anatomia urbana: a rua da bahia nas memÓrias...

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 ANATOMIA URBANA: A RUA DA BAHIA NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE Raquel von Randow Portes, FAU/UFJF RESUMO O presente artigo, denominado Anatomia Urbana: a rua da Bahia nas memórias de Pedro Nava, aborda a significativa interface entre arquitetura e literatura, com ênfase nas questões sobre o patrimônio cultural urbano, através da obra de Pedro Nava, autor do gênero memorialístico, conhecido como o “poeta bissexto”, pertencente ao século XX e integrado ao panorama brasileiro da literatura moderna. Sob o olhar de Pedro Nava, caminhante atento e escritor minucioso, nós, leitores, somos levados a percorrer as diferentes escalas e os espaços de memória do autor nas cidades em que viveu - Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro - através da composição de um enredo cuidadosamente projetado, considerando a experiência do corpo e a memória que vem à tona através dos sentidos. Propiciadora de uma experiência urbana forte e criadora, a leitura sobre as memórias de Nava faz (re)surgir, através do aporte material e imaterial de nossas lembranças, lugares, caminhos, cheiros e gostos que compõem os espaços urbanos de nossas “cidades sensíveis”, onde encontramos o elo entre o passado e o presente. PALAVRAS-CHAVE: Pedro Nava, rua da Bahia, Memória.

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

ANATOMIA URBANA: A RUA DA BAHIA NAS MEMÓRIAS DE PEDRO NAVA REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE Raquel von Randow Portes, FAU/UFJF

RESUMO

O presente artigo, denominado Anatomia Urbana: a rua da Bahia nas memórias de Pedro Nava, aborda a significativa interface entre arquitetura e literatura, com ênfase nas questões sobre o patrimônio cultural urbano, através da obra de Pedro Nava, autor do gênero memorialístico, conhecido como o “poeta bissexto”, pertencente ao século XX e integrado ao panorama brasileiro da literatura moderna.

Sob o olhar de Pedro Nava, caminhante atento e escritor minucioso, nós, leitores, somos levados a percorrer as diferentes escalas e os espaços de memória do autor nas cidades em que viveu - Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro - através da composição de um enredo cuidadosamente projetado, considerando a experiência do corpo e a memória que vem à tona através dos sentidos.

Propiciadora de uma experiência urbana forte e criadora, a leitura sobre as memórias de Nava faz (re)surgir, através do aporte material e imaterial de nossas lembranças, lugares, caminhos, cheiros e gostos que compõem os espaços urbanos de nossas “cidades sensíveis”, onde encontramos o elo entre o passado e o presente.

PALAVRAS-CHAVE: Pedro Nava, rua da Bahia, Memória.

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URBAN ANATOMY: THE BAHIA STREET IN THE MEMORIES OF PEDRO NAVA

ABSTRACT

The research presented here, entitled ‘urban anatomy’, deals with the significant interface

between architecture and literature, with emphasis on questions about urban cultural heritage,

through the work of Pedro Nava, author of the memorialistic genre known as the ‘leap-poet’,

belonging to Century and integrated into the Brazilian panorama of modern literature.

Through the urban look of Pedro Nava, an attentive walker and meticulous writer, one can

glimpse the places of memory of the author in the different cities in which he lived - Juiz de

Fora, Belo Horizonte and Rio de Janeiro, considering the perception, experimentation of

places and The memory that comes through the senses.

Designed by Pedro Nava through his writing process, and projected by our imagination

through reading, it is in the urban space of these sensitive cities that we find the link between

the past and the present. Awakened with material or immaterial contribution of our patrimonial

heritages, (re) appear places, paths, smells, tastes, that compose a sentimental landscape.

KEY-WORDS: Pedro Nava, Bahia street, Memory.

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INTRODUÇÃO

A obra de Pedro Nava causou, desde seu lançamento em 1972, grande inquietação no meio literário,

pois o gênero autobiográfico - considerado vulgarmente como um gênero menor - apresentou em sua

obra grande complexidade ao remontar, através de memórias, o quadro histórico-social de uma

época. No processo de escrita de Nava, entre o fictício e o real, percebemos um grande aporte da

pesquisa documental, bem como da crônica oral. Somando isso à bagagem de longa data do escritor,

que participou do florescimento do movimento moderno em Minas Gerais, o conjunto das memórias

apresenta-se como uma “visão do Brasil”, podendo ser comparada às obras de Gilberto Freyre ou

Sérgio Buarque de Holanda.

Seja através da forte ênfase nas tradições familiares, identificada na escrita sobre sua infância e

adolescência, seja através dos relatos de sua carreira enquanto médico, na sua juventude e

maturidade, a vivência sobre as cidades aparece como elemento constante e balizador na narrativa

do autor. É, portanto, através do espaço urbano que diversos temas se fazem presentes nas

memórias de Nava, como: cultura, política, religião, educação, urbanismo, saúde, dentre outros.

Sob o olhar de Pedro Nava, esse caminhante atento e escritor minucioso, nós, leitores, somos

levados a percorrer as diferentes escalas e os espaços de memória do autor nas cidades em que

viveu - Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro - através da composição de um enredo

cuidadosamente projetado, considerando a experiência do corpo e a memória que vem à tona através

dos sentidos.

Através da leitura das memórias de Pedro Nava traçamos a hipótese de que, dada a característica

essencialmente espacial de seus textos, é possível ao leitor usufruir de uma experiência urbana

capaz de construir novos significados aos espaços (re)construídos através da memória, permitindo a

criação de laços de afetividade e pertencimento aos lugares.

