um rio de janeiro linear as referências soviéticas no...

13
XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 UM RIO DE JANEIRO LINEAR? As referências soviéticas no debate urbanista carioca entre os anos 1930 e 1940. EIXO TEMÁTICO – IDEÁRIOS, URBANISMOS E PROCESSOS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO GUILHERME BUENO, Doutor pelo PPGAV-EBA-UFRJ, Professor Adjunto da Escola de Belas Artes da UFMG, Professor Colaborador do PPGARTES-UERJ, pesquisador colaborador do PROARQ-FAU-UFRJ, ex- professor do DAU-PUC-Rio. RESUMO O artigo faz uma introdução as referências sobre arquitetura e urbanismo das vanguardas soviéticas disponíveis no Rio de Janeiro no Entre-Guerras. Junto com a investigação sobre tal bibliografia, tenta- se indicar seus traços em livros e artigos publicados na cidade, pretendendo assim reintroduzir algumas fontes pouco lembradas hoje, bem como saber se essa produção deixou algum vestígio formal. Ao longo do exame dessa recepção observa-se a ênfase no debate sobre cidade linear e cidade radial, em um momento em que a cidade do Rio passava por mais um período de transformações. PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Arquitetura e urbanismo soviéticos; Arquitetura e urbanismo, anos 1930-1940.

Upload: trannga

Post on 09-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO

A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

UM RIO DE JANEIRO LINEAR? As referências

soviéticas no debate urbanista carioca entre os anos

1930 e 1940.

EIXO TEMÁTICO – IDEÁRIOS, URBANISMOS E PROCESSOS DE

INSTITUCIONALIZAÇÃO

GUILHERME BUENO, Doutor pelo PPGAV-EBA-UFRJ, Professor Adjunto da Escola de Belas Artes da UFMG, Professor Colaborador do PPGARTES-UERJ, pesquisador colaborador do PROARQ-FAU-UFRJ, ex- professor do DAU-PUC-Rio.

RESUMO

O artigo faz uma introdução as referências sobre arquitetura e urbanismo das vanguardas soviéticas

disponíveis no Rio de Janeiro no Entre-Guerras. Junto com a investigação sobre tal bibliografia, tenta-

se indicar seus traços em livros e artigos publicados na cidade, pretendendo assim reintroduzir algumas

fontes pouco lembradas hoje, bem como saber se essa produção deixou algum vestígio formal. Ao

longo do exame dessa recepção observa-se a ênfase no debate sobre cidade linear e cidade radial,

em um momento em que a cidade do Rio passava por mais um período de transformações.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Arquitetura e urbanismo soviéticos; Arquitetura e urbanismo, anos 1930-1940.

2

RIO DE JANEIRO, LINEAR CITY? THE SOVIET

REFERENCES ON THE LOCAL URBAN PLANNING

DEBATE BETWEEN THE 1930´ AND 1940´S.

ABSTRACT / RESUMEN

This paper is an introduction to the bibliographical references on soviet avantgarde architecture and

urban planning accessible to professional circles in Rio de Janeiro during the Interwar period. After an

examination of some books and periodicals published there, on intend to reintroduce to a contemprary

audience some intellectual ressources today almost forgotten. As a conclusion, one argues if there

remains some trace of their influence among us, concerning particularly its presence in the debate on

linear city and radial city urban models, as Rio, durign those years was again in a very process of

changes.

KEY-WORDS: Historiography; Soviet avantgarde: architecture and urban planning; Architecture and urban planning, 1930-1940´s.

3

Às vezes, coincidências dão margem para especulações distendidas, senão exageradas - ainda que não despropositadas. Há duas imagens de 1930 que, ladeadas, nos seduziriam para a terra dos pseudomorfismos, mas, apesar (ou justamente em função) das aparências, elas de fato falam sobre algo - um sentimento - comum: refiro-me aos registros da passagem do Graf Zeppelin sobre o Rio de Janeiro e a um desenho de Ivan Leonidov, seguramente inspirado pela ocasião da visita do dirigível a União Soviética durante sua turnê mundial, no qual ele sobrevoaria - numa fotomontagem - um de seus projetos (figuras 1 e 2).

(fig.1. O Graf Zeppelin sobrevoa o Rio de Janeiro, 1930; figura 2. Ivan Leonidov. Projeto para um Palácio da Cultura. Detalhe

da capa de Sovremmenaya Arkhitektura, n. 5, 1930)

