anne rice as canções do serafim 01 - tempo dos anjos

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Cuidadoparanãodesprezaresnenhumdessespequeninos;Porquevosdigo,QuenocéuseusanjossempreveemOrostodemeuPaiqueestánoscéus.

–Mateus,18:10

VersãodoreiJamesDamesmaforma,vosdigo,HájúbilonapresençadosanjosDeDeusjuntoaumpecadorquesearrepende.

–Lucas,15:10

VersãodoreiJamesPoiseleporáseusanjosparacuidardeti,Paramanter-tecomtudodequeprecisas.Elestesustentarãoemsuasmãos,Paraquenãobatascomteuspésemalgumarocha.

–Salmo91:11-12

VersãodoreiJames

P

CAPÍTULOUMSOMBRASDEDESESPERO

RESSÁGIOSEXISTIAMDESDEOINÍCIO.

Emprimeirolugar,eunãoqueriaotrabalhonoMissionInn.Emqualquerlugarnopaíseuestariadisposto,masnãonoMissionInn.

E na suítematrimonial, naquele quartomesmo, omeu quarto.Má sorte,muitomaisdoqueisso,penseicomigomesmo.

Éclaroquemeuchefe,oHomemCerto,nãotinhacomosaber,quandomedeuesse trabalho, que o Mission Inn era onde eu ia quando não queria ser Lucky, aRaposa,quandonãoqueriaserseuassassino.

O Mission Inn fazia parte daquele pequeno mundo no qual eu não usavaqualquerdisfarce.Euerasimplesmenteeumesmoquandoestavalá,1,92mdealtura,cabeloslouroscurtos,olhoscinzas–umapessoaparecidacomtantasoutraspessoasque não se parecia nem um pouco com alguma pessoa especial. Eu nem mepreocupavaemusaraparelhonosdentesparadisfarçarminhavozquandoiaparalá.Eu nemme preocupava com os óculos de sol obrigatórios que protegiamminhaidentidadenosoutros lugares,comexceçãodoapartamentoedobairroemqueeumorava.

Eueraapenasquemeueraquandoiaparalá,emboraeunãofosseninguémmaisdoqueohomemqueusavatodosaqueleselaboradosdisfarcesquandofaziaoqueoHomemCertoomandavafazer.

EntãooMissionInnerameu,onão-serqueeuera,eassimtambémeraasuítematrimonial, chamada Suíte Amistad, sob o domo. E agora eu estava recebendoordensparasistematicamentepoluí-la.Nãoporninguémmaisanãosereumesmo,éclaro.EujamaisfariaqualquercoisaquecolocasseemriscooMissionInn.

Umagigantescaedi caçãoconfeccionadaeconfabuladaemRiverside,Califórnia,eraolocalondeeufrequentementemerefugiava,umlugarextravaganteedevoradorqueseespalhavapordoisquarteirõesdacidade,ondeeupodia ngir,porumdiaoudois ou três, que não estava sendo perseguido pelo FBI, pela Interpol ou pelo

HomemCerto, um lugar onde eupodianão sómeperder como tambémperderminhaconsciência.

A Europa havia muito tornara-se insegura para mim, devido ao crescenteaumentodosdispositivosdesegurançanas fronteiraseaofatodeaspolícias locais,que sonhavamemmecapturar, teremdecididoqueeuestavapor trásde todososcasosdeassassinatoqueelasaindanãohaviamdestrinchado.

QuandoeuqueriaaatmosferaqueeutantoamaraemSienaouAssis,ouVienaouPragae em todososoutros lugaresquenãopodiamaisvisitar, euansiavapeloMission Inn. Ele não podia ser todos aqueles outros locais, de jeito nenhum.Noentanto, garantia a mim um abrigo singular e devolvia a meu mundo estéril umespíritorenovado.

Nãoeraoúnicolugarondeeunãoeraninguémemparticular,maseraomelhordeles,eeraolugarparaondeeuiacommaisassiduidade.

OMission Inn não eramuito distante de onde eu “morava”, se é que alguémpoderia chamar issodemorar.Eeugeralmente iapara láporpuro impulso, e emqualqueroportunidadequeelespudessemmedaraminhasuíte.Eutambémgostavados outros quartos, principalmente Suíte do Proprietário, mas eu tinha paciênciapara esperar pela Amistad. E às vezes eles ligavam para um dos muitos celularesespeciaisqueeucarregavaparameinformarqueasuíteestavaàdisposição.

Às vezes eu cava uma semana inteira noMission Inn. Eu levavameu alaúdecomigo,edevezemquandotocavaumpouco.Eeusempretinhacomigoumapilhade livrospara ler, quase sempre livrosdehistória, sobre a IdadeMédiaou sobre aIdadedasTrevas,ousobreaRenascença,ousobreRomaAntiga.EuliaporhorasehorasnaAmistad,sentindo-mesegurodeummodopoucocomum.

HaviaalgunslugaresespeciaisqueeuiaquandoestavahospedadonoMissionInn.Com frequência, disfarçado, eu ia de carro para Costa Mesa, que cava nas

proximidades, para ouvir a Paci c Symphony. Era uma coisa que eu gostava, ocontraste de sair das arcadas de estuque e dos sinos enferrujados da Mission paraentrarnoimensomilagredeplexiglasqueeraasaladeconcertosSegerstrom,comosimpáticoCaféRougenoprimeiroandar.

Atrásdaquelasjanelastransparentes,altaseonduladas,orestaurantepareciaflutuarnoespaço.Nasvezesemquejantavalá,eutinhaanítidasensaçãodeestarrealmenteutuando no espaço, e no tempo, separado de todas as coisas feias e más, e

agradavelmentesó.EuouvirahápoucotempoaSagraçãodaPrimavera,deStravinsky,naquelasala

deconcerto.Euadoravaotema.Adoravaaloucurarítmicacontidanapeça.Elametrouxeradevoltaalembrançadaprimeiravezemqueeuaouvira,dezanosantes–na noite em que eu conhecera oHomemCerto. Fizera com que eu pensasse emminhaprópriavida,eemtudooqueaconteceradesdeentão,quandoeuvagavapelomundo à espera daqueles telefonemas que sempre signi cavam que alguém estavamarcadoequeeutinhadepegá-lo.

Eununcamatavamulheres,masissonãoquerdizerqueeununca zeraissoantesdeme tornarovassalo,ou servo,oucavaleirodoHomemCerto.Adenominaçãodependedopontodevistadecadaum.Elemechamavadeseucavaleiro.Eupensavaem termosmais sinistros, enada, emmomento algumdurante essesdez anos, fezcomqueeumeacostumassecomminhafunção.

Frequentemente eu ia de carro do Mission Inn até a Missão de San JuanCapistrano,aosulemaispróximaaolitoral,outrolocalsecretoondeeumesentiadesconhecidoeàsvezesatéfeliz.

MasaMissãodeSanJuanCapistranoéumamissãoverdadeira.OMissionInn,não.OMissionInnéumahomenagemàarquiteturaeàherançadasMissões.SanJuanCapistrano,todavia,érealmesmo.

EmCapistrano, eu perambulava pelo imenso jardim quadrado, pelos claustrosabertos,evisitavaaestreitaepoucoiluminadaCapeladeSerra–amaisantigacapelacatólicaconsagradanoestadodaCalifórnia.

Euadoravaacapela.Euadoravaofatodelaseroúnicosantuárioconhecidoemtodo o litoral no qual o abençoado Junípero Serra, o grande franciscano,efetivamente rezaramissa.Talvez ele tenha rezadomissas emmuitasoutras capelasdasMissões.Naverdade,eledefatorezara.Masessaeraaúnicaarespeitodaqualtodostinhamcerteza.

HouveépocanopassadoemqueeuseguiraparaonortedecarrocomointuitodevisitaramissãoemCarmel,eolharo interiordapequenacelano localemquehaviasidorecriadaequeeraatribuídaaJuníperoSerra,e carimpregnadocomsuasimplicidade: a cadeira, a cama estreita, a cruz na parede.Tudo o que um santonecessitava.

EdepoistambémhaviaSanJuanBautista,comseurefeitórioeomuseu–etodasasoutrasmissõesquehaviamsidotãocuidadosamenterestauradas.

Duranteumcertoperíodode temponaminha infância eu tiveodesejode serpadre,umdominicano,narealidade,eosdominicanoseosfranciscanosdasmissõesda Califórnia misturavam-se em minha mente porque ambas as ordens eram

mendicantes.Euasrespeitava igualmente,ehaviaumapartedemimquepertenciaàqueleantigosonho.

Euaindaleiolivrosdehistóriasobreosfranciscanoseosdominicanos.Eutinhauma antiga biogra a de SantoTomás de Aquino que conseguira salvar de meutempo de escola, cheia de antigas anotações. Ler história era algo que sempremeapascentavao espírito.Lerhistória faz comque eumergulhe emépocasque estãoretidas no passado. O mesmo acontece com as Missões. Elas eram ilhas que nãopertenciamanossotempo.

A Capela de Serra em San Juan Capistrano era a que eu visitava com maisfrequência.

Eu ia para lá não para lembrar a devoção que vivenciara como garoto. Aquiloacabara para sempre.A verdade é que eu simplesmente queria refazer os caminhospelosquaispassaranaquelesprimeirostemposdeminhavida.Quemsabeeuapenasquisessecaminharemsolosagrado,caminharpeloslocaisdeperegrinaçãoesantidadeporquenarealidadenãodispunhademuitotempoparapensarneles.

EugostavadotetocomvigasdaCapelaSerra,edesuasparedespintadasemtomescuro.Eumesentiacalmocomapenumbradointeriordacapela,comolampejodoretábulodeouroemsuaextremidade–aestruturadouradaque cavaatrásdoaltarondeestavamencaixadasasestátuasesantos.

Euadoravaaluzavermelhadadosantuárioqueimandoàesquerdadotabernáculo.Àsvezeseumeajoelhava,bemdiantedoaltarsobreumdosgenu exórioscolocadosali,obviamenteparausodanoivaedonoivo.

É claro que o retábulo dourado, ou pala, como também é frequentementechamado,nãoestavaalinostemposdosprimeirosfranciscanos.Chegaramaistarde,durante a restauração, mas a capela em si a mim parecia ser bastante real. OSacramento Abençoado estava em seu interior. E o Sacramento Abençoado,independentedoqueeuacreditava,tinhaumsignificado“real”.

Comoeupossoexplicarisso?Eusempremeajoelhavanasemiescuridãoporumtempobemlongo,e sempre

acendiaumavelaantesdesair,emborajamaispudessedizerporquemouporquê.Talvezeusussurrasse“Issoéemsuamemória,Jacob,eemsua,Emily”.Masnãoeraumaoração.Eunãoacreditavaemoraçõesmuitomaisdoqueacreditavanamemóriadefato.

Eu ansiavapor rituais emonumentos, emapasde signi cados.Eu ansiavapelahistóriacontidanoslivros,nasconstruçõesenosquadros–eeuacreditavanoperigo,

eeuacreditavaemmatarpessoasemqualquerlugarouhoraemquefosseorientadoafazê-lopormeuchefe,aquem,emmeucoração,euchamavasimplesmentedeoHomemCerto.

Naúltimavezemqueeuestiveranamissão–menosdeummêsatrás–,passaraumtempoexageradamentelongocaminhandonoenormejardim.

Eu jamais vi tantas espécies de ores reunidas nummesmo lugar.Havia rosasmodernas,emformatosesplêndidos,eantigas,abertascomocamélias,haviajasmins-da-virgínia, e ipomeias, lantanas, eosmaiores arbustosdeplumbagos azuisqueeuvira emminha vida.Havia girassóis e laranjeiras, emargaridas, e vocêpodia andarpelomeiodetudoissoatravésdasmuitastrilhasamplaseconfortáveisrecentementeabertas.

Eu passara algum tempo nos claustros circundantes, adorando o piso de pedraantigo e desnivelado. Sentira prazer em olhar para o mundo exterior debaixo dasarcadas. Arcadas arredondadas sempre me deram uma sensação de paz. Arcadasarredondadaseramaprincipalcaracterísticadamissão,earcadasarredondadaseramaprincipalcaracterísticadoMissionInn.

Sentiaumprazerespecialpelo fatodequeemCapistranoodesenhodamissãoseguia um modelo monástico antigo, encontrado em monastérios por todo omundo, e pelo fato de SantoTomás deAquino,meu santo herói quando eu eragaroto, haver provavelmente passado várias horas perambulando sobre espaçossimilares dotados de arcadas e trilhas bem demarcadas, e seus inevitáveis jardinsfloridos.

Ao longo da história, osmonges estabeleceram essemodelo diversas e diversasvezes, comoseospróprios tijolos e rebocospudessemdealgummodoafastarummundomalévolo,mantendoaeleseaoslivrosqueescreviamsalvosparasempre.

Fiquei parado por um longo tempo na gigantesca concha da grande igreja emruínasdeCapistrano.

Umterremotoem1812ahaviadestruído,eoquesobraraeraumburacoaltoeumsantuáriosemtetocomnichosvaziosdeumtamanhoassoberbante.Eumiravaospedaçosespalhadosdetijoloeasparedesdecimentoespalhadasaquieali,comoseissotivessealgumsigni cadoparamim,comoamúsicadaSagraçãodaPrimavera,algoavercomminhaprópriavidadevastada.

Eu era um homem sacudido por um terremoto, um homem paralisado peladissonância. Eu tinha bastante consciência disso. Pensava nisso o tempo todo,embora tentasse fazer comque a ideia não tivesse qualquer continuidade.Tentava

aceitaroquepareciasermeudestino.Massevocênãoacreditaemdestino,bem,acoisanãoéassimtãofácil.

Em minha última visita ao local, eu conversara com Deus na Capela Serra edissera aEle o quanto euOodiavapornão existir.Eudissera aEle o quanto eraperversa a ilusãodequeEle existia, comoera injusto fazer isso com seresmortais,principalmentecomcrianças,ecomoeuOodiavaporisso.

Eu sei, eu sei, issonão faz sentido.Eu faziamuitas coisas semsentido.Serumassassino,enadamais,nãofaziasentido.Eprovavelmenteeraporessemotivoqueeuestava dando voltas nesses mesmos locais cada vez com mais frequência, livre demeusdiversosdisfarces.

EusabiaqueeulialivrosdehistóriaotempotodocomoseacreditassequeumDeushouvesse agidonahistóriamaisdeumavezparanos salvardenósmesmos,maseunãoacreditavarealmentenisso,eminhamenteestavacheiadefatosaoacasoacercadeváriasépocaseváriospersonagensfamosos.Porqueummatadorfariaalgoassim?

Uma pessoa não pode ser um matador em todos os momentos de sua vida.Alguma humanidade vai aparecer vez por outra, alguma fome por normalidade,independentedoquevocêfaça.

Eassimeutinhameuslivrosdehistória,easvisitasaessespoucoslocaisquemelevavam às épocas sobre as quais eu lia com um entusiasmo tão entorpecido,preenchendominhamentecomnarrativasparaquenão cassevaziaesevoltasseparasimesma.

EeutinhadebrandiropunhoparaDeuspelafaltadesentidodetudoisso.Eparamimasensaçãoeraboa.Elenãoexistiadefato,maseupodiatê-Lodessamaneira,com raiva, e eu adorava aqueles momentos de conversa com as ilusões que antestiveramtantosentidoeagorasóinspiravamódio.

Talvezofatodesercriadonafécatólicafaçacomquevocêseatenhaarituaisportodaavida.Vocêvivenumteatrodamenteporquenãoconsegueescapardelá.Vocêpassa toda a vida atado a um espaço de tempo de dois mil anos porque crescetomandoconsciênciadepertenceraesseespaçodetempo.

A maioria dos americanos pensa que o mundo foi criado no dia em que elesnasceram,mas os católicos recuam aBelém e até antes, bem como os judeus, atémesmo osmais seculares, rememorando o xodo e as promessas de Abraão antesdisso.Nuncaemminhavidaeuolheiparaasestrelasnocéuouparaaareianapraiasem pensar nas promessas de Deus a Abraão a respeito de sua progenitura e,

independentedoquemaiseuacreditasseounão,Abraãoeraopaidatriboàqualeuaindapertenciaapesardetodasasfalhasevirtudesqueeupudesseter.

Eumultiplicarei tua semente como as estrelas do céu, e como a areia que estánapraia.

E então é assim que nós prosseguimos encenando peças em nosso teatro damente,mesmoquandonãomaisacreditamosnaaudiênciaounodiretor,oumesmonaprópriapeça.

Eu rira pensando nisso, enquanto meditava na Capela Serra, rira em voz altacomo um louco enquanto estava lá ajoelhado, murmurando em meio à suave edeliciosapenumbraebalançandoacabeça.

Oqueme irritaranaquelaúltimavisita forao fatodehaverpassadoapenasdezanosdesdeodiaemqueeucomeçaraatrabalharparaoHomemCerto.

O Homem Certo se lembrara do aniversário, falando sobre aniversários pelaprimeiravezemepresenteandocomumaenormesomadedinheiroquejáhaviasidoremetidaparaminhacontanaSuíça,porintermédiodaqualeuquasesemprerecebiameuspagamentos.

Elehaviameditoaotelefonenanoiteanterior:– Se eu soubesse alguma coisa sobre você, Lucky, eu te daria mais do que

dinheiropuroesimples.Tudooqueeuseiéquevocêgostadetocaralaúdeequequandoeracriançatocavaotempotodo.Disseramissopramim,sobrevocêtocaroinstrumento.Sevocênãotivesseamadotantooalaúde,talvezjamaistivéssemosnosconhecido.Vocêpercebequantotempofazqueeutevipelaúltimavez?Eeusempretenho a esperança de que você vai aparecer trazendo seu precioso alaúde.Quandovocê zerisso,euvouquererquetoquepramim,Lucky.Droga,Lucky,eunemseiondevocêmorarealmente.

Issoeraumacoisaqueele sempre falavaemnossasconversas,queelenão sabiaondeeumorava,porqueeuachoqueeletemia,bemnoíntimo,queeunãocon assenele,quemeutrabalhotivesseerodidolentamenteoamorqueeusentiaporele.

Maseucon avanele.Eoamava.Eleeraaúnicapessoanomundoqueeuamava.Simplesmentenãoqueriaqueninguémsoubesseondeeumorava.

Nuncamoreiemlugaralgumquepudessechamardelar,emudavademoradiacom frequência. Nada ia comigo de uma casa para a outra, exceto meu alaúde etodososmeuslivros.E,éclaro,minhaspoucasroupas.

Nessaépocadetelefonescelulareseinternet,erafácildemaisnãoserrastreado.Efácildemaisseralcançadoporumavozíntimanumperfeitosilêncioteletrônico.

–Escutaaqui,vocêpodemeencontraraqualquermomento,diaounoite–eulembraraaele.–Nãoimportaondeeuestejamorando.Nãomeimporta,entãoporquedeveriaimportaravocê?Ealgumdia,quemsabeeunãotemandeumagravaçãominhatocandoalaúde?Vocêvaificarsurpreso.Euaindatocobem.

Elerira.Poreletudobem,contantoqueeusempreatendesseotelefone.–Algumavezeutedeixeinamão?–euperguntara.–Não,eutambémnuncatedeixeinamão–elereplicara.–Sógostariadepoder

tevercommaisfrequência.Droga,vocêpodiaestaremParisnesseexatomomento,ouemAmsterdã.

–Nãoestou–respondera.–Você sabedisso.Oscontrolesde fronteiraandammuito rígidos.EuestounosEstadosUnidosdesdeo11deSetembro.Estoumaispróximo do que você imagina, eu vou te visitar qualquer dia desses, só não vouagora,ederepentetelevoprajantar.Nósvamosaumrestaurantecomodoissereshumanos.Masultimamenteaideiadoencontronãomeagrada.Andomaisa mdeestarsozinho.

Naquele aniversárionenhum serviçomehavia sido con ado,portanto eupudecar no Mission Inn, e na manhã seguinte pegara o carro para ir até San Juan

Capistrano.Nãohavianecessidadealgumadedizerparaelequeeutinhaumapartamentoem

BeverlyHills atualmente, num local tranquilo e arborizado, e quem sabe no anoseguintenãoseriaemPalmSprings,bemnodeserto.Tambémnãohaviaqualquernecessidadededizerparaelequeeunãoprecisavame importarcomdisfarcesnesseapartamento, nemno bairro vizinho, de onde oMission Inn cava apenas a umahoradedistância.

Nopassado,eujamaissaírasemalgumtipodedisfarce,enoteiessamudançaemmimmesmocomumaequanimidade fria.Euàsvezes imaginava semedeixariamlevarmeuslivrosparaacadeia,sealgumdiafossepreso.

OMissionInnemRiverside,Califórnia,erameuúnicolugar xo.EuvoavadecostaacostanopaísparapoderchegaremRiverside.OMissionInneraolocalondeeuquasesemprequeriaestar.

OHomemCertocontinuarafalandonaquelanoite:–Anos atrás, compreipra você todas as gravações commúsicapara alaúdeque

existiam no mundo e o melhor instrumento que o dinheiro podia comprar.Comprei pra você todos aqueles livros que você queria.Droga, peguei alguns atédessas estantes aqui. Você ainda está lendo o tempo todo, Lucky? Você sabe que

devia ter uma chance de estudar mais, Lucky.Talvez eu devesse ter cuidado umpoucomaisdevocê.

–Chefe, você está sepreocupando comalgo sem importância.Eu agora tenhomais livrosdoquetempopraler.Duasvezespormêsdeixoumacaixaemalgumabiblioteca.Estoumuitobem,obrigado.

–Equetalumacoberturaemalgumlugardeseuagrado,Lucky?Quetalalgunslivros raros?Devehaver algumacoisaque eupossa tedar alémdedinheiropura esimplesmente. Uma cobertura seria interessante, segura. Você está sempre emsegurançaquandoestánoalto.

–Seguronocéu?–perguntaraaele.OfatoeraquemeuapartamentoemBeverlyHills era uma cobertura, mas o edifício só tinha cinco andares. – Coberturasnormalmentesãoalcançadaspordoismétodos,chefe–eudissera.–Eeunãogostonemumpoucodemesentirengarrafado.Não,muitoobrigado.

EumesentiaseguroemminhacoberturaemBeverlyHills,easparedesdolocalestavamrepletasdelivrossobretodaequalquerépocaqueprecediaoséculoXX.

Hámuitotempoeusabiaomotivodeminhapaixãopelahistória.Eraporqueoshistoriadoresfaziamcomqueelasoassebastantecoerente,bastanteobjetiva,bastantecompleta.Elespegavamumséculo inteiroe impunhamumsigni cadoaele,umapersonalidade,umdestino–eissoera,éclaro,umamentira.

Mas,emminhasolidão,erabemtranquilizanteleressetipodelivro,pensarqueoséculoXIVeraum“espelhodistante”,parafraseandoumfamosotítulo,acreditarquepodíamosaprenderarespeitodetodaumaeracomoseelativesseexistidocomumafabulosacontinuidadeapenasparanós.

Erabomleremmeuapartamento.ErabomlernoMissionInn.Eugostavademeuapartamentopormaisdeummotivo.Napeledemeueusem

disfarce,eugostavadecaminharpelobairroquietoetranquilo,epararnohotelFourSeasonsparaocafédamanhãouparaoalmoço.

Àsvezeseufaziacheck-innoFourSeasonsapenasparapoderestaremumlugarcompletamente diferente, e eu tinha uma suíte favorita no local, com uma longamesadejantardegranitoeumpianodecaudapreto.Eutocavapianonaquelasuítee,àsvezes,atécantavacomoqueaindamerestavadevoz.

Anosatrás,euimaginavaquecantariaportodaavida.Amúsicaforaaresponsávelpormefazerabandonaraideiademetornarumpadredominicano–amúsicaeofatodehavercrescido,suponho,equerersaircom“garotas”equererserumhomemdomundo.Masfoiamúsicaoqueemprimeirolugardevastouminhaalmadedoze

anosdeidade,eototalencantamentodoalaúde.Euachoqueeumesentiasuperioraosgarotoscomsuasbandasdegaragemquandotocavaaquelebeloalaúde.

Tudoissoacabara,eacabarahámaisdedezanos–oalaúdeagoraeraumarelíquia–eoaniversárioocorreraeeunãodisseraparaoHomemCertomeuendereço.

–Oqueeuposso tedar?–ele suplicaraainda.–Sabiaqueoutrodiaeuestivenuma livraria especializada em livros raros,porpuro acaso,pra falar a verdade.EuestavavagandoporManhattan.Vocêsabequeeugostodevagarporaí.Entãoviumlindolivromedieval.Muitoantigo.

–Chefe,arespostaénada–eudissera.Edesliguei.Nodiaseguinte,depoisdaqueletelefonema,euconversaraarespeitodissocomo

DeusnãoexistentenaCapelaSerra,àluztremeluzentedosantuárioavermelhado,econtaraparaEleomonstroqueeuera,umsoldadosemguerra,eumassassinodeagulhasemcausa,umcantorquejamaiscantavadefato.ComoseEleseimportasse.

Entãoeuacenderaumavela.–AoNada–noqualhaviasetransformadominhavida.–Aquiestáestavela...

paramim. – Eu acho que eu disse isso.Não tenhomuita certeza. Sei que estavafalando alto demais naquelemomento porque as pessoas estavam notandominhapresença. E aquilo me surpreendeu porque as pessoas raramente notavam minhapresença.

Atémesmomeusdisfarceseramindefinidosepoucochamativos.Haviaumaconsistência,emboraeuduvidassequealguémconseguisseapreender.

Cabelos pretos e oleosos, pesados óculos escuros, boné, jaqueta de couro, otradicionalarrastardepé,masnuncaomesmopé.

Issoerasu cienteparafazerdemimumhomemcujaexistêncianinguémnotava.Antesdeaparecercomoeumesmopelaprimeiravez,euusaratrêsouquatrodisfarcesnarecepçãodoMissionInn,etrêsouquatronomesdiferentescomcadaumdeles.Era perfeito. Quando o verdadeiro Lucky, a Raposa, aparecia com o codinomeTommyCrane,ninguémdemonstravaomenorindíciodereconhecimento.Eueramuito bom em disfarces. Para os agentes que me caçavam, eu era ummodusoperandi,nãoumrosto.

Naquelaúltimavez,eusaíradaCapelaSerracomraiva,confusoearrasado,esóachei consoloquando resolvipassaro restododianapitorescacidadezinhadeSanJuanCapistranoecompreiumaestátuadaVirgemMaria,nalojinhadamissãoantesdelafechar.

NãoeraapenasumapequenaVirgemMariaqualquer.Erauma guracompleta

comoMeninoJesus, feitanão somentedeestuque,mas tambémcomumtecidocobrindo-a.Elapareciavestidaemacia,masnãoera.Eravestidaedura.Edelicada.OpequenoMenino Jesus possuíamuita personalidade, com sua cabecinhapendendoparaolado,eaprópriaVirgemMarianãopassavadeumrostoemformadelágrimae duasmãos emergindo das vestes elegantes em ouro e branco.Na hora, joguei acaixanocarroenãodeimuitaimportância.

SemprequeeuiaaCapistrano,entretanto–eaúltimaveznãofoiexceção–,euassistiaàmissananovabasílica,aimponenterecriaçãodagrandeigrejadespedaçadaem1812.

A visão da grande basílicame deixava bastante impressionado e tranquilo. Eraimensa,cara,românicae,comotantasoutrasigrejasromânicas,repletadeluz.Maisumavez,arcosarredondadosportodososlados.Paredesesplendidamentepintadas.

Atrásdoaltarhaviaumoutroretábulodourado,quefaziaaquelenaCapelaSerraparecerpequeno.Esse tambémera antigo e fora trazidodaEuropa, assimcomoooutro,ecobriatodaaparededosfundosdosantuárioatéumaalturaprodigiosa.Eraportentosocomtodoaqueleouroestonteante.

Ninguémsabiadisso,masdevezemquandoeumandavaalgumdinheiroparaabasílica, embora raramente mediante o mesmo nome. Eu enviava dinheiro pelocorreioeinventavanomesengraçadosparafazerasremessas.Odinheirochegavalá,issoeraomaisimportante.

Quatrosantospossuíamseusnichosapropriadosnosretábulos–SãoJosé,comseu inevitável lírio, o grande São Francisco de Assis, o abençoado Junípero Serrasegurandoumpequenomodelodamissãonamãodireita e,para todosos efeitos,umrecém-chegado,oabençoadoKateriTekakwitha,umsantoindiano.

Mas foio centrodo retábulooquemeabsorveumais completamentequandomesenteiparaassistiràmissa.HaviaoCristocruci cadoemaltoverniz,compésemãos ensanguentados, e, acima dele, a gura barbada de Deus Pai sob os raiosdourados que desciam de uma pomba branca. Isso era a SantíssimaTrindade, narealidade, embora talvez um protestante não reconhecesse – com as três gurasrepresentadasdeformaliteral.

QuandovocêpensaqueJesussósetornouHomemparanossalvar,bem,a guradeDeusPai e oEspírito Santo comoumapombapode ser confusa e tocante.OFilhodeDeus,afinal,possuiumcorpo.

Qualquerquesejaocaso, queimaravilhadodiantedaquelaimagem,edesfruteidela.Eunãomeimportavaseeraumarepresentaçãoliteralouso sticada,místicaou

rasteira.Eradeslumbrante,resplandecente,eerareconfortanteolharparaela,mesmoquandoeuestavaespumandoderaiva.Erareconfortantesaberqueoutraspessoasaomeu redor a estavam venerando, que eu estava em um lugar sagrado ou onde aspessoas vinhampara estar em contato como sagrado.Eunão sei.Tirei da cabeçaquaisquer autoacusações e apenas olhei para o que estava bem diante de mim,exatamentedamesmamaneiraquefaçoquandoestoutrabalhando,apontodetiraravidadealguém.

Talvezoinstanteemquelevanteiosolhosdobancodaigrejaemireiocruci xotenhasidocomodardecaracomumamigocomquemvocêestá irritado,edizer:“Vocêaquinovamenteeeuaindacomraivadevocê.”

AbaixodoSenhormoribundoestavaaVirgemMarianaformadeNossaSenhoradeGuadalupe,aquemeusempreadmirei.

Naquelaúltimavisita,eupassarahorasmirandoaquelaparededourada.Issonãoerafé.Issoeraarte.Aartedaféesquecida,aartedafénegada.Issoera

excesso, isso era chocante e, de certa forma, tranquilizante, mesmo que eucontinuassedizendo:

–Eunãoacreditoemvocê.Eununcavouteperdoarpornãoserreal.Naquelaúltimavez,apósamissa,eupegueiorosárioque levavacomigodesde

queeragarotoerezei,masnãomediteiacercadosantigosmistériosquenãotinhamalgumsignificadoparamim.Eusimplesmentemedeixeilevarpelocânticoquesoavacomoummantraemmeusouvidos.AveMariacheiadegraça,comoseeuacreditassequevocêexiste.Agoraenahoradenossamorte.Amém.Quevãotodosparaoinferno.Vocêjáesteveaquiporacaso?

Entendabem, certamente eunão era oúnicomatadorde aluguel nesse planetaque iaàmissa.Maseu faziapartedeumadiminutaminoriaqueprestavaatenção,murmurandoas respostaseàsvezesatémesmocantandooshinos.Àsvezeseuatécomungava, embebido de pecados mortais, e desa ador. Depois eu me ajoelhavacomacabeçaabaixadaepensava:Issoaquiéoinferno.Issoaquiéoinferno.Eoinfernovaiserpiordoqueisso.

Semprehouvecriminosos,grandesoupequenos,quefrequentavamamissacomsuas famílias e participavamde ocasiões sacramentais.Eunãoprecisomencionar oma oso italiano que já faz parte da lenda do cinema que vai para a primeiracomunhãodesuafilha.Etodosnãovão?

Eunãotinhafamília.Eunãotinhaninguém.Eueraninguém.Euiaàmissapormimmesmoquenãoeraninguém.EmmeusarquivosnaInterpolenoFBIestava

escritoassim:elenãoéninguém.Ninguémsabequaléaaparênciadele,oudeondeeleveio,ouondeelevaiapareceremseguida.Elesnemsabiamseeutrabalhavaparaumaúnicapessoa.

Como eu disse, para eles eu era ummodus operandi, e eles levaram anos parare narisso,listandovagamentedisfarcestoscamenteidenti cadosapartirdecâmerasdesegurança,nuncaalcançandopalavrasprecisas.Frequentementeelesdetalhavamasmortes comuma considerável incompreensãodoquehaviade fato sucedido.Masnissoeleshaviamacertadoquaseemcheio:eunãoeraninguém.Eueraumhomemmortocaminhandoparacimaeparabaixonumcorpovivo.

Eeutrabalhavaparaumúnicohomem,meuchefe,oqueeuchamavabemnomeu íntimodeoHomemCerto. Simplesmente jamaismeocorreu trabalharparaqualqueroutrapessoa.Eninguémmaispoderiatermesondadoparaumtrabalho,eninguémmaisjamaissondaria.

OHomemCertopodiamuitobemseroDeusPaibarbadodoretábuloeeuseulho ensanguentado. O Espírito Santo era o espírito que nos unia, porque nós

éramosunidos,dissonãohaviadúvida,eeununcapenseiemdesobedecerasordensdoHomemCerto.

Issoéblasfêmia.Edaí?Como eu sabia essas coisas a respeito de arquivos de polícia e de agências de

segurança?Meu amado chefe sempre teve seus contatos, e ria comigo ao telefoneacercadasinformaçõesquechegavamemsuasmãos.

Ele sabia como eu era sicamente.Nanoite emquenos conhecemos, uns dezanosatrás,euforaeumesmocomele.Ofatodeelenãotermevistodurantetodosessesanosoperturbava.

Maseuestavasempreapostosquandoeletelefonava,e,semprequeeumelivravadeumcelular,euligavaparaeledandoosnovosnúmeros.Noinícioelemeajudavaaconseguirosdocumentos,passaportesecarteirasdemotoristafalsos.Masfazmuitotempoqueeuaprendiaconseguiressetipodematerialporcontaprópriaeasabercomoconfundiraspessoasquemeforneciamtaiscoisas.

OHomemCertosabiaqueeueraleal.Nenhumasemanatranscorriasemqueeuligasseparaele,tendoelemeligadoounão.Àsvezeseusentiaumasúbitafaltadearquandoouviasuavoz,somenteporqueeleaindaestava lá,porqueodestinonãoolevara para longe de mim. A nal, se um único homem é toda a sua vida, suavocação,suabusca,bem,entãovocêvaisentirmedodeperdê-lo.

–Lucky,euqueromesentarpraconversarcomvocê–eleàsvezesdizia.–Sabe

como é, daquele jeito que fazíamos naqueles primeiros dois anos. Eu quero saberondevocênasceu.–Euriadamaneiramaisdelicadapossível.

–Euadoroosomdasuavoz,chefe–eudizia.– Lucky – ele me perguntou uma vez –, você, mesmo por acaso, sabe onde

nasceu?Aquilorealmentemedavavontadederir,masnãodele,simplesmentedetudo.–Sabecomoé,chefe–eudisseraaelemaisdeumavez–,háperguntasqueeu

gostariadefazeravocê,tipoquemvocêrealmenteéepraquemvocêtrabalha.Maseunãofaçoessetipodepergunta,faço?

–Você cariasurpresocomasrespostas–eledisse.–Garoto,umavezeutedissequevocêestavatrabalhandoparaosCarasLegais.–Etudoficavaporissomesmo.

OsCarasLegais.Aganguelegalouaorganizaçãolegal?Comoeupodiasaberqualdas duas? E o que importava? Porque eu fazia exatamente o que elememandavafazer,entãocomoéqueeupodiaserlegal?

Mas eu podia sonhar, de tempos em tempos, que ele estava do lado legal dascoisas,queogovernohavialegitimadotudo,limpadotudo,metransformadonumsoldadodeinfantaria,legalizadomeutrabalho.Éporissoqueeupodiachamá-lodeoHomemCertoedizerparamimmesmo:Bem,derepenteeleédoFBI,a naldecontas,ouderepenteeleédaInterpoltrabalhandoaquinessepaís.Derepenteagenteestáfazendoalgumacoisarelevante.Masnaverdadeeunãoacreditavaemnadadisso.Eucometiaassassinatos.Fazia issoparamesustentar.Fazia issopornenhumoutromotivoalémdeganhardinheiroparamesustentar.Eumatavapessoas.Euasmatavasemavisoesemumaexplicaçãoarespeitodomotivopeloqualeuofazia.TalvezoHomemCertofosseumdosCarasLegais,maseucertamentenãoera.

–Vocênão está commedodemim, está, chefe?– certa vezperguntei a ele. –Commedode que eu esteja umpoucomaluco e que algumdiame volte contravocê.Porquevocênãoprecisatermedodemim,chefe,eusouaúltimapessoanomundoquearrancariaumfiodecabelodesuacabeça.

– Não, eu não estou com medo de você, lho – disse ele. – Mas você mepreocupa. Você me preocupa porque era apenas um garoto quando começou atrabalhar pra mim. Me preocupa... imaginar como você passa a noite. Você é omelhorque eu tive atéhoje, e às vezesparece fácil demais entrar emcontato comvocê,evocêsempreestáàdisposição,eascoisassempresãofeitasdeacordocomoplanejado,esemqueeupreciseentraremdetalhes.

–Vocêgostadeconversar,chefe,essaéumadassuascaracterísticas.Masvoute

dizerumacoisa.Nãoénadafácil.Éemocionante,masnuncaéfácil.Eàsvezeseuficosemfôlego.

Eunãome lembrodoque eledisse sobre aquelapequena con ssão, sóque elefalou durante um bom tempo, dizendo, entre outras coisas, que todas as outraspessoasque trabalhavamparaele apareciamperiodicamente.Ele asvia, sabiaquemeram,visitava-as.

–Issonãovaiacontecercomigo,chefe–eulheassegurara.–Oquevocêteméoquevocêouve.

EagoraeutinhaderealizarumtrabalhonoMissionInn.AligaçãovierananoiteanterioremeacordaraemmeuapartamentodeBeverly

Hills.Eeufiqueicomódio.

C

CAPÍTULODOISDEAMORELEALDADE

OMO EUDISSE ANTES,NUNCAHOUVEUMAMISSÃOREAL como SanJuanCapistranonohotelemRiversidechamadoMissionInn.

Era o sonho de um homem, um hotel gigantesco cheio de pátios,pérgulas e claustros ao estilodasmissões, comuma capelapara casamentos eumaincalculávelquantidadedeencantadoreselementosgóticos,incluindopesadasportasarqueadasdemadeiraeestátuasdeSãoFrancisconosnichos,eatémesmotorrescomsinos onde se encontrava o sino mais antigo de toda a cristandade. Era umconglomeradodeelementosalusivosaomundodasmissõesdeumapontaàoutradaCalifórnia. Era um tributo a elas que as pessoas, às vezes, achavam até maisatordoante e fenomenal do que as próprias missões, das quais apenas restavamfragmentos. O Mission Inn era também indiscutivelmente aprazível, acolhedor econvidativo,evibrantedevozesentusiasmadas,dealegriaerisos.

Desdeoinício,descon oeu,olocaleraumlabirinto,mashaviasedesenvolvidonasmãosdosnovosproprietários,demodoque agorapossuía as conveniênciasdeumhoteldeprimeiracategoria.

Aindaassimeramuito fácil seperder ládentro,perambulandopor suasmuitassacadas, seguindo suas inúmeras escadarias, vagando de pátio em pátio, ousimplesmentetentandoacharseuquarto.

Aspessoascriamessesambientesextravagantesporquepossuemvisão,amorpelobelo,esperançasesonhos.

Quase todos os ns de tarde, o Mission Inn é invadido por uma enormequantidade de pessoas felizes, noivas sendo fotografadas em uma ou outra sacada,famíliasperambulandoalegrementepelosterraços,osmuitosrestaurantesiluminadose repletosde festas animadas, sonsdepianos, vozes cantandoe atémesmoumououtro concerto, quem sabe, na sala de música. O clima sempre era seguramentefestivo,meenvolviaporinteiroemedavaapazquenecessitavapelopoucotempoemqueláficava.

Eutinhaoamorpelobeloqueguiavaosproprietáriosdolugaretambémoamorpeloexcesso,umamorporumavisãolevadaaextremosdivinos.

Mas eu não tinha planos ou sonhos. Eu era estritamente um mensageiro, aencarnaçãodeumpropósito,façaisso,nãoumhomememsi.

Maspordiversasvezesodesprovidodelar,odesprovidodenome,odesprovidodesonhosretornavaaoMissionInn.

Vocêpoderiaatédizerqueeuamavaofatodeolocalserrococóesemsentido.EleeranãoapenasumtributoatodasasmissõesdaCalifórnia,comotambémhaviaestabelecidooestiloarquitetônicoparaoutrasconstruçõesdacidade.Haviasinosnospostes de iluminação nas ruas em torno do hotel. Havia edifícios públicosconstruídos no mesmo “estilo missões”. Eu gostava dessa continuidadeconscientementecriada.Eratudoinventado,damesmaformaqueeuerainventado.Eraumamistura de elementos, damesma formaque eumesmo era umamisturacomonomeacidentaldeLucky,aRaposa.

Sempremesentiabemquandopassavaporbaixodaentradaarqueada,chamadadecampanárioporcontadeseusmuitossinos.Euadoravaasgigantescassamambaiase as altíssimas palmeiras, seus troncosmagros envolvidos pela luz bruxuleante. Euadoravaoscanteirosdevívidaspetúniasquemargeavamacalçadadafrente.

Emtodasasminhasperegrinações,passavaumbomtemponosespaçosabertosdo local. Frequentemente procurava o vasto saguão escuro para admirar a estátuabrancademármorequerepresentavaummeninoromanotirandoumespinhodopé.O interior sombriome apascentava o espírito. Eu adorava os risos e a alegria dasfamílias. Sentava-me em uma das grandes e confortáveis poltronas, aspirando apoeira e observando as pessoas. Eu adorava a afabilidade que o local pareciaproporcionar.

NuncadeixavademeaventurarnorestaurantedoMissionInnparaalmoçar.Apiazza era linda, com suas paredes externas de múltiplos andares com janelasredondas e terraços arqueados, e eu pegava oNewYorkTimes para ler enquantocomia sob a sombra garantida por dezenas deombrellones vermelhos que sesobrepunhamunsaosoutros.

Masointeriordorestaurantenãoeramenossedutor,comsuasparedesbaixasdebrilhantes azulejos azuis e as arcadas beges acima artisticamente decoradas com asvinhasverdesespiraladas.Otetoestriadoerapintadocomoumcéuazulcomnuvenseatémesmopequenospássaros.Asportasredondasinternascommuitoscorrimõeseramrevestidasdeespelhos,easportassimilaresquedavamparaapiazza traziama

luzdosolparadentrodorecinto.Oagradávelburburinhodasconversasdasoutraspessoaseracomosomdeáguagorgolejandodeumafonte.Simpático.

Euvagavapeloscorredoresescurosepelasdiferentesáreasdecarpetesdecorativoseempoeirados.

EuparavanoátriodiantedacapeladeSãoFrancisco,meusolhosmovendo-seporsobrea imensaestruturaornamentadadoumbral,umaobra-primadeconcretoemestilo churrigueresco.Era um consolo parameu coração acompanhar sutilmente oinevitável excesso dos aparentemente eternos preparativos de uma cerimônia decasamento,osbanquetesemserviçosdepratadispostossobreasmesasdrapejadas,epessoasansiosaszanzandoportodososlados.

Eusubiaatéasacadamaisaltae,encostadoàbalaustradade ferroverde,olhavaparabaixoemdireçãoàpiazzadorestaurantee,dooutrolado,paraoimensorelógiodeNuremberg.Frequentementeesperavaorelógiosoar,comocostumafazeracadaquartodehora.Euqueriaverosnúmerosgrandesnaalcovaabaixodeleprogredindolentamente.

Relógiosmetransmitemalgobastantepoderoso.Quandoeumatavaalguém,euparavaorelógiodesseindivíduo.Eoquefazemosrelógiossenãomedirotempodeque dispomos para fazermos algo relevante de nossas vidas, para descobrir algodentrodenósquenãosabíamosqueestavalá?

Eu pensava com frequência no fantasma de Hamlet quando matava alguém.Pensavanatrágicareclamaçãoqueelefaziaaofilho:

Destruaatémesmoasraízesdemeupecado...Nenhumajustefoifeito,masacontafoienviadaComtodasasminhasimperfeiçõesemminhacabeça.

Eupensavaemcoisasassimsemprequemeditavaacercadavidaedamorte,ouacercaderelógios.NãohavianadanoMissionInn–nemasalademúsicaouasalachinesa,nemomaisremotocanto–queeunãoamassecomardor.

Talvezeuamasseolocalporqueeraatemporal,apesardetodosaquelesrelógiosesinos, ou talvez porque fosse tão habilidosamente composto de itens de épocasdiversasquepodialevarumapessoametódicaàloucura.

Quanto à suíte Amistad – a suíte matrimonial – eu a escolhia pelo teto emdomo,pintadocomumapaisagemcinzentaepombasalçandovooemmeioaumanévoa suave em direção ao céu, bem no topo do qual encontrava-se uma cúpulaoctogonal com janelas de vidro fosco. O arco arredondado também estava

representadonessasuíte–entreasaladeestareoquarto,enoformatodaspesadasportas duplas que davam para a varanda. As três janelas altas parcialmenteenglobandoacamatambémeramarqueadas.

Oquartopossuíaumaenormelareiradepedra,fria,vaziaepretanointerior,masnãodeixavadeserumabelamolduraparachamasimaginárias.Eutenhoumaótimaimaginação.Éporissoquesouumassassinotãotalentoso.Consigoimaginarmuitasformasderealizaratarefa,edeescaparileso.

Pesadas cortinas cobriam as três janelas que iam até o chão, cercando a imensacamade baldaquim.Ela possuía uma cabeceira emmadeira escura entalhada e pésbaixosespessosesalientes.AcamasempremefaziapensaremNovaOrleans,éclaro.

NovaOrleansjáfoimeular,lardogarotoqueexistiaemmimequemorreuporlá.Eessegarotonuncateveoluxodedormirnumacamadebaldaquim.

Issofoinumoutropaís,Ealémdisso,amoçaestámorta.

Eu nunca mais voltara a Nova Orleans depois de ter me tornado Lucky, aRaposa,e imaginavaquejamaisvoltaria,eassimjamaisdormiriaemumadaquelasantigascamasdebaldaquim.

NovaOrleans era o local onde os corpos importantes estavam enterrados, nãoaquelesdoshomensqueoHomemCertomemandavadespachar.

Quandoeupensavanoscorposimportantes,eupensavaemmeuspaiseemmeuirmãozinhoJacobeminha irmãzinhaEmily, todosmortospor lá,eeunãofaziaamenorideiadeondeessescorpospoderiamtersidorealmentecolocados.

Eume lembravade algumas conversas a respeitodeumpedacinhode terranovelhocemitérioSt.JosephnaavenidaWashington,umbairroperigoso.Minhaavóestavaenterradalá.Maseununcaestivenolocal,nãoqueeulembrasse.Meupai,elesdevemterenterradopertodaprisãoondeelefoiesfaqueado.

Meupaieraumpolicialnojento,ummaridonojento,umpainojento.Ele foimortodepoisdedoismesesnacadeiacumprindoasentençadeprisãoperpétua.Não.Eunãosabiaondeencontrarumtúmulosobreoqualpudessedepositar oresparaqualquerumdeles,e,sesoubesse,nãoteriasidosobreotúmulodele.

Tudo bem. Então você pode imaginar como foi que eu me senti quando oHomemCertomedissequeoserviçotinhadeserfeitonoMissionInn.

O mais sórdido dos crimes estava a ponto de poluir meu consolo, meuentretenimento,meudelíriodelicadamenteorientado,meulocalseguro.Talvezfosse

NovaOrleansmeamparandoemseusbraços,sóporqueeravelhaeencarquilhadaesemsentidoe,deliberadaeacidentalmente,pitoresca.

Dê-mesuaslongaspérgulassombreadas,seusincontáveisvasostoscanosrepletosdegerâniosde lavandae laranjeiras.Dê-mesuas intermináveisbalaustradasde ferronofeitiodecruzesino.Dê-mesuasmuitasfontes,suaspequenasestátuasdeanjosempedra cinza acimadosumbraisdas suítes, atémesmo seusnichosvazios e suasextravagantestorresdesino.Dê-meospilaresvoadoresquecercamastrêsjanelasdoquartodecantodoandarmaisalto.

Edê-meossinosquesoavamotempotodoporlá.Dê-meavistadasmontanhasdistantesquesetinhadasjanelas,àsvezesvisivelmentecobertasdenevebrilhante.

Edê-mea confortável eparcamente iluminada casade carnes comosmelhorespratosservidosforadeNovaYork.

Bem,podiatersidoumserviçonaMissãodeSanJuanCapistrano–issotalveztivesse sido bem pior –, mas aquele pelo menos não era o lugar onde eufrequentementemedeitavaparadormirempaz.

OHomemCerto sempre falava comigo com extrema simpatia, e eu suponhoquefosseessaamaneiracomaqualeufalavacomele.

Eledisse:– O homem é suíço, banqueiro, lava dinheiro, íntimo dos russos, você não

acreditao tipodenegócioque essepessoal faz, e temde ser feitonoquartodessehotel.

Eesseera...omeuquarto.Nãodeipistanenhumasobreisso.Sem abrir a boca, no entanto, eu z um juramento, z umaoração,Deus,me

ajude.Aquelelugar,não.Para colocar tudo da forma mais simples possível, uma sensação ruim tomou

contademim,umasensaçãodequeda.Aoraçãomaisidiotadomeuantigorepertóriovoltouàminhamente,aqueme

deixavacommaisraiva:

AnjodeDeus,queridoguardião,AquemoamordeDeusparacáenvia,Fiquesempreaomeulado,Parailuminareguardar,paragovernareguiar.

Eu senti uma fraqueza ao ouvir as palavras do Homem Certo. Senti uma

fatalidade.Poucoimporta.Transformeissoemdor.Transformeissoempressão,evocêsesentirábem.

A nal, lembrei amimmesmo, umdos seus principais ativos é o fato de vocêpensarqueomundoficariabemmelhorsevocêmorresse.Umaboacoisaparatodaequalquerpessoaqueeuaindatinhadedestruir.

Oque faz pessoas como euprosseguiremdia após dia?OquedizDostoievskisobreissoquandooGrandeInquisidorestáfalando?Semumaconcepçãoestáveldoobjetivodavida,ohomemnãoaceitariacontinuarvivendo.

Até parece. E depois todomundo sabe que oGrande Inquisidor émau e estáerrado.

As pessoas seguem vivendo sob as mais insuportáveis circunstâncias, como eusabiamuitobem.

– Esse aqui tem de parecer um ataque cardíaco – disse o chefe. – Nenhumamensagem – apenas uma pequena subtração. Então pode deixar os celulares e oslaptopsnolocal.Deixetudoexatamentecomoencontrar,mascerti que-sedequeohomemestámorto.Éclaroqueamulhernãopodetever.Sevocêacabarcomela,seudisfarcecaiporterra.Amulheréumavagabundadeluxo.

–Oque ele está fazendo comelana suítematrimonial?–perguntei.Porque aSuíteAmistaderaexatamenteisso,asuítematrimonial.

–Elaquer se casar.Tentou isso emVegas,nãodeucerto, agora está insistindoparaquesejanacapelanesselugardoidoondeaspessoasvãoparasecasar.Esselugaréumaespéciedereferêncianoassunto.Vocênãovaiterdi culdadealgumaemacharasuítematrimonial.Ficasobumdomodeazulejo.Vocêconsegueavistarolocaldarua,antesdeprecisarolharaoredor.Vocêsabeoquefazer.

Vocêsabeoquefazer.Issosigni cavaodisfarce,ométododeaproximação,otipodevenenoescolhido

paracolocarnaseringa,easaídadeacordocomasmesmascircunstânciasutilizadasparaaentrada.

–Issoéoqueeuseiatéaqui–disseochefe.–Ohomem canohotel:amulhervaiàscompras.PelomenosesseeraopadrãoemVegas.Elasaimaisoumenosàsdezdamanhãdepoisdeberrarcomeleporumahoraemeia.Podeserqueelaalmoce.Podeserqueelabebaalgumacoisa,masvocênãopodecontarcomisso.Entreassimque ela sair do quarto. Ele vai estar comdois computadores ligados, e de repentetambémdoiscelulares.Façacomodeveserfeito.Lembre-se.Ataquecardíaco.Poucoimportasetodooequipamentoparardefuncionar.

–Eupodiabaixaros arquivosdos celulares edos computadores– eudisse.Eutinha orgulho de minhas habilidades nesses quesitos, ou pelo menos em pegarqualquer informaçãozinha contida em algum equipamento decifrável. Esse fora omeu cartãode visita comoHomemCertodez anos atrás. Isso eumaquantidadeatordoante de crueldade. Mas eu tinha dezoito anos nessa época. Eu não tinhaentendidoperfeitamenteoquãocrueleuera.

Agoraeuviviacomisso.–Vaiserfácildemaisalguémperceberisso–eledisse.–Aíelesvãoverquefoi

umassassinato.Nãopossopermitirumacoisaassim.Deixetudo,Lucky.Façacomoestou dizendo. O homem é banqueiro. Você não executa a tarefa e ele entra noprimeiroaviãoparaZuriqueenóstemosumproblemapraresolver.

Eunãodissenada.Àsvezesnósdeixávamosumamensagemacompanhandoosatos,outrasvezesnós

entrávamosesaíamoscomoumgatoderua,eeraassimqueaqueleseriafeito.Talvez isso fosse uma bênção, eu pensei.Não haveria falação sobre assassinato

entre os empregados do único lugar onde eu sentia algum alívio, e um pouco defelicidadeporestaracimadochão.

Eleriucomosemprecostumavarir.–Então?Nãovaimeperguntar?Eeurespondicomocostumavaresponder:–Não.Eleestavasempresereferindoaofatodeeunãomeimportarcomomotivopelo

qualelequeriaqueeumatasseaquelehomememparticular.Eunãomeimportavaemsaberquemeraohomem.Eunãomeimportavaemsaberonomedele.

Oquemeimportavaerasaberqueelequeriaqueacoisafossefeita.Maselesempreinsistiacomaquelapergunta,eeusemprerebatiacomomesmo

não. Russos, banqueiros, lavagem de dinheiro – aquilo era um enquadramentocomum,masnãoummotivo.Eraumjogoquenósjogávamosdesdeanoiteemqueoconheci,ouquefuivendidoaele,ouquefuioferecidoaele,dependendodecomopudesseserdescritoaqueleeventomarcante.

–Nenhumsegurançaparticular,nenhumassistente– eledisse agora.–Ele estásozinho.Mesmoquehajaalguém,vocêsabecomolidarcomisso.Vocêsabeoquefazer.

–Jáestoupensandonisso.Nãosepreocupe.Eledesligousemsedespedir.

Euodiavatudoaquilo.Pareciaerrado.Nãoria.Nãoestoudizendoquetodososoutros assassinatos que cometi antes soavam inteiramente corretos. Estou dizendoquealgumacoisaaquieraperigosaparameuequilíbrio,eportantoparaoquetalvezviesseaacontecer.

Eseeununcamaisfossecapazdedormirempazsobaqueledomo?Narealidade,issoprovavelmenteeraexatamenteoqueiriaacontecer.Ojovemdeolhosclarosqueàsvezescarregavaconsigoseualaúde,distribuindogorjetasdevintedólaresesorrindoamavelmenteparatodos,nuncamaisapareceriaporlá.

Porque uma outra faceta desse mesmo jovem, sob um pesado disfarce, haviacolocadoumassassinatonocernedaquelesonho.

Subitamente pareceu uma tolice eu haver ousado ser eumesmo ali, ter tocadoalaúde suavemente sob aquele teto com domo, ter me deitado naquela cama emirado o baldaquim, ter olhado por mais de uma hora para aquele céu azul nodomo.

A nal, o alaúde em si era uma ligação com o garoto que sumira de NovaOrleans,esealgumprimodebomcoraçãoaindaoestivesseprocurando?Eutinhaprimosdebomcoração,eeuosamara.Etocadoresdealaúdesãoraros.

Talvezfosseomomentodedetonarabombaantesqueoutrapessoaofizesse.Semerro,semerro.Valeraapenatertocadoalaúdenaquelequarto,dedilhá-losuavementeerepassar

asmelodiasqueeuamava.Quantas pessoas sabem o que é um alaúde, ou como é o somde um?Talvez

tenhamvistoalaúdesempinturasdoRenascimentosemnemmesmosaberquetaiscoisas existem até hoje. Eu não dava a mínima. Eu gostava muito de tocar oinstrumentonaSuíteAmistad.Eunãodavaamínima seosgarçonsdo serviçodequartomeouviamoumeviam.Eugostavamuitodaquilo,damesmamaneiraqueeu gostava de tocar o piano na suíte do Four Seasons emBeverlyHills.Nãomerecordodejamaistertocadoumanotasequeremmeupróprioapartamento.Nãoseipor quê. Eu olhava para o alaúde e pensava em anjos de Natal com alaúdes emcartõesdeNatalricamentecoloridos.EupensavaemanjospenduradosnasárvoresdeNatal.

AnjodeDeus,queridoguardião...Uma vez, droga, quem sabe apenas doismeses atrás noMission Inn, eu zera

umamelodiaparaaquelaantigaoração,bastanterenascentista,bastanteperturbadora.Sóqueaúnicapessoaqueestavaperturbadaeraeu.

Então agora eu tinha de pensar em um disfarce para enganar as pessoas quehaviammevistodefatomuitomaisdoqueumavez,eochefedissequeissotinhade ser feitoagora.A nal,podia serqueagarotaconseguisse convencê-loa se casarcomelaamanhã.AMissãotinhaessaespéciedecharme.

E

CAPÍTULOTRÊSPECADOMORTAL

EMISTÉRIOMORTAL

U MANTINHA UMA GARAGEM EM LOS ANGELES, similar a que eumantinha em Nova York: quatro caminhonetes, uma anunciando umaempresadedesentupimento,outrauma oricultura,umapintadadebranco

comumaluzvermelhanoaltodemodoaparecerumtipoespecialdeambulânciaeuma que era simplesmente um conjunto de rodas do tipo faz-tudo, caindo aospedaços, cheio de lixo enferrujado na parte de trás. Esses veículos eram tãotransparentesaopúblicoquantoofamosoaviãoinvisíveldaMulherMaravilha.Umsedãferradoatraíamaisatenção.Eeusempredirigiaumpoucorápidodemais,comajanelaabertaeobraçopara fora,eninguémmevia.Àsvezeseu fumava,apenasosuficienteparadeixarocheiroforte.

Dessa vez, eu usei a caminhonete da oricultura. Sem dúvida era a melhorescolha,eprincipalmentecomumhotelnoqualosturistaseoshóspedesmisturam-selivrementeepasseiampelasdependênciaslivremente,paradentroeparaforasemdestino certo, e ninguém jamais pergunta para onde você está se dirigindo, ou sepossuiounãoachavedeumquarto.

O que funciona em todos os hotéis e hospitais é uma atitude resoluta, umímpetofirme.CertamentefuncionarianoMissionInn.

Ninguémrepara apresençadeumhomemde tez escura edespenteado, comologodeuma oriculturabordadonobolsodesuacamisaverde,comumabolsasujade terra a tiracolo, carregando apenas um modesto buquê de lírios num vasoenvolvidoempapelalumínio,eninguémseimportacomofatodeeleentrarcomumrápidoacenodecabeçanadireçãodoporteiro,seéquealguémvaiterotrabalhode levantarosolhos.Acrescente àperucaumpardeóculosde armaçãogrossaquedistorceu completamente a expressão habitual demeu rosto.O aparelho dentárioentremeusdentesfariacomqueeubalbuciasseexatamentedamaneiraqueeuqueria.

As luvasde jardineiroque eu estavausando escondiamas luvasdeplásticoque

erammais importantes.Abolsa emmeuombro cheirava amusgo.Eu seguravaovasodelírioscomoseestivessecorrendoriscodequebrar.Andavacomosesentissedor no joelho esquerdo, e com a cabeça pendendo sempre para o lado, algo quealguém talvez tivesse condições de se lembrar se não se lembrassemdemais nada.Apagueiumcigarronumcanteirodatrilhaprincipal.Talvezalguémreparasseisso.

Eu tinhaduas seringasparao trabalho,mas somenteuma eranecessária.Haviauma pequena arma atada ao meu tornozelo debaixo de minha calça, embora euabominassea ideiadeterdeusá-lae,paraoquevaliaapena,eutinhanalapeladaminha camisa comercial uma longa e na lâmina de plástico, rígida e a ada osuficienteparacortaropescoçodeumhomem,ouambososolhos.

O plástico era a arma que eu podia usar com mais facilidade se encontrassedi culdade, mas eu nunca usara. Eu abominava sangue. Também abominava acrueldade que ele envolvia. Eu detestava toda e qualquer espécie de crueldade.Gostava que as coisas fossem perfeitas. Nos arquivos, eles me chamavam oPerfeccionista,oHomemInvisíveleoLadrãodaNoite.

Eu contava inteiramente com a seringa para realizar o trabalho, obviamente,porqueoataquecardíacoeraoefeitodesejado.

Era uma seringa vendida sem receita, do tipo usado por diabéticos, com umamicroagulhade que algunshomensnem sentiam apicada.E o veneno tinhaumadose fortíssima de um remédio de ação rápida, também vendido sem receita, queapagariaohomemquasequeimediatamente,portantoeleentrariaemcomaquandoovenenoatingisseseucoração.Qualquertraçodeambasassubstânciassairiadesuacorrente sanguínea em menos de uma hora. Nenhuma autópsia revelaria coisaalguma.

Toda e qualquer combinação química que eu usava podia ser comprada emqualquer drogaria do país. É impressionante o que você pode aprender acerca devenenosseestiverrealmentedispostoafazermalaalguémesenãoseimportarcomotipodeserhumanoemquevaisetransformar,ousetemounãoumcoraçãoouuma alma. Eu tinha pelo menos vinte venenos à minha disposição. Compravaremédios em drogarias do subúrbio em pequenas quantidades. Usava a folha deoleandra vezporoutra, e oleandradava emqualquerpartedaCalifórnia.Eu sabiacomousarovenenodamamona.

Tudoseguiucomooplanejado.Eu estava lá àsnove emeia.Cabelopreto,óculosde armaçãopreta.Cheirode

cigarronasluvasdejardineiro.

Pegueiopequenoelevadorbarulhentoatéoúltimoandarnacompanhiadeduaspessoasquenãoolharamsequerumavezparamim,seguioscorredoressinuososatéaáreaaoarlivreepasseipelojardimdeervasatéchegaràbalaustradaverdeporsobreopátio.Inclinei-mesobreabalaustradaeobserveiorelógio.

Tudoaquiloerameu.Àesquerda cavaalongavarandadeazulejosvermelhos,alonga fonte retangular com suasborbulhas em formatodeurna, comoquarto aofundoeamesaeascadeirasdeferroabaixodoombrelloneverde,exatamentedoladoopostoàsportasduplas.

Droga. Como eu amava car ali sentado ao sol, na fresca brisa californiana,naquelamesmamesa.Sentiumaforte tentaçãodeabandonaraquele serviçoe carsentadonaquelamesaatéquemeucoraçãoparassedebatercomtantaintensidade,edesimplesmenteiremboradali,deixandoovasode oresparaalguémquepudesseseinteressar.

Eu andava indolentemente de um canto a outro da varanda, contornandoinclusive a rotunda, com sua escadaria circularmergulhando emdireção ao térreo,comoseeuestivesseveri candoosnúmerosnasportas,ousimplesmenteobservandotudo,comoaspessoasquecirculavamportodaaextensãodolocal–comoeuestavafazendo–costumavamfazer,porpurocapricho.Quemdissequeumentregadornãopodeficarolhandoascoisas?

Finalmente, a moça saiu da Suíte Amistad e bateu a porta com força. Bolsagrandeevermelhadecourolegítimoesapatosdesaltoaltíssimocheiosdelantejoulaseouro, saia justíssima,mangasarregaçadas, cabelo lourovoandoaovento.Lindaecara,semdúvidaalguma.

Elaandavacomrapidez,comoseestivessecomraiva.Eprovavelmenteestava.Eumeaproximeidoquarto.

Atravésdajaneladaáreadejantar,euviolevecontornodobanqueiroalémdascortinas brancas, debruçado sobre seu computador na escrivaninha, nem mesmoreparando que eu estava olhando diretamente para ele, provavelmente distraídoporqueváriosturistasdeviamterolhadodamesmamaneiradurantetodaamanhã.

Ele estava falando num telefone diminuto, usando um fone de ouvido, emartelandoasteclasaomesmotempo.

Eumeencaminheiparaaportaduplaebati.A princípio ele não respondeu. Em seguida apareceu na porta mal-humorado,

abriu-atoda,olhouparamimedisse:–Oqueé?

–Dapartedaadministração,senhor,nossasboas-vindas–eudisse,nocostumeirosussurrorouco,oaparelhodentáriotornandodifícilparamimpronunciaraspalavras.Erguioslírios.Eramlindoslírios.

Entãoeupasseiporeleefuiemdireçãoaobanheiro,murmurandoalgumacoisasobre água, eles precisavamde água e, dandode ombros, o homemvoltoupara aescrivaninha.

Aportadobanheiroestavaaberta.Talvez houvesse alguém no diminuto compartimento do toalete, mas duvidei

dissoenãoouvinemomaislevemexerico.Sóparatercerteza,entreiláembuscadeáguaepegueialgumasgotasdabanheira.Não,eleeraaúnicapessoaali.Aportaquedavaparaavarandaestavacompletamenteaberta.Eleestavafalandoaotelefoneemartelandootecladodocomputador.Eupodia

verumacascatadenúmerospiscandonatela.Pareciaalemão,e eu sóconsegui entenderqueele estava irritadocomalguéme

comraivadorestodomundoemgeral.Àsvezesosbanqueirossãoosalvosmais fáceis,eure eti.Elespensamquesuas

vastasfortunasosprotegem.Raramenteusamosguarda-costasdequenecessitam.Eu fuinadireçãodele e coloquei as oresno centrodamesada salade jantar,

ignorandoabagunçadepratosdocafédamanhã.Elenãodeuamínimaparaofatodeeuestaratrásdele.

Porummomento,eudeiascostasparaeleeolheiparaodomofamiliar.Olheiparaospinheirospintadosnumsuavetombegeaolongodabasedodomo.Olheipara as pombas alçando voo através da névoa de nuvens em direção ao céu azul.Remexi as ores. Eu adorava a fragrância delas. Aspirei-as, e uma leve nostalgiatomoucontademim,alembrançadeumlugarcalmoegostosoondeoaromadasfloreseraopróprioar.Quelugareraesse?Poracaso,issoimporta?

Enquanto isso, a porta que dava para a varanda continuava aberta e uma brisafrescaadentrouorecinto.Qualquerpessoaqueestivessepassandoporalipodiaveracamaeodomo,masnãoobanqueiroetampoucoamim.

Movi-me suavemente atrás da cadeira dele e injetei trinta unidades domaterialmortíferoemseupescoço.

Semlevantaroolhar,elelevouamãoaolocal,comoseestivessetentandomatarummosquito,atitudequequasetodoselessempretomavam,eentão,deslizandoaseringaparaomeubolso,eudisse:

– O senhor por acaso não teria uma gorjetinha para um entregador que estápassandofome?

