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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 OS PASSOS DE ANCHIETA: MARCAS DO LEGADO DOS JESUÍTAS NO LITORAL SUL-CAPIXABA PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO [GIOVANI B. GOLTARA e ENEIDA M. S. MENDONÇA FACULDADES INTEGRADAS TEÓFILO OTONI / UNIVERIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO] RESUMO Durante o feriado de Corpus Christi, há pelo menos dezoito anos, andarilhos do Brasil e do mundo fazem o percurso a pé de Vitória a Anchieta, com aproximadamente 100 quilômetros de extensão, em memória ao caminho que o Santo católico José de Anchieta teria percorrido em seu tempo. Durante os quatro dias de caminhada pelo litoral, passando também por Vila Velha e Guarapari, os participantes entram em contato com a paisagem desses lugares, e, sobretudo, a transformam e apreendem sob suas próprias experiências de vida. Este artigo busca avaliar a relação do percurso com as marcas do legado dos jesuítas na região. Discute-se brevemente o papel dos jesuítas no processo de colonização e a relação com os povos nativos abordando a história mítico/religiosa que se difunde sobre o caminho, em contraponto a fatos históricos que discutem a atuação dos jesuítas nos aldeamentos da província. Faz-se um apanhado de como se desenvolve o percurso nos dias de hoje, explanando a organização do evento e identificando as obras jesuíticas remanescentes no percurso. Discute-se, por fim, o legado material nessas obras, e identifica-se o percurso como uma marca histórica remanescente. PALAVRAS-CHAVE: caminhada, jesuítas, paisagem.

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO

A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

OS PASSOS DE ANCHIETA: MARCAS DO LEGADO

DOS JESUÍTAS NO LITORAL SUL-CAPIXABA

PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO

[GIOVANI B. GOLTARA e ENEIDA M. S. MENDONÇA – FACULDADES INTEGRADAS TEÓFILO OTONI / UNIVERIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO]

RESUMO

Durante o feriado de Corpus Christi, há pelo menos dezoito anos, andarilhos do Brasil e do mundo fazem o percurso a pé de Vitória a Anchieta, com aproximadamente 100 quilômetros de extensão, em memória ao caminho que o Santo católico José de Anchieta teria percorrido em seu tempo. Durante os quatro dias de caminhada pelo litoral, passando também por Vila Velha e Guarapari, os participantes entram em contato com a paisagem desses lugares, e, sobretudo, a transformam e apreendem sob suas próprias experiências de vida. Este artigo busca avaliar a relação do percurso com as marcas do legado dos jesuítas na região. Discute-se brevemente o papel dos jesuítas no processo de colonização e a relação com os povos nativos abordando a história mítico/religiosa que se difunde sobre o caminho, em contraponto a fatos históricos que discutem a atuação dos jesuítas nos aldeamentos da província. Faz-se um apanhado de como se desenvolve o percurso nos dias de hoje, explanando a organização do evento e identificando as obras jesuíticas remanescentes no percurso. Discute-se, por fim, o legado material nessas obras, e identifica-se o percurso como uma marca histórica remanescente.

PALAVRAS-CHAVE: caminhada, jesuítas, paisagem.

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PASSOS DE ANCHIETA: LEGACY MARKS OF THE

JESUITS ON THE SOUTH COAST OF ESPÍRITO

SANTO-BRAZIL

ABSTRACT

During the Corpus Christi holiday, at least eighteen years ago, hikers from Brazil and the world made the journey on foot from Vitoria to Anchieta, approximately 100 kilometers long, in memory of the path that the Catholic saint José de Anchieta had traveled in its time. During the four days of walking along the coast, passing through Vila Velha and Guarapari, the participants contact the landscape of these places and, above all, transform and seize it under their own life experiences. This article aims to evaluate the relation of the route with the marks of the legacy of the Jesuits in the region. It briefly discusses the role of the Jesuits in the process of colonization and the relationship with the native peoples approaching the mythical / religious history that diffuses on the way, in opposition to historical facts that discuss the Jesuits' actions in the villages of the province. It is made a survey of how the path is developed today, explaining the organization of the event and identifying the remaining Jesuit works in the course. Finally, the material legacy is discussed in those works, and the route is identified as a remnant historical mark.

KEY-WORDS: walking, jesuits, landscape

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INTRODUÇÃO

O missionário jesuíta José de Anchieta, nascido nas Ilhas Canárias da Espanha, chegou ao Brasil no

início da colonização, e hoje pode ser considerado exemplo de sucesso do empreendimento da

companhia de Jesus em parceria com a Coroa Portuguesa, no processo de colonização do novo

mundo. Em sua atuação em solo brasileiro, fundou cidades, construiu colégios e igrejas, e

principalmente, soube lidar com os povos nativos, aprendendo sua língua e entendendo seus

costumes. Com uma ação objetiva, de propagar a fé católica ao mundo considerado “selvagem”,

obteve sucesso, principalmente na aldeia de Rerigtiba, onde veio a passar seus últimos anos de vida.

