edgar rice burroughs - a volta de tarzan

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EDGAR RICE BURROUGHS

A VOLTA DE

TARZAN

The Return of Tarzan Copyright 2010 Edgar Rice Burroughs Publicado originalmente em 1913 Traduzido por Paulo de Freitas Verso para E-Book sem fins lucrativos Cultura Digital1

NDICE PREFCIO............................................................................................................ 3 CAPTULO 1: A bordo do transatlntico .............................................................. 4 CAPTULO 2: Elos de dio................................................................................. 13 CAPTULO 3: O que aconteceu na rua Maule ..................................................... 22 CAPTULO 4: A condessa explica ....................................................................... 30 CAPTULO 5: O plano que fracassa .................................................................... 40 CAPTULO 6: Um duelo ..................................................................................... 49 CAPTULO 7: A bailarina de Sidi Aissa ............................................................... 58 CAPTULO 8: A luta no deserto.......................................................................... 67 CAPTULO 9: Numa El Adrea............................................................................ 76 CAPTULO 10: Atravs do vale das sombras ...................................................... 86 CAPTULO 11: John Caldwell, Londres .............................................................. 95 CAPTULO 12: Navios que passam................................................................... 104 CAPTULO 13: O naufrgio do Lady Alice ....................................................... 114 CAPTULO 14: Volta selva ............................................................................. 127 CAPTULO 15: De macaco a selvagem ............................................................. 137 CAPTULO 16: Os ladres de marfim ............................................................... 147 CAPTULO 17: O chefe branco dos Waziris ..................................................... 156 CAPTULO 18: A loteria da morte .................................................................... 166 CAPTULO 19: A cidade de ouro ...................................................................... 177 CAPTULO 20: La............................................................................................. 186 CAPTULO 21: Os nufragos............................................................................ 195 CAPTULO 22: O tesouro de Opar ................................................................... 205 CAPTULO 23: Cinqenta homens assustadores ............................................... 215 CAPTULO 24: De como Tarzan volta a Opar.................................................. 225 CAPTULO 25: Atravs da floresta primitiva..................................................... 235 CAPTULO 26: A despedida do filho da selva ................................................... 246 SRIE TARZAN............................................................................................... 252

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PREFCIOSegundo Edgar Rice Burroughs, a inspirao para criar Tarzan surgiu em um sonho que teve, assim no livro Tarzan dos Macacos ele tentou criar um heri diferente e integrado natureza. Nos livros seguintes, procurou dar-lhe uma formao inglesa, enquadrando o homem selvagem dentro do aristocrata ingls. No entanto, esta abordagem contraditria no durou muito e pouco tempo depois, ele voltaria a ser o Tarzan do incio. Assim Burroughs fez dele o homem que rompe os laos com a civilizao para se consagrar vida natural. Por isso mesmo Tarzan um heri que fez enorme sucesso em uma das pocas mais difceis do sculo 20, em 1929 em plena depresso econmica americana. Agora, no sculo 21, em um perodo onde a tecnologia proporciona todos os confortos possveis ao ser humano e a vida se torna cada vez mais artificial. Vemos que este tambm o perodo em que mais se pratica campismo e turismo ecolgico, sem contar as legies que se refugiam durante os fins de semana em stios e fazendas. Ser este um sinal de que o mundo tecnolgico em que vivemos, em casa, na escola, no emprego esta provocando uma intoxicao que leva o homem a tentar reencontrar sua verdadeira essncia? Para as pessoas comuns, passar um tempo em contato com a natureza hoje soa como uma libertao. E Tarzan um smbolo desta liberdade, pois ele o homem que tendo sido criado na selva, conhece a civilizao e assim compreende que s voltando vida natural poderia encontrar a felicidade. Tarzan assim simboliza todos aqueles que, aprisionados nas cidades, aproveitam todos os momentos para se libertarem. E assim como na depresso de 1929, novamente traz a mensagem de que viver bem no viver opulentamente, mas viver de acordo consigo prprio. Nossa inteno com esta srie de e-books, resgatar esta obra esquecida, trazendo para as novas geraes o fascnio das aventuras do homem macaco, e quem sabe incentivando as editoras nacionais a relanarem estes livros fantsticos. Boa leitura!

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CAPTULO 1: A bordo do transatlntico- Magnifique! - exclamou a condessa de Coude, a meia voz. - Como? - perguntou o conde, voltando-se para a sua jovem mulher. - O que magnfico? E o conde olhou em torno, procurando a causa da admirao dela. - Ah! Nada, querido... - respondeu a condessa, corando ligeiramente. Estava recordando com admirao, esses esplndidos arranha-cus, como chamam em Nova Iorque... E a bela condessa instalou-se mais confortavelmente na sua cadeira de convs, retomando a revista que o tal nada a fizera deixar cair no regao. O conde remergulhou no seu livro, no sem um certo espanto de que trs dias depois de haverem sado de Nova Iorque, a sua linda condessa considerasse magnficos os mesmos edifcios que na semana anterior classificava de horrveis. Acabou por pousar o livro, dizendo: - Isto muito enfadonho, Olga: Creio que vou procurar outros passageiros to aborrecidos como eu, para um jogo de cartas. - Isso muito pouco galante de sua parte, senhor meu marido... respondeu ela, sorrindo - mas estou tambm to aborrecida que posso compreend-lo. V jogar essas inspidas partidas, se quiser... Quando o conde partiu, ela voltou a olhar, discretamente, para o vulto de um jovem alto, estendido preguiosamente numa cadeira no muito distante. - Magnifique! - murmurou de novo. A condessa Olga de Coude tinha vinte anos, e o marido quarenta. Era uma esposa fiel e dedicada, mas como no tivera nada a ver com a escolha do marido, nada de estranho havia em que no estivesse positivamente apaixonada por aquele que o destino, e o aristocrata russo que era seu pai, haviam escolhido para ela. No entanto, apenas por ter deixado escapar uma breve exclamao admirativa ao ver aquele jovem e belo desconhecido, no podemos deduzir que nos seus

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pensamentos se houvesse insinuado qualquer idia de infidelidade. Apenas admirava, como teria admirado um especialmente belo animal de qualquer espcie. E sem dvida que o jovem era agradvel de ver. Quando o olhar furtivo da condessa analisava o seu perfil, ele levantou-se para se afastar. A condessa de Coude fez sinal a um criado que passava. - Quem esse senhor? - perguntou. - Reservou o camarote em nome de Sr. Tarzan, da frica. - Uma vasta propriedade... - pensou a condessa, sentindo aumentar o seu interesse. Enquanto Tarzan se encaminhava vagarosamente para o salo de fumo, quase se chocou com dois homens que, porta, falavam em voz baixa, excitadamente. No lhes teria dedicado a menor ateno, se um deles no o tivesse olhado de relance, com uma expresso de culpa. Tinham um aspecto que lembrou a Tarzan o dos melodramticos viles que vira nos teatros, em Paris. Ambos eram morenos, de cabelos escuros, e as suas atitudes acentuavam a semelhana. Tarzan entrou no salo de fumo e procurou uma cadeira um tanto afastada das outras pessoas que ali se encontravam. No se sentia disposio para conversar, e enquanto bebia a pequenos sorvos o seu absinto, deixava vaguear o pensamento, com tristeza, pelas semanas anteriores. Por vrias vezes havia refletido sobre se teria agido bem ao renunciar aos seus direitos de nascimento, a favor de um homem a quem nada devia. Decerto simpatizava com Clayton, mas a questo no era essa. No fora por causa de William Cecil Clayton, Lorde Greystoke, que negara a sua verdadeira origem... Havia sido por causa da mulher a quem ambos amavam e que um estranho capricho da sorte entregara a Clayton e no a ele... O fato de ela o amar tornava a situao duplamente difcil de suportar e no entanto Tarzan sabia que nunca poderia fazer menos do que fizera naquela noite, na pequena estao de caminho de ferro dos distantes bosques de Wisconsin. Para ele, a felicidade de Jane estava acima de tudo, e a sua breve experincia com a

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civilizao e com os homens civilizados, ensinara-lhe que sem dinheiro e posio... a vida da maioria deles era insuportvel. Jane Porter nascera para ter ambas as coisas, e se Tarzan privasse dela o seu futuro marido, sem dvida a condenaria a uma vida de misria e de angstia. A idia de que Jane repeliria Clayton no caso de ele perder o ttulo e fortuna, nem sequer ocorreu a Tarzan - pois atribua aos outros, a mesma honesta lealdade que era uma qualidade nata nele prprio. E, neste caso, no se enganava. Se alguma coisa pudesse tornar ainda mais forte a promessa de Jane a Clayton, seria seguramente o fato de tal desventura cair sobre ele. Os pensamentos de Tarzan deslizaram do passado para o futuro... Tentou encarar com uma sensao de prazer o seu regresso selva onde nascera e onde tinha vivido, a selva feroz e cruel, na qual passara vinte dos seus vinte e dois anos de vida. Mas quem, ou o qu, nos milhares de existncias multiformes que se agitavam na floresta, lhe daria as boas-vindas? Nem uma sequer. Apenas Tantor, o elefante, podia ser considerado um amigo. Os outros o perseguiriam ou fugiriam dele, como sempre havia sido. Nem mesmo os macacos da sua tribo lhe dariam uma acolhida amigvel. Se a civilizao nada mais tivesse dado a Tarzan, de certa maneira lhe dera o desejo da companhia, de criaturas da sua espcie, o desejo de amizade e de entendimento fraternal. E, nas mesmas propores, lhe tornara odiosa qualquer outra espcie de vida. Era-lhe difcil conceber o mundo sem um amigo ou sem uma criatura viva com quem pudesse falar as lnguas novas que apreciava tanto. E, assim, Tarzan encarava sem prazer o futuro que traara para si mesmo. Sentado, tendo entre os dedos um cigarro de onde subia um tnue fio de fumo azul, os seus olhos pousaram-se num espelho que refletia uma das mesas, onde quatro homens jogavam as cartas. Nesse momento um dos homens ergueu-se, para se afastar e outro homem aproximou-se e, cortesmente, ofereceu-se para ocupar o lugar vago, para que o jogo no se interrompesse. Era o mais baixo dos dois que Tarzan vira porta, falando em segredo e foi isso o que despertou o interesse dele.