Elesevirou.Euestavaassomandosobreele,cheirandoamusgoecigarro.Seus olhos frios como gelome encararam com fúria. E então, de repente, seu

rostocomeçouamudar.Suamãoesquerdatomboudotecladodocomputador,e,com adireita, ele tateouo fonede ouvido.Oobjeto caiu.Aoutramão tambémtombou.Otelefoneescorregoudaescrivaninhaesuamãoesquerdadeslizouparaaperna.

Seurostoestavamoleesemvida,etodaabeligerânciaescapoudeseucorpo.Eleesforçou-se para respirar e tentou rmar o corpo com a mão direita, mas nãoconseguiuencontrarabordadaescrivaninha.Entãoeleconseguiuergueramãoemminhadireção.

Rapidamente,euretireiasluvasdejardineiro.Elenãonotou.Elenãopodianotarmuitacoisa.

Eletentouselevantar,masnãoconseguiu.–Ajude-me–elesussurrou.–Sim,senhor–eudisse.–Fiqueaísentadoatéacoisapassar.Então,comminhasmãosnasluvasdeplástico,fecheiseucomputadorevireiseu

corpo na cadeira de modo a fazer com que ele tombasse silenciosamente sobre aescrivaninha.

–Sim–eledisseeminglês.–Sim.–Osenhornãoestábem–eudisse.–Osenhorquerqueeuchameummédico?Euolheiparaavarandavazia.Nósestávamosexatamentedooutroladodamesa

deferropreta,erepareipelaprimeiravezqueosvasostoscanoscheiosdegerâniosdelavandatambémcontinhamhibiscos.Osolestavalindosobreeles.

Eleestavatentandorespirar.Comoeudisse,detestocrueldade.Pegueiotelefoneaoladodelee,semapertara

tecla de chamada, falei no aparelho. Nós precisávamos de um médicoimediatamente.

Acabeçadeleestavapendendoparao lado.Euvi seusolhos se fecharem.Achoqueeletentoufalarnovamente,masnãoconseguiupronunciarnenhumapalavra.

–Elesjáestãochegando,senhor–eudisseaele.Eu poderia ter ido embora, mas como eu disse, detesto qualquer tipo de

crueldade.Nesse momento, ele já não estava mais vendo nada com clareza.Talvez nem

estivesse vendo mais coisa alguma. Mas eu me lembrei daquela informação quesemprenosdãonohospital:“Aaudiçãoéoúltimosentidoqueseperde.”

Disseram-meissoquandominhaavóestavamorrendo,euquisassistirtelevisãonasalaeminhamãenãoparavadesoluçar.

Finalmente ele fechou os olhos. Eu quei surpreso por ele ter sido capaz derealizar a ação. Primeiro, eles se fecharam parcialmente, em seguida ambos sefecharamsimultaneamente.Seupescoçoeraumamassaderugas.Eunãoconseguiavernenhumindícioderespiração,nemomenorsinaldemovimentoemseucorpo.

Olheialémdele,atravésdascortinasbrancas,eavisteimaisumavezavaranda.Namesapreta,entreosvasos toscanoscom ores,umhomemhavia seposicionadoepareciaestarnosencarando.

Eusabiaqueelenãotinhacomoolharpordentrodascortinasdaqueladistância.Tudooqueelepodiavereraabranquidão,etalvezumaformavelada.Eunãoliguei.

Eu precisava apenas de mais alguns instantes, e então poderia sair dali emsegurançacomacertezadequeoserviçohaviasidorealizado.

Eu não toquei os aparelhos telefônicos nem os computadores, mas z uminventário mental do que estava lá. Dois celulares em cima da escrivaninhaexatamente como o chefe havia indicado. Um telefone desligado no chão. Haviatambém telefones no banheiro. E havia um outro computador, talvez damulher,fechadoemcimadamesaemfrenteàlareira,entreaspoltronas.

Euestava apenasdandoaohomemtempodemorrer enquantoobservava tudoisso, mas quanto mais tempo eu permanecia no quarto, pior eu começava a mesentir.Eunãoestavainseguro,apenasinfeliz.

O estranho na varanda não me perturbava. Que olhasse a vontade. Que eleolhassebemparaasuíte.

Eu me certi quei de que os lírios estavam bem acomodados e enxuguei umpoucodaáguaquepingaranamesa.

Nesse momento, o homem certamente já estava quase morto. Senti umdesesperogalopantetomandocontademim,umasensaçãodevaziototal,eporquenão?

Fuiveri carsuapulsação.Nãosentinada.Maseleaindaestavavivo.Issoeupudeperceberquandotoqueiseupulso.

Encosteioouvidoparaouvirsuarespiraçãoe,paraminhadesconfortávelsurpresa,ouviumtênuesuspirodeumaoutrapessoa.

Umaoutrapessoa.

Nãopoderiatersidoaquelecaranavaranda,apesardeeleaindaestarmirandoasuíte.Umcasalpassou.Entãosurgiuumhomemsolitário,olhandoparaumladoeparaooutro,edirigiu-separaaescadadarotunda.

Atribuíaosmeusnervosaquelesuspiro.Osomhaviasidopertodemeuouvido,comosealguémestivessesussurrandoparamim.Imagineiqueerasóaquelasuíte,meirritando porque eu a adorava tanto, e o gritante espetáculo dantesco daqueleassassinatoestavadespedaçandoaminhaalma.

Talvezasuíteestivessesuspirandodepena.Eucertamentequeriafazeromesmo.Euqueriairemboradali.

Eentãoa infelicidadequeestava emmimescureceu, como tão frequentementeocorrianessesmomentos.Sóquenessaocasião foimais forte,muitomais forte, evinhacomumalinguagememminhacabeçaqueeunãoesperava.

Porquevocênão se juntaaele?Você sabequedeveria irparaondeeleestá indo.Você deveria pegar aquela pequena arma em seu tornozelo agoramesmo e encostar ocanobemembaixodeseuqueixo.Atire.Quemsabeseucérebrovaivoaremdireçãoaoteto,masvocêvaiestar nalmentemorto,etudo caráescuro,maisescuroaindadoqueestáagora,evocê cará separadode todoselespara sempre, todoseles.Mama,Emily,Jacob, seu pai, seu inominável pai, e todos esses, como ele, a quem você matouimpiedosamentecomasprópriasmãos.Façaisso.Nãoesperemais.Façaisso.

Não havia nada estranho naquela depressão esmagadora, eu lembrei a mimmesmo,aqueleesmagadordesejodeterminartudo,aquelaesmagadoraeparalisanteobsessão de erguer a arma e fazer exatamente o que a voz estava dizendo.A coisaestranhaeraaclarezadavoz.Pareciaqueestavaaomeu lado,emvezdedentrodemim,LuckyfalandocomLucky,comoelefaziacomtantafrequência.

Láfora,oestranhose levantoudamesa,eeu agreiamimmesmoobservandoem tranquila perplexidade o homempassar pela porta aberta. Ele cou parado nasuíte, sob o domo, olhando xamente para mim, em pé atrás do homemmoribundo.

Eleeraalto,bastanteimponente,esguio,commacioscabelospretosonduladoseolhosazuiscomumaexpressãoinsinuantemuitopoucousual.

–Essehomemestádoente, senhor–eudisse imediatamente,empurrandocomforçaminha línguadeencontroaoaparelhodentário.–Euachoqueeleprecisadeummédico.

–Eleestámorto,Lucky–disseoestranho.–Enãoouçaavozemsuacabeça.Aquilofoitãoextraordinariamenteinesperadoqueeunemsoubeoquefazerouo

quedizer.Mesmoassim,tãologoelepronunciouaquelaspalavras,avozemminhacabeçaressurgiu.

Acabecomisso.Esqueçaaarmaesuainevitávelimundície.Vocêestácomaseringanobolso.Vaisedeixarcapturar?Suavidaestáuminfernoagora.Pensecomoserávivernaprisão.Aseringa.Façaissoagoramesmo.

–Ignore-o,Lucky–disseoestranho.Umaimensagenerosidadepareciaemanarde seuser.Eleolhouparamimcomtanta intensidadequebeiravaadevoção,eeuestava,inexplicavelmente,comuminstintodequeeraamoroqueelesentia.

Aluminosidadesofreuumamudança.Umanuvemdeveterdescortinadoosol,porque a suíte cara bemmais iluminada, e eu o vi com uma clareza incomum,mesmo estando bastante acostumado a reparar ememorizar as pessoas. Ele era daminha altura e estava olhando paramim com um carinho explícito e atémesmopreocupação.

Impossível.Quandovocêsabequeumacoisaéimpossível,oquevocêfaz?Oqueeudeveria

fazernaquelemomento?Coloqueiminhamãonobolsoesentiaseringa.Éissoaí.Nãodesperdiceosúltimosepreciososminutosdesuadegradanteexistência

tentandoentenderesseaí.VocênãoestávendoqueoHomemCertooenganou?– Não é assim – disse o estranho. Ele mirou o homem morto e seu rosto

contraiu-seexprimindoomaisperfeitopesar,eemseguidaelesedirigiuamimmaisumavez.

–Horadesairdaquicomigo,Lucky.Horadeouviroqueeutenhoalhedizer.Eu não conseguia formar um pensamento coerente. Meu coração estava

retumbando emmeus ouvidos e, com o dedo, eu pressionei levemente a capa deplásticodaseringa.

Sim, escape das contradições e das armadilhas e das mentiras e da interminávelcapacidadequeelestêmparateusar.Derrote-os.Venhaagora.

–Venha agora? – sussurrei. As palavras se separaram do tema da raiva que eracomumemminhamente.Porqueeuhaviapensadoisso:Venhaagora?

– Você não pensou isso – disse o estranho. – Você não vê que ele está seesforçandoaomáximoparaderrotaranósdois?Deixeaseringaempaz.

Ele parecia jovem e audacioso, e quase irresistivelmente afetuoso ao olharxamente paramim,mas não havia nada de jovem nele, e a luz do sol estava se

derramando magni camente sobre ele, e tudo nele era atraente sem precisar de

nenhumesforço.Somenteagoraeuestavanotando,umpoucofreneticamente,queeleestavausandoumternocinzasimpleseumagravatadesedaazulmuitobonita.

Nadadissoeraparticularmentenotável,masseurostoesuasmãoseramnotáveis.Eaexpressãoeraconvidativaemagnânima.

Magnânima.Porque alguém,quemquerque fosse,olhariaparamimdaquelamaneira?No

entanto,eutinhaasensaçãodequeelemeconhecia,dequemeconheciamaisdoqueeuprópriomeconhecia.Eracomoseele soubesse tudoameurespeito,e somenteagoraestavaentrandoemminhamenteofatodequeelemechamaratrêsvezespelonome.

Certamente issoeraporqueoHomemCertoohavia enviado.Certamente issoera porque eu fora enganado. Aquele era o último serviço que eu fazia para oHomemCerto,eaquiestavaoassassinomaisgraduadoquepoderiapôr maumantigoassassinoqueeraagoramuitomaismistériodoquevaliaapena.

Entãoenganeatodoselesagoramesmo.–Euteconheço–disseoestranho.–Euteconheçodesdequevocênasceu.Eeu

nãotrabalhoparaoHomemCerto.–Aodizerisso,eleriusuavemente.–Bem,nãoparaoHomemCertoporquemvocêtemtantaconsideração,Lucky,masparaumoutroqueéoverdadeiroHomemCerto,eudeveriadizer.

–Oquevocêquer?– Que você saia daqui comigo. Que você pare de ouvir a voz que está te

atazanando.Vocêjáaouviuportemposuficiente.Eu calculei.Oquepodia explicar tudo isso?Não apenaso estressede estar em

minha suítenoMission Inn,não, issonão era su ciente.Deve ter sidoo veneno,talvezeutenhaabsorvidoumapequenaquantidadedeleduranteopreparo,apesardasluvasduplas.Eunãodevoterfeitoascoisasdemodoexatamentecorreto.

–Vocêéinteligentedemaisparapermitirqueissoacontecesse–disseoestranho.Eentãovocêvairegredirà sua loucura?Quandotemopoderparadaras costasa

todoseles?Euolheiemtornodele.Olheiparaacamadebaldaquim;olheiparaasfamiliares

cortinasmarrom-escuras.Olheiparatodososmóveiscomunseobjetosnasuítequeeutãobemconhecia.Comoaloucurapodiaprojetar-setãoagudamente?Comoelapodiacriarumailusãotãoespecí ca?Mascertamenteessa guranãoestavalá,eeunãoestavafalandocomele,eoolharcalorosoeconvidativoemseurostoeraalgumacriaçãodeminhaprópriamentedesgraçada.

Eleriunovamentecommuitasuavidade.Masaoutravozestavatrabalhando.Nãolhedêchancedetiraressaseringadevocê.Sevocênãoquermorrernessasuíte,

dane-se,saiadaqui.Achealgumcantodessehotel,evocêconhecetodoseles,eacabecomsuavidadeumavezportodas.

Duranteumpreciososegundo,eutiveacertezadequeessa guradesapareceriaseeumemovesse em sua direção. Foi o que eu z. Ele estava tão sólido e palpávelquantoantes.Ele seafastoudemime fezumgesto indicandoqueeupoderia sairantesdele.

Ederepenteeumeencontreiparadonavaranda,aosol,eascoresaomeuredorestavammaravilhosamentevívidas e acalentadoras, e eunão sentiqualquer sinaldeurgência,nenhumrelógiobatendo.

Euoouvifecharaportadasuíteeentãoolheiparaelequando couparadoaomeulado.

–Não falecomigo–eudisse,aborrecido.–Eunãoseiquemvocêéouoquevocêqueroudeondevocêveio.

–Vocêmechamou–disseelecomsuavozequilibradaeagradável.–Vocêmechamounopassado,masnuncatãodesesperadamentequantoagora.

Novamente eu tive a sensação de amor uindo dele, de um in nitoconhecimentoedeumainexplicávelaprovaçãodequemedoqueeuera.

–Eutechamei?– Você rezou, Lucky. Você rezou a seu anjo da guarda, e seu anjo da guarda

transmitiuamimseudesejo.Simplesmentenãohaviapossibilidadealgumadeeuaceitaraquilo.Masoqueme

atingiucommaisforçafoiofatodequeoHomemCertonãoteriacomosaberdasminhasorações,nãoteriacomosaberoquesepassavaemminhacabeça.

–Eu sei o que se passa em sua cabeça –disse o estranho. Seu rosto estava tãoatraenteecon ávelquantoantes.Era isso,con ança,comoseelenãotivessenada,coisaalguma,atemerdemim,oudequalquerarmaqueeuestivessecarregando,oudequalqueratodesesperadoqueeuviessearealizar.

– Errado – disse ele com delicadeza, aproximando-se de mim. – Há atosdesesperadosqueeunãoqueroquevocêfaça.

Vocênãoreconheceodiaboquandoovê?VocênãosabequeeleéoPaidasMentiras?Talvezexistamdemôniosespeciaisparapessoascomovocê,Lucky,vocêjápensounisso?

Minha mão foi novamente até o bolso para pegar a seringa, mas eu a retireiinstantaneamente.

–Demôniosespeciais,issoébemprovável–disseoestranho–,eanjosespeciaistambém. Você sabe disso por causa de seus antigos estudos. Homens especiaispossuem anjos especiais, e eu sou seu anjo,Lucky.Vim aqui oferecer a vocêumasaída,evocênãodeve,vocênãodeve,emhipótesealguma,pegaressaseringa.

Euestavaapontode falarquandoaqueledesespero tomoucontademimcomtanto realismo que mais parecia que alguém havia envolvido meu corpo numamortalha,emboraeujamaistivessevistoumamortalhanavida.Foisimplesmenteaimagemquemeveioàcabeça.

Éassimquevocêquermorrer?Loucoemalgumaceladiminutacomváriaspessoastetorturando, tentando tirar informações de você? Saia daqui.Vá.Vá para onde vocêpossa colocar essaarmaembaixodoqueixoepuxarogatilho.Você sabiaque faria issoquandoveioparaesselugareparaessasuíte.Vocêsempresoubequeesseseriaseuúltimoassassinato.Foiporissoquevocêtrouxeaseringaextra.

Oestranhoriu,comosenãoestivesseconseguindoseconter.–Eleestáfazendoopossíveleoimpossível–disseele,calmamente.–Nãoouça.

Elenãoteriaerguidootomdevozaumníveltãoestridenteseeunãoestivesseaqui.–Eunãoqueroquevocêfalecomigo!–berrei.Umjovemcasalestavavindoemnossadireçãonavaranda.Euimagineioqueeles

poderiamtervisto.Elesnosevitaram,seusolhosconcentradosemavaliarostijoloseaspesadasportas.Achoqueseencantaramcomasflores.

–Sãogerânios-lavanda–disseoestranhoenquantoolhavaparaelesnosvasosqueestavamanossavolta.–Eelesqueremsesentarnessamesa,entãoporquenósnãovamosembora?

– Eu estou indo embora – eu disse, zangado –, mas não porque você estádizendo.Eunãoseiquemvocêé.Masvoutedizerumacoisa.SeoHomemCertomandouvocê,émelhorestarpreparadoparaumapequenabatalhaporqueeuvoutederrubarantesdesairdaqui.

Segui para a direita e me dirigi à escadaria espiralada da enorme rotunda. Euandavacomrapidez,silenciandoavozemminhacabeçaobjetivaedeliberadamenteenquantodesciaumandaratrásdooutroatéchegaraotérreo.Euoencontreilá.

–AnjodeDeus,queridoguardião–sussurrouele.Eleestavaencostadonaparedecom os braços cruzados, uma gura imperturbável, mas agora esticou o corpo eseguiuaomeuladoenquantoeucontinuavacaminhandonavelocidademaisrápidaqueconseguiaimprimir.

–Sejadiretocomigo–eudisse,arquejando–,quemévocê?

–Eunãoachoquevocêestejaprontoparaacreditaremmim–disseele,seujeitodelicadoesolícito,zelosocomosempre.–EupreferiaqueestivéssemosnaestradadevoltaaLosAngeles,masjáquevocêinsiste...

Sentiosuorescapandoportodoomeucorpo.Arranqueioaparelhodentáriodaminhabocaetambémrasgueiasluvasdeplástico.Enfieitudonosbolsos.

–Cuidado.Tireatampadessaseringaevocêestaráperdidoparamim–disseele,candomaispertodemim.Elesemoviacomamesmarapidezqueeu,eagoranós

estávamosnosaproximandodacalçadadafrentedohotel.Você conhece a loucura. Você já viu como é. Ignore-o. Você cai na dele e está

acabado.Entrenacaminhoneteeváemboradaqui.Encontrealgumlugarnabeiradaestrada.Evocêsabeoquefazer.

Asensaçãodedesesperoeraquasecegante.Euparei.Nósestávamosdebaixodocampanário. Não poderia haver local mais agradável. A hera estava fazendo seupercurso por sobre os sinos, e as pessoas estavam passando por nós na trilha, àesquerdaeàdireita.Eupodiaouvirospássarosnasárvores.

Elepostou-sepertodemim,olhando xamenteparamim,olhandodojeitoqueeu gostaria que um irmão me olhasse, mas eu não tinha irmão, porque meuirmãozinho morrera havia muito, muito tempo.Culpa minha. Os assassinatosoriginais.

Fiqueisemar.Oarsimplesmenteabandonoumeucorpo.Olheidiretamentenosolhosdeleevinovamenteoamor,opuroeimaculadoamor,eaprovação,eentãomuito delicadamente, cuidadosamente, ele colocou sua mão em meu braçoesquerdo.

–Tudobem–sussurrei.Euestavatrêmulo.–Vocêveiomematarporqueeleteenviou.Elepensaqueeusouumaarmaquenãofuncionamaisemeentregoudevez.

–Não,enão,enão.–Poracaso soueuqueestoumorto?Dealgumamaneira euestoucomaquele

venenonasveiasenãoestousabendodisso?Foiissooqueaconteceu?–Não,enão,enão.Vocêestábemvivo,eéporissoqueeuquerovocê.Agoraa

caminhoneteestáapoucosmetros.Vocêfalouparaelesdeixaremoveículopertodaentrada.Pegaotíquetenobolso.Completaospoucosgestosnecessáriosaqui.

–Vocêestámeajudandoacompletaroassassinato–eudissecomraiva.–Vocêestáinsinuandoqueéumanjo,masestáajudandoumassassino.

–Ohomemláemcimajáera,Lucky.Eleestavacomosanjosdeleporperto.Eagoranãohámaisnadaqueeupossa fazerporele.Euvimporsua causa.–Havia

umaindescritívelbelezaqueemanavadeseucorpoenquantoelefalavaessaspalavras,e novamente aquele convite carinhoso, como se, de alguma forma, ele pudesseendireitartodasasmazelasdessemundoarruinado.

Raiva.Eu não estava cando louco. E não achava que o Homem Certo pudesse

contrataressetipodeassassino,nemqueficasseprocurandoporcemanos.Seguiadiantecomaspernastremendoeentregueiotíqueteaogarotoqueestava

esperando, colocando uma nota de vinte dólares namão dele, e entrei emminhacaminhonete.

Éclaroqueeleentroue couaomeulado.Elepareciaignorarapoeiraeasujeiraque estavam por toda parte, o musgo e os jornais amassados e o que mais euhouvesse acrescentadopara fazer comque aquilo parecesse umveículode trabalhoemvezdeumsuporte.

Eusaí,fizumacurvaemeencaminheiparaaautoestrada.–Euseioqueaconteceu–eudisseemmeioaobarulhodoarquenteentrando

pelasjanelasabertas.–Eoqueexatamenteaconteceu?–Eu te inventei.Vocêéprodutodeumamisturaqueeu z.E tudooqueeu

tenho a fazer pra acabar com isso é jogar essa caminhonete nummuro.Ninguémmaisvaiseferiralémdemimevocê,essailusão,essacoisaqueeucrieiporqueatingiumaespéciede mdalinha.Foiasuíte,nãofoi,aresponsávelportudoaquilo?Euseiquefoi.

Eleapenasriusuavementeconsigomesmoemanteveosolhosnaestrada.Depoisdeummomento,disse:

–Vocêestáindoa180km/h.Apolíciavaifazervocêparar.–Vocêafirmaounãoafirmaserumanjo?–questionei.–Eusourealmenteumanjo–respondeuele,aindacomosolhos xosàfrente.–

Diminuaavelocidade.–Sabiaquehápoucotempoeuliumlivrosobreanjos?–disseaele.–Sabiaque

eugostodessetipodelivro?–Sabia.Vocêpossuiumabibliotecae tantosobrecoisasemquenãoacreditae

quenãomaisconsiderasagradas.Evocêeraumbomgarotojesuítaquandoestavanaescola.

Novamentefiqueicomfaltadear.– Ah, você só pode ser algum assassino, pra jogar todas essas coisas assim na

minhacara.Sópodeser.–Eununcafuienuncasereiumassassino–eledissecalmamente.–Vocêéumcoautormaterial!Eletornouarir,levemente.–Sefossemeuintentoimpediroassassinato,euoteriafeito–disseele.–Você

com certeza se lembra de ter lido que anjos são essencialmente mensageiros, aencarnaçãodesuasfunções,porassimdizer.Essaspalavrasnãorepresentamsurpresaalguma,masasurpresaéobviamenteofatodeeutersidoenviadoavocêcomoummensageiro.

Umengarrafamentonosobrigouadiminuiravelocidadeparaemseguidapararquasequecompletamente.Olheifixamenteparaele.

Umacalmatomoucontademim,tornando-meconscientedequehaviasuadonacamisa verde horrorosa que estava usando, e que minhas pernas ainda estavambambas,comumlatejarnopéquepisavaopedaldofreio.

–Voucontarpravocêoqueeuaprendinesselivrosobreanjos–eudisse.–Elespassam¾dotempodelesintervindonosincidentesdotrânsito.Oqueexatamenteopessoal da sua espécie fazia antes de inventarem os automóveis? Eu realmentetermineialeituracomissonacabeça.

Eleriu.Atrásdemimumabuzinasoou.Otráfegoestavaseguindo,assimcomonós.–Essaéumaquestãoperfeitamentelegítima–disseele–,principalmentedepois

deseleraquelelivroespecí co.Nãoimportaoquenós zemosnopassado.Oqueimportaéoquevocêeeupodemosfazerjuntos.

–Evocênãotemnenhumnome.Nósestávamosnovamentecorrendo,maseunãoestavaindomaisrápidodoque

osoutroscarrosnafaixadaextrema-esquerda.–Podeme chamardeMalchiah–disse eledelicadamente–,mas eu garanto a

você,nenhumserafimnocéujamaisdiráavocêseuverdadeironome.–Serafim?Vocêestámedizendoqueéumserafim?–Euquerovocêparaumserviçoespecial,eestouteoferecendoumachancede

usartodasashabilidadesquepossuiparameajudar,eparaajudaraspessoasqueestãorezandopornossaintervençãonesteexatomomento.

Fiquei atônito. Senti o choque. Era como a frescura da brisa ao nosaproximarmosdeLosAngeles,ficandocadavezmaispertodolitoral.

Você o inventou. Bata na amurada.Não banque o tolo por algo que saiu de sua

própriamentedoente.–Vocênãomeinventou–disseele.–Vocênãovêoqueestáacontecendo?Odesesperoameaçouafogarminhasprópriaspalavras.Éumtruque.Vocêmatou

umhomem.Vocêmereceamorteeooblívioqueoespera.–Oblívio?–murmurouoestranho.Eleergueuavozaovento.–Vocêachaque

ooblíviooespera?VocêachaquenuncamaisvaiverEmilyeJacob?EmilyeJacob!–Nãofalesobreelescomigo!–eudisse.–Comovocêousamencionaronome

delesnaminhafrente?Eunãoseiquemvocêé,ouoquevocêé,masnãomencioneonomedelesnaminha frente.Sevocêestá seaproveitandodaminha imaginação,entãocontinuanessalinha!

Dessavezorisodelepossuíaumainocênciaeumaressonância.–Porqueeunãopreviqueseriaassimcomvocê?–disseele.Eleseinclinoupara

a frente e colocou delicadamente uma de suas mãos macias sobre meu ombro.Pareciamelancólico,triste,eemseguidapareceuestarimersoempensamentos.

Euolheiparaaestrada.–Euestouperdendoanoção–eudisse.Nósestávamosentrandonocoraçãode

Los Angeles, e em questão de minutos pegaríamos a saída que me levaria até agaragemondeeupoderiadeixaracaminhonete.

–Perder–disseele,comoseestivessedivagando.Elepareciaestarobservandoascercaniasporondepassávamos,asamuradascobertasdeheraeasaltastorresdevidro.– É exatamente essa a questão, meu caro Lucky. O que você tem a perderacreditandoemmim?

–Comovocêdescobriuarespeitodemeuirmãoedeminhairmã?–pergunteiaele.–Comovocêsoubeonomedeles?Vocêfezalgunscontatos,eeuquerosabercomofoiquevocêfezisso.

–Qualquercoisamenosaexplicaçãoóbvia?Queeusouoqueestoudizendoquesou. –Ele suspirou. Foi exatamente esse suspiro que eu ouvira na SuíteAmistad,bemnomeuouvido.Quandoele falounovamente, suavozeraacariciadora.–Euconheçosuavidadesdeotempoemquevocêestavanoúterodesuamãe.

Issoestavaalémdequalquercoisaqueeujamaispudesseteresperado,ederepentecoubemclaroparamim,espetacularmenteclaro,queestavaalémdequalquercoisa

queeujamaispudesseterimaginado.–Vocêestárealmenteaqui,nãoestá?–Estouaquiparadizerque tudopodemudarparavocê.Estouaquiparadizer

quevocêpodeparardeserLucky,aRaposa.Estouaquiparalevarvocêparaumlugarondevocêpoderácomeçaraserapessoaquetalveztivessesido...secertascoisasnãohouvessemacontecido.Estouaquiparadizer...–Eleinterrompeuodiscurso.

Havíamoschegadoàgarageme,depoisdeapertarocontroleremotoparaabriraporta,leveiacaminhoneteparadentro,comcalmaesegurança.

–Oqueé?Dizpramimoqueé–eudisse.Nósestávamosolhonoolho,eelepareciaenvoltoemumacalmaquemeumedonãopodiapenetrar.

Agaragemestavaescura,preenchidaapenaspelaluminosidadeenfarruscadadocéuepelaportaabertapelaqualhavíamospassado.Eraumlocalamplo,sombrioecheioderefrigeradoresearmáriosepilhasderoupaqueeuusariaoupoderiaavirausaremserviçosfuturos.

Oespaçomepareceusubitamentesemqualquersentido,umlocalqueeupoderiaabandonargloriosaeindiscutivelmente.

Eu conhecia essa sensação de soberba. Era parecida com amaneira com a qualvocêsesentedepoisdeestardoenteporumlongoperíododetempo,ederepenteumalímpidasensaçãodebem-estarseinstalaemseucorpoeavidapassanovamenteavalerapenaservivida.

Eleestava sentadoabsolutamente imóvelaomeu lado,eeupodiavera luzemdoispequenoslampejosemseusolhos.

–OCriadorteama–disseelesuavemente,quasedemodosonhador.–Euestouaquiparateoferecerumoutrocaminho,umcaminhoparaesseamor,sevocêaceitá-lo.

Fiquei calado. Eu tinha de car calado. Eu não estava exausto em função dasurpresaquemetomaradeassalto.Aocontrário,estavaesvaziadodessasurpresa.Eaintensa beleza dessa possibilidade tomou conta demim, damesmamaneira que avisão dos gerânios de lavanda poderiam ter tomado conta de mim, ou a heraziguezagueandonocampanário,ouobalançodasárvoresnabrisa.

De súbito,vi todasessascoisas, saltandoemminhamentedaazáfama frenéticaparaesselocalescuroesombrio,fedendoàgasolina,eeunãoviaaobscuridadequenoscercava.Naverdade,eupercebiaqueagaragemestavaagorapreenchidaporumaluzpálida.

Lentamente, saí da caminhonete. Afastei-me do veículo e me dirigi para osfundos da garagem.Tirei do bolso a segunda seringa e a coloquei numa bancadapróxima.

Tirei a horrorosa camisa verde e as calças e joguei-as na lata de lixo cheia de

querosene. Esvaziei o conteúdo da seringa em cima da bagunça de roupas jáescurecidaspeloquerosene. Joguei tambémas luvas.Acendiumfósforoeatireinalata.

Ofogoexplodiuperigosamente.Jogueiossapatosnalatae queiobservandoomaterial sintético derreter.Também joguei a peruca nas chamas e passei asmãos,agradecido, emmeu cabelo curto.Osóculos.Eu ainda estavaolhando atravésdosóculos.Tirei-os, quebrei-os e os coloquei no fogo também.Estava uma fornalha.Todosos itenseramsintéticoseestavamderretendoporcompletonaschamas.Eusentiaocheiro.Empoucotemponãorestariamaisnada.Ovenenocertamentenãoexistiamais.

Ofedornãoduroupormuitotempo.Quandonãohaviamaisfogo,euderrameimaisumadosedequerosenenoquerestavaeacendioutrofósforo.

Em meio às chamas tremeluzentes, olhei para minhas roupas bem arrumadasnumcabidenaparede.

Lentamente,euasvesti,acamisa,ascalçascinzentas,asmeiaspretaseossapatosmarrons,eporfimagravatavermelha.

Ofogoapagou-senovamente.Vesti o paletó, girei o corpo e o vi em pé, encostado na caminhonete. Seus

tornozelosestavamcruzadoseseusbraçosdobrados,ealuzuniformeodeixavatãoatraentequantoeuoviraantes,ehaviaamesmaexpressãoafetuosaecarinhosaemseurosto.

Aqueledesesperoprofundoeaterradoratacou-menovamente,mudo,insondável,eeuquase lhedeiascostas,prometendoamimmesmonuncamaisvoltaraolharparaele,independentedeondeoucomoeleaparecesse.

– Ele está lutando com a nco por você – disse ele. – Ele sussurrou para vocêdurantetodosessesanos,eagoraestáfalandoemvozalta.Elepensaquepodetirá-lodeminhasmãos.Pensaquevocêvaiacreditarnasmentirasdele,mesmoeuestandoaqui.

–Queméele?–perguntei.–Vocêsabequemeleé.Eletemconversadocomvocêhámuito,muitotempo.

Evocêotemouvidocadavezcommaisinteresse.Nãooouçamais.Venhacomigo.–Vocêestádizendoqueissoaquiéumabatalhaporminhaalma?–Sim,éissooqueestoudizendo.Percebiqueestavatremendonovamente.Eunãosentiamedo,oquesigni caque

erameu corpo que começava a sentirmedo.Eu estava calmo,masminhas pernas

estavam bambas. Minha mente não se entregava mais ao medo, mas meu corposuportavaoimpactoenãoconseguiaresistir.

Meu carro estava lá, um pequeno Bentley conversível que eu nãome dava aotrabalhodesubstituirhaviaanos.

Euabriaportaeentrei.Fecheiosolhos.Quandoosabrinovamente,eleestavaaomeulado,exatamentecomoeuhaviaesperado.Engateimarchaaréesaídagaragem.

Eu nunca dirigira pelo centro da cidade em tanta velocidade. Era como se otráfegoestivessemecarregandorapidamenteporumrio.

Em questão de minutos, nós estávamos entrando em Beverly Hills, e entãochegamos à minha rua, com magní cos jacarandás dos dois lados inteiramenteoridos.Quasenão se viamais folhas verdes, os galhos estavam repletos de ores

azuis,easpétalasfaziamdacalçadaedoasfaltoumverdadeirocarpete.Eu não olhei para ele. Eu não pensei nele. Pensava emminha vida e em lutar

contra aquele desespero da maneira como uma pessoa luta contra uma náusea, equeiimaginando:eseissotudoforverdade,eseeleformesmoquemdizqueé?E

se, de alguma forma, eu, o homem que fez todas essas coisas, puder serverdadeiramenteredimido?

Nóshavíamosentradonagaragemdemeuedifícioantesqueeudissessequalquercoisae,comoeuhaviaesperado,elesaiudocarrocomoeu zeraeentroucomigonoelevadoremdireçãoaoquintoandar.

Nunca fecho as portas da varanda domeu apartamento, então fui direto até oterraçodeconcretoeolheiparaosjacarandásazuisláembaixo.

Eu estava com a respiração acelerada, meu corpo carregando o peso de tudoaquilo,masminhamenteestavamaravilhosamenteleve.

Quandomevireiparaolhar,láestavaeletãovívidoesólidoquantoosjacarandáse suas ores cadentes. Estava em pé no umbral apenas olhando para mim, enovamente havia uma promessa em seu rosto, aquela promessa de compreensão eamor.

Sentiumaintensavontadedechorar,dedissolver-meemumestadodefraqueza,umestadodeencantamento.

– Por quê? Por que você veio pormim? – perguntei. – Eu sei que pedi suapresençaantes,masvocêtemdemedizer,dizercomtodasasletras,porqueeuenãoalgumaoutrapessoa?Eunãoseisevocêéreal.Agoraestouapostandoquesim.Mascomoalguémcomoeupodeserredimido?

Eleveioatéoparapeitodeconcretoe couaomeulado.Olhouemdireçãoàs

arvorescheiasdefloresazuisesussurrou:–Tãoperfeitas,tãoencantadoras.–Éporelasqueeumoroaqui–respondi.–Porquequandoelas orescemacada

ano...–Minhavozsumiu.Eudeiascostasàsárvoresporque,secontinuasseolhandopara elas, começaria a chorar. Olhei para minha sala de estar e vi as três paredescobertasde livrosdo chão ao teto.Vi opedacinho visível dohall comas estantesigualmentecheiasdelivros.

–Redençãoéalgoqueprecisaserpedido–disseeleemmeuouvido.–Vocêsabedisso.

–Eunãopossopedir!Nãoposso.–Porquê?Simplesmenteporquevocênãoacredita?–Esseéumexcelentemotivo–eudisse.–Dê-meumachancedefazercomquevocêacredite.–Entãovocêvaiterdecomeçarexplicando,porqueeu?–Euvimatévocêporquefuienviado–disseelenumavozequilibrada–,epor

quemvocêéepelascoisasquefezequeaindapodefazer.Vocênãofoiumaescolhaaoacaso.Foiporvocêesomenteporvocêqueeuvim.Todasasdecisõestomadaspelo Céu são assim.Particulares. É assim a vastidão doCéu, e você sabe como aTerraévasta,evocêdevepensarnela,apenasporuminstante,comoumlugarqueexisteemtodosos seus séculos,emtodasas suasépocas,emtodosos seusmuitosperíodoshistóricos.

“Não há uma alma no mundo a quem o Céu não dedique uma atençãoparticular.NãoháumsuspiroouumapalavraqueoCéudeixedeouvir.”

Euoouvi.Eusabiaoqueeleestavaquerendodizer.Olheiparaoespetáculodasárvores.Imagineicomoseriaparaumaárvoreperdersuas oresdevidoaovento,jáque as ores eram tudo o que elas possuíam.A peculiaridade do pensamentomesobressaltou.Euestremeci.Aânsiadechorarestavaquasemesobrepujando.Maseuluteicontraela.Obriguei-meaolharnovamenteparaele.

–Euconheçotodaasuavida–disseele.–Sequiser,eutemostro.Narealidade,parecequeéexatamenteissooquetereidefazerparaquevocêrealmentecon eemmim. Eu não me importo. Você precisa entender. Não vai poder decidir se nãoentender.

–Decidiroquê?Doquevocêestáfalando?–Estoufalandodeumserviço,eutefaleiarespeito.–Elefezumapausa,eentão

prosseguiu commuita delicadeza. – É umamaneira de usar você e quem você é.

Umamaneiradeusar todososdetalhesdequemvocê é.Éum serviçopara salvarvidasaoinvésdetirá-las,deatenderaprecesaoinvésdedestruí-las.Éumachancedefazeralgumacoisaqueéterrivelmenteimportanteparaoutraspessoasenquantofazum bem para si mesmo. É isso o que signi ca fazer o bem, você sabe. É comotrabalhar para oHomemCerto, exceto pelo fato de que você acredita nisso comtodooseucoraçãoecomtodaasuaalma,tantoassimqueissosetornaseudesejoeseupropósitocomamor.

–Eutenhoumaalma,énissoquevocêquerqueeuacredite?–perguntei.–Éclaroquevocêtem.Vocêtemumaalmaimortal.Vocêsabedisso.Vocêtem

vinte e oito anos, uma idade bastante jovem sob quaisquer parâmetros, e você sesenteimortal,apesardetodososseuspensamentosedesejossoturnosdeacabarcoma própria vida. Você não entende, porém, que a parte imortal de seu ser é suaverdadeiraparte,equetodoorestoseextinguirácomopassardotempo.

–Euseiessascoisas–sussurrei.–Seidoquesetrata.–Eunãotiveintençãodeparecerimpaciente.Estavadizendoaverdade,emesentindoconfuso.

Eumevirei,entendendoapenasparcialmenteoquesepassava,eentreinasaladeestar de meu pequeno lar. Olhei novamente para as paredes cheias de livrosalinhados.Olheiparaaescrivaninhaondeeucostumavaler.Olheiparaolivroabertoemcimadomata-borrãoverde.Algoobscuro, algodecaráter teológico, e a ironiameatingiucomforçatotal.

–Ah, sim, você estábempreparado–disse ele aomeu lado.Era como senósjamaistivéssemosnosseparado.

–EeutenhodeacreditarqueagoravocêéoHomemCerto?–perguntei.Elesorriuaoouvirisso.Eupercebicomocantodoolho.–OHomemCerto – repetiu ele suavemente. –Não, eu não sou oHomem

Certo.EusouMalchiahesouumsera m.Eutedisseissoeestouaquiparatedaruma chance.É a resposta a suas orações, Lucky,mas se você não consegue aceitarisso,vamosdizerqueéarespostaaseussonhosmaisselvagens.

–Quesonhos?–Durantetodosessesanos,vocêsemprerezouparaqueoHomemCertofosseda

Interpol.EleeradoFBI.Eleestavadoladodoshomensbons,etudooqueeledisseparavocêfazerfoiparaobem.Issofoioquevocêsempresonhou.

–Poucoimporta,evocêsabedisso.Eumateiessaspessoas.Eutransformeitudonumjogo.

–Euseiquevocêfez,masissoaindaeraoseusonho.Vocêvemcomigoenão

haverádúvidas,Lucky.Comigo,vocêestarádoladodosanjos.Nósolhamosumparaooutro.Euestavatremendo.Minhavoznãoestavafirme:–Seaomenosissofosseverdade–eudisse–,eufariaqualquercoisa,qualquer

coisaquevocêmepedisse,paravocêeparaDeusnoCéu.Eusofreriaqualquercoisaquevocêexigisse.

Elesorriu,masmuito lentamente,comoseestivesseolhandobemnofundodemim para ver se encontrava alguma ressalva, mas talvez tenha percebido que nãoencontraranenhuma.Talvezeumesmotenhapercebidoquenãohavianenhuma.

Desabeinapoltronadecouroaoladodosofá.Elesesentoudefrenteparamim.–Eu agora voumostrar a você sua própria vida – disse ele. –Não porque eu

precisefazerisso,masporquevocêprecisaver.Esóapóstervisto,vocêserácapazdeacreditaremmim.

Assenti.–Sevocêconseguefazer isso–eudisse, tristonho–,bem,euvouacreditarem

qualquercoisaquevocêdisser.–Prepare-se–disseele.–Vocêvaiouvirminhavozeveroquequerodescrever,

talvez com mais vivacidade do que jamais tenha ouvido ou visto qualquer outracoisa,masaordemeaorganizaçãoserãominhas,ecomfrequênciaessemétodoserámaisdifícilparavocê suportardoqueuma simples cronologia.Éa almadeTobyO’Darequeestaremosexaminandoaqui,nãosimplesmenteahistóriadeumjovem.Elembre-se,nãoimportaoquevocêvejaouoquesinta,estareirealmenteaquicomvocê.Eujamaisoabandonarei.

Q

CAPÍTULOQUATROMALCHIAHREVELAMINHAVIDAAMIM

UANDO OS ANJOS ESCOLHEM UM AJUDANTE, eles nem semprecomeçampelocomeço.Aorastrearavidadeumserhumano,elespodemtalvezcomeçarpelopresente,queaindaestárecente,edepoisregredirum

bom terço do caminho e se concentrar no início, para em seguida retornar aomomento atual, enquanto vão recolhendo as informações acerca de seusenvolvimentos emocionais e os fortalecendo. E jamais acredite em alguém que tedisserquenósnãotemostaisenvolvimentosemocionais.

Nossasemoçõessãodiferentes,masnósastemos.Nósnuncaolhamoscomfriezapara a vidaoupara amorte.Não confundanossa aparente serenidade.A nal, nósvivemosnummundodeperfeitacon ançanoCriador,eestamosvivamentecientesdequeissoquasenuncaocorrecomoshumanos,enóssentimosumapenaefetivadelesporcontadisso.

Maseunãopudedeixardereparar,assimquecomeceiainvestigarTobyO’Darequandogaroto,ansiosoesobrecarregadodecuidadosexcessivos,quenãohavianadadequeelegostassemaisdoqueassistir,tardedanoite,aosmaisbrutaisprogramasdeTVcomhistóriaspoliciais,eelesafastavamsuamentedahediondarealidadedeseuprópriomundoquedespencavaaolhosvistos,easbalasatiradassempreproduziamnele uma catarse, exatamente como os produtores desses programas queriam. Eleaprendeualercedo,aterminarseusdeveresdecasanasaladeestudos,e,porprazer,ele tambémliaos livrosqueeleschamavamde“crimesverdadeiros”,mergulhandofacilmente na bem-escrita prosa deSangue e dinheiro ouSerpentina, ambos deThomasThompson.

Livros sobre crime organizado, sobre assassinos patológicos, sobre psicopatashediondos, tudo isso elepegavanas caixasdeuma livrariana ruaMagazine,NovaOrleans, onde ele morava, embora naquela época jamais sonhasse, nem por uminstante,queumdiaseriaoobjetodessetipodehistória.

ComojerizaaoglamourdomalemOSilênciodosinocentes,elejogaraolivronolixo.Oslivrosdenão cçãosóeramescritosdepoisqueoassassinoerapreso,eTobyprecisavadasolução.

Quandonãoconseguiadormircedo,eleassistiaaostirasematadoresnatelinha,desatentoaofatodequeoimportantenessesprogramaseraocrimesendocometidoenãoaraivaeasaçõeshipócritasdotenentearti cialmenteheroicooudodetetivegenial.

Masessegostoprecocepeloslivrospoliciais,tantode cçãoquantodenão cção,éacoisamenosimportanteemrelaçãoaTobyO’Dare;entãopermita-meretornaràhistóriaquemechamouaatençãoassimquefixeisobreelemeuolharinalterável.

Tobynãocresceusonhandoemserummatadorouumpolicial.Tobysonhavaemsermúsicoeemsalvartodosemsuapequenafamília.

Eoquemeatraiuatéelenãofoiaraivafervilhandodentrodeleedevorando-ovivonessetempopresente,ounotempopassado.Não,euachotãodifícilenxergarnaquelaescuridãoquantoumserhumanotalvezachassedifícilcaminharemmeioaumacortanteventaniaglacialqueatingeseusolhoseseurostoecongelaseusdedos.

O queme atraiu aToby foi uma brilhante, uma resplandecente bondade quenada poderia apagar completamente, uma imensa e cintilante sensação de certo eerradoquejamaissesujeitaraàmentira,nãoimportaparaondeavidaotransportara.

Masgostariadedeixarclaro:ofatodeeuhaverescolhidoummortalparameuspropósitosnão signi caqueomortalvai concordaremvir comigo.AcharalguémcomoTobyjáédifícil;persuadi-loavircomigoéaindamaisdifícil.Vocêpoderiaimaginarque a ideia seria irresistível,masnão ébemassim.Aspessoas trapaceiamcomfrequênciaembuscadesalvação.

Entretanto,haviamuitosaspectosemTobyO’Dareparaqueeumeafastassedeleeodeixassesobaguardadeanjosmenores.

Toby nasceu na cidade deNovaOrleans. Ele era de origem irlandesa a alemã.Tinhaalgumsangueitaliano,masnãosabiadisso,esuabisavópeloladodepaierajudia,mas ele tampouco sabia disso porque descendia de pessoas que trabalhavamduramente e não mantinham esse tipo de registro.Também havia algum sangueespanholnele,pelo ladodopai,datandodaépocaemquea InvencívelArmada sechocou coma costada Irlanda.E, emborahouvesse conversas a respeitodissoporcontadehavernafamíliapessoascomcabelopretoeolhosazuis,elenuncapensoumuitonoassunto.Ninguémemsuafamíliajamaisfalounadasobregenealogia.Elesfalavamsobresobrevivência.

Genealogia pertence aos ricos na história humana.Os pobres sobem e descemsemdeixarvestígios.

Apenas agora, nos tempos doDNA, as pessoas comuns estão enamoradas pelapossibilidadedesaberemsuaorigemgenética,enãotêmmuitacertezadoquefazercomtalinformação,masumaespéciederevoluçãoestáacontecendoàmedidaqueaspessoasprocuramentenderquetipodesanguecorreporsuasveias.

Quanto mais Toby O’Dare tornava-se o matador de aluguel com fama nosubmundo, menos ele se importava com a pessoa que havia sido antes, ou comquemhavia vindo antes dele. Então, àmedida que conseguia osmeios que talveztornassempossível uma investigação acerca de seuprópriopassado, ele se colocavacadavezmaislongedacadeiahumanaàqualpertencia.A nal,elehaviadestruído“opassado”atéondeoenxergava.Então,porquedeveriaseimportarcomoquehaviaacontecido bem antes de seu nascimento, com outras pessoas lutando com asmesmaspressõeseasmesmasmisérias?

Tobycresceunumapartamentonapartenortedacidade,apenasumquarteirãodistante das prestigiosas ruas, e naquela moradia não havia fotos nas paredes denenhumancestral.

Ele tinha apreço por suas avós, mulheres resolutas, mães de oito crianças cadauma,amorosas,carinhosasecommãoscheiasdecalos.Maselasmorreramquandoeleaindaeramuitojovem,eseuspaiseramosfilhosmaisnovosdelas.

Essas avós caram desgastadas pelas vidas que levaram e suas mortes foramrápidas,acompanhadasdomínimodedrama,numleitodehospital.

Noentanto,gigantescosfuneraisseseguiram,cheiosdeprimose ores,epessoaschorandoporqueaquelageração,ageraçãodasgrandesfamílias,estavaacabandonosEstadosUnidos.

Tobynuncaesqueceutodaaquelaquantidadedeprimos,amaioriadosquaiscomcarreirasdemuito sucesso sem jamais cometerumcrimeouumpecado.Mas, aosdezenoveanosdeidade,eleestavacompletamentedistanciadodetodoseles.

No entanto, o matador de aluguel vez por outra investigava secretamentecasamentosprósperos,eusavasuagrandehabilidadecomcomputadorespararastrearumaououtracarreirabem-sucedidadeadvogados,juízesepadresquevinhamdesuafamília.Elebrincarabastantecomessesprimosquandoeracriança,enãotinhacomoesquecercompletamenteasavósqueoscriaramatodos.

Ele foraninadovezporoutrapelasavósnumagrandepoltronademadeiraquefoivendidalogoapóssuasmortesparaumcomerciantedesucata.Ouviraasvelhas

canções que elas cantavam antes de partirem desse mundo. E vez por outra, elecantava pequenos trechos delas.Gangorra, Marjory Bobona, Pega atrás do carro avapor!,ouamelodia suavee torturantedeVádizerpra tiaRhodie,vádizerpra tiaRhodie, ohDeus, o velho ganso cinza estámorto, o que ela estava guardandopara acamadepenadeFatty.

Etambémhaviaascançõesdosnegrosqueosbrancossempreherdaram.Querida, vai lá brincar no seu quintal, não ligue pro que a criança branca disser

porquevocêtemumaalmatãobrancaquantoaneve,éissooqueoSenhordiz.Essaseramcançõesdeumjardimespiritualexistenteantesdasavóspartiremda

Terrae,aosdezoitoanos,Tobyjátinhadadoascostasatudoquediziarespeitoaseupassado,excetoàscanções,éclaro,eàmúsica.

Dezanosatrás,ouaosdezoitoanosdeidade,eleabandonouparasempreaquelemundo.Simplesmentedesapareceudosmeiosondecirculavaqualquerpessoaqueoconhecesse, e, embora nenhumdesses garotos e garotas ou tias ou tios o tivessemculpadoporteridoembora,elesficaramsurpresoseconfusoscomoacontecimento.

Eles imaginavam, com razão, que ele devia ser uma alma perdida em algumaparte.Imaginavam,inclusive,queelehaviaenlouquecido,quehaviasetornadoummendigoequemoravanarua,umimbecilsemeiranembeiraimplorandoporalgoparacomer.Ofatodeelehaverlevadoconsigoumamalacomroupaseseupreciosoalaúde deu-lhes alguma esperança,mas ninguémda família jamais o viu ou ouviufalardelenovamente.

Umaouduas vezes ao longode todos esses anos, umabusca era empreendida,mas,comoprocuravamporTobyO’Dare,umgarotocomumdiplomadeensinomédiodoColégioJesuítaequetocavaalaúdepro ssionalmente,elesnãotinhamamenorchancedeencontrá-lo.

Umdeseusprimosouviabastanteumacertagravaçãoqueele zeraumavezcomTobytocandonumaesquina.MasTobynãosabiadisso;elenãotinhacomosaber.Portanto,essecarinhopotencialjamaischegouaseusouvidos.

Um de seus antigos professores no Colégio Jesuíta procurara em todos osconservatórios de música dos Estados Unidos por um tal deToby O’Dare, masTobyO’Darejamaisseinscreveraemnenhumainstituiçãodessetipo.

Talvez você diga que alguns dos seus parentes caram pesarosos pela perda damúsicasuaveepeculiardeTobyO’Dare,etambémpelaperdadogarotoquetantoamava seu instrumento renascentistaqueparavaparaexplicar,paraqualquerpessoaqueperguntasse,tudosobreele,eporquepreferiatocá-lonasruasaseaventurarpela

guitarraelétricatãoaogostodosídolosdorock.Euachoquevocêentendeoqueestouquerendodizer:suafamíliatinhaumaboa

origem,osO’Dare,osO’Brien,osMcNamara,osMcGowene todosaquelesquehaviamsecasadocomeles.

Masemtodasasfamíliashápessoasruins,epessoasfracas,ealgumaspessoasquenão conseguem, ou não têm a intenção de suportar as provações da vida, e quefracassamespetacularmente.Seusanjosdaguardachoram;osdemôniosqueasestãoobservandodançamdecontentamento.

MassóoCriadordecideoqueefetivamenteacontececomelas.AssimfoicomamãeeopaideToby.MasasduaslinhagensproporcionaramtremendasvantagensaToby:talentopara

amúsica,assimcomooamorporela, foicertamenteodommaisrelevante.Tobytambém herdou uma inteligência aguda e um senso de humor incomum eirreprimível.Tinhaumaimaginaçãoprodigiosaqueocapacitavaaidealizarplanos,atersonhos.Eàsvezesumainclinaçãomísticatomavacontadele.Seufortedesejodetornar-seumpadredominicanoaosdozeanosdeidadenãoarrefeceutãofacilmentecom a chegada das ambições mundanas, como talvez tivesse ocorrido com outroadolescente.

Toby nunca deixou de ir à igreja durante os árduos anos do ensinomédio, e,mesmo que tivesse tido a tentação de faltar àmissa de domingo, ele precisava sepreocuparcomoirmãoecomairmã,enãodeixariadedarumbomexemplo.

SeaomenosumavezelepudessetertidoaoportunidadedevoltarcincogeraçõesnopassadoparaverseusantepassadosestudandoaToránoiteediaemsuassinagogasnaEuropaCentral,talvezelenãohouvessesetornadoomatadorqueera.SepudesseterretornadoaindamaisnotempoevistoseusancestraispintandotelasemSiena,naItália, talvez ele tivesse tido mais coragem para perseguir seus mais acalentadosdesígnios.

Maselenãofaziaamenorideiadequeessaspessoashaviamexistido,ouque,peloladodesuamãe,geraçõesatrás,naépocadeHenriqueVIII,padres ingleseshaviamsidomartirizadosporsuafé,ouqueseubisavôpeloladopaternotambémtiveraodesejodetornar-sepadre,masnãoalcançaraasnotasnecessáriasnaescolaparaquetaliniciativapudessetersematerializado.

Quase nenhum mortal na Terra conhece sua ancestralidade anterior a assimchamada Idade das Trevas, e somente as grandes famílias podem penetrar nasprofundascamadasde tempoparadelasextrairumasériedeexemplosquepossam

viraserinspiradores.Eapalavra “inspirado”nãodeve serdesperdiçadanocasodeToby,porque,na

condição de matador de aluguel, ele sempre foi inspirado. E foi inspirado comomúsico,antesdisso.

Seu sucesso comomatador derivou em grandemedida do fato de que, alto egracioso como era, abençoado com a beleza como era, ele não se parecia comninguémemparticular.

Com doze anos de idade, ele já possuía em suas características a permanenteestampada inteligência, e,quando estava ansioso,havia algode frio em seu rosto,umolharquedenotavaumabemfundadadescon ança.Masissopassavaquasequeinstantaneamente,jáquenãoeraalgoqueeledesejavaespelharetampoucodesejavacultivar em si. Ele se inclinava na direção da calma, e as pessoas quase sempre oconsideravamnotáveleatraente.

Toby tinha1,92mde altura antesde se graduarno ensinomédio, seus cabeloslourosdesenvolveramumatonalidadeacinzentadaeseusolhoscinzaseramcheiosdeconcentraçãoedeumadelicadacuriosidade,alémdenãoofenderemninguém.

Raramente franzia o cenho, e, quando saía para uma caminhada, apenas umacaminhada solitária, aoobservador casual elepoderiaparecer ligeiramentevigilante,como alguém impaciente para que o avião aterrissasse na hora certa, ou alguémesperandoansiosamenteumcompromissoimportante.

Sefossesurpreendido,eletransmitiaumressentimentoeumadescon ança,masdeixavaessessentimentosdeladoquasequeinstantaneamente.Elenãotinhadesejoalgumdeserumapessoainfelizouamargurada,eaolongodotempotiveraamplosmotivosparatornar-seambos.Resistirabravamente.

Elenãobebia.Jamaisbebeuemtodaavida.Odiava.Dainfânciaemdiantepassouasevestirbem,principalmenteporqueascrianças

naescolaqueele frequentavavestiam-seassim,eelequeria sercomoelas, enão sesentiahumilhadoemherdaras roupasusadasde seusprimos,que incluíamblazersazul-marinhos, calças cáquie camisaspoloemtonspastel.OsgarotosdonortedacidadedeNovaOrleanstinhamumapredileçãoespecialporessetipoderoupa,eelecomeçouadescobrireacultivaressastendências.Tambémtentavafalarcomoessesgarotose, lentamente, começouaeliminarde seudiscursoos fortes indicadoresdepobreza e dureza que sempre marcaram os insultos, as reclamações berradas e ashorríveisameaçascaracterísticasdeseupai.Jáavozdamãeeradesprovidadesotaqueeagradávelaoouvido,eelefalavamuitomaiscomoeladoquecomoqualqueroutro

membrodesuafamília.EleliaOmanualo cialdoalunoelegantenãocomoumasátira,mascomoalgoa

serobedecido.Eelesabiacomoperegrinarpelaslojasdesegundamãoembuscadotipoperfeitodebolsadecouroparalevarseuslivros.

Na paróquia da Escola Sagrado Nome de Jesus, ele percorria a pé as ruasgloriosamenteverdesapartirda ladecarrosdaavenidaSt.Charles,eascasasnovase magni camente pintadas pelas quais passava o enchiam de uma saudade vaga esonhadora.

AavenidaPalmernonortedacidadeerasuafavorita,eàsvezestinhaasensaçãodeque, sepudessealgumdiavivernumadascasasbrancasdedoisandaresdaquelarua,experimentariaafelicidadeperfeita.

Muitocedo,eleentrouemcontatocomamúsicanoConservatórioLoyola.Efoiosomdoalaúde,numconcertogratuitodemúsicarenascentista,queoafastoudeseuardentedesejodetornar-sepadre.

Assimqueconheceuumaprofessoragentilquesedispôsalhedaraulasdegraça,Toby deixou de ser coroinha e passou a ser um aluno apaixonado. As notas queproduzia no alaúde eram tão puras que ela cou vivamente impressionada. Seudedilhadoerarápido,etocavacomumaexpressividadebemacimadamédia,esuaprofessora cavamaravilhada aoouvir asbelas áriasque ele tocavadeouvido,queincluíaascançõesqueeumencioneiantesequesempreoobsedaram.Eleouviasuasavós cantando para ele enquanto tocava. Às vezes, tocava para suas avós empensamento.Comdestreza, tocava cançõespopularesno alaúde,dandoa elasumasonoridadecompletamentenovaeumailusãodeintegridade.

Numacertaocasião,umdeseusprofessorespôsosdiscosdocantorpopularRoyOrbisonnasmãosdeToby,eelelogodescobriuqueconseguiatocarascançõesmaislentas daquele grande músico, conferindo a elas, através do alaúde, a suaveexpressividadequeOrbisonalcançaracomsuavoz.ElelogopassouaconhecertodasasbaladasqueOrbisongravouemtodaasuacarreira.

Eenquantotocavatodasasmúsicaspopularesemseupróprioestilo,eleaprendiauma composição clássica para cada canção popular, demodo que podia trocar deestilo sempre que desejava, trazendo a beleza contagiante e rápida de Vivaldi emdeterminadomomentoeosofrimentoternoepesarosodeOrbisonemoutro.

Suavidaerabastanteagitada,aindamaiscomoestudodepoisdaescola,semfalarnasexigênciasdocurrículodoColégioJesuíta.Então,nãoeramuitodifícilmanteruma distância prudente dos garotos e garotas ricos que conhecia, pois, apesar de

gostarmuitodeváriosdeles,estavadeterminadoajamaispermitirquenenhumdelespusesseospésnodesmazeladoapartamentoemquemoravanacompanhiadepaisbêbados,qualquerdosdoispodendohumilhá-loirremediavelmente.

Elefoiumacriançaaltivae,maistarde,umassassinoaltivo.Mas,naverdade,elecresceu sentindo medo, cheio de segredos, uma criança permanentementeaterrorizadadiantedaviolênciamaisindigna.

Maistarde,jánacondiçãodematadorprontoeacabado,elesentiaprazercomoperigo,àsvezesdivertindo-selembrandodosprogramasdetelevisãoqueadoraranainfância,pensandoqueagoraestavavivendoalgomuitomaisgloriosamentesombriodoque jamais lhehaviasidorevelado.Apesardenuncaadmitirparasimesmo,elesentiaalgumorgulhonesseramoespecí codomal.Odesesperotalvezfosseotemaque cantasse para simesmo sobre o que fazia,mas uma vaidade bastante re nadamantinha-sesubjacenteatudoisso.

Ele tinha, além dessa paixão pela busca, uma característica verdadeiramentepreciosaqueoseparavacompletamentedeoutrosmatadoresdeextratoinferior.Eeraa seguinte: ele não se importava com o fato de estar vivo ou morto. Ele nãoacreditava no inferno porque não acreditava no céu. Ele não acreditava no diaboporque não acreditava em Deus. E, embora se lembrasse da ardente e, às vezes,hipnóticafédesuajuventude;aindaqueelearespeitassebemmaisdoquequalquerumjamaispudesseadivinhar,elanãotraziaacalentoalgumàsuaalma.

Repetindo, ele sentira vontade de ser padre na infância, e não se afastara desseintuito por haver caído em desgraça. Mesmo quando tocava o alaúde, ele rezavaconstantementeparaquebelasmúsicassaíssemdele,efrequentementevislumbrava,apartirdepreces,novasmelodiasqueamava.

Aquivaleapenaressaltarqueeleumaveztambémsentiuvontadedesersanto.Esentiuvontade,apesardapoucaidade,decompreendertodaahistóriadesuaigreja,esedeleitaraemlerarespeitodeSantoTomásdeAquinoemparticular.Pareciaqueseus professores estavam sempre mencionando aquele nome, e quando um padrejesuítaveiodeumauniversidadepróximadarumapalestraparasuaclasse,elecontouuma história sobre o santo que cou permanentemente alojada na memória deToby.

AhistóriadiziarespeitoaofatodequeograndeteólogoTomásdeAquinohaviatidoumavisãoemseusúltimosanosdevidaquefezcomqueelesevoltassecontraseu trabalho anterior, a portentosaSumaTeológica. “É palha em excesso”, dizia osantoàquelesquepediam,emvão,queeledesseprosseguimentoàobra.

A história era algo que jamais lhe saiu da cabeça durante todos esses anos,mantendo-seinclusiveatéaépocaemqueelesurgiudiantedemeuincessanteolhar.Maselenãosabiaseaquiloerafatoouapenasumabelaobrade cção.Muitascoisasditas a respeito dos santos eram inverdades. E, no entanto, isso jamais pareceu serumaquestãorelevante.

Àsvezes,emseusúltimoseimplacáveisanospro ssionais,quandoestavacansadode tocar alaúde, ele tomava notas de seus pensamentos acerca dessas coisasrememoradasquehaviamsigni cadomuitoparaelenopassado.Eleconcebeuumlivro que chocaria o mundo:Diário de ummatador. Oh, ele sabia que outros jáhaviamescritotaismemórias,maselesnãoeramTobyO’Dare,queaindalialivrosde teologia quando não estava abatendo banqueiros em Genebra e Zurique; que,levandoconsigoumrosário, in ltrara-seemMoscoueLondresotemposu cienteparacometerquatroassassinatosestratégicosnumintervalodesessentaeduashoras.ElesnãoeramTobyO’Dare,queumavezquiserarezarmissaparaasmultidões.

Eudissequeelenãoligavaparaofatodeestarvivooumorto.Deixe-meexplicar:elenãoparticipavademissõessuicidas.Gostavamuitodavidaparafazeralgoassim,embora jamais admitisse isso. Também aqueles para quem ele trabalhava nãoqueriamqueseucorpofosseencontradonacenadeumatentativadeassassinato.

Mas ele não ligava, verdadeiramente, se morreria hoje ou amanhã. E estavaconvencidodequeomundo,emboranadamaisdoqueodomíniomaterialistaquepodemos ver com nossos próprios olhos, seria bemmelhor sem ele. Às vezes eledesejavapositivamenteestarmorto.Masessesperíodosnãoduravammuitotempo,eamúsica,acimadetudo,afastavaessespensamentosdesuacabeça.

Deitava-seemseuluxuosoapartamentoe cavaouvindoasvelhascançõeslentasdeRoyOrbison,ouasmuitasgravaçõesdecantoresdeóperaquepossuíaemcasa,ouasgravaçõesdemúsicasescritasparaalaúde,especialmentedaépocadarenascença,quandooinstrumentoerabastantepopular.

Comoelesetornaraessacoisa,esseserhumanosombrio,acumulandodinheiropara o qual não tinha utilidade,matandopessoas cujos nomes nemmesmo sabia,penetrandoasmaisperfeitasfortalezasquesuasvítimaspoderiamconstruir,levandoamortedisfarçadodegarçom,demédicovestidodejalecobranco,demotoristadeumcarroalugado,oumesmocomoummendigonarua,adernandotropegamenteemdireçãoaohomemquefurariacomsuaagulhafatal?

O mal contido nele me causava arrepios, até onde um anjo consegue cararrepiado,masabondadequebrilhanelemeatraiinteiramente.

RetornemosàquelesanosiniciaisquandoeleeraTobyO’Dare,comumirmãoeumaimãmaisnovos,JacobeEmily–aotempoemqueelelutavaparaterumbomdesempenhonamais rígidaescoladeNovaOrleanscombolsa integral, éclaro,damesmamaneiraqueele trabalharaatésessentahorasporsemanatocandoalaúdenarua paramanter as crianças e suamãe alimentadas e vestidas, e administrandoumapartamentonoqualninguémalémdafamíliapunhaospés.

Tobypagavaascontas.Eleenchiaageladeira.Elefalavacomosenhorioquandoosuivosdesuamãeacordavamovizinhodolado.Eraelequemlimpavaovômitoeapagavaofogoquandoagorduraescapavadafrigideiraeatingiaachamadogáseelacaíanochãocomocabelopegandofogoedandogritoshistéricos.

Com um outro marido, talvez sua mãe tivesse sido uma pessoa carinhosa eamável,masseumaridoforaparaaprisãoquandoelaestavagrávidadoúltimo lho,eelajamaisfoicapazdesuperarisso.Umpolicialqueachacavaprostitutasnasruasdo Bairro Francês, o homem acabou sendo esfaqueado e morto na penitenciáriaAngola.

Tobytinhasomentedezanosquandoissoaconteceu.Poranos,elabebeuaté carbêbada.Depoissedeitavaemcimadamesae cava

murmurandoonomedomarido: “Dan,Dan,Dan.”EnãohavianadaqueTobypudesse fazerparaconsolá-la.Elecompravavestidosbonitosparaela, e levavaparacasa cestas de frutas e doces e, por uns poucos anos antes dos bebês irem para ojardim de infância, ela não passara de uma bebedora noturna, labutando bastantecomosfilhosapontodelevaratodosinclusiveparaasmissasdedomingo.

Naqueles dias Toby assistia à TV com ela, os dois na cama dela, e elacompartilhava o amor que ele sentia pela polícia derrubando portas e pegando osmaisdepravadosassassinos.