Neste sentido, objetivo principal deste artigo é ampliar o entendimento sobre a memória e o conjunto

memorialístico em questão, apresentado aqui através de um recorte sobre a rua da Bahia,

considerando-o como instrumento capaz de propiciar uma experiência urbana, portanto, apto a ser

incorporado aos estudos urbanos, em particular no viés do patrimônio cultural.

No tocante à metodologia, entendendo a obra de memórias de Nava pertencente à categoria de arte

sociológica, já que esta pode ser encarada tanto como uma forma de conhecimento sociológico sobre

o artista, quanto um objeto em si mesma, pois possui um estilo próprio e faz referência a aspectos

históricos e sociais, foram consideradas para este estudo as abordagens teóricas e metodológicas

pertencentes à Sociologia da Arte.

Frente aos processos de descaracterização de nossas cidades, e da crise atual da arquitetura e do

urbanismo onde se multiplicam espaços enfadonhos criados pelo efeito homegeneizante do capital

mundial, o estudo aqui apresentado tem sua justificativa na necessidade de repensarmos os métodos

e instrumentos de abordagem sobre as questões do patrimônio, de projeto e análise do ambiente

urbano, apontando novas possilidades.

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ANATOMIA URBANA1

A Anatomia, disciplina que Pedro Nava tanto apreciou na sua vida acadêmica, acompanhou-o como

forma de arte, análise e estudo não só na medicina, mas também no seu modo de compreender e

vivenciar o espaço, seja ele urbano ou íntimo.

A percepção aguçada sobre o espaço, característica marcante de Pedro Nava, foi um elemento

fundamental para a identificação das diferentes paisagens que compõem as cidades. Na escrita de

suas memórias, nenhum elemento importante do tecido urbano passou-lhe despercebido - a

arquitetura das casas e edifícios, as ruas e os caminhos, os espaços livres e praças, a paisagem

como síntese de uma região - nele o escritor incorporou seus valores e suas impressões.

Semelhante à anatomia - estudo da forma e estrutura do corpo e suas partes constituintes - a

morfologia urbana é o estudo sobre a forma da cidade e os elementos básicos que a constituem.

Deste modo, escolhemos apresentar o discurso naviano sobre a cidade numa disposição morfológica,

identificando os elementos mais presentes desta na escrita das memórias.

Assim como um texto, é por meio da morfologia urbana que a cidade pode ser ‘lida’, através de seu

tecido urbano, e compreendida através de seus elementos constituintes, sendo um importante

instrumento no entendimento e no planejamento da cidade, formando um campo interdisciplinar.

Considerando os textos de Pedro Nava como um estudo sobre a “anatomia urbana”, identificamos a

rua como um elemento formativo fundamental, essencial tanto na vivência das cidades quanto na

elaboração de suas memórias, visto que, inúmeras vezes, nos deparamos na leitura de seus textos

com longas descrições de percursos feitos a pé. Vivenciada plenamente na capital mineira, a rua da

Bahia se destacou em dois de seus volumes, sendo intensamente vivida na sua juventude na capital

mineira e, certamente, a mais descrita em seus textos.

A RUA NA ANATOMIA NAVIANA

Na morfologia urbana, a rua tem um papel estruturador do traçado urbano: assentada num suporte

físico pré-existente, ela regula a disposição dos demais elementos urbanos, como os edifícios e

quarteirões; faz a ligação entre as várias partes da cidade e, segundo Lamas, “confude-se com o

gesto criador”, do traço solto no papel ao desenho da cidade (LAMAS, s/d, p. 98).

Característica ainda importante apontada pela morfologia urbana, a rua chama a atenção para o

“caráter de permanência do traçado, não totalmente modificável, que lhe permite resistir às

transformações urbanas”. Através da rua podemos verificar, portanto, as permanências e

transformações do território, a partir da formação ao crescimento das cidades, em função do

deslocamento e da mobilidade de bens, pessoas e ideias (LAMAS, s/d, p. 100).

Enquanto categoria sociológia, a rua, para Roberto Da Matta, tem seu significado em função de sua

relação com a casa, no estabelecimento de uma interpretação dualística tradicionalmente construída,

1 Este artigo é fruto dos estudos da tese denominada Anatomia Urbana: a cidade na poética de Pedro Nava, apresentada no Programa de Pós-Gradução em Arquitetura e Urbanismo, da Escola de Arquiterura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, em setembro de 2017.

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ou de complementareidade, como proposta por ele. Assim, a casa, no momento que em representa o

espaço íntimo e das relações pessoais, fundada sob o código da família e da amizade, possui o seu

oposto (ou complementar) na rua, caracterizada como o lugar público, das relações impessoais,

regida sob os códigos legais e jurídicos.

Neste sentido, o comportamento estabelecido dentro de casa se difere do da rua, assim como as

ideias e práticas realizadas, não saindo ileso quem, por algum motivo, utilize estes espaços de forma

diferente. Para Da Matta, é possível e justificável uma leitura do Brasil como a realizada por Gilberto

Freyre, a partir da casa, já que importantes rituais realizados nela permitem expressar a síntese de

todo o sistema social. Já o seu complementar, a rua, possibilita, também, outra leitura: uma visão

sobre as instituições e os sistema de leis que regem a vida dos cidadãos e a cidade.

Desse modo, todos os ritos públicos que assumem um aspecto legal, solene e que são controlados

pelo Estado ou pela Igreja, sempre vêm da rua (e, naturalmente, do outro mundo) para a casa;

enquanto que todos os cerimoniais domésticos tradicionais (nascimentos, batismos, aniversários,

casamentos e funerais) fazem o movimento inverso: abrem a casa para a rua, transformando o

espaço doméstico da moradia em algo público, área onde estranhos podem circular livremente.”