Comparar os dois registros tomando o Zeppelin como um objeto mediador é notar como ele estabelece uma relação entre uma cidade real (e enraizada no passado) - o Rio - e outra que é pura invenção voltada para o futuro (que só existe como questão do presente, ficção por nascer), mas que partilham de uma simultaneidade mais do que temporal, de ansiedade histórica. Teria a cena de Leonidov sido vista por nossos arquitetos, inspirando-lhes a sonhar como poderia ser o Rio de Janeiro em alguns anos e que o Zeppelin poderia em breve sobrevoar outra cidade? É provável que não, mas, deixando de lado o devaneio, tomamos a liberdade dessa sobreposição apenas como um convite para dizer que o Zeppelin, como um ícone de um mundo em transformação - novas distâncias e velocidades, novos meios de deslocamento, novas coordenadas -, era uma metáfora para uma nova relação entre espaços habitáveis e mobilidade (uma nova geografia, literalmente, em andamento) e unia pontos tão distantes como nossa cidade e algum rincão da União Soviética num mundo que, mesmo imaginário, é uno em seu internacionalismo. No que o Zeppelin encurtava o planeta, o urbanismo poderia fazer o mesmo dentro das cidades. Porém, tirando partido daquela comparação e sendo direto no nosso assunto, o Rio, nesse momento, vivia com forte intensidade mais uma de suas viragens em que talvez novos desenhos pareciam possíveis. E, retornando definitivamente nossos pés ao chão e falando concretamente, inventamos esse paralelo para atiçar um problema real: investigar as fontes russas disponibilizadas no debate carioca sobre o urbanismo entre as décadas de 1930 e 1940 e como elas participam de sua dinâmica. Assim como outras referências - inglesas, americanas, alemãs, tchecas - ela cumpre um papel coadjuvante e não desconstrói o protagonismo do diálogo com Le Corbusier. Na medida em que revisitamos periódicos, livros (e seus proprietários), convivemos com esse universo que não era tão vasto e carismático como aquele da aura corbuseana, mas ganha traços reais que pareciam perdidos em menções evasivas a nos dizer que as outras vanguardas eram conhecidas, sem, contudo, se esclarecer como o foram ou no que nos importaram, recaindo na menção de que "estavam no ar" (no ar estava apenas o Zeppelin). Nosso propósito é, portanto, indicativo, ao nos lembrar a justa medida da extensão de nossa cultura visual e bibliográfica, pois, não obstante sua mais ou menos discreta presença, essas diversas frentes deixam entre nós alguns traços, a nos sugerir uma configuração mais polimorfa. Aqui nos ateremos apenas a um episódio, ainda em fase de levantamento, pois mesmo entrelaçados (dando o tom da recepção local), cada um desses campos produtivos e intelectuais é generoso o bastante para oferecer estudos individuais e pormenorizados. Por quê as fontes soviéticas? Se o impacto da revolução não basta como argumento, diria que ela ratifica a condição de Moscou (tomando-a por metonímia da União Soviética) como postulante a uma das capitais emblemáticas do globo, uma disputa que tinha dentre seus concorrentes Paris, Londres, Berlim, Frankfurt, Chicago, Nova York, o que já fazia da cidade russa ser uma referência inalienável. E, também, pela impressão na época de lá surgirem cidades novas e totalmente diferentes das demais. Isso dito, temos quatro pontos importantes: (a) é possível recuperar objetivamente nosso contato com as fontes russas das vanguardas; (b) elas chegam divididas entre fontes primárias e secundárias, mas aportam principalmente mediadas por publicações em língua alemã; no caso das fontes secundárias, elas já implicam uma recepção informada por uma certa crítica analítica; (c) talvez tão subliminar como outras dessas matrizes (e menos perceptível), é razoável a detecção de sua influência, mesmo que restrita a um plano especulativo e teórico; (d) um impacto mais franco delas está no papel (literalmente... no papel) que exercem na discussão sobre a expansão da cidade. Decorrente disso,

4

não se deve obliterar a alternância entre visões estéticas, funcionais e ideológicas no trato com nosso objeto. Em resumo, temos nas linhas acima as propostas principais deste trabalho, cuja intenção é acrescentar uma peça ao mosaico da bibliografia aqui circulante entre as décadas de 1930 e 1950 e como ela aparece nos textos de autores brasileiros.

* * *

Quando, em parceria com José de Oliveira Reis, Adalberto Szilard publicou em 1950 o livro Urbanismo no Rio de Janeiro, a cidade já havia passado em meio século por dois projetos de remodelação de seu centro, ambas auto-enunciadas como modernizadoras, mas que repetiam - apesar das diferenças - uma mesma ideologia a respeito da cidade. Passáramos do velho bulevar aristocrático (Avenida Central) para o desfile espacial da burocracia pós-tenentista (Avenida Presidente Vargas), mas o desafio da cidade industrial e da moradia para uma população em crescimento, assim como a expansão ocupacional desordenada, ganhavam contornos cada vez mais enfáticos e inescapáveis, seguindo irresolutos. Como essa outra realidade poderia ser amalgamada e equacionada num contexto de reordenação das elites após o Estado Novo, no qual passam a coexistir demandas como a reinvenção de uma imagem estatal, a onipresente especulação imobiliária e a premência em lidar simultaneamente com emergentes classes burguesas e proletárias (some-se a isso outras tantas propostas, como aquelas de Le Corbusier e Agache, e vale nesse mesmo período incluir o estudo da transformação de sua vizinha Niterói, desenvolvida por Attilio Correia Lima)? Tais mudanças e encruzilhadas em um curto espaço de tempo eram uma marca significativa para uma cidade cuja necessidade de renovação ou reconstrução não decorrera de uma destruição externa abrupta nem de entusiasmo revolucionário - só se ouviu tiros de canhão nela na Revolta da Armada e nos 18 do forte - ou seja, ela foi arrasada por um outro tipo de "ação", a saber, as ditas reestruturações simbólicas do Estado e de suas classes entre a República Velha e o Varguismo que a rigor não feriram de morte o status quo. Seu parque industrial, apesar de existente e relevante (o segundo maior do país, ficando atrás de São Paulo), não chegou a constituir em seu interior uma cidade industrial, quando muito zonas industriais, como o autor admite. Apesar de recorrer a uma situação absolutamente hipotética e ao expediente retórico de fazer uma "profecia do passado", não é difícil desconfiar que Szilard, baseado nessa experiência, tivesse escrito seu livro imaginando que um novo ciclo estaria por vir (e ele estava certo, quando lembramos que estava em vias de começar a transformação do Morro de Santo Antônio, tratada por ele). A questão, portanto, seria de como conscientizar e fornecer elementos teóricos para a fundamentação de futuras soluções (o arquiteto dirige-se mais de uma vez, dentre outros, ao seu leitor leigo) e, por extensão, discutir quais modelos poderiam ser aplicados numa cidade que eludira ser escravocrata, disfarçara-se de aristocrática, criara uma nova efígie burocrática, mas até então não enfrentara um hipotético (para usar as palavras de Szilard) "urbanismo democrático". Em meio a tantas demandas de diversas ordens, surge, aliás, uma das particularidades de seu livro: após cotejar diferentes abordagens, ele sugerirá para o Rio uma proposta a um só tempo progressista e compósita (voltaremos a isso depois). No entanto, o nosso tema, reconhece em Urbanismo no Rio de Janeiro talvez menos um ponto de partida do que um de chegada, pois esses outros programas - dentre os quais o russo, em especial o construtivismo - que são comentados por ele, restituem uma cultura de imagens e desenhos disponíveis entre nós desde os anos 1930, discutindo outras estratégias projetuais de partilha, percepção e uso do espaço público. O caso russo (e numa escala relativamente próxima, o da República de Weimar) constituem, como indicamos, um escopo emblemático, pois a escolha formal pressupõe lidar com sua estrutura ideológica subscrita, ou seja, o tipo de cidade e de sociedade a ser materializada; não era uma escolha estilística (lembremos nessa época ser corrente em diversos textos - e os termos são aplicados também entre nós - falar-se da "cidade capitalista" e da "cidade socialista"), além do exame de proposições muitas vezes realizadas, algumas aparentemente sem precedentes. Sei que faço uma menção genérica e batida, mas até que ponto ela não tinha uma consistência real naquela época? Sendo mais preciso e retornando a questão para nós, num Rio de Janeiro que jamais se sonhou de fato socialista, qual a natureza da infiltração que os ensinamentos soviéticos ofereceriam? Mal a mal, enquanto cidade desejante por se tornar definitivamente moderna, uma das capitais globais do hemisfério sul, o Rio poderia abrir-se como um solo hipoteticamente fértil para especulação, interpretação e negociações. Sob este ângulo, o debate urbanista "importado" da União Soviética teria relevância maior do que sugerida por sua presença menor. Digo isso porque ele condensa uma questão sobre a qual recorreremos insistentemente aqui: ao exemplificar o recente estado da questão da oposição entre o desenho "radiocêntrico" e a extensão linear da cidade, implicando em temas como desurbanização,