Mas,umavezqueospequeninosdeixaramdeserumestorvo,suamãecomeçouabeberdediaeadormirdenoite,eTobyfoiobrigadoasetornarohomemdacasa,vestindo cuidadosamente Jacob eEmily todas asmanhãs e levando-os cedopara aescola,demodoatertempodechegarcompontualidadeemsuaprópriaescola,paraondeiadebonde,compouquíssimotempoatémesmoparafazerosdeveresdecasa.

Comquinzeanosde idade, ele já estavaestudandoalaúdee composiçãoparaoinstrumentotodasastardesdasemanahaviadoisanos,eagoraJacobeEmilyfaziamseusdeveresdecasanumlocalpertodeondemoravam,eseusprofessoresaindalhedavamauladegraça.

– Você possui um grande talento natural – dizia sua professora, e o instava a

mudar para outros instrumentos que talvez pudessem lhe dar algum sustento nofuturo.

Toby sabia, contudo, que não podia dedicar tempo su ciente a isso, e, apóstreinarEmilyeJacobavigiarecuidardamãealcoólatra,elepassouasairparatocarnasruasdoBairroFrancêstodosossábadosedomingos,oestojodoalaúdeabertoaosseuspésenquantotocava,ganhandocadacentavoqueconseguiaparasuplementaramagrapensãodeixadapelopai.

Ofatoeraquenãohaviapensãoalguma,emboraTobyjamaisfalassesobreissocomninguém.Haviaapenasosestipêndiossilenciososdafamíliaeasdoaçõesfeitaspor outros policiais que não haviam sido nempior nemmelhor do que o pai deToby.

EToby tinha de ganhar dinheiro para qualquer coisa extra ou “legal”, para osuniformes de que os irmãos necessitavam e para quaisquer brinquedos que elesviessematernaqueleapartamentomiserávelqueTobytantodetestava.E,emboraelese preocupasse a cada momento com a condição de sua mãe em casa e com ahabilidade de Jacob emmantê-la em silêncio caso ela tivesse um ataque de fúria,Toby sentia um grande orgulho em tocar seu instrumento e envaidecia-se com asatitudesdospassantesquenuncadeixavamdejogarpolpudassomasdedinheironoestojosepassassemalgumtempoouvindo-o.

Mesmoque o estudo sério demúsica andasse lentamente paraToby, ele aindasonhavaementrarparaoConservatóriodeMúsicaquandoomomentochegasse,eemconseguirumempregoparatocaremalgumrestauranteondesuarendapudessecar estável. Nenhum dos planos estava, em hipótese alguma, além de suas

possibilidades, e ele vivia para o futuro enquanto lutava desesperadamente nopresente.Todavia, quando tocava o alaúde, quando fazia com facilidade dinheirosu cienteparapagaroaluguelecomprarcomida,eletinhaumasensaçãodealegriaedetriunfoqueerasólidaebela.

Elenunca cessavade tentar alegrar e consolar amãe e de assegurar a ela que ascoisas cariam melhores do que estavam naquele momento, que sua dordesapareceria equealgumdia eles viveriamemumacasaverdadeirano subúrbio eteriamumquintalparaEmilyeJacobeumverdadeirogramadonafrenteetodasasoutrascoisasqueumavidanormaloferecia.

Em algum canto recôndito de sua mente, ele pensava que algum dia, quandoJacobeEmilyestivessemadultosecasadosesuamãeestivessecuradaporcontadetodo o dinheiro que ele faria, talvez ele voltasse a pensar no seminário. Ele não

conseguia esquecer o que signi cara para ele, no passado, servir na missa comocoroinha.Elenão conseguia esquecer que se sentira chamado a tomar a hóstia emsuasmãoseadizer:“Esseéomeucorpo”,tornando-a,portanto,aprópriacarnedeNossoSenhorJesusCristo.Epordiversasvezes,enquantoele tocavanasnoitesdesábado, ele se voltava para amúsica litúrgica que deleitava a eternamentemutantemultidão tanto quanto as canções populares de JohnnyCash e Frank Sinatra quedeleitavamaaudiência.Eletinhaumvisualetantocomomúsicoderua,semchapéue elegantenumpaletóde lã azul-marinhoe calçasde lã escuras, e atémesmoessascaracterísticasdavamaeleumasublimevantagem.

Quantomelhor cava,tocandosemesforçoostemassolicitadosealcançandoomáximodoinstrumento,maisosturistaseosmoradoreslocaispassavamaamá-lo.Logoelepassouareconhecerosouvintesregularesdedeterminadasnoites,quenuncadeixavamdedaraeleasmaioressomasdedinheiro.

Elecantavaumhinomodernoemespecial:“eusouopãodavida,quemvieratéMim não sentirá fome...” um hino estimulante, que utilizava toda a gama de seuinstrumentoe todaa suahabilidadepara esquecer tudoomais enquanto tocava, eaquelesqueseaglomeravamaoredordelesempreorecompensavamporouvi-lo.Emtotaldeslumbramento,eleolhavaparabaixoeviaodinheiroquepoderiaservirparaque adquirisse um pouco de paz por uma semana ou até mesmo mais. E sentiavontadedechorar.

Também tocava e cantava canções que ele mesmo compunha, variações sobretemas que ouviranos discos que seuprofessor lhe dera.Ele combinava as árias deBachcomMozarteatémesmoBeethoveneoutroscompositorescujosnomeselepróprionãoconseguiaselembrar.

Numa determinada época, ele começou a tomar notas de algumas de suascomposições. Sua professora o ajudava a copiá-las por inteiro.Música para alaúdenão era escrita como música comum. Era escrita em tablatura, e isso ele amavaespecialmente.Masaverdadeirateoriaepráticadamúsicaescritaeramdifíceisparaele. Se aomenos pudesse aprender o su ciente para algum dia poder dar aula demúsica,pensavaele,mesmoparacriançaspequenas,essaseriaumavidaquelhedariaalgumsustento.

Empouco tempo Jacob eEmily estavamaptos a se vestir sozinhos, e tambémelestinhamoolhargravedepequenosadultos,comoTobytivera,seguindosozinhospara a escolanobondeda avenidaSt.Charles enunca levandoninguémpara casaporqueseuirmãoosproibira.Elesaprenderamalavareapassarascamisaseblusasda

escolaetambémaesconderodinheirodamãeeadistrairaatençãodelacaso casseenraivecidaecomeçasseadestruiracasa.

– Se vocês tiveremdedespejar isso aqui pela garganta dela, então façam isso –Tobydisseaeles,poisaverdadeeraqueàsvezesnadaalémdabebidaimpediasuamãedeterumataque.

Euobservavatodasessascoisas.Euviravaaspáginasdavidadeleeerguiaaluzparalerasletrasmiúdas.Euoamava.Eu via eternamente oLivrodeoraçõesdiárias emcimade suaescrivaninhae, ao

ladodele, umoutro livro que ele lia de tempos em tempospor puroprazer e, àsvezes,liaparaJacobeEmily.

EsselivroeraOsanjos,dofreiPascalParente.EleoencontraranamesmalojadaruaMagazineemqueencontraraseuslivrossobrecrimeseassassinatossangrentos,eocomproujuntamentecomumabiogra adeSantoTomásdeAquinoescritaporG.K.Chesterton,aquallutavadetemposemtemposparaler,maseradifícil.

Talvez vocêdigaque ele levavaumavidanaqual oque lia era tão importantequantooquetocavanoalaúde,eessascoisaseramtãoimportantesparaelequantosuamãe,eJacob,eEmily.

Seuanjodaguarda,sempredesesperadoparaguiá-loatravésdocaminhocorretonamaiscaóticadasépocas,pareciaperplexopelacombinaçãodeamoresqueassaltavaaalmadeToby,maseunãovimparaobservaresseanjo,masapenasparaverToby,não o anjo que labutava tão duramente paramanter a chama da fé acesa em seucoraçãoparaqueelepudesse,dealgumamaneira,salvartodoseles.

Num dia de verão, enquanto lia na cama,Toby deitou-se de bruços, tirou atampadeumacanetaesublinhouessaspalavras:

Quanto à fé, precisamos apenas reter que os anjos não são dotados decardiognose(conhecimentoacercadossegredosdocoração),nemdetêmumcertoconhecimentodeatosfuturosdelivre-arbítrio;essessendoprerrogativasexclusivamentedivinas.

Ele adorara aquela sentença, e adorara a atmosfera de mistério que o envolviaquandoliaesselivro.

Na realidade, ele não queria acreditar que anjos eram desprovidos de coração.Umavezelehaviavistoemalgumlugarumantigoquadrodacruci caçãonoqualosanjosacimaestavamchorando,eelegostavadepensarqueoanjodaguardadesua

mãechoravaquandoaviabêbadaedesanimada.Seanjosnãopossuíamcoraçõesounãoosconheciam,elenãoqueriasaberdisso,aindaqueoconceitoocativasse,eanjosocativavam,eeleconversavacomseupróprioanjosemprequepodia.

EleensinouEmilyeJacobaseajoelhartodasasnoitesearezaraantigaprece:

AnjodeDeus,queridoguardiãoAquemoamordeDeusparacáenvia,Fiquesempreaomeulado,Parailuminareguardar,paragovernareguiar.

Eleatécomprouumquadrocomapinturadeumanjodaguardaparaeles.Eraumquadrobemcomum,eelevirapelaprimeiravezumareproduçãodelequandoaindaestavanaescolaprimária.Cobriueemoldurouestequadrocomosmateriaisque podia comprar no armazém. E pendurou-o na parede do quarto que os trêsdividiam, ele e Jacob na beliche e Emily encostada na parede dos fundos em suaprópriacama,quepodiaserdobradadedia.

Ele escolhera umamoldura dourada para o quadro, e gostava da faixa bordadaqueacobria,oscantosfolhososeaamplamargemqueelaestabeleciaentreomundodapinturaeopapeldeparedeembaçadodeseupequenoquarto.

Oanjodaguardaeraimensoetinhafeiçõesfemininas,comabundantescabelosdouradosegrandesasascompontasazuladas,eusavaummantosobreacompridatúnica branca enquanto pairava sobre duas pequenas crianças, uma menina e ummenino,queatravessavamjuntasumatraiçoeirapontecheiadeburacos.

Quantosmilhõesdepequenascriançasviramessapintura?–Olhe–TobydiziaaEmilye Jacobquandoeles seajoelhavamparaaspreces

noturnas. –Vocês podem sempre conversar com seus anjos da guarda. – Ele lhescontavacomoelepróprioconversavacomseuanjo,principalmentenaquelasnoitesnocentrodacidadeemqueasgorjetaseramfracas.–Eudigo,tragamaispessoas,ecomcertezaeletraz.–Eleinsistiacomisso,emboraJacobeEmilyrissem.

Mas foi Emily quem perguntou se eles podiam rezar também para o anjo daguardadamãeparaqueelaparassedeficarbêbadacomtantafrequência.

Isso deixouToby chocado porque ele jamais havia falado a palavra “bêbada”debaixodaqueleteto.Elejamaisusaraapalavra“bêbada”comninguém,nemmesmocomseuconfessor.Eele couimpressionadocomofatodeEmily,comapenasseteanosnessaocasião,saberdetudo.Apalavraproduziuumsombriocalafrionofundodeseuser,eeledisseparaseusdoisirmãozinhosqueavidanemsempreseriaassim,

queeleiriacuidarparaqueascoisasficassemcadavezmelhores.Erasuaintençãomanterapromessa.NoColégioJesuíta,Tobylogopassouaseroprimeirodaturma.Tocavaquinze

horas seguidas aos sábados e domingos para gerar uma receita su ciente que odesobrigassedetocarapósasaulaseque,aomesmotempo,garantisseacontinuidadedeseusestudosmusicais.

Eletinhadezesseisanosquandoumrestauranteocontratouparatocarnasnoitesde sábadoedomingoe, emboraganhassemenosdinheiroassim, sabiaqueeraumempregoseguro.

Quandonecessário,eleserviaasmesaserecebiaboasgorjetas.Masoquemaissedesejavadeleeraasonoridadeespirituosaeincomumquetiravadeseuinstrumento,eeleficavafelizporisso.

Todoessedinheiroquejuntouaolongodosanos,eleescondeuemdiversoslocaisdo apartamento– em luvasnas gavetas, embaixodeumamesa solta, embaixodocolchãodeEmily,debaixodabasedofogãoeatémesmodentrodageladeira.

Num bom m de semana, ele fazia centenas de dólares e, quando completoudezesseteanos,oconservatóriolhedeuumabolsaintegralparaestudarmúsicacomseriedade.Eleconseguira.

Aquele foi o diamais feliz de sua vida, e ele chegou em casa vibrando com anovidade.

–Mãe,euconsegui,euconsegui–disseele.–Tudovaimelhorar,eugaranto.Quandocerta vez ele se recusouadardinheiropara amãe comprarbebida, ela

pegouseualaúdeeoarrebentounamesadacozinha.Ele cou sem ar. Pensou que fosse morrer. Imaginou se conseguiria morrer

simplesmenterecusando-searespirar.Ele coudoenteesesentounacadeiracomacabeça baixa e as mãos entre os joelhos, e ouviu a mãe vagar pelo apartamento,soluçandoemurmurandoeamaldiçoandoemlinguajardebaixocalãotodosaquelesaquemelaculpavaportersetornadooqueera,discutindovezporoutracomsuamãemortae,emseguida,balbuciandosemparar:

–Dan,Dan,Dan.Vocêsabeoqueoseupaimedeu?–berravaela.–Vocêsabeoqueeletrouxepramimdaquelasmulheresdocentrodacidade?Vocêsabeoqueeledeixouaquicomigo?

AquelaspalavrasdeixaramTobyaterrorizado.Oapartamentofediaabebida.Tobyqueriamorrer.MasEmilyeJacobdesceriam

aqualquermomentodobondenaavenidaSt.Charlesaumquarteirãodali.Elefoi

atéalojadaesquina,comprouumagarrafadebourbon,apesardesermenordeidade,levouparacasaeforçousuamãeaengolirtodooconteúdoatéqueeladesmaiasseemcimadocolchão.

Depois disso, o praguejar se acentuou.Quando as crianças estavam se vestindoparairparaaescola,elaosxingavadospioresnomesquealguémpodeimaginar.Eracomo se um demônio vivesse dentro dela. Mas não era um demônio. A bebidaestavacomendoocérebrodela,eelesabiadisso.

Suamais recenteprofessoradeu-lheumnovoalaúde,umexemplarmuitomaiscarodoqueoanteriorquehaviasidoquebrado.

– Eu te amo por ter feito isso – disse ele, e deu-lhe um beijo na bochechamaquiada,eelalhedissenovamentequeumdiaeleseriafamosocomseualaúdeeteriaumacoleçãodegravaçõesemseunome.

–Deusmeperdoe–rezavaeleenquantoseajoelhavanaIgrejadoNomeSagrado,levantandoos olhos para a longa e sombrianave emirandoo altar. –Eu gostariamuitoqueminhamãemorresse.Masnãopossodesejarisso.

Astrêscriançaslimparamolocaldecimaabaixonaquele mdesemana,comosemprefaziam.Eela,amãe,estavadeitadacomosefosseumaprincesadecontodefadas vitimadaporumencanto, a boca aberta, o rosto liso e jovem, seuhálitodebêbadaquasedoce,comoxerez.

Jacobsussurrou:–Coitadinhadamamãebêbada.IssodeixouTobytãochocadoquantodaquelavezemqueEmilyhaviaditoalgo

parecido.Quando estava nametade do último ano,Toby se apaixonou por uma garota

judia da EscolaNewman, a escola preparatória deNovaOrleans que era tão boaquantoajesuíta.SeunomeeraLiona,eelaiaparaoColégioJesuíta–umaescolasóparameninos– cantarnopapelprincipaldeummusical aqueTobyhaviamuitodesejava assistir, e quando ele perguntou se ela queria acompanhá-lo ao baile deformatura,eladissesimimediatamente.Elenãocabiaemsi.Elaeraumaencantadorabeldadecomumamaravilhosavozdesoprano,eestavagostandomesmodele.

Nashorasqueseseguiramaobailedeformatura,elessesentaramnoquintaldacasadelanonortedacidade,doladodeforadesuabelacasanaavenidaNashville.Nojardimacolhedoreperfumado,elesedescontroloueacaboucontandoparaelaarespeitodamãe.Elademonstrouapenassolidariedadeecompreensão.Antesdosolraiar,elesentraramnoquartodehóspedesdafamíliaetornaram-seíntimosumdo

outro.Elenãoqueriaqueelasoubessequeeraaprimeiravezdele,masquandoelaconfessouqueeraaprimeiravezdela,eleadmitiu.

Eledissequeaamava.Oqueafezchorar,eeladissequejamaisconheceraalguémcomoele.

Comseuslongoscabelospretoseolhosescuros,suavozsuaveetranquilizadora,esuaimediatacondescendência,elapareciasertudooqueelesempredesejara.Possuíauma força que ele admirava intensamente e uma inteligência seca. Ele sentia ummedohorrendodeperdê-la.

Liona cava ao seu lado no calor da primavera enquanto ele tocava na ruaBourbon;elalevavaparaeleCoca-Colasgeladasquecompravanaquitandae cavaempé a algunsmetros de distância ouvindo-o.Apenas seus estudos amantinhamdistantedele.Elaerainteligenteetinhaumgrandesensodehumor.Adoravaosomdoalaúdeeentendiaporqueotimbresingulareobeloformatodoinstrumentooentusiasmavam tanto. Ele adorava a voz dela (que era bemmais bonita do que adele), e logo eles começaram a testar um dueto. As canções dela eram as daBroadway,oquetrouxeparaseurepertórioumsongbookcompletamentediferente,e,quandootempopermitia,elestocavamecantavamjuntos.

Numa determinada tarde – depois de sua mãe conseguir car bem por umperíodo de tempo –, ele levou Liona para conhecer sua casa e, por mais que seesforçasse, elanão conseguiu escondero choquediantedo apartamentopequeno esuperpovoado;edojeitobêbadoedesleixadodesuamãe,sentadaàmesadacozinha,fumando e jogando paciência. Ele tinha certeza de que Emily e Jacob estavamenvergonhados.Jacobperguntaraaeledepois:

–Toby,comoéquevocêpôdetrazerelaaquicomamamãenaquelascondições?Comoéquepôdefazerumacoisadessas?

Airmãeoirmãooolhavamcomoseelefosseumtraidor.Naquelanoite,depoisqueTobyterminoudetocarnaruaRoyal,Lionaveiose

encontrar com ele e os dois conversarampor horasmais uma vez e novamente seenfurnaramnoescuroquartodehóspedesdacasadospaisdela.

MasTobysentiaumavergonhacrescenteporhavercon adoseumaisprofundosegredo a alguém. E sentia no fundo do coração que não era digno de Liona.Ocarinho e a delicadeza dela o deixavam confuso. E ele também acreditava que erapecadofazeramorcomelaquandonãohaviaamenorchancedequeelespudessemvirasecasaralgumdia.Eletinhatantaspreocupaçõesquecortejá-ladeacordocomas regras normais durante o período de faculdade de ambos parecia-lhe uma total

impossibilidade.TinhaummedoterríveldequeLionasentissepenadele.Àmedidaqueoperíododeexamesseaproximava,nenhumdosdoistinhatempo

paraverumaooutro.Nanoite emque ele se graduouno ensinomédio, amãedeToby começou a

beber às quatro horas, e nalmente ele ordenou que ela casse em casa. Ele nãoconseguia suportar a ideia de vê-la dirigindo-se ao evento com a anágua aparentedebaixodasaia,eobatomborradoeasbochechascomexcessoderuge,eocabeloum emaranhado só. Ele tentou penteá-la por um tempo, mas ela o estapeouseguidamenteatéque,cerrandoosdentes,eleagarrou-apelospunhoseberrou:

–Paracom isso,mamãe!–Eexplodiuemsoluçoscomose fosseumacriança.EmilyeJacobficaramaterrorizados.

Suamãe chorava de braços cruzados namesa da cozinha enquanto ele tirava aroupadesair.Eletambémnãoiriaparasuaformatura.Osjesuítaspodiamenviarodiplomapelocorreio.

Maseleestavacomraiva,comumaraivaquejamaissentiraemtodaavidae,pelaprimeiravezemsuavida,eleachamoudebêbadaedeputa.Eletremiaegritava.

EmilyeJacobsoluçavamnoquarto.Suamãe começou a espinafrar.Eladizia quequeria sematar.Eles lutarampor

umafacadecozinha.–Paracomisso,paracomisso!–disseelecomosdentescerrados.–Tudobem,

euvoupegaramalditabebida–disseele,efoiatrásdeumengradadodecerveja,deuma garrafa de vinho e de uma garrafa debourbon. Agora ela contava com osuprimentoaparentementeinterminávelquedesejava.

Depoisde tomarumacerveja,ela implorouparaqueele sedeitassenacamaaolado dela. Ela tomou o vinho em generosas goladas. Ela chorou e pediu que elerezasseorosáriocomela.

–Éumaânsiadosangue–disseela.Elenãorespondeu.Elea levaraareuniõesdosAlcoólicosAnônimosemdiversasoportunidades.Elanão cavanemporquinzeminutos.

Finalmente,eleseassentoupertodela.Eosdoisrezaramorosáriojuntos.Comavoz baixa, despojada de dramas ou reclamações, ela contou a ele como o pai delahavia morrido em decorrência da bebida, um homem que ele nunca chegou aconhecer.Etambémopaidelemorreradomesmoproblema.Elacontouaelesobretodosaquelestiosquehaviamsidoigualmentealcoólatras.

–Éuma ânsia do sangue– repetiu ela. –É com certeza uma ânsia do sangue.

Você precisa car comigo,Toby. Você precisa rezar o rosário de novo comigo.QueridoDeus,meajude,meajude,meajude.

– Escuta aqui, mãe – disse ele. – Eu vou ganhar muito mais dinheiro com amúsica.Nesse verão, eu vou ter um emprego de tempo integral num restaurante.Durantetodooverão,euvouganhardinheirotodasasnoitessetevezesporsemana.Dápraveroqueissosignifica?Euvouganharmaisdinheirodoquenunca.

Ele prosseguiu enquanto os olhos dela caram embaçados e o vinho a deixounumestadodeestupor.

–Mãe,euvouconseguirumdiplomademúsicadoconservatório.Euvoupoderdaraulademúsica.Derepenteeuvouatépodergravarumdiscoalgumdia,sabia?Maseuvouteromeudiplomademúsica,mãe.Voupoderdaraula.Vocêtemdeaguentar.Vocêprecisaacreditaremmim.

Elaomiroucomolhosquemaispareciamblocosdemármore.–Olhaaqui,depoisdessa semanaagora, euvou tero su cienteprapagaruma

faxineirapraviraqui,arrumaracasa,lavarroupaetudoomais,eajudaraEmilyeoJacob comos deveres de casa. Eu vou trabalhar o tempo todo.Vou tocar na ruaantesdo restaurante abrir.–Ele colocouasmãosnosombrosdamãe e abocadamulherproduziuumsorrisodeesguelha.–Euagorasouumhomem,mãe.Euvouconseguir!

Lentamente,elacaiunosono.Passavadasnovedanoite.Faltarealmenteaosanjosoconhecimentoacercadocoração?Euchoreienquanto

oouviaeoobservava.Ele continuou conversando com ela – enquanto ela dormia – sobre como eles

sairiamdaqueleapartamentoapertadoevagabundo.EmilyeJacobaindateriamdeingressarnaEscoladoSagradoNome,eleos levarianocarroqueelecompraria.Jáestavadeolhoemum.

–Mãe, quando eume apresentar pela primeira vez no conservatório, eu queroquevocêestejalá.EuqueroqueEmilyeJacobestejamnobalcãonobre.Oconcertonãovaisernemumpoucolongo.Aminhaprofessoraestámeajudandoagora.Euvouconseguiringressospratodosnósirmos.Mãe,euvoufazertudocertinho,estámeentendendo?Mãe,euvouarrumarummédicopravocê,ummédicoquesaibaoquefazer.

Emseusonoalcoolizado,elamurmurou:–Sim,querido,simquerido,simquerido.Porvoltadasdez,eledeuaelaoutracervejaedormiude nitivamente.Eledeixou

ovinhoao ladodela.Ele cuidouparaqueEmily e Jacobvestissem seuspijamas erezassem,eentãovestiuoelegantesmokingpretoeacamisadepeitilhoengomadoquehaviacompradoparaagraduação.Elaseram,evidentemente,asvestimentasmaisso sticadasqueeletinha.Eeleascomprarasempestanejarporquesabiaquepoderiausá-lasnarua,oquecausariaumgrandeefeito,eatémesmonosrestaurantesmaisrequintados.

Elefoiparaocentrodacidadetocarpordinheiro.Havia festas por toda a cidade naquela noite por conta dos graduandos do

ColégioJesuíta.ElasnãoeramparaToby.Ele parou bempróximo aosmais famosos bares da ruaBourbon, e lá abriu o

estojoecomeçouatocar.Mergulhouocoraçãoeaalmanasmaistristeslitaniasdepesares jamais compostas por Roy Orbison. E logo as notas de vinte dólarescomeçaramavoaremsuadireção.

Queespetáculoeraele,jánomáximodesuaestatura,etãoelegantementevestidoemcomparaçãocomosmaltrapilhosmúsicosderuasentadosaquieali,oucomosmendigosquesimplesmente imploravampormoedinhas,oucomosmaltrapilhos,porémbrilhantes,sapateadores.

Eletocou“DannyBoy”pelomenosseisvezesnaquelanoiteparaumcasalapenas,eeleslhederamumanotadecemdólaresqueTobyguardounacarteira.Eletocoutodos os dilacerantes números encanta-multidão que conhecia, e se eles batessempalmas pedindo algum temacountry, ele não se fazia de rogado e dedilhava seualaúde,etodosdançavamaoredordele.Eletiravatudodacabeça,excetoamúsica.

Quandoamanhã chegava, ele sedirigiapara aCatedraldeSt.Louis.Rezavaosalmoquetantoamavaequeaprenderanabíbliacatólicadesuaavó:

Salve-me, ohDeus, pois as águas atingemmeupescoço.Estou preso e emapurosnofundo,enãotenhoondepôrospés.Estouemáguasprofundas,eas ondas estão me sobrepujando. Estou exausto de tanto chorar, minhagargantaficouirritada;meusolhosnãoenxergamenquantoesperomeuDeus.

Finalmente,elesussurrou:–QueridoDeus,oSenhornãopodeacabarcomessador?Eleagoraestavacommaisdeseiscentosdólaresparapagarascontas.Estavacom

bastantesobra.Masqueimportânciatinhaissosenãopodiasalvarsuamãe?–QueridoDeus–rezouele.–Eunãoqueroqueelamorra.Sintomuitoporter

rezadopelamortedela.QueridoSenhor,salveminhamãe.

Uma mendiga aproximou-se enquanto ele saía da catedral. Ela estavapessimamentevestidaemurmuravaarespeitodanecessidadequetinhaderemédiosparasalvarumacriançaqueestavamorrendo.Elesabiaqueelaestavamentindo.Eleaviradiversasvezes,eaouviracontaramesmahistória.Eleolhou xamenteparaelaporumlongotempoeentãoafezsecalarbalançandoamãoesorrindo.Elhedeuvintedólares.

Apesardoextremocansaço,TobycaminhoupeloBairroFrancêsemvezdegastaralgunstrocadoscomumtáxiesubiunobondedaSt.Charlesemdireçãoàsuacasa,olhandoemudecidopelajanela.

Ele queria desesperadamente se encontrar com Liona. Sabia que ela estivera nanoiteanterioremsuacerimôniadeformatura–elaeseuspais,naverdade–equeriaexplicaraelaomotivoqueolevaraanãocomparecer.

Elelembrouqueeleshaviamfeitoplanosparadepoisdoevento,masagoratudoparecia bastante remoto e ele estava cansadodemais para pensar noquediria a elaquando nalmente tivesse oportunidade. Ele pensou em seus grandes e amorososolhos, na perspicácia e no agudo intelecto que ela nunca escondia e em sua risadaruidosa.Pensouemtodasassuascaracterísticasmaravilhosasetevecertezadeque,àmedidaqueosanosdefaculdadepassassem,elecertamenteaperderia.Elatambémtinhaumabolsadeestudosnoconservatório,mascomoelepoderiacompetircomosjovensqueinevitavelmenteestariamaoredordela?

Liona possuía uma voz gloriosa e, na produção montada no jesuíta, ela lhepareceraumaestrelanatural,adorandoopalcoeaceitandoosaplausoseas oreseoscumprimentoscomgraciosidadeeconfiança.

Elenãocompreendiaporqueela se importaracomele,a naldecontas.Sentiaquedeviarecuar,deixá-laire,noentanto,elequasechoravasódepensarnela.

Enquantoobondechiavaerangiaseguindoseudestinoemdireçãoaonortedacidade, ele abraçava seu alaúde e inclusive dormiu por um tempo encostado nele.Acordousobressaltadoemsuaparada,esaltouearrastouospésenquantoandavapelacalçada.

Assimqueentrounoapartamentopercebeuquehaviaalgoerrado.Encontrou JacobeEmily afogadosnabanheira.Eela, comospulsos cortados,

estavamortanacama,osangueensopandoolençolemetadedotravesseiro.Porumlongotempo,elemirouoscorposde seu irmãoede sua irmã.Aágua

haviaescoado,masospijamasdosdoisestavamúmidoseenrugados.EleconseguiaveroshematomasportodoocorpodeJacob.Eleempreenderaumalutamedonha.

MasorostodeEmilynaoutraextremidadedabanheiraestavalímpidoeperfeito,osolhos fechados.Talvez ela não estivesse desperta quando a mãe a afogara. Haviasangue na água. Havia sangue na bica onde Jacob deve ter batido com a cabeçaenquantoelaoempurravaparabaixo.

A faca de cozinha estava ao ladode suamãe.Ela praticamentedecepara amãoesquerda,tãoprofundaeraaferida,massangraraatéamortepelosdoispulsos.

Etudoissoacontecerahorasatrás,elesabia.Osangueestavasecoou,namelhordashipóteses,pegajoso.Ainda assim, ele retirou o irmão da banheira e tentou realmente reavivá-lo.O

corpodoirmãoestavagélido,oupelomenosfoioquelhepareceu.Eestavapesado.Elenãopôdesuportaraexperiênciadetocaramãeouairmã.Amãeestavadeitadacomaspálpebrasparcialmentefechadas,abocaaberta.Elajá

parecia estar seca, como uma casca. Uma casca, ele pensou, exatamente isso. Elemirouorosárioemmeioaosangue.Haviasangueportodoopisodemadeira.

Apenasocheirodevinhopairava sobre todasessasvisõesdeploráveis.Apenasocheirodomaltenacerveja.Doladodefora,carrospassavam.Umquarteirãodepois,erapossívelouviromotordeumbondepassando.

Tobyfoiparaasalaesentou-seporumlongotempocomoalaúdenocolo.Porqueelenãosouberaquetalcoisapoderiaviraacontecer?Porqueeledeixara

JacobeEmilysozinhoscomela?QueridoDeus,porqueelenãoviraqueascoisaschegariamaesseponto?Jacobtinhaapenasdezanosdeidade.Como,emnomedeDeus,puderaTobypermitirquealgoassimacontecesseaeles?

Eratudoculpasua.Elenãotinhadúvidaalgumaquantoaisso.Queelapudessese ferir, sim, nisso ele havia pensado, e queDeus o perdoasse, talvez ele houvesseinclusive rezadopor isso na catedral.Mas isso? Seu irmão e sua irmãmortos?Elenovamente cousemar.Porummomento,pensouquejamaisseriacapazdevoltararespirar.Levantou-seesóentãooarsaiudeseucorponumsoluçosecoeinaudível.

Apático, ele mirou o infame apartamento com seu horroroso mobiliárioescolhidosemqualquercritério,avelhaescrivaninhadecarvalhoeascadeirasbaratascomestampasde ores,eomundointeirolhepareceuimundoecinza,eelesentiumedoeemseguidaumterrorcrescente.

Seu coração começouabater aceleradamente.Elemirouosquadros com orescomprados no armazém da esquina em suas horrendas molduras – aquelas coisastolas que ele mesmo havia comprado – ao longo do apartamento revestido compapel de parede. Mirou as cortinas frágeis que ele também havia comprado, e as

persianasbaratasatrásdelas.Elenãoqueriaentrarnoquartoeverapinturadoanjodaguarda.Sentiuquea

rasgaria em pedaços se a visse. Ele jamais, jamais em sua vida, poria os olhosnovamenteemtalcoisa.

Umsensaçãodedesânimoseguiu-seàdor.Umasensaçãodedesânimoinstalou-sequandoadornãopodiamaissersustentada.Elecobriucadaobjetoqueavistava,econceitos tais como simpatia e amor pareceram-lhe irreais, ou para sempreinalcançáveis,enquantoeleestavaalisentadonomeiodaquelehorroredaquelaruína.

Em algum momento, ou durante as horas em que cou ali sentado, ouviu asecretáriaeletrônicanotelefone.EraLionaligandoparaele.Elesabiaquenãopodiapegaroaparelho.Sabiaquenãopodiavoltar avê-la,ouvoltar a falar comela,oucontarparaelaoqueacontecera.

Elenãorezou.Nãolheocorreu.Nemmesmolheocorreuconversarcomoanjoqueestavaaoseu lado,oucomoSenhoraquemele rezaranão faziamaisdoqueumahoraemeia.Elenuncamaisvoltariaaverseusirmãosvivos,ousuamãe,ouseupai, ou qualquer pessoa que conhecia. Isso foi o que ele pensou. Eles estavammortos, irrevogavelmente mortos. Ele não acreditava em nada. Se alguém tivesseaparecido para ele naquele momento, como seu anjo da guarda intentava fazer, edissesseaele,Vocêverátodoselesnovamente ,talvezeletivessecuspidonapessoaemtotalacessodefúria.

Duranteodiainteiroelepermaneceunoapartamentocomsuafamíliamortaaoseuredor.Manteveasportasdobanheiroedoquartoabertasporquenãoqueriaqueoscorposficassemsozinhos.Pareciaalgohorrivelmentedesrespeitoso.

Lionaligoumaisduasvezes,enasegundavezeleestavaquasecochilandoenãotevecertezaseescutaraavozdelaounão.

Por m, caiuno sonono sofá e,quandoabriuosolhos, esqueceuoquehaviaacontecido,eimaginouquetodosestavamvivosetudoestavacomosemprefoi.Deimediato,averdadevoltoucomaforçadeummartelo.

Ele vestiu o blazer e as calças cáqui e juntou todas as suas melhores roupas.Colocou tudo numa mala que sua mãe levara para o hospital anos atrás quandotiveraosbebês.Pegoutodoodinheironoslocaisescondidos.

Elebeijouseuirmãozinho.Arregaçandoamangadacamisa,eleen ouamãonabanheiramanchadaparacolarumbeijocomseusdedosnabochechada irmã.Emseguida, beijou o ombro da mãe. Mirou mais uma vez o rosário. Ela não estavarezando enquanto morria. Ele estava simplesmente ali, em meio à confusão da

colcha,esquecido.Eleopegou, levou-oparaobanheiroedeixouaáguada torneiracair emcima

deleatéqueestivesselimpo.Então,secou-onumatoalhaeocolocounobolso.Todos pareciam bemmortos agora, bem vazios. Ainda não haviamau cheiro,

maselesestavambemmortos.Arigidezdorostodesuamãeabsorveu-o.OcorpodeJacobnochãoestavasecoeenrugado.

Então, ao se virarpara sair, voltou à escrivaninha.Elequeria levar consigodoislivros.Pegouseulivrodeoraçõesepegouo livrochamadoOsanjos,do freiPascalParente.

Euobserveiisso.Observeiissocommuitointeresse.Repareiamaneiracomqueempacotouessestesourosliteráriosnamalainchada.

Elepensouemoutros livrosreligiososqueamava, incluindoaVidadossantos,masnãotinhaespaçoparaeles.

Pegouobondeemdireçãoaocentrodacidadee,naportadoprimeirohotelqueencontrou,pegouumtáxiparaoaeroporto.

Apenasumavezpassouporsuacabeçaaideiadeligarparaapolíciapararelataroocorrido.Masentãosentiutamanharaivaquetirouparasempredamenteessetipodepensamento.

ElefoiparaNovaYork.Ninguémpodiaencontrá-loemNovaYork, imaginouele.

No avião, ele agarrou o alaúde como se algo pudesse acontecer com oinstrumento.Olhoupelajanelaeexperimentouumaangústiatãograndequenãolhepareceupossívelqueavidapudessealgumdiavoltarareterumapartículasequerdealegria.

Nemmesmomurmurarparasimesmoasmelodiasdascançõesquemaisgostavade tocar tinha agora algum signi cado para ele. Em seus ouvidos, ele ouvia umalarido,comoseosdemôniosdoinfernoestivessemproduzindoumamúsicatétricacom o intuito de levá-lo à loucura. Ele sussurrou qualquer coisa na tentativa deinterromperosom.Deslizouamãoparaobolso,encontrouorosárioepronunciouaspalavrasdaprece,sem,noentanto,meditaracercadosmistérios.

–AveMaria–sussurrouele–...agoraenahoradenossamorte.Amém.–Sãoapenaspalavras,pensouele.Tobynãoconseguiaimaginaraeternidade.

Quandoaaeromoçaperguntouseelequeriaumrefrigerante,elerespondeu:–Alguémvaiprovidenciaroenterrodeles.ElalheentregouumaCoca-Colacomgelo.Elenãodormiu.Seriamapenasduas

horasemeiaatéNovaYork,masoaviãocirculounoarpormaistempodoqueissoatéfinalmenteaterrissar.

Elepensounamãe.Oqueelepoderiaterfeito?Ondepoderiatê-lacolocado?Eleestivera procurando locais, médicos, algumamaneira, qualquermaneira de ganhartempoatéquepudessesalvartodos.Talvezelenãotivessesemexidocomarapideznecessária;não tivesse sido inteligenteo su ciente.Talvezdevesse ter contadoparaseusprofessoresnaescola.

Agorapoucoimportava,disseparasimesmo.Eranoite.Os gigantescos edifícios escurosdo lado lesteda cidade tinhamuma

aparência infernal. O intenso barulho da cidade o deixou atordoado. Cercava-odentrodotáxiquesacudiasemparar,ougolpeava-onossinaisdetrânsito.Detrásdeumagrossajaneladeplástico,omotoristaparecia-lheapenasumfantasma.

Por m, batendo na divisória de plástico, ele disse aomotorista que precisavaacharumhotelbarato.Tevemedodohomemacharqueeleeraumacriançaelevá-loparaalgumpolicial.Elenãopercebiaque,com1,92mdealturaecomaexpressãoduraquecarregavanorosto,elenãotinhasemelhançaalgumacomumacriança.Ohotelnãoeratãoruimquantohaviaimaginado.

Elepensavaemcoisasruinsenquantocaminhavapelasruasembuscadeemprego.Levavaconsigooalaúde.

Pensou nas tardes quando era pequeno e chegava em casa e encontrava os paisbêbados.Seupaieraumpolicialdemáíndole,etodossabiamdisso.Ninguémnafamíliadesuamãeosuportava.Apenasamãedelenãoparavadesuplicarparaqueeletratassemelhorsuamulhereseusfilhos.

MesmoquandoTobyerapequeno,elesabiaqueseupaiachacavaasmulheresderuadoBairroFrancês,obrigando-asa lheconcederfavoresantesde“liberá-las”.Eleouviraseupaisegabararespeitodessetipodecoisacomosamigos,poucospoliciaisqueapareciamparatomarcervejaejogarpôquer.Elescontavamunsparaosoutrosessashistórias.QuandoosoutroshomensdiziamqueseupaideveriaseorgulhardeterumfilhocomoToby,seupaidizia:

–Quem?Vocêestásereferindoàquelacoisinhafofaali?Minhagarotinha?Vezporoutra,quandoestavabastantebêbado,seupaioinsultava,oempurravae

pediaparaveroqueeletinhaentreaspernas.Àsvezes,Tobypegavaalgumascervejasno congelador para o pai para que ele entrasse logo na fase em que desmaiava edormiacomosbraçoscruzadosemcimadamesa.

Toby cara felizquandoopai foipara aprisão.Opai sempre foragrosseiro e

frio,epossuíaumrostovermelhoe semformade nida.Eleeramauehorrível, etinha uma aparência má e horrível. O jovem bem apessoado que aparecia nasfotogra asantigastransformara-senumbêbadoobesodecaraavermelhadaepapadaacentuada,evozrouca.Toby coucontentequandoseupaifoiesfaqueado.Elenãoconseguiaselembrardehaverocorridoalgumenterro.

A mãe de Toby sempre fora bonita. Naquela época ela era delicada. E suaspalavrasfavoritasparasedirigiraofilhoeram“meuqueridinho”.

Toby era parecido com ela não só na aparência como também nos modos, enunca deixou de se orgulhar disso, independente do que acontecesse. Ele nuncadeixoudeseorgulhardesuaestatura,eseorgulhavadamaneiracomosevestiaparaconseguirdinheirodosturistas.

Agora,enquantocaminhavapelasruasdeNovaYorktentandoignorarobarulhoincessante que o atacava a cada esquina, tentando se misturar às pessoas sem seratropelado,umpensamentonãolhesaíadacabeça:eununcafui su cienteparaela,nunca fui su ciente.Nadaque eu zesse era su ciente.Nada.Ele nunca zera algoquefossesu cienteparaquemquerquefosse,comexceção,talvez,desuaprofessorademúsica. Ele agora pensava nela e desejava poder ligar para ela para lhe dizer oquantoaamava.Massabiaquenãofariaisso.

OlongoeinsuportáveldiaemNovaYorktransformou-sesubitamenteemnoite.Luzes alegres surgiram em toda parte. Letreiros de lojas brilhavam com luzespiscando.Casaissemoviamrapidamenteemdireçãoaosteatroseaoscinemas.NãoeradifícilperceberqueeleestavanoDistritodosTeatros,eeleadoravaolharparaointeriordosrestaurantespelasvidraças.Masnãoestavacomfome.Pensaremcomidaparecia-lheuminsulto.

Nahorada saídados teatros,Tobypegouo alaúde, colocouno chãoo estojocomforroverdeecomeçouatocar.Fechouosolhos.Suabocaestavaparcialmenteaberta.Ele tocou a peçamais intricada e sombria deBach que conhecia, e via, detemposemtempos,peloscantosdosolhos,asnotasdedinheiroseavolumandonoestojodoinstrumento,eatéouvia,aquieali,aplausosdaspessoasqueparavamparaouvi-lotocar.

Agoraeleestavaatécommaisdinheiro.Voltouparaoquartodehoteledecidiuquegostavadele.Nãoseimportavacom

avistaparaos telhados eparaumbecoúmido abaixo.Ele gostavada armaçãodacamaedapequenamesa,edatelevisãodegrandesproporçõesquerepresentavaumain nita melhoria em relação àquela que ele usufruíra todo aquele tempo em seu

apartamento.Haviatoalhaslimpasnobanheiro.Nanoiteseguinte,seguindoarecomendaçãodeummotoristadetáxi,elefoipara

Little Italy.Tocouna rua entre dois restaurantes bemmovimentados.Edessa veztocou todasasmelodiasdeóperasqueconhecia.Demodopungente, ele executoucançõesdeMadameButterflyedeoutrasheroínasdePuccini.Tocouriffsconhecidosdorepertóriopopularemesclou-oscomcançõesdeVerdi.

Um garçom saiu do restaurante e disse que ele fosse embora. Mas alguéminterrompeuodiscursodogarçom.Eraumhomemcorpulentousandoumaventalbranco.

–Toca isso aídenovo–disseohomem.Ele tinha cabelos espessos epretos eapenas alguns os grisalhos em cima das orelhas. Ele balançava o corpo enquantoToby tocava o tema da óperaLaBoheme, e em seguida, quando tentava executarnovamenteasáriasmaistocantesquelheviamàcabeça.

Entãoelemudouparaascançõesalegrese festivasdeCarmen.Ohomemidosobateupalmasparaele,esfregouasmãosnoavental,econtinuoubatendopalmas.

Tobytocoutodasascançõessuavesqueconhecia.A multidão se mexia, pagava e se aglomerava novamente. O velho gorducho

continuououvindotodaaapresentação.Durantetodootempo,ogorducholembrava-lhedejuntarasnotasqueestavam

noestojoeescondê-las.Odinheirocontinuavaaparecendo.Quando cou cansado demais para prosseguir tocando, Toby começou a

empacotarsuascoisas,masogorduchodisse:– Espere um minuto, lho. – E pediu para ele tocar canções napolitanas que

Tobyjamaistocaraantes,masquesabiadeouvidoeeramfáceis.–Oquevocêfazaqui,filho?–perguntouohomem.–Estouatrásdeumemprego–disseToby–,qualquer tipode emprego, lavo

prato,trabalhocomogarçom,façoqualquercoisa.Nãomeimporto,sóqueroumtrabalho,umbomtrabalho.

Eleolhouparaohomem,queusavacalçasdeboaqualidadeeumacamisabrancaabertanopescoço, com asmangas arregaçadasna altura dos cotovelos.Ohomempossuíaumrostocarnudoesuave,esculpidoemdelicadeza.

–Voutedarumemprego–disseohomem.–Entraaqui.Vouprepararalgumacoisapravocêcomer.Vocêtocouaíforaanoitetoda.

No naldesuaprimeirasemana,elejáestavanumpequenoquartonosegundoandardeumhotelnocentrodacidadeetinhaumdocumentofalsodeidenti cação,

dizendo que tinha vinte e um anos de idade (idade su ciente para servir vinho) epassaraausaronomedeVincenzoValentiquelheforasugeridopelogentilitalianoqueocontratara.Umaverdadeiracertidãodenascimentovierajuntocomasugestão.

OnomedohomemeraAlonso.Eraumbelorestaurante.Tinhaenormesjanelasdevidroquedavamparaarua,eluzesbembrilhantese,entreumamesaeoutraqueserviam, garçons e garçonetes, todos estudantes, cantavam ópera. Toby era oalaudistaqueficavaaoladodopiano.

EramuitobomparaToby,quenãoquerialembrarqueumdiahaviasidoToby.Elejamaisouviravozestãoperfeitas.Em muitas noites, quando o restaurante estava lotado de grupos festivos, e a

óperaeraagradável, eelepodia tocar seualaúdedeummodograndioso,elequasesentiaprazerenãodesejavaqueasportassefechassem,ouqueascalçadasmolhadasestivessemàsuaespera.

Alonso tinha um bom coração, sorria com facilidade e desenvolveu um afetoespecialporToby,queeraoseuVincenzo.

–Oqueeunãodaria–disseeleaToby–paraaomenosverumdemeusnetos.Alonsodeu aTobyumapequena arma comcabodemadrepérola edisse a ele

comoatirarcomela.Aarmapossuíaumgatilhosuave.Erasomenteparaproteção.Alonso mostrou a ele as armas que mantinha na cozinha. Toby descobriu-sefascinadopelas armas e,quandoAlonso levou-oparaobecoatrásdo restaurante epermitiuqueeleatirassecomelas,elegostoudasensaçãoedosomensurdecedorqueecooupelosaltosmurosdolocal.

AlonsoarranjavatrabalhoparaTobyemcasamentosefestasdenoivados,pagava-lhebem,comprava-lheternositalianosdeexcelentequalidadeparaoempregoe,àsvezes, o mandava servir em jantares privados numa casa que cava apenas algunsquarteirões distante do restaurante. As pessoas inequivocamente consideravam oalaúdeuminstrumentoelegante.

Essacasaondeeletocavaeraumlugarlindo,masdeixavaTobyinquieto.Emboraamaioriadasmulheresquemoravamláfossemidosasegentis,haviaalgumasjovensque eram visitadas por homens. A mulher que administrava o local chamava-seViolet e tinha uma voz profunda de quem bebe muito uísque, e usava umamaquiagempesada,e tratavatodasasoutrasmulherescomosuas irmãsmaisnovasou como lhas pequenas. Alonso adorava sentar-se por horas para conversar comViolet.Eles falavamquase sempre em italiano,mas às vezes em inglês, epareciamimersosemtempospassados,ehaviaindíciosdequehaviamsidoamantes.

Haviacarteadonolocale,àsvezes,pequenasreuniõesdeaniversário,amaioriadehomensemulheresmaisvelhos,masasjovenssorriamparaTobydemodoamáveleprovocante.

Umavez, atrásdeumbiombo transparente, ele tocou alaúdeparaumhomemqueestavafazendoamorcomumamulher,eohomemaferiu.Eladeu-lheumsocoeeleaestapeou.

Alonsominimizouoincidentecomumbalançardemão.–Elafaz issootempotodo–explicouele,comoseacondutadohomemnão

tivessefeitopartedacena.AlonsochamavaagarotadeElsbeth.–Queespéciedenomeéesse?–perguntouToby.Alonsodeudeombros.–Russo?Bósnio?Comoeupossosaber?–sorriu.–Elassãolouras.Oshomens

adoramelas.Eelafugiudealgumrusso,issoeupossotedizer.Vaisermuitasorteminhaseofilhodaputanãovieraquiatrásdela.

TobycomeçouagostardeElsbeth.Elatinhaumsotaquequepodiaserrusso,euma vez contou a ele que havia inventado o nome, e comoToby agora estavachamandoasimesmodeVincenzo,elesentiuumacertaa nidadecomisso.Elsbetheramuitojovem.Tobynãotinhamuitacertezaseelatinhamaisdedezesseisanos.Amaquiagemqueusavafaziacomqueparecessemaisvelhaecommenosfrescor.Comapenas um pouquinho de batom nas manhãs de domingo, ela cava linda. Elafumavacigarrospretosnasaídadeincêndioenquantoconversavam.

AlonsoàsvezeslevavaTobyparasuacasaparacomerumespaguetecomeleesuamãe. Ele morava no Brooklyn. Alonso servia comida do norte da Itália norestaurante,jáqueissoeraoqueomundoqueriaagora,mas,noquediziarespeitoaovelho,elegostavamesmoeradesuasalmôndegascompimentavermelha.Seus lhosmoravamnaCalifórnia.Sua lhamorreraemdecorrênciadasdrogasquandotinhacatorzeanosdeidade.Eleumavezapontouparaafotodelaenuncamaisvoltouafalarnoassunto.

Eleescarneciaebalançavaamãoàmenormençãodeseusfilhos.AmãedeAlonsonãofalavainglês,enuncasesentavaàmesa.Elaserviaovinho,

lavavaospratose cavaempéaoladodofogãocomosbraçoscruzados,mirandooshomenscomerem.ElafaziaTobyselembrardesuasavós.Elashaviamsidomulherescomo aquela, que cavam em pé enquanto os homens comiam. Que lembrançasombria.

Alonso e Toby iam diversas vezes juntos ao Metropolitan Opera, e Toby

escondia a revelação que era aquela experiência, poder ouvir uma das maiorescompanhias de ópera do mundo, poder se sentar nos melhores lugares com umhomem que conhecia o libreto e a música com perfeição. Naquelas horas,Tobyexperimentavaalgoqueeraamaisperfeitaimitaçãodafelicidade.

Toby ouvira óperas ao vivo em Nova Orleans, com sua professora doconservatório. E também ouvira os alunos na Loyola cantando ópera e caracomovido com esses espetáculos dramáticos. Mas o Metropolitan Opera erainfinitamentemaisimpressionante.

ElesiamaoCarnegieHalletambémàsinfônica.Era uma emoção tênue, essa felicidade, como uma na gaze cobrindo suas

lembranças. Ele queria sentir-se alegre enquanto olhava ao redor desses grandesauditórios e escutava aquelamúsica arrebatadora,masnãoousava con ar emcoisaalguma.

UmavezeledisseaAlonsoqueprecisavadeumbonitocolarparapresentearumamulher.

Alonsoriuebalançouacabeça.–Não,éaminhaprofessorademúsica–disseToby.–Elamedeuauladegraça.

Eutenhodoismildólaresguardados.–Deixacomigo–disseAlonso.Ocolareraextraordinário,uma“peçadeherança”.Alonsopagouporele.Elese

recusouaaceitarumníquelquefossedeToby.Toby enviou a peça para a mulher no conservatório porque esse era o único

endereço que ele tinha dela. Ele não escreveu nenhum endereço de remetente nopacote.

UmatardeelefoiatéacatedralSt.Patrickesentou-seporumahora,mirandooaltar principal. Ele não acreditava em nada. Ele não sentia nada. As palavras dossalmosquetantoadoraranãolheretornaramàmente.

Enquanto estava saindo, enquanto estava gastando tempo no saguão da igreja,olhandopara ela como se fosseummundopara onde jamais voltaria a olhar, umpolicialtoscoforçavaumjovemcasaldeturistasasairporqueestavamseabraçando.Tobyencarouopolicial,que fezumgestoparaqueele fosseembora.MasbastouTobypegarorosárionobolsoparaopolicialacenarcomacabeçaeseafastardele.

Emsuaprópriaconcepção,eleeraumfracasso.EsseseumundoemNovaYorknãoerareal.Elefracassaracomseuirmãozinho,comsuairmãzinha,comsuamãe,edecepcionaraopai.Coisinhafofa.

Às vezes, uma raiva começava a queimar em Toby, mas não era dirigida aninguém.

Essa é uma raiva que os anjos têm di culdade em compreender porque oentusiasmoqueToby sublinharamuito tempoatrásno livrodePascalParenteeraverdade.

Faltaanós,anjos,noquedizrespeitoadeterminadosaspectos,umacardiognose.MaseusabiainteligentementeoqueTobyestavasentindo;eusabiaapartirdeseurostoedesuasmãos,eatémesmoapartirdamaneiracomoeleagoraestavatocandoseu alaúde, demaneiramais sombria e comuma alegria forçada. Seu alaúde, comseustonsagoraprofundamenteásperos,adquiriraumsommelancólico.Atristezaeaalegriaestavamsubmetidasaele.Elenãotinhacomocolocarsuaprópriadornele.

UmanoiteAlonso,seupatrão,foiatéopequenoquartodehoteldeToby.Elelevavanoombroumagrandemochiladecouro.

Aquele era um lugar que Alonso sublocara paraToby bem na extremidade deLittleItaly.Eraumlugaragradável,noentenderdeToby–emboraasjanelasdessemparamuros–eosmóveiserambonseatéumpoucoelegantes.

MasToby cou surpresoaoabrir aportaeverAlonso.EraaprimeiravezqueAlonsoovisitava.Elepodiaaté tê-locolocadoemumtáxiparaqueele fosseparacasaapósaópera,masjamaisentraraemsuacasa.

Alonsosentou-seepediuumvinho.Tobytevedesairparaconseguirumagarrafa.Elenuncatinhabebidasalcoólicas

emseuapartamento.Alonsomirouabebida.Tiroudocasacoumaarmagrandee a colocou sobrea

mesadacozinha.Alonso disse aToby que estava enfrentando uma força que jamais o ameaçara

antes: ma osos russos queriam seu restaurante e seu negócio de fornecimento decomidaparaeventos,eeleshaviamtiradosua“casa”.

–Elesqueremessehotel–disseele–,maselesnãosabemqueeusouodono.UmpequenogrupodelesentraranaquelacasaondeTobytocaraparaosjogadores

decartaeasmulheres.Eleshaviamatiradonoshomensqueestavamláeemquatrodasmulheres e garotas, expulsado todas as outras pessoas e colocado suas própriasgarotasnolugardasanteriores.

– Eu nunca vi esse tipo de perversidade – disse Alonso. – Meus amigos nãoquerem cardomeulado.Queamigoseutenho,a nal?Euachoquemeusamigosestãonessacomeles.Achoquemeusamigosmeentregaramemtrocadedinheiro.

Porqueoutromotivoelesdeixariamumacoisadessasacontecercomigo?Eunãoseio que fazer em relação a isso. Meus amigos estão me culpando pelo que estáacontecendo.

Tobymirouaarma.Alonsotirouopenteeemseguidaenfiou-onovamente.–Sabeoqueéissoaqui?Issoaquidámaistirodoquevocêpodeimaginar.–ElesmataramaElsbeth?–perguntouToby.–Deramumtironacabeçadela–disseAlonso.–Deramumtironacabeçadela!

– Alonso começou a gritar. Elsbeth era o motivo pelo qual esses caras haviamaparecido, e os amigos deAlonso lhehaviamdito como ele eViolet haviam sidotolosemdarabrigoaela.

–ElesatiraramemViolet?–perguntouToby.Alonsocomeçouasoluçar.–Atiraram,sim.ElesatiraramemViolet.–Elechoravacompulsivamente.–Eles

atiraramprimeiro emViolet,umamulherdaquela idade.Porque fazerumacoisadessas?

Toby começou a pensar.Elenão estava pensando em todos aqueles programaspoliciais a que uma vez assistira na televisão, ou nos romances com histórias decrimesreaisquehavialido.Eleestavapensandosuasprópriasideias,estavapensandonas pessoas que triunfavamnessemundo enas quenão triunfavam,nas que eramfortesecheiasderecursosenasfracas.

ElepodiaverqueAlonsoestavaficandobêbado.Algoqueeledetestava.Tobypensouporumlongotempo,eentãodisse:–Vocêprecisafazercomelesoqueelesestãotentandofazercomvocê.Alonsoencarou-oeemseguidacaiunagargalhada.–Eusouumvelho–disseele.–Eaqueleshomens,elesvãomematar.Eunão

tenhocomoenfrentar esses caras!Eununcadeiumtirocomumaarmadessas emtodaaminhavida.

Elefalavaefalavaenquantotomavavinho, candocadavezmaisbêbadoecommaisraiva,explicandoquesempregostoudas“coisasbásicas”,umbomrestaurante,umaououtra casa ondeoshomenspudessem relaxar, jogarumpouco, ter algunsmomentosdecompanheirismoamigável.

–Éapropriedade–suspirouAlonso.–Sevocêquermesmosaber,éissooqueeles querem. Eu devia ter me mandado de Manhattan. Agora já é tarde demais.Acaboupramim.

Tobyouviatudooqueeledizia.

Esses gângsteres russos haviam se mudado para a casa dele, e haviam levado aescritura da casa para o restaurante. Eles também tinham uma escritura para orestaurante. Alonso, confrontado na hora do jantar com o local lotado, e emsegurançadevidoatantastestemunhas,recusara-seaassinaroquequerquefosse.

Eles zeramameaçasarespeitodosadvogadosquecuidavamdesuasescriturasedopessoalnobancoquetrabalhavaparaeles.

Alonsodeveriaabandonarseusnegócios.Elesprometeramque,casoeleassinasseasescriturasesaíssedolocal,elesodeixariamlevaralgumascoisasenãolhefariamnenhummal.

– Deixar eu levar coisas que são minhas? – vociferou Alonso. – A casa não ésu cienteparaeles.Elesqueremorestaurantequemeuavôabriu.Éissooqueelesrealmente querem. E eles vão querer esse hotel aqui, assim que souberem que eleexiste. Eles disseram que se eu não assinasse os documentos, eles mandariam oadvogadocuidardoassunto,eninguémjamaisencontrariameucorpo.Elesdisseramquepoderiamfazercomorestauranteascoisasque zeramcomacasa.Elesiamdarumjeitodefazercomqueapolíciapensassequeocorrerasimplesmenteumassaltono local.Foi issooqueelesmedisseram.“Vocêvaiassassinar suaprópriagente senãoassinar.”Essesrussossãomonstros.

Toby ponderou acerca da frase. O que signi caria se esses gângsteres tivessementradoànoitenorestaurante,fechadoasenormespersianasquedavamparaaruaeassassinado todos os empregados. Ele sentiu um calafrio quando percebeu que amorteestavaficandobempróximadele.

Sem dizer palavras, ele visualizou os corpos de Jacob e Emily. Emily com osolhosfechadosdebaixod’água.

Alonso tomoumais um copode vinho.Graças aDeus, pensouToby, que elehaviacompradoomelhorCabernetqueencontrara.

–Depoisqueeuestivermorto–disseAlonso–,eseelesacharemaminhamãe?UmsilênciosoturnotomoucontadeAlonso.Eupodia ver seu anjo da guarda ao lado dele, aparentemente impassível, ainda

queestivessedealgumamaneiralutandoparaconsolá-lo.Eupodiaveroutrosanjosnolocal.Eupodiaveraquelesquenãodãonenhumaluz.

Alonsopôs-seameditar,assimcomoToby.–Assimqueeuassinaressasescrituras–disseAlonso–,assimqueelestambém

tomaremposselegalmentedorestaurante,elesvãomematar.–Eleen ouamãonocasaco e tirou outra arma grande. Explicou que era uma arma automática que

comportavamuitomaismuniçãodoqueaprimeira.–Eujuropravocêqueeulevoelescomigo.

Tobynãoperguntouporqueelenãochamavaapolícia.Elesabiaasrespostasparaesse tipo de pergunta e, de qualquermaneira, ninguémdeNovaOrleans con avamuitonapolíciaparalidarcomessetipodeassunto.A nal,opaideTobytambémforaumpolicialbêbadoedesonesto.IssonãofaziapartedanaturezadeToby.

–Essasgarotasqueelesestãolevandopralá–disseAlonso–sãocrianças,escravas,nãopassamdecrianças.–Elecontinuou:–Ninguémvaimeajudar.Minhamãevaificaraodeus-dará.Ninguémpodemeajudar.

Alonsoveri couopentedebalasnasegundaarma.Eledissequemataria todoselessepudesse,masachavaquenãopodia.Eleestavabastantebêbadoagora.

–Não,eunãoposso fazer isso.Eu tenhode sairdaqui,masnãohá saída.Elesqueremasescrituras,asescrituraslegaisassinadas.Elestêmopessoaldelesnobanco,ederepenteaténoscartórios.

Eleen ouamãonamochila,tiroutodasasescrituraseasespalhousobreamesa.Colocoutambémosdoiscartõesqueoshomenslhehaviamentregado.EsseseramosdocumentosqueAlonsoaindaestavaporassinar.Eramsuasentençademorte.

Alonsoselevantou,cambaleouemdireçãoaoquarto–oúnicooutrocômododolocal–edesmaiou.Elecomeçouaroncar.

Toby estudou todos aqueles itens.Ele conheciamuitobema casa, aportadosfundos,assaídasdeincêndio.Elesabiaoendereçodoadvogadocujonomeestavanocartão,oumelhor, sabiaondeencontraroprédio;ele sabiaa localizaçãodobanco,emboraosnomesdessaspessoasnãosignificassemnada,obviamente.

UmagloriosavisãoarrebatouToby,ouseráqueeudeveriadizerVincenzo?OuseráqueeudeveriadizerLucky?Elesempreteveumaprodigiosaimaginaçãoeumagrande capacidade para montar imagens mentais, e agora ele via um plano e umgrandesaltoemsuavida.Maseraumsaltoemdireçãoàmaiscompletaescuridão.

Eleentrounobanheiro.Sacudiuoombrodovelho.–ElesmataramaElsbeth?–Mataram, sim–disse o velho comum suspiro. –Asoutras garotas estavam

escondidasdebaixodas camas.Duasdelas fugiram.ElasviramoshomensatirandoemElsbeth.–Elefezotrejeitodeumaarmacomamãoeproduziuosomdotirocomaboca.–Eusouumhomemmorto.

–Vocêachaissomesmo?–Eusei.Euqueroquevocêcuidedeminhamãe.Semeus lhosaparecerem,não

falecomeles.Minhamãeestácomtodoodinheiroqueeutenho.Nãofalecomeles.–Podedeixar–disseToby.MasnãoeraumarespostaaopedidodeAlonso.Era

umasimplesconfirmaçãoparticular.Tobyfoiparaooutrocômodo,juntouasduasarmasesaiupelaportadosfundos

deseuedifício.Obecoeraestreitoeosmurostinhamaalturadecincoandaresdeambos os lados. Pelo que ele podia ver, as janelas pareciam estar cobertas. Eleanalisoucadaarma.Testou-as.Asbalasvoaramcomtalvelocidadequeaarmadeuumsolavancoeoassustou.

Alguémabriuajanelaegritouparaelecalarabocaláembaixo.Elevoltouparaoapartamentoecolocouasarmasnamochila.Ovelhoestavapreparandoocafédamanhã.EledeuaTobyumpratocomovos.

Eentãosentou-seelepróprioecomeçouamolharatorradaemseuovo.–Eufaçoisso–disseToby.–Eumatoessescaras.Seupatrãoolhouparaele.Seusolhosestavammortiçosdamesmamaneiraque

costumavam car os olhos de sua mãe. O velho tomou metade de um copo devinhoevoltouparaoquarto.

Tobyfoiatrásdele.OcheirofezcomqueTobyselembrassedesuamãeedeseupai.Oolharvidradoemortiçodeseupatrãoofazialembrardesuamãe.

–Euestouseguroaqui–disseovelho.–Esseendereçoninguémconhece.Nãoestáescritoemnenhumlugardorestaurante.

–Bom–disseToby.Ele cou aliviadoporouvir isso, e estava commedodefazerapergunta.

Nas primeiras horas da manhã, enquanto o relógio novo tiquetaqueava noaparadordapequenacozinha,Tobyanalisavatodasasescrituraseambososcartões.Emseguida,deslizouoscartõesparaobolso.

EleacordouAlonsonovamenteeinsistiuparaqueeledescrevesseoshomensquevira,eAlonsotentoufazeradescrição,mas nalmenteTobypercebeuqueeleestavabêbadodemais.

Alonso tomou mais vinho. Ele comeu um pedaço de pão francês seco. Pediumaispãoemanteigaevinho,eTobydeutudoissoaele.

–Fiqueaqui,enãopenseemnadaatéeuvoltar–disseToby.–Vocêéapenasumgaroto–disseAlonso.–Vocênãopodefazernadaarespeito

disso.Falecomminhamãe.Éissooqueeutepeço.FalepraelanãoligarparameusfilhosnaCalifórnia.Falepraelamandarelesproinferno.

–Vocêpode caraquie fazeroqueeuestoudizendo–disseToby.Eleestava

altamente entusiasmado. Estava fazendo planos. Ele tinha determinados sonhosespecíficos.Sentia-sesuperioratodasasforçasreunidasemtornodeleedeAlonso.

Tobytambémestavafurioso.Estavafuriosopelofatodetodomundoacharqueeleeraumgarotoquenãopoderiafazernadaarespeitodisso.ElepensouemElsbeth.Ele pensou emViolet com seu cigarrona boca, dando as cartas namesade feltroverdedacasa.Elepensounasgarotasconversandoaossussurrosnosofá.ElepensousempararemElsbeth.

Alonsoolhoufixamenteparaele.–Euestouvelhodemaispraserderrotadodessaforma–disseele.–Eeutambém–disseToby.–Vocêtemdezoitoanos–disseAlonso.–Não–disseToby.Elebalançouacabeça.–Issonãoéverdade.O anjo da guarda de Alonso estava em pé ao lado dele,mirando-o com uma

expressãodepesar.Esseanjoestavanolimitedeseusrecursos.OanjodeTobyestavaestarrecido.

Nenhumdosdoisanjospodiafazernada.Maselesnãodesistiamdetentar.Elessugeriram que Toby e Alonso fugissem dali, pegassem a mãe no Brooklyn eentrassemnumaviãoparaMiami.Queoshomensdaviolência cassemcomoquetantoqueriam.

–Vocêtemrazãoquandodizqueelesvãotematarassimquevocêassinaraquelespapéis–disseToby.

–Eunão tenho pra onde ir.Como é que eu vou contar uma coisa dessas praminhamãe? – perguntou o velho. – Eu deveria atirar naminhamãe pra ela nãosofrer. Eu deveria atirar nela e depois atirar em mim mesmo, e tudo acabaria epronto.