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Enquanto a sua imaginao tentava percorrer os caminhos do futuro, ia observando, no espelho, os quatro indivduos sentados atrs. Alm daquele que se havia sentado em ltimo lugar, Tarzan conhecia apenas o nome de um dos outros jogadores, exatamente o que estava do lado oposto. Era o conde Raul de Coude. Um criado solcito indicara-o a Tarzan como um dos passageiros importantes, algum que pertencia ao grupo familiar do ministro da guerra francs. De repente, a ateno de Tarzan fixou-se no espelho. O outro homem que Tarzan vira na porta, se aproximara tambm e estava de p atrs do conde. Tarzan viu-o olhar furtivamente em volta sem, no entanto reparar no espelho. Discretamente, o homem tirou qualquer coisa do bolso, tapando-a com a mo. Curvou-se de leve, e Tarzan viu-o meter num dos bolsos do conde o que tirara do seu prprio bolso. Depois disto o homem continuou onde estava, observando as cartas do conde de Coude. Tarzan sentia-se intrigado, mas agora os seus olhos seguiam tudo com uma ateno concentrada. O jogo continuou, durante alguns minutos, at que o conde ganhou uma soma relativamente considervel, perdida pelo ltimo jogador que se sentara. Tarzan viu que o homem colocado atrs do conde fazia um leve sinal ao outro e no mesmo instante este levantou-se e apontou um dedo para o conde. - Se eu soubesse que este senhor era um trapaceiro profissional, no me teria apressado a tomar parte no jogo... - disse ele. Instantaneamente, o conde e os outros dois jogadores levantaram-se. De Coude empalideceu. - Que significa isso, sir? - exclamou. - Sabe com quem est falando? - Sei que falo, pela ltima vez, a algum que trapaceia no jogo! - replicou o outro. O conde debruou-se e bateu na cara do homem, com a mo aberta. Os outros jogadores apressaram-se a separ-los. Um destes exclamou: - Trata-se de um engano, senhores! Este senhor o conde de Coude! - Se estou enganado apresentarei desculpas... Mas antes disso exijo que o

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conde explique a presena de cartas extras que o vi meter no bolso! Nesse momento o homem que Tarzan vira meter qualquer coisa no bolso do conde, encaminhou-se para a porta, mas verificou, contrariado, que um desconhecido, alto e de olhos cinzentos, lhe cortava o caminho. - Com licena! - disse, bruscamente, tentando passar por um dos lados. - Espere... - respondeu Tarzan. - Mas porqu, senhor? - quase gritou o outro, agressivo. - Afaste-se! Quero passar! - Espere... - repetiu Tarzan. - H aqui um assunto que o senhor pode esclarecer! O homem, corpulento, teve um impulso de fria e, praguejando entre dentes, tentou afastar Tarzan. Este sorriu, agarrou o pela gola e levou-o at perto da mesa, sem se importar com as inteis tentativas que fazia para se libertar. Foi a primeira experincia de Nikolas Rokoff com os msculos que haviam derrotado vrias vezes Numa, o leo, e Terkoz, o gorila. O sujeito que acusara o conde, e os dois outros jogadores, olhavam para de Coude, numa atitude de expectativa. - Este homem doido! - bradou o conde. - Peo que um dos senhores me reviste. - A acusao ridcula... - comentou uma voz. - Basta que algum meta a mo no bolso lateral do casaco do conde, para verificar que a acusao sria... - insistiu o acusador e, vendo que os outros hesitavam, acrescentou: - Eu prprio o revistarei, se ningum mais o faz! - No! - retorquiu o conde. - S a um cavalheiro consentirei que me reviste! - desnecessrio revistar o conde... As cartas esto no bolso dele. Eu vi quando as colocaram l. Todos se voltaram, surpreendidos, para quem tinha falado. Era um jovem alto, de aparncia atltica, que se aproximava da mesa

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trazendo, seguro pela gola, um homem que se debatia inutilmente. - Isto uma conspirao... - disse de Coude, colrico. - No tenho quaisquer cartas e... - meteu a mo no bolso e ficou subitamente lvido, enquanto, sob os olhares espantados de todos os presentes, a retirava trazendo trs cartas. O conde de Coude ficou olhando para as cartas, e agora a sua face congestionava-se. Nos circunstantes havia expresses de piedade e de desprezo. Supunham estar assistindo morte da honra de um homem. - de fato uma conspirao, senhor... - interveio o jovem alto, de olhos cinzentos. E continuou: - Meus senhores, o Sr. conde de Coude no sabia que tinha essas cartas no bolso. Foram colocadas ali sem o seu conhecimento, enquanto estava jogando. Do ponto onde eu estava, nessa cadeira, vi tudo atravs do espelho. Quem meteu as cartas no bolso do Sr. Conde foi este homem que eu agarrei quando tentava sair da sala. O olhar do conde passou de Tarzan para o sujeito ingls, que se debatia. - Mon Dieu! - exclamou ele. - Voc, Nikolas? - voltou-se ento para o outro e olhou-o atentamente, acrescentando: - E voc, Paulvitch... No o reconheci, sem a barba... Compreendo agora tudo senhores. - Que faremos com eles, senhor? - perguntou Tarzan. - Entregamo-os ao capito? - No, meu amigo... - respondeu apressadamente o conde. - um assunto pessoal e peo-lhe que o deixe ficar como est. suficiente que eu tenha sido ilibado da acusao. Quanto menos tivermos a ver com esses sujeitos, melhor. Mas, senhor, como poderei eu agradecer-lhe a sua grande bondade? Permita-me que lhe d o meu carto, e se surgir alguma oportunidade em que eu possa ser-lhe til, lembre-se de que estarei incondicionalmente s suas ordens. Tarzan largara Rokoff, e este, em companhia do seu cmplice Paulvitch, apressara-se a sair do salo de fumo - no sem antes ter se voltado para Tarzan com um olhar de dio, dizendo entre dentes:

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- Ter ocasio de lamentar a sua interferncia nos assuntos alheios... Tarzan limitara-se a sorrir. Depois, com um cumprimento, entregou o seu carto ao conde, que leu: Jean C. Tarzan. - Sr. Tarzan... - disse o conde - talvez venha a lamentar o favor que me fez... porque atraiu a inimizade de dois dos mais rematados patifes de toda a Europa... Evite-os, de todas as maneiras. - J tive inimigos muito mais perigosos, meu caro conde... - respondeu Tarzan, com o seu calmo sorriso E, no entanto continuo vivo e despreocupado. Creio que nenhum desses dois encontrar maneira de me fazer mal. - Esperemos que assim seja... - respondeu o Conde, gravemente. - Mas creio que no perder nada em ficar alerta e por saber que fez hoje um inimigo, pelo menos, que nunca esquece e nunca perdoa, um homem cuja mente est sempre imaginando atrocidades contra os que o humilharam ou ofenderam. Dizer que Nikolas Rokoff diablico, seria avali-lo modestamente. Nessa noite, quando Tarzan entrou no seu camarote, viu no cho, dobrado, um papel que tinha evidentemente sido introduzido sob a porta. Leu: Sr. Tarzan Suponho que no compreendeu a gravidade da sua ofensa, pois do contrrio no teria feito o que fez. Estou disposto a acreditar que agiu por ignorncia e em inteno. Por esta razo receberei as suas desculpas e a sua garantia de no voltar a imiscuir-se em assuntos que no lhe dizem respeito. Deixarei morrer o assunto. De outro modo... Mas tenho certeza de que entender a sensatez de fazer o que digo. Respeitosamente Nikolas Rokoff Tarzan sorriu sombriamente, mas logo, esquecendo o caso, se preparou para dormir. Num camarote prximo, a condessa de Coude falava com o seu marido. - Porqu um ar to grave, Raul? - perguntou. Esteve sombrio durante toda a noite. O que o preocupa?

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- Olga... sabe que Nikolas est a bordo? - Nikolas! - exclamou ela. - Mas impossvel! Nikolas est preso, na Alemanha. - Tambm acreditava nisso at encontr-lo, hoje e esse outro patife, Paulvitch. Olga, no posso suportar por muito mais tempo esta perseguio. Nem mesmo por sua causa. Mais cedo ou mais tarde, os entregarei s autoridades. Estou mesmo pensando em contar tudo ao capito, antes de chegarmos. Num Transatlntico, seria fcil acabar de vez com essa caa... - Oh, no, Raul! - exclamou a condessa, ajoelhando diante do marido que se deixara cair sobre um div. - No faa isso! Lembre-se da sua promessa! Digame que no far isso! Nem sequer o ameace... O conde tomou as mos da mulher entre as suas, fitando-a por algum tempo antes de falar. Parecia procurar nos belos olhos a verdadeira razo que a levava a proteger o miservel. - Seja como quer, Olga... - disse ele por fim. - Mas no consigo compreender. Esse homem anulou qualquer direito sua estima, sua lealdade e ao seu respeito. uma ameaa para a sua vida e honra... E para a vida e honra do seu marido. Espero que no venha a arrepender-se de defend-lo. - Eu no o defendo, Raul... - retorquiu ela, agitada. O meu dio por ele no inferior ao seu, esse homem do meu sangue... - Gostaria de ver a consistncia do sangue dele... disse de Coude, sombriamente. - Esses dois miserveis tentaram promover a minha desonra... - e o conde contou o que se passara no salo de fumo. - Sem a interveno desse estranho, teriam conseguido... Quem aceitaria a minha palavra contra a prova evidente dessas malditas cartas metidas no meu bolso? Eu prprio comeava a sentir-me aturdido quando esse Sr. Tarzan arrastou o precioso Nikolas e explicou a infame conspirao. - O Sr. Tarzan? - perguntou a condessa, com evidente surpresa.

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- Sim. Conhece-o, Olga? - Eu o vi. Um dos criados o indicou. - No sabia que ele era uma celebridade... - disse o conde. Olga de Coude desviou o assunto. Compreendeu bruscamente que lhe seria difcil explicar por que razo o criado lhe falara no belo Sr. Tarzan. Talvez corasse de leve, pois o conde a olhava ligeiramente intrigado... Uma conscincia culpada torna-se sempre suspeita...

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CAPTULO 2: Elos de dioAt o fim da tarde seguinte, Tarzan no voltou a ver os seus companheiros de viagem, em cujos negcios se envolvera por causa do seu esprito de lealdade. E s ento se encontrou inesperadamente com Rokoff e Paulvitch, num momento em que eles, decerto, desejariam no v-lo. Estavam ambos no convs, num ponto acidentalmente deserto, e quando Tarzan se aproximou discutiam acaloradamente com uma mulher. Tarzan notou que a mulher estava ricamente vestida, e que o seu vulto esbelto e bem formado indicava juventude. Mas no podia distinguir-lhe as feies, por causa do espesso vu que ela usava. Os homens estavam um de cada lado dela, de costas voltadas para Tarzan. No perceberam da presena dele. Rokoff parecia ameaar, e a mulher implorava. Mas falavam numa lngua estranha, que Tarzan no compreendia, e s a atitude dela traduzia o seu medo. Quanto a Rokoff, parecia to perto de exercer uma ao violenta... que Tarzan parou, pressentindo perigo. Quase no mesmo instante Rokoff agarrou o pulso da mulher e torceu-o brutalmente, como se quisesse conseguir qualquer coisa por meio de tortura fsica. O que teria acontecido se Rokoff pudesse prosseguir, no sai do domnio das conjecturas. Imediatamente dedos de ao seguraram o bandido por um ombro, obrigando-o a voltar-se e ver os olhos cinzentos e frios do homem que na vspera o havia humilhado. - Maldio! - exclamou o furioso Rokoff. - Que quer voc? to doido para voltar a insultar Nikolas Rokoff? - Esta a minha resposta sua nota... - disse Tarzan, entre dentes, empurrando-o com tal fora que Rokoff foi se chocar a dez passos de distncia, com a amurada. - Pelos infernos! - ganiu Rokoff. - Vai morrer por isto! Levantando-se, precipitou-se sobre Tarzan, ao mesmo tempo que tentava empunhar um revlver. A jovem soltou um grito: - Nikolas No! No faa isso! Depressa, senhor, fuja ou ele o matar!