A festa, o cerimonial, o ritual e o momento solene são modalidades de relacionar conjuntos separados e complementares de um mesmo sistema social. Sua importância, conforme tenho chamado sistematicamente atenção, não é uma função do espírito festeiro, cínico ou irresponsável do brasileiro. É muito mais um mecanismo social básico por meio do qual uma sociedade feita com três espaços pode tentar refazer sua unidade. (DA MATTA, 1983, p. 66)

Outra abordagem sobre a rua se dá através da percepção ambiental, elaborada por Kevin Lynch, que

elencou e descreveu elementos que tornam a cidade legível. Sob a hipótese da perda dos

referenciais visuais e identitários da cidade, causada pelo crescimento vertiginoso do período pós-

guerra aos moldes do urbanismo moderno, Lynch, em A Imagem da cidade, desenvolveu uma

metodologia de suporte ao desenho urbano capaz de reconduzir o problema da imagem para as

funções comunicativas.

Dentre os elementos estruturadores da percepção ambiental, os caminhos são seu ponto de partida,

pois a experiência urbana se dá pelo percurso, que estrutura não só a percepção do caminhante, mas

também outros elementos da imagem da cidade. Para Lynch, “são canais ao longo dos quais o

observador costumeiramente, ocasionalmente, ou potencialmente se move. Podem ser ruas,

calçadas, linhas de trânsito, canais, estradasde- ferro” (LYNCH, 1960, p. 47).

A rua, elemento muitas vezes estruturador da narrativa de Pedro Nava, pode ser observada,

primeiramente, na visão curiosa do menino através das grades do jardim. Naquela pequena cidade

do interior de Minas, Juiz de Fora, ela representou em certos momentos uma extensão da casa e da

varanda - com as cadeiras na rua, no contato com os vizinhos, nas casas com jardim e quintal, nas

“casas chácara”, nos piqueniques, na brincadeira dos meninos na rua. Já adolescente, e ainda em

Juiz de Fora, a rua se transformou no lugar de aventura, nas explorações a pé ou de bicicleta, nos

trajetos entre a casa e o colégio.

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O menino que ainda não sai de casa sozinho tem a impressão de que está no centro do mundo e que os outros vivem, como planetas, em torno de sua personalidade solar. Depois é que vê seu nada quando se compara às galáxias que vislumbra. Minhas saídas no resto de bicicleta que me coube, minhas idas e vindas ao Machado Sobrinho, as longas explorações feitas durante as gazetas às aulas deram-me noção do universo de Juiz de Fora e da necessidade de explorá-lo. Fazia-o sempre que podia, mesmo dentro de casa, no meu local habitual de vigilância que era o escritório do Major (Balão Cativo, p. 78).

Posteriormente a rua é o palco da vida do autor na capital mineira, como apresentada na juventude

de Pedro Nava através da rua da Bahia. O autor que, até anteriormente narrava em seus dois

primeiros volumes a vida sob o código da casa, passa a escrever sobre sua juventude vivenciada sob

o código da rua.

EVOCAÇÃO DA RUA DA BAHIA - MINAS REVISITADA

A rua da Bahia, dentre as ruas que figuraram nas memórias de Pedro Nava, foi intensamente vivida

e, certamente, a mais descrita em seus textos, sendo explorada em dois volumes, primeiramente em

Chão de Ferro e, posteriormente, em Beira-Mar. Nestes dois momentos, a rua é o palco principal da

vida do autor na capital mineira, onde ocorrem as descobertas e as irreverências da juventude. Mais

ainda, é na rua onde se dá a redescoberta do que é o “ser mineiro” e a parcela de mineiridade do

autor, delineada através da linguagem.

Aquela minha incorporação à natureza da cidade, do bairro, eram parte duma espécie de noviciado mineiro que, como o sacerdotal, suprimindo a vida fora da Igreja, ia jogando meus cinco anos de Rio e Pedro II para um passado extraordináriamente remoto. Mas não seriam só a luz do sol e da lua, a claridade do dia e a escuridão da noite, as mutações das horas e as transfigurações do crepúsculo que corriam nesse efeito. Mais. Ainda. Tudo. Cada saída, cada contato ia me penetrando de Minas. Sua linguagem incoparável. A construção de um novo dicionário (Chão de Ferro, p. 348).

Primeiramente em Chão de Ferro, o capítulo “rua da Bahia” narra o retorno a Belo Horizonte após o

término dos estudos no Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, e seu momento preparatório para o

ingresso na Faculdade de Medicina. O “Chão de Ferro” de Nava adquire várias representações ao

longo do livro, dentre elas, solo das minas gerais e a “porcentagem de ferro” presente na alma dos

mineiros, citado algumas vezes por Nava em referência ao poema de Drummond.

Assim, o capítulo “Rua da Bahia” dá indícios da vida do jovem na capital, do papel da rua e das novas

experiências vivenciadas no espaço público, na beira da calçada, no pátio da faculdade, como no

trecho abaixo:

Se muito aprendíamos em nossas aulas, mais aprendíamos do mundo, dos médicos, da vida médica, da cidade em geral e das mulheres - no bondinhos que fazíamos sentados nos degraus da escadaria da faculdade, na beira dos canteiros sempre renovados e sempre destruídos, nos passeios, devagar, pelos corredores, nas longas horas em que ficávamos no pátio olhando seu movimento e o da rua (Chão de Ferro, p. 389).