–Não!–disseToby.–Fiqueaquicomoeutedisse.Toby colocou uma gravação daTosca, e Alonso começou a cantarolar

acompanhandoamúsicaatécomeçararoncar.Tobyandouquatroquarteirõesatéentrarnumadrogaria.Comproutinturapreta

paracabeloeumpardeóculosescurosdearmaçãopretapoucolisonjeiros,porémnamoda,e,numcamelôdarua56oeste,comprouumapastacomaresdecoisacaraeainda,numoutrocamelô,umrelógioRolexfalso.

Entrouemoutradrogariaecomprouumasériedeitens,pequenositensquenãochamariamaatençãodeninguém,taiscomoinstrumentosdeplásticoqueaspessoascolocamentreosdentesquandoestãodormindoemuitospedaçosdeborrachamacia

edeplásticoquesãooferecidosdegraçaparaajudaraspessoasaalinharossapatos.Comprouumpardetesouras,umfrascodeesmalteincoloreumalixaparaunhas.Ele parou novamente no camelô daQuintaAvenida e comprou diversos pares deluvas de couro leves. Belas luvas. Também comprou um cachecol amarelo decashmere.Estavafrioeeragostosoteralgoassimenroladonopescoço.

Sentiu-sepoderosoenquantoandavapelarua.Etambéminvencível.Quandovoltouparaoapartamento,Alonsoestavasentadoeansioso,eamúsica

eraCallascantandoCarmen.–Quersaber–disseAlonso–,estoucommedodeirembora.–Deviaestarmesmo–disseToby.Elecomeçouafazerasunhas.–Oqueéquevocêestáfazendo?–perguntouAlonso.–Aindanãotenhomuitacerteza–disseToby–,maseunotoquandoháhomens

norestaurantecomasunhasfeitas,aspessoasnotam,principalmenteasmulheres.Alonsodeudeombros.Toby saiupara compraro almoço e várias garrafasdeumexcelente vinhopara

queelespudessemsobreviveramaisumdia.–Elespodemestarmatandogentenorestaurantenesseexatomomento–disse

Alonso. – Eu devia ter mandado todo mundo sair de lá. – Ele suspirou e pôs apesadacabeçanasmãos.–Eunãotranqueiorestaurante.Eseelesforemláeatirarememtodoomundo?

Tobysimplesmenteassentiucomacabeça.Em seguida saiu, caminhou alguns quarteirões e ligou para o restaurante.

Ninguématendeu.Aqueleeraumpéssimosinal.Orestaurantedeveriaestar lotadoparaojantar,compessoasagarrandootelefoneparatomarnotadasreservasparaanoite.

Tobyre etiuquehaviatomadoumadecisãosensataaomanterseuapartamentoem segredo, ao fazer amizade apenas com Alonso, ao não con ar em ninguémexatamentecomojamaisconfiaraemninguémemtodaavida.

Amanhãchegou.Tobytomouumaduchaeaplicouatintapretanoscabelos.OpatrãoestavadormindovestidonacamadeToby.Toby vestiu um elegante terno italiano queAlonso havia comprado para ele e

entãoacrescentouosacessóriosdemodoa cartotalmentediferentedesuaaparêncianormal.

Oaparelhodeplásticoparaosdentesmudouo formatode suaboca.Apesada

armaçãodosóculosescurosdeuaseurostoumaexpressãonova.Asluvaseramcinzase bonitas. Ele enrolou o cachecol amarelo no pescoço.Vestiu seu único emelhorsobretudopretodecashmere.

Eleencheraossapatoscombastantematerialparapareceraindamaisaltodoquejáera,masnãomuito.Colocouasduasarmasautomáticasnapastaeenfiounobolsoapequenaarmademão.

Eleolhouparaamochiladopatrão.Eradecouropreto,muitoelegante.Resolveuentãolevá-lapenduradanoombro.

Foiparaacasaantesdosolraiar.Umamulherqueelejamaisviranavidaabriuaportadafrente.Elasorriuparaeleedeu-lheboas-vindas.Nãohaviamaisninguémnolocal.

Elepegouaautomáticanapastaeatirounela,eatirounoshomensquevieramcorrendopelocorredornadireçãodele.Atirounaspessoasquedesceramàspressasaescada. Atirou nas pessoas que pareciam estar correndo exatamente em direção àarma,comosenãoestivessemacreditandoqueaquiloestavaacontecendo.

Eleouviugritosnoandardecimaesubiu,passandoporcimadeumcadáveratrásdooutro,eatirounasportas,abrindoenormesburacosatétudoficaremsilêncio.

Ele couparadobemna extremidadedo corredor e esperou.Umhomemsaiucautelosamente, a arma visível na frente do braço e depois o ombro.Toby atirouneleimediatamente.

Vinteminutossepassaram.Talvezmais.Nadasemexianacasa.Lentamente,elepercorreutodososcômodosdoimóvel.Tudomorto.

Juntou todos os celulares que conseguiu encontrar e os colocounamochila decouro.Haviaumlaptoplá,eledobrou-oeolevoutambém,emboraoaparelhofosseum pouco mais pesado do que ele gostaria que fosse. Ele cortou os os docomputadorqueestavanaescrivaninhaeosdotelefonefixo.

Quandoestavasaindo,eleouviuosomdealguémchorandoefalandonumavozbaixaepatética.Eledeuumchuteparaabriraportaeencontrouumagarotabemjovem,louraecombatomvermelho,agachadanochãodejoelhosecomumcelulargrudadonoouvido.Elasoltouoaparelho,aterrorizada,assimqueoviu.Começouabalançaracabeça,implorandonumalínguaqueelenãoconseguiaentender.

Eleamatou.Elacaiumorta instantaneamentee cou ládeitadacomosuamãeficaradeitadaemseucolchãoensanguentado.Morta.

Elepegouotelefone.Umavozríspidaexigiasaber:–Oqueestáacontecendo?

– Nada – disse ele com um sussurro. – Ela estava fora de si. – Ele fechou otelefonecomforça.Osangueestava uindoemaltatemperaturaemsuasveias.Eleestavasesentindopoderoso.

Agora ele percorria novamente todos os cômodos da casa em alta velocidade.Encontrou um homem ferido e gemendo, e atirou nele. Encontrou uma mulhersangrandoàbeiradamorte, e atirounela também.Ele juntoumais telefones. Suamochilaestavainchando.

Emseguidaelesaiu,caminhoudiversosquarteirõeseacenouparaumtáxi.Seguiuparaonortedacidadeondeselocalizavaoescritóriodoadvogadoquese

encarregaradastransferênciasdapropriedade.Fingindomancarenquantoandavaesuspirandocomoseapastaestivessepesada

demaiseamochilanoombrooforçasseparaochão,elefoiatéoescritório.Arecepcionistaacabaradedestrancaraportae, sorrindo,explicavaaelequeseu

chefeaindanãochegara,maschegariaaqualquermomento.Eladissequeocachecolamareloqueeleusavanopescoçoerabonito.

Ele desabou no sofá de couro e, retirando cuidadosamente uma das luvas,esfregouatestacomoseumaterríveldoroestivesse incomodando.Elaolhouparaelecomdoçura.

–Belasmãos–disseela.–Comoasdeummúsico.Eleriubaixinho.Numsussurro,disse:–TudooqueeuqueroévoltarparaaSuíça.–Eleestavamuitoexcitado.Sabia

quebalbuciavaenquantosussurravaporcausadoaparelhodeplásticoemsuaboca.Sentiu vontade de rir, mas apenas consigo mesmo. Ele jamais se sentira tãoatormentadoemtodaasuavida.Porumafraçãodesegundo,elepensouentenderasvelhaspalavras,“oencantodomal”.

Elalheofereceucafé.Elerecolocoualuva,edisse:– Não, vai me deixar acordado no avião. Eu quero dormir quando estiver

sobrevoandooAtlântico.–Nãoconsigoidentificarseusotaque.Deondeé?–Suíça–sussurrouele,balbuciandosemesforçoporcausadoaparelhonaboca.–

Estoumuitoansiosoparavoltarpracasa.Euodeioessacidade.Umbarulhosúbitonaruaosobressaltou.Umaempilhadeiracomeçandoodiade

trabalho numa construção. O barulho era repetitivo e sacudia intensamente oescritório.

Eleestremeceudedor,eeladisseparaeleoquantosentiaporeleserobrigadoa

suportaraquilo.Oadvogadoentrou.Tobyselevantou,expondotodaasuaportentosaestatura,edissecomomesmo

sussurrobalbuciante:–Euvimatéaquiparadiscutirumassuntoimportante.OhomemsentiuumtemorimediatoenquantoconduziaTobyàsuasala.– Escute, eu estou fazendo tudo da forma mais rápida possível, mas aquele

italianoéumidiota.Eéteimoso.Seupatrãoestáesperandomilagres.–Eleremexeuunspapéisnaescrivaninha.–Eudescobri issoaqui.Eleédonodeumaáreaaunspoucos quarteirões distante do restaurante que pode ser demolida, e não faz nadacomela!Eolocalvalemilhões.

Novamente,Tobyquaseriu,mascontrolou-se.Elepegouospapéisdohomem,olhandoderelanceparaoendereço–queeraodohotel–eenfiou-osnapasta.

Oadvogadoficoupetrificado.Ruídos metálicos vindos do exterior foram ouvidos, e possantes choques

reverberantes,comosepesados fardosdosmaisdiversosmateriaisestivessemsendodespejadosnarua.Tobyviuumgrandeguindastebrancoquandoolhoupelajanela.

–Ligueagoramesmoparaobanco–sussurrouToby,lutandocomoaparelhonaboca. – E você vai descobrir do que estou falando. – Novamente ele quase riuconsigomesmo.Eacaboudandoumsorrisoparaohomem,queinstantaneamenteteclouumnúmeroemseucelular.

Oadvogadopraguejou:– Vocês estão pensando que eu sou algum tipo de Einstein? – O rosto dele

mudoudetom.Ohomemdobancoatenderaaligação.Tobypuxouocelulardamãodoadvogado.Falounoaparelho:–Euqueroquevocêseencontrecomigo.Euqueroquevocêseencontrecomigo

doladodeforadobanco.Euqueroquevocêesperelápormim.Naoutrapontadaligação,ohomemdeuseuconsentimentoimediatamente.O

númeroqueestavanopequenovisordigitaldoaparelhoeraomesmonúmeroemumdoscartõesqueestavamnobolsodeToby.Ele fechouotelefoneedeslizou-oparaapasta.

–Oquevocêestáfazendo?–perguntouoadvogado.Toby estava sentindo um poder total sobre o homem. Ele estava se sentindo

invencível.Umtênuefiapoderomantismoinstou-oadizer:–Vocêéummentirosoeumladrão.

Ele pegou a pequena armano bolso e atirounohomem.O som foi engolidopelointensoruídovindodarua.

Eleolhouparaolaptopemcimadaescrivaninha.Nãopodiadeixá-lolá.En ou-odequalquerjeitonamochilajuntocomosoutros.

Eleestavacarregandopesodemais,maseramuitoforteetinhaombroslargos.Flagrou-se rindo novamente enquanto mirava o homem morto. Era uma

sensaçãomaravilhosa.Eraumasensaçãoesplêndida.Eraumasensaçãoidênticaaquetivera quando imaginara a si mesmo tocando alaúde num palco mundialmentefamoso.Sóqueasensaçãodeagoraerabemmelhor.

Ele estava deliciosamente atordoado, tão atordoado quanto estivera quandopensara pela primeira vez em todas essas coisas, esses pedacinhos de coisas que eleacumularaapartirdosprogramaspoliciaisnatelevisãoedeumououtroromance.Eele fez um esforço para não rir,mas sim para seguir com o plano omais rápidopossível.

Elepegoutodoodinheiroquehavianacarteiradohomem,unsmilequinhentosdólares.

Doladodefora,elesorriuamavelmenteparaajovemsecretária.–Escute–disse ele, curvando-se sobre a escrivaninha.–Elequerquevocê saia

agoramesmo.Eleestáesperando,digamos,algumaspessoas.– Ah, certo, eu sei – disse ela, tentando demonstrar ao mesmo tempo muita

inteligência,muitaconcordânciaemuitacalma–,masquantotempoeudevo carfora?

–Odiainteiro.Passeorestododiadefolga–disseToby.–Não,podeacreditaremmim.Elequermesmoquevocêfaçaisso.–Eledeuaelaváriasdasnotasdevintedólaresdohomem.–Pegueumtáxipracasa.Divirta-se.Eligueamanhãdemanhã,estámeentendendo?Nãovenhaantesdeligar.

Elaestavaencantadaporele.Elasaiucomeleemdireçãoaoelevador,bastanteeufóricaporestaraoseulado,

umhomem com toda aquela altura, um jovem tãomisterioso e bonito, ele sabiadisso,eeladissenovamenteparaelequeseucachecolamareloeralindo.Elareparouqueelemancava,masfingiunãoreparar.

Antesqueasportasdoelevadorsefechassem,eleolhouparaelaatravésdaslentesescuras,dandoumsorrisotãofulgurantequantoodela,edisse:

–PenseemmimcomoLordeByron.Elecaminhouospoucosquarteirõesatéobanco,masparouaalgunsmetrosda

entrada.Amultidãoqueseaglomeravaquaseojogouparaolado.Eleencostou-senomuroeteclouonúmerodobanqueironocelularquehaviaroubadodoadvogado.

–Saiaagora–disseelecomseuagorajáexperientesussurrobalbuciadoenquantoseusolhospercorriamamultidãodiantedaentradadobanco.

–Eujáestouaquifora–disseohomem,ríspidoecomraiva.–Ondeéquevocêestáafinal?

Tobyavistou-ocomfacilidadeassimqueohomemenfiouocelularnobolso.Toby cou parado olhando o movimento ao seu redor, perplexo com a

velocidadedaspessoasqueseguiamemambasasdireções.Orugidodotráfegoeraensurdecedor. Bicicletas zuniam em meio ao letárgico estrondo dos caminhões etáxis.Obarulhosubiapelosmuroscomoseambicionassechegaraoscéus.Buzinassoavameoarestavacheiodefumaçacinzenta.

Olhou para a fatia de céu azul que não fornecia luz alguma a essa fenda dagigantesca cidade, e pensou consigo mesmo que jamais estivera tão vivo. NemmesmonosbraçosdeLionasentiraeletamanhovigor.

Apertou novamente o número, dessa vez escutando o som da chamada eobservandoohomem–quaseperdidonessaeternamentemutantepletorahumana–responder.

Sim,eleavistaraseuhomem,cabelosgrisalhos,pesado,rostovermelho,agoradefúria.Avítimapisounomeio-fio.

– Quanto tempo você quer que eu que esperando aqui? – ladrou ele noaparelho.Eleseviroueandoudevoltaparaaparededegranitodobancoe couempéàesquerdadaportagiratória,olhandocomfriezaparatodososlados.

O homemolhou com raiva para todos que passavam por ele, exceto o esguiojovemcurvadoquemancavaaparentementeemdecorrênciadapesadamochilaquecarregavanoombroedapasta.

Essehomemelenempercebeuapresença.Assimquesepostouatrásdele,Tobyatirounacabeçadohomem.Rapidamente,

ele en ou a arma de volta no casaco e, com a mão direita, ajudou o homem aescorregar pela parede em direção à calçada, com as pernas para a frente. Tobyajoelhou-sebemaoladodeledemodosolícito.

Eleretirouolençodelinhodohomemeenxugou-lheorosto.Ohomemestavamorto, obviamente. Então, na frente da multidão cega, ele pegou o celular dohomem,suacarteiraeumapequenacadernetadobolsodafrente.

Nemuma pessoa sequer passando pelo local deu-se ao trabalho de parar, nem

mesmoaquelasqueestavampisandoporcimadaspernasesticadasdobanqueiro.Um lampejo de lembrança surpreendeuToby. Ele viu seu irmão e sua irmã,

molhadosemortosnabanheira.Enfaticamente, ele rejeitou a lembrança. Disse para si mesmo que aquilo não

tinha sentido.Comamão enluvada,dobrouo lençode linhodamelhormaneiraqueconseguiueodispôssobreatestaúmidadohomem.

Ele andou três quarteirões antes de tomar um táxi, e saiu do veículo trêsquarteirõesdistantedeseuapartamento.

Toby subiu, os dedos trêmulos segurando a arma no bolso.Quando bateu naporta,ouviuavozdeAlonso:

–Vincenzo?–Vocêestásozinho?–perguntouele.Alonsoabriuaportaeopuxouparadentro.– Onde você esteve? O que aconteceu com você? – Ele mirou os cabelos

escurecidos,osóculospretos.Tobydeuumabuscanoapartamento.Emseguidavoltou-separaAlonsoedisseaele:–Estãotodasmortas,aspessoasqueestavamteimportunando.Masacoisanão

terminou. Não havia tempo de chegar ao restaurante, e eu não sei o que estáacontecendolá.

–Eusei–disseAlonso.–Elesdemitiramtodoomeupessoalefecharamolocal.Oquediabovocêestámedizendo?

–Ah,bom–disseToby.–Atéqueissonãoétãoruim.–Oquesignificaissodetodasaspessoasestaremmortas?–perguntouAlonso.Tobycontouparaeletudooquehaviaacontecido.Então,disse:–Vocêprecisameapresentarapessoasquesaibamcomoterminaroserviço.Você

precisameapresentaraseusamigosquenãoteajudariam.Agoraelesvãoteajudar.Elesvãoquereressescomputadores.Elesvãoquereresses celulares.Elesvãoquereressacadernetinhaaqui.Temmuitainformaçãoaqui,toneladasdeinformaçãosobreessescriminososesobreoqueelesqueremeoqueestãofazendo.

Alonsoolhou xamentepara eleporum longo tempo sem falarnada, e entãodesabounaúnicapoltronaquehavianasalaepassouosdedosnoscabelos.

Toby trancou a porta do banheiro. Elemantinha a arma consigo. Encostou apesadatampadeporcelanadadescarganaportaetomouumaduchacomacortinaaberta,lavandoelavandoatéquetodaatinturapretasaíssedeseucabelo.Quebrou

osóculos.Pegouasluvas,ospedaçosdosóculoseocachecoleenroloutudonumatoalha.

Quandosaiu,Alonsoestavafalandoaotelefone.Estavaprofundamenteabsorvidona conversa. Estava falando em italiano ou em dialeto siciliano,Toby não tinhacomodizercomcerteza.Eleaprenderaalgumaspalavrasnorestaurante,maso uxodepalavraserarápidodemaisparaele.

Depoisquedesligou,ohomemdisse:–Vocêpegoueles.Vocêpegoutodoseles.–Foioqueeudisse–falouToby.–Masoutrosvirão.Issoéapenasocomeçode

algumacoisa.Asinformaçõesnocomputadordesseadvogadosãovaliosíssimas.Alonsomirou-oemtranquilaperplexidade.Seuanjodaguardaestavaempécom

osbraçoscruzadosobservando tudocomtristeza–oupelomenosé assimqueeuposso melhor descrever em termos humanos sua atitude. O anjo deToby estavachorando.

– Você conhece pessoas que podem me ajudar a usar esses computadores? –perguntouToby. –Havia computadores demesa na casa e no escritório. Eu nãosabiacomoretirarosdiscosrígidos.Euprecisosaberfazerissodapróximavez,comoremover o disco rígido.Todos esses computadores, eles devem estar recheados deinformações.Temnúmerosdetelefoneaqui,muitoprovavelmentecentenasdeles.

Alonsoanuiu.Eleestavaatônito.–Quinzeminutos–disseele.–Quinzeminutosoquê?–perguntouToby.–Eleschegamdaquiaquinzeminutos,evãoficarmuitocontentesdeteconhecer

emuitocontentestambémdepoderteensinartudooquepuderem.–Temcerteza?–perguntouele.–Seelesnãoestavamdispostosateajudarantes,

porqueelessimplesmentenãochegamaquiematamnósdois?–Vincenzo–disseAlonso.–Vocêéjustamenteoqueelesnãotêmnesseexato

momento.Vocêéjustamenteoqueelesprecisam.–LágrimassurgiramnosolhosdeAlonso.–Filho,vocêachaqueeutetrairia?Eutenhoumadívidaeternacomvocê.Emalgumlugarexistemcópiasdetodasessasescrituras,masvocêmatouoshomensqueestavammanipulandoosdocumentos.

Elesdesceram.Umalimusinepretaestavaesperandoporeles.Antes de entraremno carro,Toby jogou a toalha comos óculos quebrados, o

cachecoleasluvascinzasnumalixeira,empurrandotudobemparaofundodeumapilhadepapéisesacosplásticos.Eleodiouocheiroque couemsuamãoesquerda.

Eleestavacomamalaeoalaúde,apastaeamochiladecourocomoscomputadoreseoscelulares.

Elenão gostouda aparência do carro e nãoquis entrar, emborahouvesse vistoinúmeros veículos como aquele aglomerando aQuintaAvenida quando anoitecia,passandovagarosamentenafrentedasentradasdoCarnegieHalledoMetropolitanOpera.

Finalmente,depoisdeAlonso,eledeslizouparadentroesesentoudefrenteparadoisjovensjáinstaladosnosassentosdecouro.

Ambos tinham a aparência ameaçadoramente curiosa. Eram pálidos e tinhamcabeloslouros,quasequecertamenterussos.

Tobyquaseparouderespirarcomofezquandosuamãearrebentaraoalaúde.Elemanteveamãonaarmadentrodocasaco.Nenhumdosdoishomenstinhaasmãosnos bolsos. Todas as mãos estavam absolutamente visíveis, com exceção das deToby.

EleseviroueolhouparaAlonso.Vocêmetraiu.–Não,não–disseohomememfrenteaele,omaisvelhodosdois,eAlonso

estava sorrindo como se houvesse acabado de ouvir uma ária executada comperfeição.Ohomemfalavacomoumamericano,nãocomoumrusso.

– Como você fez a coisa? – perguntou o louro mais jovem. Também eraamericano.Eleolhouparaorelógio.–Aindanãosãonemonzehoras.

–Estoucomfome–disseToby.Eleseguravaaarmacomfirmezanobolso.–EusempretivevontadedecomernaRussianTeaRoom.–Seeleiamorrerounão,essaresposta fez com que Toby se sentisse profundamente esperto. E também eraverdade.Seerapararealizarumaúltimarefeição,elequeriaquefossenaRussianTeaRoom.

Ohomemmaisvelhoriu.–Olhe,filho,nãoatirenagente–disseele,fazendoumgestonadireçãodobolso

deToby.–Isso seriauma idioticeporquenósvamos tepagarmuitomaisdoquevocêjamaissonhouemganharnavida.–Eleriu.–Nósvamostepagarmuitomaisdoquenósmesmosjamaissonhamosemganharnavida.E,éclaro,tambémvamostelevarproRussianTeaRoom.

Ocarroparou.Alonsosaiu.– Por que você está indo embora? – perguntouToby. Novamente ele sentiu

aqueletemorquelhetiravaofôlegoesuamãoapertouapequenaarmaqueestavaquaserasgandoseubolso.

Alonsocurvou-seeobeijou.Eleagarrousuacabeçaebeijouseusolhosebeijou-onoslábios,eentãoodeixouir.

–Elesnãomequerem–disseele.–Elesqueremvocê.Euvendivocêpraeles,maspara seuprópriobem.Estáme entendendo?Eunãoposso fazer as coisasquevocêpodefazer.Nossaparcerianãopodecontinuarapartirdeagora.Euvendovocêpra eles para sua própria proteção. Você é o meu garoto. Vai sempre ser o meugaroto.Agoravácomeles.Elesqueremvocê,nãoamim.Vocêprossegue.EuvoulevarminhamãepraMiami.

–Masvocênãoéobrigadoafazerisso–protestouToby.–Vocêpodepegaracasadevolta.Vocêpodepegarorestaurantedevolta.Eucuideidetudo.

Alonsobalançouacabeça.Tobysentiu-seimediatamenteestúpido.–Filho, comoque elesmepagaram, eu comuito contente em sair daqui –

disseAlonso.–MinhamãevaiverMiamievai carmuitofelizporlá.–EleagarrounovamenteorostodeTobycomasduasmãoseobeijou.–Vocêmetrouxesorte.Semprequevocêtocaraquelascançõesnapolitanas,penseemmim.

Ocarropartiu.Eles almoçaramnoRussianTeaRoome, enquantoToby comiaumFrango a

Kievquasequevorazmente,ohomemmaisvelhodisse:–Estávendoaqueleshomensali?Sãopoliciaisnova-iorquinos.Eohomemque

estácomelesédoFBI.Tobynãoolhou.Apenasmirouohomemque estava falando.Ele ainda estava

comaarmanumaposiçãodefácilalcance,emboraodiasseopesodela.Elesabiaquepoderia,sequisesse,atirarnosdoishomensqueestavamcomelee,

provavelmente,poderiaatirartambémemumdaquelesoutroshomensantesdeserpego. Mas ele ainda não tentaria nenhuma dessas coisas. Uma outra e melhoroportunidadeiriaseapresentar.

–Elestrabalhampranós–disseohomemmaisvelho.–Elesestãonosseguindodesdequesaímos.Evãonosseguiragorapraforadacidadeemdireçãoaointerior.Então,relaxe.Estamosmuitobemprotegidos,eugarantoavocê.

E foi assimqueToby tornou-se ummatador de aluguel. Foi assimqueTobytornou-seLucky,aRaposa.Masháalgomaisnatransição.

Naquelanoite,enquantoeleestavadeitadoemsuacamanumaespaçosacasadecampoaváriosquilômetrosdacidade,elepensounagarotaquehaviaseagachadoelevantado as mãos. Ele pensou em como ela havia implorado em palavras quedispensavamqualquer tradução.Seurostoestavacheiode lágrimas.Elepensouem

comoelasecurvaraesacudiraacabeçaeestenderaasduasmãosparaele.Elepensounagarotadepoisdeteratiradonela,emseucorpoalideitado,imóvel,

comoseuirmãoesuairmãhaviamficadodeitadosnabanheira.Eleselevantou,vestiusuasroupaseseusobretudo,mantendoaarmanobolso,

desceuosdegrausdacasagrandeepassoupelosdoishomensqueestavamjogandocartasnasala.Asalaeracomoumagrandecaverna.Haviamóveisdouradosemtodasaspartes.Ecouropretoemabundância.Eracomoumdaquelesvelhose elegantesclubesprivadosqueapareciamnosantigos lmesempretoebranco.Vocêesperavaavistar homensdistintos olhandopara vocêdas poltronas largas.Mashavia apenasaquelesdoisjogandocartassobaluzdeumabajur,emboraofogoquequeimavanalareiraproporcionasseumalegretremeluzirnaescuridãodorecinto.

Umdoshomensselevantou.–Queralgumacoisa?Talvezumabebida?–Precisodarumacaminhada–disseToby.Ninguémoimpediu.Elesaiuedeuumavoltaaoredordacasa.Notouaaparênciadasfolhasnasárvoresqueestavammaispróximasdospostes

de luz. Notou como os galhos das árvores nuas estavam brilhando com o geloacumulado.Estudouoelevadoeíngremetelhadodacasa.Olhouparaaréstiadeluznas janelas em forma de diamante. Uma casa do norte, construída para fortesnevascas, construída para o longo e rigoroso inverno, uma casa que ele conheciaapenasapartirdefotos,talvez,seéquealgumavezhouvessereparadonelas.

Eleouviuosomdarelvacongeladasobseuspés,echegouaumafontedeáguacorrente apesar do frio, e observou a água irromper do bocal e cair como umchuveiroemdireçãoaointeriordabaciaborbulhantesobumatênueluminosidade.

Havialuzvindodalanternanaporta-cocheira.Alimusinepretaestavaparadanolocalbrilhandosobalanterna.Havialuzvindodasluzesque anqueavamasmuitasportasda casa.Havia luz vindodepequenos apetrechosquemargeavamasmuitastrilhasdecascalho.Oarexalavaapinheiroemadeiraqueimada.Haviaumfrescoreuma sensação de limpeza que ele não experimentava na cidade. Havia umapremeditadabeleza.

Lembrou-lhe um verão em que ele passara as férias numa casa em LakePontchartraincomdoisdosmaisricosgarotosdoColégioJesuíta.Eleseramlegais,eramgêmeos, egostavamdele.Elesgostavamde jogarxadrezedemúsicaclássica.Erambonsnaspeçasmontadasnaescola,queeramtãobemencenadasquetodosna

cidadeiamvê-los.Tobyteriafeitoamizadecomessesdoisgarotos,maseraobrigadoamanteremsegredosuavidaparticular,demodoquenuncafoiexatamenteamigodeles.Noúltimoano,elesmalsefalavam.

Mas ele jamais esquecera a bela casa que eles possuíam perto deMandeville, ecomoerambonitososmóveis,ecomoamãedelesfalavauminglêsperfeito,eopaidelestinhaváriosdiscosdegrandesalaudistasqueeledeixavaTobyouvirnumasalaqueelechamavadeestúdioeque,naverdade,erarepletadelivros.

Essa casa no campo em que ele encontrava-se agora era como aquela casa emMandeville.

Eu o observei. Observei seu rosto e seus olhos, e vi aquelas imagens em suamemóriaeemseucoração.

Anjosnãocompreendem,defato,oscoraçõeshumanos,nãocompreendem,não.Issoéverdade.Nóschoramosdiantedeumpecado,diantedosofrimento.Masnãotemoscoraçõeshumanos.Noentanto,osteólogosquefazemobservaçõescomoessanãolevamrealmenteemconsideraçãotodaanossainteligência.Nóspodemosjuntarumnúmeroin nitodegestos,expressões,mudançasnarespiraçãoemovimentosetirar, a partir disso, muitas conclusões profundamente tocantes. Nós podemosexperimentaropesar.

EufuiformandomeuconceitodeTobyàmedidaquefaziaisso,eouviamúsicaqueeleouviranaquelacasadeMandevilletantotempoatrás,umaantigagravaçãodeum alaudista judeu tocando temas de Paganini. E observei Toby em pé sob ospinheirosatéeleficarquasecongelado.

Tobyvoltouparaacasalentamente.Elenãoconseguiadormir.Anoitenãofaziaomenorsentidoparaele.

Então uma coisa estranha, completamente inesperada, ocorreu quando ele seaproximoudasparedesdepedracobertasdehera.Dointeriordacasa,eleouviuumamúsicasutilecomovente.Certamenteumajanelaestavaabertaaofrioparaeleestarouvindoalgotãoternoedeumabelezatãosutil.Elesabiaqueaquiloeraumfagoteouumaclarineta.Elenãotinhamuitacerteza.Masláestavaajanelaaberta,altaeemvitral,abertaaofrio.Deláamúsicaestavavindo:umanotalongaerobusta,eentãoumamelodiacautelosa.

Eleseaproximou.Era como o som de algo despertando, mas então à melodia do solitário

instrumentodesoprojuntaram-seoutrosinstrumentos,tãocrusquemaispareciamosomdeumaorquestrasendoa nadamasque,noentanto,mantinham-seunidose

coesoscomoquepormeiodeuma ferrenhadisciplina.Entãoamúsicavoltouaossopros até que, novamente, uma urgência conduziu-a, a orquestra in ando, osinstrumentosdesoprotornando-semaispungentes.

Eleficouparadodoladodeforadajanela.Amúsicaenlouqueceusubitamente.Violinoseramdedilhadosfreneticamenteea

percussãosoavacomoseumalocomotivafeitadesomestivesserugindonanoite.Elequasepôsasmãosnosouvidos,tãopenetranteeraosom.Osinstrumentoschiavam.Lancinavam. Pareciam desnorteados, os trompetes berrando, a atordoante torrentedascordas,omartelardostímpanos.

Ele não conseguia mais identi car o que estava ouvindo. Por m, o trovejarcessou.Umamelodiamaissuavesurgiu,ancoradanapaz,emtranscriçõesmusicaisdasolidãoedeumdespertar.

Ele estava parado na mesma janela, a cabeça curvada, os dedos nas têmporas,comoseestivessequerendoimpediralguémdesecolocarentreeleeamúsica.

Embora suaves melodias ao acaso começassem a se intercalar na peça, umasombriaurgênciasoavaentreelas.Novamenteamúsica couencorpada.Osmetaisatingiramalturasinsuportáveis.Aformadosomeraameaçadora.

De repente, toda a composição parecia estar repleta de ameaça, o prelúdio e oreconhecimentoàvidaqueelelevaranopassado.Vocênãopodiacon arnassúbitasrecaídas, na ternura e na quietude porque a violência irrompia em seguida comtamboresrevoltoseviolinosinsanos.

Assim o tema ia e vinha, distanciando-se da melodia ou aproximando-se daquietudeeentãoirrompendonumacessodeviolênciaindustrialtãoferozesombrioqueodeixavaparalisado.

Então,amaisestranhatransformaçãoocorreu.Amúsicadeixoudeserumataque.Elatornou-seaorquestraçãomestradesuaprópriavida,deseuprópriosofrimento,desuaprópriaculpaeterror.

Eracomosealguémhouvessearremessadoumaamplaredesobretudooqueelehavia se tornado e sobre como ele havia destruído todas as coisas que consideravasagradas.

Elepressionouatestanalateralgeladadajanelaaberta.A cacofonia orquestrada tornou-se insuportável e, quando ele pensou que não

conseguiriamaisaguentar,quandoelequasetapouosouvidos,tudoparoudesúbito.Eleabriuosolhos.No interiordeuma salabemescura, iluminadaapenaspelo

fogo, umhomem estava sentadonuma alta cadeira de couro olhandopara ele.O

fogobrilhavanaextremidadedosóculosquadradosdearmaçãoprateadadohomem,noaltodeseuscabeloscurtosebrancos,eemsuabocasorridente.

Ele fez um gesto lânguido com a mão direita para que Toby contornasse aentradae,comamãoesquerda,fezumgestodeEntreparaele.

Ohomemnaportadafrentedisse:–Ochefequervervocêagora,garoto.Tobypassouporváriassalascommóveisdourados,revestidosdeveludoecom

pesadas cortinas. As cortinas estavam amarradas com tas douradas. Havia duaslareirasacesas,umanoquepareciaserumavastabibliotecae,logodepoisdela,haviaumasaladevidrobrancoquecontinhaumapequenapiscinadeáguaazul.

Nabiblioteca, eo localnãopoderia seroutracoisa, comtodasaquelas imensasestantesdelivros,“oChefe”estavasentado–exatamentecomoTobyoviraatravésdajanela–emsuacadeiravermelho-escuradeespaldaraltodecouro.

Tudonasalaeraelegante–umaescrivaninhapretaedemadeiraentalhada,umaestanteespecial,àesquerdadohomem,com gurasesculpidasdeambososladosdaporta.AsfigurasdeixaramTobyintrigado.

Tudoalipareciaemestiloalemão,comoseomobiliáriopertencesseaoperíododorenascimentoalemãonaEuropa.

Ocarpeteforatecidoespecialmenteparaasala,umimensomarde oresescurascomas lateraisdouradasao longodasparedesedosaltos rodapésbrilhantes.Tobyjamaishaviavistoumtapetefeitoparaumasala,cortadoemtornodasmetadesdecolunas que anqueavam as portas duplas, ou cortado em torno das extremidadesproeminentesdosassentosdasjanelas.

–Sente-seefalecomigo,filho–disseohomem.Toby escolheu a cadeira de couro em frente ao homem. Mas não disse nada.

Nadapodiasairdesuaboca.Amúsicaaindasoavaemseusouvidos.–Euvoudizerexatamenteoquedesejodevocê–disseohomem,eentãopôs-se

adescrever.Elaborado,sim,porémdificilmenteimpossível,eelegantementedesafiador.–Armas?Armassãocoisastoscas–disseohomem.–Issoaquiémaissimples.O

problemaéquevocêsóteráumaúnicachance.–Suspirou.–Vocêen aaagulhananuca,ounamão,econtinuaandando.Vocêsabecomofazerisso,comocontinuarandando,comseusolhos xosàfrentecomosejamaishouvesseaomenosroçadonohomem. Essas pessoas vão estar comendo, bebendo, vão estar desatentas. Elaspensamque os homens do lado de fora estão vigiando a possível presença de um

atirador a quem eles têmde temer.Você hesita?Bem, sua chance já era, e se elespegamvocêcomaagulha...

–Nãovãopegar–disseToby.–Eunãopareçoperigoso.–Issoéverdade!–disseohomem.Eleabriuasmãosenquantofalavasurpreso.–

Você éumgarotobemapessoado.Eunãoconsigo situarmuitobemseu sotaque.Boston,talvez?Não.NovaYork?Não.Deondevocêvem?

Aquilonão surpreendeuToby.Amaioriadaspessoasdedescendência irlandesaou alemã quemoravam emNovaOrleans possuía sotaques cuja origemninguémconseguia situar.ETobycultivaraos sotaquesdos ricosdonorteda cidade, e issodevetersidoaindamaisconfusoparaohomem.

–Vocêpareceinglês,alemão,suíço,americano–disseohomem.–Vocêétudo.Alémdisso,éjovemepossuiosolhosmaisfriosqueeujávinaminhavida.

–Vocêquerdizerqueeupareçocomvocê–disseToby.Ohomemficounovamentesobressaltado,masemseguidasorriu.–Suponhoquesim.Maseutenho67anosevocênãotemnem21.Tobyassentiu.–Porquevocênãosoltaessaarmaeconversacomigo?–Eupossofazertudooquevocêpediu–disseToby.–Eestouansiosoprafazer.–Vocêcompreende,umaúnicachance.Tobyassentiu.– Você faz tudo certo e ele nem vai notar. Ele só vai morrer vinte minutos

depois.Quando omomento chegar, você já vai estar fora do restaurante. Passadanormal,bastacontinuarandandoenósopegaremos.

Tobyestavanovamenteexcitadoaoextremo.Masnãodemonstrou.Amúsicaemsua cabeça não parava. Ele ouviu o primeiro ataque intenso das cordas e dostímpanos.

Eusabiaoquantoeleestavaexcitadoenquantooobservava.Podiaverissoemsuarespiraçãoenocaloremseusolhos,oqueohomemtalveznãotenhareparado.TobypareceuTobyporuminstante,inocenteecheiodeplanosnacabeça.

– O que você deseja para fazer tudo isso além de dinheiro? – perguntou ohomem.

AgoraeraTobyquem carasobressaltado.Ehouveumamudançadramáticaemseu rosto.Ohomemnotou, o sanguenasbochechasdeToby e obrilho em seusolhos.

–Mais trabalho–disseToby.–Muito trabalho.Eomelhor alaúdeque você

pudercomprar.Ohomemoestudou.–Comovocêveiopararnessasituação?–perguntouohomem.Elenovamente

fezumgestosimplescomasmãosabertas.Deudeombros.–Comovocêconseguiufazerascoisasquefez?

Eu sabia a resposta.Eu sabia todas as respostas.Eu conhecia o entusiasmoqueTobyestavasentindo;eusabiaoquantoeledescon avadaquelehomem,eoquantogostavadodesa oderealizaroqueohomemqueriaparadepoistentarpermanecervivo.A nal,porqueaquelehomemdeixariadematá-lodepoisqueele zesseessetrabalhoparaele?Porquê?

UmpensamentoerrantetomoucontadeToby.Nãoeraaprimeiravezqueeleagravaasimesmodesejandoestarmorto.Entãooqueimportavaseaquelehomem

omatasse? Aquele homemnão seria cruel. A coisa seria rápida, e então a vida deToby O’Dare não mais existiria, imaginou ele. Toby tentou imaginar, comoinúmeros seres humanos já haviam tentado, o que signi cava ser aniquilado. Odesesperotomoucontadelecomosefosseoacordemaisprofundoqueeleestivesseexecutandonoalaúde,eosomrepercutiuincessantementeemsuacabeça.

Oentusiasmovulgardotrabalhoqueeletinhaemmãoseraoúnicocontrapeso,eo acorde vibrando tão rmemente em seus ouvidos dava a ele a coragem de quenecessitava.

Aquele homem parecia acessível. Mas, na realidade, Toby não con ava emninguém.Nãoobstante,valiaapenatentar.Ohomemeraculto,seguro,re nado;aseuprópriojeito,bastanteatraente.Alonsonuncaforacalmo.Toby ngiasercalmo.Masnãosabiarealmenteosignificadodapalavra.

–Sevocênuncametrair–disseToby–,euvoufazerqualquercoisapravocê,absolutamente qualquer coisa. Coisas que outras pessoas não podem fazer. – Elepensounaquelagarotasoluçando,implorando,pensounelaestendendoosbraços,aspalmasdasmãoserguidasparaempurrá-lopara longe.–Oqueeuestoudizendoéque vou fazer absolutamente qualquer coisa. Mas com certeza vai haver ummomentoemquevocênãovaimaismequererporperto.

–Nãoébemassim–disseohomem.–Vocêvaisobreviveramim.Éimperativoquevocêconfieemmim.Vocêsabeoquesignifica“imperativo”?

Tobyassentiu.–Comcerteza–disse ele.–Epor enquantoeu imaginoquenão tenho tantas

escolhasassim.Então,euconfioemvocê,sim.

Ohomemficoupensativo.–VocêpoderiairpraNovaYork,fazerotrabalhoedepoisseguirseucaminho–

disseohomem.–Ecomoeuseriapago?–perguntouToby.–Vocêpoderiapegarmetadeagoraesimplesmentedesaparecer.–Éissooquevocêquerqueeufaça?–Não–disseohomem.Eleavaliouasituação.“Eupoderiateamar–disseohomemnumsussurro.–Estoufalandosério.Oh,

não,nãoéisso.Eunãoqueroquevocêsejaomeuveadinhodeestimação.Nãoestoudizendoisso.Nãoénadadisso.Apesardeque,naminhaidade,eunãoligomuitoseéumgarotoouumagarota, você sabe como é.Principalmente se eles são jovens,perfumados, carinhosos e belos. Mas eu não estou me referindo a isso. Estouquerendodizerqueeupoderiateamar.Porqueháalgodebeloemvocê,naformacomovocêolhaefalaenaformacomquevocêsemovenasala.”

Exatamente!Eraoqueeuestavapensando.Eagoraeuestavaentendendo–oquedizemqueosanjosnãotêmcomoentender–osdoiscoraçõesdeles,deambos.

Eu estava pensando no pai deToby e em como ele costumava chamá-lo de“coisinha fofa” e como escarnecia dele. Eu estava pensando no medo e na totalimpossibilidade de amar. Eu estava pensando na maneira com a qual a belezasobrevive,emboraespinhosedesgraçastentemperpetuamentesufocá-la.Masmeuspensamentosestavamemsegundoplanoaqui.Oprimeiroplanoéoqueinteressa.

– Eu quero esses russos rechaçados – disse o homem. Ele desviou o olhar,divagando,odedodobradoporummomentosobaboca.–Eununcaconteicomapossibilidadedessesrussosaparecerem.Ninguémcontou.Euinclusivejamaissonheicomalgoparecidocomessesrussos.Oqueeuquerodizeréquejamaisimagineiqueeles pudessemoperar em tantos níveis.Você não pode imaginar as coisas que elesfazem, as negociatas, as fraudes. Eles operam o sistema de todas as formasconcebíveis.Foiissooqueeles zeramnaUniãoSoviética.Éassimqueelesviviam.Elesnãotêmideiadecertoeerrado.

“Eentãoessesgarotoscrusaparecem,primosemterceirograudenãoseiquem,equeremacasadeAlonsoeorestaurantedele.–Elefezumsomdenojoebalançouacabeça.–Umaidiotice.”

Elesuspirou.Olhouparaolaptopabertoemcimadapequenamesaàsuadireita.Tobynãorepararaoaparelhoantes.Eraolaptopqueelepegaradoadvogado.

–Vocêcontinuarechaçandoelespramim,semparar–disseohomem–eeuvou

teamaraindamaisdoqueamoagora.Eununcavoutrairvocê.Empoucosdiasvocêvaientenderqueeusimplesmentenãotraioninguém,eéporissoqueeusou...bem,quemeusou.

Tobyassentiu.–Euachoquejáentendi–disseele.–Eoalaúde?Ohomembalançouacabeça.–Euconheçopessoas, evidentemente.Voudescobriroque existenomercado.

Vouconseguirissopravocê.Masnãovaipoderseromelhor.Omelhoralaúdedomundoseriaexcessodeostentação.Dariaoquefalar.Deixariarastros.

–Euconheçoosignificadodessapalavra–disseToby.–Alaúdesdequalidadesuperiorsãoarrendadosajovenssolistas,nuncasãodados

aelesdefato,éoqueeuimagino.Hápoucosexemplaresnomundotodo.–Euentendo–disseToby.–Eunãotocotãobemassim.Eusóquerotocarum

deboaqualidade.– Eu vou conseguir pra você o melhor que possa ser adquirido sem causar

problemas–disseohomem.–Vocêsótemdemeprometerumacoisa.Tobysorriu.–Éclaro.Eutocopravocê.Semprequevocêquiser.Ohomemriu.–Diga-medeondevocêvem–repetiuohomem.–Deverdade.Euquerosaber.

Eu consigo identi car a origem das pessoas assim. – Ele estalou os dedos. – Pelamaneira comoelas falam, independentedoquanto tenham treinado, independenteda quantidade de so sticação que elas tenham tentado acrescentar. Mas eu nãoconsigosituaraorigemdesuafala.Diga-me.

–Eununcavoudizer–disseToby.–NemmesmoseeutedisserqueagoravocêestátrabalhandoparaosCarasdo

Bem,filho?–Não importa–disseToby.–Assassinato é assassinato.–Elequase sorriu.–

Vocêpodeimaginarqueeunãovenhodenenhumlugar.Queeusouapenasalguémquedeuascarasnahoracerta.

Euestavaassombrado.Issoeraexatamenteoqueeuestavapensando.Eleéalguémquedeuascarasnahoracerta.

–Emaisumacoisa–disseTobyaohomem.Ohomemsorriueabriuasmãos.–Façaapergunta.

–Onomedaquelapeçamusical que você acaboudeouvir.Euquero comprarumagravaçãodela.

Ohomemriu.–Issoémuitofácil–disseele.–Asagraçãodaprimavera,deIgorStravinsky.O homem dirigia um olhar radiante paraToby, como se tivesse acabado de

descobrir alguém dotado de uma índole exemplar. Também eu tinha a mesmasensação.

Mais tarde, Toby estava dormindo e sonhando com sua mãe. Ele estavasonhandoqueeleeelapercorriamumacasagrandeebonitacomtetosdecorados.Eele dizia para ela como tudo seria maravilhoso, e sua irmãzinha iria estudar noColégiodasIrmãsdoSagradoCoração.JacobiriaparaoColégioJesuíta.

Sóquehaviaalgomuitoerradonaquelacasaespetacular.Elaadquiriuumaformalabiríntica e impossível de ser compreendida como uma habitação. As paredesergueram-se como se fossem penhascos, os pisos caram inclinados. Havia umgigantescorelógiodepêndulopretonasalae,emfrenteaele,encontrava-sea guradopapa,aparentementependuradonumpatíbulo.

Toby acordou sozinho e, por um instante, cou assustado e inseguro de ondeestava.Eentãocomeçouachorar.Tentouseconter,maseraincontrolável.Elevirou-seeenterrouacabeçanotravesseiro.

Eleviunovamenteagarota.Eleaviumortaemsuasaiacurtadesedaeusandoseusabsurdossapatosdesaltoalto,comosefosseumacriançabrincandodesevestir.Elausavafitasnoslongoscabeloslouros.

SeuanjodaguardacolocouamãonacabeçadeToby.Seuanjodaguardadeixou-overalgo.Deixou-overaalmadagarotaascendendo,retendoaformadeseucorpopor puro vício e por pura ignorância do fato de que ele não conhecia mais taislimites.

Toby abriu os olhos. Então seu choro piorou, e aquele profundo acorde dedesesperoficoumaisaltissonantedoquenunca.

Eleselevantouecomeçouaandardeumladoparaooutro.Olhouparaamalaaberta.Olhoufixamenteparaolivrosobreanjos.

Deitou-senovamente e chorouaté cairno sono, talqual fariaumacriança.Eletambémestavarezandoenquantochorava.

–AnjodeDeus,queridoguardião,queos “CarasdoBem”mematemomaisrápidopossível.

Seuanjodaguarda,ouvindoodesesperocontidonaquelaoração,ouvindoopesar

eaabsolutatristeza,deu-lheascostasecobriuorosto.Nãoeu.NãoMalchiah.Eleéoescolhido,penseieu.Dêumpulodedezanosnotempoatéopontoondeeuiniciei:eleéTobyO’Dare

paramim,nãoLucky,aRaposa.Eeuestoucomele.

S

CAPÍTULOCINCOCANÇÕESDOSERAFIM

EALGUMAVEZEUFIQUEIATURDIDOEMMINHAVIDA,não foinadaemcomparaçãoaoqueeuestavasentindoagora.Apenasgradativamenteasformaseascoresdeminhasalacomeçaramaemergirdanévoanaqualeu

haviamergulhadoassimqueMalchiahpararasuanarração.Eu readquirios sentidos, sentadono sofá eolhandopara a frente.Eovi, com

totalclareza,encostadonaparededelivros.Euestavadevastado,arrasado,incapazdefalar.Tudooqueeleacabaradememostrarforatãovívido,tãoimediato,queeuainda

estava me esforçando para me situar novamente no tempo presente, ou para meancoraremsegurançaemqualquertempoquefosse.

Meu senso de pesar, de um profundo e terrível remorso, era tamanho que eudesvieiosolhosdelee,lentamente,leveiasmãosaorosto.

Amaistênueesperançadesalvaçãomesustentava.Nofundodomeucoração,eusussurrei:

–Senhor,perdoe-mepormehaverseparadodeVocê.Noentanto,aomesmotempoeusentiaqueseformavamemminhamenteessas

palavras:Vocênãoacreditanisso.Vocênãoacreditanisso,mesmoeletendotereveladodemaneiramais íntimadoquevocê jamais teria condiçõesde revelar-se a simesmo.Vocênãoacredita.Vocêtemmedodeacreditar.

Euoouvimover-seemminhadireçãoeentãonovamentereadquiriossentidoscomeleaomeulado.

–Rezeporfé–sussurroueleemmeuouvido.Eassimeufiz.Eumantigoritualvoltouamim.Nasamargasnoitesdeoutono,quandoeuabominavaaideiadesairdaescolaeir

paracasa,euconduziaJacobeEmily, talqualumpastor,paraaIgrejadoSagradoNomedeJesus,e láeurezava:Senhor, incendeiemeucoraçãode fé,porqueeuestou

perdendoafé.Senhor,toqueomeucoraçãoeoincendeie.Asantigasimagensqueeuusavavoltaramamim,tãofrescasquemaispareciam

terem sido usadas ontem. Eu vi o tênue desenho de meu coração e a chamaamareladaemplenacombustão.MinhamemórianãocontavacomacorvibranteeinescapáveleomovimentodetudooqueMalchiahmehaviamostrado.Masparaissoeurezeicomtodoofervordequedispunha.Asantigas imagensdesvaneceramsubitamente.Eeufiqueiapenascomaspalavrasdaoração.

Não era um “estar sozinho” comooutro qualquer.Eu estava imóvel diante deDeus.Eutinhaalgunslampejosinstantâneosnosquaissubiaumaencostacobertadegramamacia,eondevianaminhafrenteuma guratogada,easantigasruminaçõesvinhamamim:Essaéaglória;milharesdeanossepassarameaindaassimvocêpodesegui-Lotãodeperto!

–Oh,meuDeus,eusintomuito,bemdofundodomeucoração–sussurrei.Portodos os meus pecados por causa do temor do inferno, mas principalmente,principalmente,principalmente,poreutermeseparadodeVocê.

Sentei no sofá e tive a sensação de estar vagando, perigosamente próximo deperder a consciência, como se tivesse sido derrotado por tudo o que havia visto,tendomerecido isso,masmeucorponão conseguia sustentaros golpes.ComoeupoderiaamarDeustantoassim,eestartãoarrependidopeloquemehaviatornado,eaindaassimnãoterfé?

Fecheiosolhos.–MeuToby–sussurrouMalchiah.–Vocêsabeaextensãodosatosquerealizou,

masnãopodecompreenderaextensãodoqueElesabe.EusentiobraçodeMalchiahsobremeuombro.Eusentioapertodeseusdedos.

Eentão queicientedequeelehaviaseerguido,esuavementeeuouviseuspassosenquantoelesemoviapelasala.

Erguiosolhosparavê-lo empénaminha frente, emaisumavezhavia aquelasensação de um colorido vívido em torno dele, sua forma distinta e enganadora.Umaluzsutilporémseguraemanavadele.Eunãotinhacerteza,mastiveaimpressãodehavervistoessaluzincandescentequandoeleapareceupelaprimeiravezparamimno Mission Inn. Eu não tive explicação alguma para o fato, portanto rejeitei asensaçãocomoalgoilusórioedespropositado.

Agora eu não o rejeitava. Eu estava embevecido diante dele. Seu olhar erapenetrante. Ele estava feliz. Parecia quase exultante. E alguma coisa do evangelhovoltouamim,acercadaalegrianocéuquandoumaalmapenitenteretorna.

–Vamos agir com rapidez – disse ele, ansioso. E dessa vez nenhuma imagemdesconcertanteacompanhavasuaspalavrassuavementepronunciadas.

–Vocêsabemuitobemcomoascoisasocorreramemseguida–disseele.–VocênuncacontouaoHomemCertoseuverdadeironome,pormaisqueeleinsistisse,e,à época, quando as agências de segurança começaram a te chamar de Lucky, essepassou a ser também o nome pelo qual oHomemCerto se referia a você. Vocêtambémoadotoucomamargaironia,realizandocome ciênciaumamissãoatrásdaoutra, e implorando para não car ocioso porque sabia exatamente o que issosignificava.

Eu não disse nada. Percebi que estava olhando para ele através de um véu delágrimas.Comoeualcançaraaglóriaemmeudesespero.Euhaviasidoumjovemseafogando, e lutando contra uma fera aquática como se isso tivesse algumaimportância,enquantoasondassefechavamsobremim.

– Naqueles primeiros anos, você trabalhou com frequência na Europa.Independentedodisfarce,suaalturaeseuscabelosbemlourosserviammuitobem.Vocêsein ltravaembancoseemrestauranteselegantes,hospitaisehotéisdeluxo.Vocênuncavoltouausarumaarmaporquenãohavianecessidade.O“assassinodaagulha”,diziamas reportagensquedetalhavamseusóbvios triunfos, e semprebemdepois do fato haver ocorrido. Embaralhavam em vão as imagens de vídeosconflitantesdepéssimaqualidadequetinhamdevocê.

“Sozinho,vocêfoiparaRomaevagoupelaBasílicadeSãoPedro.ViajouparaonorteporAssis,SienaePerugia,eparaMilão,PragaeViena.UmaocasiãovocêfoiparaaInglaterraapenasparavisitarapaisagemestérilondeas irmãsBrontëhaviammoradoeescritosuasmemoráveisobras;sozinhovocêassistiuamontagensdepeçasdeShakespeare.PerambuloupelaTorredeLondres,invisíveleperdidoemmeioaosoutros turistas. Você viveu uma vida despojada de testemunhas. Você viveu umavida mais perfeitamente solitária do que qualquer um poderia imaginar, comexceção,talvez,doHomemCerto.

“Mas logovocêparoudevisitá-lo.Vocêdeixoudegostardasgargalhadas fáceisoudassuasobservaçõesagradáveis,oudamaneiraprosaicacomaqualelediscutiaascoisasquequeriaquevocê zesse.Pelotelefone,vocêpodiatolerar isso;àmesadejantar,vocêachavaintragável.Acomidaerainsossaesecaemsuaboca.

“Eassimvocêvagouparabemlongedaquelaúltimatestemunhaetornou-se,emvezdisso,umfantasmano mdetodaumavida,enãomaisumamigoquevocêfingiater.”

Ele parou. Virou-se e passou os dedos pelos livros nas prateleiras diante dele.Pareciatãosólido,tãoperfeito,tãoinimaginável.

Achoqueouviamimmesmoarquejar,outalveztenhasidoumdesagradávelsomdeengasgoquetalvezsignificasselágrimas.

–Issovirouasuavida–disseelecomamesmavozabafadaesempressa.–Essesseuslivroseincursõesfáceisnointeriordessepaís,porque caraperigosodemaisparavocê arriscar-senas fronteiras, e você se estabeleceu aqui,não faznemnovemeses,absorvendoaluzdosuldaCalifórniacomosetivessepassadoaquisuainfâncianumasalaescura.

Elesevirou.–Euquerovocêagora–disseele.–MassuaredençãorepousanoCriador,em

suafénEle.Aféestáborbulhandodentrodevocê.Vocêsabedisso,nãosabe?Vocêjápediuperdão.Você já admitiuque é verdade tudo aquiloque eu revelei a você, esetentavezesmais.VocêsabequeDeusteperdoou?

Não consegui responder.Como alguémpoderia perdoar as coisas que euhaviafeito?

–EstamosfalandoaquideDeusTodo-poderoso–sussurrouele.–Euquero–sussurrei.–Oqueeupossofazer?Oqueéissoquevocêquerde

mimquetalvezpudessecompensarminimamentetudooqueeufiznopassado?– Que você se torne meu ajudante – disse ele. – Que você se torne meu

instrumento humano parame ajudar a fazer o que eu devo fazer naTerra. – Elecurvou-se na direção da parede cheia de livros e juntou as mãos, como qualquerpessoafaria,parafazerdeseusdedosumcampanáriologoabaixodaboca.

–Abandoneessavidavaziaquevocêcriouparasimesmo–disseele–edepositeemminhasmãossuaperspicácia,suacoragem,suasagacidadeesuararabelezafísica.Vocêénotavelmentecorajosoondeoutrostalvezsejamtímidos.Vocêéinteligenteondeoutrostalvezsejamincapazes.Tudooquevocêémeseráútil.

Sorriaoouvirisso.Porqueeusabiaoqueeleestavaquerendodizer.Narealidade,eucompreendiatudooqueeleestavadizendo.

–Vocêouveodiscursodeoutrossereshumanoscomosouvidosdeummúsico–continuouele.–Evocêamaoqueéharmoniosoeoqueébelo.Apesardetodososseuspecados,seucoraçãoédeumapessoaculta.TudoissoeupossocolocarparatrabalharcomointuitodeatenderasprecesqueoCriadormemandouatender.Eupedium instrumentohumanopara cumprirSuaordem.Você é esse instrumento.DepositesuaconfiançanEleeemmim.

Sentiosprimeirosindíciosdeumaverdadeirafelicidadeemmuitosanos.–Euqueroacreditaremvocê–sussurrei.–Euqueroser seu instrumento,mas

acho que, talvez pela primeira vez em toda a minha vida, eu esteja me sentindogenuinamenteassustado.

–Não,vocênãoestá.VocênãoaceitouoperdãodEle.Vocêdeve confiarqueElepodeperdoarumhomemcomovocê.EEleperdoou.

Elenãoesperouqueeurespondesse.–Vocêpodeimaginarouniversoqueocerca.Vocênãopodevê-locomonóso

vemosdoParaíso.Vocênãopodeouvir aspreces subindode todosos cantos, emtodososséculos,detodososcontinentes,detodososcorações.

“Nossa presença é necessária, a sua e a minha, no que para você será uma erapassada,masnãoparamim,quepossoveressesanoscomtantaclarezaquantovejoessemomentoagora.DeTempoNaturalaTempoNaturalvocêirá.MaseuexistonoTempodosAnjos,evocêviajarácomigotambématravésdele.”

–OTempodosAnjos–sussurrei.Oqueeuestavaprevendo?Elefalounovamente.–OolhardoCriadorenglobatodootempo.Elesabetudooqueé,oquefoieo

queserá.Elesabetudooquepoderiaser.EEleéoMestredetodosnós,atéondepodemoscompreender.

Algo estava mudando em mim, completamente. Minha mente ansiava porcompreenderasomatotaldetudooqueeleacabarademerevelar,e,pelotantoqueconhecia de teologia e loso a, eu só conseguia fazer isso sem a utilização depalavras.

AlgumasfrasesdeSantoAgostinhovoltaramamim,citadasporSantoTomásdeAquino,eeuasmurmureisuavementecomoquemsuspira:

–Emboranão possamos contar o in nito, ele pode, todavia, ser compreendido porEle,cujoconhecimentonãoconhecelimites.

Eleestavasorrindo.Eleestavarefletindo.Umagrandemudançaemmimacabaradeocorrer.Permaneciquieto.Eleprosseguiu.–Eunãopossoacalentarassensibilidadesdaquelesqueprecisamdemimcomo

acalenteiassuas.Euprecisoquevocêentrenomundosólidodelesguiadopormim,umserhumanoassimcomoelessãosereshumanos,umhomemcomoalgunsdelessãohomens.Euprecisoquevocêintervenhanãonosentidodetrazeramorte,mas

simnoladodavida.Digaqueestádisposto,equesuavidavoltouascostasparaomal.Con rme isso e vocêmergulhará de imediato no perigo e no sofrimento detentarfazeroqueéinquestionavelmentebom.

Perigoesofrimento.–Euvou fazer isso– eudisse.Euqueria repetir as palavras,mas elas pareciam

suspensasnoardiantedenós.–Ondequerqueseja.Bastamedizeroquevocêquerdemim.Digacomodevocumprirsuatarefa.Diga!Eunãoligoproperigo.Nãoligopro sofrimento. Você me diz que é bom e eu vou lá e faço.Querido Deus, euacreditoqueVocêmeperdoou!Emedêessachance!EupertençoaVocê!

Sentiumafelicidadeimediataeinesperada,umaleveza,edepoisumaalegria.Deimediato,oaraomeuredormudou.Ascoresdasala caramembaçadasebrilharam.Pareciaqueolocalestavasendo

retiradodamolduradeumquadro,eopróprioquadroestava candomaioremaisfraco, e então tudo dissolveu-se ao meu redor numa névoa na, sem peso eresplandecente.

–Malchiah!–gritei.–Estouaoseulado–soouavozdele.Nós estávamos viajando para cima. O dia havia se dissolvido numa tênue

escuridão purpúrea, mas a escuridão estava preenchida com uma luz suave eacalentadora.Entãoelaexplodiuembilhõesdefagulhas.

Umsominexprimivelmentebeloarrebatou-me.Pareciaqueelemeseguravacomamesmasegurançaqueascorrentesdearmesustentavam,comamesmasegurançaqueacálidapresençadeMalchiahmeguiava,emboraagoraeunãopudessevernadaalémdecéusestrelados,eosomtornou-seumanotaintensa,profundaebela,comooecodeumgrandegongodebronze.

Um vento agudo aparecera, mas o tom ecoante sobrepujou-o, e outras notassurgiram, liquefeitas, vibrantes, como seprovenientesdasgargantasdeumagrandequantidadedesinospuroseleves.Lentamente,amúsicadissolveuinteiramenteemsio somdovento,enquanto in avae cavamais rápida,e sentiqueestavaouvindoumacançãomais uidaerobustadoquequalquercoisaqueeujamaisouviraantes.Transcendia os hinos daTerra tão óbvia e indescritivelmente que todo sentidodetempo me abandonou. Eu podia apenas imaginar a possibilidade de ouvir parasempreessascançõesenãosentiaemnadaapresençademimmesmo.

Querido Deus, que alguma vez abandonei, que virei as costas a Você... EuTepertenço.

Asestrelashaviamsemultiplicadotantoquemaispareciamosgrãosdeareiadomar. Na verdade, não havia escuridão separada do brilho, ainda que cada estrelapulsasse com uma perfeita luz iridescente. E tudo ao meu redor, acima de mim,abaixodemim,aomeulado,euviaoquepareciamserestrelascadentes,passandopormimcomofoguetessememitirumruídosequer.

Eu me sentia desprovido de corpo, bem no meio daquilo tudo, sem jamaisdesejarsairdali.Derepente,comoseeuhouvessesidocomunicado,percebiqueessasestrelas cadentes eram anjos. Eu simplesmente sabia. Sabia que elas eram anjosviajandoparacima,parabaixo,paraosladoseemdiagonal,suasjornadasrápidaseinevitáveis fazendo parte da estrutura fundamental desse grande domínio douniverso.

Quantoamim,eunãoestavaviajandonessavelocidade.Estavavagando.E,noentanto, até mesmo essa palavra carrega consigo muito da conotação do peso dagravidadeparadescrever comacuidadeo estadonoqual eume encontrava em tãocompletadespreocupação.

Muito lentamente, amúsica densa cedeu e se transformou emoutro som.Elechegou abafado e então foi cando cada vez mais urgente, um coro de sussurroselevando-se de baixo.Tantas vozes suaves e discretas juntaram-se aos sussurros aofundirem-secomamúsicaquemaispareciaqueomundointeiroabaixodenós,ouao nosso redor, estava preenchido com esses sussurros, e ouvi uma multidão desílabas,aindaquetodasparecessemestarevocandoapenasumúnicoapelo.

Olheiparabaixo,impressionadodeaindateralgumsensodeduração.Amúsicacontinuavadesaparecendoàmedidaqueavisãodeumgrandeesólidoplanetasurgiudiantedemeusolhos.Euansiavapelamúsica.Eusentiaquenãoconseguiriasuportarperdê-la. Mas nós estávamos mergulhando na direção do planeta, e eu sabia queaquiloerajustoecorreto,enãoresistiemhipótesealguma.

Emtodasaspartes,asestrelasmoventesaindadardejavamparaumladoeparaooutro, e agoranãohaviamaisqualquerdúvida emminhamentedeque elas eramanjos atendendo as preces. Elas eram os reais mensageiros de Deus, e me sentitotalmente privilegiado por poder testemunhar aquilo, mesmo que a mais etéreamúsicaqueeujamaisouviraemminhavidaestivesseagoraquasequecompletamenteinaudível.

Ocorodesussurroseravastoe,aseuprópriomodo,umsomperfeitoaindaquemais sombrio.EssassãoascançõesdaTerra ,pensei,bastanteconscientemente,e elasestãorepletasdetristezaenecessidadeeadoraçãoereverênciaeadmiração.

Vi asmassas escuras de terra aparecerem, ampliadas commiríades de luzes, e aenormecintilaçãosedosadosmares.Cidadesestavamvisíveisparamimnacondiçãodeteiasdeiluminaçãoqueapareciamedesapareciamabaixodecamadasecamadasdenuvens escuras. Então, distingui con gurações menores enquanto nos movíamosparabaixo.

Amúsica já cessara por completo agora, e o coro de preces era amelodia quepreenchiameusouvidos.

Por uma fração de segundo, uma in nidade de questões me ocorreu mas, deimediato,todasforamrespondidas.NósestávamosnosaproximandodaTerra, masnumaépocadiferente.

– Lembre-se – disse Malchiah suavemente em meu ouvido – que o Criadorconhece todas as coisas, tudo que é passado e presente, tudo que aconteceu eacontecerá, e também o que poderia ter acontecido. Lembre-se de que não hápassadoou futuroondeoCriador está,mas somenteo vastopresentede todas ascoisasvivas.

Fiquei totalmente convencido da verdade daquilo, e absorvido naquilo, enovamente uma imensa gratidão preencheu-me por inteiro, uma gratidão tãosobrepujante que tornou ín mas quaisquer emoções que eu jamais experimentaraconscientemente.EuestavaviajandocomMalchiahatravésdoTempodosAnjoseretornandoaoTempoNatural,eestavaseguroemseupropósitoporqueaqueleeraoseudomínio.

Amiríadedepontinhosdeluz,aquelesquesemoviamemaltíssimavelocidade,estavaagoraa nando,oudeliberadamentesumindodeminhavista.Logoabaixodenós, numa fonte de sussurros e preces frenéticas, vi um grande grupo de telhadoscobertosdeneve,echaminésquedavamaoarnoturnoumafumaçaavermelhada.