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Mas Tarzan, em vez de fugir, avanou ao encontro do outro, dizendo friamente: - No seja mais imbecil do que j ... Rokoff, doido de raiva, conseguiu finalmente empunhar a arma. Parando, apontou para o peito de Tarzan e apertou o gatilho, mas o co caiu sobre uma cpsula vazia. No mesmo instante a mo de Tarzan estendera-se, com a rapidez de um raio e um violento puxo arrancou a arma da mo de Rokoff e a fez cair no mar. Por instantes os dois homens ficaram diante um do outro... mas Rokoff recomps-se e foi o primeiro a falar: - a segunda vez que se mete em assuntos que no lhe dizem respeito... E a segunda vez que humilha Nikolas Rokoff! Da primeira supus que agisse por ignorncia, mas agora no... No sabe quem eu sou, mas garanto-lhe que vir a ter razes para se lembrar de mim! - Sei que um miservel e um covarde... - respondeu Tarzan, imperturbvel. Isso me basta! Voltou-se para onde tinha ficado a jovem, mas esta havia desaparecido. Ento, sem um s olhar para Rokoff ou para o seu companheiro, afastou-se tranqilamente. Tarzan no podia deixar de imaginar qual seria a inteno dos dois homens. O vulto de mulher parecera-lhe vagamente familiar, mas como no tinha podido ver-lhe o rosto, no tinha certeza de t-la encontrado antes. S notara um anel de feitio especial, na mo que Rokoff tinha agarrado, e pensou que observaria os dedos das passageiras que encontrasse, para descobrir a identidade da dama a quem Rokoff havia ameaado, e saber se o patife teria continuado a incomod-la. Tarzan foi sentar-se na sua cadeira de convs, meditando sobre a crueldade e o egosmo das criaturas humanas que havia encontrado desde que, quatro anos antes, na selva, avistara pela primeira vez algum semelhante a ele prprio - o negro Kulonga cuja lana pusera fim vida de Kala, a macaca, a nica me que Tarzan conhecera. Recordou-se do assassinato de King, pelo cara-de-rato que se chamava

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Snipes, e o abandono do professor Porter e do seu grupo pelos amotinados do Arrow. Recordou a crueldade dos guerreiros e das mulheres negras de Mbonga, em relao aos prisioneiros. Evocou as pequenas intrigas dos civis e militares que encontrara na Costa Oeste e que lhe tinham dado uma primeira perspectiva sobre a vida. - Meu Deus... - murmurou. - So todos semelhantes... Assassinos, mentirosos, trapaceiros... Lutando por uma coisa que as feras desprezariam - o ouro para adquirirem os efeminados prazeres das criaturas fracas. E embora escravos dos tolos hbitos de uma vida absurda, julgam-se os senhores de todas as criaturas e os nicos a gozarem os verdadeiros prazeres da existncia. Na selva, nenhum animal ficaria idiotamente sentado enquanto outro levasse a sua companheira. um mundo estpido, tolo, e fiz mal em renunciar felicidade e liberdade da selva, para fazer parte dele... Nesse momento Tarzan sentiu que algum o fitava, atrs dele, e o instinto poderoso do animal da selva fez estalar o tnue verniz da civilizao. Voltou-se com tal rapidez que os olhos da jovem que o fitava no tiveram tempo para se desviar dos olhos cinzentos e penetrantes. Tarzan notou o rubor que cobrira bruscamente a bonita face. Sorriu consigo mesmo ao verificar o resultado da sua brusca ao, pois no desviara os seus olhos ao fitar os dela. Era muito jovem e bonita. Havia nela qualquer coisa de familiar que fez com que Tarzan pensasse onde a teria visto antes. Voltou sua posio anterior e sentiu que a jovem se levantava e se afastava. Quando ela passou, olhou-a novamente, curioso. A sua curiosidade no foi inteiramente perdida, Pois, enquanto se afastava, a jovem levantou uma das mos para compor o cabelo na nuca - um gesto tipicamente feminino que trai a impresso de que algum observa admirativamente e Tarzan viu o estranho anel que notara pouco antes na vtima de Rokoff. Portanto ela era aquela mulher bela e jovem, a que Rokoff perseguia. Tarzan pensou vagamente em quem seria ela, e que relaes poderia ter com o russo barbudo e brutal.

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Na noite seguinte, depois de jantar, Tarzan voltou a sentar-se no convs e deixou-se ficar at depois de escurecer, em conversa com o imediato do navio. Como os seus deveres chamavam o oficial, Tarzan encostou-se amurada, olhando preguiosamente os reflexos do luar sobre as ondas. Estava meio escondido pelos turcos de um escaler, de modo que os dois homens que se aproximavam ao longo do convs no o viram - mas Tarzan ouviu o suficiente da conversa entre ambos, para segui-los e tentar ver o que eles iam fazer. Tinha reconhecido a voz de Rokoff, e que o companheiro deste era Paulvitch. Tarzan ouvira apenas algumas palavras: E se ela gritar, bata at que... Mas estas palavras haviam bastado para que ele no perdesse os dois homens de vista. Viu-os aproximarem-se da entrada do salo de fumo, mas pararem apenas um momento, como para se assegurarem da presena de algum, ali. Depois encaminharam-se diretamente para os corredores dos camarotes de primeira classe. Tarzan teve dificuldade em segui-los sem ser visto, pois os corredores estavam desertos, mas conseguiu. Quando eles pararam diante de uma das portas, Tarzan escondeu-se na sombra de um corredor lateral, a curta distncia. Bateram porta e uma voz de mulher perguntou: - Quem ? - Sou eu, Olga... Nikolas... - disse o barbudo russo, na sua voz gutural. Posso entrar? - Por que no para de me perseguir, Nikolas? - respondeu a voz de mulher. - Nunca te fiz mal... - Vamos, vamos, Olga. - disse o russo, persuasivo. Quero apenas falar contigo, no farei nada... No posso conversar atravs da porta. Abra... Nem sequer entrarei... Tarzan ouviu correr o ferrolho interior... e disps-se a intervir se fosse necessrio. No esquecera as palavras que tinha ouvido de Nikolas, momentos antes. Rokoff parou no limiar da porta, enquanto Paulvitch se escondia na parede, perto dele. Tarzan ouviu o russo falar em voz baixa com a mulher, e logo a voz

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dela, num tom normal, mas bastante claro. - No, Nikolas... - dizia ela. - Se quiser, mas nunca aceitarei as suas exigncias. V embora, por favor! No tem qualquer direito em estar aqui, e prometeu no entrar... - Muito bem, Olga... No entrarei, mas antes de eu ter acabado com isto voc vai desejar mil vezes no ter recusado o simples favor que te peo. No fim vencerei, seja como for, portanto poderia poupar-me incmodos e desgraas para voc e para o seu... - Nunca! Nikolas... - interrompeu-o a mulher. Tarzan viu Rokoff voltar-se e fazer um sinal a Paulvitch. Este ento precipitou-se para a porta que o outro mantinha aberta, e entrou de roldo. Nikolas recuou apressadamente e a porta fechou-se. Tarzan ouviu de novo o rudo do ferrolho interior, decerto fechado por Paulvitch. Rokoff ficou do lado de fora, encostado ao batente, escuta. Um sorriso crispava-lhe os lbios que a barba quase cobria. Tarzan ouviu a voz da mulher, ordenando ao homem que sasse: - Chamarei o meu marido, e ele no ter piedade! Atravs do batente veio a voz de Paulvitch, sarcstico.. - O comissrio ir chamar o seu marido... De certo, o comissrio j sabe que voc recebe um homem no seu camarote, na ausncia do conde com a porta fechada. - O meu marido saber quem ! - Decerto que sim... Mas o comissrio no o saber... Nem ele nem os jornalistas que de certa misteriosa maneira sero informados assim que desembarcarmos. Consideraro que se trata de uma boa histria, e o mesmo pensaro todos os seus amigos quando lerem os jornais no caf da manh em... Vejamos... Hoje tera-feira... Sim, quando lerem a notcia na sexta-feira pela manh... E o interesse no ser diminudo quando souberem que o homem, a quem a condessa de Coude dedica as suas atenes, um criado russo... De fato o criado de seu prprio irmo...

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- Alexis Paulvitch... - redargiu a voz da mulher, friamente e sem medo Voc um covarde! - quando eu lhe disser um nome ao ouvido... Pensar antes de fazer exigncias e ameaas... E sair daqui para no voltar a molestar-me! Houve um momento de silncio, durante o qual imaginou a jovem murmurando no ouvido do patife o nome que anunciara. Um instante apenas... Depois uma praga abafada, um rumor de ps, um grito de mulher e novamente silncio. Mas, mal soara o grito, Tarzan tinha saltado do seu esconderijo. Rokoff lanou-se em corrida, mas o filho da selva agarrou-o pelo pescoo e puxou-o para trs. Nenhum deles falou. Ambos pensavam que estava sendo cometido um crime dentro daquele camarote... Tarzan supunha que Rokoff no teria desejado que o seu cmplice fosse to longe... Adivinhava que as intenes do miservel eram mais profundas e ainda mais sinistras do que um crime brutal cometido a sangue-frio. Sem hesitao, Tarzan apoiou o ombro porta e a fechadura saltou. O homem da selva entrou de rompante no camarote, arrastando Rokoff... E viu a jovem derrubada sobre a cama enquanto Paulvitch lhe apertava o pescoo muito branco... Sem se importar com os esforos que ela fazia para se defender. O rudo fez com que Paulvitch deixasse a sua vtima e saltasse para o cho, olhando ameaadoramente para Tarzan. A jovem levantou-se tambm ofegante, muito plida... Era a mesma que Tarzan surpreendera olhando para ele no convs, horas antes. - Que significa isto? - exclamou Tarzan olhando para Rokoff, o instigador de tudo aquilo. O homem encolheu-se, rosnando, e Tarzan continuou dirigindo-se agora jovem: - Toque a campainha., vamos chamar um dos oficiais de bordo. Isto j foi demasiado longe. - No, no... - exclamou ela, endireitando-se imediatamente. - Tenho... Tenho certeza de que este homem no queria realmente fazer-me mal. Eu sei e... E creio que ele perdeu a cabea. Alm disso no desejo que isto v adiante...

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Havia um tal tom de splica na voz dela que Tarzan se sentiu impedido de fazer o que tencionava, agora tendo a sensao ntida de que o assunto no ia ser levado ao conhecimento das autoridades. - No quer que eu faa nada, ento? - perguntou ele. - Nada, por favor... - Aceita que estes dois patifes continuem a persegui-la? Ela parecia no atinar com a resposta a dar... Estava flagrantemente perturbada e angustiada. Tarzan notou um malvolo sorriso de triunfo na face de Rokoff. Era evidente que a jovem tinha medo daqueles dois homens e no ousava falar diante deles. - Ento... - disse Tarzan - Agirei por minha prpria iniciativa... - voltouse para Rokoff e continuou: - A voc e ao seu cmplice direi que desde este momento at ao fim da viagem no os perderei de vista. Se souber que tentam molestar esta senhora, mesmo remotamente, eu lhes pedirei contas imediatamente... E garanto-lhes que ser uma desagradvel experincia para ambos. Agora saiam daqui! Agarrou Rokoff e Paulvitch, pelo pescoo, e empurrou-os para o corredor... Acrescentando o impulso, desferiu-lhes dois tremendos pontaps. E ento voltou-se para a jovem, que o olhava com profundo espanto. - Quanto a si, senhora, me far um grande favor se me informar, caso estes patifes voltarem a incomod-la. - Ah, monsieur... - disse ela - espero que no venha a sofrer as conseqncias da sua boa ao. Fez um inimigo ardiloso e muito perigoso, que no hesitar diante do que for para satisfazer o seu dio. Dever ter muito cuidado, realmente, senhor. - Desculpe-me... Meu nome Tarzan... - Sr. Tarzan..-. E por eu no ter querido que comunicasse o que se passou s autoridades de bordo... No pense que estou menos grata pela sua corajosa proteo. Boa-noite, Sr. Tarzan... Nunca esquecerei a dvida que contra