5

crescimento orgânico ou planejado, campo e cidade industrial (ademais, o Rio desafiava pelo sempre mencionado embate entre geometria e topografia), o recente processo de industrialização e de construção de cidades na União Soviética - estas também em escala industrial e ilustrativas do que seria uma racionalização de suas funções e potencial crescimento - representava alguns dos casos mais atuais e marcantes do uso dessas duas abordagens. Além de inquirir o que configuraria o modelo mais adequado para a cidade moderna, essas novas cidades contavam com dois fatores a seu favor: eram situações ora de espaços construídos a partir do nada (ou quase) e de outros nos quais um tecido já havia historicamente se definido; poderia haver a defesa do arrasamento do passado ou de um ajuste frente as cidades existentes. Mas eram sobretudo experiências de uma segunda geração moderna, que já dispunha de um recuo temporal, mesmo que mínimo, das realizações de Soria y Matta, Howard e Unwin, investindo-as agora de um novo cunho. A tradução para nós adquire sentido adicional: o Rio poderia ser pensado a partir de uma leitura crítica de experiências realizadas em outros lugares. Falamos de Szilard (e falaremos mais), porém nossa história começa entre outubro de 1932 e julho de 1933. As datas são arbitrárias, mas se justificam: afinal, nos números 2 e 5 da Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal aparecem os artigos Duas cidades industriais modelares e A Rússia e seus problemas de urbanismo, de autoria, respectivamente de Armando de Godoy (redator-chefe da publicação) e do engenheiro pernambucano José Estelita (na mesma época no Rio de Janeiro, além das edições de Das Neue Frankfurt com registros da União Soviética, estava acessível na Biblioteca Nacional desde 1936 o livro Die Baukunst der neuesten Zeit, de Gustav Adolf Platz, no qual também constavam exemplares daquela arquitetura - podemos mesmo supor que através dele a modernidade no Rio foi esclarecida a respeito da palavra "construtivismo"; por sua vez, na Escola de Belas Artes podia ser consultado livro Städtebau und Wohnungswesen der Welt, de Bruno Schwan, nascido numa mesma perspectiva internacionalista de Platz). Um dado valioso - como em Estelita - é, ao final, a indicação ou presunção das referências bibliográficas, fornecendo-nos uma base de onde essas ideias chegavam e quem era capaz de filtrá-las e traduzi-las. No primeiro artigo, de Godoy, a cidade de Magnitogorsk, um dos novos dínamos soviéticos, é alvo de um estudo comparativo frente a Gary (Michigan), espelhando um exame feito mundialmente - no fundo, a competição citada acima entre as cidades capitalista e a socialista, ambas reinventadas a curto prazo. Antes de tudo, devemos enfatizar que se trata de um texto mais devotado a tarefa de atualização da crônica mundial, como perceberíamos em outras contribuições para a revista. Godoy é essencialmente apologético, vive - como não surpreenderia em sua época - uma admiração confusa por Stalin e Mussolini e não perde a oportunidade de exortar nossos governantes a tirar alguma lição dos exemplos russo, norte-americano (além do italiano e do turco), quem sabe dali adotando algo. Ainda assim, no único - e curto - trecho em que descreve propriamente a organização da cidade, ele nos dá uma pista sobre o que poderia interessar ao meio brasileiro na solução de um planejamento articulado:

Os russos [...] renunciaram, em parte, à organização dos bairros residenciais, conforme o exigiam as suas ideias sobre educação. Reservaram bairros para os habitantes da cidade que não abdicaram dos princípios que os povos civilizados vão mantendo e que dizem respeito ao elemento fundamental da sociedade - a família [perdoem-me a intromissão, mas esta é uma observação típica de um engenheiro católico]. Três bairros apresentam casas residenciais como as das cidades jardins. As casas dos bairros propriamente comunistas não têm a mesma composição, não se notando nelas os compartimentos destinados à cozinha e as refeições. Os pais e os filhos para a sua alimentação se utilizam do restaurante do clube do bairro. Os bolchevistas, de acordo com os princípios do urbanismo, em relação a nova cidade, foram particularmente exigentes quanto aos seguintes elementos: abastecimento de água e gás, energia elétrica, transportes, arborização, campos de recreio, piscinas, parques, etc. Magnitogorsk será a cidade que apresentará a maior porcentagem de superfícies em parques1.