Odeliciosocheirodemadeiraqueimadaelevou-seemdireçãoàsminhasnarinas.Os suplicantes diziam palavras e oravam com intensidade variáveis, mas eu nãoconseguiadistinguiroquediziam.

Sentimeu corpo inteiro tomar formanovamente, aindaque continuasse sendoenvolvidopelossussurros,etambém queiconscientedequemeustrajesanterioreshaviamdesaparecido.Euestavavestindoalgumacoisasemelhanteàlãpesada.

Maseunãomeimportavacomigomesmooucomasroupasquevestia.Estavaextasiadodemaispelavisãoabaixo.

Pensei ter visto um rio movendo-se em meio às casas, uma ta de prata naescuridão,eaformavagadoqueseriaumacatedralmuitograndecomseuinevitável

formato cruciforme.Numa grande elevação encontrava-se o que só podia ser umcastelo.Etudooquerestavaeramtelhadosamontoadosunscontraosoutros,algunstotalmentecobertosdeneveeoutrostãoíngremesqueaneve,dealgumamaneira,escorregaraparaochão.

Aneveestavadefatocaindocomumadeliciosasuavidadequeeupodiaouvir.Cadavezmaisalto,vinhaograndecorodesussurrossobrepostos.–Elesestãorezando,eestãoassustados–eudisseemvozalta,eouviminhavoz

semobstáculo algumemuitopróximademimmesmo, como se eunão estivessenaquelavastaextensãodecéu.Umcalafriopercorreumeucorpo.Oarmeenvolveu.Senti a neve emmeu rosto e emminhasmãos.Queria desesperadamente ouvir amúsicaperdidaumaúltimaveze,parameuespanto,conseguiouvi-lanumimensoeco,eentãoelasefoidefinitivamente.

Senti vontade de chorar apenas por gratidão àquele momento, mas tinha dedescobrir oquedeveria fazer.Eunãomereciaouvir amúsica.E a ideiadeque eupodiafazeralgodebomnessemundotomoucontademimenquantoeulutavaparaconteraslágrimas.

–Eles estão rezandoparaMeir eFluria–disseMalchiah. –Eles estão rezandoparatodooguetodacidade.Vocêdeveserarespostaàsprecesdeles.

–Mascomo?Oqueeuvoufazer?–Eulutavaparaformaraspalavras,masagoranósestávamosmuitopróximosdostelhados,econseguidistinguirasvielaseasruasdolugar,eanevequecobriaastorresdocastelo,eotelhadodacatedralquecintilavacomosealuzdasestrelaspudessebrilharemmeioànevequecaía,tornandotodaaextensãodacidadezinhabemplana.

– É m de tarde na cidade de Norwich – disse Malchiah, sua voz íntima eperfeita,enãoperturbadapornossadescidaoupelasvozesdaspessoasquerezavamelevando-seemmeusouvidos.–OspréstitosdeNatalencerraram-sehápoucoeteveinícioumtempoturbulentoparaogueto.

Eunãopreciseipedirparaelecontinuar.Eusabiaqueapalavra“gueto”referia-seàpopulaçãojudaicaemNorwicheàpequenaáreaondeamaioriadelesresidia.

Nossadescida caramaisrápida.Euvidefatoumrioe,porummomento,sentiter visto os próprios éis se levantando,mas o céu estava candomais denso, ostelhadoseramcomofantasmasabaixodemim,esentinovamenteoroçarmolhadodanevequecaía.

Agoranosencontrávamosentrandonaprópriacidade,elentamentedescobriqueestava rmemente postado no chão. Nós estávamos cercados de casas feitas de

madeiraquepareciaminclinar-seperigosamenteparadentro,comosefossemtombarsobrenósnuminstante.Umaparcaluminosidadepodiaservistanasjanelaspequenasegrossas.

Pequenosflocosdeneveenadamaisrodopiavamnoargelado.Baixeiosolhosevi,nafracaluzdisponível,queestavavestidocomoummonge,

e reconheci o hábito imediatamente. Eu estava usando a túnica branca com umlongo escapulário branco e o manto preto com capuz dos dominicanos. Havia ofamiliar cinturão de corda atado com um nó em minha cintura, mas o longoescapuláriocobria-o.Penduradaemmeuombroesquerdoencontrava-seumabolsadecouroparacarregarlivros.Fiqueiestupefato.

Levanteiminhasmãosansiosamenteedescobriquehavia sidotonsurado,equetinha a cachola careca e o anel de cabelo aparado que os monges daquele tempousavam.

– Você me transformou no que eu sempre quis ser – eu disse. – Um freidominicano. – O entusiasmo que eu estava sentindo era tão grande que eu malconseguiacontê-lo.Euqueriasaberoqueestavacarregandonaquelabolsadelivros.

– Agora ouça – disse ele, e, embora eu não pudesse vê-lo, sua voz ecoava dasparedes. Parecia que estávamos perdidos nas sombras. Na verdade, ele estavacompletamenteinvisível.Euestavasozinhoaqui.

Eupodiaouvirvozes raivosasnanoite,nãomuitodistantedeondeestava.Eocorodeprecesnãoestavamaisaudível.

–Estoubemaoseulado–disseele.Porumminuto,sentipânico,masentãosentiapressãodesuamãonaminha.–Ouça-me–disseele.–Éumaturbaoquevocêestáouvindonaoutrarua,eo

tempoécurto.OreiHenrydeWinchesterestásentadonotronoinglês–explicouele.–Evocêpodecalcularqueesseéoano1257,masnenhumdesses retalhosdeinformação terá importância para você aqui. Você conhece essa época tão bemquanto, quem sabe, qualquer serhumanode seupróprio século, e você a conhececomoelanãotemcomoconhecerasiprópria.MeireFluriasãosuasincumbências,etodooguetoestárezandoporqueMeireFluriaestãoemperigoe,comovocêbementende, esse perigo pode se estender a toda a pequena população judaica dessacidade.EsseperigopoderiaalcançarinclusiveLondres.

Euestavacompletamentefascinado,ebarbaramenteexcitado,maisaindadoquejamaisestiveraemtodaaminhavidanatural.EeuconheciaessaépocaeoperigoquerondavaosjudeusdaInglaterraemtodasaspartes.

Eutambémestavaficandocommuitofrio.Olheiparabaixoeviqueestavausandosapatosde vela.Sentimeiasde lãnas

pernas. Graças a Deus eu não era um franciscano submetido a usar sandálias oumesmo a car com os pés descalços, pensei, e então uma sensação frívola tomoucontademim.Eutinhadepararcomessainsensatezepensarnoquedeveriafazer.

–Precisamente.–VeioavozíntimadeMalchiah.–Masvocêsentiráprazernoqueterádefazeraqui?Sim,vocêsentirá.NãoháumúnicoanjodeDeussequerquenão sinta alegria em ajudar os humanos.E você está trabalhando conosco.Você énossacriança.

–Essaspessoaspodemmever?–Comtodacerteza.Elesvãotevereteouvir,evocêvaientendê-loseelesvão

entendê-lo. Você saberá quando estiver falando francês ou inglês ou hebraico, equando eles estiverem falando aquelas línguas.Tais coisas nós conseguimos fazercommuitafacilidade.

–Masequantoavocê?–Estareisemprecomvocê,comohavialhedito–disseele.–Massomentevocê

poderámeveremeouvir.Nãotentefalarcomigocomsuaboca.Enãomechameamenosquesejaobrigadoaisso.

“Agoraváatéaturbaepenetrebemnofundodela,porqueelaestádandoumaguinada para onde não deveria dar. Você é um erudito em viagem, você veio daItália, passou pela França e chegou à Inglaterra, e seu nome é irmãoToby, que ébastantesimples.”

Euestavamaisansiosopararealizaratarefadoqueconseguiaexprimir.–Masoquemaiseuprecisosaber?–Con eemseusdons–disseele.–Osdonsemfunçãodosquaiseuteescolhi.

Você se expressa bem, é inclusive eloquente e possui uma grande con ança emdesempenharumpapelcomumdeterminadopropósito.Con enoCriadorecon eemmim.

Eu podia ouvir as vozes na rua próxima cando cada vezmais altas.Um sinoestavasoando.

–Deveserotoquederecolher–eudisserapidamente.Minhamenteestavaemalta velocidade.O que eu sabia acerca desse século pareceu subitamente escasso, enovamentesentiapreensão,quasemedo.

– É o toque de recolher – disse Malchiah. – E ele vai in amar aquelesresponsáveispelotumulto,porqueestãoansiososporumaresolução.Agoravá.

E

CAPÍTULOSEISOMISTÉRIODELEA

RA UMA TURBA RAIVOSA E COM UMA APARÊNCIA assustadora porquenão era, em hipótese alguma, formada por gentalha. Muitos levavamlanternas e alguns tochas, alguns poucos levavam inclusive círios emuitos

estavamricamentevestidosemtrajesdeveludoepeles.Ascasasdeambososladosdessaruaeramdepedra,eeulembreiqueosjudeus

haviamconstruídoasprimeirascasasdepedradaInglaterra,ecomrazão.EupodiaouviravozíntimadeMalchiahenquantomeaproximava.–Ospadresdebrancosãodoprioradodacatedral–disseele,enquantoeuolhava

paraostrêshomensusandopesadasvestesqueestavammaispróximosdaportadacasa.–OsdominicanosestãoreunidosláaoredordeLadyMargaret,queésobrinhadoxerifeeprimadoarcebispo.Aqueestáaoladodelaésua lha,Nell,umagarotadetrezeanos.SãoelasqueacusamMeireFluriadeteremenvenenadoa lhaedeaterem secretamente enterrado. Lembre-se de que Meir e Fluria são suasincumbências,equevocêestáaquiparaajudá-los.

Haviamilharesdeperguntasqueeuqueriafazer.Euestavaabaladoporouvirqueuma criança talvez tivesse sido assassinada. E apenas indistintamente conseguiestabelecer a conexão óbvia: essas duas pessoas estavam sendo acusadas domesmocrimequeeumesmocometerahabitualmente.

En ei-menomeiodamultidão.Malchiahtinhaidoembora,eeusabiadisso.Euagoraestavaporcontaprópria.

Era Lady Margaret quem batia à porta enquanto eu me aproximava. Estavaformidavelmentevestidacomumabataestreitacomapliques, tudoadornadocompeles,eusavaumacapadepelecomcapuzsoltanocorpo.Seurostoestavabanhadodelágrimas,esuavozentrecortada.

– Saia e responda! – exigia. Ela parecia totalmente sincera e profundamenteabalada.–MeireFluria,euexijo.TragamLeaagoraourespondamomotivopeloqualelanãoestáaqui.Nósnãoaceitaremosmaisnenhumadesuasmentiras,eujuro.

Elaolhouaoredoredeixouqueavozecoassenamultidão.– Não queremos mais ouvir histórias fantasiosas como a que foi contada a

respeitodacriançatersidolevadaparaParis.Umgrandecorodeaprovaçãoelevou-sedamultidão.Saudeiosoutrosdominicanosquesemoveramemminhadireçãoedisseaeles

numsussurroqueeueraofreiToby,umperegrinoqueviajarapormuitasterras.–Bom,vocêchegounahoracerta–disseomaisaltoemaisimponentedosfreis.

–EusouofreiAntoine,osuperioraqui,comovocêdevesaber,semdúvidaalguma,seesteveemParis.Eessesjudeusaquienvenenaramaprópria lhaporqueelateveaousadiadeentrarnacatedralnanoitedeNatal.

Emboraeletentassemanteravozbaixa,aspalavrasproporcionaramumimediatoataquedesoluçosemLadyMargareteemsua lhaNell.Emuitosgritoseberrosdeconcordânciadaquelesqueestavamaoredordenós.

Ajovem,Nell,estavaesplendidamentevestidacomosuamãe,masin nitamentemaisabalada,sacudindoacabeçaesoluçando.

–Étudoculpaminha,tudoculpaminha.Eualeveiparaaigreja.Deimediato,ospadresdebatinabrancadoprioradocomeçaramadiscutircomo

freiquefalaracomigo.–Esse é o frei Jerome – sussurrouMalchiah –, e você vai ver que ele lidera a

oposiçãoaessacampanhaquetemcomoobjetivotransformarumoutrojudeuemmártirousanto.

Fiquei aliviado em ouvir a voz dele, mas como eu poderia lhe pedir maisinformações?

Sentiqueeleestavameempurrandoparaafrente,esubitamentemeencontreidecostas para a porta da grande casa de pedra na qual obviamente Meir e Fluriamoravam.

–Perdoe-me,jáquesouumestranhoaqui–eudisse,minhaprópriavozsoandocompletamente natural para mim –, mas por que vocês estão tão certos de queocorreuumassassinato?

–Ela não pode ser encontrada emparte alguma, por isso nós sabemos – disseLadyMargaret.Elaeracertamenteumadasmulheresmaisatraentesqueeuviraemtodaaminhavida,mesmocomosolhosvermelhoseúmidos.–NóslevamosLeaconosco porque ela queria ver o Menino Jesus – disse-me ela com amargura, oslábios trêmulos. –Nós jamais sonhamos que seus próprios pais a envenenariam ecuidariamde seu leitodemorte comcoraçõesdepedra.Que eles saiam.Que eles

respondam.Aparentemente,todaamultidãocomeçouagritaraoouviraquelaspalavras,efrei

Jerome,opadrevestidodebranco,exigiusilêncio.Eleolhouparamimfurioso.–Nósjátemosnacidadeumaquantidadesu cientededominicanos–disseele.

– E já temos um mártir perfeito em nossa própria catedral, o Pequeno SantoWilliam. Aqueles judeus malévolos que o assassinaram estão mortos há muitotempo, e não passaram impunes. Esses seus confrades dominicanos querem seuprópriosantojáqueonossonãoébomosuficiente.

– É a Pequena Santa Lea quem nós queremos celebrar agora – disse LadyMargaretcomsuavozroucaetrágica.–ENelleeusomosacausadesuaqueda.–Ela tomou fôlego.–Todos conhecemoPequenoHughdeLincoln eoshorroresqueforam...

–LadyMargaret,essanãoéacidadedeLincoln–insistiufreiJerome.–Enósnão temos evidência alguma, tais quais as que encontramos em Lincoln, paraacreditarquehouveumassassinatoaqui.–Elesevirouparamim.–Sevocêveioatéaqui para rezar no santuário do Pequeno SantoWilliam, nós lhe damos as boas-vindas – disse ele. – Posso ver que você é um frei educado e não um mendigoqualquer. –Ele olhou com fúriaparaos outrosdominicanos. –Eposso lhedizeragoramesmoqueoPequenoSantoWilliaméumverdadeirosanto,famosoemtodaaInglaterra,equeessaspessoasnãotêmprovadequeLea,a lhadeFluria,foiaomenosbatizada.

–Elasofreuobatismodesangue–insistiuodominicanofreiAntoine.Elefalavacomacon ançadeumpregador.–PoracasoomartíriodoPequenoHughnãonosdiz o que esses judeus farão se tiverem permissão para tanto? Essa jovem criançamorreuporsuafé,elamorreuporentrarnaigrejanavésperadeNatal.Eessehomeme essa mulher devem responder, não apenas pelo crime antinatural de matar suaprópriacarneesangue,maspeloassassinatodeumacristã,pois issoéoqueLeasetornou.

Amultidãorugiudeaprovaçãoaoouviraspalavrasdele,masviquemuitosdosquealiestavamnãoacreditavamnoqueelehaviadito.

Comoeudeveriaagireoquedeveriafazer?Eumevireiebatinaporta,edissenumavozsuave:

–MeireFluria,estouaquiparadefendervocês.Porfavor,respondam.–Eunãosabiaseelesestavammeescutandoounão.

Enquantoisso,pareciaquemetadedacidadeestavasejuntandoàmultidão,ederepenteosomdeumsinosooudeumcampanárionasproximidades.Maisemaispessoasestavamseaglomerandonaruadecasasdepedra.

Subitamente,amultidãofoidispersapelachegadadesoldados.Euviumhomembemvestidoemcimadeumcavalo,seuscabelosbrancossoltosaovento,comumaespadana cintura.Ele freouo cavalo váriosmetrosdistantedaportada casa, e alireuniram-seaoredordelepelomenoscincoouseiscavaleiros.

Algumaspessoaspuseram-seacorrerimediatamente.Outrascomeçaramagritar:–Prendam-nos.Prendamosjudeus.Prendam-nos.Outrosseaproximaramquandoohomemdesmontouefoiaoencontrodaqueles

queestavamdiantedaporta,seusolhospassandopormimsemqualquermudançadeexpressão.

LadyMargaretfalouantesqueohomempudessedizerqualquercoisa.–Meusenhorxerife,osenhorsabequeessesjudeussãoculpados–disseela.–O

senhor sabeque eles foramvistosna oresta comum fardopesado, e semdúvidaalgumaenterraramessacriançaaoladodograndecarvalho.

Oxerife, umhomemgrande e vigoroso comumabarba tãobrancaquantooscabelos,olhouaoredorcomrepugnância.

–Paremessesinodeavisoagoramesmo–gritoueleaumdeseushomens.Elemediuminhapresençamaisumavez,masnãomeafasteidele.Elesevirouparasedirigiràmultidão.–Devo lembrá-los,minha boa gente, que esses judeus são propriedade de sua

alteza,oreiHenry,esevocêscausaremqualquerdanoaeles,ouàssuascasas,ouàssuaspropriedades,vocêsestarãocausandodanosaorei,eeuosprendereiatodoseosconsiderareiinteiramenteresponsáveisportaisatos.EssessãoosJudeusdoRei.ElessãoServosdaCoroa.Agorasaiamdaqui.Oquevocêsquerem,afinal?Teremosagoraummártirjudeuemcadacidadedessereino?

Issogerouumatempestadedeprotestosediscussões.LadyMargaretsegurouimediatamenteobraçodoxerife.–Tio–implorouela–,umterrívelmalfoicometidoaqui.Não,nãofoiaquela

coisapusilânimefeitaaoPequenoSantoWilliamouaoPequenoSantoHugh.Masfoi tão hediondo quanto. Porque nós levamos a criança conosco para a igreja navésperadeNatal.

–Quantas vezes terei de ouvir isso? – respondeu ele a ela. –Noite e dia, nóssempre fomos amigos desses judeus, e agora nós nos voltamos contra eles porque

umagarotinhasaisemdizeradeusaseusamigosgentios?Osinohaviaparado,masaruaestavasaturadadepessoas,eeutinhaaimpressão

dequealgumasestavaminclusiveemcimadostelhados.–Voltem para suas casas – disse o xerife. –O toque de recolher soou.Vocês

estarão fora da lei se permanecerem aqui! – Seus soldados tentaram levar suasmontariasumpoucomaisparaperto.Masnãoerafácil.

LadyMargaretfezgestosfuriososparaquecertaspessoasseaproximasseme,deimediato,doisindivíduosbastantemaltrapilhosapareceram,ambosfedendoaálcool.Elesestavamvestindoasmesmastúnicassimplesdelãeascalçasqueamaioriadoshomens namultidão, só que seusmembros estavam cobertos de trapos, e ambospareciam aturdidos pela luz das tochas e pela grande quantidade de gente que seacotovelavaparavê-los.

–Bom,essastestemunhasviramMeireeFluriaentraremnaflorestacomumsaco– gritou Lady Margaret. – Elas os viram perto do grande carvalho. Meu senhorxerife,emeuamadotio,seochãonãoestivessecongeladonósjáteríamosretiradoocorpodacriançadolocalondeelefoienterrado.

–Masesseshomenssãodoisbêbados–eudissesempensar.–Esevocêsnãotêmocorpo,comopodemprovarquehouveumassassinato?

–Esseéexatamenteoponto–disseoxerife.–Eaquiestáumdominicanoquenãoestá loucopara fazerumsantodealguémqueestánessemomentoao ladodeumaaconchegantelareiranacidadedeParis.–Elesevirouparamim.–Foramseusconfradesaquiqueatiçaramessefogo.Faça-osvoltaraobom-senso.

Osdominicanosestavamabsolutamentefuriososcomigo,masumoutroaspectodo comportamento deles me chamou a atenção. Eles estavam sendo sinceros.Obviamenteacreditavamqueestavamdoladocorreto.

LadyMargaretteveumfrenesi.–Tio,osenhornãoentendeminhaculpanissotudo?Eudevoinsistir.Fuieu,ea

Nellaqui,quelevamosacriançaparaamissaeparaverospréstitosnatalinos.Fomosnósqueexplicamososhinosaela,querespondemossuasinocentesperguntas.

–Asquaisforamperdoadaspelospaisdela!–declarouoxerife.–Existealguémno gueto que possa ser mais afável do que Meir, o erudito? Você mesmo, freiAntoine,estudouhebraicocomele.Comopodefazeressaacusação?

–Sim,estudeicomele–dissefreiAntoine–,masseiqueeleéfracoevivesobojugodesuamulher.Ela,afinal,eraamãedaapóstata...

Amultidãorecebeuaspalavrascomefusivoentusiasmo.

– Apóstata! – gritou o xerife. – Você não sabe se a jovem era uma apóstata!Muitosdetalhessãosimplesmentedesconhecidos.

Claramenteamultidãoestavaforadecontrole,eelepercebeuisso.–Masporquevocêestátãocertodequeacriançaestámorta?–pergunteiaofrei

Antoine.–ElapassoumalnamanhãdeNatal–disseele.–Esseéomotivo.OfreiJerome

aqui sabe disso. Ele é medico, além de padre. Ele a atendeu. Assim mesmo elescomeçaramaenvenená-la.Eela coudecamaporumdiaemprofundaagonia,poisovenenocomiaseuestômago,eagoraelasefoisemdeixarrastroeessesjudeustêmadesfaçatezdedizerqueseusprimosalevaramparaParis.Comessetempo?Vocêfariaumaviagemassim?

Pareciaquetodosquepodiamouvirtinhamalgoadizersobreaqueleultraje,masdeixeiqueminhavozmelevasseaofalar:

–Bom, euvimaté aquinesse tempo,nãovim?– retruquei. –Vocênãopodeprovar um assassinato sem que haja evidência. O fato permanece. Não havia umcorpodoPequenoSantoWilliam?NãohaviaumavítimanoPequenoSantoHugh?

Lady Margaret novamente lembrou a todos que o chão ao redor do carvalhoestavacongelado.

Ajovemcomeçouachoraramargamente.–Eunãotiveintençãoalgumadefazermalaela.Elasóqueriaouviramúsica.Ela

adoravaamúsica.Elaadoravaaprocissão.ElaqueriaveroMeninoJesusdeitadonamanjedoura.

Issoproporcionouumanovaondadechoroemtodaamultidão.–Porquenósnãovimososprimosquevieramlevá-lanessafantasiosaviagem?–

freiAntoinequissaberdemimedoxerife.Oxerifeolhouaoredordesi, inquieto.Eleergueuamãodireitaefezumsinal

paraseushomens,eumdelessaiuacavalo.Eledisseparamimnumsussurro:–Mandeichamarmaishomensparaprotegeroguetointeiro.–Euexijo–exclamouLadyMargaret–umarespostadeMeireFluria.Porque

todosessesjudeusrepulsivosestãotrancadosemsuascasas?Elessabemqueéverdade.FreiJeromefalouimediatamente:– Judeus repulsivos? Meir e Fluria, e o velho Isaac, o médico? Essas mesmas

pessoasquenóscontávamoscomoamigos?Eagoraelassãotodasrepulsivas?FreiAntoine,odominicano,retrucouirritado:– É certo que você deve muito a eles por suas vestimentas, seus cálices, seu

própriopriorado–disseele.–Maselesnãosãoamigos.Elessãoagiotas.Agritariarecomeçoumaisumavez,masagoraamultidãoestavadivididaeum

anciãocomlongoscabelosgrisalhoseascostascurvadasaproximou-sedotocheiro.Sua túnica e seumanto quase tocavam o chão nevado. Em seus sapatos ele usavafinasfivelasdeouro.

Eu vi de imediato o pedaço de tafetá amarelo a xado em seu peito, o quesigni cava que ele era judeu. Era cortado no feitio das duas tábuas dos DezMandamentos e, eu imaginei: Como alguém poderia ver naquela imagem emparticularum“emblemadevergonha”?Masnarealidadeelesviam,eos judeusemtoda a Europa haviam sido compelidos a usá-la por muitos anos. Eu conhecia ecompreendiaessefato.

Frei Jeromemandou asperamente que todos dessempassagem a Isaac, lhodeSolomon,eovelho,semdemonstrarmedoalgum,tomouseulugarpertodeLadyMargareteemposiçãoopostaàporta.

–Quantosdenós–perguntoufreiJerome–jánãorecorremosaIsaacembuscadepoções,embuscadeeméticos?Quantosdenósnãofomoscuradosporsuaservaseseusconhecimentos?Eumesmofuiatrásdoconhecimentoedojulgamentodessehomem.Euseiqueeleéumgrandemédico.Comovocêsousamnãoouviroqueeledizagora?

Ovelhopermaneceuresolutoeemsilêncioatéquetodaagritariaarrefecesse.Ospadres de batina branca da catedral haviam se aproximado dele, para protegê-lo.Finalmenteovelhofalounumavozprofundaaatécertopontoríspida.

–Eutrateidacriança–disseele.–Verdade,elaentrounaigrejanapróprianoitedeNatal,sim.Verdade,elaqueriaverosbelospréstitos.Elaqueriaouviramúsica.Sim,ela fez isso,masvoltouparacasa,para juntode seuspais, comoumacriançajudia,exatamentecomosaíra.Elaeraapenasumacriançaefacilmenteperdoável!Elacoudoente,comoqualquercriançapoderia carcomumtempoinclementecomo

esse,elogocomeçouaterdelíriosemsuafebre.Pareciaqueagritariairromperianovamente,masnãosóoxerifecomotambém

freiJerome zeramumgestopedindosilêncio.Ovelhoolhouaoredordesicomumadignidadealquebrada,eentãocontinuou:

–Eu sabiadoque se tratava.Ela sofriadomaldo ilíaco.Estava comumadoragudanoladodabarriga.Estavaqueimandoemfebre.Masentãoafebrediminuiu,adorcessoue,antesqueeladeixasseesselocalefosseparaaFrança,elavoltouasi,efalei com ela, bem como o frei Jerome aqui, seu próprio médico, embora vocês

di cilmentepossamdizerqueeunãotenhasidomédicodamaioriadaspessoasqueaquiestão.

FreiJeromeassentiuvigorosamenteatodasaquelaspalavras.–Voudizerparavocês,comojádisseantes–disseele.–Euaviantesdelapartir

emsuaviagem.Elaestavacurada.Euestavacomeçandoaperceberoquehaviaacontecido.Acriançaprovavelmente

sofria de apendicite e, quando o apêndice supurou, a dor naturalmente diminuiu.Mas eu estava começando a suspeitarque a viagemparaParisnãopassavadeumadesesperadamaquinação.

Ovelhoaindanãohaviaterminado.–Você,pequenasenhoritaEleanor–disseeleà jovem–,vocênão levou ores

paraela?Vocênãoaviucalmaetranquilaantesdaviagem?–Mas eu nuncamais a vi – gritou a criança – e ela nuncame disse que faria

viagemalguma.–Todaacidadeestavaocupadacomospréstitos,ocupadacomasencenaçõesna

praça!–disseovelhomédico.–Vocêssabemqueestavam,todosvocês.Enósnãoparticipamosdetaiscoisas.Elasnãofazempartedenossoestilodevida.Eentãoosprimosdelavieramelevaram-na,eassimelapartiu,evocêsnão caramsabendodenadadisso.

Euagorasabiaqueelenãoestavacontandoaverdade,maspareciadeterminadoadizeroquetinhadedizerparaprotegernãoapenasMeireFluriacomotambémtodaacomunidade.

Alguns jovens que estavam em pé atrás dos dominicanos agora avançavam emmeioàmultidão,eumdelesempurrouovelhoechamou-ode“judeuimundo”.Osoutrosempurraramovelhoparaumladoedepoisparaooutro.

– Parem com isso – declarou o xerife, e fez um sinal para seus cavaleiros.Osgarotossaíramcorrendo.Amultidãosedividiuparadarpassagemaoscavaleiros.

–Euvouprenderqualquerumquepuserasmãosnessesjudeus–disseoxerife.–NóssabemosoqueaconteceuemLincolnquandoascoisassaíramdecontrole!Essesjudeusnãosãopropriedadedevocês,massimdaCoroa.

Ovelhoestavaprofundamenteabalado.Estendiamãopara rmá-lo.Eleolhoupara mim, e vi aquele desprezo novamente, aquela dignidade alquebrada, mastambémumasutilgratidãoporminhacompreensão.

Mais resmungos vieram da multidão, soldados ou não soldados, e a jovemcomeçounovamenteachorarlastimavelmente.

–SeaomenosnóstivéssemosumvestidoquepertencesseaLea–choramingouela.–Issocon rmariaoqueaconteceu,porquecomumsimplestoquenele,muitospoderiamficarcurados.

Aquela ideia era incrivelmentepopular, eLadyMargaret insistiuque eramuitoprovávelqueelesencontrassemtodasasroupasdacriançanacasaporqueelaestavamortaejamaisforalevadaparalugaralgum.

FreiAntoine,olíderdosdominicanos,levantouasmãoseexigiupaciência.–Eutenhoumahistóriaparacontarantesquevocêsprocedamcomisso–disse

ele–,emeusenhorxerife,peço-lhequeouçatambém.EuouviavozdeMalchiahemmeuouvido:– Lembre-se que você também é um pregador. Não permita que ele vença a

discussão.–Muitosanosatrás–disse freiAntoine–,umrepulsivo judeudeBagdá cou

atônitoaodescobrirqueseu lhohaviasetornadocristãoejogouacriançanofogo.Quandopareciaqueogarotoinocenteseriaconsumidopelaschamas,desceudocéuaVirgemMaria empessoae resgatouogaroto,que saiudas chamas semnenhumferimento.Eofogoconsumiuaquelejudeurepulsivoquetentarafazerumamaldadetãoatrozcontraseufilhocristão.

Pareciaqueamultidãoinvadiriaacasadepoisdeouviraquilo.–Essaéumahistóriaantiga–griteideimediato,enfurecido–efoicontadaem

todo omundo.É sempre um judeu diferente e uma cidade diferente, e sempre amesmaconclusão,equementrevocêsjáviualgoassimcomseusprópriosolhos?Porqueestãotodostãodispostosaacreditarnisso?–eucontinuavacomavozmaisaltaqueconseguia.–Vocêstêmummistérioaqui,masnãotêmNossaSenhora,nãotêmprovasedevempararcomisso.

–Equemévocê,poracaso,apontodeviratéaquipara falaremdefesadessesjudeus?–exigiusaberfreiAntoine.–Quemévocêparadesa arosuperiordenossaprópriacasa?

–Nãotive intençãodedesrespeitarninguém–eudisse–,apenasdealertarqueessahistórianãoprovanada,ecertamentenãoprovanenhumaculpaouinocêncianocasoquetemosemmãos.–Umaideiameocorreu.Erguiavozomáximoquepude.

–Todos vocês acreditam em seu pequeno santo – gritei. –O Pequeno SantoWilliam,cujosantuárioestáemsuacatedral.Bom,dirijam-seaeleagoraerezemporesclarecimento. Que o Pequeno Santo William os ilumine. Rezem para que eledescubrao localondeagarota foi enterrada, se estão tãodecididosdeque foi isso

mesmoqueocorreu.Por acasoo santonão seriaoperfeito intercessor?Vocêsnãopoderiampedirnadamelhordoqueisso.Dirijam-seàcatedral,todosvocês,agora.

–Sim,sim–gritoufreiJerome–,issoéoquedeveserfeito.LadyMargaretpareceuterficadoumpoucoaturdidacomtudoaquilo.–QuemmelhordoqueoPequenoSantoWilliam?–dissefreiJerome,olhando-

mederelancecombrilhonosolhos.–QuefoielepróprioassassinadopelosjudeusdeNorwichcemanosatrás.Sim,entremnaigreja,dirijam-seaosantuário.

–Todos,dirijam-seaosantuário–disseoxerife.–Eua rmo–dissefreiAntoine–quenóstemosumaoutrasantaaqui,etemos

odireitodeexigirqueospaisnosforneçamquaisquerroupasqueessacriançadeixou.Ummilagrejáserealizounocarvalho.Quaisquerroupasquetenhampermanecidoaquideveriamsetransformaremrelíquiassagradas.Eudigo,derrubemessaporta,senecessáriofor,epeguemasroupas.

Amultidãoestava candoenlouquecida.Oscavaleirosseaproximaram,forçandoaspessoasaseespalharouaseafastar.Algumaspessoasestavamzombando,masfreiJeromepostou-secomfirmezadecostasparaacasa,osbraçosestendidosegritando:

–Acatedral,PequenoSantoWilliam,devemostodosirparaláagora.FreiAntoinepassoupormimepeloxerife aos empurrões e começouabater à

porta.Oxerifeficoufurioso.Elesevirouparaaportaedisse:–Meir e Fluria, preparem-se.Tenho a intenção de levá-los para o castelo por

medidade segurança.Senecessário for, levarei todosos judeusdeNorwichparaocastelo.

A multidão cou desapontada, mas havia confusão em todos os lados, commuitaspessoasgritandoonomedoPequenoSantoWilliam.

–Masentão–disseovelhomédicojudeu–,sevocêlevarMeireFluriaetodosnós para a torre, essas pessoas vão saquear nossas casas e queimar nossos livrossagrados.Porfavor,eulheimploro,leveFluria,amãedesseinfortúnio,masdeixe-mefalarcomMeirporquetalvezalgumadoaçãopossaserfeitaaseunovopriorado,freiAntoine.Osjudeussempreforamgenerososnessesassuntos.

Emoutraspalavras,umsuborno.Masasugestãooperoucomoummilagreemtodosqueaouviram.

–Sim,elesdeveriampagar–murmuroualguém,emaisoutro.–Porquenão?–Eanotíciapareceuestarviajandoemmeioatodosqueestavamalireunidos.

Frei Jerome gritou que agora lideraria uma procissão até a catedral, e qualquer

pessoaquetemessepelodestinodesuaalmaimortaldeveriaseguircomele.– Todos vocês munidos de tochas e velas, sigam na frente para iluminar o

caminho.Comoagoraos cavaleiros estavamcolocandomuitaspessoas emriscode serem

pisoteadasefreiJeromepartiuparalideraraprocissão,muitososeguiram,eoutrosreclamaramecomeçaramaseafastar.

LadyMargaretnãosemovera,eagoraseaproximavadovelhomédico.–Eelenãoosajudou?–perguntouLadyMargaret,olhandobemnofundodos

olhosdele.Elasevoltouparaoxerifecomumolharíntimo.–Nãofoiele,porsuaspróprias palavras, partícipe de tudo isso? Você acha que Meir e Fluria são tãointeligentesapontodeproduzirumvenenosemaajudadele?–Elasevoltouparaovelho.–Evocêvairemitirminhasdívidasparamesubornarcomtantafacilidade?

–Se issopudesse acalmar seucoraçãoe a tornasse receptivaàverdade–disseovelho. – Sim, eu vou remitir suas dívidas por toda a preocupação e por todos osproblemasquevocêsuportounessahistória.

IssosilenciouLadyMargaret,masapenastentativamente.Elaestava rmementeconvictadequenãopodiacedernaqueleassunto.

Amultidãoagoradiminuíra,commaisemaispessoassejuntandoàprocissão.Deimediato,oxerifefezumgestoparadoisdeseuscavaleiros.–Leve Isaac, lhode Solomon, em segurançapara casa –disse ele. –E vocês,

todosvocês,vãocomospadresparaacatedralerezem.–Nenhumdelesmerecepena–insistiaLadyMargaret,emboraelanãoelevasseo

tomdevozparasedirigiraosvagabundos.–Elessãoculpadosdeumain nidadedepecados,e leemmagianegraemseus livros,queelesreputamtermais importânciadoqueabíbliasagrada.Oh,issoétudoculpaminhaporeutertidomisericórdiaporaquelacriança.Eéumtamanhopesareuestaremdívidacomasmesmaspessoasqueaassassinaram.

Ossoldadosescoltaramovelho,seuscavalosfazendocomqueosúltimospoucosespectadores fossem escorraçados dali, e consegui vermais claramente quemuitoshaviampassadoaseguiraslanternasdaprocissão.

EuestendiminhamãoparaLadyMargaret.–Madame–eudisse–,deixe-meentrarefalarcomeles.Eunãosoudaqui.Não

pertençoanenhumdosladosdacontenda.Deixe-metentarveraverdadedaquestão.Efiquecertadequeesseassuntopodeserresolvidoàluzdodia.

Ela olhou para mim quase com suavidade, e então assentiu com a cabeça,

fatigada.Elaseviroue,acompanhadada lha,juntou-seao mdaprocissãoqueseencaminhavaparaosantuáriodoPequenoSantoWilliam.Alguémlheestendeuumcírio aceso enquanto ela olhava de relance para trás e, com gratidão, ela pegou oobjetoeprosseguiu.

Os soldados nos cavalos expulsaram todos os outros. Apenas os dominicanospermaneceram,olhandoparamimcomoseeufosseumtraidor.Oupior,comoseeufosseumimpostor.

– Perdoe-me, frei Antoine – eu disse. – Se eu encontrar provas de que essaspessoassãoculpadas,eumesmovireiatévocê.

Ohomemnãosoubeoquedizer.– Vocês eruditos, vocês pensam que sabem tudo – disse frei Antoine. – Eu

tambémestudei,emboranãoemBolonhaouPariscomovocêdeveterestudado.Eureconheçoumpecadoquandovejoum.

–Sim,eeuprometoavocêumrelatóriocompleto–respondi.Por m, ele e os outros dominicanos se viraram e partiram. A escuridão os

engoliu.Oxerifeeeupermanecemosnaportadacasadepedra,comoqueagoraparecia

umapletoradehomensmontadosemcavalosnasimediações.Aneveaindaestavacaindomuitosuavemente,econtinuaracaindodurantetodo

oentrevero.Derepenteeuavilímpidaebranca,apesardamultidãoqueacabaradeestarlá,etambémpercebiqueestavacongelando.

Os cavalos dos soldados estavam ansiosos naquele local estreito. Porém, maiscavaleirosestavamvindo,algunscomlanternas,eeupodiaouviroecodoscascosnasruas próximas. Eu não sabia o quanto era grande o bairro dos judeus, mas tinhacertezadequeelessabiam.Somenteagoraeucomeçavaarepararquetodasasjanelaseramescurasnessapartedacidade,excetoasaltasjanelasdeMeireFluria.

Oxerifebateuàporta.–MeireFluria,saiam–exigiuele.–Parasuaprópriasegurança,vocêsdevemir

comigoagora.–Elesevirouparamimefalounumsussurro:–Seforpreciso,levareitodoseleseosmantereiláatéqueessainsanidadeesteja

encerrada,ouentãoelesvãodestruirNorwichapenasparaincendiarogueto.Encosteinapesadaportademadeiraedissenumavozsuave,porémalta:– Meir e Fluria, há ajuda para vocês aqui. Eu sou um irmão que acredita na

inocênciadevocês.Porfavor,permitaqueentremos.Oxerifeapenasolhavaparamim.

Masdeimediatonósouvimosabarrasendoerguidaeaportafoiaberta.

U

CAPÍTULOSETEMEIREFLURIA

MABRILHANTEFAIXADE LUZREVELOUUMHOMEM alto de cabelosescuroscomolhosprofundos xossobrenós,apartirdeumrostomuitobranco.Usavaumatogadesedamarromcomacostumeirafaixaamarela

sobreela.Seusossinhosprotuberantesnasbochechaspareciampolidos,tãoesticadasuapeleestava.

–Eles foram embora por enquanto – disse o xerife intimamente. –Deixe-nosentrar.Eaprontem-se,vocêesuamulher,parairconosco.

Ohomemdesapareceu,eoxerifeeeudeslizamoscomfacilidadeparadentrodacasa.

Acompanhado pelo xerife, subi uma escadaria bem iluminada, estreita eacarpetada, até entrarmosnumbelocômodoondeumaelegante egraciosamulherestavasentadaaoladodeumagrandelareira.

Duasserviçaispairavamnasombra.Havia ricos carpetes turcos cobrindo o chão e tapeçarias em todas as paredes,

emboraastapeçariaspossuíssemapenasmotivosgeométricos.Masoornamentodasalaeraamulher.

ElaeramaisjovemdoqueLadyMargaret.Suatoucabrancacobriainteiramenteseus cabelos, e eles realçavam esplendidamente a pele cor de oliva e os profundosolhoscastanhos.Suatúnicaeradeumrosaintenso,comelegantesmangasabotoadaspor sobre uma túnica de baixo feita do que pareciam ser os de ouro. Ela usavasapatospesados,eeuvi seumantosobreacadeira.Estavavestidaeprontapara serlevada.

Haviaumaenormeestantedelivrosencostadanumaparededistante,recheadadevolumes encadernados em couro, e uma grande e simples escrivaninha demadeiracom pilhas do que pareciam ser livros-razões/referência e páginas de pergaminhocobertas de palavras escritas. Alguns volumes com encadernações escuras estavamdispostosemumdos lados.Eeuvioquetalvez fosseummapaemoutraparede,

masestavamuitodistantedaluzdofogoparaqueeupudessetercerteza.Alareiraemsieraaltaeofogoluxuriantementeintenso,eascadeirasespalhadas

pelo local, feitas demadeira espessa e escura, tinham entalhes pesados e almofadasnos assentos. Havia também alguns banquinhos nas sombras, numa leira bemarrumada,comosedetemposemtemposalgunsestudantesaparecessemporlá.

Amulherlevantou-sedeimediatoeretirouseumantoencapuzadodascostasdacadeira.Elafalousuaveecalmamente:

–Possooferecer-lheumpoucodevinhoadocicadoantesdeirmos,meusenhorxerife?

O jovem parecia paralisado observando todos os procedimentos, como se nãoconseguissepensarnoquepoderiafazer,eestavabastanteenvergonhadodisso.Eleerabem apessoado, possuía mãos belas e nas, e, nos olhos, era visível uma suaveprofundidade sonhadora. Parecia arrasado. Quase sem esperança. Eu estavadesesperadoparainspirá-lo.

–Euseioquedeveserfeito–disseamulher.–Vocêmelevaráparaocastelopormotivodesegurança.

Elamelembravaalguémqueeuconhecia,maseunãoconseguiaimaginarquemera, ou o que aquilo signi cava, e não dispunha de tempo para isso. Ela estavafalando:

–Nós conversamos com os anciãos, com omestre da sinagoga. Falamos comIsaac e com seus lhos. Estamos todos de acordo. Meir vai escrever para nossosprimosemParis.Elevaicriarumacartademinha lhaquecon rmaráaveracidadedequeelaestáviva...

– Issonão será su ciente–começouadizeroxerife.–ÉperigosodeixarMeiraqui.

–Porquevocêdizisso?–perguntouela.–TodossabemqueelenãovaisairdeNorwichsemmim.

–Issoéverdade–refletiuoxerife.–Muitobem.–Eelevaiobtermilmarcosdeouroparaoprioradodominicano.Oxerifelevantouasmãosdiantedetalpiedadeeassentiucomacabeça.–Deixe-me caraqui–disseMeirnumavoztranquila.–Eutenhodeescreveras

cartasetambémconversaraindamaissobreessascoisascomosoutros.– Você estará em perigo – disse o xerife. – Quanto mais cedo conseguir o

dinheiro, mesmo entre os judeus aqui, melhor será para você. Mas às vezes odinheironãoésu cienteparapararessetipodecoisa.Eudigo,váatrásdesua lhae

traga-adevoltaparacasa.Meirbalançouacabeça.–Eunãoadeixariaviajarnovamentenumtempocomoesse–disseele,massua

vozestavainstávelepercebiqueeleestavadizendoalgumacoisafalsa,queodeixavamuitoenvergonhado.–Milmarcosdeouroequaisquerdébitosquenóspossamosremitir.Eunãocompartilhoodomtribaldaagiotagem–prosseguiuele.–Eusouumerudito,comovocêbemsabe,eseus lhossabem,senhorxerife.Maseupossofalarnovamentecomtodosaqui,ecertamentechegaremosaumasoma...

–Muitoprovavelmente–disseoxerife.–Masháumacoisaqueeuexijoantesdeprotegê-loaindamais.Seulivrosagrado,ondeestáele?

Meir,alvocomojáera, coupálido.Elesemoveulentamenteemdireçãoàsuaescrivaninhaepegouumgrandevolumeencadernadoemcouro.Havianeleletrasemhebraicogravadasemouro.

–Torá–sussurrouele.Eleolhoumiseravelmenteparaoxerife.–Coloquesuamãosobreeleejureparamimquevocêéinocentedetodaculpa

aqui.Pareciaqueohomemestavaapontodeperderaconsciência.Seusolhoscomo

quemiravamumapaisagem longínqua, como se ele estivesse sonhando eo sonhofosseumpesadelo.Maselenãoperdeuaconsciência,éclaro.

Eu queria desesperadamente intervir, mas o que eu poderia fazer?Malchiah,ajude-o.

Finalmente, equilibrandoopesado livro sobre amão esquerda,Meir pousou adireitasobreelee,numavozbaixaetrêmula,falou:

– Eu juro que jamais emminha vida zmal algum a qualquer ser humano ejamaisteriafeitoalgummalaLea, lhadeFluria.Eujuroquenão znenhummalaela,emhipótesealguma,denenhumtipo,masapenascuideidelacomoamorecomaternuraadequadasaumpadrasto,equeela...foi-sedaqui.

Eleolhouparaoxerife.Agoraoxerifesabiaqueagarotaestavamorta.Masoxerifefezapenasumapausaeentãoanuiu.–Venha,Fluria–disseoxerife.EleolhouparaMeir.–Voucuidarparaqueela

queemsegurançaetenhatodooconforto.Voumandarossoldadosespalharemanotíciapela cidade.Falarei eumesmocomosdominicanos.Evocê tambémpodefazer omesmo! –Ele olhouparamim.Então, voltou-senovamenteparaMeir. –Obtenhaodinheiroomaisrápidoquepuder.Remitaquantosdébitosforcapaz.Isso

seráumcustoparatodaacomunidade,masnãodeverárepresentarnenhumaruína.As serviçais e amulher desceram a escadaria, e o xerife seguiu-as.No andar de

baixo,ouvialguémgirarafechaduradaportaatrásdelas.Agoraohomemolhavaparamimcomtranquilidade.–Porquevocêquermeajudar?–perguntouele.Eleparecia tãoespezinhadoe

desalentadoquantoumhomemnaquelasituaçãopoderiasesentir.–Porquevocêrezouporajuda–respondi–,e,seeupuderserarespostaasuas

preces,certamenteofarei.–Vocêestáescarnecendodemim,irmão?–perguntouele.–Jamais–respondi.–Masajovem,Lea.Elaestámorta,nãoestá?Ele apenas olhou paramimpor um longomomento. Então sentou-se em sua

cadeiraatrásdaescrivaninha.Eume sentei na cadeira escura de espaldar alto que estava na frente. Nós nos

encaramosmutuamente.– Eu não sei de onde você vem – disse ele num sussurro. –Não sei por que

con oemvocê.Sabetantoquantoeuquesãoseuscompanheirosfreisdominicanosqueestãonosenchendodeofensas.Fazercampanhaparaumsanto,essaéamissãodeles.ComoseoPequenoSantoWilliamnãorondasseNorwichparasempre.

–EuconheçoahistóriadoPequenoSantoWilliam– eudisse.–Eu já aouvicom frequência. Uma criança cruci cada por judeus na Páscoa. Um monte dementiras.EumsantuárioparalevarperegrinosaNorwich.

–Nãodigataiscoisasforadessacasa–disseMeir–,ouelesvãoarrancartodososseusmembrosumporum.

–Eunãoestouaquiparadiscutircomelessobreisso.Estouaquiparaajudarvocêaresolveroproblemaquetememmãos.Diga-meoqueaconteceueporquevocêsnãofugiram.

–Fugir?–perguntouele.–Sefugíssemos,nósseríamosculpadosdaacusaçãoeperseguidos,eessainsanidadeengolirianãoapenasNorwichcomotambémqualquerguetonoqualnósnosrefugiássemos.Acrediteemmim,nessepaís,umtumultoemOxfordpodegerarumtumultoemLondres.

–Sim,tenhocertezadequevocêestácerto.Oqueaconteceu?Seusolhosseencheramdelágrimas.– Ela morreu – sussurrou ele. – Do mal do ilíaco. No nal, como

frequentementeacontece,adorparou.Elaestavacalma.Massóestavafriaaotoqueporque nós colocamos compressas frias nela. E quando recebeu as amigas Lady

MargareteNell,pareciaqueafebretinhaacabado.DemanhãcedoelamorreunosbraçosdeFluria.Maseunãopossocontaravocêtudosobreisso.

–Elaestáenterradaaoladodograndecarvalho?–Certamentenão–disseele,desdenhosamente.–Eaquelesbêbadosnuncanos

viramtirando-adaqui.Nãohavianinguémparanosver.Euacarregueinosbraçoscontra o peito, com o mesmo carinho que alguém carregaria uma noiva. E nóscaminhamosporhorasna orestaatéalcançarmosasuavemargemdeumcórrego,elá,numtúmuloraso,nósaentregamosàterraenroladaapenasnumlençolerezamosjuntosaocobrirmosotúmulocompedras.Issoeratudooquepodíamosfazerporela.

– Existe alguém em Paris que possa escrever uma carta que seja crível aqui? –perguntei.

Eleergueuosolhoscomoseestivessesaindodeumsonhoepareceumaravilhadodiantedeminhahabilidadeemcooperarcomumafraude.

–Certamenteexisteumacomunidadejudaicalá...– Ah, com certeza – disse ele. –Nós só viemos de Paris, nós três, porque eu

herdeiestacasaearendadosempréstimosdeixadaparamimpormeutioqueaquireside. Sim, existe uma comunidade em Paris, e existe um dominicano lá quepoderiamuitobemnosajudar,nãoporqueteriaoescrúpulodeescreverumacartangindoqueagarotaestáviva,masporqueénossoamigo,eserianossoamigonessa

questão,eacreditariaemnós,enosdefenderia.–Talvez issosejaexatamentetudodequenecessitamos.Essedominicanoéum

erudito?–Brilhante,eestudacomosmelhoresprofessoresdelá.Umdoutordaleiassim

comoestudantedeteologia.Emuitogratoanósporumfavorbastanteincomum.–Eleparou.

–Maseseeuestiverequivocado?Eseeuestivercompletamenteequivocadoeelesevoltarcontranós?Existemmotivosparaissotambém,eoCéuétestemunha.

–Vocêpodemeexplicardoquesetrata?–Não,nãoposso.–Comovocêpodesaberseeleestaráafavoroucontravocês?–Fluria teria como saber. Fluria teria como saber perfeitamente o que fazer, e

somenteFluriapoderáexplicaresseassuntoavocê.SeFluriadissessequeseriaumaatitudecorreta,eupossoescreverparaessehomem...

Novamentefezumapausa.Elenãotinhacon ançaemnenhumadesuaspróprias

decisões.Nãosepodianemchamaraquilodedecisões.–Maseunãopossoescreverparaele.Euserialoucodepensarnessapossibilidade.

Eseeleviesseaquieapontasseseudedoparanós?–Queespéciedehomeméesse?–perguntei.–Comoeleestáligadoavocêea

Fluria?–Oh,vocêfazaperguntacrucial–disseele.–Eseeufosseatéeleefalassecomeleeumesmo?Quantotempodeviagematé

Paris?Você acha que poderia remitir débitos su cientes, adquirir uma quantidadesu cientedeouroetudoissocomapromessadequeeuretornariacomsomasaindamaiores? Fale-me sobre esse homem. Por que você acha que esse homempoderiaajudarvocês?

Elemordeuoslábios.Chegueiapensarquesuabocafossesangrar.Eleencostouascostasnacadeira.

–Mas sem Fluria –murmurou ele – eu não tenho permissão para fazer isso,mesmo sabendo que talvez ele pudessemuito bem nos salvar a todos. Se alguémpudesse,certamenteseriaele.

–Vocêestáfalandodafamíliadagarotaporpartedepai?–perguntei–Umavô?Eleésuaesperançadeconseguirosmarcosdeouro?Ouvivocêfazerseujuramentocomopadrasto.

Elebalançouamão,desfazendo-sedaideia.– Eu tenho inúmeros amigos. O dinheiro não é problema. Eu posso obter o

dinheiro.Possoobtê-loemLondres,seforocaso.AmençãoaParisfoiapenasparanosdartempo,eporquenósa rmamosqueLeahaviaidoparalá,equeumacartadeParis seriaaprovadisso.Mentiras,mentiras!–Elecurvouacabeça.–Masessehomem...–Eleparounovamente.

–Meir,essedoutordaleipodeserasolução.Vocêdevecon aremmim.Seessepoderoso dominicano viesse até aqui, poderia adquirir o controle sobre a pequenacomunidadedeNorwichepararesseimpulsoloucoporumnovosanto,porqueesseéoobjetivoqueestáalimentandoofogo,ecertamenteumhomemeruditoesábioentenderáaquestão.NorwichnãoéParis.

Seu rosto estava indescritivelmente triste. Ele não conseguia falar. Estavaclaramentearrasado.

– Oh, eu nunca fui outra coisa na vida além de erudito – disse ele com umsuspiro.–Eunãopossuonenhumaesperteza.Não seioque essehomem fariaounãofaria.Milmarcoseuconsigoobter,masessehomem...SeaomenosFlurianão

tivessesidolevada.–Conceda-meapermissãoparafalarcomsuamulher,seéissooquevocêdeseja

queeufaça–eudisse.–Escrevaaquiumbilheteparaoxerifepermitindoqueeumeencontreasóscomsuamulher.Elesvãomedeixarentrarnocastelo.Ohomemjáformouumaimagemfavorávelameurespeito.

–Vocêvaimantersegredosobreoquerquesejaqueelalheconte,oquequerquesejaqueelalhepergunte,oquequerquesejaqueelarevele?

–Sim,comoseeufosseumpadre,emboranãoseja.Meir,con eemmim.EuestouaquiporvocêeporFluria,epornenhumoutromotivo.

Elesorriudamaneiramaistristepossível.–EurezeiparaqueumanjodoSenhorviesse–disseele.–Escrevomeuspoemas,

rezo.ImploroaoSenhorquederrotemeusinimigos.Quesonhadorepoetaeusou.–Um poeta – eu disse, re etindo e sorrindo. Ele era tão elegante quanto sua

mulher,recostadoaliemsuacadeira,esguioetranscendentaldeumamaneiraqueeuachava bastante tocante. E agora ele atara aquela bela palavra a si mesmo eenvergonhava-sedisso.

Epessoasláforaestavamtramandosuamorte.Euestavacertodisso.–Vocêépoetaeumhomempio–eudisse.–Vocêrezoucomfé,nãorezou?Eleassentiucomacabeça.Olhouparaoslivros.–Ejureiemmeulivrosagrado.–Evocêdisseaverdade.–Maseupodiaverqueestenderaconversaaindamais

nãonoslevariaalugaralgum.–Sim,eoxerifeagorasabe.–Eleestavaapontodesucumbirdiantedatensão.–Meir,realmentenãohátempoparaponderarmosacercadessesassuntos.Escreva

obilheteagora,Meir.Eunãosoupoetaenãosousonhador.Masposso tentar serumanjodoSenhor.Agoraescrevaessebilhete.

E

CAPÍTULOOITOOSINFORTÚNIOSDEUMPOVO

U SABIA O SUFICIENTE ACERCA DESSE PERÍODO da História paraperceber que as pessoas não costumavam sair na calada da noite,principalmentenumalevetempestadedeneve,masMeirescreveraparamim

umacartaurgenteeeloquenteexplicandoaoxerifeetambémaocapitãodaguarda,queMeirconheciadenome,queeudeviameencontrarcomFluriasemdemora.EletambémescreveraumacartaaFluria,queeuli,instando-aafalarcomigoeacon aremmim.

Descobriquetinhapelafrenteumasubidaíngrememorroacimaparaalcançarocastelo mas, para minha completa decepção, Malchiah só me dizia que eu estavacumprindominhamissãoesplendidamente.Nenhumoutroconselhoouinformaçãoseriafornecido.

Equandofui nalmenteadmitidonosaposentosdeFlurianointeriordocastelo,euestavacongelado,encharcadoeexausto.

Mas o ambiente ao meu redor restaurou-me as forças imediatamente. Emprimeiro lugar,oquartoemsi–bemnoaltoda torremais fortedocastelo–erapalaciano,eemboraFluriaprovavelmentenãoseimportassemuitocomastapeçariasgurativas,elasestavampor todaapartecobrindoasparedesdepedra,e tapeçarias

magnificamentetecidascobriamigualmenteochão.Umagrandequantidadedevelasestavaqueimandoemaltoscandelabrosdeferro

que comportavam cinco ou seis velas cada um, e o quarto estava suavementeiluminadoporelas,bemcomopelofogocrepitante.

Somente uma única câmara convencional estava à disposição de Fluria,obviamente, de modo que nós nos posicionamos à sombra de sua enorme camacercadadepesadascortinas.

Alareira cavanoladooposto,comumasoleiraredondadepedra,eafumaçanaverdadesubiaatravésdeumburaconotelhado.

Acamaeracercadadeadornoseornamentosescarlates,ehaviacadeiras namente

entalhadasparanossentarmos,certamente,eumamesaparaescreverquepodíamoscolocarentrenósparaumaconversaíntima.

Fluria sentou-se àmesa e fez um gesto para que eume sentasse na cadeira emfrente.

Olugarestavaquente,quaseexcessivamentequente,eeucoloqueiossapatosparasecar perto do fogo, com a permissão damoça. Elame ofereceu vinho adocicadocomohaviaoferecidoantesaoxerife,mas,honestamente,eunãosabiasepodiabebervinhosequisesse,enaverdadeeunãoqueria.

Fluria leu a carta escrita por Meir em hebraico pedindo que ela con asse emmim.Eladobrouopergaminho rígido com rapidez e colocoua carta embaixodeumlivrodecouroemcimadamesa,muitomenordoqueosvolumesdeixadosemcasa.

Ela estava usando a mesma touca de antes, que cobria-lhe perfeitamente oscabelos,mashaviatiradoovéumaiselaboradoeatúnicadesedaconfortável,eusavaumapeçadelãgrossacomabelacapadepeleporcimadosombros,ocapuzjogadopara trás.Um simples véu branco comuma argola de ouro estava pendurado emvoltadeseusombrosecostas.

Tivenovamenteasensaçãodequeelamelembravaalguémqueeuconheceranopassado,masnovamentenãohaviatempoparaprosseguircomainvestigação.

Elabaixouacarta.–Oque eu vou lhe dizer será em caráter estritamente con dencial comomeu

maridomeafirmanessacarta?–Sim,comcerteza.Eunão soupadre,apenasum irmão.Masvoumanter sua

con dênciaemsigilocomoqualquerpadremanteriaossegredoscontadosaeleemcon ssão.Acrediteemmim,eusóestouaquiparaajudá-los.Penseemmimcomoarespostaàsprecesdevocês.

–Éassimqueeleodescreve–disseela,meditativa.–Eassim, cocontenteemrecebê-lo.Mas você sabeoquenossopovo tem sofridona Inglaterra ao longodetodosessesanos?

–Euvenhodemuitolonge,masseiumpoucoarespeitodisso–eudisse.Obviamente,odiscursosaíacommuitomaisfacilidadedesuabocadoquesaíra

dadeMeir.Elarefletiuumpouco,mascontinuou.–Quando eu tinhaoito anos–disse ela –, todosos judeusdeLondres foram

colocados na torre por questão de segurança, devido aos distúrbios, por causa docasamento do rei com a rainha Eleanor da Provença. Eu estava em Paris naquela

época,masestavacientedisso,enóstínhamosnossosprópriosproblemas.“Quando eu tinha dez anos, num sábado, quando todos os judeus deLondres

estavamrezando,nossoslivrossagrados,oTalmude,foramtomadosporcentenasdepessoasequeimadosempraçapública.Éclaroqueelesnãolevaramtodososnossoslivros.Eleslevaramoqueviram.”

Eubalanceiacabeça.–Quandoeutinhacatorzeanos,enósmorávamosemOxford–meupai,Elie

eu–, os estudantes iniciaramumdistúrbio e saquearamnossas casaspor causadasdívidasqueelespossuíamconoscoporseuslivros.Seumapessoanãotivesse...–Elafezumapausaeentãoprosseguiu.–Seumapessoanãotivessenosalertado,outrosteriamperdidoseuspreciososlivros,eaindaassimosestudantesdeOxfordatéhojepegamdinheiroemprestadoconoscoealugamquartosemcasasquenospertencem.

Eufizumgestoparaindicarminhacomiseração.Permitiqueelacontinuasse.–Quandoeu tinhavinteeumanos–prosseguiuela–,os judeusna Inglaterra

foramproibidosdecomercarneduranteaquaresma,ousemprequeoscristãosnãotivessempermissãoparacomer.–Elasuspirou.–Asleiseperseguiçõessãorealmentenumerosasdemaisparaqueeupossacontá-lastodasavocê.EagoraemLincoln,nãomaisdoquedoisanosatrás,amaishediondaocorrênciadetodas.

–VocêserefereaoPequenoSantoHugh.Euouviaspessoasnamultidãofalandodele.Euseialgoaesserespeito.

– Espero que você saiba que todos nós fomos acusados de algo que foi umaperfeita mentira. Imagine se nós teríamos levado esse pequeno menino cristão,colocado nele uma coroa de espinhos, furado suas mãos e pés e escarnecido delecomoseelefosseoCristo.Imagine.EquejudeusteriamvindodetodasaspartesdaInglaterraparatomarpartedeumritualcomtamanhamalignidade.Noentanto,issofoioquenosdisseramquehavíamosfeito.Seumdesafortunadomembrodenossaraçanão tivesse sido torturadoe forçadoanomearoutros,quemsabea insanidadenãotivesseidotãolonge.OreifoiatéLincolnecondenouopobredesafortunadoCopin,queconfessara taiscoisas inomináveis,emandouenforcá-lo,masnãoantesdeserarrastadopelacidadeporumcavalo.

Estremeci.– Judeus foram levados para Londres e aprisionados. Judeus foram julgados.

Judeus morreram. E tudo por causa dessa história fantasiosa de uma criançatorturada,eaprópriacriançaestáagoraenterradanumsantuáriotalvezmaisgloriosodoqueaqueledoPequenoSantoWilliam,queteveahonradeserosujeitodeuma

história bemparecidamuitos emuitos anos antes. Pequeno SantoHugh fez comquetodaaInglaterrasein amassecontranós.Opovotransformousuahistóriaemcanções.

–Nãoexisteumlugarnessemundoquesejaseguroparavocês?–perguntei.– Amesma pergunta nãome sai da cabeça. Eu estava em Paris commeu pai

quandoMeirpropôs-mecasamento.Norwichsempreteveumaboacomunidade,esobreviveupormuitotempoàhistóriadoPequenoSantoWilliam,eMeirherdouumafortunadeseutionacidade.

–Compreendo.–EmParis,nossos livros sagrados tambémforamqueimados.Eoquenão foi

queimadofoidadoaosfranciscanoseaosdominicanos...Elafezumapausaenquantoolhavaparaminhasvestes.–Continue, por favor – eu disse. –Não imagine que eu estejaminimamente

contra você. Eu sei que homens de ambas as ordens estudaramoTalmude. –Eugostariadepodermelembrardemaiscoisasqueconheciaaesserespeito.–Diga-me,oquemaisaconteceu?

–Vocêsabequeograndegovernante,suamajestadeoreiLuis,nosdetestaenospersegue,econfiscounossaspropriedadesparafinanciarsuacruzada.

–Sim,estouapardessascoisas–eudisse.–AsCruzadascustaramaosjudeusemtodasascidadeseemtodasasterras.

– Mas em Paris, nossos homens letrados, incluindo gente de minha própriafamília,lutoupeloTalmudequandoelefoiarrancadodenós.Elesapelaramaopapaempessoa, e o papa concordou coma ideia de que oTalmude talvez pudesse sercolocadoemjulgamento.Nossahistórianãosepautaporperseguiçõesintermináveis.Nós temos nossos eruditos.Nós temos nossosmomentos. Pelomenos emParis,nossosprofessoresfalaramcomeloquênciaemdefesadenossoslivrossagrados,epelatotalidadegeralqueelesconstituíam,ea rmaramqueoTalmudenãorepresentavaameaçaalgumaaoscristãosqueporventuraentrassememcontatoconosco.Bem,ojulgamentofoiemvão.Comonossoshomensletradospoderiamestudarcomseuslivros lhes sendo retirados?No entanto, nessa época em que vivemos,muitos emOxford e em Paris querem aprender hebraico. Seus confrades querem aprenderhebraico.Meupaisempreteveestudantescristãosaoseuredor...–Elaparoudefalar.Alguma coisa a a igira profundamente. Ela colocou a mão na testa e começouinstantaneamenteachorar,dizendoqueeunãoestavapreparado.

– Fluria – eu disse rapidamente, contendo-me para não tocá-la de nenhuma

formaqueelapudesseconsiderarimprópria.–Euseiarespeitodessesjulgamentosedetodasessastribulações.EuseiqueausurafoiproibidaemParispeloreiLuisequeele submeteu à lei aqueles que se recusavam a ceder. Eu sei por que seu povocomeçou a se utilizar dessa prática e sei que vocês estão agora na Inglaterrasimplesmenteporcausadisso,porquevocêssãoconsideradosúteisparaproporcionarempréstimosaosbarõeseàigreja.Vocênãoprecisadefenderaquestãodeseupovopara mim. Mas diga-me, o que devemos fazer para resolver essa tragédia que seencontradiantedenósagora?

Elaparoudechorar.En ouamãodentrodasvesteseretirouumlençodesedaqueutilizouparaenxugardelicadamenteosolhos.

–Perdoe-meporminha atitude.Não existe lugar seguro para nós. Paris não édiferente,mesmocom tantaspessoas estudandonossa língua ancestral.Paris talvezseja um lugar mais fácil para se viver em determinados aspectos, mas Norwichpareciatranquila,oupelomenoseraoquepareciaaMeir.

–MeirfaloudeumhomememParisquetalvezpudesseajudá-los–eudisse.–Eledissequesomentevocêpoderiadecidirsequeriaounãoapelaraele.EFluria,eudevoconfessaravocê.EuseiquesuafilhaLeaestámorta.

Eladesfez-seemprantosmaisumavezemedeuascostas,seulençocobrindo-lheorosto.

Euesperei.Fiqueisentadoimóvelouvindoocrepitardofogoedeixandoqueelasuperasseapiorpartedaquilo.Emseguida,eudisse:

– Muitos anos atrás eu perdi meu irmão e minha irmã. – Fiz uma pausa. –Todavia,nãoconsigoimaginaradordeumamãeperdendoumafilha.

– Irmão Toby, você não sabe nem a metade de tudo isso. – Ela voltou-senovamente para mim e apertou com rmeza o lenço na mão. Seus olhos agoraestavamsuavesebemabertos.Eelarespiroufundo.–Euperdiduas lhas.EquantoaohomememParis,acreditoqueeleatravessariaooceanoparamedefender.MasnãopossodizeroqueelefariasedescobrissequeLeaestámorta.

–Vocênão podemedeixar ajudá-la a tomar essa decisão? Se você decidir quequerqueeuváaParisparaqueeumeencontrecomessehomem,euirei.