Elaborado como um “prelúdio” à “sinfonia mineira”, conforme citação do próprio autor, o texto

“Evocação da Rua da Bahia” contido como primeiro anexo em Chão de Ferro, possibilita ao leitor

compreender os laços de amizade e o início do movimento moderno mineiro, como também se

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familiarizar com os nomes dos rapazes do grupo da Bahia, chamados de grupo “do Estrela” e com as

características de cada um. Neste texto, revela também sua gradativa aproximação de Carlos

Drummond de Andrade, quem ele chama de poeta no trecho abaixo.

Não tenho bem uma noção exata de como se formou naquela noite memorável dos 22 a diversão descomunal. Era uma turma enorme e heterogênea que começou no Colosso e acabou no Pedercini. [...] Datou dessa noite de poesia e detonações a nossa confraternização e por seu intermédio é que vim a estreitar relações para nele ingressar logo depois, com o grupo de que faziam parte ou de que viriam a fazer parte o poeta ele mesmo, Francisco Martins de Almeida, Hamilton de Paula, Abgar Renault, João Guimarães Alvez, Heitor Augusto de Souza, João Pinheiro Filho, Alberto e Mário Álvares da Silva Campos, Emílio Moura, Gustavo Capanema, Gabriel de Rezende Passos, Dario Magalhães, João Alphonsus de Guimaraens e Milton Campos. O grupo chamado “do Estrela”, mas essencial e fundamentalmente o grupo da rua da Bahia - da polidimensional, da inumerável, da ditirâmbica, da eterna rua da Bahia... (Chão de Ferro, p. 410).

Além do grupo “do Estrela”, na “Evocação da rua da Bahia”, o autor descreve a saudosa prática de

“subir e descer a Bahia”. O caminhar pela rua da Bahia é representado em Pedro Nava como uma

prática cultural, desempenhada de forma única pelos mineiros, acostumados com o “sobe e desce”

das ladeiras nas antigas cidades coloniais. Assim como na extinta capital Ouro Preto, na atual e

moderna Belo Horizonte, o modo de “caminhar” de seus moradores permanece o mesmo, “devagar e

preciso”, “lento e seguro”. Características identitárias abordadas inúmeras vezes por Nava retornam à

narrativa, não demaneira menos debochada, porém mais alegre em relação ao modo de andar

“paulatino e inabalável”, do qual pertence.

Descer ou subir a Rua da Bahia, mesmo materialmente, mesmo no seu aspecto puramente mecânico, era arte delicada. Pelos paralelepípedos ou pelos tijolos queimados dos declives laterais (os tijolos da cerâmica Caeté, que era como se tivessem sido feitos à mão, um por um, pelo velho João Pinheiro), pelos passeios coalhados das sementes vermelhas que caíam da arborização e que estalavam sob as solas - pelo meio das ruas ou rente às casas - havia um jeito especial de caminhar, um modo particular de trocar os passos que era especialidade mineira, traço de cultura conservado pelas gerações adestradas nas “escadinhas” de Ouro Preto, nos “pés de moleque” do Sabará, nas “capistranas” da Diamantina... Devagar e preciso. Lento e seguro. Uma espécie de meneio para os lados, a troca dos pés sem pressa, um andar compassado para não perder o fôlego e poder conversar de rua acima, a cabeça baixa [...]. Andar mineiro, paulatino e inabalável andar mineiro (Chão de Ferro, p. 411).

Beira-mar, cumprindo seu papel então de “sinfonia mineira”, traz como nome de seus capítulos os

nomes das ruas da Bahia, Avenida Mantiqueira e rua Niquelina. Ainda possui o capítulo “Bar do

Ponto”, não deixando dúvidas que, na juventude belorizontina de Nava, as memórias essenciais vêm

dos espaços públicos, de encontro e de passagem. Cabe destacar que o capítulo rua da Bahia, já

presente em Chão de Ferro, volta a aparecer em Beira-mar, sendo o único título de capítulo repetido

na obra de Nava.

Compreendido entre os anos de 1921 e 1928, os temas tratados em Beira-mar são principalmente a

cidade dos anos 1920, o emprego no funcionalismo público, a faculdade de medicina, o modernismo

mineiro e a vida dos jovens do “grupo do Estrela”. A Belo Horizonte da juventude de Nava,

denominada “Belo Horizonte velho”, era a cidade em transição, da pacata capital nova, recém-

construída, porém ainda com ares de interior, à sua consolidação e rápida transformação do cenário

urbano, ocorrida na década de 1920.

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A RUA DA BAHIA - SERIA UMA RETA OU UMA CURVA?

Todos os caminhos iam à Rua da Bahia. Da Rua da Bahia partiam vias para os fundos do fim do mundo, para os tramontes dos acabaminas... A simples reta urbana … Mas seria uma reta? Ou antes, a curva? Era a reta, a reta sem tempo, a reta continente dos segredos dos infinitos paralelos. E era a curva. A inacessível curva, épura dos passos projetados, imanências das ciclóides, círculo infinito… Nós sabíamos, o Carlos [Drummond de Andrade] tinha dito. A Rua da Bahia era uma rua sem princípio nem fim. Descíamos. Cada um de nós era um dos moços do poema. Subíamos. “Um moço subia a rua da Bahia...” (Chão de Ferro, p. 412).