A conciliação das abordagens distintas da cidade jardim e dos condensadores sociais (como as habitações coletivas eram nomeadas pelos construtivistas) – posto que envolvem o limite entre propriedade de uso individual ou comunal – se configura como uma solução intermediária no tema corrente das oposições entre cidade capitalista x cidade socialista, ao transigir entre o coletivismo e uma simulação de propriedade privada e, no que diz respeito a cidade socialista, a melhor plataforma que equacione concentração e dispersão ou ainda contemporize o equilíbrio entre espaços comuns (ilustrada na coexistência de cidades jardins e habitações sociais, a rigor, defensoras de modelos de sociabilidade e família antagônicos) e a disposição espacial seja do fluxo de serviços seja das áreas comunais (a oposição entre a distensão da cidade linear e a reincidência da "coroa da cidade" na

1 GODOY, Armando de. Duas cidades industriais modelares. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, número 2, outubro de 1932, 14.

6

definição de um centro ou "campo magnético", para usar duas expressões das gerações anteriores). Conforme veremos em outros exemplos, essa é uma conclusão corriqueira dentre os críticos brasileiros. Se em outras ocasiões, como no texto de Estellita, ela deflagra a tônica da escolha entre cidade concêntrica e cidade linear (ou, mais uma vez, de uma inesperada sobreposição), aqui ela surge apenas indiretamente. O que é mais curioso é perceber que a "fonte russa" de Godoy não são nem os desenhos de Leonidov, tampouco o projeto desurbanista de Barsch, Okhitovich, Vladimirov e Sokolov, representativo da abordagem da cidade linear segundo o construtivismo russo. É plausível atribuir pelo menos uma de suas referências bibliográficas aos exemplares de 1931 da revista Das Neue Frankfurt, tanto por uma presença concreta delas dentre nós, como pelo fato de seu texto centrar-se no projeto da equipe do arquiteto Ernst May (em detrimento de seus concorrentes soviéticos) a um só tempo um emigrado - ou "convertido", pois que ele adota nova pátria - e principal responsável pelo planejamento urbano da Magnitogorsk, transformando-a rapidamente em uma cidade industrial do século XX capaz de criar redes eficazes de transporte regional e mobilidade interna, abrigar dignamente (ou ao menos tentar) uma população significativa, solucionando um delicado equilíbrio entre vantagens econômicas e condições geográficas muito adversas. Alvo de intensa propaganda stalinista, dinamizada pelas novas políticas econômicas soviéticas (May será um de seus proselitistas, num gesto de adesão e auto-propaganda), a cidade virara um dos corações da URSS e, em seu solo, testavam-se soluções como casas em série, desenvolvimento linear, estética da máquina, estruturas pré-fabricadas. Enfrentava-se uma situação de cidade para o século XX (um século que parecera, por outro lado, nunca chegar integralmente ao Rio). Ainda que Godoy lide apenas com o problema da "cidade socialista", sua dívida com o artigo de May não se restringe a uma circunstância idiomática nem se ressente com um urbanismo russo projetado - dentre outros - por um alemão (havia precedentes para isso, e, lembremo-nos, lidamos com uma esfera internacionalista), mas revela-nos duas questões significativas: todo o debate soviético - que tivera dentre seus atores Barshch e Leonidov (afora outros), chega filtrado através de May e, mais ainda, através da tradução de Godoy. Recorramos, pois a essa fonte atribuída. May publica em Das Neue Frankfurt entre 1930 e 1931 três matérias dedicadas a União Soviética. As duas primeiras são de menor importância, uma sendo apenas uma despedida de seus compatriotas e o anúncio de sua emigração e outra uma reportagem fotográfica sobre o plano quinquenal2. O último texto - Der Bau neue Städte in der UDSSR3 -, publicado na edição de julho de 1931 é referencial. Dele provém os planos realizados por ele tanto para Magnitogorsk quanto para outras cidades, além das plantas das unidades individuais e coletivas. May, além disso, discorre longamente em diversas seções sobre os problemas, forma, estrutura e construção da cidade socialista, a cidade dormitório (Trabantenstadt), o trabalho feminino e o novo conceito de família, educação pública, política habitacional. Antes do detalhamento técnico, May revela sua relação com o modelo da cidade linear, mesmo admitindo que as circunstâncias da União Soviética impedem a determinação de uma solução apriorísitca definitiva, conforme se percebe no trecho abaixo (cujas partes foram interpoladas por mim):

Mas dessa nova conformação da vida social no todo, que dá forma aos fundamentos de toda a construção de habitações e cidades na sexta parte da Terra distendida na União das Repúblicas Socialistas, segue-se sem mais, que esses conceitos também estão antes de tudo no devir; hoje ainda não é possível dar algo como uma receita [...] Os conhecimentos elementares do planejamento urbano levados a cabo na Europa Ocidental nos últimos anos e ainda levados a cabo em conceito, também formam na URSS o alfabeto do planejamento. Separação clara da área industrial da habitacional, coordenação [Durcharbeitung] racional do trânsito, organização sistemática do solo, valem portanto igualmente como pressupostos para um planejamento mais saudável [...] [E]m meu projeto [para Magnitogorsk], embora eu tenha reagido ao pensamento da cidade linear, aqui ela foi ditada diretamente pela natureza, mas em sequência: vias aquáticas, linha portuária, indústria, faixas verdes, faixas residenciais, elevação do segundo terraço do Volga4.