Rerigtiba fazia parte de um complexo jesuítico que se estendia pela província do Espírito Santo, com

sede em Vitória, que por sua vez se articulava com as outras províncias, criando uma grande

empresa, que por tamanha amplitude e poder, veio a ser exterminada na colônia, pelo Marquês de

Pombal no século XVIII.

A administração dessa empresa da Companhia de Jesus requeria deslocamentos constantes entre os

polos, e nisso se baseia a ideia de um grande itinerário litorâneo jesuítico que se estendia de São

Paulo a Recife (ABAPA s.d.). Dentro desse grande percurso, está o caminho que teria sido percorrido

a pé diversas vezes por José de Anchieta, de Rerigtiba, hoje nomeada cidade de Anchieta, a Vitória.

É esse percurso que desde 1998 vem sendo rememorado, inicialmente por andarilhos entusiasmados

com o caminho de Santiago de Compostela, e atualmente por cerca de quatro mil participantes por

ano, no evento que leva o nome de Passos de Anchieta.

O Brasil, em sua extensão territorial, diversidade paisagística e cultural, se configura como um campo

de grandes possibilidades de criação de rotas de peregrinação de formato similar ao dos Passos de

Anchieta. Além disso, a forte tradição do catolicismo no Brasil, que muito se deve à colonização

jesuítica, está arraigada na cultura popular do brasileiro, fazendo com que haja grande resposta a

esses tipos de manifestações religiosas. Essa junção de fatores, somada ao interesse turístico por

algumas regiões, fez com que desde o ano 2000 surgissem algumas rotas brasileiras de caminhadas

anuais inspiradas pelo histórico Caminho de Santiago de Compostela, e que vêm se popularizando

ao longo dos últimos anos. Os principais itinerários brasileiros que seguem esse formato hoje são: Os

Passos de Anchieta, ao qual se dedica este trabalho, mas também, o Caminho da Luz que percorre

cidades do interior de Minas Gerais com destino à Serra do Caparaó na divisa com o Espírito Santo,

o Caminho da Fé que permeia as montanhas de Minas Gerais e São Paulo rumo ao Santuário

Nacional de Aparecida do Norte e o caminho das Missões Jesuíticas que percorre o patrimônio

nacional das Missões no estado do Rio Grande do Sul.

Além desses percursos de grandes extensões e popularidade, existem vários outros pequenos

caminhos anuais, dos quais destaca-se o Caminho do Imigrante que percorre montanhas do interior

do Espírito Santo entre as cidades de Santa Leopoldina e Santa Tereza. O roteiro, com extensão de

30 quilômetros, tem como intenção rememorar os caminhos dos imigrantes que povoaram a região,

principalmente no ciclo do café.

É importante ressaltar que existem diferenças fundamentais entre esses percursos e outras

manifestações brasileiras de caráter religioso, que atraem multidões às vezes muito maiores que os

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caminhos como os Passos de Anchieta. Peregrinações e romarias como as do Padre Cícero e Nosso

Senhor do Bonfim no Nordeste, e o Círio de Nazareth no Norte são diferentes das caminhadas acima

citadas. Essas manifestações, como alguns percursos de caminhada, têm sua origem na

religiosidade e atraem grande número de turistas anualmente. Contudo, as romarias geralmente têm

como objetivo principal o alcance do lugar sagrado, e, quando há caminhada, essa se configura mais

como um sacrifício pessoal.

Nesse sentido, este artigo visa identificar as marcas do legado dos jesuítas na faixa litorânea

compreendida pelos Passos de Anchieta, articulando a ação do caminhar como celebração desse

passado e a história do processo de colonização empreendido pela Companhia de Jesus. Busca-se

também identificar as marcas físicas daquela época, e as marcas imateriais, ou heranças culturais.

Este artigo é fruto de parte de dissertação de mestrado defendida em 2017. Com título: “Percepção

da paisagem nos Passos de Anchieta”, foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo de Giovani B. Goltara, com bolsa da

Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação no Espírito Santo - FAPES, e orientado pela Professora

Doutora Eneida M. S. Mendonça. O estudo que este excerto apresenta é fundamental à compreensão

das motivações que fazem com que, anualmente, cerca de quatro mil pessoas percorram este

caminho. Se o percurso é divulgado com uma base histórica que o fundamenta, compreender essa

história e suas marcas remanescentes, meio milênio após o período da colonização brasileira, pode

indicar como a articulação da Companhia de Jesus no território permitia o controle da empresa cristã

sobre a colônia. Os Passos de Anchieta, além de evidenciarem o legado material dos jesuítas,

também incidem sobre a imaterialidade ao praticar a história, ou, como coloca Sahlins (1990)

reproduzir historicamente a cultura na ação. Nesse sentido, não cabe neste trabalho verificar se a

história, ou mito, apresentado pela organização dos Passos de Anchieta se confirma com dados ou

não, mas sim entender como a ação do caminhar celebra o legado dos jesuítas.