Presente no projeto da nova capital e, segundo o traçado estabelecido pela Comissão, a rua da Bahia

(Figura 1) se comportaria como um eixo de ligação entre os setores administrativo e comercial. A

proximidade com a avenida do Comércio (atual Santos Dumont, fronteiriça à Praça Raul Soares) e a

Estação Central, por onde chegavam todos os suprimentos para a Capital, possibilitava a ligação ao

comércio num de seus eixos. Já no sentido oposto, o margeamento à praça da Liberdade e ao

Palácio de Governo, estabelecia a ligação com a parte administrativa da cidade. Entre estes dois

sentidos, o Parque Muncipal, que possui uma de suas faces voltada para a rua da Bahia,

representava uma pausa entre os dois mundos - local de encontro longe do trânsito das ruas e de

contemplação da natureza bucólica ali implantada.

Figura 1: Postal da rua da Bahia, em primeiro plano, aspecto dos trilhos do bonde em foto realizada ao centro da via. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Ainda nos primeiros anos da capital, a região próxima à esquina da rua da Bahia com a Avenida

Afonso Pena se consolidou como a primeira centralidade, voltada para as atividades de comércio e

serviços, e era ponto focal de toda atividade no centro. A rua da Bahia, projetada para o trânsito de

pedestres, automóveis e bonde, dotada de um comércio diferenciado, cinemas, cafés e bares, era o

palco da vida cosmopolita e “passarela” da diversa população belorizontina, como descrito por Nava

abaixo.

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Essa zona que acabo de descrever era o centro da vida citadina. Ali desfilava toda sua população a pé, de bonde, de automóvel, nos últimos carros puxados por magras parelhas. Passavam. Dos Desembargadores da Relação ao Mingote; do presidente do estado ao Parreirinhas; dos senhores deputados cavando a simpatia aos agiotas aterefados, tocaiando seus devedores mais relapsos - funcionários dos Correios, dos Telégrafos, da Delegacia Fiscal (Beira-mar, p. 45).

Pedro Nava, ainda nas primeiras páginas de Beira-mar, descreve a região central, narrando com

detalhes os estabelecimentos e a vida social desta rua, através do percurso por seus limites e seus

entroncamentos principais. A reconstrução minuciosa da rua da Bahia pode ser observada não só no

texto das memórias mas, na documentação produzida pelo autor ao longo do tempo, composta por

recorte de jornais, mapas, postais, fotografias e colagens.

Se bem que Bahia começasse muito mais embaixo, na zona ferroviária dos seus limites confusos com Januária, o que ia daí, passando pelo jardim da Estação, não contava e o primeiro quarteirão do logradouro era o que descrevemos e que vamos subir, agora, peregrinando no tempo. Estamos em 1921 e no lado ímpar. A primeira porta encontrada era a da casa de seu Artur Haas. Logo acima, no número 893, ficava a Bonbonnière Suíça, onde o simpático Carlos Norder e sua família forneciam doçuras às moças que sempre entravam ali, pretexto para demorar um pouco na rua da Bahia. Motivo para suas calçadas viverem cheias de almofadinhas que dardejavam sobre os intangíveis olhares hipnóticos e vez que outra arriscavam sua palavrinha. Não me lembro bem se depois da Suíça vinha o Coscarelli de baixo ou o Trianon ou se esse é que se instalou onde tinha sido a alfaiataria. Outros técnicos em rua da Bahia, como o Teixeirão e o Chico Martins, que esclareçam a dúvida. [...]

A rua da Bahia possui em sua extremidade norte a proximidade com a Estação Ferroviária e, num

dos seus primeiros quarteirões, a Praça Rui Barbosa. Por sua importância histórica e pela sua

composição formada por edificações de diferentes épocas, compõe um Conjunto Urbano em área de

proteção pelas políticas municipais de preservação do patrimônio cultural, hoje atribuição da

Fundação Municipal de Cultura.

O Conjunto Urbano Rua da Bahia2 (Figura 2), por sua inserção no tecido urbano do centro, faz

justaposição com vários outros conjuntos ao logo de seu eixo, assim citamos, primeiramente, o

Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), como também o Conjunto Urbano Rua dos

Caetés, Conjunto Urbano Avenida Afonso Pena e Conjunto Urbano Praça da Liberdade - Avenida

João Pinheiro.

Figura 2: Mapa cadastral correspondente à Delimitação do Conjunto Urbano Rua da Bahia, contendo em colorido as edificações de interesse cultural e seus respectivos graus de proteção. Fonte: Guia dos Bens Tombados de Belo Horizonte, 2005.

O estudo resultante da delimitação do Conjunto Urbano Rua da Bahia apontou diretrizes para a área,

considerando a diversidade de tempos em jogo, seus usos e apropriações dos espaços por diferentes

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grupos sociais, visando à manutenção de sua identidade. Localizada em um dos trechos da cidade

que mais conservou a toponímia original do plano de Aarão Reis, representa uma área que nunca se

homogeneizou, caracterizando-se pela diversidade. Neste sentido, no estudo realizado na década de

1990, adotou-se uma divisão do Conjunto Urbano em seis trechos distintos, para o entendimento dos

diferentes processos de formação e transformação sobre a área.

Um dos seis trechos do Conjunto Urbano da Bahia foi amplamente detalhado nos versos de Nava,

cidadão belorizontino e frequentador diário do centro pulsante da nova capital. No tratamento dado à

imagem a seguir (Figuras 3, 4 e 5), intitulada “quarteirão essencial da rua da Bahia - Bar do Ponto”,

podemos perceber que o território que se inicia na Avenida Afonso Pena, com o Bar do Ponto e a

Casa Arthur Haas, delimitado pelas ruas Goiás e Goitacazes, era considerado como “solo sagrado”

para o autor.