Ainda assim, não podemos desviar do subtema recorrente (e que na verdade se faria presente no texto de Estelita): reconhecidos os desafios envolvidos no projeto de uma cidade industrial (infraestrutura, transportes, moradias, recreação, serviços - enfim, pontos intrínsecos a qualquer planejamento

2 MAY, Ernst. Abschied von den Russlandfahren. Das Neue Frankfurt. Frankfurt Am Main: Verlag Englert und Schlosser, n. 9, setembro de 1930: 197-210. MAY, Ernst. Aus den russichen Funfjahresplan. Das Neue Frankfurt. Frankfurt Am Main: Verlag Englert und Schlosser, n. 6, junho de 1931, 100-103. 3 MAY, Ernst. Der Bau neue Städte in der UDSSR. Das Neue Frankfurt. Frankfurt Am Main: Verlag Englert und Schlosser, n. 7, julho de 1931, 117-134. 4 Id. Ibid., 117-118; 123.

7

urbano), reaparece o leitmotiv cidade concêntrica x cidade linear (um detalhe curioso é que May usa para ela o termo Bandstadt, enquanto Estelita menciona-a como Linienstadt, o que nos levaria a indagar se a diferença de termos implica dissensos significativos), o qual May, na verdade, explora na conveniência ou não do alinhamento entre cidade socialista e linear. Nesse sentido é válido indicar que essa questão já aparece em Estelita como uma oposição derivada daquela outra acima mencionada. Assim sendo, é importante indicar como May reitera que a decisão acerca do desenho de uma cidade, por mais que deva observar rigorosamente aspectos funcionais, resulta numa forma que traduz material- e espacialmente sua ideologia, conforme sustentáramos linhas acima. É o que se percebe em outro trecho de seu artigo, o qual, durante sua leitura, recomenda-se ter mais uma vez em mente qual sentido poderia ecoar entre nós, ou seja, o que podemos fazer a partir ou com a experiência da cidade socialista. Vamos a uma nova passagem de May:

Mas desses fundamentos construídos de uma maneira geral, começa o verdadeiro problema da cidade socialista, isto é, o desenvolvimento de um corpo da cidade, cuja consistência num todo – assim como suas ligações internas num todo – diferem fundamentalmente das cidades capitalistas do resto do mundo. Pensamos a constituição de nossas cidades sobretudo a partir dos mercados e dos negócios, sua conformação [Gestaltung] é influenciada decisivamente pela propriedade privada do solo e do terreno; daí a base para a construção de novas cidades na União [Soviética], sempre e somente na produção econômica, seja na forma de combinações industriais, seja na forma de kolkhozes econômicos. A densidade construtiva dessas cidades não será mais como acontece entre nós e, acima de tudo, nos Estados Unidos, influenciada em parte pelo elevado preço da terra, mas apenas pelas leis da higiene social e da economia, ainda que se deva saber que a palavra “economia” assumiu, para além da fronteira com a Polônia, um novo significado5.

Em certas horas, devemos nos expor ao risco de imaginar como ideias assim poderiam ser lidas dentre nós. Que lugar uma posição como essa poderia ter no Rio de Janeiro, cuja burocracia esclarecida entendia as consequências desse novo entendimento de cidade em jogo (vale lembrar da tendência esquerdizante de alguns arquitetos ativos na prefeitura), mas numa circunstância bastante distinta das cidades socialistas? Como evitar transformar aquelas lições num mero formalismo? Apesar de todos os pesares – e partícipe a um debate internacional mais amplo – a cidade socialista presumia certos aspectos técnicos que não poderiam ser desprezados e que, de um modo ou outro, reverberavam em hipóteses para a ocupação e distribuição espacial e demográficas de uma nova cidade a surgir dentro da velha cidade. Isso será patente no posterior estudo de Szilard. Ainda assim, detenhamo-nos mais uma vez sobre o texto de May, relevante fonte informativa para nossos arquitetos e urbanistas nos anos 1930. Nele, May fala sobre a delimitação da cidade e de uma integração em rede, conforme se aprendera com o projeto da cidade socialista (outro lembrete útil – o Rio ainda era uma cidade porosa nos limites entre área industrial e rural):

Concluiu-se que, no que diz respeito a forma total da cidade, deve ser evitado no futuro que a metrópole supere a quantidade de 150 a 200 mil habitantes [...] O plano quinquenal, por conta disso, prevê a descentralização da produção industrial e, com isso, rejeita automaticamente o fundamento da excessiva concentração humana6.