Para tanto, o evento Os Passos de Anchieta é tratado, de forma introdutória, no âmbito histórico a

partir da visão mítico/religiosa difundida pela organização da caminhada. Em contraponto a essa

história propagada pela organização do evento, traz-se algumas passagens sobre a lógica jesuítica

de colonização dos povos nativos. Em seguida, é apresentado o percurso e suas características

formais, com foco na logística do evento anual de caminhada. São identificadas, também nessa parte,

as obras remanescentes dos jesuítas que são compreendidas pelo percurso.

Por fim, é identificado que, além das marcas físicas, ou seja, as construções renascentes dos

jesuítas, o próprio caminho, seja uma história criada pela repetição cultural, seja uma rememoração

de um fato, é uma marca que os Passos de Anchieta, conseguem manter viva no imaginário

capixaba.

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OS PASSOS NA HISTÓRIA

Tomando por base o texto publicado na página da Associação Brasileira dos Amigos dos Passos de

Anchieta-ES (ABAPA), "Os Passos de Anchieta: uma trilha de sucesso" (ABAPA s.d.), admite-se o

fator inaugural da caminhada como a remontagem de um percurso realizado pelo Jesuíta José de

Anchieta nos últimos anos de sua vida. Anchieta, o missionário proveniente das Ilhas Canárias, após

realizar missões pelo Brasil, decidiu afixar-se na aldeia indígena de Rerigtiba motivado pela

lembrança que tal lugar lhe oferecia de sua terra natal, e ali viveu seus últimos anos. No texto fica

exposta a existência de um percurso que se desdobrava numa extensa faixa litorânea brasileira, de

São Paulo-SP a Recife-PE, empreendido pelas Missões Jesuíticas, no qual estaria incluído o trecho

de 14 léguas de Rerigtiba a Vitória, capital da província. O excerto a seguir, extraído do texto citado,

expõe o discurso de congratulação às Missões Jesuíticas:

Ao longo dessa extensa faixa litorânea que alcança grande parte da costa brasileira semearam ensino [os jesuítas], divulgaram o que julgavam ser os fundamentos de uma civilização e fundaram vilas que evoluíram de toscos aldeamentos como Rerigtiba, Guarapari, N. S. Conceição da Serra, Reis Magos e São Mateus, para citarmos especificamente a costa do Espírito Santo. (ABAPA s.d.).

Claramente a ideologia propagada pela organização do evento se apoia na ideia de que o

aldeamento promovido pela coroa portuguesa e amparado pela Companhia de Jesus, teve grande

importância para o desenvolvimento da região, bem como para a instauração dos "fundamentos de

uma civilização" baseados nos moldes cristão-católicos europeus. Entretanto, é importante discutir a

atuação das Missões Jesuítas no local sob outros aspectos, como, por exemplo, pela ótica

antropológica abordada pela pesquisadora Sonia Misságia Mattos (2009). Incidindo no tratamento

dado ao povo nativo aldeado em Anchieta, e, que por uma conjunção de fatores ligados à

colonização, hoje se encontra ainda em crescente ameaça de perda de seu território, a autora indica

que, mesmo com indícios de um aldeamento anterior,

[...] pode-se dizer que a Aldeia de Iriritiba[i], como aldeamento aos moldes do colonizador português, foi fundada em 1569, por Padre José de Anchieta, e que surgiu como parte fundamental de uma estratégia de posse, garantindo o controle e soberania do colonizador português. (MATTOS, 2009, pg. 09).

Portanto, ligado diretamente à colonização portuguesa, José de Anchieta teve papel fundamental na

instauração do polo da Companhia de Jesus que fazia parte do complexo sediado em Vitória, e que

se estendia pelo litoral da província. A aldeia de Reritiba, ou Iriritiba fundada em 1565, “conforme o

príncipe Wield-Neuwied (1989, pg. 137), formava a maior aldeia da costa, congregando cerca de seis

mil índios das diversas tribos que vagavam na região” (apud BITTENCOURT, 1999, pg. 28).