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para consigo... E, com um lindo sorriso, a jovem cumprimentou Tarzan, que se despediu encaminhando-se para o convs. Intrigava-o profundamente o fato de existirem a bordo duas pessoas - aquela jovem e o conde Coude - que suportavam ofensas de Rokoff e do seu companheiro e no entanto se recusavam a apresentar queixa contra eles, de maneira a que a justia lhes pedisse contas. Antes de adormecer, nessa noite, pensou muitas vezes na bela jovem em cuja evidentemente complicada teia de vida o destino a enredou. Lembrou-se ento de que nem sequer sabia o nome dela... A aliana, que usava na mo esquerda, provava que era casada. Involuntariamente, ps-se a imaginar sobre quem seria o feliz marido de to bonita criatura. Tarzan no voltou sabendo de qualquer dos personagens do pequeno drama de percebera fugazmente, seno ao fim da tarde do ltimo dia de viagem. Viu a jovem, quando ambos se aproximavam das respectivas cadeiras de convs, vindos de lugares diferentes. Ela cumprimentou-o, com um sorriso, e quase imediatamente falou do que se passara no seu camarote, duas noites antes. Parecia preocupada pela idia de que ele a julgasse em conseqncia das suas aparentes relaes com os dois miserveis. - Confio... - disse ela - Que no ficou com uma idia m a meu respeito, por causa dos acontecimentos de tera-feira. Tenho sofrido muito por causa disso e desde ento a primeira vez que saio do meu camarote. Tenho tido vergonha... concluiu, com simplicidade. - No se julga a gazela pelos lees que a atacam respondeu Tarzan: - Vi esses homens em ao, no salo de fumo, na vspera da noite em que a atacaram. Conhecendo os mtodos deles, estou convencido de que a animosidade que tenham contra algum s pode provar a integridade desse algum. Homens como esses so naturalmente vis, e odeiam o que nobre e bom. - bondade sua pr assim a questo... - Murmurou a jovem, sorrindo. Eu j sabia do que havia acontecido no salo de fumo. Meu marido contou-me e

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falou-me em especial da fora e da coragem do Sr. Tarzan, por quem sente uma profunda gratido... - Seu marido? - Sim, eu sou a condessa de Coude... - Sinto-me amplamente recompensado por saber que pude prestar um servio esposa do conde de Coude. - Por minha parte, senhor, devo-lhe tanto que nunca poderei pagar a minha dvida... A jovem condessa acompanhou estas palavras com um sorriso... Tarzan pensou que qualquer homem faria grandes proezas por essa nica recompensa. No voltou a v-la nesse dia, nem na manh seguinte, durante a agitao do desembarque. Mas recordou-se da expresso dela, quase saudosa, quando tinha falado das sbitas amizades que se fazem durante uma viagem... e que cessam quando a viagem chega ao fim... Possivelmente no voltaria a ver a linda condessa...

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CAPTULO 3: O que aconteceu na rua MauleAo chegar a Paris, Tarzan dirigiu-se diretamente ao apartamento do seu velho amigo DArnot . e o tenente censurou-o abertamente pela sua deciso de renunciar ao ttulo e fortuna que legitimamente lhe pertencia como herdeiro do falecido John Clayton, Lorde Greystoke. - Voc deve estar doido, meu amigo... - declarou DArnot - Para to facilmente abrir mo da sua posio e da sua fortuna, alm da oportunidade de poder provar que nas suas veias corre o sangue das mais nobres casas inglesas - e no o sangue de uma macaca. inacreditvel que tenham podido acreditar em tal coisa, especialmente a senhorita Porter. Eu nunca acreditei, nem mesmo quando nos encontramos na selva da sua frica, e voc comia carne crua, rasgando-a com os dentes, como um animal selvagem, e limpando as mos nas pernas. Mesmo ento sem a mais leve prova em contrrio, eu sabia que ela no podia ser sua me. - Agora, com o dirio em que seu pai contou a terrvel existncia que teve que suportar junto com sua me no isolamento daquela praia, com a narrativa do seu nascimento e, finalmente, com a prova obtida pelas suas impresses digitais, espantoso que queira continuar sendo uma espcie de vagabundo sem fortuna e sem nome. - No preciso de outro nome alm de Tarzan...- respondeu o homem da selva - E no tenciono ser vagabundo sem dinheiro. Na verdade, eu espero que seja o ltimo apelo que fao sua amizade, pedindo-lhe que me arranje um emprego qualquer. - Ah sim! - respondeu DArnot. - Sabe perfeitamente que no me referia a isso. J lhe disse muitas vezes que sou rico bastante para dois, ou para vinte, metade do que eu tenho lhe pertence. Ainda que lhe desse tudo, isso no representaria a dcima parte do valor que atribuo sua amizade, Tarzan. Conseguirei alguma vez pagar-lhe o que fez por mim na frica? No esqueo, meu amigo, que sem a sua ajuda e espantosa coragem eu teria morrido amarrado no

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poste na aldeia de Mbonga, para ser devorado pelos negros. Nem esqueo que lhe devo o milagre de ter me restabelecido das terrveis feridas que me fizeram... Descobri, mais tarde, o que significou para voc estar a meu lado, quando o seu corao o impelia para voltar. E Quando, finalmente, chegamos barraca descobrimos que a senhorita Porter e o seu grupo haviam partido, foi quando compreendi a enormidade do favor que voc havia feito a um desconhecido. No estou tentando pagar-lhe com dinheiro, Tarzan. Acontece apenas que, neste momento, o dinheiro lhe necessrio. Se oferecer-lhe significasse alguma espcie de sacrifcio para mim, seria o mesmo, a minha amizade e a minha admirao lhe pertenceriam sempre. Nisso eu no posso seno obedecer ao que sinto mas do dinheiro posso livremente dispor, e assim farei. - Bem... - riu Tarzan - No vamos discutir a respeito de dinheiro. Tenho de viver, e portanto preciso dele, mas ficaria mais satisfeito tendo alguma coisa para fazer. Voc no tem forma mais convincente de me demonstrar a sua amizade do que arranjando-me trabalho... A inatividade daria cabo de mim em pouco tempo. Quanto aos meus direitos de nascimento, esto em boas mos. Clayton no me roubou fosse o que fosse. Acredita que na verdade Lorde Greystoke e sem dvida ser melhor Lorde, do que um homem que nasceu e foi criado na selva africana. Voc bem sabe que eu sou apenas meio civilizado, mesmo agora. Basta-me um acesso de fria para que todos os instintos do animal selvagem, que realmente sou, faam desaparecer o pouco que tenho de cultura e moderao e, por outro lado, se eu dissesse a verdade, privaria a mulher a quem amo da riqueza e posio que o seu casamento com Clayton lhe garante. No podia fazer tal coisa, no verdade, Paul? O nascimento, quero dizer, as condies do nascimento no tm importncia para mim, criado como fui, no reconheo valor, em homem ou fera, que no lhe pertena intrinsecamente pela sua fora mental ou fsica. Assim, sou to feliz considerando Kala como minha me... como seria tentando imaginar a jovem inglesa que morreu um ano depois de eu nascer. Kala foi sempre boa para mim, sua maneira.

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Quando minha me morreu... era Kala quem me amamentava. Lutou em minha defesa contra todos os outros habitantes da floresta e contra os membros da prpria tribo, com ferocidade de um amor verdadeiramente maternal. - De minha parte, Paul, eu amava-a. S compreendi isso, quando a flecha envenenada de Kulonga a levou. Eu era ainda uma criana, ento e chorei a minha angstia como qualquer criana choraria pela morte de sua me. Para voc, meu amigo, ela teria parecido uma criatura terrivelmente feia, mas para mim era bela, de certo modo o amor transfigura. Assim, sinto-me contente por continuar sendo o filho de Kala, a macaca. - No o admiro menos pela sua lealdade... - respondeu DArnot - mas chegar o momento em que voc ter de reclamar o que lhe pertence. Lembre-se do que lhe digo, e esperemos que ento seja to fcil como seria agora. No se esquea de que o professor Porter e o Sr. Philander so as nicas criaturas vivas com possibilidade de jurar que o pequeno esqueleto, encontrado na barraca, com os de seu pai e sua me, era o de uma cria de macaco antropide, e no o do filho de Lorde e lady Greystoke. Esse testemunho muito importante. So ambos velhos, podem no viver muito mais tempo. Mais uma coisa... Voc nunca pensou que, se a senhorita Porter conhecesse a verdade, quebraria o seu compromisso com Clayton? Podia facilmente ter o seu ttulo, a sua fortuna e a mulher que ama, Tarzan! Pensou nisso? - Voc no a conhece... - respondeu Tarzan abanando a cabea. - Nada a prenderia mais ao seu compromisso do que qualquer desventura que casse sobre Clayton. um corao leal. Tarzan ocupou as duas semanas seguintes completando o seu breve conhecimento anterior em Paris. Durante o dia percorria bibliotecas e museus. Tornara-se um leitor ecltico, e o mundo de possibilidades que se abria diante dele, neste terreno da cultura, fazia-o pasmar ao pensar nas migalhas de saber humano que um indivduo pode adquirir, mesmo ao cabo de uma vida de estudo e de

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pesquisa. Mas aprendia o que lhe era possvel, durante os dias, e durante as noites procurava descansar e divertir-se. Tambm sob este aspecto Paris era campo frtil. Se fumava demasiados cigarros, e bebia absinto em demasia, era porque aceitava a civilizao tal como a encontrava, e fazia as coisas que via os seus semelhantes civilizados fazerem a. Aquela era uma vida diferente e empolgante e alm disso ele trazia consigo um vazio que sabia nunca mais poder preencher. Assim, procurava no estudo e na dissipao - dois extremos - o esquecimento do passado e do descaso do futuro. Certa noite, estava num music hall, bebendo o seu absinto e admirando a arte de um famoso bailarino russo, quando notou de relance dois olhos malvolos que o fitavam. O homem voltou-se e perdeu-se entre a multido antes que Tarzan pudesse v-lo bem - mas Tarzan ficou com a impresso de que j vira antes aqueles olhos, e de que no era por acaso que os havia encontrado ali. Tinha tido a impresso de estar sendo observado, e por instinto voltara-se rapidamente e surpreendera o homem. Antes de sair do music hall j tinha esquecido o assunto e no notou o vulto que recuou para as sombras de um portal em frente, no momento em que ele saa. Sem que Tarzan o soubesse, fora seguido outras vezes, mas raramente estando s. Naquela noite, porm, DArnot no tinha podido acompanh-lo. Quando seguiu na direo do seu apartamento, que ficava em outro ponto da cidade, o vulto escondido no portal saiu de onde estava e caminhou apressadamente, em frente. Tarzan atravessava freqentemente a Rua Maule, seu trajeto para casa. Era uma rua escura e deserta que de algum modo lhe lembrava a sua selva. A Rua Maule, todavia, era uma daquelas que a polcia aconselhava a evitar depois do escurecer. Nessa noite, Tarzan percorrera cerca de dois quarteires atravs da escurido, ao longo dos velhos edifcios srdidos da Rua Maule, quando ouviu gritos de socorro que pareciam vir do terceiro andar de um prdio em frente. Eram gritos de mulher, no havia desaparecido ainda o eco e Tarzan j subia correndo a escada estreita e sem luz. Ao fundo de um corredor do terceiro andar havia uma

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porta entreaberta de onde veio um novo grito igual aos anteriores. No instante seguinte o filho da selva estava no meio de um quarto escassamente iluminado. Um candeeiro de petrleo, colocado sobre uma velha cmoda, permitia distinguir vagamente uma dzia de vultos repulsivos, dos quais um apenas era mulher... Uma mulher de cerca de trinta anos, que devia ter sido bela, mas cuja face estava fundamente marcada por todos os vcios. Estava encostada a uma parede, com as mos no peito. - Socorro, senhor... - disse ela, num tom estranhamente baixo. - Querem me matar! Tarzan encarou os homens e viu as faces astutas e malvolas de criminosos habituais. Estranhou que nenhum deles fizesse qualquer tentativa para fugir, um movimento furtivo, atrs dele, fez voltar-se e notar de relance duas coisas, um homem saa sorrateiramente e Tarzan reconheceu Rokoff... Mas a segunda coisa era sem dvida digna de mais imediato interesse: um tipo corpulento aproximava-se traioeiramente, brandindo um curto porrete. Quando esse e os outros viram que a surpresa j no era possvel, atacaram bruscamente Tarzan, por todos os lados. Alguns empunhavam facas, outros tinham agarrado cadeiras, e o homem do porrete disps-se a vibrar um golpe que talvez tivesse sido fatal... Se chegasse ao seu destino. Mas o crebro, a agilidade e os msculos que haviam vencido Terkoz e Numa no corao da selva, no eram a presa fcil que os rufies tinham imaginado. Escolhendo o seu mais perigoso adversrio, o homem do porrete, Tarzan saltou sobre ele, evitando a pancada e aplicando, na ponta do queixo do patife, um soco to forte que o prostrou no mesmo instante. Ento o homem da selva voltou-se para os outros, sentindo a alegria da luta e o prazer selvagem da violncia. A ligeira camada de verniz, dos recentes hbitos de civilizao, estalou e caiu... E os rufies encontraram-se fechados num quarto com uma verdadeira fera, cujos msculos de ao a sua mesquinha fora nada podia. Fora do quarto, ao fundo do corredor, Rokoff espiava o resultado da luta, queria ter certeza de que