Elaestudou-meporumlongomomento.–Nãoduvidedemim–eudisse.–Eusouumandarilho,masacreditoqueseja

por vontadedeDeusque estou aqui.Acreditoque tenha sido enviadopara ajudarvocês.Earriscareiqualquercoisaparafazerexatamenteisso.

Elacontinuouaponderação,ecomrazão.Porquedeveriameaceitar?

–Vocêdizqueperdeuduas lhas.Conte-meoqueaconteceu.Efale-mesobreessehomem.Oquequerquevocêmediganãopoderáserusadoparacausarmalaninguém,massomenteparaajudá-laaavaliaraquestão.

–Muitobem–disseela.–Euvoulhecontartodaahistóriae,aocontar,talveznóspossamosencontraramelhordecisãoa tomar,porqueessa tragédiaque temosdiante de nós está longe de ser uma tragédia comum, e também essa história estálongedeserumahistóriacomum.

C

CAPÍTULONOVEACONFISSÃODEFLURIA

ATORZEANOSATRÁS,EUERAMUITOJOVEMemuitoimprudenteeumatraidorademinhaféedetudoquemaisprezava.NósestávamosemOxfordnessaépocaquandomeupaiestudavacomvárioseruditos.Nósíamoscom

frequência aOxford porque ele tinha alunos lá, estudantes que queriam aprenderhebraicoequepagavambemparaqueelelhesdesseaulas.

Aparentementepelaprimeiraveznahistória,eruditosqueriamaprenderalínguaantiga naquela época. Emais emais documentos dos dias passados vinham à luz.Meupai era bastante requisitado comoprofessor, e bastante admiradonão sóporjudeuscomotambémpelosgentios.

Eleachavaumaboaideiaoscristãosaprenderemhebraico.Elemantinhacomelesdisputasnocampodafé,mastudodemodoamigável.

OqueelenãopodiasabereraqueeuhaviaentregueporinteiroomeucoraçãoaumjovemqueestavaacabandoocursodeartesemOxford.

Eletinhaquasevinteanoseeuapenascatorze.Desenvolviumagrandepaixãoporele,osu cientepararenegarminhaféeoamordemeupai,equalquerriquezaquemefossedadacomoherança.Eessejovemtambémmeamava,comtantoardorquejurourenegarsuaprópriaféseissolhefossesolicitado.

Foi esse jovem que veio nos alertar antes dos distúrbios de Oxford, e nósalertamostantosjudeusquantopudemosaescaparem.Senãofosseessejovem,talveznóstivéssemosperdidomuitosmaislivrosdoqueperdemos,emuitosoutrositenspessoais também.Meupai afeiçoou-se a esse jovempor causa disso,mas tambémporque,deumamaneirageral,eleamavasuamenteinquiridora.

Meupainãotinha lhos.Minhamãemorreradandoàluzdoismeninosgêmeos,nenhumdosquaissobreviveu.

Onomedesse jovemeraGodwin, e tudooquevocêprecisa saber sobreopaideleéqueeraumcondepoderoso,rico,eque coufuriosoquandodescobriuqueseu lho caraenamoradodeumajudia;furiosoquandodescobriuqueseusestudos

o colocaram na companhia de uma garota judia por quem ele estava pronto aabandonartudo.

HaviaumlaçoprofundoentreocondeeGodwin.Elenãoerao lhomaisvelho,maseraofavoritodopai,eotiodeGodwin,tendomorridosem lhos,deixaraparaGodwin uma fortuna na França igual àquela que seu irmão mais velho, Nigel,herdariadeseupai.

Agoraocondevingava-sedeGodwinporcausadesuadecepção.Ele o enviou a Roma para tirá-lo de mim e para ser educado na igreja. Ele

ameaçouexporapúblicoasedução–comoelechamavanossoamor–amenosqueeujamaisvoltasseapronunciaronomedeGodwineamenosqueGodwinpartisseimediatamentee tambémjamaisvoltasseapronunciarmeunomeemvozalta.Naverdade,ocondetemiaadesgraçaquecairiasobresuacabeçasefossetornadopúblicoqueGodwinnutriaumagrandepaixãopormim,ouquenóstentássemosnoscasaremsegredo.

Você pode imaginar o desastre que poderia ter ocorrido a todos casoGodwintivesse efetivamente se aproximado de nossa comunidade. Houve conversões paranossafé,semdúvida,masGodwinera lhodeumpaiorgulhosoepoderoso.Eosdistúrbios! Ocorreram distúrbios por muito menos do que o lho de um nobreconvertendo-seànossafé,eaindamaisnessestemposturbulentosemquenóssomosconstantementeperseguidos.

Quantoameupai, elenão sabiadoquenós seríamosacusados,masestava tãocauteloso quanto enraivecido. A possibilidade de eu vir a me converter erainconcebívelparaele,e logoelea tornouextremamente inconcebível tambémparamim.

Ele sentiaqueGodwinohavia traído.Godwin cara sob seu tetopara estudarhebraico,para conversar sobre loso a, para se sentar aospésdemeuspai e aindaassimtiveraessaatitudeabomináveldeseduzirafilhadograndeprofessor.

Eleeraumhomemdecoraçãoternoparamim,jáqueeueratudooqueeletinhanomundo,masestavaenraivecidocomGodwin.

Godwin e eu logo percebemos que nosso amor não tinha esperanças de seconcretizar. Nós provocaríamos distúrbios e ruína, independentemente do quezéssemos.Seeumetornassecristã,seriaexcomungada.Eminhaherançaporparte

de mãe seria con scada, e meu pai caria desamparado em sua velhice, umpensamentoqueeunãoconseguiasuportar.AdesgraçadeGodwinnãoseriamuitomenor,casodecidisseseconverteraojudaísmo.

Então,ficouestabelecidoedeterminadoqueGodwiniriaparaRoma.Seu pai tornou público que ainda nutria sonhos de grandeza para seu lho: a

mitradeumbispo,certamente,senãoochapéudeumcardeal.Godwin tinha parentes entre os membros do poderoso clero em Paris e em

Roma.Nãoobstante,forçá-loaosvotoseraumcastigosevero,porqueGodwinnãopossuíaféemnenhumSenhoreforaumjovembastantemundano.

Enquanto eu adorava sua inteligência, humor e paixão, outros admiravam aquantidadedevinhoqueeleconseguiatomaremumanoiteesuahabilidadecomaespada,montandoumcavaloedançando.Narealidade,suaalegriaeseucharme,quetantomeseduziram,eramacompanhadosdegrandeeloquênciaemamorpelapoesiae pela música. Ele escrevera temas para o alaúde e tocara frequentemente esseinstrumentoenquantocantavaparamimdepoisdemeupaiserecolherenãomaispodernosouvirnoquartodebaixo.

Umavidana igreja era algo totalmentedesprovidodeprazerparaGodwin.Narealidade,eleteriapreferidopegaracruzepartiremcruzadaparaaTerraSantaparaencontraraventuraporláeaolongodocaminho.

MasseupainãolhedariaosrecursosparaissoecuidouparaqueelefosseenviadoaomaisrígidoeambiciosoclérigodesuasrelaçõesnaCidadeSagradaelhedisseparatersucessonasOrdensSagradas.Docontrário,seriadeserdado.

Godwin e eu nos encontramos uma última vez, e eleme disse então que nósjamais deveríamos nos ver novamente. Ele não dava dois vinténs por uma vidamaravilhosanaigreja.DissequeseutioemRoma,ocardeal,possuíaduasamantes.Seusoutrosprimos,eletambémconsideravahipócritasespalhafatososeosdesprezavaapropriadamente.“Existempadresmal-intencionadoselibertinosemabundânciaemRoma”, ele disse, “e bispos maldosos, e eu vou me tornar mais um. E com umpoucodesorte,algumdiaeuvoumejuntaraoscruzadoseno mtereitudo.Masnãotereivocê.NãotereiminhaamadaFluria.”

Quantoamim,eujáperceberaquenãoteriacomoabandonarmeupai,eestavacheiadetristeza.MeuamorporGodwinnãopareciaseralgosemoqualeupudessesobreviver.

Quantomaisnósjurávamosquenãopodíamosterumaooutro,maisincensadoscávamos. E eu acho que naquela noite nós estávamos o mais perto possível do

perigodefugirmosjuntos,masnãoofizemos.Godwinfezumplano.Nósescreveríamoscartasumparaooutro.Sim,issoeradesobediênciademinha

parte para com meu pai, sem dúvida alguma, e certamente desobediência paraGodwin,masnósvíamosnossascartascomomeiospelosquaispoderíamosobedecera nossos pais com mais ímpeto. Nossas cartas, desconhecidas de nossos pais, nosajudariamaaceitarsuasexigências.

“Seeupensassequenãopodíamosterisso”,disseGodwin,“oextravasamentodenossoscoraçõesemcartas,eunãoteriaacoragemdesairdaquiagora.”

GodwinfoiparaRoma.Seupaiestabeleceraumaespéciedepazcomele,jáquenãopodiasuportarsentirraivadele.EentãoGodwinfoiemboranumamanhãbemcedo,semdespedidassubsequentes.

Agorameupai,so sticadoeruditoqueera,eé,estavaquasecego.Seusatributospoderiammuito bem explicarminha boa formação intelectual,muito embora euimagine que,mesmo ele não tendo sido o erudito que era,minha aptidão para osaberseriaamesma.

Meupontoéqueerasimplesparamimmanternossascartasemsegredomas,naverdade, eu pensei que Godwin se esqueceria completamente de mim em poucotempo, e seria envolvido pela atmosfera licenciosa na qual certamente se veriamergulhado.

Enquanto isso,meu paime surpreendeu. Eleme disse que sabia queGodwinescreveria para mim, e disse: “Eu não proibirei essas cartas, mas não acho queexistirãomuitasdelas,evocêestaráapenashipotecandoseucoração.”

Ambosestávamoscompletamenteequivocados.Godwinescreveucartasdetodasascidadespelasquaispassouemsuaviagem.Nãoraroduasvezespordiachegavamascartas,pormensageirosnãosógentioscomotambémjudeus,eeumerecolhiaemmeuquarto semprequepodia e extravasavameucoração com tinta.Na realidade,parecia que nosso amor estava crescendo por meio dessas cartas, e nós nostransformamos emdoisnovos seres, profundamente ligadosumaooutro, enada,absolutamentenada,poderianosseparar.

Pouco importa. Eu logo fui acometida por uma preocupação maior do quejamaispoderiaterantecipado.Emdoismeses,amedidademeuamorporGodwinestavaperfeitamentevisívelparamim,eeutinhadecontarparameupai.Euestavacomumacriança.

Umoutrohomemtalveztivessemeabandonadooufeitocoisaaindapior.Masmeupai sempreme amoude tal forma a jamais enxergarmeusdefeitos.Eu fui aúnicaasobreviverdetodososseus lhos.Eeuachoquehaviaumfrancodesejoneledeterumneto,emboraelejamaistocassenoassunto.Afinal,oqueimportavaaeleo

fatodopaisergentioseamãeerajudia?Emeupaielaborouumplano.Elejuntounossospertencesenóspartimosparaumapequenacidadenaregiãodo

Renoondehaviaeruditosqueoconheciam,masnenhumparentequepudéssemosidentificar.

Lá, um rabino ancião, que admirava muito os escritos de meu pai acerca dograndeprofessor judeuRashi, concordouemsecasar comigoe emanunciarqueolhonascidodemeuventreeradele.Ele fez issorealmenteporpuragenerosidade.

Eledisse:“Euvitantosofrimentonessemundo.Sereipaidessacriança,sevocêassimquiser, e jamais solicitarei os privilégios a que ummarido temdireito, já que souvelhodemaisparaisso.”

Lá, eu tive não um lho deGodwin,mas gêmeas, duas belasmeninas, ambascom a estampa idêntica, tão parecidas que até eu às vezes tinha di culdade paradistinguir uma da outra, a ponto de ser obrigada a amarrar uma ta azul notornozelodeRosademodoadistingui-ladeLea.

Agoraeuseiquevocêmeinterromperiasepudesse,eeuseioqueestápensando,masdeixe-meprosseguir.

Ovelho rabinomorreuantesdascriançascompletaremumanode idade.Meupai amava profundamente essas duasmeninas e agradecia aos céus ainda conseguirenxergarumpoucoparaveraquelesbelosrostosantesdeficarcompletamentecego.

SomenteaoretornarmosaOxfordelemeconfessouhavertidoaintençãodedaras criançasparaumamatronana regiãodoReno,mas acaboudesapontando-aporcausadeseuamorpormimepelasmeninas.

Assim,durantetodootempoemqueestivenaregiãodoReno,euescreveraparaGodwin,mas jamais disse umaúnica palavra sobre essasmeninas.Na verdade, euderaaelemotivosvagosparaaviagem–quetinhaavercomaaquisiçãodelivrosque estavamdifíceisde ser encontradosnaFrançaouna Inglaterra, equemeupaiestava ditando muito para mim e precisava desses livros para os tratados queocupavamtodososseuspensamentos.

Esses tratados, todos os seus pensamentos e os livros – tudo isso era básico everdadeiro.

NósnosestabelecemosemnossaantigacasanoguetodeOxford,naparóquiadeSt.Aldate,emeupaicomeçounovamenteareceberalunos.

Como o segredo de meu amor por Godwin era crucial para todas as partes,ninguém sabia dele, e eles acreditavam que meu marido ancião havia falecido noexterior.

Porém,enquantoestavaviajando,eunãoreceberanenhumacartadeGodwin,demodoquehaviamuitasdelasesperandopormimassimquechegueiemcasa.Euasabria e as lia quando as babás cavam com as crianças, e discutia comigomesmafreneticamentesedeveriaounãocontarparaGodwinarespeitodesuasfilhas.

Será que eu devia contar para um cristão que ele tinha duas lhas que seriamcriadascomojudias?Comoteriasidosuareação?ÉclaroqueelepodiaterbastardosaosmontesnaRomaqueeledescreveraparamimeemmeioaseuscompanheirosmundanosporquemelenãosentiamaisdoqueumdesprezoexplícito.

Naverdade,eunãoqueriacausar-lhequalquersofrimento,enãoqueriaconfessaraeleossofrimentosqueeumesmahaviasuportado.Nossascartaseramrepletasdepoesiaedenossosmaisprofundospensamentos,inseparáveis,talvez,derealidades,eeuqueriamanterascoisasdessamaneiraporque,naverdade,essamaneiraeramaisrealparamimdoqueaprópriavidacotidiana.Atémesmoomilagredessasmeninasnão diminuía minha crença no mundo que nós sustentávamos em nossas cartas.Nadapoderiafazê-lo.

Mas,justamentequandoeuestavasopesandominhadecisãodemanterosegredocom a maior escrupulosidade, chegou em minhas mãos uma carta bastantesurpreendente de Godwin, que eu quero relatar a você de memória, da melhormaneira que puder. Eu estou com a carta aqui, na verdade, mas escondida emsegurançaemmeioàsminhascoisas,eMeirjamaisaviu,eeunãopossosuportaraideiadeabri-laelê-la,portantodeixe-meforneceraessênciadelaapartirdeminhasprópriaspalavras.

Euachoque,dequalquermodo,minhasprópriaspalavrasagorasãoaspalavrasdeGodwin.Portanto,deixe-meexplicar.

Ele começou novamente a falar sobre suas costumeiras incursões na vida daCidadeSagrada.

“Se eu tivesseme convertido à sua fé”, escreveu ele, “e nós fôssemosmarido emulherdedireito,pobresefelizes,certamente,issoseriamelhoraosolhosdoSenhor–seoSenhorexiste–doqueumavida talqualadesseshomensqueaquivivem,paraquemaigrejanãoénadaalémdeumafontedepodereganância.”

Masentãoelecontinuouaexplicaraestranhaocorrência.Ele havia, ao que parece, se sentido atraído diversas vezes a entrar numa igreja

pequena e tranquila, onde se sentava no chão de pedra e cava encostado na friaparede também de pedra enquanto conversava desdenhosamente com o Senhoracercadaslúgubresperspectivasqueeleviaparasimesmonacondiçãodepadreou

bispo bêbado que vivia na companhia de meretrizes. “Como você pode ter memandadoparacá?”,eledemandavaaDeus,“para carentreseminaristasquefazemmeusantigosamigosdebebedeiradeOxfordpareceremabsolutamentedotadosdesantidade?”Elecerravaosdentesenquantoproferiasuaspreces,inclusiveinsultandooCriadordetodasascoisas,aolembraraElequeelepróprio,Godwin,nãoacreditavanEleeconsideravasuaigrejaumaedificaçãodasmaisimundasmentiras.

Ele prosseguiu com sua zombaria impiedosa doTodo-poderoso. “Por que eudeveriausarosaparatosdeSuaigrejasenãosintomaisdoquedesprezoportudooque vejo aqui e nenhum desejo de servi-Lo? Por queVocême negou o amor deFluria,quefoioúnicoimpulsopuroealtruístademeuávidocoração?”

Vocêpode imaginar,euestremeciao leressablasfêmia.Eelehaviaescritotudoaquiloantesdedescreveroqueentãosepassoudepois.

Numacertanoite,enquantoelediziaessasmesmasprecesaoSenhor,comódioeraiva,devaneandoerepetindoasimesmo,einclusiveexigindosaberdoSenhorporqueElehaviatiradodeGodwinnãoapenasmeuamorcomotambémoamordeseupai, um jovemhomemapareceudiantedele e, sempreâmbulo algum, começou afalarcomele.

Aprincípio,Godwinpensouqueesse jovemfosse louco,oualgumaespéciedecriançabemalta,jáqueeramuitobonito,tãobonitoquantoosanjospintadosnasparedes,etambémelefalavacomumaretidãoqueeracompletamentearrebatadora.

Naverdade,porummomentoGodwinconsiderouapossibilidadedohomemser uma mulher disfarçada, o que não era algo muito incomum, aparentemente,como eu talvezpensasse, disseGodwin,mas ele logopercebeuque aquilonão eraumamulheremhipótesealguma,massimumserangélicoemseumeio.

E comoGodwin sabia?Ele sabiapelo fatodeque a criatura conhecia asprecesdele e agora falavadiretamente a ele acercade suasdoresmaisprofundas ede suasmaisdestrutivasintenções.

“Paratodososladosqueolha”,disseoanjoouacriaturaouoquequerquefosse,“vocêvêcorrupção.Vocêvêoquantoé fácilavançarna igreja,oquantoé simplesestudarpalavraspelasprópriaspalavras,ecobiçarsomenteporcobiçar.Vocêjápossuiumaamante,eestápensandoemobteroutra.Vocêescrevecartasparaaamantequerejeitousemdemonstrarnenhuminteresseemsabercomoissopoderiaafetá-laouaopaidela,queaama.VocêculpaseudestinopeloamorquesenteporFluriaeporsuasdecepções, e você ainda tem a intenção de amarrá-la, independente disso ser algobom ou ruim para ela. Você viverá uma vida vazia e amarga, uma vida egoísta e

profana,porquealgopreciosolhefoinegado?Vocêdesperdiçarátodasaschancesdeter honra e felicidade que lhe foremdadas nessemundo simplesmente porque foicontrariado?”

Naquela instante, Godwin viu a loucura de tudo aquilo. Viu que estavaconstruindo uma vida baseada na raiva e no ódio. E, impressionado pelamaneiracomaqualaquelehomemestavafalandocomele,disse:

“Oqueeupossofazer?”“DêasimesmoaDeus”,disseoestranhohomem.“Dêaeletodooseucoraçãoe

todaasuaalmaetodaasuavida.Sejamaisinteligentedoquetodosaquelesoutros–seuscompanheirosegoístasqueamamseuourotantoquantovocê,eseupaizangadoque o mandou para cá para que você se tornasse corrupto e infeliz. Seja maisinteligentedoqueomundoquefariadevocêumacoisacomumquandovocêaindapodemuitobemserexcepcional.Sejaumbompadre,sejaumbombispoe,antesdesetornarqualquerdasduascoisas,desfaça-sedetodasassuaspossessõesatéoúltimoaneldeouro,etorne-seumhumildefrei.”

Godwinficouaindamaisimpressionado.“Torne-seumfrei,eserbom carámuitomaisfácilparavocê”,disseoestranho.

“Lute com a nco para ser um santo. Que coisa mais importante você poderiaalcançar? E a escolha é sua.Ninguémpode lhe roubar essa escolha. Só você podejogá-laforaecontinuarparasempreemsuadevassidãoeemsuamiséria,rastejandodacamadaamanteparaescreveràpuraesagradaFluria,detalformaqueessascartasparaelasãoasúnicascoisasboasemsuavida.”

E então, tão silenciosamente quanto chegara, o estranho homem sumiu,dissolveu-senasemiescuridãodapequenaigreja.

Eleestavaláeentãonãoestavalá.EGodwin estava sozinhono frio cantodepedrada igrejamirando as velas ao

longe.Eleescreveuparamimquenaquelemomentoaluzdasvelaspareciamaelesera

luz do sol poente ou do nascente, uma coisa preciosa e eterna e um milagreproduzidoporDeus,ummilagreparaseusolhosnaqueleinstante,demodoqueelepudesse compreender amagnitude de tudo o queDeus fez ao criá-lo e ao criar omundoaoredordele.

“Euvouprocurar serumsanto”,ele jurounaquelemomentoe local.“QueridoSenhor,eulhedouminhavida.Eulhedoutudooquesouetudooquepossoseretudooquepossofazer.Eurenegoqualquerinstrumentodemaldade.”

Foi issooqueeleescreveu.Evocêpodeverqueeu liacartatantasvezesqueaconheçodememória.

Acartacontinuavainformando-mequenaquelemesmodiaelehaviasedirigidoaomosteirodosdominicanosepedidoparasejuntaraeles.

Elesoreceberamdebraçosabertos.Eles caram satisfeitos pelo fato de ele ser culto e por saber a antiga língua

hebraica,e caramaindamaissatisfeitosporelepossuirumafortunaemjoiaseemricostecidosquelhesseriamdoadosparaquefossemvendidosemproldospobres.

Àmaneira deFranciscodeAssis, ele despiu-se de todas as roupas luxuosas queusava, deu a eles também sua bengala de ouro e suas nas botas com apliques deouro.Epegoucomelesumhábitopretousadoeremendado.

Eledisse inclusivequedeixariapara trás seusestudose rezariade joelhosparaoresto da vida, se isso era o que eles queriam. Ele daria banho em leprosos. Eletrabalhariacomosmoribundos.Ele fariaoquequerqueopriorado lhemandassefazer.

Opriorriudetudoaquilo.“Godwin”,disseele,“umpregadordevesercultosedeseja pregar bem, tanto aos pobres quanto aos ricos. E nós somos, em primeirolugareacimadetudo,aOrdemdosPregadores.

“Suaformaçãointelectualéumtesouroparanós.Muitosqueremestudarteologiasempossuirqualquerconhecimentodasartesedasciências,masvocêjápossuitudoisso, e nós podemos enviá-lo agora para aUniversidadedeParis para estudar comnossograndeprofessorAlbert,quejáseencontralá.Nadanosdariamaiorfelicidadedo que vê-lo em nosso mosteiro de Paris, mergulhando profundamente nostrabalhosdeAristóteles enos trabalhosde seus companheiros estudantespara a arsuaóbviaeloquêncianamaisfinaluzespiritual.”

AquilonãoeratudooqueGodwintinhaamedizer.Eleprosseguiucomumimplacável autoexame talqual eu jamaishavia lidoem

suascartasantes.“Vocêsabeperfeitamentebem,minhaamadaFluria”,escreveuele,“queessafoia

maismaligna vingança sobremeupai que eupoderia umdia conceber: tornar-meumfreimendicante.Naverdade,meupaiescreveudeimediatoameusparentesaquiparaquemeprendessemeforçassemocontatodemulherescomigoatéqueminhasanidade retornasse e eu pudesse abandonar a fantasia de ser um mendigo e umpregadordebeiradeestradavestidoemandrajos.

“Tenhacerteza,minhaabençoada”,escreveuele,“quenadatãosimplesaconteceu.

EstouacaminhodeParis.Meupaimedeserdou.Estoutãodesprovidodedinheiroquanto estaria caso tivéssemos nos casado.Mas eu assumi a Pobreza sagrada, parausar aspalavrasdeFrancisco, que é tão estimadopornósquantonosso fundador,Domingos,eeuagoraservireiapenasmeuSenhoreReicomooprioradomeordenafazer.”

Ele prosseguiu escrevendo: “Eu pedia apenas duas coisas a meus superiores:primeiro,quemefossepermitidomantermeunome,Godwin,defatopararecebê-lorenovadocomomeunovonome,jáqueoSenhornoschamaporumnovonomequando entramos nessa vida, e segundo, que me fosse permitido escrever a você.Devoconfessarque,paraobterasegundaindulgência,reveleialgumasdesuascartasameus superiores e eles carammaravilhados diante da elevação e do amor de seussentimentostantoquantoeumesmoficomaravilhado.Permissãoparaambosmefoidada,maseusouagorao irmãoGodwinparavocê,minhaabençoada irmã,eeuaamocomoumadascriaturasmais ternasequeridasdeDeusecomosmaispurospensamentos.”

Bom, eu quei atônita com essa carta. E logo descobri que outros tambémhaviam cado atônitos com Godwin. Felizmente, escreveu ele para mim, seusprimoshaviamperdidotodaequalqueresperançaparacomele,vendoneleumsantoou um imbecil, nenhuma das duas coisas qualquer dos primos achava útil, e eleshaviamrelatadoaseupaiquenenhumagradonaTerrapoderiafazerGodwindeixaravidadosFreisMendicantesqueeleadotara.

Eurecebiaum uxoconstantedecartasdeGodwin,comosemprereceberaantes.Elas tornaram-se a crônica de sua vida espiritual. E em sua fé recentementedescoberta,eletinhamaisemcomumcommeupovodoquejamaisteveantes.Ojovemamantedoprazerquetantomeencantaraeraagoraumsérioerudito,comomeupaieraumsérioerudito,ealgoimensoetotalmenteindescritívelagoratornavaoshomensemminhamentedoisseresbastantesemelhantes.

Godwinescreviaparamim falando sobre asmuitaspalestras aqueassistia,mastambémmuitosobresuavidadepreces–comoelepassaraaimitarosmodosdeSãoDomingos,ofundadordosFreisNegros,ecomopassaraaexperimentaroqueelesentia como sendo o amor deDeus numamaneira totalmente fantástica.Todo equalquer julgamentodesapareceudas cartasdeGodwin.O jovemquepartiraparaRoma tanto tempoatrás só tinhapalavras ásperaspara simesmoassimcomoparatodosaoseuredor.AgoraesseGodwin,queaindaeraomeuGodwin,meescreviafalando sobre asmaravilhasque avistava em todosos lugaresparaondedirigia seu

olhar.Mas, euperguntoavocê, comoeupoderiadizerparaesseGodwin, essapessoa

maravilhosa e santi cadaquea orarado jovembrotoqueeuantes amara,que eletinhaduas lhasquemoravamnaInglaterra,ambassendocriadasparaseremjudiasexemplares?

Que bem tal informação teria proporcionado? E como poderia seu zelo tê-loafetado, carinhoso como ele era, se tivesse tido conhecimento de que tinha duaslhas vivendo no gueto de Oxford, bem distante de qualquer contato com a fé

cristã?Agora,eulhedissequemeupainãoproibiaessascartas.Nosprimeirosanos,ele

pensaraque elasnão continuariam.Mas, como continuaram, eu as revelei para elepormaisdeummotivo.

Meu pai é um erudito, como lhe contei, e ele não só estudou os comentáriossobreoTalmudedograndeRashicomotambémtraduziugrandepartedelesparaofrancês,comointuitodeajudarosestudantesquequeriamconheceraobra,masnãosabiamohebraiconoqualelahaviasidoescrita.Àmedidaque cavacego,elepassouaditarmaistrabalhosseusparamim,eeraseudesejotraduzirboapartedograndeeruditojudeuMaimônidesparaolatim,senãoparaofrancês.

NãofoisurpresaalgumaparamimGodwincomeçarameescreverfalandosobreessesmesmosassuntos,decomoograndeprofessorTomás,desuaordem,havialidoalgunstrabalhosdeMaimônidesemlatim,ecomoele,Godwin,queriaestudaressaobra.Godwinsabiahebraico.Eleforaomelhoralunodemeupai.

Então, àmedidaqueos anos forampassando, eu revelava as cartasdeGodwinparameupai e, frequentemente, comentáriosdemeupai sobreMaimônides e atémesmosobreteologiacristãingressavamnascartasqueeuescreviaparaGodwin.

MeupaiemsijamaisditariaefetivamenteumacartaparaGodwin,maseuachoqueeleveioaconhecermelhoreamarmaisohomemqueeleacreditavaanteshavê-lo traído e à sua hospitalidade, e assim uma forma de perdão foi concedida dessamaneira.Concedidaamim,pelomenos.Edurantetodososdias,depoisdeterminardeouviraspalestrasdemeupaiaseusalunos,oudecopiarsuasmeditaçõesparaele,ou de ajudar seus alunos a fazer isso, eu me recolhia ao meu quarto e escrevia aGodwin, contando-lhe tudo a respeito da vida emOxford, discutindo todas essasmuitascoisas.

Naturalmente,comotempo,Godwincolocou-meaquestão:porqueeunãomecasara?Eu lhedava respostas vagas,queo cuidadocommeupai consumia todoo

meu tempo, e às vezes eu dizia simplesmente que não conhecera o homem quequeriaparatercomomarido.

Nesse meio-tempo, Lea e Rosa estavam crescendo e se transformando emmenininhas lindas. Mas você precisa me dar um instante aqui, porque se eu nãochorarporminhasduasfilhassimplesmentenãotereicomocontinuar.

Naqueleponto,elacomeçouachorar,eeusabiaquenãohavianadaqueeupudessefazerpara consolá-la.Ela eraumamulher casada, euma judiapia, e eunãopodiacometeraousadiadeabraçá-la.Seriaalgoinesperado.Narealidade,haviaumagrandechancedeeuserproibidodetomartalliberdade.

Masquandoelaergueuosolhosetambémviulágrimasemmeurosto,lágrimasqueeunemtinhacomoexplicar,porqueelastinhamtantoavercomtudooqueelame contara sobre Godwin, como com ela própria, ela cou consolada com isso,pareceuficarconsoladapormeusilênciotambém,eprosseguiusuanarrativa.

I

CAPÍTULODEZFLURIACONTINUASUAHISTÓRIA

RMÃOTOBY,SEALGUMDIAVOCÊVIERACONHECERomeuGodwin,eleoamará.SeGodwinnãoéumsanto,talveznãoexistasantoalgum.Equeméo Todo-poderoso, abençoado seja Ele, que me enviaria um homem tão

semelhanteaGodwinjustamenteagora,etãosemelhanteaMeir,poisvocêtambéméisso.

Agora, eu estava lhedizendoque asmeninas estavam orescendo, e a cada anoficavammaisadoráveis,emaisdevotadasaoavô,emaissetornavamumaalegriaparaele em sua cegueira do que possivelmente qualquer criança o seria para muitoshomensqueconseguemver.

Masdeixe-mefazeragoraumamençãoaopaideGodwin,apenasparadizerqueohomemmorreudesprezandoo lhopor suadecisãode se tornar freidominicano,deixando toda a sua fortuna, é claro, para o primogênito,Nigel. Em seu leito demorte, o velho extraiu uma promessa deNigel de que este jamais poria os olhosnovamente sobre Godwin, e Nigel, que era um homem inteligente e vivido,concordoucomumbalançardeombros.

OupelomenosfoiassimqueGodwinmecontouemsuascartas,porqueNigelsaiuimediatamentedotúmulodopainaigrejaedirigiu-seàFrançaparaveroirmão,quenãosóansiavaporrevercomotambémamavamuito.Ah,quandoeupensonascartasdele,elaseramcomoumgoledeáguafrescaparamim,emtodosessesanos,muitoemboraeunãopudessecompartilharcomeleaalegriaquesentiacomLeaeRosa.Muitoemboraeumantivesseessesegredomuitobemretidoemmeucoração.

Eumetorneiumamulhercomtrêsgrandesprazeres,umamulherqueouviatrêsgrandescanções.Aprimeiracançãoeramasaulasdiáriasdeminhasduasbelas lhas.Asegundacançãoeramminhasleituraseostextosqueescreviaparameuamadopai,quefrequentementedependiademimparatal,emborativessealunosemabundânciadispostos a ler para ele, e a terceira canção eram as cartas de Godwin. Essas trêscançõestornaram-seumpequenocoroqueapascentava,educavaeaprimoravaminha

alma.Nãopensemaldemimporocultarascriançasdopai.Lembre-sedoqueestava

emjogo.PoismesmocomNigeleGodwinreconciliadoseescrevendoregularmenteumparaooutro,eunãopodiavislumbrarcoisaalgumaalémdedesastreportodososlados,advindodeminhapossívelrevelação.

Deixe-mecontar-lheumpoucomaisarespeitodeGodwin.Elemecontoutudosobresuasaulaseosdebatesdosquaisparticipava.Elesóestariaaptoadaraulasdeteologiaquandocompletassetrintaecincoanos,masestavapregandoregularmenteparavastasmultidõesemParisecontavacommuitosseguidores.Eleestavamaisfelizdoque jamais estiveraemtodaavida, enãoparavade repetir, eledesejavaqueeufossefeliz,eperguntavaporqueeunãohaviamecasado.

Ele disse que os invernos eram frios em Paris, exatamente como eram naInglaterra, e o mosteiro era frio. Mas ele jamais experimentara tamanha alegria,quandotinhaosbolsoscheiosdedinheiroparacomprartodaa lenhaquequisesse,outodaacomida.Tudooqueelequerianomundoerasabercomoeuandava,setambémeuencontraraafelicidade.

Quando escrevia sobre isso, a verdade oculta pressionava-me dolorosamente,porqueeuestavamuitofelizcomnossasduasfilhasaomeulado.

Gradualmente, fui começandoaperceberquequeriaqueGodwin soubesse.Euqueriaqueelesoubessequeessasduaslindas oresdenossoamorhaviam orescidoemsegurançaeexibiamagorasuabeleza,emplenainocênciaeproteção.

Eoquetornavaosegredoaindamaisdolorosoeraisso,eraofatodequeGodwincontinuava com tanta avidez seus estudos de hebraico, era o fato de que elefrequentementedebatiacomoseruditosjudeusemPariseiaparasuascasasestudarcomeleseconversarcomeles,exatamentecomoele zeratantosanosantes,quandoiaevinhadeLondresaOxford.Godwineraagora,comoderestosemprefora,umamantedenossopovo.Éevidentequequeriaconverteraquelescomosquaisdebatia,maselenutriaumgrandeamorporsuasmentesargutase,acimadetudo,pelasvidasdedevoçãoque eles levavam,oque ele sempredizia que lhe ensinavamuitomaissobre o amor do que o comportamento de alguns dos estudantes de teologia nauniversidade.

Muitas vezes eu queria confessar a situação toda, mas essas considerações meimpediam, como eu lhe disse. Primeiro, porque Godwin caria profundamenteinfelizsesoubessequeeuforaabandonadacomduas lhas.Esegundo,porquetalvezele pudesse car – comoqualquer pai gentio caria – alarmadopelo fatodeduas

lhassuasestaremsendocriadascomojudias,nãotantoporqueelemejulgassepeloqueeuhaviafeito,ouportemerpelasalmasdelas,masporqueeleestavacientedasperseguiçõesedaviolênciaàsquaismeupovoéfrequentementesubmetido.

Doisanosatrás, ele sabiaoquehaviaacontecidonaquestãodoPequenoSantoHugh de Lincoln. E nós havíamos escrito um ao outro com franqueza acerca denossos temores em relação ao gueto de Londres naquele momento. Quando nóssomos acusados emumdeterminado lugar, a violência pode eclodir emoutro.Oódiopornóseasmentirasqueespalhamanossorespeitopodemseespalharcomoumapraga.

Mashorroresassimpressionavam-menosentidodemanterosegredo.PoisoqueseriaseGodwinsoubessequetinhaduas lhascorrendoriscodeseremassassinadasemdistúrbiosdessanatureza?Oqueelefaria?

OquefinalmentefezcomqueeuexpusessetodaaquestãodiantedelefoiMeir.MeirchegaraemnossacasaexatamentecomoGodwino zeraanosantes,para

estudarcommeupai.Comoeuindiquei,acegueirademeupainãointerrompeuouxo de alunos. ATorá está escrita em seu coração, como costumamos dizer, e,

depoisdetodosessesanoscomentandooTalmude,eletambémoconhecedecor.EtodososcomentáriosdeRashisobreoTalmudeeleigualmentesabe.

Os mestres das sinagogas de Oxford vinham regularmente à nossa casa pararealizarconsultascommeupai.Aspessoastraziaminclusivesuasdisputas.Eletinhamuitosamigoscristãos,queprocuravamseusconselhossobreassuntossimplese,vezporoutra,quandoprecisavamdedinheiro,elesiamatéeleparaacharumaformadetomaremprestadosemqueosjurosfossemregistradosouconhecidosdetodos.Maseunãoquerofalardessascoisas.Eununcaadministreiminhapropriedade.

EpoucodepoisdeMeir começar avisitarmeupai, ele já estava administrandomeus negócios para mim, portanto eu não precisava me preocupar com coisasmateriais.

Vocêmevêaquimuitobemvestida,usandoessa tocabrancae essevéu, enãoconsegueenxergarnadaquepossaestragaraimagemdeumamulherrica,excetoessatiradetafetáa xadaemmeupeitoindicandoquesoujudia.Masacrediteemmimquandodigoqueraramentepensoemcoisasmateriais.

Vocêsabeporquenóssomosagiotasparaoreieparaaquelesdeseureino.Vocêsabe de tudo isso. E provavelmente também sabe que desde que o rei tornouproibido emprestarmos a juros, saídas para contornar essa situação foramencontradas,enósaindapossuímos,emnomedorei,muitospergaminhosdevárias

dívidasconosco.Bem,tendoemcontaqueeudevotavaminhavidaameupaieaminhasmeninas,

eunão considerava apossibilidadedeMeir vir apedirminhamão emcasamento,emboranãopudesseevitarrepararoquequalquermulherrepararia,etenhocertezaque até você reparou, que Meir é um homem de traços nos, de consideráveldelicadezaedotadodeumamenteaguda.

Quandoelerespeitosamentepediuminhamãoemcasamento,comunicouameupainostermosmaisgenerosos–comoeletinhaesperançanãodeprivá-lodemimoudemeuamor,massimdeconvidar todosnósanosmudarmoscomeleparaacasaqueacabaradeherdaremNorwich.Eletinhamuitoscontatosporlá,erelações,eeraamigodosmaisricosjudeusdeNorwich,queexistememgrandequantidade,comoeu imaginoquevocê saiba sódeverasmuitas e imponentescasasdepedra.Você sabe por que nós construímos nossas casas de pedra.Não há necessidade deexplicação.

Agorameupaipraticamentenão enxergavamais.Elepodiadizer quandoo solnascia e sabia quando ele se punha, mas quanto a mim e minhas lhas, ele nosconhecia pelo toque de suas delicadasmãos, e se havia algo que ele amasse quasetantoquantoanóserainstruirMeir,eorientarsuasleituras.PoisMeirnãoéapenasumalunodaToráedoTalmude,edeastrologiaemedicina,edetodasessasoutrasdisciplinasqueinteressaramameupainopassado.Eletambémépoeta,epossuiumavisãopoéticadascoisas,eenxergabelezaondequerqueolhe.

SeGodwin tivessenascido judeu, ele teria sido irmão gêmeodeMeir.Mas euestou falando coisas sem sentido, já que Godwin é a soma de muitas tendênciasimpressionantes, como já expliquei aqui.Godwin entra emuma sala e é como seumacoleçãodepessoastivesseacabadodeinvadi-la.Meiraparecerapidamenteecommodossedosos.Elessãosemelhantesediferentesaomesmotempo.

Meupai consentiude imediato commeu casamento comMeir e, sim, ele iriaparaNorwich,ondesabiaqueacomunidadejudaicaerabastanteprósperaeondeapaz subsistia havia já um bom tempo. A nal, as horrendas acusações de que osjudeushaviammatadooPequenoSantoWilliamtinhamsidoquasecemanosantes.E sim, as pessoas visitavam o santuário, e olhavam para nós com medo em seufervor,masnóstínhamosmuitosamigosentreosgentioseantigasinjúriasedesfeitasàsvezesperdemoferrão.

MaspoderiaeumecasarcomMeirsemlhecontaraverdade?Poderiaeudeixarquetalsegredoresidisseentrenós?Queminhasfilhastinhamumpaivivo?

Nósnãopodíamosprocuraroconselhodeninguém,oupelomenoseraoquemeu pai pensava, e ele meditava acerca da questão, não querendo que eu desseprosseguimentoaocasamento semque,deuma formaoudeoutra, esseproblemapudesseserresolvido.

Entãooquevocêachaqueeu z?Semdizerameupai,fuimeaconselharcomoúnico homem em todo o mundo que eu con ava e amava inteiramente, e essehomemeraGodwin.Paraele,quehaviasetornadoumsantoemvida,vivendoemmeioaseus irmãosemParis,eumgrandeeruditodaciênciadeDeus,euescreviecoloqueiaquestão.

Eescrevendoacartaemhebraicocomofaziatãofrequentemente,conteiparaeletodaahistória.

“Suas lhas são belas demente e coração e corpo” – eu disse a ele, “mas elasacreditamquesão lhasdeumpaifalecido,eosegredotemsidotãobemmantidoqueMeir,quemepropôscasamento,nemsonhacomaverdade.

“Agora eu coloco a questão para você, que está bem além do ponto onde onascimentodessascriançaslhecausariatristezaoupreocupação,assimcomotambémlheasseguroqueessaspreciosasmeninasrecebemtodasasbênçãosaquetêmdireito,oqueeudeveriafazeremrelaçãoàpropostadeMeir?Eupossometornaraesposadessehomemsemlhefornecerumrelatocompletodasituação?

“Como pode alguém manter um tal segredo de um homem que traz para ocasamentonadaalémdeternuraegentileza?Eagoraquevocêsabe,oquevocê,nofundodocoração,desejaparasuasfilhas?Eacuse-meagora,seassimodesejar,denãolhehavercontadoqueessasjovensinigualáveissãosuas lhas.Acuse-meagoraantesqueeumecasecomessehomem.

“Eu lhe contei a verdade e sinto um enorme alívio egoísta nesse ato, devoconfessar, mas também uma alegria egoísta. Deveria eu contar a minhas lhas averdadequandoelasestiveremnaidadedesaber?EoqueeufaçoagoracomMeir,essebomhomem?”

Eurezeiparaqueissonãofosseumchoqueparaele,eparaqueelemedesseseumais pio conselho sobre o que eu deveria fazer. “É para o irmãoGodwin que euescrevo”,eudisseaele,“oirmãoqueseentregouaDeus.Édelequedependoparaumarespostaquesejanãoapenasamorosacomotambémsábia.”Eutambémdisseparaeleque tiveraa intençãodeenganá-lo,mas jamais conseguidecidir se, aoagirassim,oestavaprotegendooufazendo-lhealgummal.

Eunãomelembroqueoutrascoisasescrevi.Talvezeutenhaditoaeleoquanto

asduasmeninaseramrápidasnopensamento,ecomohaviamprogredidobemnosestudos.EucertamenteconteiparaelequeLeaeraamaisquieta,equeRosasempretinhaalgointeligenteeengraçadoadizer.ConteiparaelequeLeadesdenhavatodasas coisasmundanas como sem importância, ao passo que Rosa não se contentavacomtodososvestidosecomtodososvéusquepossuía.

ConteiparaelequeLeaeradedicadaamim,egrudadaemmim,aopassoqueRosaespiavapela janelaocorre-corredeOxfordoudeLondres semprequeestavaconfinadaemcasa.

Conteiparaelequeeleestavarepresentadodetodasasformasemambasas lhas:na piedade e na disciplina de Lea e na irreprimível alegria e no riso fácil deRosa.Conteiparaelequeasmeninaspossuíammuitaspropriedadesdeseupailegítimo,equeelastambémherdariamdemeupai.

No entanto, enquanto eu enviava a carta temi com a possibilidade de haverenraivecido ou desapontado Godwin; com a possibilidade de tê-lo perdido parasempre. Embora não mais o amasse como o amara em minha juventude, comotambém não mais sonhava com ele como homem, eu o amava de todo o meucoração,emeucoraçãoestavaemtodasascartasqueeuescreviaparaele.

Bem,oquevocêachaqueaconteceu?

Tivedeconfessarquenãofaziaamenorideiadoquehaviaacontecido,ehaviatantascoisas passando por minha mente que foi com grande esforço que deixei Fluriacontinuar.Elafalaraemterperdidoasduas lhas.Elaestavatotalmenteemocionadaenquanto falava comigo. E grande parte dessa emoção também tomara conta demim.

E

CAPÍTULOONZEFLURIACONTINUASUAHISTÓRIA

M DUAS SEMANAS, GODWIN VEIO A OXFORD e apareceu na porta denossacasa.

Elenãoera,naturalmente,oGodwinqueeuumavezconhecera.Perderaa rispidez a adada juventude, a inveterada imprudência e algo in nitamentemaisradiante havia substituído tudo isso. Ele era o homem que eu conhecia de nossascartas.Eraafávelaofalaredelicado,aindaquecheiodeumapaixãointernaque,paraele,eradifícilconter.

Euofizentrar,semcontarameupaie,deimediato,trouxeasduasmeninas.Parecia que eu não tinha nenhuma outra escolha além de deixá-las saber que

aquelehomemera,naverdade,opaidelase,gentiledelicadamente,foi issooqueGodwinimplorouqueeufizesse.

“Vocênãofeznadaerrado,Fluria”,elemedisse.“Vocêcarregouumfardotodosesses anos que deveria ter sido compartilhado comigo.Eu te abandonei comduaslhas.Nemmesmo pensei no assunto. E agora deixe-me verminhas lhas, eu te

peço.Vocênãotemnadaatemerdeminhaparte.”Eu trouxe as meninas para conhecê-lo. Isso foi menos de um ano atrás, e as

meninastinhamtrezeanos.Sentiumimensoeprazerosoorgulhoquandoasapresentei,porqueelashaviamse

tornadoinquestionáveisbeldades,eherdadoaexpressãoradianteefelizdopai.Numavoztrêmula,euexpliqueiaelasqueaquelehomemeraseupaiverdadeiro,

o irmãoGodwin a quem eu escrevia tão regularmente, e que, até aquelas últimasduassemanas,nãosabiadaexistênciadelas,masdesejavaapenasolharumpoucoparaelasagora.

Lea cou chocada, mas Rosa sorriu imediatamente para Godwin. E, em seuhabitualmodoirreprimível,declarouquesempresoubequealgumsegredorondavaonascimentodelas, equeela estava felizporpoderverohomemqueera seupai.“Mãe”,eladisse.“Esseéummomentodemuitaalegria.”

OrostodeGodwinficoucheiodelágrimas.Eleseaproximoudas lhascommãoscarinhosasquecolocousobresuascabeças.

Eentãosentou-seechorou,transtornado,olhandoseguidamenteparaambasas lhasaliempé,soluçandosemparar.

Quando meu pai percebeu que ele estava em casa; quando os serviçais idososdisseramparaelequeGodwinagorasabiaarespeitodas lhaseelassabiamarespeitodele,meupai desceu, entrouna sala e ameaçoumatarGodwin com suas própriasmãos.

“Oh,éumabençãoparavocêeuestarcegoenãotercomoachá-lo!LeaeRosa,vocêsestãoincumbidasdemelevardiretamenteatéessehomem.”

Nenhumadasduasmeninassabiaoquefazer,eeumeposteideimediatoentreGodwinemeupai,aquemsupliqueiqueseacalmasse.

“Comovocêousaviraquicomtalpropósito?”,meupaidemandou.“Tolereisuascartaseatémesmo,detemposemtempos,escreviparavocê.Masagora,cientedaextensão de sua traição, eu pergunto como ousa ter o descaramento de vir até aminhacasa?”

Paramim, ele reservava igualmente uma linguagem áspera. “Você contou paraessehomemessascoisas semmeuconsentimento.EoquevocêcontouparaLeaeRosa?Oqueessascriançassabemrealmente?”

Deimediato,Rosatentouacalmá-lo:“Vovô”,disseela,“nóssempresentimosquealgummistérionosrondava.Nóspedimosemvãodiversasvezesosescritosdenossosuposto pai, ou alguma recordação pela qual pudéssemos lembrar dele, mas nadanessesentidojamaisocorreu,excetoaconfusãoeadoróbviasdapartedenossamãe.Agoranóssabemosqueessehomeménossopai,enãopodemosevitarafelicidadeque sentimos por conta disso. Ele é um grande erudito, vovô, e nós ouvimosmençõesaonomedeledurantetodaavida.”

Elatentouabraçarmeupai,maseleaempurrouparalonge.Oh, era horroroso vê-lo daquela maneira, mirando cegamente diante dele,

agarrandoseucajado,aindaquesemequilíbrio,sentindo-seagorasozinhoemmeioainimigosdesuaprópriacarneesangue.

Comeceiachorarenãoconseguiimaginaroquepoderiadizer.“Essasmeninassão lhasdemãejudia”,meupaidisse,“esãomulheresjudiasque

serãoumdiamãesde lhos judeus, e vocênão teránadaaver comelas.Elasnãopertencemàsuafé.Evocêdevesairdaqui.NãovenhamecontarhistóriasdesuaaltasantidadeefamaemParis.Eujáouviosu cienteemdiversasoportunidades.Eusei

quemvocêrealmenteé,ohomemquetraiuminhaconfiançaeminhacasa.Vápregarpara os gentios que aceitam você como o pecador reformado. Eu não aceitonenhuma con ssão de culpa de sua parte. Se você não visitar umamulher a cadanoitedesuavidaemParis,euficareisurpreso.Saia!”

Vocênãoconhecemeupai.Vocênãotemcomosaberoardordesuaira.Minhadescriçãomal consegue exprimir a eloquência com a qual ele agelouGodwin. Etudoissonapresençadasmeninas,cujosolhosvagavamentreamãeeoavôparaemseguidafixarem-sesobreoFreiNegroqueseajoelhouedisse:

“Oqueeupossofazeranãoserimplorarporperdão?“Cheguemaisperto”,meupaidisse,“eeuvoubateremvocêcomtodaaminha

forçapeloquefezemminhacasa.”Godwinapenaslevantou-se,fezumamesuraparameupaie,olhandoparamim

comternuraeparaasfilhascompesar,fezmençãodesairdacasa.Rosaoimpediu,enaverdadeoabraçou,eeleaseguroucomosolhosfechados

por um momento longo – detalhes que meu pai não podia ver ou saber. Leapermaneceuabsolutamenteimóvel,choramingando,eentãosaiudasalacorrendo.

“Saiademinhacasa”,rugiumeupai.EGodwinobedeceuprontamente.Euestavacomumtemorpavorosoemrelaçãoaoqueelepoderiavirafazerou

paraondehaviaido,eagoramepareciaquenãomerestavanenhumaopçãoanãoserconfessartudoaMeir.

Meirveionaquelanoite.Estavaagitado.Ficarasabendoqueocorreraumabrigasob nosso teto e que o Frei Negro fora visto saindo de lá tremendamenteperturbado.

Tranquei-me comMeir no estúdio demeu pai e contei a ele toda a verdade.Contei-lhequenãosabiaoqueaconteceria.SeráqueGodwinvoltaraparaParis,ouseráqueaindaestavaemOxford,ouemLondres?Eunãofaziaamenorideia.

Meirolhouparamimporumlongotempocomseusolhossuaveseamorosos.Então, surpreendeu-me completamente. “BelaFluria”, eledisse, “Eu sempre soubequeasmeninaseramfilhassuascomumamantejovem.VocêachaqueexistealguémnoguetoquenãoselembredesuaafeiçãoporGodwinedahistóriadorompimentodele com seu paimuitos anos atrás? Eles não dizemnada diretamente,mas todossabem.Acalme-seemrelaçãoa isso,pelomenosnoquemeconcerne.Oquevocêdeve encarar agora não é minha defecção, certamente, pois eu a amo hoje tantoquanto a amei ontem e anteontem. O que todos nós devemos encarar é o queGodwinpretendefazer.”

Elecontinuoufalandocomigodeummodomuitocalmo.“Gravesconsequênciaspodemestaràesperadeumpadreouirmãoacusadodeter

lhoscomumamulherjudia.Vocêsabedisso.Egravesconsequênciaspodemestaràesperadeumajudiaqueconfessaquesuas lhastêmumpaicristão.Aleiproíbetaiscoisas.Acoroaestáansiosaparapôrasmãosnapropriedadedaquelesqueaviolam.Éimpossível ver como qualquer coisa pode ser feita aqui, exceto a manutenção dosegredo.”

Naverdade,eleestavacerto.EraovelhoimpassequeeuencararaquandoGodwine eu nos apaixonamos no passado, e ele foi enviado para longe. Ambos os ladostinhammotivosparamanterosegredo.Ecertamente,minhasmeninas,inteligentescomoeram,compreendiamissomuitobem.

MeirproduziraimediatamenteemmimumacalmaquenãoeramuitodiferentedaserenidadequeeufrequentementesentiaquandoliaascartasdeGodwine,nessemomentodenotávelintimidade–porquetratava-severdadeiramentedisso–,euviahumildadeeadelicadezainatasdeMeircommuitomaisclarezadoqueantes.

“Nós devemos esperar para ver o queGodwin fará”, ele repetiu. “Na verdade,Fluria,euviessefreisairdesuacasa,eelepareciaumhomemhumildeepacato.Euestavaobservando,porquenãoqueriaentrarseseupaiestavanoestúdiocomele.Eentão ocorreu que eu o vi nitidamente quando saiu. Seu rosto estava pálido econtraído,eelepareciacarregarumimensofardonaalma.”

“Agoravocêtambémestácarregandoessefardo,Meir”,eudisse.“Não,eunãocarregofardoalgum.SóesperoerezoparaqueGodwinnãotenhaa

intençãodetirarsuasfilhasdevocê,poisissoseriaumacoisahorrendaeterrível.”“Comoumfreipodetirarsuasfilhasdemim?”,perguntei.Mas justamentequandoeuestavafazendoapergunta,nósouvimosumabatida

fortenaporta,easerviçal,minhaadoradaAmelot,veiomedizerqueocondeNigel,lhodeArthur,estavalácomseuirmão,Godwin,equeelaabriraaportaparaelese

osinstalaraconfortavelmentenamelhorsaladacasa.Eume levanteipara iraté lá,mas,antesquepudesse,Meir levantou-seaomeu

ladoepegouminhamão.“Euteamo,Fluria,equeroquevocêsejaminhamulher.Lembre-sedisso,eeusabiadessesegredosemqueninguémprecisassemecontar.Eusabia inclusive que o lho mais novo do velho conde era o pai mais provável.Acredite emmim, Fluria, acredite que eu possa te amar incondicionalmente, e sevocênãoquisermedarsuarespostaagora,estandoascoisascomoestão,tenhacertezadequeesperareipacientementevocêdecidirsenósnoscasaremosounão.”

Bom,eujamaisouviraMeirdizertantaspalavrasemminhapresença,oumesmona presença de meu pai. E me senti bastante amparada por isso, mas totalmenteaterrorizadapeloquemeesperavanasalaprincipal.

Perdoe-meporchorar.Perdoe-mepornãoconseguirevitar.Perdoe-mepornãoconseguiresquecerLea,nãoagoraenquantorelatotodasessascoisas.

Perdoe-meporchorarigualmenteporRosa.

Oh,Senhor,ouçaminhaprece,Ouçameuchoropormisericórdia;EmsualealdadeeretidãoVenhameconsolar.

NãojulguesuaservaPoisninguémvivoéjustodiantedeti.

Vocêconheceessesalmotantoquantoeu.Éminhaprececonstante.Fui cumprimentar o jovem conde que havia herdado o título de seu pai. Eu

tambémconheceraNigelcomoumdosalunosdemeupai.Elepareciaperturbado,masnãozangado.EquandoeuvolteimeuolharparaGodwin, queimaisumavezimpressionadacomadelicadezaeaquietudequepareciamemanardele,comoseeleestivessepresente,sim,evibrantementepresente,mastambémemoutromundo.

Osdoishomensmesaudaramcomtodoorespeitoquepoderiamdedicaraumamulhergentia,eeuosinsteiasesentareatomarumpoucodevinho.

Minhaalmaestavaagitada.Oquepoderiasignificarapresençadojovemconde?Meupaientroueexigiusaberquemestavaemsuacasa.Euimploreiàserviçalque

fosseatéMeirepedisseaelequesejuntasseanós,eentão,comvoztrêmula,dissepara meu pai que o conde estava lá com seu irmão, Godwin, e que eu os haviaconvidadoatomarvinho.

QuandoMeirapareceue couempéaoladodemeupai,eudisseparatodososserviçais–etodoselesestavamláparaserviroconde–queporfavorsaíssem.

“Muitobem,Godwin”,eudisse.“Oquevocêtemamedizer?”Eutentavanãochorar.

Se o povo de Oxford soubesse que duas crianças gentias haviam sido criadascomo judias, as pessoas não poderiam tentar nos agredir? Não haveria por acasoalgumaleiquenoslevasseaocadafalsoporcontadisso?Eunãosabia.

Havia muitas leis contra nós, mas, pensando bem, aquelas crianças não eramfilhaslegítimasdeumpaicristão.

EumfreitalqualGodwiniriaquereradesgraçadetersuapaternidadeconhecidaportodos?Godwin,tãoamadoporseusalunos,jamaispoderiadesejartalcoisa.

Masopoderdo conde era considerável.Ele eraumdosmais ricosdo reino, equemtinhamaispoderpararesistiraoarcebispodeCanterburysemprequedesejava,e tambémaorei.Algoterrívelpoderiaser feitoagoraemsussurrose semqualquerexposiçãopública.

Enquantoponderavaessascoisas,eutentavanãoolharparaGodwinporquesentiaapenasumamorpuroeelevadoquandoolhavaparaele,eaexpressãopreocupadanorostodeseuirmãomecausavamedoedor.

Sentinovamentequeaquiloeraumimpasse.Euestavamirandoumtabuleirodexadrez sobreoqualduaspeças se encaravammutuamente, enenhumadasduas seprestavaaumaboamovimentação.

Nãopensemaldemimporfazercálculosnummomentocomoaquele.Euviaamimmesmacomoaculpadaportudoqueacontecianaquelemomento.AtémesmooquietoepensativoMeirestavaemminhaconsciênciaporhaverpedidominhamãoemcasamento.

Noentanto,eucalculavacomoseestivesse fazendoadições.Se fôssemosexpostos,seríamoscondenados.MasseGodwinreivindicasseasfilhas,cairiaemdesgraça.

E se minhas meninas fossem tiradas de mim e suas vidas passassem a ser uminsuportável cativeiro no castelo do conde? Isso era o mais abominável acima detudo.

Toda a minha mentira fora manter silêncio, e agora eu sabia que as peças dexadrezencaravamumaaoutraeeuesperavaodesdobramentodajogada.

Meupai,apesardacadeiraquelhehaviasidodisponibilizada,permaneciadepéeperguntouseMeirnãopodia levara lamparinapara iluminarorostodeambososhomensqueestavamempédiantedele.Meir relutavaemfazê-lo,eeupercebi,demodoqueeumesmao z, implorandopeloperdãodoconde,eohomemapenasfez um gesto demonstrando sua aquiescência e olhou diretamente por cima dachama.

Meupaisuspirou,fezumgestopedindoumacadeiraeentãosentou-se.Colocouasmãosnotopodocajado.

“Nãomeimportaquemvocêé”,eledisse.“Euodesprezo.Perturbeminhacasaevocêherdaráovento.”

Godwin levantou-se e avançou.Meupai,ouvindo seuspassos, ergueuo cajadocomoseparaempurrá-lodevoltaparatrás,eGodwinparounocentrodasala.

Oh, aquilo era uma agonia, mas então Godwin, o pregador, o homem queemocionava multidões nas praças de Paris e nos auditórios, começou a falar. Seufrancêsnormandoeraperfeito,eéclaroqueodomeupaitambémera,etambémomeu,comovocêpodeouvir.

“Os frutosdomeupecado”,disse ele, “estãoagoradiantedemim.Vejooquemeusatosegoístasproduziram.Vejoagoraqueoqueeu ztãoinsensatamentetevegraves consequências para outras pessoas, e que elas aceitaram essas consequênciascomgenerosidadeeelegância.”

Fiquei profundamente tocada com aquilo, mas meu pai demonstrou suaimpaciência.

“Tireessascriançasdenóseeuocondenareidiantedorei.Nóssomos, sevocêporacasoseesqueceu,osJudeusdoRei,evocênãofarátalcoisa.”

“Não”,disseGodwinnomesmomodohumildeeeloquente.“Eunãofarianadasemseuconsentimento,MestreEli.Eunãovimatésuacasacomaintençãodeexigircoisaalguma.Euvimatéaquicomumasolicitação.”

“E qual seria ela?Tenha consciência de que eu estou preparado para pegar essecajadoeespancá-loatéamorte”,dissemeupai.

“Papai,porfavor.”Euimploreiparaqueeleparasseeescutasse.Godwinaceitouissocomosetivesseapaciênciaparaserapedrejadoempúblico

sem levantar um dedo sequer em protesto. Em seguida, ele deixou claro suasintenções.

“Nãoexistemduasbelascrianças?”,eledisse.“Deusnãoenviouduasporcausadenossasduascrenças?OlheparaadádivaqueEleproporcionouaFluriaeamim.Eu,que nunca esperei ter a devoção ou o amor de umúnico rebento, estou agora depossededuas lhas,eFluriavivediariamente,desprovidadequalquerdesgraça,naadorávelcompanhiadesuascriasquepoderiammuitobemtersidoarrancadasdelaporalgumsercruel.

“Fluria, eu te imploro: deixe que uma dessas lindas meninas que comigo.MestreEli,euteimploro,deixe-melevarumadessaslindasmeninasdesuacasa.

“Deixe-me levá-laparaParispara sereducada.Deixe-meobservá-lacrescerna fécristã,esobaamorosaorientaçãodeumpaiedeumtiodedicados.

“Vocêmantémaoutrasemprepróximadeseucoração.Eaquevocêescolherparameacompanhar,euaceitarei,jáquevocêconheceseuscoraçõesesabequaldasduasémaispropensa a ser feliz emParis e feliz comumanova vida, equaldelas émaistímida, talvez, ou mais devotada à mãe. Que ambas a amam, disso não tenho

dúvidas.“MasFluria, eu te imploro, perceba o que signi ca paramim, na condição de

crenteemJesus,minhas lhasnãopoderemconvivercompessoasdeminhafé,enãosaberemnadaacercadasmaisimportantesresoluçõesqueseupaitomou:servirparasemprea seuSenhor JesusCristoempensamento,palavrae ação.Comoeupossoretornar a Paris sem implorar a você: deixe que uma das meninas que comigo.Deixe-mecriá-lacomouma lhacristã.Dividamosentrenósofrutodenossafalhainíqua,enossaimensaebenfazejafortunaporessasmeninasexistirem.”

Meu pai teve um ataque de fúria. Ele se levantou, segurando com rmeza ocajado.

“Vocêdesgraçouminha lha”,berrouele,“eagoravemaquidispostoadividiraslhasdela?Dividir?VocêpensaqueéoreiSalomão?Seeuenxergasse,euomataria.

Nada me impediria. Eu o mataria com minhas próprias mãos e o enterraria noquintaldestacasaparaqueseucorpo casseafastadodeseuscompanheiroscristãos.GraçasaDeuseuestoucego,doenteevelhoenãotenhocondiçõesdearrancarseucoração. Assim sendo, eu ordeno que você saia de minha casa e insisto para quejamaisretorne,enãoprocureversuas lhas.Aportaestábarradaàsuapresença.Epermita-me tranquilizar sua mente em relação a essa questão: essas crianças sãolegalmente nossas. Como você vai provar o contrário a quem quer que seja? Eimagine o escândalo que cairá sobre você se não sair daqui em silêncio e se nãodesistirdessarequisiçãoatrevidaecruel!”

Eu ztudoqueestavaameualcancepararefrearmeupai,mas,comumcotoveloduro,elemeempurrouparaolado.Brandiuocajado,seusolhoscegosvasculhandooespaçoàsuafrente.

Ocondeestavaa itodetantopesar,masnadapodiaseequipararàtristezaeaosofrimento agudo estampados no rosto deGodwin.Quanto aMeir, eu não teriacomo lhe dizer como ele estava avaliando essa discussão, porque tudo o que euconseguifazernaquelemomentofoiabraçarmeupaieimplorarparaqueele cassequietoedeixasseoshomensfalarem.

Eu estava aterrorizada, não porGodwin,mas sim porNigel. A nal,Nigel eraaquelecomopoderpara levaremboraminhas lhas,seassimdecidisse,eparanossubmeter a todos aomais severo dos julgamentos.Nigel era aquele comdinheirosu cienteehomenssu cientesparaarrancardemimasmeninasetrancá-lasemseucasteloaquilômetrosdeLondresenegaramimapossibilidadedejamaisvoltaravê-las.

Mas eu só via gentileza nos rostos de ambos os homens. Godwin estavanovamentechorando.

“Oh,sintomuitíssimoterlhecausadotodaessador”,eledisseameupai.“Causado dor a mim! Seu cachorro!”, disse meu pai. Com di culdade, ele

reencontrou a cadeira e tornou a sentar-se, tremendo violentamente. “Você pecoucontraminhacasa.Vocêpecaagoracontraela.Saiadaqui.Saia!”

Mas o que surpreendeu a todos naquele instante puramente passional foiRosaentrarnasalaepedir,numavozlímpida,paraqueseuavônãodissessemaisnada.

É preciso que se saiba que gêmeos, até mesmo gêmeos idênticos, sãofrequentementediferentesemcoraçãoeemalma.Comoeujádeiaentenderavocêantes, uma pode sermais inclinada à objetividade e ao comando do que a outra.Assimeracomminhas lhas,comoeujádisse.Leasempresecomportavacomosefossemais jovemdo queRosa; eraRosa quem frequentemente decidia o que elasiriamfazereoquenão iriamfazer.NissoelasepareciacomigotantoquantocomGodwin.Elasepareciacommeupaitambém,jáqueelesemprefoiumhomemquefaloucomforçaeautoridade.

Bem,agoraeraRosaquemfalavacomforça.Elamedissedeummodogentil,porémfirme,quequeriairparaPariscomseupai.

Aoouvirisso,GodwineNigel caramambosprofundamenteemocionados,masmeupaificoumudoeabaixouacabeça.

Rosa foi até ele, deu-lhe um abraço e um beijo. Mas ele não abria os olhos,deixou cair o cajado e apertouos joelhos com asmãos, ignorando-a como senãosentisseotoquedamenina.

Eu tentei lhedevolverocajado, jáqueelenunca seafastavadoobjeto,maselederaascostasparatodosnós,comosetivesseseenroscadoparadentrodesimesmo.

“Vovô”,disseRosa,“Leanãosuportaria carlongedenossamãe.Osenhorsabedisso,esabequeelateriamedodeirparaumlugarcomoParis.ElatemmedoatédeircomMeiremamãeparaNorwich.SouemquemdeveriaircomoirmãoGodwin.Certamenteosenhorconsegueenxergarasensatezdessadecisãoeentenderqueessaéaúnicamaneiradetodosnósficarmosempaz.”