Ao se dizer que os Jesuítas, assim, "semearam o ensino" pelo solo espírito-santense, pode-se inferir

que, em realidade, instituíram os dogmas católicos e modos de vida europeus, promovendo assim,

prejuízo à cultura dos grupos étnicos nativos e consequente enfraquecimento do poder de manter seu

território. De acordo com Moreau (2003) os Jesuítas serviam à Coroa Portuguesa no sentido de fazer

a intermediação entre tal poder com os nativos, e por mais que tivessem tentado amenizar certos

comandos, era o poder econômico e político que tinha o veredito. Portanto,

[...] do presente, é difícil julgar o papel da Companhia [de Jesus]. Quis veementemente proteger os índios e integrá-los honradamente à civilização dominadora, mas obrigou-os à força a largar

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costumes e rituais, tornando-os aculturados, frágeis e expostos ao massacre. (MOREAU, 2003, pg. 83).

Contudo, é importante destacar o papel de José de Anchieta como proeminente escritor, gestor, e,

principalmente, por sua importância no catolicismo brasileiro sendo recentemente proclamado santo

pelo Vaticano. De acordo com Levy Rocha (2008), historiador capixaba, José de Anchieta esteve em

terras da província do Espírito Santo durante o período de dez anos e até seu falecimento. Sobre as

obrigações do jesuíta para com sua ordem, o autor aponta que:

Por duas vezes teve o catequista de se transferir para Vitória, sendo designado superior da casa do Espírito Santo, arcando com a responsabilidade do governo das quatro aldeias então existentes na capitania (ROCHA, 2008, pg. 97)

Esse excerto, de alguma forma, corrobora por meio de fatos históricos, a crença de que José de

Anchieta fazia a viagem de Rerigtiba até a capital Vitória. Desse modo, o caminho dos Passos de

Anchieta, apoiando-se nessa ideia,

[...] resgata o trecho de 100 quilômetros compreendidos entre Anchieta e Vitória que José de Anchieta percorria regularmente duas vezes por mês, o denominado "caminho das 14 léguas" que o jesuíta vencia na companhia - freqüentemente na dianteira - dos guerreiros temiminós que o acompanhavam na missão de cuidar do Colégio de São Tiago, erguido num platô da Vila da Nossa Senhora de Vitória, hoje transformado no Palácio do Governo, na cidade de Vitória. (ABAPA s.d.).

O legado dos jesuítas, portanto, pode ser compreendido de diversos modos. Se por um lado

facilitaram a instauração do progresso na colônia, por outro podem ser responsabilizados, em parte,

pelo contínuo processo de extinção da cultura nativa do Brasil. A conjunção de interesses da Coroa

Portuguesa com os da Igreja Católica teve muito sucesso como empreendimento de colonização. O

contexto histórico era o da expansão da fé cristã-católica, que se iniciava no Concílio de Trento para

conter as reformas, o que se convencionou chamar de Contrarreforma. O papel dos jesuítas era de

levar ao mundo a fé católica, o que os trouxe às terras conquistadas pelos portugueses, num acordo

mútuo de facilitar o domínio português sobre os povos nativos, num momento em que a Igreja se

punha na vanguarda de agregar novos crentes fora do contexto europeu. Foi por meio da catequese

que os índios foram transformados em cidadãos na visão do colonizador, e o resultado foi a perda do

poder de manter seu território, enquanto eram agregados ao novo sistema de civilização implantado

na colônia.

OS PASSOS HOJE

A história que se conta sobre o início dos Passos de Anchieta tem inteira relação com o Caminho de

Santiago de Compostela. Segundo a organização, foi em 1998 que caminhantes entusiasmados com

o caminho feito da Espanha viram a possibilidade de realizar algo similar no Espírito Santo. Nota-se

então uma primeira motivação advinda da atividade de caminhada em si. De acordo com Fredéric

Gros:

Caminhar não é um esporte. Pôr um pé na frente do outro é uma brincadeira de criança. Nada de resultado, nada de números quando se dá um encontro: o caminhante dirá que caminho tomou, em que trilha se descortina a mais bela paisagem, a vista que se vislumbra de tal ou qual terraço. (GROS, 2010, pg. 9-10).

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Em concordância com Gros (2010) o tipo de caminhada empreendida nos Passos de Anchieta não é

uma modalidade esportiva que incide em quebras de recordes, ou com finalidades de estética

corporal. Segundo o autor em “Caminhar, uma filosofia”, nesse tipo de caminhada,

Primeiro, há a liberdade suspensiva oferecida pela caminhada, mesmo que se trate de um mero passeio: desvencilhar-se do fardo das preocupações, esquecer por um tempo os compromissos. Opta-se por não carregar o escritório consigo: passeia-se, vaga-se, pensa-se em outra coisa. Com a excursão de vários dias de duração, acentua-se o processo de desligamento: escapa-se das obrigações do trabalho, fica-se livre do grilhão dos hábitos. (GROS,2010, pg. 11).

