os meus braços e me puxaram comforça.Meutornozelo coupresonomeio- o.Eutropecei,masparatrás.Umtáxipassouvoandopormim,avançandoosinalparaatravessaraQuinta,oqueincitougritosdetodososlados.Otáxiquasemeatropelara.

Euestavabastanteabalado.É claro que pensei que fosse Malchiah ou Shmarya quem me salvara. Mas,

quandomevireiparaverquemera,láestavaojovemempéacentímetrosdemim.–Aquelecarropodiatertematado–disseele.Orapazseafastou.Suavozeraa

vozdeumapessoaeducada,emnadafamiliaramim.O táxi bateu em alguma coisa ou em alguém no outro lado da Quinta. O

barulhofoihorrível.Agora havia pessoas à nossa volta, deixando bastante claro que nós estávamos

bloqueandoacalçada.Mas eu queria dar uma boa olhada nessa pessoa, portanto nãomemexi, e ele

estava apenas a poucos passos de mim, olhando-me bem nos olhos da mesmamaneiracomofizeranacatedral.

Ele era realmente jovem, pouco mais de vinte anos, no máximo. De algummodo,pareciaestarimplorandoalgodemim.

Virei-me e caminhei até o muro mais próximo e quei lá parado. Ele veiocomigo.Foiexatamenteoqueeuesperava.Euestavafervendodehostilidade.Estavacomraiva,comraivaporeletermeseguido,comraivaporter-mesalvadodaqueletáxi.Euestavacomraivaporelenãoestarmaiscommedodemim,porterousadochegartãopertodemim,portersemostradotãopoucotemeroso.

Euestavatotalmentefurioso.–Háquantotempovocêestámeseguindo?–quissaber.Eunãoestavatentando

esconderosdentescerrados,estavacommuitaraiva.Ele não respondeu.Ele próprio estava bastante abalado.Eu podia ver todos os

pequenossinaisemseurosto,amaneiracomqueseuslábiossemoviamsemformarpalavras,amaneiracomqueaspupilasdançavamenquantoolhavaparamim.

–Oquevocêquerdemim?–perguntei.

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– Lucky, a Raposa – falou em voz baixa e íntima. – Eu quero que você falecomigo.Queroquemecontequemmandouvocêmataromeupai.

FIM29dejaneirode2010

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A

NOTADAAUTORA

S CANÇÕES DO SERAFIM SÃO OBRAS DE FICÇÃO.Entretanto,eventosreaisepessoasreaisinspiramumpoucodoquesepassanesses livros. E todos os esforços foram feitos para apresentar o ambiente

históricodosromancescomtodaaacuidade.Otrágicoincidentedamãodecepadaesubsequentemutilaçãodeumrapazjudeu

emFlorença,em1493,édescritoemdetalhesemPublicLifeinRenaissanceFlorence ,deRichardG.Trexler,publicadopelaCornellUniversityPress.Entretanto,nãohánenhum registro nas fontes que consultei acerca da identidade do jovem, seusparentes nem seu destino. Eu usei essas fontes para criar uma versão ctícia doincidentenesseromance.

A or chamada “Morte Púrpura” é ctícia. Por motivos óbvios, eu não quisincluirdetalhesrelacionadosavenenosreaisnesselivro.

Minhas principais fontes para o romance foramdois livros deCecilRoth, umlivro bem grande intituladoe History of the Jews of Italy, e um trabalho maiscurto,porémnãomenosinformativo,chamadoeJewsoftheRenaissance, ambospublicadospelaJewishPublicationSocietyofAmerica.Tambémdetremendaajudafoi parte da Jewish Community Series e traduzida por Moses Hadas e tambémpublicada pela Jewish Publication Society of America.Também fui ajudada porJewishLifeinRenaissanceItaly,deRobertBon l,traduzidoporAnthonyOldcornepublicadopelaUniversityofChicagoPress.eRenaissancePopes, deGeradNoel,tambémfoidegrandeajuda,etenhoumadívidaparacomNoelpelofatodeopapaJulioIIjantarcaviartodososdias.

Consulteimuitosoutros livrossobreRoma,sobreaItália, sobreos judeuspelomundoduranteesseperíododahistória,eesseslivrossãonumerososdemaisparasernomeados aqui. Qualquer estudante interessado em aprofundar seus estudosencontrarárecursosabundantesnaspontasdeseusdedos.

Maisumavez,queroagradeceraWikipedia,aenciclopédiaonline.Noquedizrespeitoaoalaúderenascentista,ouviumaboaquantidadedemúsica

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enquantoescreviaesse livro,masfuisingularmenteinspiradaporumCDchamadoeRenaissanceLute,deRonnMcFarlane.Eugostariaderecomendaraoouvinteafaixa Número 7, intitulada apenas “Pessemeze”. Essa peça musical provou-separticularmenteobsedante,eeu imaginoToby,meuherói, tocando-adurante suasúltimashorasnaItáliarenascentista.

Maisumavez,gostariadeagradecerpelaexistênciaeabelezadoMissionInnemRiverside,Califórnia,eabelaMissãodeSanJuanCapistrano.

Egostariatambémdeagradecernovamente,ecomfervoregratidãoespeciais,aJewishPublicationSocietyofAmericaportudooqueeles zerampelapesquisadecampodahistóriajudaica.

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ANNERICEéautorade30livros.ElaviveemRanchoMirage,Califórnia.Tempodosanjos eDe amor emaldade fazem parte da série As Canções do Sera m. Dela, aRoccopublicou:Cânticodesangue,Choreparaocéu,CristoSenhor–AsaídadoEgito(Livro1),CristoSenhor–OcaminhoparaCaná(Livro2),Entrevistacomovampiro,AfazendaBlackwood,Ahistóriadoladrãodecorpos,Ahoradasbruxas–vols.IeII,Lasher,Memnoch,Merrick,Amúmia,Pandora,A rainha dos condenados,Sangue eouro, O servo dos ossos, Taltos, O vampiro Armand, O vampiro Lestat, Violino,Vittorio,ovampiro.