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Tarzan morreria ali, mas nos seus planos no entrava a idia de tomar parte no assassnio. A mulher continuava no mesmo ponto onde Tarzan a vira entrar, mas a sua expresso modificara-se vrias vezes. falsa crispao de angstia cedera lugar um esgar de maldade e de astcia, para logo se transformar em apavorado espanto. O elegante cavalheiro, que os seus gritos haviam atrado era afinal um gigante furioso e selvagem. - Meu Deus! - gritou a criatura. - uma fera! Tarzan lutava como aprendera a lutar na selva, e os seus dentes cravaram-se ferozmente na garganta de um adversrio. Saltava, voava, parecia estar em toda a parte ao mesmo tempo, com o impulso e a fora de uma pantera, ora um pulso se quebrava sob os seus dedos de ao, ora um ombro estalava quando o osso de um brao saa do seu lugar. Com uivos de pavor, os homens corriam para o corredor escuro, sangrando mas mesmo antes de o primeiro ter fugido Rokoff j compreendera que Tarzan no ia ser o vencido na luta. E assim o russo tinha corrido ao telefone mais prximo, avisando a polcia de que andava um assassino solta no terceiro andar do numero 27 da Rua Maule. Quando os polcias chegaram, encontraram trs homens cados no cho, gemendo, e uma mulher apavorada, estendida sobre uma cama suja e com a cara escondida entre os braos. No meio do quarto, um cavalheiro bem vestido parecia esperar... Neste ltimo ponto os polcias enganavam-se, porque era na verdade uma fera que os fitava com olhos cinzentos e duros, por entre as plpebras semicerradas. Com o cheiro do sangue, todos os vestgios de civilizao haviam desaparecido e naquele momento Tarzan era como um leo encurralado, disposto matar e a morrer. - Que aconteceu aqui... - perguntou um dos policiais. Tarzan explicou, em poucas palavras, mas quando se voltou para a mulher, a fim de que ela confirmasse, pasmou ao ouvi-la gritar: - mentira! Ele entrou no meu quarto quando estava sozinha, e no

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trazia boas intenes. Quando eu o repeli, teria me assassinado se os meus gritos no tivessem atrado estes senhores que estavam passando. um demnio, senhor guarda! Pouco faltou para matar dez homens, com as mos e os dentes. Tarzan ficou to espantado que, por momentos, no soube o que dizer. Os policiais olharam para a mulher, incrdulos porque a conheciam e conheciam os senhores amigos dela. Mas eram policiais e no juzes. Resolveram prender todos os envolvidos, no dia seguinte um juiz distinguiria os culpados e inocentes. No tardaram a compreender, porm, que uma coisa era dizer quele jovem elegante que estava sob priso e outra coisa era prend-lo de fato. - No sou culpado de coisa nenhuma... - explicou Tarzan, ainda dominando-se. - Limitei-me a defender-me. No sei que razo leva essa mulher a dizer o que diz. No pode ser por inimizade, porque nunca a vi antes de entrar neste quarto em conseqncia dos seus gritos. - Vamos, vamos... - disse um dos guardas. - H juzes para ouvirem isso... Adiantou-se e pousou uma das mos sobre um ombro de Tarzan mas no mesmo instante foi atirado, feito num novelo, para um canto do quarto. Os outros tentaram dominar o homem da selva e tiveram uma amostra do que os rufies haviam sofrido pouco antes. To dura e rpida foi a reao de Tarzan que os polcias nem sequer tiveram tempo para empunhar os revlveres. Durante a breve luta Tarzan notara, em frente da janela aberta, um tronco de rvore - ou talvez um poste telegrfico. Quando o ltimo policial caiu, um dos outros conseguiu empunhar a arma e disparar... A bala errou o alvo, e antes que o guarda pudesse disparar segunda vez, Tarzan apagou o candeeiro e deixou o quarto mergulhado em escurido. A ltima coisa que os polcias viram foi um vulto que saltava da janela para o poste colocado beira do passeio. Quando todos conseguiram recompor-se e chegar rua, o jovem bem vestido desaparecera por completo. A mulher e os homens que estavam no quarto no foram conduzidos

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delegacia com qualquer espcie de gentileza. Os polcias sentiam-se furiosos e humilhados... Era muito desagradvel ter de dizer, num relatrio, que um homem sem armas os derrubara, desaparecendo depois. O guarda que havia ficado na rua jurou que no vira ningum sair do prdio, pela janela ou pela porta, e isso ainda complicava mais as coisas, embora os outros no acreditassem nele. De qualquer modo, a mulher e os homens feridos tinham sido apanhados e estavam em maus lenis. Ao saltar para o poste, Tarzan olhara instintivamente para baixo e ao ver o policial resolvera subir em vez de descer. Um salto - fcil para algum treinado percorrendo quilmetros pulando de rvore em rvore - deixou-o num telhado vizinho. Desse telhado passou para outro, trepando ou saltando, at atingir uma ruela transversal... Onde outro poste lhe permitiu alcanar prontamente o cho. Tarzan correu ao longo da ruela, na distncia de trs quarteires, e chegou em uma avenida onde havia um caf aberto toda a noite. Nos lavabos do caf moveu, das mos e da roupa, os vestgios do seu passeio noturno sobre os telhados de Paris. Quando terminou, dez minutos depois, encaminhou-se vagarosamente para o seu apartamento. A poucos metros da porta, quando ia atravessar um boulevard brilhantemente iluminado, parou por instantes junto de um candeeiro pblico, a fim de esperar a passagem de um luxuoso automvel que se aproximava. Foi nesse instante que ouviu o seu nome, pronunciado por uma voz feminina e viu, dentro do carro e fitando-o, os belos olhos sorridentes de Olga de Coude. Cumprimentoua. O carro seguiu... - Rokoff e a condessa de Coude, ambos na mesma noite... - murmurou Tarzan, falando consigo mesmo. - Afinal, Paris no assim to grande...

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CAPTULO 4: A condessa explica- A sua Paris mais perigosa do que a minha selva, Paul... - concluiu Tarzan, na manh seguinte, depois de contar ao amigo as peripcias da noite movimentada. Por que razo me atrairiam ali? Teriam fome? DArnot fingiu horrorizar-se, mas riu francamente ao ouvir a estranha pergunta. - difcil esquecer as reaes prprias da selva e raciocinar maneira das pessoas civilizadas... No assim, amigo? - Civilizada coisa nenhuma... - protestou Tarzan. - Na selva no existem atrocidades cometidas ao acaso, a esmo. A matamos para defender a vida, ou para comer, ou para conquistar uma companheira, ou para proteger as crias, sempre de acordo com as leis da natureza. Mas aqui no... Os seus homens civilizados so mais brutais que os animais. Matam sem razo e, pior do que isso, utilizam um nobre sentimento, o da fraternidade humana, para atrair as vtimas ao seu covil. No consegui compreender que uma mulher pudesse descer to baixo, em depravao moral, a ponto de atrair a uma ratoeira de morte algum que se dispunha a socorr-la. Mas foi assim... A atitude da mulher, depois, e a presena de Rokoff, tornaram possvel encarar o caso sob outro aspecto - Rokoff devia saber que eu passava freqentemente pela Rua Maule. Preparou todos os pormenores da armadilha, mesmo a histria que a mulher deveria contar na hiptese de falhar, o golpe, como aconteceu. Isto perfeitamente claro. - Bem... - respondeu DArnot - Pelo menos o incidente ensinou-lhe o que eu no consegui faz-lo compreender, que a Rua Maule um lugar para evitar depois do anoitecer. - Pelo contrrio... - replicou Tarzan, sorrindo... - Convenceu-me de que a rua mais interessante da sua Paris. No mais perderei a oportunidade de por l passar, visto que encontrei o primeiro divertimento verdadeiro que tive desde que

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vim da frica. - Talvez a Rua Maule lhe d mais do que voc quer, mesmo sem voltar l... - declarou DArnot . - No se esquea que no est ainda livre da polcia. Conheo bastante bem a polcia de Paris, para lhe afirmar que eles no esquecero o que lhes fez. Mais cedo ou mais tarde o apanharo, meu caro Tarzan, e poro o homem da selva atrs das grades. Que lhe parece isto? - Nunca me poro atrs das grades... - respondeu Tarzan, sombriamente. Na voz dele havia qualquer coisa que fez com que DArnot o olhasse atentamente. O que o jovem francs viu na expresso dos olhos cinzentos do amigo, deixou-o apreensivo. Na verdade Tarzan era ainda uma criana crescida, que no reconhecia qualquer coisa que no fosse mais forte do que a sua fora. DArnot compreendeu que era necessrio fazer qualquer coisa para arrumar o caso entre Tarzan e a polcia, antes que se verificasse outro choque. - Voc tem ainda muito que aprender, Tarzan... disse DArnot , gravemente. A lei tem de ser respeitada, quer nos agrade, quer no. Se persistir em desafiar a polcia, resultar em mais complicaes para voc e para os seus amigos. Posso explicar-lhes a situao, e farei isso hoje mesmo, mas preciso que voc obedea lei. Vou falar com o meu velho amigo que pertence polcia, e apuraremos o caso da Rua Maule. Venha. Entraram ambos meia hora depois, no gabinete do oficial amigo de DArnot . O oficial mostrou-se amvel. Lembrava-se de Tarzan, com quem muitas vezes falara meses antes a respeito do assunto das impresses digitais. Quando DArnot concluiu a narrativa dos acontecimentos da noite anterior, o oficial teve um sorriso breve. Apertou um boto sobre a secretria e, enquanto esperava a chegada de um dos seus ajudantes, procurou um papel entre outros que tinha na sua frente. - Joubon... - disse, quando o ajudante chegou. - Chame os agentes que assinaram este relatrio. Diga-lhes que preciso deles sem demora... - voltou-se para

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Tarzan, quando o ajudante saiu, e continuou, com uma gravidade amvel: Cometeu um delito grave, meu caro, e sem a explicao dada pelo nosso comum e bom amigo DArnot, me sentiria inclinado a julg-lo severamente. No entanto vou agir de um modo que no tem precedentes. Mandei chamar os guardas a quem maltratou a noite passada. Ouviro a histria do tenente DArnot e eu deixarei nas mos deles a deciso quanto ao procedimento a seguir. Tem ainda muito que aprender, quanto s formas da vida civilizada. Coisas que lhe parecem estranhas, ou desnecessrias mas ter de aceit-las at poder ajuizar dos motivos que as determinam. Os agentes a quem maltratou ontem, estavam cumprindo o seu dever. No tinham poderes para decidir. Todos os dias esses homens arriscam a vida para proteger a vida e a propriedade alheias. Fariam o mesmo por voc. So homens corajosos e sentem-se humilhados pelo fato de terem sido batidos por um homem s e sem armas. Ser difcil, para eles, esquecer essa humilhao. Tenho certeza de que o senhor um homem de enorme coragem e os homens assim so habitualmente magnnimos. A conversa foi interrompida pela entrada dos quatro agentes. Quando viram Tarzan, nenhum deles escondeu a sua surpresa. - Meus senhores... - disse o oficial - Aqui est o cavalheiro que encontraram a noite passada, na Rua Maule. Veio apresentar-se voluntariamente. Desejo que escutem com ateno o que o tenente DArnot vai contar-lhes sobre uma parte da vida do Sr. Tarzan. Isso explicar a atitude dele, assim o julgo. Tenente, por favor... DArnot falou durante cerca de meia hora, contando aos quatro policiais sobre a vida de Tarzan na selva africana. Explicou-lhes que essa vida significara como treino para combater como uma fera, em defesa prpria. Os guardas, surpreendidos e interessados, compreenderam facilmente que Tarzan agira por instinto e no por inteno malvola, ao atac-los. Simplesmente no os diferenara bastante bem das outras criaturas - pois que na selva no existiam mais do que inimigos.