Ela seviroueolhouparaGodwin,queaolhavacomtanta ternuraqueeumalconseguiasuportaravisão.

Rosaprosseguiu:“Eusabiaqueessehomemerameupaiantesmesmodevê-lo.Eu sabia que o irmão Godwin de Paris a quem minha mãe escrevia com tantadevoçãoeradefatoohomemquemehaviadadoavida.

“MasLeajamaissuspeitou,eagorasódeseja carcommamãeecomMeir.Leaacreditanoqueacredita,nãonaforçadoquevê,masnoquesente.”

EntãoRosa se aproximoudemimemeabraçou.Elamedisse comdelicadeza:“Eu quero ir para Paris.” Franziu a testa e parecia estar lutando para formar aspalavras,masentãodissesimplesmente:“Mãe,euquero carcomohomemqueémeupai.”Elacontinuavameolhando.“Essehomemnãoécomoosoutroshomens.Essehomemé comooshomens santi cados.”Aqui ela estava se referindo àquelesjudeusmais rígidos que tentam viver inteiramente paraDeus, que semantêm tãoéis àTorá e aoTalmude que sua corrente adquiriu em nossomeio o nome de

chassidismo.Meupaisuspiroueolhouparacima,eeuviseuslábiossemovendoenquantoele

rezava.Ele abaixou a cabeça.Levantou-se e foi até aparede, virando as costasparatodosnós,ecomeçouaarquearocorpoapartirdacinturaenquantorezava.

Eu vi que Godwin estava rejubilado diante dessa decisão da parte de Rosa. EtambémseuirmãoNigel.

EfoiNigelquemcomeçouafalar,explicandonumavozbaixaerespeitosaquecuidariaparaqueRosativessetodasasroupasetodososluxosqueviesseanecessitar,equeelaestudarianomelhorconventodeParis.Elejáhaviaescritoparaasfreiras.ElefoiatéRosa,beijou-aedisse:“Vocêencheuseupaidefelicidade.”

Godwinpareciaestarrezando,eentãodissenumsussurro:“QueridoDeus,vocêdepositouumtesouroemminhasmãos.Euteprometoqueprotegereiparasempreessa criança, e que a vida dela será rica de bênçãos terrenas. Por favor, Senhor,gratifique-acomumavidarepletadebênçãosespirituais.”

Diante disso, pensei quemeu pai perderia a cabeça. É claro queNigel era umconde,vocêcompreende,possuíamaisdeumapropriedadeeestavaacostumadoaserobedecidonãoapenasporseusserviçaiscomotambémportodososseusservoseportodasaspessoasquecruzassemseucaminho.Elenãopercebiaoquãoprofundamentesuascolocaçõesofenderiammeupai.

Godwin,entretanto,visualizouacenae,maisumavez,comohavia feitoantes,coudejoelhosdiantedemeupai.Fezissocomtotalsimplicidade,comoseogesto

nãosignificassenadaparaele,equecenaeraaquelacomelealipostadoemseuhábitopreto e usando sandálias, ajoelhado diante demeu pai e implorando para que eleperdoassetudoetivesseconfiançaqueRosaseriaamadaetratadacomcarinho.

Meupainão cou tocado.Finalmente, comumprofundo suspiro, ele fezumgestoparaquetodos cassememsilêncio,porquenaquelemomentoRosajáestava

lheimplorando,eatémesmooorgulhosoporémgentilNigelestavapedindoqueeleenxergasseajustezadadecisão.

“Ajustezadadecisão?”,dissemeupai.“Dadecisãodequeumamulherjudiadeveserbatizadaese tornarcristã?É issooquevocêacha justo?Eupre rovê-lamortaantesquealgoassimtenhapermissãoparaacontecer.”

MasRosa, em sua ousadia, aproximou-se bem dele e, não permitindo que elesoltasse suasmãos, disse: “Vovô,o senhor deve ser o rei Salomão agora.O senhordeveverqueLeaeeuseremosdivididasporquesomosduas,nãouma,etemosdoispais,umpaieumamãe.”

“Foivocêquemtomouadecisão”,dissemeupai.Eleestavafalandodemaneirairada.Eununcaovicomtantaraiva,comtantaamargura.Nemmesmoquandoeulhedisse,anosatrás,queestavagrávidaeledemonstroutamanhafúria.

“Vocêestámortaparamim”,eledisseaRosa.“Vácomseupailoucoesimplório,esse demônio que penetrou sorrateiramente em minhas con dências, ouvindominhashistórias,lendaseinstruçõesenquantomantinhaseuolharmal-intencionadosobre suamãe. Vá em frente e considere-se morta para mim, e eu prantearei suapartida.Agorasaiademinhacasa.Saiadaquievácomessecondequeveioaquilevarumacriançadeumamãeedeumavô.”

Elesaiudasala,encontrandofacilmenteocaminhoebatendoaportacomforçaatrásdesi.

Naquelemomento,penseiquemeucoraçãosepartiria,queeujamaisvoltariaasaberoqueerapaz,felicidadeouamor.

Masentãoalgosepassouquemeafetoumaisprofundamentedoquequaisquerpalavraspronunciadas.

EnquantoGodwin se levantava e se voltavaparaRosa, ela escorregoupara seusbraços.Elasesentiuirresistivelmenteatraídaporele,eesbanjouseusbeijos infantissobreopai,colocouacabeçaemseuombro,eelefechouosolhosechorou.

Eu vi amimmesma naquelemomento, como eu o amara anos atrás. Só queagoraviaapurezadaquilo,queeranossafilhaqueeleseguravanosbraços.Eeusoubeentão que não havia nada que eu pudesse ou que eu devesse fazer para me oporàqueleplano.

Apenasavocê, irmãoToby,euadmito isso,massenti-mecompletamente livrenaquele instante.Eemmeucoração, eudeimeuadeus silenciosoaRosa, eminhasilenciosacon rmaçãodoamorquesentiaporGodwin,efuimepostaraoladodeMeir.

Ah,vocêentendecomosãoascoisas.Vocêentende.Euestavaerrada?Euestavacerta?

O Senhor no céu tirou Lea de mim, minha criança que permaneceu comigo,minhafiel,tímidaeamávelLea.

Ele a levou, assim como meu pai em Oxford se recusa até a falar comigo, epranteiaRosaqueaindavive.

SeráqueoSenhormecondenou?Certamente meu pai soube da morte de Lea. Certamente ele sabe o que nós

estamosenfrentandoaquiemNorwichecomoacidade fezdamortedeLeaumagrande causa por nossa condenação e possível execução, como o ódiomaligno denossavizinhançagentiapodeeclodircontranósmaisumavez.

ÉumacondenaçãoporeuterdeixadoRosasetornaraprotegidadocondeeportê-la deixado ir com ele e comGodwin para Paris. É uma condenação, só possoacreditar que seja isso.Emeupai,meupainão falaumapalavra comigo,nãomeescreveumacarta,desdeaqueledia.Nemofaráagora.

EleteriasaídodenossacasanaquelemesmodiaseMeirnãotivessemetiradodeláimediatamente,eseRosanãotivessepartidonaquelanoitemesmo.EapobreLea,minhadoceLea, ela lutavapara entenderporque a irmã estavadeixando-apara irparaParis,eporqueoavô cavasentadoemsilênciocomosefossefeitodegranito,recusando-seafalaratémesmocomela.

Eagoraminhadoceequerida lha,trazidaparaessaestranhacidadedeNorwich,e amadapor todos quepara ela olhavam,morreu em total desamparodomal doilíaco enquanto nós estávamos impotentes para salvá-la, eDeusme colocou nesselugar, aprisionada, até omomento em que a cidade que imersa em distúrbios etumultosetodosnóssejamosdestruídos.

Eu imagino se meu pai não está rindo de nós, amargamente, porque estamoscertamentearruinados.

F

CAPÍTULODOZEOFIMDAHISTÓRIADEFLURIA

LURIA ESTAVA AOS PRANTOS QUANDO TERMINOU a narrativa.Novamenteeuquisabraçá-la,massabiaqueaquilonãoeraadequado,enãoseriatolerado.

Eulhedissemaisumaveznumlevesussurroquenãoconseguiaimaginaradorque ela sentira ao perder Lea, e só podia fazer uma silenciosa homenagem a seucoração.

–EunãoacreditoqueoSenhor levasseumacriançaparapunirquemquerqueseja por coisa alguma – comentei. – Mas o que eu sei a respeito dos modos doSenhor?EuachoquevocêfezoqueachoucorretoquandodeixouRosairparaParis.ELeamorreuemdecorrênciadeumasituaçãoquepoderiafazercomquequalquercriançamorresse.

Ela couumpoucomenosa itaquandoeudisseisso.Estavacansada,etalvezaexaustãoaacalmassemaisdoquequalqueroutracoisa.

Elase levantoudamesa,dirigiu-seàestreitagretadeumajanelaepareceuolharparaanevequecaía.

Eufiqueiparadoatrásdela.–Nóstemosmuitascoisasadecidiragora,Fluria,masaprincipaléessa:seeufor

aParisepersuadirRosaaviraquiefazer-sepassarporLea...–Oh, você acha que eu já não pensei nisso? – perguntou ela. E se virou para

mim.–Éperigosodemais–continuouela.–EGodwinjamaispermitiriatamanhamentira.Comopoderiaumamentiracomoessaseralgocorreto?

–NãofoiJacóquemenganouIsaac?–eudisse.–Etornou-seIsraeleopaidesuatribo?

–Sim,foiassim,eRosaébeminteligenteemuitodotadacomaspalavras.Não,éperigosodemais.EseRosanãoconseguirresponderasperguntasdeLadyMargaret,ou se não reconhecer a pequena Eleanor como uma amiga íntima?Não, isso nãopodeserfeito.

–Rosapodeserecusarafalarcomaquelesqueofenderamsuamãe–eudisse.–Todoscompreenderiamisso.Elaprecisaapenasestarpresente.

Isso,obviamente,nãoocorreraaFluria.Ela começou a andar de um lado para o outro no quarto, torcendo as mãos.

Durantetodaaminhavidaeuouviraaexpressão:torcerasmãosemdesespero.Masjamaisviraninguémfazerissoatéaquelemomento.

Eu tinha a nítida sensação de que conhecia melhor essa mulher agora do quequalqueroutrapessoanomundo.Eraumaideiaestranhaearrepiante,nãoporqueaamassemenos,massimporqueeunãoconseguiasuportarpensaremminhaprópriavida.

–Mas se isso pudesse ser feito; se pudéssemos trazerRosa aqui – perguntei –,quantaspessoasnoguetosabemquevocêtevegêmeas?QuantasconhecemseupaieconheciamvocêemOxford?

–Muitas,masnenhuma falaránada sobre isso– insistiuela.–Lembre-se:parameu povo, uma criança que se converte está morta e enterrada, e ninguém nemmesmo menciona seu nome. Nós jamais zemos nenhuma menção ao assuntoquandoviemosparacá.EninguémfaloudeRosaconosco.Eeudiriaqueagoraesseéosegredomaisbemguardadoemtodoogueto.

Ela continuou falando como se necessitasse encontrar um bom-senso em tudoaquilo.

–Deacordocomalei,Rosapoderiaterperdidotodasassuasposses,herdadasdoprimeiropadrasto,simplesmenteporhaverseconvertido.Não,háalgunsaquiquesabem,massabememsilêncio,enossomédicoenossosanciãospodemcuidarparaquepermaneçamcalados.

–Equantoaseupai?Vocêescreveucontando-lhequeLeaestámorta?–Não,emesmoqueotivessefeitoeleteriaqueimadoacartasemtê-laaberto.

Elemeprometeuquefariaissosealgumavezeuescrevesseparaele.“EquantoaMeir,emseupesareemsuatristeza,eleculpaasimesmoporLeater

cado doente porque nos trouxe para cá. Ele imagina que, protegida e segura emOxford,talvezelajamaistivesse cadodoente.Elenãoescreveuameupai.Masissonão signi ca que meu pai não saiba. Ele tem muitos amigos aqui para não carsabendo.”

Elacomeçouachorarnovamente.–EleveráissocomoumcastigodeDeus–sussurrouelaemmeioàslágrimas–,

dissoeutenhocerteza.

–Oquevocêquerque eu faça?–perguntei.Eunão tinhanenhumacerteza seestaríamos de acordo, mas ela era obviamente inteligente e estava pensando, e jáestavaficandotarde.

–VáseencontrarcomGodwin–disseela,eseurosto coumaissuavequandopronunciouonomedele.–Encontre-secomeleepeçaquevenhaaquiacalmarseuscompanheirosdominicanos.Peçaqueeleinsistaemafirmarnossainocência.Godwinéimensamenteadmiradonaordem.EleestudoucomomaseAlbertantesdeelessaíremparacomeçarsuaspregaçõesesuasaulasnaItália.CertamenteosescritosdeGodwinsobreMaimônideseAristótelessãoconhecidosinclusiveaqui.Godwinviráporminhacausa,euseiquevirá,eporque...porqueLeaerafilhadele.

Novamentesuaslágrimascomeçaramaescorrer.Elapareciafrágilaliempéàluzdocandelabro,comascostasvoltadasparaafriajanela,eeumalconseguiasuportaraquelavisão.

Por um momento eu pensei ter ouvido vozes a distância e algum outro somerrante no vento.Mas, como ela pareceunão ter ouvido, eu não disse nada sobreisso.Euqueriamuitoabraçá-lacomoaumairmã,seaomenoseupudesse.

–TalvezGodwinpossarevelartodaaverdadeeencerraroassunto–disseela–,efazercomqueosFreisNegroscompreendamquenósnãomatamosnossafilha.Eleétestemunhademeucaráteredeminhaalma.

Issoobviamentedeu-lheesperança.Etambémamim.–Oh,seriaalgomaravilhosonoslivrarmosdessaterrívelmentira–disseela.–E

enquanto estamos aqui conversando, você e eu, Meir está escrevendo cartas paraobter a soma de dinheiro a ser doada.Dívidas serão remitidas. Ah, eu encararia aprópriaruína,aperdadetodasasminhaspropriedades,seMeireeupudéssemosaomenos escapar desse lugar horrível. Se ao menos eu soubesse que não havia feitonenhummalaosjudeusdeNorwichque,emoutrosmomentos,sofreramtanto.

–Essaseriaamelhorsolução–eudisse–porqueumaimposturatrariaconsigoriscosabomináveis.Atémesmoseusamigosjudeuspoderiamdizeroufazeralgoparadesfazerahistória.Mas,eseacidadenãoaceitaraverdademesmoelasendoditaporGodwin?Serátardedemaisparainsistirnamentiraanterior.Aoportunidadeparaseutilizardaimposturaestariaperdida.

Novamenteeuouviaquelesruídosnanoite.Sonssuavesesemforma,eoutrosmaispenetrantes.Masanevequecaíapareciaabafartudo.

–IrmãoToby–disseela–,váaPariseexponhatodoocasodiantedeGodwin.Paraele,vocêpodecontartudo.EdeixequeGodwindecida.

–Sim,eufareiisso,Fluria–eudisse,masnovamenteouviaquelesruídoseoquepareciaseroclangordistantedeumsino.

Fizumgestoparaqueelapermitissequeeumeaproximasseda janela.Eladeuumpassoparaolado.

–Issoéoaviso–disseela,aterrorizada.–Talveznão–eudisse.Derepenteoutrosinocomeçouasoar.–Seráqueestãoqueimandoogueto?–disseela,suavozmorrendonagarganta.Antesqueeupudesselheresponder,aportademadeiradacâmarafoiabertaeo

xerifeapareceu,completamentearmado,seuscabelosmolhadosdeneve.Eledeuumpassoparaoladoparadarpassagemadoisgarotosserviçaisquetraziamdiversosbaúsparadentrodoquarto.Emseguida,entrouMeir.

Seusolhosfixaram-sesobreFluria,eelejogouparatrásocapuzcobertodeneve.Fluriacaiuemseusbraçosabertos.Oxerifeestavadepéssimohumor,oqueeraesperado.–IrmãoToby–disseele–,seuconselhoaos éisparaquerezassemaoPequeno

SantoWilliamproduziuumresultadoimpressionante.AmultidãoinvadiuacasadeMeir e Fluria em busca de relíquias de Lea e roubou todas as roupas damenina.Fluria, minha querida, talvez tenha sido bastante sábio de sua parte empacotar etrazerparacáconsigotodosaquelesvestidos.–Elesuspirounovamenteeolhouaoredor como se quisesse encontrar algum ponto onde pudesse dar um soco. –Milagresjáestãosendoatribuídosàsua lha.AculpadeLadyMargaretaconduziunumapequenacruzadaparticular.

–Porquenãoconseguipreverisso?!–eudisse,pesaroso.–Eusótiveaintençãodetirá-losdelá.

MeirabraçouFluriaaindacommaisforça,comosepudesseprotegê-ladetodasaquelaspalavras.Orostodohomemeraumvívidoretratoderesignação.

Oxerife esperouospequenos serviçais saíreme aporta se fecharpara sedirigirdiretamenteaocasal.

–Oguetoestásobpesadavigilânciaeospequenosfocosdeincêndioiniciadosjáforamdebelados–disseele.–DevemosagradeceraDeussuascasasseremdepedra.E devemos agradecer aDeus as cartas deMeir requisitando doações já terem sidoenviadas.EdevemosagradeceraDeusosanciãosteremdadoumaboasomadebarrasdeouroparaosfreiseparaopriorado.

Ele parou e suspirou. Lançouparamimumolhar de total desamparo por uminstanteeentãovoltouaatençãoparaeles.

– Mas vou dizer a vocês agora mesmo – disse ele – que nada impedirá ummassacre aqui, a não ser que sua lha retorne e ponha um m a essa azáfamaensandecidaparatransformá-lanumasanta.

–Bom, issoéoqueserá feito–eudisse,antesquequalquerumdelespudessefalar.–EstoupartindoparaParisagora.ImaginoqueencontrareioirmãoGodwin,seuadvogado,naCasadosCapítulosdosdominicanospertodauniversidade,estoucerto?Começareiminhaviagemhojeànoite.

Oxerifedemonstroudúvida.EleolhouparaFluria.–Suafilhapodevoltarparacá?– Pode – respondi. – E certamente o irmãoGodwin, valoroso advogado, virá

comela.Vocêprecisaaguentaratéqueelavolte.MeireFluria carammudos.Olharamparamimcomoseestivessemsesentindo

completamentedependentesdemim.–Eatéqueelavolte–eudisse–,vocêpermitiráqueosanciãosvenhamaquipara

ocasteloconsultar-secomMeireFluria?– Isaac, lho de Solomon, o médico, já está abrigado aqui por questões de

segurança–disseoxerife.–Eoutrosserãotrazidossenecessáriofor.–Elepassouamãoenluvadapeloscabelosbrancoseúmidos.–FluriaeMeir, sea lhadevocêsnãopodesertrazidadevolta,eupeçoquevocêsmedigamagora.

–Elavirá–eudisse.–Vocêtemaminhapalavradehonraquantoaisso.Evocêsdois,rezemparaqueeurealizeaviagememsegurança.Ireiomaisrápidoquemeucorpopermitir.

Fuiatéocasalecoloqueiasmãosemseusombros.–ConfiemnosCéus,econfiememGodwin.Euestareicomeleassimquepuder.

Q

CAPÍTULOTREZEPARIS

UANDOALCANÇAMOSPARIS,EUJÁTINHAEXPERIMENTADOsensaçõesacerca do que era viajar no século XIII su cientes para durar facilmentequatro vidas, e, embora tivesse cado repetidamente deslumbrado por

milhares de visões incomuns – do atordoante amontoadode casas demadeira emLondres ao espetáculo dos castelos normandos nos mais diversos cumes demontanhas, passando pela neve que não parava de cair sobre todas as cidades evilarejospelosquaispassei –,nossa intenção eraunicamente alcançarGodwinparaexpormosocasodiantedele.

Eu digo “nós” porque Malchiah cava visível para mim aqui e ali, durante aviagem,e inclusivemeacompanhoudurantepartedo trajetoque znumacarroçaemdireçãoàcapital,masnãomedavaconselhoalgum,excetolembrar-medequeasvidasdeFluriaeMeirdependiamdoqueeuviesseafazer.

Quandoeleapareceu,trajavaohábitodeumcompanheirodominicanoe,semprequepareciaquemeutransportehaviafatalmenteenguiçado,elesemanifestavaparamelembrarqueeutinhaouronosbolsos;queeueraforteecapazdefazeroqueeraesperadodemim,eentãoumcarrinhodemãoaparecia,ouentãoumacarroçacomumgentilcondutordispostoanosdarcaronajuntocomocarregamentooucomalenhaoucomoquequerqueeletransportasse,eemmuitosediversosveículoseudormi.

AtravessiadoCanaldaManchafoiumapartedaviagemdemuitaagonia,poisatemperatura me deixava completamente enjoado a bordo do pequeno barco. Emdeterminadosmomentos, pensei que nós todos nos afogaríamos, tão tempestuosoestavaooceanoinvernal,eeupergunteiaMalchiahmaisdeumavez,eemvão,senocernedaquelecompromissohaviaapossibilidadedeeuviramorrer.

Euqueriaconversarcomeleacercadetudooqueestavaacontecendo,maselenãopermitia, lembrando-me de que não estava visível a outras pessoas e todos mejulgariamlunáticoaover-mefalandosozinho.Quantoafalarcomeleusandoapenas

amente,eleinsistiaqueaoperaçãocontinhaumagrandedosedeimprecisão.Considerei aquilo um subterfúgio. Eu sabia que ele queria que eu completasse

essamissãoporcontaprópria.Por m, nós atravessamos os portões de Paris sem nenhum contratempo e,

lembrando-me de que eu encontraria Godwin na área da universidade, Malchiahdeixou-me com o rígido lembrete de que eu não estava ali para admirarindolentemente a grande catedral deNotreDame ou para vagar pelos recintos dopaláciodoLouvre,massimparaencontrarGodwinsemdemora.

Estava tão brutalmente frio em Paris como estivera na Inglaterra, mas aaglomeraçãodaintensamultidãodesereshumanos,alinacapital,proporcionavaumleve calor.Também havia pequenas fogueiras queimando em todas as partes, emtornodasquais as pessoas se aqueciam, emuitasdelas faziamcomentários sobre ahorrendatemperaturaesobrecomotalacontecimentoerapoucocomum.

EusabiaapartirdeminhasleiturasdopassadoqueaEuropanaquelaépocaestavaentrando num período caracterizado por um frio espetacular que duraria aindaséculos,emaisumavez queigratopelofatodeosdominicanosterempermissãodeusarmeiasdelãesapatosdecouro.

Independente do queMalchiah haviame dito, fui diretamente para a Place deGreve, e lá quei parado por um longo momento diante da recentementecompletada fachada deNotreDame. Fiquei assombrado, como sempre cara emminha própria época, pela pura magnitude e magni cência da construção, e nãoconseguisuperarofatodequeelaestavabemalidiantedemim,apenascomeçandosua aventura no tempo como uma das mais extraordinárias catedrais que olhoshumanosjamaispoderiamadmirar.

Aindahaviaandaimesetrabalhadoresaoredordeumcantodistantedaedificação,masaconstruçãoestavapraticamentefinalizada.

Entreieencontreiolocalabarrotadodepessoasnassombras,algumasajoelhadas,outrasvagandodesantuárioasantuário,emeajoelheisobreaspedrasnuas,pertodeumascolunasgigantescas,erezeiporcoragemeporforça.Tive,noentanto,amaisestranha das sensações ao fazer isso: a de que eu estava, de algum modo, mesobrepondoàmentedeMalchiah.

Lembrei a mim mesmo que aquilo não passava de tolice, que nós estávamosambos trabalhandoparaomesmoSenhor eMestre, e surgiunovamente emmeuslábios a prece que viera antes,muito antes: “Querido Senhor, perdoe-me pormehaverseparadodeti.”

Limpeiminhamentedequaisquerpalavras,ouvindoapenasaorientaçãodeDeus.O fato de eu estar ajoelhado naquele magní co e imponente monumento à fé,durante a própria época em que ele havia sido construído, embalou-me numagratidãosempalavras.Masacimadetudoeu zoqueaquelaimensacatedralqueriaqueeufizesse:coloquei-meabertoàvozdoCriadoreabaixeiacabeça.

Fiquei subitamente consciente de que, embora estivesse abominando apossibilidadedefracassarnoquetinhadefazereestivessesofrendoporFluriaeMeire por todo o gueto deNorwich, eu estavame sentindomais feliz do que jamaisestivera antes. Eu tive uma sensação tão nítida de haver recebido uma dádivaincomensurávelnessamissãoque jamaispoderiaagradecero su cienteaDeuspeloqueestavameacontecendo;peloqueforadepositadoemminhasmãos.

Issonãoengendrouorgulhoemmim.Fiquei,issosim,maravilhado.E,enquantoponderava,sentiqueestavaconversandocomDeussempalavras.

Quantomaistempoeupermanecialá,maisprofunda cavaapercepçãodequeeuagoraestavavivendodeumamaneiraquejamaisviveraemmeuprópriotempo.Euvirara tãoabsolutamenteas costasparaavidaemmeupróprio tempoquenãoconhecia uma única pessoa como conhecia Meir e Fluria, e não tinha devoção aninguémcomoagoranutriaumadevoçãoprofundaporFluria.Ealoucuradisso,odesespero deliberado e o vazio ressentido deminha própria vida, atingiu-me comforçatotal.

Olhei através da penumbra nebulosa para o coro distante da grande catedral erezei por perdão.Que instrumento desgraçado era eu.Mas seminha impiedade eminha astúcia podiam ser eclipsadas agora nessa missão, se meus instrumentos etalentos cruéis podiam ser úteis aqui, eu só podia car maravilhado diante damajestadedeDeus.

Umpensamentomaisprofundo começou a se fazerpresente emmim,mas eunão consegui exatamente entender o que era. Tinha alguma coisa a ver com atessituradobemedomal,comamaneirapelaqualoSenhorextrairiaalgogloriosoapartirdosaparentesdesastresdos sereshumanos.Masopensamentoera complexodemais para mim. Senti que não era minha função entender completamente essaquestão–apenasDeussabiacomoastrevasealuzsemisturavamouseseparavam–eeupudeapenasdarvozàminhacontriçãomaisumavezerezarporcoragem,rezarpor sucesso. Na verdade, senti um perigo em ponderar por que Deus permitia aexistência do mal, e como Ele podia usá-lo. Em minha concepção, somente Eleentendiaisso,ejamaisseriadanossaalçadajusti caromaloufazê-loporcontade

algumanoçãodesvirtuadadomalexistenteemtodaequalquerépocahistórica;porconta de seu papel ubíquo. Eu estava contente em não entender o mistério dostrabalhosdomundo.Esenti,desúbito,algosurpreendente:qualquercoisademalqueporventuraestivesseacontecendonãotinhanadaavercomaimensabondadedeFluriaeMeirqueeuexperimentaraemprimeiramão.Finalmente, zumapequenaoração à Mãe de Deus para que intercedesse por mim, e então me levantei. E,caminhandoomaisdevagarpossívelparasaborearadoceescuridãodasvelas,saíparaenfrentaraluzdoinverno.

Nãohásentidoemdescreveremdetalhesa imundíciedasruasdeParis,comaspoçasnassarjetascentraisouadesordemdasmuitascasasdetrêsequatropavimentosouo fedordosmortosoriundodogigantescocemitérioLes Innocents,noqual aspessoas realizavam toda espécie de transação comercial embaixo de neve, bem emmeio aosmuitos túmulos.Nãohá sentido em tentar captar a sensaçãode se estarnuma cidade na qual as pessoas – aleijadas, corcundas, anãs ou altas emagricelas,avançando em muletas, carregando enormes fardos sobre seus ombros caídos, oucorrendo empertigadas e resolutas – iam para todos os lados ao mesmo tempo,algumas vendendo, outras comprando, algumas carregando coisas, outras emdisparada,algumasricas sendo levadasem liteirasoumarchandocorajosamenteemmeio à lama que salpicava em suas botas enfeitadas, e a maioria trajando gibõessimplescomtúnicasmunidasdecapuz;umpopulachoenvoltoatéosdentesemlãouveludooupeledasmaisdiversasqualidades,parasedefenderdofrio.

Fui inúmeras vezes cercado por mendigos implorando por ajuda e, de meusbolsos, eu tiravamoedase as colocavaemsuasmãos, assentindocomacabeçaemresposta à gratidão devota que eles demonstravam. Ao que parecia, meus bolsoscontinhamuminterminávelestoquedeprataeouro.

Milharesdevezes fui seduzidopeloquevia,maseraobrigadoameconter.Eunão estava lá, comodisseraMalchiah, para procurar o palácio real, não, não, não,nemparaassistiraostitereirosmontandobravamentesuaspequenasapresentaçõesnaspequenasencruzilhadas,ouparameembevecerpelamaneiracomoavidaseguiaseurumonamaisamargadastemperaturas,comasportasdastabernasabertas,oupelamaneira com que a vida era vivida naquela época das mais remotas, ainda quefamiliar.

Leveimenosdeumahoraparapassarpelamultidãonasruasventosasechegaràáreadosestudantes,ondefiqueisubitamentecercadodehomensegarotosdetodasasidadesvestidoscomoclérigos,trajandobatasebatinas.

Quasetodomundousavaumcapuz–devidoaoinvernoabismal–eumaespéciedemantopesado,epodia-sedistinguirosricosdospobresapartirdaquantidadedepelesvisíveisemsuasvestesepelasbotasenfeitadas.

Homensegarotos iamevinhamdemuitaspequenas igrejaseclaustros,as ruaseram torturantemente estreitas e sinuosas, e lanternas cavam penduradas paracombaterasinistrapenumbra.

Noentanto, fui facilmentedirecionadoaoprioradodosdominicanos, com suapequena igreja e portões abertos, e encontrei Godwin, a quem os estudantesrapidamenteme indicaramcomoum irmãoalto e encapuzado, comvívidosolhosazuis e pele clara, em cima de uma bancada, obviamente dando uma palestra naprópriaquadraabertadoclaustroparaumaimensaeatentamultidão.

Elefalavacomumaenergiaque uíasemesforço,num uidoebelolatim,eeraumpurodeleiteouviralguémfalando–eosestudantesreplicandoequestionando–naquelalínguacomtantadesenvoltura.

Aneveestavaagoramaisbranda.Fogoshaviamsidoacesosaquiealiparaaqueceros estudantes, mas o frio era inclemente e eu logo descobri, a partir de algumasobservações sussurradas em meu ouvido por aqueles que estavam sentados nasmargens,queGodwinera tãopopularagora–naausênciadeTomáseAlbertquehaviam ido dar aulas na Itália – que seus alunos simplesmente não podiam sercontidosnosespaçosinternos.

Godwingesticulavacomardorenquantosedirigiaaessemarde gurasansiosas,algumas das quais sentadas em bancadas, escrevendo freneticamente enquanto elefalava,eoutrassentadasemalmofadasdecourooudelã,oumesmoemcimadofriochãodepedra.

O fato deGodwin ser umhomem impressionante nãome surpreendeu, aindaqueeunãopudesse evitaro espantodiantedapercepçãodoquãoverdadeiramenteimpressionanteeledefatoera.

Suaestaturaemsijáeraarrebatadora,maselepossuíaaexataradiânciaqueFluriatentara tão expressivamente descrever. Suas bochechas estavam rosadas devido aoinverno, e seusolhos incendiadosdeumapaixãoprofundapelos conceitos e ideiasque exprimia. Parecia totalmente imbuído do que estava dizendo, do que estavafazendo.Umagargalhadaafávelpontuavasuassentenças,eeleolhavagraciosamentepara a esquerda e para a direita com o objetivo de incluir todos os ouvintes nasobservaçõesquefazia.

Suasmãospareciamestarenvoltasemtrapos,comexceçãodapontadosdedos.

Quanto aos estudantes, quase todos usavam luvas. Minhas mãos estavamcongelando,mastambémeuusavaluvasdelã,easusavadesdequesaíradeNorwich.AcheitristeGodwinnãopossuirluvastãoboas.

Ele fazia comque seus alunos rissem ruidosamentepor contade alguma tiradasábia quando encontrei um lugar embaixo das arcadas do claustro, onde queiencostadoemumpilardepedra,eentãoeleperguntouaelesseconseguiamlembrardeumacitaçãobemcrucialdeSantoAgostinho,aquemuitosgritaramprontamenteem resposta e, depois disso, pareceu que ele estava a ponto de lançar um outroassuntonoar,masnossosolhosseencontrarameeleparounomeiodasentença.

Eu não tinha como dizer se alguém sabia o motivo pelo qual ele haviainterrompido a palestra. Mas eu sabia. Uma espécie de comunicação silenciosatranscorreuentrenós,eeucometiaousadiadebalançaracabeçaemanuência.

Então,comalgumaspalavrasabsortas,eledispensoutodaaclasse.Eleteriasidocercadoparasempreportodosaquelesquefaziamperguntas,exceto

pelo fato de que disse a eles comuma paciência e uma delicadeza cuidadosas quetinhaimportantesassuntosatrataragora,eque,alémdisso,estavacongelado.Entãoeleveioaomeuencontro,pegou-mepelamãoepuxou-meatravésdolongoclaustrodetetobaixo.Passamospormuitasarcadasemuitasportasinterioresatéalcançarmossuacelapessoal.

Oquarto,graçasaDeus,eraespaçosoecálido.Nãoeramais luxuosodoqueacela de Junípero Serra namissão de Carmel do início do século XXI,mas estavaamontoadodecoisasmaravilhosas.

Blocos de carvão empilhados generosamente num braseiro proporcionavam adeliciosa sensação de calor, e rapidamente ele acendeu diversas velas grossas,colocando-as em cima de sua escrivaninha e do atril, ambos os objetos muitopróximosàsuaestreitacama,eentãoelefezumgestoparaqueeumesentasseemumdosváriosbanquinhosàdireitadoquarto.

Percebiqueelefrequentementedavapalestrasali,ouo zeraantesqueademandaporsuaspalavrastivesseatingidotamanhaimportância.

Umcruci xoestavapenduradonaparede,eeutiveaimpressãodeterespionadodiversosquadrospequenosdedevoção,masnassombrasnãoconseguidistinguirdoquesetratavam.Haviaumcolchãomuitoduroe noabaixodocruci xoeoqueera, obviamente, o retrato da Virgem Maria, e eu supus que fosse ali que ele seajoelhavaquandorezava.

–Oh,queiraperdoar-me–disseeledaformamaisgenerosaeafávelquealguém

pode ter. – Venha aquecer-se ao fogo. Você está branco de frio e sua cabeça estámolhada.

Rapidamente, ele removeu meu capuz salpicado de neve e meu manto, e emseguidaodelepróprio.Pendurou-osnaparede,ondeeusabiaqueocalordobraseirologoossecaria.

Então pegou uma pequena toalha e enxugouminha cabeça emeu rosto, e emseguidaasipróprio.

Só então ele desenrolou os trapos de suamão e esticou os dedos por sobre asbrasas.Percebipelaprimeiravezquesuabatinaeseuescapuláriobrancoseram noseremendados.Eletinhaumaestruturaesguia,easimplicidadedeseuaneldecabeloscortadosbemcurtostornavaseurostomuitomaisvitalearrebatador.

–Comovocêmeconhece?–perguntei.–PorqueFluriameescreveudizendoqueeuoreconheceriaassimqueovisse.A

cartaoprecedeuemapenasdoisdias.Umdoseruditosjudeusqueensinamhebraicoaqui a trouxe para mim. E desde então estou preocupado, não com o que elaescreveu,mascomoquedeixoudeescrever.Etambémexisteumaoutraquestão,eelamepediuparaabrirtotalmentemeucoraçãoavocê.

Eledisseissocomumaprontacon ança,enovamentepercebiseuportegraciosoe suagenerosidadequandoele trouxeumdosbanquinhospequenosparapertodobraseiroesesentou.

Havia rmezaesimplicidadeemseusmenoresgestos,comosehámuitotempoelenãonecessitassemaisquequalquerartifícioinfluenciasseoqueeleviesseafazer.

Eleen ouamãoemumdosbolsosvolumososeocultosabaixodoescapuláriobrancoepuxouacarta,umafolhadobradadeumpergaminhorígido,eacolocouemminhamão.

Acartaestavaemhebraico,mas,comoMalchiahhaviameprometido,fuicapazdelê-lasemdificuldade:

Minha vida está nasmãos desse homem, irmãoToby.Receba-o de braçosabertosecontetudoaele,eelecontarátudoavocê,jáquenãohánadaqueelenãosaibasobreminhascircunstânciaspassadasepresentes,enãomaisdoqueissoousareiaquiescrever.

Fluria assinara de próprio punho apenas com a primeira letra de seu primeironome.

PercebiqueninguémconheceriamelhoraquelacaligrafiadoqueGodwin.

– Eu sei que há algo errado há muito tempo – disse ele, a testa vincada depreocupação.–Vocêestáaparde tudo,eu seiqueestá.Entãodeixe-me lhedizer,antesdeatacá-locomperguntas,queminha lhaRosaesteveseriamentedoenteporalgunsdias,insistindoquesuairmãLeaestavasofrendodoresterríveis.

“FoiduranteosmaisbelosdiasdeNatal,quandoospréstitoseaspeçasnafrentedacatedralsãomaisadoráveisdoqueemqualqueroutraépocadoano.

“Eu pensei que talvez nossos costumes cristãos fossem novos para ela, que elaestavasimplesmenteassustada.MaselainsistiaquesuatristezaeraemfunçãodeLea.

“Essasduas,vocêsabe,sãogêmeas,eportantoRosaconseguesentirascoisasqueestãoacontecendocomLea,enãomaisdoqueduas semanasatrás, elamecontouqueLeanãoestavamaisnestemundo.

“Eutenteiconsolá-la,tenteidizeraelaquenãopoderiaserassim.EulheassegureiqueFluriaeMeirteriammeescritosealgumacoisativesseacometidoLea,masRosanãoseconvencedequeLeaestejaviva.”

–Sua lhaestácerta–eudisse,entristecido.–Esseéocernedetodoodilema.Leamorreudomaldoilíaco.Nadapôdeserfeitoparaimpediressedesfecho.Vocêsabe o que é isso, assim como eu, uma doença do estômago e dos intestinos quecausamuitador.Certamenteaspessoasquasesempremorrememdecorrênciadela.Portanto,Leamorreunosbraçosdamãe.

Elecolocouasmãosnacabeça.Porummomento,penseiquehouvessecomeçadoa soluçar.E senti umpoucodemedo.Mas elemurmurava semparar onomedeFluriae,emlatim,suplicavaaoSenhorparaqueaconsolassepelaperdadafilha.

Porfim,recostou-senacadeiraeolhouparamim.Elesussurrou:– E então aquela bela jovem que elamantinha lhe foi tomada. Eminha lha

permaneceaquiaomeulado,coradaeforte.Oh,issoéamargo,muitoamargo.–Aslágrimascontinuavamemseusolhos.

Eu podia ver a agonia estampada em seu rosto. Seu jeito cordial desapareceracompletamente diante da tristeza. E sua expressão possuía agora uma sinceridadeinfantil,visívelnolentomeneardacabeça.

–Eusintoprofundamente–sussurreienquantoeleolhavaparamim.Maselenãorespondeu.

NósmantivemosumlongosilêncioemhomenagemaLea.Eleficoucomoolhardistanteduranteumcertotempo.Eumaouduasvezesaqueceuasmãos,masentãosimplesmentedeixou-ascairsobreosjoelhos.

Então, percebi que a simpatia e a receptividade de antes estavam voltando

gradualmente.Elesussurrou:–Vocêsabequeessacriançaeraminha lha,éclaro,eujálhedisseissoantescom

minhasprópriaspalavras.–Eusei.MaséamortenaturaldacriançaemsiqueestátrazendoaruínaaFluria

eaMeiragora.– Como isso pode se dar? – perguntou. Ele parecia inocente ao me fazer a

pergunta, como se seu aprendizado lhe houvesse proporcionado uma inocência.Talvez“humildade”fosseumapalavramelhor.

Eutambémnãopodiadeixarderepararqueeleeraumhomembem-apessoado,não apenas por suas feições regulares e rosto quase resplandecente, mas por causadessahumildade edopoder silenciosoque transmitia.Umhomemhumildepodeconquistarqualquerum,eessehomemparecianãoreternadadocostumeiroorgulhomasculinoquesuprimeasemoçõeseaexpressão.

– Conte-me tudo, irmãoToby. O que está acontecendo com minha adoradaFluria?

Umfiletedelágrimasapareceuemseusolhos.–Mas,antesdecomeçar,deixe-mecontar-lhealgosemrodeios.EuamoaDeuse

amo Fluria. É assim que eu caracterizo a mim mesmo em meu coração, e Deusentende.

–Eutambémentendo–eudisse.–Estoucienteda longacorrespondênciaquevocêsmantiveram.

– Ela foi minha lanterna-guia em mais de uma ocasião – respondeu ele. – Eemboraeutenhaabertomãodetodoomundoparaingressarnosdominicanos,eunão abrimão deminha troca com Fluria porque isso nunca signi cou nada paramimalémdomaisaltobem.

Elerefletiuporummomento,eentãoacrescentou:– A piedade e a bondade de uma mulher como Fluria são coisas que não se

encontracomfrequênciaemmulheresgentias,masemtodocasoconheço-aspoucohoje emdia. Parece queuma certa gravidade é comumemmulheres judias comoFluria,eelanuncameescreveuumaúnicapalavraqueeunãopudessecompartilharcomoutros,ouquenãodevessetercompartilhadocomoutrosparabenefíciodelespróprios–atéqueessebilhetechegouemminhasmãosdoisdiasatrás.

Isso teve em mim um estranho efeito porque eu acho que eu era meioapaixonadoporFluriapelasmesmasrazões,epercebipelaprimeiravezcomoFluria

haviasecomportadotãoseriamente,eonomeparaissoé“extremaseriedade”.Mais uma vez a imagem de Fluria me remetia a alguém, alguém que eu

conhecera,maseunãoconseguiapensarquemeraessapessoa.Umpoucodetristezae temor estavam ligados a isso. Mas eu não tinha tempo para pensar na questãonaquelemomento.Pareciaumperfeitopecadopensaremminha“outravida”.

Olheiaoredordapequenacâmara.Olheiparaosmuitos livrosnasprateleirasepara as páginas de pergaminho espalhadas na escrivaninha. Olhei para o rosto deGodwin,queestavameaguardandoatentamente,eentãoconteitudoaele.

Falei por mais ou menos meia hora, explicando tudo que havia acontecido, ecomoosdominicanosdeNorwichestavamagarradosaumailusãoarespeitodeLea,ecomoMeireFlurianãopodiamcompartilharcomninguém,anãosercomseusamigosjudeus,ahorrívelverdadedaquestão:quehaviamperdidosuafilhaadorada.

– Imagine o pesar de Fluria – eu disse – quando não há tempo para o pesarporquemaquinaçõesforamfeitas.–Estendi-mesobreesseponto.–Evivemosumtempodemaquinações,assimcomonoepisódioemqueJacóenganouseupai,Isaac,emais tardequandoenganouLabãoparaaumentar seupróprio rebanho.Vivemosumtempodedissimulaçãoporqueasvidasdessaspessoasestãoemjogo.

Elesorriueassentiucomacabeça,concordandocomminhaargumentação.Nãofezqualquerobjeçãoaela.

Levantou-seecomeçouaandaremcírculosnoquartoporqueissoeratudooqueoquartopermitia.

Finalmente, ele se sentou na escrivaninha e, distraído de minha presença,começouimediatamenteaescreverumacarta.

Fiqueisentadoporumbomtempoapenasobservando-oescrever,secareescreverumpoucomais.Por m,eleassinouacarta,secou-apelaúltimavezeentãodobrouopergaminho,selou-ocomceraelevantouosolhosparamim.

– Isso irá agoraparameus companheirosdominicanosdeNorwich,parao freiAntoine, que conheço pessoalmente, e contém uma forte advertência minha nosentidodequeelesestãonatrilhaerrada.EuasseveroainocênciadeFluriaeMeir,eaqui reconheço francamentequeEli, pai deFluria, foimeuprofessor emOxford.Achoqueissoajudaráumpouco,masnãoosu ciente.EunãopossoescreverparaLadyMargaretdeNorwiche,seo zesse,ela jogariaacartaàschamassemdúvidaalguma.

–Háumperigonessacarta–eudisse.–Comoassim?

–VocêadmiteumtalconhecimentodeFluriaquepodechegaraosouvidosdeoutrosdominicanos.QuandovocêvisitavaopaideFluriaemOxford,quandovocêsaíacomsuaprópriafilha,seusamigosfreisemOxfordnãosabiamdessascoisas?

–Oh, Senhor, ajude-me – suspirou ele. –Meu irmão e eu zemos tudo paramanterahistóriaemsegredo.Apenasmeuconfessor sabequeeu tenhouma lha.Masvocêtemrazão.OsdominicanosdeOxforderambastantefamiliarizadoscomEli,oMestredasinagoga,eporvezesprofessordeles.EelessabemqueFluriatinhaduasfilhas.

–Exato–eudisse.–Sevocêescreverumacartachamandoaatençãodomundoparasuarelação,entãoumaimposturaquetalvezsalvasseFluriaeMeirnãopoderásertentadaemhipótesealguma.

Elejogouacartanobraseiroeobservou-aqueimar.–Eunãoseicomoresolverisso–disseele.–Eununcaencareialgotãosombrioe

aterrador em toda a minha vida. Ousaríamos tentar uma impostura quando osdominicanosdeOxfordpoderiammuitobemcontarparaosdeNorwichqueRosaestásefingindodeLea?Nãopossopermitirqueminhafilhacorraesserisco.Não,elanãopodefazeressaviagem.

“Muitas pessoas sabem coisas demais.Mas alguma coisa precisa acontecer paraimpediresseescândalo.Vocêcometeriaaousadiadeiratéládefenderocasaldiantedobispoedoxerife?

EuexpliqueiaelequeoxerifejásuspeitavaqueLeaestivesse,naverdade,morta.–Oquedevemosfazer?–Tentar a impostura,mas fazê-la commais astúcia e commaismentiras– eu

disse.–Essaéaúnicamaneiraqueeuvejo.–Explique–disseele.– Se Rosa estiver disposta a se fazer passar pela irmã, nós a levaremos para

Norwichagora.ElainsistiráqueéLeaequeestevecomRosa,suairmãgêmea,emParis, e ela pode demonstrar grande indignação com o fato de seus adorados paisterem sido tão vilipendiados.E ela pode expressar uma vontade extremade voltarimediatamenteparaoconvíviodesuairmãgêmea.Aoadmitiraexistênciadaoutrairmã,convertidaàigreja,fornecemosummotivoparaasúbitaviagemdelaaParisnomeio do inverno. Foi para estar com a irmã, de quem ela cara separada por umcurtoperíododetempoapenas.Quantoavocêseropai,porquealgumamençãoaissodeveriaserfeita?

–Vocêsabeoquedizemas fofocas?–disseelesubitamente.–QueRosaé,na

verdade,a lhaadoradademeuirmãoNigel.PorqueNigelestevecomigoemtodososmomentosdaviagem.Comoeulhedisse,somentemeuconfessorsabeaverdade.

–Tantomelhor.Escrevaparaseuirmãoagoramesmo,setemcoragem,econte-lhe o que aconteceu, e que ele deve seguir para Norwich imediatamente. Essehomemoama,Fluriamecontou.

– Oh, certamente, e sempre amou, independente do que meu pai tentouconvencê-loapensaroufazer.

–Bem,então,deixe-oir,equeelejurequeasgêmeasestãojuntasemParis,enósviajaremospara lá omais rápidoquepudermos comRosa, que então a rmará serLea, indignada e desolada pelo estado em que se encontram seus pais, e ela estaráansiosapararetornarimediatamenteaPariscomseutioGodwin.

–Ah,estouvendoasabedoriaemtudoisso–disseele.–Issosigni carádesgraçaparaFluria.

–Nigelnãoprecisadizercomtodasasletrasqueéopai.Deixequeelespensem,mas ele não precisa dizer. Asmeninas têm um pai legítimo.Nigel precisa apenasdemonstrar o interesse de um amigo para com uma criança que se converteu aocristianismo,assimcomoelefoiumguardiãoparaairmãdelaantesdela,airmãqueesperaemParisavoltadeLea,anovaconvertida.

Eleestavaprofundamenteabsorvidopeloqueeuestavadizendo.Eusabiaqueeleestava pensando nos muitos aspectos. As meninas, na condição de convertidas,poderiam correr o risco de serem excomungadas e, portanto, despojadas de suasfortunas. Fluria falara a respeito disso. Mas eu ainda conseguia ver uma Rosaapaixonada, ngindo-sedeumaindignadaLeaerepelindoasforçasqueameaçavamo gueto, e certamente ninguém emNorwich teria a ousadia de exigir que a outragêmeatambémaparecesse.

–Vocênãovê?–eudisse.–Éumahistóriaqueseamoldaatudo.–Sim,bastanteelegante–respondeuele,mascontinuavapensando.– IssoexplicaporqueLea foi embora.A in uênciadeLadyMargaret fez com

queelaaceitasseafécristã.Eassimeladesejouestarcomsuairmãcristã.OSenhorsabe que todos na Inglaterra e na França querem converter a tribo dos judeus aocristianismo. E émuito simples explicar queMeir e Fluriamantiveram todo essemistérioporqueparaeles isso representaumadupladesgraça.Quantoavocêe seuirmão,vocêssãoospatronosdasgêmeasrecém-convertidas.Emminhacabeçaétudomuitosimpleseóbvio.

–Estouentendendotudo–disseelelentamente.

–Você acredita queRosa consegue se passar por sua irmã Lea? – perguntei. –Acredita que ela possa fazer algo assim? Seu irmão dará uma ajuda? Em relação àdisposiçãodeRosaparatentarisso,vocêfazalgumaideiadessapossibilidade?

Ele pensou nisso por um longo momento, e então disse simplesmente quetínhamos que ver Rosa naquela noite mesmo, embora já fosse tarde e estivesseobviamenteescurecendo.

Quandoolheipelapequenajaneladacela,viapenasescuridão,mastalveztenhasidoaquantidadedenevequecaía.

Novamente,elesesentouepôs-seaescreverumacarta.Ealiaemvozaltaparamimenquantoescrevia:

“AdoradoNigel,necessitomuitodesuaajuda,poisFluriaeMeir,meusadoradosamigos, e os amigos de minhas lhas, estão em grande perigo devido a recentesacontecimentosqueeunãopossoexplicaraqui,masqueconfessareiavocêassimquenosencontrarmos.PeçoquevocêváimediatamenteparaacidadedeNorwich,paraondeestoumedirigindoagoramesmo,eláesperepormim.Aochegarláapresente-seaosenhorxerife,quemantémnatorredocasteloalgunsjudeusparaproteçãodelespróprioseexponhaaelequevocêestábemfamiliarizadocomosreferidosjudeusequeéoguardiãodeduas lhasdeles–LeaeRosa–quetornaram-secristãseagoraresidem em Paris sob a orientação do irmãoGodwin, padrinho delas e devotadoamigo.Por favor, compreendaqueoshabitantesdeNorwichnão estão cientesdequeMeireFluriapossuíamduas lhaseestãoassazperplexoscomosmotivospelosquaisaúnicacriançaqueeradoconhecimentodelessaiudacidade.

“Insistacomosenhorxerifeparaqueelemantenhaessaquestãoemsegredoatéqueeupossameencontrarcomvocêeexplicarmaisdetalhadamenteasrazõespelasquaisessasaçõesdevemsertomadasagora.”

–Esplêndido–eudisse.–Vocêachaqueseuirmãofaráisso?–Meuirmãofaráqualquercoisaparamim–disseele.–Eleéumhomemgentil

eamoroso.Eudiriamaissetivessecertezadequetalcartanãocorresseoriscodecairemmãoserradas.

Maisumavezelesecouasmuitassentençasqueescrevera,esuaassinatura,dobrouacarta,selou-acomceraeemseguidaselevantou,pediuqueeuesperasseesaiudorecinto.

Eleficouforaporalgumtempo.Enquantoolhavaopequenoquarto,comaquelecheirodetintaedepapelvelho,

comaquelecheirodelivrosencadernadosemcouroedebrasasardentes,fuitomado

pelasensaçãodequepoderiapassaralegrementeavidainteiraali,eque,naverdade,eu estava agora vivendo uma vida tão superior a qualquer coisa que jamaisexperimentaraantesquequasesentiavontadedechorar.

Masaquelenãoeraomomentodepensaremmimmesmo.Quandoelevoltouestavasemfôlegoe,decertaforma,aliviado.–Acartasairáamanhãdemanhãefarámuitomaisprogressodoquenósemseu

caminhoparaaInglaterra,jáqueaenvieisoboscuidadosdobisporesponsávelporSt.Aldateepelaherdadedemeuirmão,eeleentregaráacartanasmãosdeNigel.

Eleolhouparamimemaisumavezlágrimassurgiramemseusolhos.–Eunãoteriafeitoissosozinho–disseele,agradecido.Elepegouomantonaparede,etambémomeu,enósnosvestimosparaaneve

quenosesperavanoexterior.Começouaenrolarnovamenteasmãosnostraposquedeixaraaolado,masen eiamãonobolsosussurrandoumapreceeretireidoisparesdeluvas.

–Obrigado,Malchiah!Eleolhouparaasluvas,masentão,assentindocomacabeça,pegouoparquelhe

oferecerae as calçou.Percebiqueelenãoestavagostandodocourodequalidadeedosenfeitesdepele,massabiaquenóstínhamostrabalhoqueprecisavaserfeito.

– Agora vamos ver Rosa – disse ele –, contar para ela o que ela já sabe, eperguntar-lheoqueeladesejafazer.Seelaserecusararealizaratarefa,ousentirquenãotemcondiçõesderealizá-la,nósiremosnósmesmostestemunharemNorwich.

Elefezumapausa.Esussurrou:–Testemunhar. – Percebi que ele agora estava perturbado pela quantidade de

mentirasenvolvidasemtudoaquilo.–Nãosepreocupe–eudisse.–Haveráumbanhodesanguesenão zermosisso.

Essaboagente,quenãofeznadadeerrado,morrerá.Eleassentiucomacabeçaenósfomosparaarua.Ummeninoquemaispareciaumapilhadelã,segurandoumalanterna,estavaà

nossa espera lá fora, eGodwin disse que nós iríamos para o convento ondeRosamorava.

Logoestávamosàspressaspelasruasescuras,passandoeventualmentepelaportadeumabarulhentataberna,masemgeraltateandonossocaminhoatrásdomeninoqueseguravaalanterna.Umafortenevascacomeçouacair.

O

CAPÍTULOCATORZEROSA

CONVENTO DE NOSSA SENHORA DOS ANJOS era amplo e sólido, eprofusamente equipado.A imensa sala na qual saudamosRosapossuía omobiliáriomaisbeloecaroqueeujamaisviraemqualqueroutrolugar.As

brasasnalareiraforamimediatamenterealimentadaseatiçadasparanós,eduasjovensfreiras,compesadascapasdelãelinho,depositarampãoevinhoemcimadalongamesa.Havianumerosasbanquetastufadaseasmaisespetacularestapeçariasparaondequerque eudirigissemeuolhar.Tapeçariaspodiam ser vistas tambémcobrindoolustrosopiso.

Velas queimavam em diversos castiçais, e as largas janelas de vitral capturavamesplendidamenteoreflexodasluzesemseusespessosvidros.

Aabadessa,umavistosamulherdeóbvia e tranquila autoridade, era claramentededicadaaGodwin,enosdeixouasósdeimediatoparatratarmosdoquequerquetivéssemosatratarali.

Rosa, por sua vez, vestida numa bata branca sobre uma grossa túnica tambémbranca que podiamuito bem ser sua camisola de dormir, era a imagem da mãe,excetopelosarrebatadoresolhosazuis.

Por um momento, foi um choque para mim ver o colorido da mãe com avibração do pai em seu rosto.De fato, seus olhos eram tão parecidos com os deGodwinqueaexperiênciademirá-lostransformava-senumaconstanteperturbação.

Seusfartoscabelospretoseencaracoladosestavamsoltosporcimadosombrosenascostas.

Elajáeraumamulheraoscatorzeanos,muitoobviamente,epossuíaocorpoeaposturadeumamulher.

Era absolutamente visível que todos os dotes de seus pais estavam misturadosnela.

–VocêveiomedizerqueLeaestámorta,nãoé?–disseelaimediatamenteaopai,depoisqueeleabeijounasduasfacesenatesta.

Elecomeçouachoramingar.Elessesentaramumdiantedooutroemfrenteaofogo.

Ela segurou as mãos dele e assentiu com a cabeça mais de uma vez como seestivessefalandoconsigomesmasobreoassunto.Entãofalounovamente.

–SeeutedissessequeLeasurgiudiantedemimnumsonho,euestariamentindoparavocê.Masquandoacordeihojedemanhã,eusabiacomcertezanãoapenasqueela tinha morrido como também que minha mãe precisava de mim. Agora vocêaparececomessefreieeuseiquenãoestariaaquinumahoracomoessasenãofosseparamepediralgourgente.

Godwin trouxede imediatoumabanquetaparamimemepediuparaexporoplano.

Da maneira mais sucinta possível, contei a ela o que havia acontecido, e elacomeçou a arquejar quando percebeu o perigo que rondava sua mãe e todos osjudeusdessacidadedeNorwich,ondeelajamaispuseraospés.

Ela me disse rapidamente que estivera em Londres quando muitos judeus deLincolnhaviamsidojulgadoseexecutadospeloassassinatodoPequenoSantoHugh,umcrimeapenassuposto.

–Masvocêachaqueconseguedesempenharopapeldesuairmã?–Euanseiofazê-lo–disseela.–Anseioenfrentaressaspessoasqueousamdizer

queminhamãematoua lha.Anseioexprobrá-losporessasacusaçõesbárbaras.Euposso fazê-lo. Posso insistir que sou Lea, pois emmeu coração eu sou Lea tantoquantosouRosa,eRosatantoquantosouLea.Enãoseránenhumamentiradizerque estou ansiosa para sair deNorwich e voltar de imediatopara a companhia deRosa,meupróprioeu,emParis.

–Vocênãodevecometerexageros–disseGodwin.–Lembre-se, independentedaraivaedodesprezoquesenteporessesacusadores,vocêdevefalarcomamesmasuavidadedeLea,edeveinsistirsuavemente,comoLeaofaria.

Elaanuiu.–MinharaivaeminhadeterminaçãosãoparavocêeparaoirmãoToby–disse

ela.–Tenhaconfiançaemmim.Eusabereioquedizer.–Vocêestácientedequeseissodererrado,vocêestaráemperigo–disseGodwin

– assim como nós estaremos. Que espécie de pai é esse que deixaria sua lha seaproximartantodeumafogueira?

–Umpaiquesabequeuma lhadevecumprirsuastarefasparacomsuamãe–respondeueladepronto.–Elajánãoperdeuminhairmã?Elanãoperdeuoamorde

seupai?Eunãotenhoqualquerhesitação,eachoqueafrancaadmissãodequesomosgêmeaséumagrandevantagemsemaqualaimposturacertamentenãoteriaefeito.

Elaentãonosdeixou,dizendoquesepreparariaparaaviagem.Godwin e eu fomos arrumar uma carroça para nos levar a Dieppe, de onde

seguiríamosparaaInglaterranavegandonovamentenotraiçoeiroCanaldaMancha,edessaveznumbarcoalugado.

QuandodeixamosParis,osolestavanascendoeeuestavacheiodereceios,talvezpelofatodeRosaestarcomtantaraivaetãocon ante,eGodwintãoaparentementeinocente,atémesmonamaneirapelaqualeledistribuíaprodigamenteodinheirodoirmão com cada serviçal que encontrávamos pelo caminho enquanto nospreparávamos.

Nada do mundo material possuía qualquer signi cado para Godwin. ElesuportavacomardorededicaçãointegraisqualquercoisaqueanaturezaouoSenhorouascircunstânciaslheimpusessem.Ealgumacoisamediziaqueumsaudáveldesejodesobreviveraoquesecolocavadiantedenósnaquelemomentotalvezviessealheserumpoucomaisútildoqueojeitoingênuocomoqualeleseen avadecabeçanoquequerquefossequeodestinolhehaviareservado.

Ele estava absolutamente comprometido com a mentira. Mas a coisa lhe eraestranhaaoextremo.

Ele fora elepróprio em todosos seusmomentosde libertinagem, elemedissequando sua lha estava dormindo afastada de nós, e, em sua conversão e em seucompromissoparacomDeus,elenãoforanadaalémdoqueelepróprio.

–Eunão seidissimular–disse ele–e temo fracassarao fazê-lo.–Maspensei,maisdeumavez,queelenãotemiasu cientemente.Eraquasecomoseeletivessesetornado,emsuainveteradabondade,umpoucotolo,comoestáfadadoaacontecer,acho eu, se e quando alguém se entrega inteiramente a Deus. Ele repetiaseguidamentequetinhaconfiançaqueDeusfariatudodarcerto.

É impossível relatar aqui todas as outras coisas que nós conversamos duranteaquelalongatravessia;oucomoconversamosconstantementeatémesmoquandoobarco batia nas águas turbulentas do canal e enquanto nossa carroça recentementealugada percorria seu caminho de Londres a Norwich nas estradas lamacentas ecobertasdeneve.

Acoisamais importantequeeudevo salientar équeeuvimaconhecernão sóRosa como também Godwin melhor ainda do que conhecera Fluria e, apesar datentaçãodeimportunarGodwincomquestõesreferentesaSantoTomásdeAquino

e Albertus Magnus (que já estava sendo chamado por esse grande título), nósconversamosmaissobreavidadeGodwinemmeioaosdominicanos,seudeleiteemrelação a seus alunos, e sobre como ele estava comprometido com seu estudo dasobrasdeMaimônideseRashiemhebraico.

–Eunãosouumgrandeeruditonoqueconcerneàescrita–disseele–exceto,talvez,nascartasinformaisqueescrevoaFluria,masesperoqueoqueeusoueoqueeufareisobrevivamnasmentesdemeusalunos.

Rosa,por suavez,aproveitara semculpas suavidaemmeioaosgentios, eumaboa parte disso tinha a ver com o extremo prazer que sentia ao ver os préstitosnatalinosnafrentedacatedral,atésentirqueLea,tantosquilômetrosdistantedela,estavasofrendodoresatrozes.

– Mantenho em minha mente para sempre – disse-me ela uma vez enquantoGodwindormiana carroça aonosso lado–quenãoabandoneiminha fé ancestralpormedoouporquealgumapessoamalévolametorturoucomesseintuito,masporcausademeupai,eporcausadofervorqueeuvianele.CertamenteelereverenciaomesmoSenhordouniversoqueeureverencio.Ecomopoderiaestarerradaumaféqueproporcionoutamanhasimplicidadee tamanha felicidadeaele?Achoqueseusolhos e suasmaneiras forammais e cazes emmeconverterdoquequalquer coisaqueele tenhamedito.Eeuoconsidero sempreumexemplobrilhantedoqueeupretendoser.Opassado,porsuavez,meoprime.Nãoconsigopensarnele,eagoraqueminhamãeperdeuLea,sóconsigorezarcomtodoomeucoraçãoparaque,comsuajuventude,elaaindapossasermãedemuitos lhosdeMeire,porisso,pelavidaqueeles levamjuntos, façoessaviagem,cedendo,quemsabe,muito facilmenteaoqueprecisaserfeito.

Elapareciacientedemilharesdedi culdadessobreasquaiseunãohaviasequerpensado.

Primeiro, e mais importante, onde nós caríamos quando chegássemos emNorwich?Iríamosdiretoparaocastelo?EcomoeladesempenhariaopapeldeLeadiantedoxerifesemsaberseLeaalgumavezestiveracaraacaracomohomem?

Na verdade, como poderíamos atémesmonos aproximar do gueto e procurarabrigocomomestredasinagogajáque,contandocommiljudeus,Norwichdeveriapossuirmaisdeumasinagoga?ELea,poracaso,nãoconheceraalgummestredevistaoudenome?

Mergulhei numa prece silenciosa quando pensei nessas coisas.Malchiah, vocêprecisanosguiar!,euinsisti.Masoperigodapressuposiçãopareceu-mebrutalmente

real.OfatodeMalchiahmehavertrazidoparacánãosigni cavaquesofrimentosnão

estariamàminhaesperaadiante.Penseinovamentenoquehaviamechamadotantoaatençãoemrelaçãoàmisturadebememalnacatedral.SomenteopróprioSenhorsabia o que realmente eramauoubom, enós sópodíamos lutar para seguir cadapalavraqueElerevelaracomosendoboas.

Emsuma,aquilosigni cavaquequalquercoisapoderiaacontecer.Eonúmerodepessoasenvolvidasemnossocomplômepreocupavamaisdoqueeupermitiameuscompanheirossaber.

Erameio-dia,sobumcéubaixoeenevoado,quandonósalcançamosacidade,eeufuiacometidodeumentusiasmosimilaraoquemeacometiaantesdetiraravidade alguém, só que dessa vez eu conhecia um novo e espetacular aspecto disso.Odestinodemuitaspessoasdependiademeuêxitooudemeufracasso,eesse jamaishaviasidoocasoantes.

QuandoeuassassinaraosinimigosdeAlonso,eumecomportarademaneiratãoestouvadaquantoRosa secomportavademaneiraestouvadaagora.Eeunãohaviafeito aquilo porAlonso.Agora eu sabia disso.Eu zera aquilo parame vingar dopróprioDeusporhaverpermitidoaconteceroqueaconteceucomminhamãe,meuirmãoeminhairmã,eamonstruosaarrogânciacontidanissonãoparavademeatacarenãomedavanenhummomentodepaz.

Por m,quandonossa carroçamovidaadois cavalos entrouemNorwich,nósbolamososeguinteplano.

Rosaestariadormindofebrilmentenosbraçosdopai,osolhos fechados, jáqueestava doente devido à longa viagem, e eu, que não conhecia ninguém no gueto,perguntariaaossoldadossepoderíamosounãolevarLeaparasuaprópriacasaousedeveríamosnosdirigiraomestredasinagogadeMeir,seosoldadosoubessequempoderiaseressehomem.

Eu poderia, naturalmente, a rmar total inocência em relação a qualquerconhecimento acerca da comunidade, assim comoGodwin, e todos nós sabíamosquenossoplanoseriaincomensuravelmenteajudadoselordeNigeltivessechegadoeestivessenocasteloesperandoseuirmão.

Talvezosguardasdoguetoestivessempreparadosparaisso.Paraoquerealmenteaconteceu,noentanto,nenhumdenósestavaminimamente

preparado.Obrilhodosoleratênueportrásdasnuvenscinzentasquandonósentramosna

ruaondeselocalizavaacasadeMeir,etodosnós camossurpresosdeverluzesnasjanelas.

AúnicacoisaquenosveioàcabeçafoiqueMeireFluriahaviamsidosoltos,esalteidacarroçaebatiimediatamentenaporta.

Guardas apareceram das sombras quase que instantaneamente, e um homembastantebeligerante,grandeosu cienteparameesmagarcomasmãos,exigiuqueeunãomolestasseoshabitantesdacasa.

–Maseuvenhocomoamigo–sussurrei,nãoquerendoacordara lhaadoecida.Fizumgestoparaela.–Lea,a lhadeMeireFluria.Seráqueeunãopoderialevá-laparadentrodacasadeseuspaisparaqueelapudessedescansaratéqueestivesseforteosuficienteparaseencontrarcomelesnocastelo?