No entanto, a caminhada dos Passos de Anchieta não está completamente desprendida de doutrinas

e crenças, visto que toda a ideia se apoia em uma rememoração do caminho de um padre jesuíta,

hoje consagrado santo. Nesse sentido a tese de Leide Costa (2009) doutora em ciências da religião,

indica que o caminho dos Passos de Anchieta não tem a característica de peregrinação clássica, pois

não tem como objetivo principal a chegada a um lugar sagrado, e sim traz à tona o que chama de

"peregrino moderno" (COSTA, 2009, pg. 116), não necessariamente religioso. De acordo com Costa,

O percurso equivale a uma jornada interior e configura-se com um processo de transformação pessoal. O santuário é representado aqui pela via sagrada onde se renova uma prática milenar: a peregrinação, o próprio caminhar no ritmo de cada um. O sagrado é a própria experiência do caminho. É a sacralização do caminho. (COSTA, 2009, pg. 115-116).

A "jornada interior", a que Costa se refere, pode ser comparada com a jornada de Petrarca. O poeta

italiano, de acordo com Besse (2006), ao se julgar acometido de um mal psíquico que o levava a

letargia emocional decidiu empreender a escalada ao monte Ventoux como um momento do "retorno

a si próprio" (BESSE, 2006, pg. 04), e com o intuito de fruir da vista alcançada do cimo. O autor faz

referência à subida de Petrarca como um desejo de transgressão pessoal, e como metáfora ao

deserto, "onde a meditação cristã colocou, há tempo, a dramaturgia da saúde da alma e das

tentações contra as quais ela decide lutar, voltando as costas ao mundo e à sua urbanidade."

(BESSE, 2006, pg. 03). A comparação dos Passos de Anchieta com o caminho de Petrarca auxilia a

compreensão da questão da vontade de se lançar em uma empreitada como essa, de se entregar a

uma experiência dificultosa, que ao final não se sabe que recompensa trará.

Portanto, a caminhada tratada nos Passos de Anchieta tem seu lado secular, independente de

dogmas e crenças; por outro lado, é a sacralização de um percurso. Entretanto, ao promover uma

“jornada interior” desenhada por paisagens vivazes, a caminhada se torna uma forma peculiar de

percepção, marcada pela participação do andarilho na própria paisagem.

Em suma, o que se indica é que caminhar é uma filosofia de vida. Portanto, o que os inauguradores

dos Passos de Anchieta encontraram ao percorrer este caminho foi algo além do movimento físico, e

diferente do mito no qual se fundamentou depois essa jornada (um caminho logístico entre um polo e

a sede do complexo jesuítico); não tinha razão de ser que não o próprio ato de caminhar e apreciar

os momentos que o percurso oferecesse. Ao ponto em que desbravaram esse percurso e lhe deram

um nome, indicaram direções, modos de caminhar, lugares a que se visitar; estes primeiros

caminhantes dos Passos de Anchieta inauguraram de fato o caminho, independente da história que

fossem contar depois para fundamentá-lo e divulgá-lo.

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Caminhar na contemporaneidade, quando os meios de transporte se desenvolveram ao ponto de não

mais ser necessário tal esforço físico, é, em muitos casos, um ato de inteira vontade própria, e não

uma obrigação. Vários são os relatos de grandes pensadores que usaram do caminhar como

ferramenta de autoconhecimento, ou artistas que usaram do território seu anteparo e do caminhar

como performance. Embora muitos lugares por onde os Passos de Anchieta caminham hoje não

sejam acessíveis por outro meio que não o caminhar, percorrer toda essa extensão é uma escolha

pessoal. Desse modo, então, criou-se a cultura que se ampara em um fator histórico, e desse modo

cria-se a história dentro de paradigmas contemporâneos.

A data escolhida para o grande evento dos Passos de Anchieta é o feriado de Corpus Christi que

anualmente se altera no calendário. O caminho de aproximadamente 100 quilômetros de extensão

(Mapa 1) é dividido em quatro dias de caminhada, iniciando na quinta-feira na Catedral Metropolitana

de Vitória (Figura 1a), no centro histórico da cidade, e segue para o município vizinho, Vila Velha,

onde faz a subida ao Convento de Nossa Senhora da Penha (Figura 1b) e com final em Barra do

Jucu. Este primeiro dia do percurso se diferencia dos outros por alguns fatores: a travessia entre

Vitória e Vila Velha é feita em ônibus, pois a Ponte Deputado Darcy Castello Mendonça, conhecida

como “Terceira Ponte”, não permite a passagem de pedestres; neste dia também os andarilhos

percorrem a orla urbana de Vila Velha onde são confeccionados os tradicionais tapetes para as

cerimônias de Corpus Christi, data onde a manifestação da fé católica toma ruas das cidades em

procissões.

Mapa 1 - Mapa do percurso dos Passos de Anchieta Fonte: produzido por Luayza Perim sobre base cartográfica GoogleEarth.