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- O seu orgulho ficou magoado... - disse DArnot , concluindo - Pelo fato de um s homem os ter vencido. Mas nisso no h vergonha. No sentiriam qualquer humilhao se tivessem sido derrotados por um leo africano, ou por um grande gorila da selva. Pois bem, acontece que enfrentaram algum cujos msculos se opuseram muitas vezes, e sempre vitoriosamente, aos maiores desses terrores do continente negro. No vergonha para ningum ser dominado pela fora sobrehumana de Tarzan dos Macacos. E ento, quando os quatro homens olhavam, hesitantes, para o seu superior e para Tarzan, este teve um gesto que apagou de vez qualquer resto de animosidade. Avanou para eles, de mo estendida. - Lamento o meu erro, senhores... - disse ele, simplesmente. - Sejamos amigos. E esse gesto encerrou o caso - mas Tarzan passou a ser assunto de muitas conversas entre os guardas, e quatro homens corajosos alinharam decididamente no nmero dos seus amigos mais sinceros. Quando voltaram ao apartamento de DArnot , este encontrou uma carta de William Cecil Clayton, com quem mantinha correspondncia desde que o conhecera por ocasio da malfadada expedio em busca de Jane Porter, raptada por Terkoz. Leu-a e comentou apenas, em voz alta: - Eles vo se casar em Londres, dentro de dois meses... Tarzan no precisava que o amigo lhe dissesse quem eram eles. No respondeu, mas ficou calado e pensativo durante o resto do dia, noite foram pera, mas a mente de Tarzan estava ainda ocupada com sombrios pensamentos. Pouca, ou nenhuma, ateno prestou msica e ao que se passava no palco. Pensava constantemente na bela jovem americana que lhe confessara o seu amor e ia casar com outro. Sacudiu a cabea, como para se libertar dos seus pensamentos tristes e no mesmo instante sentiu que algum o fitava. Com o poderoso instinto da sua vida, na selva, voltou-se e olhou. Viu a bela face e o sorriso de Olga de Coude, que

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estava num camarote. No intervalo seguinte foi cumpriment-la. - Tenho desejado tanto v-lo... - disse ela. - Tornou-se obsessiva a idia de que, depois do que fez por meu marido e por mim, nenhuma explicao lhe tivesse sido dada. Deve supor-nos ingratos e decerto pode compreender a razo por que nada fizemos para evitar futuros ataques desses dois homens, contra ns. - Engana-se... - afirmou Tarzan. - Os meus pensamentos a respeito de si e de seu marido no poderiam deixar de ser agradveis. No deve sentir-se na obrigao de me explicar seja o que for. Esses homens voltaram a molest-la? - Nunca deixam de faze-lo... - disse a condessa, com tristeza. - Preciso contar tudo a algum e o senhor, mais do que ningum tem o direito de saber. Permita-me que o faa. Pode ser at vantajoso e, at porque conheo bem Nikolas Rokoff, e posso afirmar-lhe que voltar a ter notcias dele. Nikolas procurar todos os meios para se vingar e o que vou dizer-lhe talvez o ajude a combater qualquer plano dele... No posso falar-lhe aqui, mas amanh, pelas cinco da tarde, estarei em casa para receb-lo. - O tempo vai ser demasiadamente lento, at amanh s cinco da tarde... - respondeu Tarzan, despedindo-se. De um canto da platia, Rokoff e Paulvitch viram Tarzan no camarote da condessa De Coude. Ambos sorriram. s quatro e meia da tarde seguinte, um homem moreno e de barbas bateu porta de servio do palacete dos condes de Coude. O criado que veio abrir apresentou surpresa ao reconhecer o visitante, com o qual travou uma conversa em voz baixa. A princpio o criado mostrou-se renitente ante a proposta que lhe fazia o outro, mas alguma coisa passou das mos do homem barbudo para as dele. Ento o criado conduziu o visitante, ao longo de corredores desviados, at uma alcova oculta por cortinados, contgua ao pequeno salo onde a condessa mandara servir o ch cerca das cinco horas. Meia hora depois Tarzan entrou nessa mesma sala e foi recebido pela bela condessa que lhe estendeu ambas as mos, sorrindo.

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- Estou to contente por ter vindo... - disse ela. - Nada poderia impedir-me de vir... - respondeu Tarzan. Durante momentos falaram da pera e dos assuntos mais em voga na cidade. Disseram do prazer que ambos tinham em renovar um conhecimento iniciado em to estranhas circunstncias e isso levou-os ao assunto que mais os preocupava. - Deve ter feito conjecturas sobre os motivos da estranha perseguio que nos movida por Nikolas Rokoff. simples, no entanto... O conde est ciente de muitos dos mais importantes segredos do Ministrio da Guerra. Por vezes tem em seu poder documentos que algumas potncias estrangeiras fariam tudo para possuir - segredos de Estado, que os governantes dessas potncias desejariam obter custa de crimes ou de coisa pior. - Neste momento o conde tem em seu poder documentos que fariam a fama e a fortuna de qualquer agente russo que pudesse comunic-los ao seu governo. Rokoff e Paulvitch so espies russos e no hesitaro diante seja do que for para se apoderarem do que pretendem. O caso acontecido a bordo do transatlntico - refiro-me ao jogo de cartas - tinha por fim permitir-lhes arrancar, por chantagem, os segredos que procuram... Se tivesse sido demonstrado que meu marido fizera trapaa, a sua carreira ficaria arruinada, e ele teria de deixar o Ministrio alm de que seria repelido da sociedade. Era essa ameaa que os dois esperavam poder usar e o preo de uma declarao, ilibando o conde, seria exatamente a fuga desses segredos. O senhor impediu-os de levarem a cabo o seu intento. Ento planejaram outra maneira de agir na qual o preo seria a minha reputao e no a do conde. Quando Paulvitch entrou no camarote, disse que se eu obtivesse as informaes que eles queriam, tudo terminaria ali. De outro modo o comissrio de bordo seria prevenido por Rokoff de que eu tinha recebido no meu camarote, com a porta fechada, um homem que no era o meu marido. Diria isso a toda a gente, no navio, e ao desembarcar informaria os jornalistas. - No seria horrvel? Mas acontece que eu sei alguma coisa, a respeito de

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Paulvitch, que o levaria ao patbulo, na Rssia, se fosse conhecida pela polcia de So Petersburgo. Ameacei-o com isso e no mesmo instante ele saltou sobre mim e apertou-me a garganta. Sem a sua interveno, me teria assassinado esta a verdade... - Os patifes... - murmurou Tarzan. - So piores do que patifes, meu amigo. So demnios. Receio por voc, visto que atraiu o dio deles. Tem de estar constantemente em guarda... Peo-lhe por mim, porque nunca perdoaria a mim prpria se algum mal lhe acontecesse em conseqncia da sua ajuda. - No os receio... - disse Tarzan. - Sobrevivi a ataques de inimigos muito mais perigosos do que Rokoff e Paulvitch. Mas por que no os denuncia? Tarzan viu que a condessa nada sabia do caso da Rua Maule, e no falou a tal respeito para no aumentar ainda a angstia dela. Mas a pergunta surgiu naturalmente. A condessa hesitou por um instante, antes de responder. - H duas razes... - disse, finalmente. - Uma delas a mesma que impede o conde de fazer isso. A outra, a verdadeira razo pela qual receio denunci-lo, nunca a disse a ningum... Apenas Rokoff e eu a conhecemos. Na verdade espanta-me que... e a condessa interrompeu-se bruscamente, olhando para Tarzan. - Posso saber o que a espanta assim? - sorriu ele. - Espanta-me que queira dizer-lhe o que nunca me atrevi a dizer a meu marido. Mas penso que compreender e me indicar o caminho a seguir... Acredito que no me julgar com excessiva severidade. - Eu seria mau juiz, minha senhora... - respondeu Tarzan - Porque se a soubesse culpada de assassinato, diria que a vtima se consideraria decerto feliz por morrer em suas mos. - Oh, o caso no to grave assim... - protestou a condessa. - Mas

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primeiro deixe-me dizer-lhe a razo que impede o conde de agir contra esses homens. Depois, se tiver coragem lhe direi a razo por que no me atrevo a agir. A primeira razo a de que Nikolas Rokoff meu irmo. Somos ambos russos e Nikolas foi sempre um homem mau, desde que eu me lembro. Era capito do exrcito russo, mas foi expulso... Houve um escndalo, que pouco a pouco se atenuou e meu pai conseguiu, para ele, um lugar nos servios secretos. H muitos crimes, terrveis, que so atribudos a Nikolas, mas ele tem conseguido sempre escapar ao castigo. Ultimamente conseguiu-o fabricando provas de que as suas vtimas eram traidores ao imperador, e a polcia russa, sempre pronta a aceitar tais acusaes seja contra quem for, ilibou-o de culpa. - Mas os crimes, ou as tentativas de crimes feitas por ele, em relao a voc e a seu marido, no anulam quaisquer direitos que os laos de parentesco pudessem garantir-lhe? - perguntou Tarzan. - O fato de ser seu irmo no o impediu de tentar macular a sua honra. No lhe deve qualquer lealdade, minha senhora! - Sim, mas h a outra razo. No lhe devo lealdade por ser meu irmo, mas receio-o em conseqncia de certo episdio da minha vida, que ele conhece. Vou contar-lhe tudo, porque o meu corao exige que lhe conte, mais cedo ou mais tarde. Fui educada num convento e enquanto estava l conheci um homem que supus ser um cavalheiro. Eu nada sabia a respeito dos homens e menos ainda a respeito do amor. - Convenci-me tolamente de que amava esse homem e aps ele insistir muito, consenti em fugirmos juntos para nos casar... Estive na companhia dele durante trs horas, sempre de dia e em lugares pblicos como estaes ferrovirias e um comboio. Quando chegamos ao lugar onde deveramos nos casar, dois policiais agarraram o meu companheiro quando saia do comboio, e o prenderam. Levaram-me tambm, mas quando contei a minha histria deixaramme livre, mandando-me sob vigilncia para o convento de onde havia fugido. O homem a quem eu julgara amar no era na verdade um cavalheiro, mas sim um desertor do exrcito e fugitivo da justia civil. Tinha cadastro em quase todos os