Sem deixar para trás essas considerações, passemos a Estelita. Em seu artigo, diferente de Godoy, ele recorre a uma fonte direta, M. Ilyin, cujo texto Städtebauliches aus Russland fora traduzido para o alemão na edição 5, do ano de 1931 do Wasmuth Montashefte für Baukunst und Städtebau (Estelita o relaciona na bibliografia que finaliza o texto) acompanhado de imagens (além dele, o pernambucano se valerá ainda do artigo do editor-chefe Werner Hegemann - Das Wohnwesen in den Städten und neue Industriezentren Russlands - , publicado na mesma revista no ano seguinte). As opiniões de Estelita - aparentemente uma colagem de trechos desses e outros autores citados- reproduzem essencialmente o original: mais uma vez o que parece ser o embate vital entre os defensores da "cidade socialista", que tem como patrono Sabovich, propagandista da centralização na criação de todas as novas cidades, e a [existência], citando o texto original de Ilyin,

[...] de um novo tipo de cidade, que carregue consigo as características principais da cidade socialista e se fundamente numa comunidade total do modo de vida [Lebenshaltung] e resolução da família. Esses "urbanistas" querem criar cidades industriais e agrárias com uma mesma quantidade de pessoas [...] e

5 Id. Ibid., 118-119. 6 Id. Ibid., 120.

8

levar seu morador para edifícios comunais. Sua teoria encontra dentre os construtivistas seus rivais, que sob a liderança dos arquitetos Ginzburg e Okitovich, propõem a chamada cidade linear. Esse grupo de arquitetos quer equilibrar a contradição entre a cidade e o campo - um dos erros principais do regime capitalista - e construir uma teoria do planejamento da cidade (städtebauliche Theorie) que indique [bedeutet] uma total desurbanização e fusão das fronteiras reais e formais entre a cidade e o campo [passim]7.

Para não deixar no limbo minha observação sobre o texto de Estelita, veremos que, ao incorporar as anotações de Ilyin, ele não consegue esclarecer para o leitor a eventual (se existente) diferença entre os edifícios comunais do primeiro caso e os condensadores sociais de Ginzburg, indicando que a disponibilidade para novas informações ainda é proporcional a incompletude em relação as mesmas. O ponto de vista de Estelita é praticamente uma transcrição verbatim do original, inclusive nas ilustrações, como naquela do plano da cidade socialista de Novosibirsk, extraída do artigo de base. Há uma atualização louvável, mas transparece no mesmo tom a ausência de elementos suficientes para levar a cabo a diferença não entre os planos urbanistas, mas acerca do supracitado antagonismo entre os tipos as habitações sociais que para os russos, era nítido. De todo modo, considerando o trecho de Ilyin, vejamos como Estelita se apropria dele (exemplificando uma prática corrente em nossa teoria de arte e arquitetura da época - fazer suas observações alheias):

Os agrupamentos mais recentes, segundo teoria imposta por Sabsowitsch [sic; a reprodução da grafia alemã para nomes russos é elucidativa da terceirização de ideias, ideias por procuração] possuem os caracterísitcos do tipo denominado cidade socialista, onde predomina a vida em comum, na sua mais forte intensidade [...] Há uma corrente, porém, contrária a esse modelo urbano, capitaneada por arquitetos do valor intelectual de Ginsburg e Ochitowitsch [notemos que some o adjetivo "construtivista"], a qual propôs ao governo, como uma medida de descentralização urbana, a adoção do sistema conhecido por Cidade Linear8.

Deixando de lado esse anedotário das fontes - que também arrisca uma intriga reducionista, desmerecedora e injusta - algumas linhas antes Estelita punha em relevo uma questão complexa vivida na União Soviética e, ela, inclusive, dá as linhas para suas apreciações sobre o urbanismo naquele país:

Impunha-se, portanto, não demolir as cidades antigas, mas restabelecer um equilíbrio cada dia mais necessário, o que forçou o Governo Soviético a proceder a descentralização urbana pelo conhecido

processo de construção de cidades auxiliares9. Esse problema, que se mescla ao debate sobre a forma das novas cidades lá em construção (que ele introduzirá por um arrazoado de autores ocidentais que fizeram o balanço das teorias e experimentos da cidade linear - além de Hegemann, ele cita o francês Pierre Bourdeix, o italiano Luigi Piccinato e Prestes Maia) deságua tanto numa crítica da cidade linear quanto, mais a frente, no seu apreço por uma solução que vê em Novosibirsk - assim como ocorrera na recepção de Magnitogorsk - como intermediária, na medida em que alguns elementos estruturais dessa são fundidos com aspectos da cidade jardim, algo patente no seu interesse pela relação entre a área verde a as habitações coletivas (fig.5).

O modelo urbano [da cidade linear] [...] foi proposto ao Governo Soviético por um grupo de arquitetos que querem orientar os novos núcleos industriais de forma que as habitações não fiquem dispostas em torno de estabelecimentos fabris, mas harmonicamente ao longo das grandes linhas de tráfego. [...] Os oponentes ao sistema linear pensam, porém, na inconveniência que há de trazer a separação dos centros operários, residenciais e administrativos. Uma falta apontada é o número excessivo de cruzamento das ruas [...] Outra falha também visível é que as residências ao lado da grande avenida central terão os mesmos defeitos das cidades antigas. Sendo elas dispostas à margem de uma artéria de tráfego intenso, os moradores dessas habitações estarão sujeitos às inconveniências do pó, do ruído, dos acidentes pessoais, etc. Um dos projetos mais interessantes e radicais é o da cidade socialista de Nowosibirks [sic],

7 ILYIN, M. Städtebauliches aus Russland. Wasmuth Montashefte für Baukunst und Städtebau. Berlim: Ernst Wasmuth, n. 5, 1931. O texto é reproduzido também em LISSITZKY, El. Russland. Architektur für eine Weltrevolution: Braunschweig , Wiesbaden: Fried. Vieweg & Sohn, 2000, 159-160. 8 ESTELITA, José. A Rússia e seus problemas de urbanismo. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeietura do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, número 5, Julho 1933, 11. 9 Id. Ibid., 11.

9

atualmente em construção [...] defronte da antiga cidade do mesmo nome. Ela [...] não é rigorosamente do tipo linear10.