Na sexta-feira parte-se de Barra do Jucu (Figura 1c), um distrito de Vila Velha famoso por sua

proeminência cultural, seja pela manutenção de tradições populares como o Congo, seja pela

presença de diversos artistas e intelectuais que desde a década de 1970 povoam o lugarejo e

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mantêm produção ligada à cultura local (MACEDO, 2015). A chegada na sexta-feira é em Setiba

(Figura 1d), no município de Guarapari, uma vila voltada para a atividade de balneário que faz divisa

com a Área de Proteção Ambiental de Setiba e o Parque Paulo César Vinha, importantes áreas de

manutenção do ecossistema da restinga.

No sábado o percurso se inicia em Setiba com destino a Meaípe, ainda em Guarapari, uma das

praias mais quistas pelo turismo da cidade. O distrito se caracteriza por uma forte presença de

atividades voltadas para o turismo, como, por exemplo, restaurantes, hotéis e casas noturnas. Por

fim, no domingo, caminha-se de Meaípe (Figura 1e) ao ponto final no centro da cidade de Anchieta,

local onde se situava o núcleo o aldeamento de Rerigtiba.

Figura 1–Fotografias dos pontos de parada e saída da Caminhada dos Passos de Anchieta, tomadas no ano de 2016. a) Catedral Metropolitana de Vitória, Centro da cidade; b) Convento de Nossa Senhora da Penha, Vila Velha; c) Rua da Barra do Jucu, Vila Velha; d) Saída em Setiba, Guarapari; e) Saída em Meaípe, Guarapari. Fonte: Giovani Goltara.

O percurso é demarcado por placas indicativas e sinais pintados no chão e em postes e muros, que

apontam a direção do caminho. Embora durante o evento, em Corpus Christi, a fila de caminhantes

não permita que se perca a direção, a intenção da organização da ABAPA, é de que o percurso

possa ser realizado por outros grupos em outros períodos do ano. No entanto, ainda não se percebe

uma infraestrutura que permita que o caminho seja percorrido em outras datas que não no evento

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principal. A realização do caminho sem apoio da organização se torna dificultosa e até mesmo

oferece perigo, já que o percurso tem partes remotas, sem sinal de comunicação telefônica, áreas

que podem oferecer perigo, seja de transposição de obstáculos naturais, seja de possibilidade de

assaltos, entre outros fatores. Além disso falta infraestrutura que permita uma caminhada saudável,

como, por exemplo, pontos de alimentação e hidratação, que durante o percurso oficial são montados

pela organização em estruturas efêmeras.

Como preparação para o grande evento, a ABAPA realiza caminhadas de aquecimento que

começam em janeiro, onde é percorrida uma parte do percurso por mês. Os aquecimentos servem

tanto para que a própria organização faça um diagnóstico das condições do percurso, como para

caminhantes que queiram se preparar. Para o evento principal, a organização faz um cadastramento

pago, com o qual o participante tem direito a crachá, mapas, e folha de carimbos, que são

completados no decorrer da caminhada em locais estratégicos e de interesse turístico, além de

massagens e outros benefícios.

A caminhada oficial tem início às 7 horas de cada dia, e tem duração aproximada de 5 horas (a

depender do condicionamento físico do andarilho), percorrendo uma média de 25 quilômetros por dia.

Ao final de cada jornada alguns andarilhos se instalam nos pontos de parada, em pousadas ou

mesmo em barracas de Camping, mas a maioria se desloca para algum outro ponto, mesmo em outra

cidade, onde ficam hospedados, fazendo um caminho de volta no dia seguinte para iniciar a nova

etapa. Durante o percurso, há pontos de apoio com ofertas de frutas, água e sanitários organizado

pela ABAPA. Existem também os pontos de apoio de moradores das localidades que fazem ofertas e

até abrem suas casas para receber andarilhos e servir-lhes alimentos e água. Ao final, os

caminhantes são recepcionados em Anchieta na praça do Santuário Nacional de São José de

Anchieta, sob a copa da árvore secular que marca o centro da colonização na região, e ali recebem

seu certificado de participação.

AS MARCAS FÍSICAS DO LEGADO

O percurso dos Passos de Anchieta visita importantes obras da Companhia de Jesus no Espírito

Santo. Logo no início da jornada, o Colégio de São Tiago (Figura 2), antiga sede da Companhia, e a

maior das obras jesuíticas do estado, se apresenta aos caminhantes não mais em seu estado original

(Figura 3). A construção do complexo de Igreja e Colégio teve início em 1570, e cumpriu sua função

religiosa até a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759. Resultando do processo de apossamento

dos bens da Companhia de Jesus pelo império, sofreu mudanças físicas do desenho original, e

passou a ser a sede do governo do estado, função que mantém, em partes, até hoje, sendo nomeado

Palácio Anchieta (ESPÍRITO SANTO,2009). É neste local que José de Anchieta prestou serviço de

gestor das quatro aldeias da Companhia quando convocado (ROCHA, 2008), e onde seu corpo foi

enterrado.