Figura 3: Reprodução de fotografia da rua da Bahia, em Belo Horizonte. A primeira imagem contém “máscara” feita pelo autor, com a numeração de algumas edificações ao longo da rua, descritas em legenda no verso. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Figura 4: Reprodução de fotografia da rua da Bahia, de trecho considerado por Pedro Nava como o “Quarteirão essencial da rua da Bahia”. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

2 Conjunto Urbano protegido definido pela Lei 7165/96, de agosto de 1996.

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Figura 5: Imagem do verso da fotografia, com legenda feita pelo autor, identificando os números relativos a cada edificação e seu uso. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Citada nos versos de Nava e localizada pelo autor na fotografia da página anterior, a Casa Arthur

Haas (número 1 na marcação da Figura 3), fundada em 1901, foi uma das primeiras concessionárias

de automóveis de Belo Horizonte, situada em ponto nobre, na esquina da rua da Bahia com a

Avenida Afonso Pena, em frente ao Bar do Ponto. Foi demolida em 1934, dando lugar ao Edifício

Haas, de quatro pavimentos. Também presente em citação e nas imagens de Nava, a Bombonière

Suíssa, era o local onde a ‘tradicional família mineira’ desfrutava então dos doces e confeitos

produzidos com refinamento, sendo também ponto importante do cenário urbano.

Seguindo pelo “quarteirão essencial da rua da Bahia - Bar do Ponto”, na imagem com data de

aproximadamente 1905 (Figura 4) , destaca-se ao fundo a Torre do Conselho Deliberativo (número 2

na marcação da Figura 3), onde hoje se encontra instalado o Centro de de Referência da Moda. O

edifício, construído no início do século XX para abrigar o Conselho Deliberativo da Capital, foi

também sede da Biblioteca Pública Estadual e da Câmara Municipal em seu primeiro andar,

apresentando características da arquitetura manuelina.

O “altos da Casa Narciso”(número 3 na marcação da Figura 3), seguido pela Papelaria Veloso

(número 4 na marcação da Figura 3) e pela Farmácia Americana (número 5 na marcação da Figura

3), “do plácido e amável Ismael Libânio”, era, segundo Nava, a mais importante de Belo Horizonte,

localizada próximo à esquina da Rua Goitacazes.

Abaixo, a casa Decat (número 7 na marcação da Figura 3), responsável por produtos dentários, e o

Parc Royal (número 8 na marcação da Figura 3). Este último, inaugurado em 1921, era uma

sofisticada casa de moda, projetada em três pavimentos, com uma arquitetura eclética marcada com

características do art-noveau, representa hoje uma das poucas construções remanescentes desta

época, apesar de descaracterizada em seu interior e alguns elementos de fachada, além de se perder

em meio à escala dos edifícios ao seu redor.

Quem atravessava Bahia na altura de Goiás ia dar direto na esquina de Goitacases onde ficava a Casa Narciso. Aí acabava o Grande Bar do Ponto. Para retornar ao seu miolo temos de descer pelo lado par. Por cima do térreo do seu Narciso ficava a residência da família Rocha Melo. [...] Seguiam-se prédios de um andar onde ficavam no 936 a Papelaria e Tipografia Brasil, do Sila

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Veloso, no 928 a Farmácia Americana do plácido e amável seu Ismael Libânio. Era a mais importante de Belo Horizonte. Fornecia para o Estado e era representante exclusivíssima da Casa Lutz Ferrando & Cia. Concorria para sua popularidade entre os rapazes a simpatia do Heitor da farmácia,* que pela amabilidade e pelo trato foi um precursor das relações públicas de hoje. Era mais discreto que um túmulo quando fiava aos moços do clube as aspirinas e os sais de frutas das ressacas; os preventivos — camisa de vênus e pomadas de Metchnikof; os curativos — arsenobenzóis, Aluetina, permanganato, coleval, oxicianureto, os pipos; o denunciante iodofórmio (“Leve xerofórmio — é mais caro mas não fede tanto a remédio”). Logo abaixo o mais novo prédio do quarteirão, o segundo Parc Royal — hoje, talvez, a mais velha entre as edificações do local (Beira-Mar, p. 42 a 44).

O conjunto Casa do comendador Fonseca (número 9 na marcação da Figura 3) e Charutaria Flor de

Minas (número 9 bis na marcação da Figura 3) era um sobrado, onde no primeiro pavimento

funcionou a movimentada charutaria e, no segundo piso, com programa residencial, a casa do citado

comendador, “sempre visível à varanda, saboreando o movimento da rua”. Neste local foi construído

o Edifício Mercantil, em 1969, também descrito por Nava em trecho posterior.

Presente em outras citações e importantes histórias do Grupo do Estrela, está o último conjunto,

formado pelo Clube Belo Horizonte (número 10 na marcação da Figura 3 e Figura 7, a seguir) e pelo

Cine Odeon (número 11 na marcação da Figura 3 e e número 4 na Figura 6, a seguir). O antigo

cinema, inaugurado em 1912, permanecendo neste endereço até 1920, foi lugar de grande

efervecência na capital e dos encontros e desencontros de muitos jovens como Nava.