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pases da Europa. O assunto foi abafado pelas superioras do convento, e nem sequer meus pais tiveram conhecimento do que se havia passado. Mas Nikolas conheceu esse homem, mais tarde, e ficou sabendo de toda a histria. Agora ameaa contar tudo ao conde, se eu no fizer o que ele exige de mim... - ainda uma criana pequena, na verdade... - disse Tarzan, rindo. - O que me contou no pode, seja como for, prejudicar a sua reputao e se no fosse de fato uma criana, saberia isso. V ter com seu marido, esta noite, e conte-lhe tudo, como me contou agora. Ou me engano muito ou ele rir dos seus receios e tomar imediatas providncias para meter esse seu precioso irmo na cadeia onde j deveria estar. - S queria ter coragem para isso, mas tenho medo... Durante toda a minha vida receei os homens, meu pai, meu irmo, os professores. Quase todas as minhas amigas receiam os maridos... Porque no devo recear o meu? - No me parece justo que as mulheres tenham medo dos homens... respondeu Tarzan, intrigado. - Conheo melhor os habitantes da selva, e a o contrrio que acontece, exceto entre os negros. Mas, para mim, esses esto muito abaixo das feras, em muitos aspectos. No... No entendo que uma mulher civilizada deva ter medo dos homens, que na verdade foram criados para protegelas. Eu odiaria pensar que uma mulher tivesse medo de mim. - No existe nenhuma mulher que faria isso... - murmurou Olga de Coude, brandamente. - Conheo-o pouco e embora parea tolice dizer isto, o nico homem de quem eu nunca teria medo... O que ainda mais estranho quando se trata de um homem espantosamente forte. Maravilhou-me a facilidade com que enfrentou Nikolas e Paulvitch, naquela noite, no meu camarote. Maravilhou-me realmente... Quando Tarzan saiu, pouco depois, ia um tanto intrigado pela presso da mo da condessa, ao despedir-se e pela firme insistncia com que ela lhe exigira a promessa de a visitar de novo, no dia seguinte. A recordao dos lbios dela, sorrindo, e do olhar velado dos lindos olhos que o haviam fitado docemente, na

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despedida, ficou com ele durante o resto do dia. Olga de Coude era uma linda mulher, e Tarzan dos Macacos um jovem muito solitrio, com um corao magoado e precisado dos carinhos que s uma mulher lhe poderia dar. Quando a condessa voltou para a sala, depois da partida de Tarzan, encontrou-se cara a cara com Nikolas Rokoff. - H quanto tempo ests a? - exclamou ela, recuando. - Desde antes da chegada do teu amante... - respondeu o miservel, sarcstico. - Como se atreve a dizer tal coisa da sua irm? - Exclamou a condessa. - Bem, minha querida Olga... Se no o seu amante, aceite as minhas desculpas mas se realmente no , a culpa no te cabe. Se ele tivesse um pouco do meu conhecimento das mulheres, estaria agora nos seus braos. Mas esse homem um estpido e um tolo. Cada palavra e cada gesto seu, eram um convite aberto, s que ele no teve a clarividncia necessria para compreender. A condessa tapou os ouvidos. - No quero ouvi-lo mais! um homem mau! Apesar do que diz, sabe que sou uma criatura honesta. Mas agora no me ameaar mais, porque vou contar toda a verdade a Raul. Ele compreender e ento ter de ter cuidado contigo, Nikolas! - No lhe dir coisa nenhuma... - retorquiu Rokoff. Agora tenho conhecimento deste caso, com a ajuda de um dos seus criados, no qual confio, nada faltar histria quando os pormenores, devidamente testemunhados, chegarem aos ouvidos do seu marido. O outro caso serviu quando foi necessrio, mas agora tenho um assunto mais claro para trabalhar, Olga. Um verdadeiro caso e voc uma mulher casada... Que vergonha, Olga... - continuou o diablico homem, rindo. E assim a condessa nada contou ao marido, e as coisas ficaram piores do que estavam antes. De um vago receio, a condessa passara para um medo tangvel e talvez a sua prpria conscincia a ajudasse a aumentar as propores desse medo, ampliando-o sem razo...

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CAPTULO 5: O plano que fracassaDurante um ms, Tarzan foi um visitante assduo da bela condessa de Coude. Era freqente encontrar outros membros do escolhido grupo que aparecia tarde, para o ch mas mais freqentemente a condessa arranjava maneira de ficar sozinha com ele. Durante algum tempo ela tinha ficado assustada pelo que Nikolas insinuara. Nunca havia pensado em Tarzan seno como num amigo, mas a sugesto maldosa do irmo levara-a a pensar sobre a estranha fora que parecia atra-la para aquele belo jovem de olhos cinzentos. Todavia no queria am-lo, nem desejava o amor dele. Era muito mais nova do que o marido, e inconscientemente havia desejado a amizade de algum da sua idade. Os vinte anos de uma mulher so por vezes tmidos em confiar-se aos quarenta anos de um homem. Tarzan tinha apenas dois anos a mais do que a condessa, e ela sentia que ele poderia compreend-la. Era um homem decente, honesto e cavalheiresco. No o temia... Sentira, desde a primeira hora, que podia confiar nele. Rokoff observara, distncia e com malvola satisfao, o evoluir da intimidade entre a irm e o belo rapaz. Desde que ouvira Olga dizer a Tarzan que ele, Rokoff, era um espio russo, ao seu dio juntara-se o receio de que Tarzan o denunciasse, agora esperava apenas o momento de poder desferir um dos seus golpes. Queria ver-se definitivamente livre de Tarzan, e ao mesmo tempo vingar-se das humilhaes e derrotas que sofrera. Quanto a Tarzan, estava mais perto de sentir-se satisfeito do que nunca estivera desde que a paz da sua selva fora perturbada pela apario do grupo do Professor Porter. As suas relaes sociais com os amigos de Olga davam-lhe prazer, e a amizade da condessa era-lhe agradvel. Dispersando os seus pensamentos sombrios, era como um blsamo para o seu corao magoado. Por vezes DArnot acompanhava-o nas suas visitas ao palacete dos de

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Coude, pois havia muito tempo que conhecia a condessa e o conde. Ocasionalmente o conde aparecia tambm nessas reunies, mas os mltiplos encargos da sua situao oficial retinham-no com freqncia at bastante tarde. Rokoff espiava Tarzan quase constantemente, esperando a ocasio de v-lo entrar de noite no palcio, mas essa espera foi decepcionante para ele. Em vrias ocasies Tarzan acompanhou a condessa a casa, depois da pera, mas invariavelmente despedia-se porta, com grande desgosto do devotado irmo de Olga. Verificando que lhe era impossvel armar a sua ratoeira por meio de qualquer ao voluntria de Tarzan, Rokoff e Paulvitch combinaram um plano destinado a apanhar o homem da selva numa situao comprometedora... Com o apoio de provas circunstanciais. Durante dias Nikolas leu atentamente os jornais, seguindo os movimentos de Coude e de Tarzan, ao mesmo tempo. E por fim encontrou o que buscava. Um jornal da manh trouxe a notcia de uma reunio de carter poltico que teria lugar na noite seguinte, promovida pelo embaixador alemo. O nome do conde de Coude figurava entre os dos convidados e se comparecesse isso significaria que estaria fora de casa at depois da meia-noite. Na noite do banquete, Paulvitch esperou beira do passeio, diante da residncia do ministro alemo, num ponto de onde podia ver todos os convidados que chegavam. No tardou a ver de Coude descer do seu automvel e ento apressou-se a voltar para onde Rokoff o esperava. Cerca das onze horas, Paulvitch pegou no telefone e ligou para um nmero. - do apartamento do senhor tenente DArnot ? - perguntou o patife, quando obteve a ligao. - Tenho um recado para o Sr. Tarzan, se ele puder ter a bondade de vir ao telefone. Houve um momento de espera. - O Sr. Tarzan? Sim, monsieur... Aqui fala Franois, um criado da senhora condessa de Coude... Possivelmente o Sr. Tarzan lembra-se de mim, o que uma honra... Exatamente, tenho um recado da senhora condessa... Sim, ela pede para visit-la imediatamente... Sim, imediatamente... Est... em dificuldades... No, Sr. Tarzan, no sei de que se trata... Posso dizer senhora condessa que o Sr.

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Tarzan ir? Fico muito grato... Paulvitch desligou e olhou para Rokoff, com um sorriso mau. Este disse: - Ele levar cerca de trinta minutos para chegar l... Se voc chegar a casa do ministro alemo dentro de quinze minutos, de Coude poder estar em sua casa em quarenta e cinco minutos. Tudo depende desse idiota se demorar pelo menos quinze minutos, depois de descobrir que no foi chamado e se trata de um truque. Mas, ou me engano muito, ou Olga no gostar de que ele se demore to pouco. Aqui est o papel para de Coude. Apresse-se! Quinze minutos depois Paulvitch estava na residncia do embaixador alemo e entregava a nota a um criado, dizendo: - Isto para o conde de Coude. muito urgente. Veja se lhe faz chegar s mos este papel, sem demora... Entregou algumas moedas de prata ao criado e regressou mais uma vez ao apartamento de Rokoff. Um momento depois o conde de Coude recebia o papel e pedia licena ao seu anfitrio para tomar conhecimento do recado. Rasgou o sobrescrito e leu, empalidecendo progressivamente: Senhor Conde de Coude Algum que quer salvar a honra do seu nome serve-se deste meio para avis-lo que a respeitabilidade do seu lar corre perigo neste momento. Um certo indivduo que desde h tempos visita a sua casa, durante a sua ausncia, est agora em companhia de sua mulher. Se for imediatamente o encontrar no boudoir da condessa. Um Amigo. Vinte minutos depois de Paulvitch ter telefonado para Tarzan, Rokoff fez uma chamada para o telefone particular da condessa. Respondeu-lhe a criada de quarto de Olga. - A senhora j se retirou... - objetou a criada, perante a insistncia de Rokoff. - Trata-se de um recado importante e urgente, que s posso transmitir diretamente condessa. Pea-lhe que se levante e atenda o telefone. Voltarei a ligar

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dentro de cinco minutos... Rokoff desligou, e um minuto depois chegou Paulvitch. - O conde tem o recado? - Deve estar a caminho de casa... - respondeu Paulvitch. - Excelente! Olga deve estar sentada no seu boudoir, sumariamente vestida, talvez com um roupo sobre a camisa de noite... Muito sugestivo quando aparecer o tal Tarzan, ficar surpresa, mas no decepcionada. Se esse homem tiver sangue nas veias, o conde encontrar uma linda cena de amor dentro de quinze minutos. Creio que planejamos tudo da melhor maneira, Alexis. Vamos beber o bom absinto do velho Plancon, sade de. Tarzan, sem esquecer que o conde de Coude um dos melhores espadachins de Paris e o melhor atirador de Frana. Quando Tarzan chegou ao palacete, Jacques estava espera dele, porta. - Por aqui, Monsieur... - disse ele, conduzindo o visitante para a larga escadaria de mrmore. Um instante depois abriu uma porta, fez uma vnia, afastou um pesado cortinado e desapareceu, deixando Tarzan num compartimento frouxamente iluminado. Tarzan viu Olga sentada diante de uma pequena secretria onde estava o telefone. Tamborilava nervosamente com os dedos, sobre o tampo polido da secretria, e no o ouviu entrar. - Que houve, Olga? - perguntou ele. A condessa voltou-se, com um leve grito de espanto. - Jean! Que faz aqui? Quem lhe abriu a porta? Que significa isto? Tarzan ficou estupefato, mas no mesmo instante compreendeu uma parte da verdade. - Nesse caso no me chamou, Olga? - Cham-lo, a esta hora da noite? Meu Deus! Julga-me completamente doida, Jean? - Franois telefonou-me para vir imediatamente. Disse que estava com problemas e precisava de mim.