Visualmente, alguns desses pontos ganham forma em diferentes imagens as quais ele e outros autores brasileiros acessavam. Vimos isso em May e, some-se a ele, o quanto a tensão entre cidade antiga e moderna afetou os planejadores soviéticos, que – para não voltarmos na solução de May de alternância entre unidades individuais (inspiradas nas cidades jardins) e coletiva – tratou da questão sob outra perspectiva: aquela de intercalar, entre cidades existentes, cidades lineares. Essa hipótese, registrada nas reproduções que Estelita seleciona para ilustrar seu texto, era cogitada mais amplamente e uma das versões para sua solução aparecia num estudo de Varenzov. Nela a cidade linear surge para integrar e unir-se a duas outras pré-exitentes, respeitando-as mas igualmente incluindo-as em seu fluxo (fis. 3 e 4). Se cito esse desenho é por que ele constava numa obra de El Lissitzky que merecerá de nós algumas linhas.

(fig. 3. Varenzov. Estudo de cidade linear conectando duas cidades já existentes. Publicado em El Lissitzky. Russland.

Architektur für eine Weltrevolution, 1930. Exemplar pertencente a Adalberto Szilard)

(fig. 4. Reprodução presente no artigo de Estelita, comparando o modelo original da cidade linear de Soria y Mata e a versão

russa)

10 Id. Ibid., 13.

(esquerda)"Vkhutein."Estudo"de"crescimento"de"densidade"Urbana."(direita)."Varenzov."Estudo"de"desenvolvimento"de"cidade"linear."Detalhes"de"página"em"El"Lissitzky."Russland."

10

(fig. 5. Esboço do projeto urbanístico para Novosibirsk. Arquitetos: Babenkov, Valssov, Poliakov. Reprodução feita por Estelita

em seu artigo, cuja imagem foi extraída do texto original de Ilyin)

Com isso, chegamos ao terceiro fato de nossa série, que nos faz retomar Szilard. Em algum momento entre 1930 e 1955, ele teve em suas mãos o livro Russland: Die Rekonstruktion der Architektur in der Sowjetunion, de El Lissitzky, publicado em Viena em 1930, que para aqueles que não teriam como vivenciar uma experiência direta, fora a obra-chave para o Ocidente se informar sobre o que acontecia na produção do país após a Revolução. No exemplar que lhe pertenceu - o livro ficava à sua mão no escritório, como se depreende pelo carimbo com seu nome e o endereço profissional no edifício Nilomex - não há nenhum vestígio especial de sublinhado ou anotações; independente disso, mais importante é ter claro que ele atestava no Rio de Janeiro um outro caso de acesso real a essas informações com a vantagem dela provir novamente em primeira mão. No que concerne o urbanismo, essas imagens voltavam ao mesmo tema acima examinado. Há algumas lições que seguramente não foram extraídas apenas do livro de El Lissitizky, mas que, por outro lado, eram nele calcadas, em especial quando – diferente do Plan Voisin, ao invés de selecionar a parte histórica a ser preservada, Szilard conseguiria adaptar a cidade moderna a antiga. A descentralização e o imbróglio entre zonas residenciais e zonas industriais (temas construtivistas) reverberava em seu livro, ainda que ele se escuse de não entrar em detalhes sobre a cidade linear por crer que ela não daria mais conta da realidade habitacional e populacional carioca, demonstrando como ele, apesar de uma geração anterior, elaborava uma revisão crítico-histórica da mesma.

A conclusão a que quero chegar é esta: há duas formas razoáveis para a planta das cidades. Primeiro, a cidade de sistema radial, isto é, uma aglomeração em volta de um centro de atividade, e segundo, a cidade linear. Sobre a última, não vou escrever [de fato, ele já a comentara no primeiro capítulo de seu livro]. Ela é bem apropriada para aglomerar pequenos centros de atividade, dispostos numa faixa de certa largura, ladeada por faixas destinadas a habitação, uma faixa de parques, zonas de recreação, faixa destinada a esportes, etc11.

Some-se a isso que, se não soubéssemos que ele possuiu o livro de El Lissitzky, o único russo que ele cita é Lubetkin, um exemplo peculiar, visto que este há muito se radicara em Londres12. De todo modo, tais fundamentos alimentariam sua crítica à centralização e excesso de concentração num ambiente desconfortável e classista, pressupostas pela Avenida Presidente Vargas, incompatível com o tamanho da cidade então e indiferente aos seus aspectos físicos, como também da perversão impressa nas propostas de então para os bairros operários. Atento, por fim, à silhueta e ao relevo da cidade como pré-condições para um bom partido urbanista (inclusive, importante ressaltar, do ponto de vista estético), ele encontrará no desenvolvimento orgânico de Saarinen sua resposta, vendo nele uma maneira de amalgamar as vantagens do sistema linear com a demarcação de sub-centros ou polos distribuídos em toda a malha territorial carioca, como se nisso alcançasse uma concentração ao mesmo

11 SZILARD. A, REIS, J.O. Urbanismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora “O construtor”, 1950, 74. “O mesmo se depreende de outra passagem anterior, também genérica: “O principal defeito do desenvolvimento linear é que não oferece condições favoráveis ao desenvolvimento do tráfego moderno. Os automóveis foram feitos para grandes velocidades em estradas desimpedidas. As vias das principais cidades lineares, com seu numerosos acessos para fábricas e zonas residenciais, tornaram perigoso o tráfego rápido”. Id. Ibid., 24. 12 Id. Ibid., 23-24.