–Podeentrarentão–disseoguarda,ebateuàportaabruptamentecomaparteexteriordopunhodireito.

Godwindesceudacarroça,eentãorecebeuRosaemseusbraços.Elaacomodou-seemseuombroenquantoeleenganchavaseubraçodireitoembaixodosjoelhosdamenina.

Aporta foi aberta de imediato e lá dentro eu vi um indivíduomacilento comnos cabelos brancos e testa alta.Usava um pesado xale preto por cima da longa

túnica. Suas mãos eram ossudas e brancas e ele parecia estar olhandodesanimadamenteparaGodwineagarota.

Godwinarquejou,eimediatamenteinterrompeuopasso.–MestreEli–disseGodwinnumsussurro.Ovelhoseafastoue,olhandosugestivamenteparaoguarda,gesticulouparaque

entrássemosnacasa.–Podedizeraocondequeseuirmãoacabadechegar–disseovelhoaoguarda,e

emseguidabateuaporta.Estavaagoraevidenteparamimqueohomemeracego.Godwin depositou Rosa no chão com toda a delicadeza.Também ela estava

brancaeatônitaporsaberqueseuavôestavalá.–Eunão esperava encontrá-lo aqui, vovô – disse ela de imediato, com amais

ternadasvozes,esemoveuemdireçãoaele,masovelho,olhandoparaafrente,fezumgestoparaqueelaficasseondeestava.

Ele parecia frio e distante, e então respirou bem fundo, como se estivessesaboreandooleveperfumedaneta.

Emseguidavirou-lheascostasdesdenhosamente.

–Devoacreditarquevocêésuacaridosairmã?–perguntouele.–Vocêachaqueeunãoseioquevocêpretendefazer?Oh,vocêéaprópriaduplicatadela,comoeumelembrobem,enãoforamsuasnefastascartasaelaqueainstaramaseguircomessesgentiosparaaigreja?Maseuseiquemvocêé.Euconheçosuavoz!

EupenseiqueRosafossecomeçarachorar.Elabaixouacabeça.Eupodiasentirsuavoztrêmula,emboranãoaestivessetocando.Aideiadequeelahaviamatadoairmã jádevia ter-lheocorrido antes,mas agoraparecia estar atingindo-a com forçatotal.

–Lea–sussurrouela.–MinhaadoradaLea.Estouincompletapelorestodemeusdias.

Das sombras, uma outra gura veio até nós, umhomem jovem e robusto, decabelos escuros e espessas sobrancelhas que tambémestavausandoumpesado xalesobreosombrosparaseprotegerdofriodasala.TambémeleusavaodistintivodetafetáamarelodosDezMandamentos.

Eleficoudecostasparaaluzdofogo.–Sim–disseoestranho–,acreditoquevocêéaprópriaduplicatadela.Eujamais

poderiadistinguirumadaoutra.Épossívelqueissofuncione.Godwineeuanuímos,agradecidosporaquelediscretoentusiasmodapartedele.Ovelhodeuascostasparanósesemoveulentamenteparaacadeirapróximaao

fogo.Ojovem,porsuavez,olhouaoredordesiedepoisparaovelho,eentãofoiaté

eleesussurroualgumacoisaemseuouvido.Ovelhofezumgestodesesperador.Ojovemvirou-separanós.–Sejamrápidosesábios–disseeleparaRosaeGodwin.Eleparecianãosabero

quefazerdemim.–Acarroçaláforaégrandeosu cienteparacarregarseupai,suamãe e seu avô?Pois assimque vocês operarem esse pequeno encanto, todos vocêsdeverãosairdaquiimediatamente.

–Sim,elaégrandeosu ciente–respondeuGodwin.–Eeuconcordocomvocêqueapressaéde suma importância.Assimque soubermosquenossoplanosurtiuefeito.

–Voucuidarparaqueelasejalevadaparaosfundosdacasa–disseohomem.–Uma viela leva à outra rua. – Ele olhou paramim pensativamente, e em seguidacontinuou:–Todosos livrosdeMeir foramparaOxford–disseele–,e todasasoutras coisas preciosas foram retiradas dessa casana caladadanoite. Foi necessário

subornarosguardas,éclaro,masissofoifeito.Vocêsdevemestarprontosparapartirassimqueapecinhadevocêsterminardeserencenada.

–Nósestaremos–eudisse.Então,baixandoacabeçaparanós,ohomemsaiupelaportadafrentedacasa.Godwin lançou um olhar desamparado em minha direção e em seguida na

direçãodovelho.Rosanãoperdeutempo.–Vocêsabeporqueestouaqui,vovô.Euestouaquiparadizerqualquermentira

amimsolicitadaparaqueassuspeitasdequeminhamãetenhaenvenenadominhairmãsejamprontamenteretiradas.

–Nãofalecomigo–disseovelho,olhandoparaa frente.–Eunãoestouaquiporcontadeuma lhaquecedeusuaprópria lhaaoscristãos.–Eleseviroucomosepudesseverobrilhodofogo.–Eunãoestouaquiporcontadeumacriançaquerenegou sua fé por um pai que não é melhor do que um ladrão à espreita namadrugada.

–Vovô,eulheimploro,nãomejulgue–disseRosa.Elaseajoelhouaoladodacadeiraebeijouamãoesquerdadoavô.

Elenãosemexeuetampoucosevoltouparaela.–Euestouaqui–disseovelho–paraprovidenciarodinheiroqueénecessário

parasalvaroguetodainsanidadedessaspessoas,de agradapelamaneiracomaqualsuairmãentroutolaeinadvertidamentenaigrejadeles.Eissoeujá z.EstouaquiparasalvarosinestimáveislivrosquepertencemaMeirequepodemmuitobemtersidonegligentementeperdidos.Quantoavocêesuamãe...

–Minha irmãpagoupor entrar na igreja –disseRosa –, nãopagou?Eminhamãe,comoelapagouportudooqueaconteceu!Osenhornãoviráconoscoenãotestemunharápormimdizendoqueeusouquemdigoquesou?

–Sim,suairmãpagoupeloquefez–disseovelho.–Eagoraparecequepessoasinocentesestãotambémapontodepagarporisso,demodoqueaquiestoueu.Eudevia ter suspeitado de seu pequeno complô mesmo que Meir não tivesse meconfessado a trama, e por que motivos eu ainda amo Meir depois de ele ter semostradootoloqueéporamarsuamãe,issonãotenhocomodizer.

Elevoltou-sesubitamenteparaanetaenquantoelaseajoelhava.Eracomoseeleestivesseseesforçandoaomáximoparaenxergá-la.

–Comonãotenho lhos,euoamo–disseele.–Umavezacheiqueminha lhaeminhasnetaseramomaiortesouroqueeupodiapossuir.

–Entãoo senhornos acompanharánoque temos a fazer –disseRosa –, pelobemdeMeirepelobemdetodososoutrosaqui.Estamosdeacordo?

–Eles sabemqueLea possui uma irmã gêmea – disse ele friamente. –Muitaspessoas no gueto sabiam que isso deveria permanecer em segredo. Você estáassumindo um grande risco. Gostaria que tivesse deixado para nós a tarefa definanciaramaneirapelaqualnósnoslivraríamosdisso.

– Eu não tenho a intenção de contradizer o fato de que nós somos gêmeas –respondeuRosa.–Sópretendoa rmarqueRosaestámeesperandoemParis,oqueéverdadedeumamaneiraoudeoutra.

–Vocêmeenoja–disseelenumsussurro.–Gostariadejamaisterpostoosolhosemvocêquandovocênãopassavadeumbebênosbraçosdesuamãe.Nósfomosperseguidos.Homensemulheresmorremporsuafé.Masvocêabandonasuafépornadaalémdoprazerdeumhomemquenãotemnenhumdireitodechamarvocêdelha.Façaoquedesejaeacabelogocomisso.Euquerosairdesselugarenuncamais

voltar a falar comvocê ou com suamãe.E isso eu farei assimque souber que osjudeusdeNorwichestãoemsegurança.

Godwinseaproximoudovelhonessemomento,esaudou-ocomumbaixardecabeça, sussurrando seunomemaisumavez,mestreEli, epostou-sediantede suacadeiracomoseestivesseesperandopermissãoparafalar.

–Você tirou tudodemim–disseovelhonumavozbaixaenquantomiravaadireçãoondeseencontravaGodwin.–Oquemaisqueragora?Seuirmãoesperaporvocênocastelo.ElejantacomosenhorxerifeecomessadiligenteLadyMargaret,eele lembraaelaquenós somospropriedadevaliosa.Ah,quepoder.–Ele sevirouparaofogo.–Seráqueaqueledinheiroteriasidosuficiente...

–Nesse caso é claroquenão é–disseGodwinmuito suavemente.–Adoradorabino, por favor, fale algumas palavras para encorajar Rosa em sua missão. Se odinheirotivesseresolvido,entãotudoestariaresolvido,nãoéassim?

Ovelhonãorespondeu.–Não a culpe pelosmeus pecados – disseGodwin. – Eu fui su cientemente

iníquo em minha juventude a ponto de fazer mal aos outros com minhaimprudênciaedesleixo.Eupensavaqueavidaeracomoascançõesqueeucostumavacantar quando tocava alaúde. Eu agora sei que não é. E dediquei minha vida aomesmoSenhorqueosenhorvenera.Emnomedele,epelobemdeMeireFluria,porfavor,perdoe-meportudooquefiznopassado.

– Não pregue para meus ouvidos, irmão Godwin! – disse o velho com um

amargo sarcasmo. – Eu não sou um de seus alunos palermas de Paris. Jamais operdoareiportirarRosademim.EagoraqueLeaestámorta,oquemerestaalémdeminhasolidãoeminhatristeza?

–Nemtanto–disseGodwin.–CertamenteFluriaeMeirterão lhose lhasdeIsrael.Elessãorecém-casados.SeMeirpodeperdoarFluria,comoépossívelqueosenhornãopossa?

Ovelhoimediatamenteespumouderaiva.EleseviroueempurrouRosaparalongedesicomamesmamãoqueelasegurava

etentavabeijarnovamente.ElacaiuparatrássobressaltadaeGodwinapegoueaajudouaselevantar.– Eu dei mil marcos de ouro a seus miseráveis Freis Negros – disse o velho

olhandona direção deles, sua voz agora trêmula de raiva. –Oquemais eu possofazeralémde carquieto?Leveacriançaparaocastelo.DestilesuaslisonjasjuntoaLadyMargaret,masnãoexagerenadose.Leaerahumildeedocepornatureza.EssasuafilhaéumaJezebel.Nãoseesqueçadisso.

Deiumpassoàfrente.–Meusenhorrabino–eudisse–,osenhornãomeconhece,masmeunomeé

Toby.TambémsouumFreiNegroelevareicomigoRosaeoirmãoGodwinparaocastelo.Osenhorxerifemeconheceenosajudaránoque temosa fazer.Mas,porfavor,acarroçaestáláfora,estejapreparadoparaentrarnelaassimqueosjudeusnocastelosejamlibertadosemsegurança.

–Não–disseeledepronto.–Vocêssaíremdessacidadeapósopequenoféretroéimperativo.Mas eu permanecerei aqui para ter certeza de que os judeus estão emsegurança.Agorasaiamdaminhafrente.Euseiquevocêéoresponsávelporelaboraressafraude.Prossigacomela.

–Sim,eusou–confessei.–Esealgumacoisadererrado,sereioculpado.Porfavor,porfavor,estejapreparadoparapartir.

–Eupoderiamuitobemlhesugeriramesmaprecaução–disseovelho.–SeuscompanheirosfreisestãochateadoscomvocêporteridoaParisatrásde“Lea”.Elesquerem transformar uma menina tola numa santa.Tenha em mente que se issofalharvocêsofrerácomorestodenós.Vocêsofreráomesmoquenóspeloqueestátentandoaqui.

– Não – disse Godwin. – Ninguém sofrerá aqui, principalmente alguém tãodedicado a nos ajudar. Venha,Toby, temos de subir até o castelo agora.Não hátempoparaqueeufaleasóscommeuirmão.Rosa,vocêestápreparadaparaoque

temos de fazer? Lembre-se, você está enferma devido à viagem. Você não estavadispostaaencararessalongaprovação,faleapenasquandoLadyMargaretfalarcomvocê,etenhaemmenteosmodostranquilosdesuairmã.

–Osenhormedarásuabenção,vovô?–pressionouRosa.Eugostariaqueelanãotivessefeitotalcoisa.–Senãoisso,pelomenospoderiarezarpormim?

–Nãofareicoisaalgumaporvocê–disseele.–Estouaquiporoutraspessoasquedariamsuasvidasantesdefazeroquevocêfez.

Elelhedeuascostas.Elepareciatãosinceroetristeemsuarejeiçãoaelaquantoumhomempoderiaparecer.

Eunão conseguia entender totalmente omotivo, já que ela parecia tão frágil edelicadaameusolhos.Sim,elatinhaseuspropósitosferrenhos,masaindaassimnãopassava de umamenina de catorze anos comum enorme desa o diante de si. Euagora estava imaginando sehaviapropostoa coisa certa.Estava imaginando senãohaviafeitoumaterrívelasneira.

– Muito bem, então – eu disse. E olhei para Godwin. Ele abraçou Rosadelicadamente.–Vamos.

Umabatidaforteàportanossobressaltouatodos.Eu ouvi a voz do xerife anunciando sua presença, e a do conde. Subitamente,

ouvimosgritosdarua,eosomdepessoasbatendonasparedes.

N

CAPÍTULOQUINZEJULGAMENTO

ÃOHAVIANADAASERFEITOALÉMDEABRIR a porta e, de imediato,nósvimosoxerife,aindaemcimadesuamontaria,cercadodesoldados,eum homem que só podia ser o conde, em pé ao lado da montaria,

acompanhadodoquepareciasersuaguardapessoalformadapordiversoshomensacavalo.

Godwin foi diretamente ao encontro do irmão e o abraçou. Segurando comfirmezaseurosto,dirigiu-lheatentamentealgumaspalavrasnumsussurro.

Oxerifeficounaespera.Umamultidãodeindivíduosmal-encaradoscomeçouaseaglomerar,algunscom

porretesnasmãos,eoxerifeimediatamenteordenou,comumavozáspera,queseushomensobrigassemopovoarecuar.

Dois freisdominicanos estavam lá ediversospadresda catedral,usandobatinasbrancas.Epareciaqueamultidãoganhavacorpominutoaminuto.

TodosospresentesarquejaramemuníssonoquandoRosaapareceunobatentedaportaejogouocapuzparatrás.

Seu avô também aparecera, assim como o judeu corpulento cujo nome jamaisdescobri.EleficouempéaoladodeRosacomoseparaprotegê-la.Efizomesmo.

Conversações eclodiram em todos os pontos, e eu podia ouvir o nome “Lea”sendorepetidoseguidamente.

Entãoumdosdominicanos,umjovemhomem,dissenumavozférrea:–EssaéLeaousuairmãRosa?Oxerife,obviamentesentindoquejáesperaraosuficiente,disseaoconde:– Meu lorde, nós deveríamos subir agora mesmo ao castelo e resolver essa

pendenga.Obispoestáesperandopornósnosalãoprincipal.Um grunhido de decepção ergueu-se da multidão. Mas o conde beijou

imediatamente Rosa em ambas as faces e, ordenando que um de seus soldadosdesmontasse, colocou-a em cima do animal e pôs-se a conduzir a multidão em

direçãoaocastelo.Godwineeupermanecemospróximosumdooutrodurantealongacaminhada

atéomontedocasteloepelaestradasinuosaatépassarmospelasarcadaseentrarmosnojardimdocastelo.

Enquantooshomensdesmontavam,euobtiveaatençãodocondecutucandoamangadesuasvestes.

–Mandeumde seushomenspegar a carroçaqueestá atrásda casadeMeir.Éuma atitude sábia deixá-la preparada aqui nos portões para quandoMeir e Fluriaforemsoltos.

Eleassentiu, fezumgestoparaumdossoldadosemandouohomemrealizaratarefa.

–Podetercerteza–disseocondeparamim–queelessairãodaquicomigoesobaproteçãodemeusguardas.

Fiqueialiviadoaoouvirisso,jáqueelepossuíaunsoitosoldadosconsigo,todosmunidos de belas montarias ajaezadas, e ele próprio não parecia nem um poucoansioso ou temeroso. Ele recebeu Rosa e abraçou-a enquanto procedíamos pelaarcadaemdireçãoaointeriordosalãoprincipaldocastelo.

Eunãoviraaquelevastosalãoemminhavisitaanterior,evideimediatoqueumtribunalhaviasidoconvocado.

Naelevadamesaquecomandavaasalaencontrava-seobispoe,decadaladodele,ospadresdacatedralemaisalgunsdominicanos,incluindofreiAntoine.EuviqueofreiJeromedacatedralestavalá,eelepareciapesarosoemrelaçãoatodooprocesso.

MaisarquejosdesurpresaforamemitidosquandoRosafoilevadaaobispo,paraquemelabaixouacabeçahumildementecomotodososdemaispresentes,incluindooconde.

O bispo, um homem mais jovem do que seria de se esperar, e inteiramentevestidocomseustrajesdetafetáesuamitra,ordenoudeprontoqueMeireFluria,eo judeu, Isaac, e sua família, fossem trazidos imediatamente de seus aposentos natorre.

–Todososjudeusdevemsertrazidosparacá–disseele,porfim.Muitos dos homens toscos agora estavam lá dentro, assim como algumas

mulheres e crianças. E alguns homens mais toscos ainda que não haviam obtidopermissãoparaentrarestavamsefazendoouvir,oquefezcomqueobispoordenassequeumdeseushomensfossesilenciá-los.

Foi entãoquepercebiqueos guardas armados en leirados atrásdobispo eram

obviamenteseusprópriossoldados.Euestavatremendo,efizopossívelparaesconderasituação.DeumadasantecâmarasveioLadyMargaret,obviamentevestidaparaaocasião

comumavistosacoleçãodesedase,comela,apequenaEleanor,quechorava.Narealidade,aprópriaLadyMargaretestavaquaseemlágrimas.EnomomentoemqueRosajogouparatrásocapuzesaudouobispo,vozesse

ergueramaoredordenós.–Silêncio–declarouobispo.Fiqueiaterrorizado.Eujamaispresenciaraalgotãoimpressionantequantoaquele

tribunal,comtantaspessoasreunidas,eeusópodiaesperarerezarparaqueosvárioscontingentesdesoldadospudessemmanteraordem.

Obispoestavavisivelmentezangado.Rosa couparadana frentedelecomGodwindeumladoeocondeNigeldo

outro.–Osenhorvêagora,meulorde–disseocondeNigel–,queacriançaencontra-se

sãesalvaeretornou,comgrandedi culdadedevidoàsuarecenteenfermidade,paraqueosenhorpudesseatestarsuapresença.

Obisposentou-seemsuagrandecadeira,masfoioúnicoafazê-lo.Nósfomosimpelidosparaafrentepelamultidãoquenãoparavadeaumentarà

medidaquemuitosconseguiamabrircaminhoatéaaudiência.LadyMargaret eNellmirarama guradeRosa.E entãoRosadissolveu-se em

lágrimasedepositouacabeçanoombrodeGodwin.LadyMargaretaproximou-seeentãotocoudelicadamenteoombrodameninae

disse:–Vocêémesmoacriançaqueameicomtantaternura?Ouésuairmãgêmea?–Minhasenhora–disseRosa–,euvoltei,deixandominhairmãgêmeaemParis

apenasparaprovaravocêsqueestouviva.–Elacomeçouasoluçar.–Estoubastanteperturbadapelofatodeminhasaídatercausadotantosinfortúniosàminhamãeeameupai.Vocêsnãoconseguemcompreenderporqueeusaínacaladadanoite?Euestavafadadaamejuntaràminhairmã,nãosomenteemParis,masemsuafécristã,enãotrariadesgraçapúblicaameupaieàminhamãe.

Ela disse isso da maneira mais profundamente comovente, e silenciou LadyMargaretporcompleto.

–Entãovocêjurasolenemente–declarouobispo,suavozribombandonoar–queéacriançaqueessaspessoasconheciamenãoagêmeadessacriançaqueveioaté

aquimascararofatodequesuairmãforaassassinada?Umsonoromurmúrioecooudamultidãoreunida.–Meusenhorbispo–disseoconde–,poracasoeunãoconheçoasduascrianças

queestãosobminhaguarda?EssaaquiéLea,eelaestámaisumavezenfermaporterfeitoessadifícilviagem.

Mas, de repente, todos foram distraídos pela aparição dos judeus que vinhamsendomantidos comoprisioneiros.Meir eFluria chegaramantesna sala e, depoisdeles Isaac, o médico, e os vários outros judeus – facilmente reconhecíveis pelosdistintivosepornadamais–queseagruparam.

Rosaimediatamentesoltou-sedocondeecorreuparaamãe.Elaaabraçoucomlágrimasnosolhosedisseemvozaltaparaquetodospudessemouvir:

–Eulhetrouxedesgraçaedorindescritíveisesintomuitoporisso.Minhairmãeeuaamamosincondicionalmente,independentedetermossidobatizadasnafécristã.ComoasenhoraeMeirpodemmeperdoar?

Elanão esperouporuma resposta, e simabraçouMeir,que retribuiu comumbeijo,emboraestivessepálidodemedoesentindo-sevisivelmenterepelidoportodoaqueleprocesso.

LadyMargaret agoramiravaRosa comomais duro dos olhares e, voltando-separaafilha,sussurroualgoemseuouvido.

De imediato, a jovem foi até Rosa, que ainda estava pendurada no ombro damãe,edisse:

–MasLea,porquevocênãonosenvioualgumamensagemdequeestavaparaserbatizada?

–Ecomoeupoderia?–perguntouRosa,emmeioaumacontínuaenxurradadelágrimas. –Oque eu poderia ter dito a vocês?Certamente vocês compreendem amágoaqueproporcioneiaessesmeusadoradospaisaotomaradecisão.OqueelespoderiamfazeranãoserpedirqueossoldadosdocondemelevassemparaParis,oqueeles zeram,paraqueláeupudessemejuntaràminhairmã.Maseunãopodiapermitir que a história de que eu havia traídomeus amados pais daquelamaneirafossetrombeteadanogueto.

Elaprosseguiunessemesmotom,chorandotãoamargamentequeaausênciadenomesfamiliaresnemfoinotada,eimplorandoatodosqueentendessemcomoelaestavasesentindo.

– Se eu não tivesse visto aquele belo préstito natalino – disse ela subitamente,aproximando-se de águas perigosas ao fazê-lo –, eu não teria entendido por que

minhairmãRosahaviaseconvertido.Maseuovi,epasseiacompreender,e,assimque quei razoavelmente boa, fuime juntar a ela.Vocês achamque eu sabia quealguémacusariaminhamãeemeupaideteremmecausadoalgummal?

Ajovemestavaagoranadefensiva.–Nóspensávamosquevocêestivessemorta,vocêdeveacreditarnisso–disseela.Masantesquepudessecontinuar,Rosapediuparasaber:–Comovocêspuderamduvidardabondadedeminhamãeedemeupai?Vocês

queestiveramemminhacasa,comopuderampensarqueelesmefariamalgummal?LadyMargaret e a jovem estavam agora sacudindo a cabeça,murmurando que

haviamfeitoapenasoqueimaginaramserocertoequenãodeviamserculpadasporisso.

Atéaí tudobem.Mas freiAntoineagora falavaaltoo su cientepara ecoarnasparedes.

– Isso aqui é um grandioso espetáculo – disse ele –, mas como nós sabemosmuitobem,Fluria, lhadeEli,queestáaquihoje,tinhagêmeas,egêmeasaquinãoseencontramhojeparaexonerá-la.ComopodemostercertezadequevocêédefatoLeaenãoRosa?

Vozesportodososladosergueram-separaenfatizarapergunta.Rosanãohesitou.–Padre–disseelaaosacerdote–,poracasominhairmã,umacristãbatizada,viria

aqui defender meus pais se a vida de sua irmã houvesse sido tirada por eles?Certamenteosenhordeveacreditaremmim.EusouLea.EqueroapenasvoltarparaminhairmãemParis,acompanhadademeuguardião,ocondeNigel.

–Mascomonóspodemossaber?–perguntouobispo.–Essasgêmeasnãoeramidênticas?–ElegesticulouparaqueRosaseaproximasse.

Osalãoficoutomadodevozesraivosasecontrárias.Masnadaassustou-memaisdoqueamaneiracomaqualLadyMargaretderaum

passoàfrenteparamirarRosacomolhosestreitos.RosanovamentedisseaobispoquejurariasobreaBíbliaqueeraLea.Eagoraela

desejavaquesuairmãtivessevindocomela,masjamaispassaraporsuacabeçaqueseusamigosnãoacreditariamemsuaspalavras.

LadyMargaretgritouderepente:–Não!Essanãoéamesmacriança.Essaéaoutra,comumcoraçãoeumespírito

diferentes.Pensei que amultidão fosse começar um tumulto.Gritos raivosos vinham de

todososlados.Obispoexigiudeimediato:–Silêncio!–Eprosseguiu:–TragamaBíbliaparaqueessacriançajure,etragam

olivrosagradodosjudeusparaqueamãejurequeessaésuafilhaLea.De imediato, olhares de pânico foram trocados entre Rosa e suamãe. E Rosa

começou a chorarnovamente e correuparaosbraçosdamãe.Fluria, por sua vez,pareciaexaustapelotempodedetençãoefracaeincapazdedizeroufazeroquequerquefosse.

Oslivrosforamprovidenciados,emboraeunãopudessedizerexatamenteoqueerao“livrosagradodosjudeus”.

EMeireFluriamurmuraramasmentirasquelhesforamsolicitadas.Rosa, por sua vez, pegou o imenso volume com capa de couro da Bíblia e

imediatamentecolocouamãosobreele.–Eujuroavocês–disseela,avozabafadaequebradiçadevidoàemoção–,por

tudooqueacreditocomocristã,quesouLea,nascidadeFluria,esobaproteçãodoconde Nigel, aqui presente para limpar o nome de minha mãe. E quero apenaspermissãoparadeixaresselocal,cientedequemeuspaisjudeusestãoasalvoeisentosdequalquerpenalidadeporminhafalha.

–Não–gritouLadyMargaret.–Leanunca faloucomtaldesenvoltura,nuncaemsuavida.Elaeraumapessoamudaemcomparaçãoaessaaí.Eulhesdigo,essacriançaestánosenganando.Elaécúmplicedoassassinatodesuairmã.

Comisso,ocondeperdeuapaciência.Eleberroumaisaltodoquequalquerum,comexceçãodobispo.

–Como a senhora ousa contradizerminha palavra? – demandou o nobre. Eleolhoucomfúriaparaobispo.–Eosenhor,comoousadesa ar-mequandoa rmoquesouoguardiãocristãodeambasasmeninasqueestãosendoeducadaspormeuirmão?

Godwindeuumpassoàfrente.–Meusenhorbispo,porfavor,nãopermitaqueissoprossiga.Devolvaessesbons

judeusaseuslares.Osenhornãoconsegueimaginaradordessespaisqueviramsuaslhasadotara fécristã?Pormaisqueeutenhaahonradeserprofessordelas,ede

amá-las comumamorgenuinamente cristão,posso sentir apenas compaixãopelospaisqueelasdeixaramparatrás.

Um momento de silêncio impôs-se no recinto, com exceção dos febrismurmúrios damultidão que pareciam semover para um lado e para o outro emmeio às pessoas reunidas, como se um concurso de sussurros estivesse sendo

disputado.PareciaquetudoagoradependiadeLadyMargaretedoqueelaviesseadizer.Masjustamentequandoelaestavaapontodeprotestar,apontandoodedopara

Rosa,ovelhoEli,paideFluria,deuumpassoàfrenteegritou:–Queroapalavra.Pensei que Godwin fosse perecer de apreensão. E Fluria desabou no peito de

Meir.Masovelhoordenouquetodossecalassem.Naverdade,eleseaproximou,com

aajudadeRosa,até carcaraacaracomLadyMargaretepodermirá-lacomseusolhoscegos,comRosapostadaentreosdois.

–LadyMargaret,amigalatentedeminhafilhaFluriaedeseubommarido,Meir,comoasenhoraousadesa arasabedoriaearazãodeumavô?Essaéminhaneta,eeuaconhecerianãoimportaquantasduplicatasdelavagassemporessemundo.Poracaso eu desejo abraçar uma criança apóstata? Não, jamais, mas ela é Lea, e eu aconheceriamesmoqueaquinesserecintoestivessempresentesmilRosasparadizerocontrário. Eu conheço a voz dela. Eu a conheço comoninguémprovido de visãoteriacondiçõesdeconhecê-la.Asenhoraestámesmodispostaadesa armeuscabelosbrancos,minhasabedoria,minhahonestidade,minhahonra?–Ele foide imediatoaoencontrodeRosa,quelhecaiunosbraços.Eleaesmagoucontraoombro.–Lea–sussurrouele.–Lea,minhaLea.

–Maseusóqueria–começouLadyMargaret.– Silêncio, eu digo – disse Eli com uma voz possante e profunda, como se

quisessequetodosnagrandesalaouvissem.–EssaéLea.Eu,quedirigiassinagogasdos judeus a vida inteira, sustento isso. Eu sustento isso. Sim, essas lhas sãoapóstatas e devem ser em algum momento excomungadas do convívio com seuscompanheirosjudeus,eissoéamargo,amargoparamim,porémmaisamargoaindaéaobstinaçãodeumamulhercristãqueéacausamesmadafalhadessacriançacristã.Nãofossepelasenhora,elajamaisabandonariaseuspiedosospais!

–Eusófizoque...– A senhora apunhalou o coração de um lar – declarou ele. – E agora a nega

depois que ela empreendeu essa longa viagem para salvar a mãe? Isso é umacrueldade,minhasenhora.Esua lha,qualéopapeldelanissotudo?Euadesa oaencontrarumaínfimaprovaquesejadequeessacriançanãoéLea,filhadeFluria!

A multidão rugiu em aplausos. Por todos os lados as pessoas estavammurmurando:

–Ovelhojudeudizaverdade.–Sim,comoelaspodemprovar?–Eleaconhecepelavoz.Eoutrascentenasdevariaçõesdomesmotema.LadyMargaret começou a chorar copiosamente.Mas a quantidade de lágrimas

nemsecomparavaàdeRosa.–Eunãoquisfazermalaninguém!–choramingouLadyMargaretsubitamente.

Ela abriuosbraçosparaobispo edisse:–Pensei realmenteque a criança estivessemortaeimagineiqueeumesmafosseacausadisso.

Rosasevirou:– Senhora, não se culpe, eu lhe suplico – disse ela numa voz entrecortada e

tímida.A multidão cou quieta enquanto ela continuava. E o bispo gesticulou

furiosamente pedindo ordemquando os padres começaram a discutir uns comosoutros,efreiAntoinemiravaovazio,incrédulo.

Rosacontinuou:– LadyMargaret, se não fosse sua delicadeza para comigo – disse ela, sua voz

frágileterna–,eujamaisteriamejuntadoàminhairmãnanovafé.OqueasenhoranãotemcomosaberéqueforamascartasdelaparamimqueprepararamoterrenoparaqueeuacompanhassevocêsàmissanaquelanoitedeNatal,masfoiasenhoraqueselouminhaconvicção.Perdoe-me,perdoe-medofundodocoração,porfavor,poreunãoterescritoavocêsdizendocomoestavagrata.Novamente,meuamorporminhamãe...Oh,asenhoranãocompreende?Eulheimploro.

LadyMargaretnãopôderesistirpormuitotempo.ElaabraçouRosaecontinuouprotestandoseguidamenteoquantosentiaporhavercausadotamanhatristeza.

–Meusenhorbispo–declarouEli,virandoosolhoscegosparaotribunal.–Osenhornãopermitiráque retornemosanossos lares?Fluria eMeir sairãodoguetodepoisdessedistúrbio,comoosenhorcertamenteentenderá,masninguémcometeucrimealgum.Enóstrataremosdaapostasiadessascriançasemseudevidotempo,jáqueaindanãopassamde...crianças.

Lady Margaret e Rosa estavam agora abraçadas, soluçando, sussurrando, e apequenaEleanorcolocaraosbraçosemtornodasduas.

FluriaeMeirpermaneciammudos,mirando,assimcomoIsaac,omédico,eosoutrosjudeus,suafamíliatalvez,quehaviamficadoaprisionadosnatorre.

Obisposesentou.Estendeuasmãosnumaexpressãodefrustração.

–Muitobem,então.Estáfeito.VocêreconheceessacriançacomoLea.LadyMargaretassentiuvigorosamentecomacabeça.–Masmediga–disseelaaRosa–quevocêmeperdoa,meperdoapeladorque

proporcioneiàsuamãe.–Perdoodofundodemeucoração–disseRosa,edissemuitomaisdoqueisso,

masosalãointeiroestavaemplenaagitação.O bispo declarou que os procedimentos estavam encerrados. Os dominicanos

encaravamcomdureza todosos envolvidos.Ocondeordenou imediatamentequeseus soldados montassem nos cavalos e, sem esperar mais nenhuma palavra deninguém,fezumgestoparaqueMeireFluriaoacompanhassem.

Fiquei imóvel como uma pedra, observando. Podia ver que os dominicanosestavamsecontendo,olhandocomfriezaparatodos.

MasMeireFluriaforamconduzidosparaforadosalão,ovelhocomeles,eagoraRosasaiu,abraçadaàLadyMargareteàpequenaEleanor,todasastrêschorando.

Olheiparaaarcadaevitodaafamília,incluindomestreEli,subindonacarroça,eRosadandoumúltimoabraçoemLadyMargaret.

Os outros judeus começaram a descer a colina. Os soldados estavam em seuscavalos.

Quando Godwin puxou meu braço foi como se eu tivesse acordado de umsonho.

–Vamosemboraantesquehajaalgumamudança.Balanceiacabeça.–Vá–eudisse.–Euvou caraqui.Sehouvermaisalgumproblema,devoestar

aqui.Elequisprotestar,maslembreiaelecomoeraurgentequeelesubissenacarroçae

saíssedali.Obispolevantou-sedamesaedesapareceunointeriordeumadasantecâmarasna

companhiadospadresdebatinabrancadacatedral.Amultidão,agorafragmentadaedesprovidadepoder,assistiaàcarroçadescera

colina anqueada dos dois lados pelos soldados do conde.O conde, por sua vez,cavalgavaatrásdacarroça,ascostasretaseocotoveloesquerdoparafora,comosesuamãoestivessesegurandoocabodaespada.

Eumevireieseguiemdireçãoaojardim.Alguns vagabundos olharam para mim e também para os dominicanos que

vinhamatrásdemim.

Comeceiadesceracolinanumpassocadavezmaisrápido.Podiaveros judeusandando em segurança mais à frente, e a carroça estava indo mais rápido.Subitamente, os cavalos começaram a trotar e toda a entourage passou a ir numritmomaisrápido.Elesestariamlivresdacidadeemquestãodeminutos.

Também comecei a ir mais rápido. Podia ver a catedral, e um certo instintoimpeliu-meparaela.Maseupodiaouviraspassadasdoshomensbematrásdemim.

–Eondevocêachaquevaiagora,irmãoToby?–demandoufreiAntoinenumavozirritada.

Continueiandando,apesardesuamãopesadaemmeuombro.–Paraacatedral,agradecer.Ondemais?Andei o mais rápido que conseguia sem correr. Mas de repente os freis

dominicanos surgiram ao meu lado, e uma razoável quantidade dos valentões dacidadeestavamaoladodeles,observandocomcuriosidadeedesconfiança.

–Vocêachaquevaiencontrarrefúgio lá?–demandoufreiAntoine.–Euachoquenão.

Nósestávamosnopédacolinaquandoelemeempurrouebalançouodedoemristenafrentedemeurosto.

– Quem você é exatamente, irmão Toby? Você que chegou aqui para nosdesa ar,vocêquetrouxedeParisumacriançaquepodenãoseracriançaquea rmaser.

–Vocêsouviramadecisãodobispo–eudisse.–Sim,eelaserámantida,etudoficarábem,masquemvocêéedeondevem?Euagorapodiaveragrandefachadadacatedraleseguipelasruasemdireçãoaela.Derepenteelegiroumeucorpo,masmesoltei.–Ninguémouviufalardevocê–disseumdosirmãos–,ninguémdenossacasa

emParis,ninguémdenossacasaemRoma,ninguémdenossacasaemLondres, enóstrocamoscartassu cientescomLondresecomRomaparasaberquevocênãoéumdosnossos.

–Nenhumdosnossos–declaroufreiAntoine–sabenadaaseurespeito,eruditoviajante!

Eunãoparavadeandar,ouvindootrovãodeseuspassosatrásdemim,pensando,EuosestoulevandoparalongedeFluriaedeMeircomamesmacertezadoFlautistadeHamelin.

Por m,alcanceiapraçaemfrenteàcatedral,quandodesúbitodoisdospadresmeseguraram.

–Vocênãovaientrarnessaigrejaaténosresponder.Vocênãoéumdosnossos.Quemenviou vocêpara que ngisse ser umdenós?Quemo enviou aParis paratrazerdevoltaessameninaqueafirmasersuaprópriairmã?

Paraondequerqueolhasseeupodiaverosvalentõese,novamente,mulheresecriançasnamultidão,etochascomeçaramasurgirparacombaterapenumbrado mdetardedeinverno.

Eu lutava para me soltar, e isso apenas incitava outros a me segurar. Alguémarrancouabolsadecourodemeuombro.

–Vamosverquecartasdeapresentaçãovocêcarregaconsigo–demandouumdospadres,eentãoesvaziouabolsaetudooquecaiuforammoedasdeouroeprataquerolaramparatodososlados.

Amultidãoemitiuumrugidosonoro.–Nenhumaresposta?–exigiuo freiAntoine.–Vocêadmitequenãopassade

um impostor?Nós temos estadopreocupados como impostor errado esse tempotodo? É isso que recebemos como resposta agora? Você não é nenhum freidominicano!

Eu o chutei furiosamente, e o empurrei, e me virei para encarar as portas dacatedral.Corriparaelasquando,derepente,umdosjovensmeagarrouemejogoucontraaparededepedradaigrejacomtalintensidadequetudoficoupretoparamimporuminstante.

Oh, se a sensação tivesse sidopara sempre.Mas eunãopodia desejar tal coisa.Abriosolhospara verospadres tentando conter amultidão furiosa.FreiAntoinegritouqueaquiloeraassuntodelesequeelesresolveriamtudo.Masamultidãonãoaceitavaemhipótesealguma.

Algumaspessoas começaram apuxarmeumanto até nalmente rasgá-lo.Umaoutrapessoadeuumpuxãoemmeubraçodireitoesentiumadorintensanoombro.Maisumavezfuiempurradodeencontroàparede.

Em pequenos pontos tremeluzentes, eu via a multidão como se a luz daconsciência que existia em mim aparecesse e sumisse, aparecesse e sumisse, elentamenteumavisãohediondacomeçouasematerializar.

Ospadres foram todos empurradospara trás.Somenteos jovensvalentões e asmulheresmaisdurasdacidadeestavamagoraaomeuredor.

–Nãoépadre,nãoéfrei,nãoéirmão.Impostor!–gritavamtodos.Eàmedidaqueelesmeatacavam,mechutavamerasgavamminhasvestes,parecia

queemmeioàmassaquemudavadeformaeudistinguiaoutras guras.Todasessas

guras me eram bastante familiares. Essas guras eram os homens que eu haviaassassinado.

Ealibempertodemim,envoltoemsilêncio,comosenão zessepartealgumada confusão, mas invisível aos ru ões que operavam sua fúria em mim, estava oúltimohomemqueeumataranoMissionInn,ebemaoladodeleajovemlouraqueeumataracomumtirotantosanosatrásnobordeldeAlonso.Todosobservavam,eemseusrostoseunãoviajulgamento,nãoviajúbilo,viaapenasalgolevementetristeeassombrado.

Alguém tomara posse de minha cabeça. Eles estavam batendo minha cabeçacontraaspedras,eeupodiasentirosangueescorrendopormeupescoçoecostas.Porummomento,nãovinada.

Pensei,damaneiramaisestranhaedistantedomundo,naperguntaqueeu zeraaMalchiah e que ele jamais respondera: “Eu poderiamorrer naquele tempo? Issoseriapossível?”Maseunãochamavaporeleagora.

Enquanto eu caíanuma torrentede socos, enquanto sentiaos sapatosde courochutando minhas costelas e meu estômago, enquanto o ar escapava de mim,enquantoavisãodesapareciademeusolhos,enquantoadoratravessavaminhacabeçaemeusmembros,euapenasrezavaminhaoração.

QueridoSenhor,perdoe-meportermeseparadodeVocê.

S

CAPÍTULODEZESSEISMUNDOSUFICIENTEETEMPO

ONHANDO.OUVINDOAQUELACANTORIAnovamentequesoavacomoareverberaçãodeumgongo.Masestavadesaparecendoquandorecupereiossentidos.Asestrelasestavamdesaparecendo,eovastocéuescuroestava

sumindo.Abriosolhoslentamente.Nenhumadorempartealgumadocorpo.Eu estava deitado na cama de baldaquim doMission Inn.Todo omobiliário

familiardasuíteestavaaomeuredor.Porumlongomomentoolheiparaobaldaquimdesedaxadrezepercebi,forcei-

me a perceber, que havia voltado a meu próprio tempo, e que não havia dornenhumaempartealgumadomeucorpo.

Lentamente,senteinacama.–Malchiah?–chamei.Nenhumaresposta.–Malchiah,ondeestávocê?Silêncio.Sentiquealgumacoisaemmimestavaapontodesesoltar,eaideiamedeixou

aterrorizado.Sussurreionomedelemaisumavez,masnão queisurpresopornãoreceberrespostaalguma.

Umacoisaeusabia,entretanto.EusabiaqueMeir,Fluria,Eli,Rosa,GodwineocondehaviamtodossaídoemsegurançadeNorwich.Issoeusabia.Emalgumpontorecôndito de minha mente enevoada havia uma visão daquela carroça, cercada desoldados,seguindoemsegurançapelaestradaemdireçãoaLondres.

Aquilopareciatãorealquantoqualquercoisanessequarto,eessequartopareciacompletamentereal,econfiavelmentesólido.

Olheiparamimmesmo.Euestavaumabagunçasó.Maseuusavaumdemeusternos,umpaletó,calçasecoletecáquieumacamisa

brancaabertanopescoço.Nadaalémderoupasusuaisparamim.En ei amão no bolso e descobri que tinha amesma identi cação de quando

vinhaaqui,comoeumesmo.NãoTobyO’Dare,éclaro,masonomequeeuusavaparaandarporaísemdisfarce.

En ei de volta a carteira de habilitação no bolso, desci da cama, fui para obanheiroemireioespelho.Nenhumhematoma,nenhumamarca.

Masachoque,naverdade,euestavaolhandoparameurostopelaprimeiravezemanos.EuviaTobyO’Dare,vinteeoitoanosdeidade,olhandoparamim.

Porqueeuestavaachandoquepoderiahaveralgumhematomaoualgumamarca?O fato é que eu não conseguia acreditar que ainda estava vivo, não conseguia

acreditarque sobrevivera aoquecertamenteparecia ser amorteque eumereciadoladodeforadacatedral.

E se essemundo não estivesse parecendo tão vívido quanto aquelemundo, euteriaimaginadoqueestavasonhando.

Andeiatordoadoaoredordoquarto.Viminhacostumeirabolsadecouro lá,epercebioquantopareciaabolsaqueeucarregavanoséculoXIII.Meucomputadortambémestavaali,olaptopqueeuusavaparapesquisas.

Como essas coisas foram parar ali? Como eu fui parar ali? O computador, olaptopMacintosh,estavaabertoeligadonatomada,exatamentedojeitoqueeuteriadeixadoapósusá-lo.

Pelaprimeiravezocorreu-mequetudoquehaviaacontecidoeraumsonho,eraalgo que eu havia imaginado. O único problema é que eu jamais poderia terimaginadoaquilo.Eujamaispoderiater imaginadoFluriaouGodwin,ouovelhoElieamaneiracomoelemanipulouotribunalnomomentocrucial.

Abriaportaefuiparaavarandadeladrilhos.Océuestavaclaroeosolforteemminha pele, e depois dos céus cheios de neve que eu experimentara nas últimassemanas,aquiloeraabsolutamenteaconchegante.

Senteiàmesadeferroesentiabrisanocorpo,impedindoqueocalordosolmeincomodasse – aquele frescor familiar que sempre parece existir no ar do sul daCalifórnia.

Coloqueioscotovelossobreamesaebaixeiacabeça,pousando-asobreasmãos.Echorei.Choreimuito,choreiapontodesoluçar.

Adorqueeusentiaeratãoatrozqueeunãoconseguiadescrevê-lanemparamimmesmo.

Eu sabia que as pessoas estavam passando por mim, e eu não estava dando a

mínima para o que elas estavam vendo ou para o que estavam sentindo. Emdeterminadomomento, umamulher veio aomeu encontro e colocou amão emmeuombro.

–Seráqueeupossoteajudar?–sussurrouela.–Não–respondi.–Ninguémpode.Acaboutudo.Eu a agradeci, segurei amão dela e disse-lhe que era muito gentil. Ela sorriu,

assentiu com a cabeça e seguiu em frente com sua turma de turistas. Elesdesapareceramnosdegrausdarotunda.

Veri quei meu bolso, achei um tíquete de estacionamento, desci a escada,atravesseiosaguão,passeiporbaixodocampanárioedeiotíqueteparaomanobristacomumanotadevintedólares.Fiqueiláparado,aturdido,olhandoparatudocomose jamais tivesse visto nada daquilo antes: o campanário com osmuitos sinos, aszínias orescendo ao longo da trilha do jardim e aquelas enormes palmeirasapontandoparaolímpidocéuazul.

Omanobristaveioaomeuencontro.–Estátudobem,senhor?–perguntouele.Esfregueionariz.Percebiqueaindaestavachorando.Puxeiumlençodelinhodo

bolsoeassoeionariz.–Estátudobem,sim.Obrigado.Équeacabeideperderummontedeamigos

muitoíntimos–eudisse.–Maseunãoosmerecia.Elenãosoubeoquedizer,enãooculpeiporisso.Entreinocarroedirigiomaisrápidopossíveldentrodasnormasdesegurançaaté

SanJuanCapistrano.Tudooqueaconteceraestavapassandoporminhamentecomoumgrande lme,

e eunão reparava coisa algumanasmontanhas,na autoestradaounos sinais.Meucoraçãoestavanopassadoenquanto,porinstinto,eudirigiaocarronopresente.

Quando entrei no terreno damissão, olhei ao redor desesperadamente, emaisumavezsussurrei:

–Malchiah.Não houve resposta, e não havia ninguém sequer parecido com ele. Apenas as

costumeirasfamíliaspassandopeloscanteiros.FuidiretamenteparaaCapelaSerra.Porsorte,nãohaviamuitagenteporlá,easpoucaspresentesestavamrezando.Andeipelanavelateral,mirandootabernáculocomaluzdosantuárioàesquerda,

edesejeidofundodocoraçãodeitarnochãodacapelacomosbraçosestendidose

rezar,massabiaqueasoutraspessoasviriamatémimseeufizesseisso.Tudooqueeupudefazerfoimeajoelharnoprimeirobancoedizernovamentea

oraçãoquehaviaditoquandoamultidãomeatacou.–QueridoSenhor–eurezei–,nãoseiseaquilofoiumsonhoousefoireal.Sei

apenasqueagorapertençoaoSenhor.NuncativeintençãodesernadaalémdeuminstrumentodoSenhor.

Por m, sentei no banco e chorei silenciosamente por uma hora, pelos meuscálculos. Eu não fazia barulho su ciente para incomodar as pessoas. E quandoalguém se aproximava, eu baixava a cabeça e fechava os olhos, e a pessoasimplesmenteseconcentravaemsuaprópriaoraçãoouacendiasuavela.

Olhei para o tabernáculo e esvaziei minha mente, e muitos pensamentos meocorreram.Opensamentomaisdevastadoreraqueeuestavasozinho.Todosaquelesqueeuconheceraeamaracomtodoofervorhaviamsidocompletamenteretiradosdemim.

Eu jamais veria Godwin e Rosa novamente. Eu jamais veria Fluria ou Meirnovamente.Eusabiadisso.

Esabiaquejamais,jamaisemminhavidavoltariaaverasúnicaspessoasqueeurealmente conhecera e amara. Elas não estavam mais comigo; nós estávamosseparados por séculos, e nãohavianadaque eupudesse fazer a respeito, e, quantomais eu pensava em tudo isso, mais eu imaginava se algum dia voltaria a verMalchiah.

Nãoseiquantotempofiqueilá.Emdeterminadomomento,percebiqueanoiteestavaseaproximando.Eu dissera ao Senhor, e repetira inúmeras vezes, o quanto eu sentia por cada

maldadequecometerae,seosanjos zeramtudoissocomilusões,paraqueeuvisseoserrosnaconduçãodeminhavida,ouseeuestiverealmenteemNorwicheParis,seeurealmenteestiveounãonesses lugares,pouco importa.Oque importaéquenãomereçoamisericórdiaquemefoiconcedida.

Finalmente,saíedirigidevoltaaoMissionInn.Jáestavaescuro,tendoemvistaqueestávamosnaprimaveraeaescuridãochegava

cedo.Instalei-menaSuíteAmistadefuitrabalharnocomputador.NãofoinemumpoucodifícilencontrarreproduçõesdeNorwich,reproduções

docasteloedacatedral,masasreproduçõesdocasteloeramradicalmentediferentesdoantigo localnormandoqueeuvira.Acatedral,porsuavez, sofreraumagrandeexpansãodesdeaminhavisita.

Teclei“judeusdeNorwich”elicomumavagasensaçãodehorrortodaahistóriadomartíriodoPequenoSantoWilliam.

Derepente,comasmãostrêmulas,tecleiMeirdeNorwich.Paraminhatotaleabsoluta surpresa, surgiram na tela vários artigos sobre ele. Meir, o poeta deNorwich,existiurealmente.

Recostei-me na cadeira, simplesmente arrebatado. E por um longo tempo nãoconsegui fazer nada. Então, li os artigos curtos que diziam que esse homem eraconhecidoapenasporummanuscritodepoemasemhebraiconoqual elehavia seidentificado,ummanuscritoqueestavanoMuseudoVaticano.

Depois disso teclei diversos nomes diferentes, mas, em essência, não conseguinadaquepudesserelacionaraoquehaviaacontecido.Nenhumahistóriademassacresobreumaoutracriança.

MasatristehistóriadosjudeusnaInglaterramedievalteveum mabruptoem1290,quandotodososjudeusforamexpulsosdailha.

Recostei-menovamente.Eu zerapesquisassu cientes,edescobriraqueoPequenoSantoWilliampossui

a distinção de ser o primeiro caso de assassinato ritual atribuído a judeus, umaacusação que reapareceria inúmeras vezes ao longo da Idade Média e depois. E aInglaterra foi o primeiro país a expulsar por completo os judeus. Ocorreramexpulsõesdecidadesedeterritóriosantes,masaInglaterrafoioprimeiropaís.

Euconheciaoresto.OsjudeusforamrecebidosdevoltaséculosmaistardeporOliver Cromwell porque ele achava que o mundo estava prestes a acabar e aconversãodosjudeustinhadedesempenharumpapelnisso.

Levantei da frente do computador com os olhos doendo, desabei na cama edormiporhoras.

Emalgummomentodamadrugada,acordei.Eramtrêsdamanhãdeacordocomorelógionamesinhadecabeceira.Issosigni cavaqueeramseisdamanhãemNovaYorkequeoHomemCertoestariaemseuescritório.

Abrimeucelular,observeiqueeraumaparelhopré-pagocomoosqueeusempreusava,etecleionúmerodele.

Assimqueouvisuavoz,eudisse:–Escute,nuncamaisvouvoltaramatar.Nuncamaisvoucausarmalnenhuma

ninguém se puder evitar de algummodo.Não soumais seu assassino da agulha.Acabou.

–Queroquevocêvenhaaqui,filho–disseele.

–Porquê?Pravocêmematar?–Lucky,comoéquevocêpodepensarumacoisaassim?–disseele.Eleparecia

perfeitamentesinceroeligeiramentemagoado.–Filho,estoupreocupadocomoquepodevirafazerconsigomesmo.Eusempremepreocupeicomisso.

–Bom,nãovaimaisprecisarsepreocupar.Agoratenhoumacoisaprafazer.–Eoqueé?–Escreverumlivrosobrealgoqueaconteceucomigo.Oh,nãosepreocupe,não

temnadaavercomvocêoucomqualquercoisaquevocêtenhamepedidoprafazernopassado.Tudoissovaisermantidoemsegredo,comosempreesteve.TalvezvocêdigaqueestouaceitandooconselhodopaideHamlet.EuestoutedeixandoparairparaoParaíso.

–Lucky,vocênãoestábemdacabeça.–Estou,sim–eudisse.–Filho,quantasvezestenteitedizerquevocêestavatrabalhandoparaosCarasdo

Bemdurante todo esse tempo? Será que vou precisar soletrar a frase?Você estevetrabalhandoparaoseupaís.

–Issonãomudanada.Eutedesejoboasorte.Eporfalaremsorte,euquerotedizermeuverdadeironome.ÉTobyO’Dare,eeunasciemNovaOrleans.

–Oqueaconteceucomvocê,filho?–Vocêsabiaqueesseeraomeunome?–Não.Nósnunca fomos capazesde rastrear sua vida anterior à época emque

vocêconheceuseusamigosemNovaYork.Vocênãoprecisamedizeressascoisas.Eunãovoudizernadadissoaninguém.Vocêpodesairdaorganização, lho.Podeseguirseucaminho.Sóquerotercertezadequevocêsabeparaondeestáindo.

Euri.Pelaprimeiravezdesdeomeuretorno,euri.–Euteamo,filho–disseele.–Beleza, eu sei disso chefe.E, deuma certa forma, também te amo.Esse é o

grandemistério.Masnãosirvomaisparaoquevocêquerqueeufaça.Euvoufazeralgoquevalhaapenaemminhavida.Mesmoquesejaapenasescreverumlivro.

–Vocêvaimeligardevezemquando?–Achoquenão,masvocêpode cardeolhonaslivrarias,chefe.Quemsabe?De

repente você vai achar meu nome na capa de um livro algum dia. Agora precisodesligar.Euquerodizerque...bom,oqueeumetorneinãofoiculpasua.Foitudoresponsabilidademinha.Deumacertaforma,vocêmesalvou,chefe.Alguémmuito

piorpoderia tercruzadomeucaminho,e issopoderia ter sidobempiordoqueascoisasquerealmenteaconteceram.Boasorte,chefe.

Fecheioaparelhoantesqueelepudessedizerqualquercoisa.Pelasduassemanasseguintes,moreinoMissionInn.Tecleinomeulaptoptodaa

históriadoquehaviaacontecido.EscrevisobreMalchiahtervindoatémim,eescreviaversãodeminhavidaque

elenarrouparamim.Escrevitudooque z,deacordocomminhasmelhoreslembranças.Foitãoduro

descrever Fluria e Godwin que mal consegui suportar a experiência, mas escreverpareciaaúnicacoisaqueeupodiafazer,portantoseguiemfrente.

Finalmente,incluíasnotassobreosfatosverdadeirosqueeudescobriraacercadosjudeusdeNorwich,oslivrosreferentesaelaseaquelaquestãotorturantedeMeir,opoetadeNorwich,termesmoexistido.

Porfim,escreviotítulodolivro,eesteeraOtempodosanjos.Eramquatrodamanhãquandoeufinalmentetermineiotrabalho.Fuiparaavaranda,encontrei-acompletamenteescuraedeserta,mesenteiàmesa

deferroe queiapenaspensando,esperandoocéuseiluminar,esperandoospássaroscomeçaremsuainevitávelcantoria.

Eupoderiaterchoradonovamente,mas,porummomento,tiveaimpressãodenãotermaislágrimas.

Oqueerarealparamimeraoseguinte:eunãosabiaseaquilotudohaviaounãoacontecido. Eu não sabia se aquilo era um sonho que eu havia tido, ou que umaoutrapessoahavia tidoparame cercar.Eu sabia apenasque estava completamentealterado e que faria qualquer coisa, qualquer coisa, para verMalchiah novamente,paraouvirsuavoz,paraapenasolhá-lonosolhos.Paraapenassaberqueaquilotudohaviasidoreal,ouparaperderasensaçãodequeaquilohaviasidoinegavelmentereal,oqueestavamelevandoàloucura.

Eu estava a ponto de ter um outro pensamento, mas nunca conseguirei melembrarqualera.Apenascomeceiarezar.RezeinovamenteaDeusparaqueElemeperdoasseportudooqueeuhaviafeito.Penseinas gurasqueviranamultidãoe zumatodecontriçãodo fundodomeucoraçãopor cadaumadelas.O fatode euconseguir me lembrar de todas elas, inclusive dos homens que eu matara tantotempoatrás,medeixouimpressionado.

Entãorezeiemvozalta:– Malchiah, não me abandone. Volte, ao menos para me dar uma orientação

sobreoqueeudeveriafazeragora.Seiquenãomereçoquevocêvoltemuitomaisdoque merecia você ter vindo da primeira vez. Mas estou rezando agora: não meabandone,AnjodeDeus,queridoguardião,euprecisodevocê.

Não havia ninguém que pudesse me ouvir na varanda quieta e escura. Haviasomente a leve brisa matinal e os últimos resquícios de estrelas no céu brumosoacimademim.

–Sintofaltadetodasaquelaspessoasquedeixeiporlá–prosseguifalandocomele,emboraelenãoestivesselá.–Sintofaltadoamorquesentiaemvocê,edoamorquesentiapor todoseles,eda felicidade,a intensa felicidadequesentiquandomeajoelhei na Notre Dame e agradeci a Deus pelo que Ele me havia concedido.Malchiah,seaquilofoirealounão,volteparamim.

Fecheiosolhos.Ouviascançõesdosera m.Tenteiimaginá-losdiantedotronode Deus, tentei ver aquela gloriosa chama luminosa e ouvir aquela gloriosa einterminávelcançãodelouvor.

Talvez no amor que eu sentira por aquelas pessoas naquele tempo distante eutenha ouvidoumpoucodaquelamúsica.Talvez eu a tenha ouvidoquandoMeir,FluriaetodaafamíliadeixaramNorwichemsegurança.

Depoisdeumlongotempo,abrimeusolhos.A luz do dia aparecera, e todas as cores da varanda estavam agora visíveis. Eu

estavamirandoosgerâniospurpúreosquecercavamaslaranjeirasnosvasostoscanos,e imaginando como eles eram gloriosamente belos, quando percebi queMalchiahestavasentadoàmesaemfrenteamim.

Ele estava sorrindo paramim. Estava exatamente com amesma aparência quetinha da primeira vez que eu o vira. Compleição delicada, fartos cabelos pretos eolhos azuis. Ele estava sentado com as pernas para o lado, apoiado no cotovelo,apenasolhandoparamim,comoestivessefazendoissohámuitotempo.

Comeceiatremerporinteiro.Levanteiasmãos,comoseestivesserezando,paracobriroarquejoquemeescapavadaboca,esussurreinumavoztrêmula:

–GraçasaDeus.Eleriusuavemente.–Vocêrealizouumtrabalhomaravilhoso–disseele.Eumedissolviemlágrimas.Choreicomohaviachoradonomomentoemque

voltei.Uma citação de Dickens me veio à cabeça, e a recitei em voz alta porque a

memorizaramuitotempoatrás:

“Deussabequejamaisprecisamosnosenvergonhardenossaslágrimas,poiselassãoachuvaquecobreapoeiracegantedaterra,revestindonossoscoraçõesendurecidos.”

Elesorriuaoouvirisso,eassentiucomacabeça.– Se eu fosse humano, eu também choraria – sussurrou ele. – Isso émais ou

menosumacitaçãodeShakespeare.–Porquevocêestáaqui?Porquevoltou?– Por que você acha? – perguntou ele. – Nós temos um novo serviço e

pouquíssimo tempo a perder, mas há algo que você precisa fazer antes decomeçarmos, e você deve fazê-lo imediatamente.Tenho esperado todos esses diasparaquevocêofaça.Masvocêestavaescrevendoumahistóriaqueprecisavaescrever,eoquevocêtemafazeragoranãoestáclaroparavocê.

–Oquepoderiaser?Deixe-mefazer,evamoslogorealizaresseoutroserviço!–Euestavaexcitadodemaispara carquietonacadeira,mas queiolhando xamenteparaele.

–VocênãoaprendeunenhumaliçãopráticacomorelacionamentodeGodwineFluria?–perguntouele.

–Nãoestouentendendooquevocêestáquerendodizer.–LigueparaasuaantiganamoradaemNovaOrleans,TobyO’Dare.Vocêtem

umfilhodedezanosdeidade.Eeleprecisaouvirnotíciasdeseupai.Fim

13:40

21dejulhode2008

E

NOTADAAUTORA

STE LIVROÉUMAOBRADE FICÇÃO. Entretanto, eventos e pessoas reaisinspiraramalgunsepisódiosepersonagensnoromance.

MeirdeNorwichfoiumapessoareal,eummanuscritodeseuspoemasemhebraicoencontra-senoMuseudoVaticano.Maspoucoounadaé conhecidoacerca dessa pessoa real, exceto que viveu em Norwich e que nos deixou ummanuscritodepoemas.EleédescritoporV.D.LipmanemTheJews ofMedievalNorwich,publicadopelaJewishHistoricalSocietydeLondres,eesselivrotambémincluiospoemasdeMeirnohebraicooriginal.Atéondesei,nãoexistetraduçãodaobradeMeirparaoinglês.

Deixe-me enfatizar mais uma vez que minha versão de Meir nesse romance éccional, e temcomopropósito fazerumahomenagemaumapessoa sobrequem

nãoseconhecenada.Nomes no romance, particularmente Meir, Fluria, Lea e Rosa eram nomes

usados pelos judeus emNorwich e foram tirados do livrodeV.D.Lipman e deoutras fontes. Ressaltandomais uma vez,meus personagens são ccionais.Houveefetivamente um Isaac em Norwich que foi um grande médico judeu, mas meuretratodessehomeméficcional.

Norwichnaquelaépocapossuía realmenteumxerifequepode, semdúvida, serhistoricamenteidenti cado,etambémumbispo,maseunãoquisusarseusnomesouenvolverquaisquerdetalhesconcernentesaeles,jáquesãopersonagens ccionaisnumahistóriaficcional.

OPequenoSantoWilliamdeNorwich existiude fato, e a trágicahistóriadosjudeusacusadosdematá-loécontadanolivrodeLipman,etambémporCecilRothemAHistory of the Jews in England, publicado pela Clarendon Press.Omesmoacontece com o Pequeno SantoHugh de Lincoln e com o distúrbio emOxfordenvolvendoosestudantescontraosjudeus.RotheLipmanforamfontesgigantescasparamim.

Muitos outros livros foram de inestimável ajuda para eu escrever esse livro,incluindoe Jews of Medieval Western Christendom , 1000-1500, de Robert

Chazan, publicado pela Cambridge University Press ee Jew in the MedievalWorld:ASourceBook,315-1791, de JacobRaderMarcus,publicadopelaHebrewUnionCollegePressdeCincinnati.Duasoutrasvaliosasfontesforam JewishLifeintheMiddleAges de IsraelAbrahams, publicadopela JewishPublicationSociety ofAmericaeMedievalJewishCivilization:AnEncyclopedia,editadoporNormanRothepublicadopelaRoutledge.Euconsulteimuitosoutroslivros,oqueseráexcessivomencionaraqui.

Leitores interessados na IdadeMédia têm recursos abundantes, incluindo livrossobre a vida cotidiana naquele período e até mesmo livros grandes com gravurassobre a vidamedieval, cujopúblico-alvo sãoos jovens,masque são esclarecedorespara todos. Existem inúmeros livros sobre universidades, cidades, catedrais etc. daIdadeMédia.

Eu sou especialmente grata a Jewish Publication Society of America por suasmuitaspublicaçõesarespeitodahistóriaedavidadosjudeus.

Nesse livro fui inspirada por Lew Wallace, autor deBen-Hur, que criou umgrandeeseminalclássicoqueconseguedeleitartantooscristãosquantoosjudeus.Éminhaesperançaqueestelivroagradetantoacristãosquantoajudeus,ealeitoresdetodasascrenças,oudenenhumacrença.Euprocureipintarumretratoacuradodacomplexa interação entre judeus e cristãos mesmo durante tempos de perigo eperseguiçãoparaosprimeiros.

Comoumestudiosoobservou,não sepodepensarnos judeusda IdadeMédiasomente em termos de seu sofrimento.A erudição judaica incluíamuitos grandespensadoreseescritores, taiscomoMaimônideseRashi,quesãomencionadosmaisde uma vez neste romance. A comunicação entre os judeus, a organizaçãocomunitáriaeoutrosaspectosdavida judaicaestãotodosricamentedocumentadoshoje por muitos estudiosos, e informações acerca da vida dos judeus durante ostemposantigosaindaestãosendovigorosamenterecolhidas.

Arespeitodosanjosedeseupapelnosassuntoshumanos,eugostariaderemetero leitor ao livro mencionado no romance:e Angels , do frei Pascal Parente,publicadopelaTANBooksandPublishers,Inc.quesetornouumapequenabíbliapara mim neste trabalho.Também de grande interesse é Angels (andDemons) dePeter Kreeft, publicado pela Ignatius Press. Uma grande e venerável fonte deinformaçõessobreanjosecrençascristãsarespeitodeleséaSumaTeológicadeSantoTomásdeAquino.

Quero agradecer aWikipedia, a enciclopédia on-line, pelas rápidas referências a

Norwich,aocastelodeNorwich,àcatedraldeNorwich,Maimônides,RashieSantoTomásdeAquino.Outro sitesda internet também foramúteis, enovamente elessãonumerososdemaisparaseremmencionadosaqui.

TambémdeveriaagradeceraoMissionInneamissãodeSanJuanCapistranoporseremlugaresreais,oquemeinspirouóbviaeenormementenestelivro.

Esse romance foi escrito para proporcionar diversão, mas se inspirar futuraspesquisasdapartedosleitores,esperoqueessasnotassejamdealgumavalia.

Porúltimo,deixe-meincluirminhafervorosaoração:

AnjodeDeus,queridoguardião.AquemoamordeDeusaquimeconfia,Sempreeparasempre,euteagradeço.

AnneRice

AbençoemoSENHOR,vósquesoisseusanjos,queexcedememforça,quefazemseuscomandos,atendendoavoz

desuapalavra.

AbençoemoSENHOR,todosvósquesoissuashostes;vósquesoisseusministros,querealizamseuprazer.

AbençoemoSENHOR,todososseustrabalhosemtodososlugaresdeseudomínio;abençoemoSENHOR,

Ohminhaalma.

Salmo103VersãodoreiJames

ANNERICEéautorade30livros.ElaviveemRanchoMirage,Califórnia.Tempodosanjos eDe amor emaldade fazem parte da série As Canções do Sera m. Dela, aRoccopublicou:Cânticodesangue,Choreparaocéu,CristoSenhor–AsaídadoEgito(Livro1),CristoSenhor–OcaminhoparaCaná(Livro2),Entrevistacomovampiro,AfazendaBlackwood,Ahistóriadoladrãodecorpos,Ahoradasbruxas–vols.IeII,Lasher,Memnoch,Merrick,Amúmia,Pandora,A rainha dos condenados,Sangue eouro, O servo dos ossos, Taltos, O vampiro Armand, O vampiro Lestat, Violino,Vittorio,ovampiro.