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Figura 2–Palácio Anchieta atualmente. Fonte: Fábio Machado fotografia.

Figura 3–Igreja e Colégio de São Tiago. Fonte: FAU USP. Disponível em <http://www.fau.usp.br/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV3AU13.htm> (Acessado em 16 de março de 2018.

A travessia da Baía de Vitória para chegar em Vila Velha, como dito anteriormente, é realizada por

ônibus, disponível para participantes credenciados. O final deste percurso se dá no Parque da

Prainha em Vila Velha, onde está localizada a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (Figura 4),

construção que representa a primeira igreja construída pelos colonizadores, já que não se sabe se a

igreja existente hoje é de fato a construção original. Embora o percurso oficial dos Passos de

Anchieta não inclua visita à Igreja do Rosário, a construção é uma das principais marcas históricas do

processo de colonização na região, e uma das primeiras igrejas jesuítas do Espírito Santo (Espírito

Santo 2009).

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Figura 4–Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Fonte: TripAdvisor. Disponível em <https://www.tripadvisor.com.br/LocationPhotoDirectLink-g303319-d6589501-i131069534-Igreja_De_Nossa_Senhora_Do_Rosario-Vila_Velha_State_of_Espirito_Santo.html> (Acessado em 16 de março de 2018).

A próxima marca explícita da presença dos jesuítas no processo de colonização é um poço em

formato de cúpula (Figura 5) em Guarapari, que, de acordo com a Secretaria de Cultura da cidade

(GUARAPARI s.d.), data do século XVI, e é o único exemplar remanescente dos poços de águas

potáveis construídos pelos jesuítas. A modesta estrutura chama atenção na descida de uma parte

alta da cidade para a praia, se configura como um espaço de descanso, embora hoje, o poço não

ofereça água potável para hidratar o andarilho.

Figura 5–Poço jesuítico no Morro do Atalaia, região central de Guarapari. Fonte: Giovani Goltara

Ainda em Guarapari, também na região central da cidade, localiza-se a Igreja de Nossa Senhora da

Conceição (Figura 6), outro exemplar de construção jesuítica do período de colonização que se

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encontra restaurada e aberta à visitação. A igreja, inaugurada em 1585, é parte do primeiro

aldeamento ao sul de Vitória, e como de costume no período, encontra-se em um promontório, onde

à época ter-se-ia uma visão ampla do território (ESPÍRITO SANTO, 2009). Sua configuração remete à

produção da primeira fase da arquitetura jesuítica no Brasil: dimensões modestas, nave única, sem

altares laterais, sem torres na fachada, e com campanário anexo. Hoje, a igreja se perde na

paisagem em meio às construções ao seu redor, fazendo com que seja visualizada somente com a

chegada ao largo que se estende à sua frente.

Figura 6–Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Centro, Guarapari. Fonte: Giovani Goltara

Já no final da jornada, em Anchieta, no ano de 2016, o percurso sofreu uma leve alteração para que

os caminhantes passassem por um poço jesuíta (Figura 7), à época, recém descoberto sob uma

construção institucional. Segundo informações da Prefeitura de Anchieta, fornecidas na ocasião da

caminhada oficial Passos de Anchieta daquele ano, arqueólogos e historiadores trabalharam na

localização deste poço, que, ao ser descoberto em documentos, foi localizado ainda jorrando água. O

local foi reconfigurado para dar espaço à visitação ao poço, produzindo uma pequena praça que se

esconde por entre as casas ao redor.

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Figura 7–Poço jesuíta descoberto em Anchieta. Fonte: Giovani Goltara

O final do percurso se dá no, agora proclamado, Santuário Nacional de Anchieta (Figura 8). Após a

santificação de José de Anchieta, em 2014, a Igreja e Residência de Nossa Senhora da Assunção foi

proclamada pela CNBB como santuário nacional, assim como a Basílica de Aparecida, em Aparecida

do Norte (SP). A data, um pouco incerta, da inauguração remonta à segunda metade do século XVI e

início do século XVII, e sua localização privilegiada, em um plano elevado próximo à foz do Rio

Benevente, até hoje lhe dá destaque na paisagem de Anchieta. Assim como a Igreja de Nossa

Senhora da Conceição em Guarapari, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção, também faz parte da

primeira fase da arquitetura jesuítica brasileira, embora já esteja pendendo para a segunda fase, e,

portanto, apresenta maiores proporções e elementos constitutivos referente à fase mais abastada da

Companhia. A fachada sem torres apresenta campanário anexado, o interior tem nave principal e

naves laterais, altar mor a altares laterais subsidiários, com sacristia ao fundo.