11

tempo em conexão e dispersão13. Tal seria um primeiro aspecto compósito de seu urbanismo. A ele, se soma sua crença ainda viva numa “cenografia” sitteana, da qual ele não abre mão em suas propostas, até por nela ver um aspecto integrador das cidades antigas e das novas (ele apela até – o que não lhe era exclusivo – para defender seu ponto de vista a um desenho da disposição em “coroa” do templo do Dalai Lama, por conta de sua implantação topográfica). O outro ponto seria divagar com que edifícios um arquiteto déco ocuparia um plano modernista, dada sua fidelidade àquelas formas. Esses eram problemas importantes porque, independente da solução que se encontrará, há como certo apenas o anacronismo do gridiron pré-determinado, obrigando a sair de sua arbitrariedade convencional e “ficção” projetual. Além da reprodução constante no livro de Lissitzky sobre a cidade linear (e reapropriada por Ilyin, que a justapõe ao modelo original de Soria y Mata) aparecer no artigo A Rússia e seus problemas de urbanismo – não indicando esse caso que Estelita também tivesse chegado a ela obrigatoriamente pelo livro de El Lissitzky, mas de que havia algumas referências icônicas em circulação por diversos meios – creio haver um ponto de contato direto entre o pensamento arquitetônico e urbanístico de Szilard com os russos, perceptível em um croqui feito por ele e apresentado em seu livro. Ao elaborar duas propostas para uma habitação social entre os morros da Babilônia e de São João que respeitassem harmonicamente a silhueta daquela parte da cidade (dominada pelo Pão de Açúcar), na segunda versão, ele implanta o conjunto apoiado nas encostas dos dois morros. Assim, ele paga seu tributo aos soviéticos, como se depreende quando comparado a um desenho de hotel de Afanachev (aluno da Vkhutein) e a uma maquete de Bunin (proveniente da mesma instituição), publicadas respectivamente nas páginas 25 e 67 do livro de Lissitzky (fig. 6, 7 e 8).

(fig. 6. Croquis de Szilard para edifício entre os morros da Babilônia e São João. In: Urbanismo no Rio de Janeiro, 1950)

13 “O teorema de Saarinen é a descentralização orgânica das cidades. As municipalidades devem adquirir os terrenos fora de seus limites e planejar nelas distritos melhores para ficarem habilitados a proceder à criação de jardins públicos e áreas de recreação e tráfego nas partes antigas a serem saneadas, oferecendo em troca moradias e locais de trabalho melhores. Em 1944 publiquei [...] um ensaio sobre planos regionais [...] indicando a superfície atualmente ocupada pela cidade e uma tentativa de descentralização de acordo com os princípios de Saarinen”. Id. Ibid., 26.

12

(fig. 7. Afanachev. Projeto para hotel. Publicado em El Lissitzky. Russland, 1930)

(fig. 8. Bunin. Maquete de hotel. Publicado em El Lissitzky. Russland, 1930)

*

* * Nossa conclusão acaba sendo uma retomada daquilo enunciado na abertura desse texto: retornar às bibliotecas modernistas é um exercício tanto de avaliar como aqueles atores procederam para sua atualização de literatura especializada, quanto de, observando suas nuances e extensão, contribuir para o redesenho de sua complexidade. Progressivamente, ao recuperar os títulos acessíveis, abre-se espaço para, mediante a presença daquelas obras mais raras, discutir como elas participam da assimilação e crítica daquilo consagrado como canônico. Se isso resume o problema intelectual em seu objetivo, do ângulo de uma historiografia pautada na visualidade e na introdução de conceitos, essa recensão identifica, por exemplo, como as proposições corbuseanas puderam ser adaptadas não só a partir de uma interpretação e reinvenção direta local, mas, no mesmo tom, naquilo em que elas vinham cotejadas com sua ampla recepção, alinhamento e remodelação internacional. Ao fechar nossa apresentação com o desenho de Szilard, não podemos ser indiferentes (até por conta de sua atuação crítica extensa) ao fato de naquele croquis haver uma resposta aos desenhos de Le Corbusier para o Rio (e, acrescente-se, ao seu transplante do Plan Voisin para a cidade), entrelaçando-se um amálgama de outras versões de modernidade. Nessa geografia de livros e formas, ampliamos a margem para examinar num só lance o processo de entrada das vanguardas construtivas no Brasil e o manejo de novas experiências que mesmo de improvável implantação, eram incontornáveis para esquadrinhar os dilemas, desafios e ambições de uma cidade ainda capital.

13

REFERÊNCIAS

ESTELITA, José. A Rússia e seus problemas de urbanismo. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, número 5, Julho 1933, 9-19

GODOY, Armando de. Duas cidades industriais modelares. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, número 2, outubro de 1932, 9-14.

ILYIN, M. Städtebauliches aus Russland. Wasmuth Montashefte für Baukunst und Städtebau. Berlim: Ernst Wasmuth, n. 5, 1931, 237-240.

KHAN-MAGOMEDOV, S.O. Mikhail Barsh. Moscou: Russian Avantgarde Foundation, 2009.

LISSITZKY, EL. Russland: Die Rekonstruktion der Architektur in der Sowjetunion. Viena:Verlag von Anton Schroll & Co., 1930.

LISSITZKY, EL. Russland: Architektur für eine Weltrevolution: Braunschweig , Wiesbaden: Fried. Vieweg & Sohn, 2000

MAY, Ernst. Abschied von den Russlandfahren. Das Neue Frankfurt. Frankfurt Am Main: Verlag Englert und Schlosser, n. 9, setembro de 1930: 197-210.

MAY, Ernst. Aus den russichen Funfjahresplan. Das Neue Frankfurt. Frankfurt Am Main: Verlag Englert und Schlosser, n. 6, junho de 1931, 100-103.

MAY, Ernst. Der Bau neue Städte in der UDSSR. Das Neue Frankfurt. Frankfurt Am Main: Verlag Englert und Schlosser, n. 7, julho de 1931, 117-134.

PLATZ, G.A. Die Baukunst der neuesten Zeit. Berlim: Propyläen, 1930 (2ª. Edição)

SZILARD, A., REIS, J.O. Urbanismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora “O construtor”, 1950.