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- Franois? Mas quem Franois? - Disse que era um dos seus criados e falou-me como se a conhecesse. - No tenho nenhum criado chamado Franois. Algum quis brincar com voc, Jean... - disse Olga, - Receio que se trate de uma brincadeira sinistra, Olga... Isto no apenas humor... - Que quer dizer? No pensa que... - Onde est o conde? - interrompeu Tarzan. - Na residncia do embaixador alemo. - Isto outra habilidade do seu estimado irmo. Amanh o conde ouvir falar do caso e interrogar os criados... Tudo ir confirmar o que Rokoff deseja que o conde pense. - O miservel! - exclamou Olga. Tinha-se levantado e aproximara-se de Tarzan, fitando-o. Estava muito assustada, tinha a expresso de uma pobre cora ferida. Tremia e apoiou as mos nos largos ombros dele. - Que faremos, Jean? Amanh toda Paris saber... Nikolas far com que a notcia se espalhe. A atitude dela, o olhar, as palavras, tudo significava o milenar apelo da mulher para o seu protetor natural, o homem. Tarzan tomou na sua uma das mos dela. Foi um gesto involuntrio, to impensado como quando, logo depois, passou um brao sobre os ombros trmulos de Olga. Mas o resultado foi uma espcie de choque eltrico. Nunca tinha estado to perto da condessa. Olharam-se, com um sobressaltado sentimento de culpa e, em vez de se mostrar forte, Olga tornou-se mais fraca e chegou-se mais para ele, envolvendo-lhe o pescoo com os braos. Tarzan beijou-a... Raul de Coude tinha apresentado apressadas desculpas ao dono da casa depois de ler o papel. Nunca saberia quais desculpas, assim como nunca poderia lembrar-se exatamente do que se passou at ao momento de entrar no seu palacete. S a recuperou uma espcie de domnio dos nervos, tornou-se frio e cauteloso. Por qualquer razo inexplicavel, Jacques, criado, abriu a porta antes do conde subir

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os poucos degraus do prtico. De Coude no estranhou isso, no momento, embora mais tarde se recordasse. Sem rumor, de Coude subiu a escada de mrmore e percorreu o corredor que conduzia ao boudoir de sua mulher. Levava na mo uma pesada bengala e no corao um furioso desejo de matar. Olga foi a primeira a vlo. Com um pequeno grito apavorado arrancou-se dos braos de Tarzan... Este voltou-se exatamente a tempo de desviar com o brao o furioso golpe que lhe era dirigida cabea. Duas, trs vezes, a pesada bengala se abateu e cada pancada apressava a transformao de Tarzan numa fera da selva. Com o grunhido rouco do gorila, saltou sobre o francs. A bengala foi arrancada das mos de Coude e partida em duas como se fosse um palito de fsforo. Tarzan atirou-a ao cho e atacou. Olga de Coude olhava, apavorada, a cena que se desenrolava diante dela. Por momentos ficou paralisada... Correu para onde Tarzan estrangulava o conde sacudindo-o como um co sacudiria um rato... Agarrou as grandes mos do jovem, gritando: - Vai mat-lo! Vai mat-lo! Oh, Jean! Vai matar o meu marido! Tarzan estava surdo pela fria. De repente, atirou ao cho o corpo inerte do conde, ps-lhe um p sobre o peito e soltou o terrvel grito de vitria dos grandes antropides. De um extremo ao outro do palacete o grito ecoou, apavorando os criados, deixando-os plidos e trmulos. A condessa ajoelhou-se, junto do corpo do marido. Lentamente, a nuvem vermelha dissipou-se, ante os olhos de Tarzan. Tudo retomava forma, o homem civilizado voltava a dominar. - Olga... - murmurou. Ela levantou a cabea, esperando ver a expresso de fria assassina no olhar dele. Viu apenas uma expresso de arrependimento e de tristeza. - Oh, Jean! Veja o que fez... Ele era meu marido... Eu o amava e ele est morto... Suavemente, Tarzan ergueu o corpo inerte e estendeu-o sobre um div. Depois encostou o ouvido ao peito do conde.

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- Um pouco de brandy, Olga... - disse. Ela trouxe o brandy, e conseguiram que de Coude engolisse algumas gotas. Um leve suspiro escapou dos lbios brancos. Depois um gemido... - No morrer... - murmurou Tarzan. - Deus seja louvado... - Por que fez isto, Jean? - No sei... Ele me bateu e eu perdi a cabea... Nunca lhe contei a minha histria, Olga e foi pena, porque isto no teria acontecido. A nica me que conheci foi uma macaca e at aos quinze anos nunca vi uma criatura humana. S aos vinte encontrei pela primeira vez um homem branco. H pouco mais de um ano eu era uma fera na selva... E as pessoas fazem isto... No me julgue muito severamente... Dois anos muito pouco tempo para recuperar sculos de civilizao... - No o julgo, Jean. A culpa foi minha... V embora, preciso que ele no o veja quando voltar a si, adeus! Tarzan saiu, de cabea baixa mas pouco a pouco os seus pensamentos tomaram um caminho definido. Vinte minutos depois entrava numa delegacia de polcia, no muito longe da Rua Maule. Ali encontrou um dos agentes que conhecera, em condies bastante estranhas, vrias semanas antes. O policial mostrou-se contente ao v-lo, e aps um momento de conversa, Tarzan perguntou-lhe se ele j tinha ouvido falar de Nikolas Rokoff e Alxis Paul. - Muitas vezes, de fato... - respondeu o agente... Ambos tm ficha criminal, e embora atualmente no haja nada contra eles, tratamos sempre de saber onde que podem ser encontrados se a ocasio surgir. Por que pergunta, senhor? - Conheo-os, e gostaria de falar ao Sr. Rokoff, um assunto de negcios. Se puder dizer-me onde eles vivem, lhe ficarei grato. Minutos depois Tarzan despedia-se do policial, levando no bolso uma tira de papel com um endereo referente a um bairro quase respeitvel. Chamou um txi que passava...

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Rokoff e Paulvitch estavam outra vez no seu apartamento, conversando sobre as possveis conseqncias dos acontecimentos da noite. Tinham telefonado para a redao de um jornal da manh, e esperavam a chegada de um reprter a quem forneceriam, em primeira mo, o relato do escndalo que agitaria a alta sociedade parisiense na manh seguinte. Ouviram passos na escada e Rokoff exclamou: - Esses reprteres so rpidos! Abra a porta, Alexis! Alexis abriu a porta e recuou precipitadamente...enquanto Rokoff olhava, espantado, para o jovem alto, de olhos cinzentos, que surgia diante deles. - Nom de nom! - gritou, levantando-se de um salto. - Que quer daqui? - Sente-se... - respondeu Tarzan, em voz baixa, mas num tom que obrigou os dois homens a sentarem-se. - Sabem o que me traz aqui... - continuou, sem levantar a voz. Devia mat-los, a ambos mas o fato de Rokoff ser irmo de Olga de Coude impede-me que o faa agora. Darei uma oportunidade de viverem. Paulvitch no conta, no tem importncia, apenas um estpido instrumento, e por isso no o matarei enquanto permitir que voc viva, Rokoff, mas, antes que eu saia deste quarto, deixando-os vivos, tero de fazer duas coisas. Rokoff comear por escrever uma confisso completa da infmia que organizou esta noite e assinla. Depois ter de me prometer, sob pena de morte, que este caso no ser comunicado aos jornais. Se no fizer ambas as coisas, Rokoff, nenhum dos dois estar vivo quando eu sair. Compreende? Vamos, apresse-se! Tem tinta, papel e uma caneta, sobre essa mesa... Rokoff tomou uma atitude beligerante, tentando demonstrar que no o assustavam as ameaas mas no mesmo instante sentiu-se agarrado pela garganta, com dedos de ao. Paulvitch, que tentou intervir, foi levantado no ar e atirado contra uma parede, junto da qual caiu sem sentidos. Quando a face de Rokoff comeou a tornar-se negra, Tarzan largou-o, empurrando-o para a cadeira. Paulvitch, que comeou a erguer-se, afundou-se tambm numa cadeira, a uma ordem de Tarzan.

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- Agora escreva... - Disse o homem da selva. Se for necessrio agarr-lo outra vez, no o largarei depressa. No omita um s pormenor, nem um nico. Rokoff pegou a caneta e comeou a escrever quase no mesmo instante bateram porta. - Entre... - disse Tarzan. - Eu sou reprter do Matin... - declarou o visitante, um rapaz novo e de olhar vivo. - Creio que o Sr. Rokoff tem uma histria para mim... - Nesse caso engana-se, meu amigo... - atalhou Tarzan. - Voc no tem qualquer histria para os jornais, no , meu caro Nikolas? - No... No tenho qualquer histria agora... - rosnou o russo. - Nem agora nem nunca, meu caro Nikolas... - insistiu Tarzan, com um olhar que o russo compreendeu e o reprter nem sequer notou. - Hein? - Nem nunca... - apressou-se a afirmar Rokoff. - Foi pena ter incomodado este senhor... - disse Tarzan. - Desejo-lhe muito boa noite... O reprter saiu e Tarzan fechou a porta. Uma hora depois, levando no bolso um manuscrito de algumas pginas, Tarzan encaminhou-se tambm para a porta, dizendo antes de sair: - No seu caso, Rokoff, eu partiria de Frana, pois cedo ou tarde encontrarei um pretexto para mata-lo sem comprometer sua irm...

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CAPTULO 6: Um dueloDArnot estava dormindo quando Tarzan entrou no apartamento. Tarzan no quis acord-lo, mas na manh seguinte contou-lhe os acontecimentos da noite, sem omitir um pormenor. - Fui um tolo... - concluiu. - De Coude e a mulher eram meus amigos e aqui est como paguei a amizade deles. Pouco me faltou para matar o conde, e lancei lama na reputao de uma mulher honesta. Muito provavelmente destrocei um lar feliz. - Voc ama Olga de Coude? - perguntou DArnot . - No poderia responder a essa pergunta, Paul, se no tivesse certeza de que ela me no ama... Mas assim posso dizer-lhe, sem quebra de lealdade, que no h amor entre ns. Por um breve instante fomos envolvidos por uma vaga de loucura, que teria vivido apenas um segundo se de Coude no tivesse aparecido. Como voc sabe, eu tenho pouca experincia com mulheres. Olga de Coude bonita, o ambiente era propcio... Um homem civilizado no a teria beijado... mas a minha civilizao ainda no chegou sequer pele, no vai alm da roupa. Paris no lugar para mim... Continuarei fazendo tolices, algumas possivelmente mais graves... As leis humanas irritam-me, sinto-me prisioneiro... Portanto, amigo, creio que vou voltar para a minha selva e viver a vida que Deus me destinou, visto que me quis l. - No tome as coisas to a srio, Tarzan... Respondeu DArnot . - Voc no foi alm de um beijo isto , portou-se muito melhor do que a maioria dos homens civilizados se portariam em tais circunstncias. Quanto a sair de Paris, creio que de Coude ter alguma coisa a dizer a tal respeito, antes que passe muito tempo. DArnot no se enganava. Uma semana depois um tal Sr. Flaubert fez-se anunciar, cerca das onze horas da manh, quando os dois amigos tomavam caf da manh. O Sr. Flaubert era uma pessoa impressionantemente bem educada. Com

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muitas vnias, entregou o desafio do Sr. Conde, ao Sr. Tarzan, pedindo que o Sr. Tarzan se dignasse indicar um seu amigo com quem ele, Sr. Flaubert, se devesse encontrar a uma hora que lhe parecesse conveniente - mas to cedo quanto possvel - para combinarem todos os pormenores necessrios. O Sr. Tarzan no hesitou em confiar os seus interesses, sem reservas, ao seu amigo Sr. DArnot . E assim ficou combinado que o Sr. DArnot se encontraria com o Sr. Flaubert, s duas horas da tarde. E o Sr. Flaubert retirou-se com tantas vnias como fizera ao entrar. Quando ficaram ss, DArnot olhou interrogativamente para Tarzan, perguntando: - E ento? - Aos meus pecados tenho agora de acrescentar o de matar ou ser morto... - respondeu Tarzan. - Estou fazend