Às sete e trinta já estávamos diante do Odeon vendo quem entrava para aguardar a segunda sessão que começava às oito e terminava às dez. O cinema ficava num belo prédio de dois andares, cujo o lado esquerdo (de quem olhava) abria para o sobrado do comendador Fonseca (em cima) e para a Charutaria Flor de Minas (em baixo) [...] . A edificação bem estilo belleépoque, das mais elegantes daquele trecho, era pintada dum pardo claro, realçado pelas saliências e ornatos da fachada, passados também a óleo – mas creme. O cinema tinha cinco portas. Ficavam abertos, na hora dos espetáculos, apenas os gradis do centro (entrada) e extrema direita (saída). Os outros, sempre trancados, eram tapados do lado da rua pelos enormes cartazes com uma cena do filme que estava sendo levado, seu título, o nome dos astros em garrafais e mais a especificação do número de suas partes. Todas essas portas eram guarnecidas por bandeirolas de serralheria prateada semelhantes às das três sacadas de cima, do salão de baile do Clube Belo Horizonte. (Beira-mar, p. 86-87)

Já o Clube Belo Horizonte, localizado no andar superior ao Cine Odeon, era a “casa onde se reunia a

elite da cidade” e que possuía um animado salão de danças. Em 1978, esta edificação foi demolida

dando lugar ao edifício do banco Itaú.

Como Clube Belo Horizonte fora inaugurado em 1904, tendo sido seu primeiro presidente o dr. David Moretzsohn Campita. Era a casa onde se reunia a elite da cidade e funcionava, quando o conheci, como já ficou dito, nos altos do Cinema Odeon. Logo no corredorzinho de entrada o Paulo mostrou porta à esquerda. Essa é a sala de leitura. Era alegre, empapelada de cinzentoclaro com frisos brancos, larga mesa central redonda, com todas as revistas e jornais fornecidos à leitura dos sócios. Estes e aquelas eram presos em longas varas de madeira – dobradiça na extremidade e cadeadinho na outra, para as folhas não desaparecerem. Sofá, poltronas, cadeiras de palhinha. Nas paredes, retratos dos presidentes e beneméritos de fino grêmio. [...] Desta sala passamos à da frente, a dos bailes, com mobiliário preto torneado e muito belle-époque, sofás e cadeiras ao longo das paredes. Duas jardineiras com altos espelhos se defrontavam ao longo das paredes – uma em cada parede lateral. No canto direito de quem entrava, um estrado para a orquestra, onde se viam as estantes das partituras e fechado, um belo Pleyel espelhante e negro (Beira-mar, p. 91-21).

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Figura 6: Fotografia do Clube Belo Horizonte, em Belo Horizonte, datada de aproximadamente 1905, segundo anotação de Pedro Nava. A primeira imagem contém “máscara” feita pelo autor, com a numeração sobre as fachadas das edificações, descritas em legenda no verso. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Figura 7: Fotografia do Clube Belo Horizonte, considerado por Pedro Nava “a casa onde a elite da cidade se reunia”. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Figura 8: Imagem do verso da fotografia, com legenda feita pelo autor, identificando os números relativos a cada edificação e seus usos. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

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A Rua da Bahia e suas edificações mais nobres, como o citado Clube, representavam a elite

republicana mineira, que se adaptava progressivamente à vida cosmopolita da nova capital, aos

moldes das metópoles europeias, nos encontros em seus cafés, tabacarias e lojas de luxo. Dentre as

modernidades trazidas pela era da máquina e da velocidade, os bondes fazem parte das memórias

de Nava e dos demais habitantes de Belo Horizonte naquele início de século. Os que passavam na

rua da Bahia (Figura 9) levavam os passageiros ao bairro Serra, a atual Praça Diogo Vasconcelos (na

Savassi) e, mais tarde, aos bairros Carmo e Sion. Nas memórias de Nava, andar de bonde, apesar

de ter sido um meio de transporte democrático, onde todas as classes sociais se serviam dele, era

um luxo, como descrito no trecho abaixo.

Para economizar nos bondes, só andava a pé. Cedo descia da Serra para a faculdade. Acabadas as aulas da manhã ia para casa, no calcanhar. Almoçava às pressas. Despencava novamente da Serra para a praça da Liberdade e descia até o Bar do Ponto. Aí me concedia o luxo de gastar um tostão de bonde para ir à casa jantar e outro tostão para descer até Bahia, os amigos, o cinema, o botequim. Depois, nova subida a pé para a rua Caraça. Eram quilômetros por dia (Beira-mar, p. 168).

Figura 9: Postal da cidade de Belo Horizonte com visada da Rua da Bahia e destaque para o abrigo de bondes, pertencente à coleção particular do autor. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Nem só de “subidas e descidas” de rua da Bahia era a vida do jovem Nava na capital. O estudante de

medicina e servidor público na Diretoria de Higiene dividia seu tempo entre as duas funções, o que

não era tarefa fácil. A necessidade de ajudar nas despesas da casa fizeram com que Nava

procurasse emprego antes mesmo do curso de medicina começar, encontrando, por intermédio

familiar, uma “colocação” na Diretoria de Higiene, permanecendo no serviço burocrático até o final de

seu curso. Para Nava, sua impressão sobre a “vida funcionária” na época era: “aquela entrada num

ramerrão repetido dia a dia e duma igualdade de encher linguiça”. Tanto no trabalho, quanto na

faculdade, Nava, já como memorialista, denuncia a falta de compreensão de seus chefes e

professores que, cientes da jornada dupla do jovem, não facilitavam seus afazeres. As mágoas do

passado e das pessoas aparecem com frequencia em suas memórias, nos momentos em que

identifica padrões de injustiça perante sua condição social ou pelos padrões morais impostos na

época.

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[...] Eram quilômetros por dia. Fora disso, o estresse moral do medo dos descontos, de minhas falhas atingirem nível que impedisse exames de primeira época. Magro, exausto, agreste e preocupado vivia correndo, por falta dum tiquinho de tolerância dos bestalhões meus superiores na repartição, pela dureza do regulamento da faculdade, pela passividade dos estudantes que curvávamos o lombo a toda tirania. (Beira-mar, p. 168)

Voltando aos relatos da rua da Bahia (Figura 10), local de diversão e cartase do jovem Nava, frente à

rotina pesada que a vida lhe impôs, a rua neste momento, nos anos 1920, consolidava suas feições

ecléticas e preparava-se para os anos 1930, quando uma nova linguagem florescia, através da

estética art-deco, presente até mesmo no já citado Viaduto Santa Tereza, inaugurado em 1929.

Figura 10: Postal da cidade de Belo Horizonte com visada sobre o cruzamento da Rua da Bahia com a Av. Afonso Pena, pertencente à coleção particular do autor. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava. Reprodução: Raquel Portes, 2016.

Ao longo das décadas seguintes, a rua da Bahia passou por diversas mudanças, desde a aparência

de suas edificações até o inevitável destino, sua verticalização. Contudo, restando aqui e ali um

pouco de cada época, a imagem da rua é formada pela diversidade, onde se intercalam edifícios bem

verticalizados e outros de baixa altura, fachadas neogóticas, ecléticas, art-deco, modernas e

contemporâneas, formando um percurso rico, marcado por diferentes texturas. O ‘subir e descer a

Bahia’ surpreende ainda hoje pela morfologia do espaço, composto por diversos cruzamentos, como

nas Avenidas Afonso Pena, Augusto de Lima, Álvares Cabral e Bias Fortes e pelos alargamentos

como os formados pela Praça da Estação e o ladeamento ao Parque Municipal.

A diversidade de formas, usos e pessoas compõem ainda hoje a rua da juventude de Nava, palco das

mais diversas experiências e emoções vivenciadas pelo autor. Nas memórias do velho, o saudosismo

e a melancolia acertam em cheio o coração do autor e se multiplicam como “ferros pungindo em

brasa” ao longo dos anos.

Eu conheci esse pedaço do belo belo Belorizonte, nele padeci, esperei, amei, tive dores de corno augustas, discuti e neguei. Conhecia todo mundo. Cada pedra das calçadas, cada tijolo das sarjetas, seus bueiros, os postes, as árvores. Distinguia seus odores e suas cores de todas as horas. Seu sol, sua chuva, seus calores e seu frio. Ali vivi de meus dezessete aos meus vinte e quatro anos. Vinte anos nos anos 1920. Sete anos que valeram pelos que tinha vivido antes e que viveria depois. Hoje, aqueles sete anos, eles só, existem na minha lembrança. Mas existem como

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sete ferretes e doendo sete vezes sete quarenta e nove vezes sete trezentos e quarenta e três ferros pungindo em brasa (Beira-mar, p. 46).

ALGUMAS CONCLUSÕES ...

A rua, elemento estruturador do tecido urbano na visão da morfologia urbana, é, nas memórias de

Pedro Nava, também elemento estruturador de sua narrativa. Através dos deslocamentos e passeios

pela cidade, o leitor participa com o autor da rica e densa tecitura formada pelos edifícios, retas,

curvas, subidas, descidas, encontros, cheiros, sons e pessoas que compõem as ruas.

No tocante à percepção do processo de formação e transformação do tecido urbano, observado por

Lamas, é também nas ruas onde Nava destaca o surgimento de novos usos ou construções, como

também denuncia e lamenta a perda de seus referenciais identitários. Assim são narradas, por

exemplo, a construção do Automóvel Clube e Conservatório de Música em Belo Horizonte, como

também a demolição do emblemático Palácio Monroe no Rio de Janeiro .

Admirada desde a infância através dos jardins e janelas das casas, a rua permeia toda a escrita de

Nava, desde seus primeiros livros, nos quais o autor guia o leitor pelas ruas, a fim de explicar a

formação da cidade e localizar, dar-lhe referência espacial do lugar que habita ou estuda. Porém, é

no momento de sua juventude que a rua “ganha presença em Nava” e, para além de lugar de

deslocamento, ela passa a atuar como lugar de encontro.

Através da rua da Bahia, podemos visualizar as diferenças elencadas por Da Matta em A casa e a

rua, em que os códigos de comportamento na rua, na juventude do autor, são incompatíveis com os

modos da tradicional família mineira no ambiente da casa. Entre rua e casa, dois mundos se

estabelecem, assim como na visão dualística de Nava. Momento de transgressão, vanguardismo,

paixões arrebatadoras e fulgazes, a juventude de Nava, em Belo Horizonte, ficou marcada na

memória do velho narrador, uma cidade que hoje, pouco se tem referências materiais. A nova capital

mineira, vivenciada por Nava, Drummond e os rapazes do Grupo do Estrela, é exemplo de projeto e

implantação de uma cidade nova e moderna, acontecida de forma inédita no Brasil, na virado do

século XIX para o XX.

Neste sentido, enquanto urbanistas, os anos vinte de Nava nos propicia acompanhar o fenômeno

urbano ocorrido na capital mineira, para além dos dados frios dos mapas da cidade ao longo do

tempo, ou pelas fotos e relatos históricos. Junto com o autor, percebemos as diferentes nuances do

tecido e da vida urbana através da rua, na promissora, contraditória e cosmopolita Bello Horizonte.

Desenhada por Pedro Nava através de seu processo de escrita e projetada por nossa imaginação

através da leitura, é no espaço urbano dessas cidades sensíveis que encontramos o elo entre o

passado e o presente. Despertados com aporte material ou imaterial de nossas heranças

patrimoniais, (re)surgem lugares, caminhos, cheiros, gostos, que compõem uma paisagem

sentimental.

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