Figura 8 - Santuário Nacional de Anchieta. Fonte: IPHAN. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1357/> (Acessado em 16 de março de 2018).

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A praça do Santuário guarda ao centro a árvore que se faz presente em diversos registros da cidade

ao longo dos anos. A cidade de Anchieta surgiu do aldeamento localizado nessa mesma região, um

promontório que dá vistas para a foz do rio Benevente, onde nos séculos que seguiram a colonização

seria instalado um dos principais portos da costa do Espírito Santo. A topografia da localização do

complexo jesuítico faz com que este seja visualizado de alguns pontos importantes da cidade,

principalmente dos seus acessos principais.

Verifica-se que há uma intenção do percurso de levar seus caminhantes a visitar essas obras, num

esforço de aproximar a atividade da caminhada de seu “mito fundador”. A caminhada além da

prerrogativa do próprio ato de caminhar também tem sua função turística, e o turismo muito se baseia

em marcos, ou seja, em elementos físicos construídos que marcam uma paisagem, ou em

construções que contam uma história sobre o lugar. Um exemplo dessa lógica turística aplicada aos

Passos de Anchieta é a passagem pelo Convento da Penha. Além de causar um grande desvio do

caminho, visto que o mais direto seria pelo litoral, o monumento não pertence à ordem jesuítica,

embora seja um importante marco paisagístico e principal ponto turístico da Grande Vitória.

CONCLUSÃO

Se o caminho, então, se compreende como uma atividade que remonta aos jesuítas, também pode

ser compreendido como legado o próprio percurso, que tem sua materialidade e principalmente a

imaterialidade, ou seja, a cultura do caminhar. O percurso em si é uma marca do legado dos jesuítas,

o que poderia ser somente a tradição de caminhar por esse território. Mas a demarcação desse

caminho por meio das placas e sinais transforma o território em uma linha que conta uma história.

Essa história tanto pode ser a dos padres que tiveram seu papel na colonização, como dos

caminhantes que há quase vinte anos repetem esses passos e criam uma nova história, seja em seus

relatos falados, seja em seus documentos fotográficos, ou mesmo na sua presença nos lugares.

Desse modo é possível inferir que, em uma primeira observação, a atividade de caminhada dos

Passos de Anchieta, já faz parte de um processo cultural que dá um sentido especial ao caminho

percorrido, e, portanto, é digna de atenção quanto à preservação patrimonial. As marcas físicas do

legado dos jesuítas conformam um itinerário que conta a história da colonização do Espírito Santo,

em conexão com o restante do Brasil. Porém, além disso, outras marcas se fazem presentes, como,

por exemplo, as áreas de preservação ambiental que são compreendidas pela caminhada, que, além

de promover a manutenção da fauna e flora dessas áreas, conformam uma paisagem que remonta à

preexistência da chegada dos portugueses ao Brasil. A combinação dessas marcas físicas da

paisagem confere à caminhada seu aspecto histórico e cultural, fazendo com que a atividade em si

seja importante manifestação de tradições, mesmo que recentes, deste território. Portanto, a

conservação dessa paisagem, embora já muito modificada na maior parte do caminho, se faz

importante para manutenção dessas manifestações culturais.

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Por outro lado, a história que se conta com os Passos de Anchieta é a história do Brasil colônia. A

preexistência antrópica não mais se nota, ou seja, não há indícios no caminho que remontam à

presença dos povos nativos, embora a maioria das construções jesuíticas que marcam o percurso

tenham sido construídas com sua mão de obra. Segundo a história que é propagada, José de

Anchieta percorria esses caminhos em companhia dos índios. Mas seria possível que esses

caminhos já fossem uma cultura desses povos? Essa é uma questão que fica aberta e que os Passos

de Anchieta não são capazes de contar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABAPA. Passos de Anchieta: Uma trilha de sucesso. s.d. Acessado em 11 de Set de 2017. http://www.abapa.org.br/interna.php?pg=ospassos

BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Anchieta e a obra jesuítica no Espirito Santo. Vitória: EDIT, 1997

COSTA, L. B. B. A. Passos de Anchieta: a arte de caminhar com fé no Espírito Santo (tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.

ESPÍRITO SANTO (estado). Secretaria de Estado da cultura. Arquitetura: patrimônio cultural do Espírito Santo. Vitória: SECULT, 2009.

GUARAPARI. Histórico cultural. s.d. Acessado em 11 de Set de 2017. http://www.guarapari.es.gov.br/portal/index.php/turismo/historico-cultural

MACEDO, Inara Novaes. Entre rios, praias e planetas: travessias do congo da Barra do Jucu (dissertação de mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo, 2015.

MATTOS, Sônia Missagia. A Aldeia de Iriritiba: atual cidade de Anchieta no Espírito Santo. Habitus, Goiânia, v. 7, n. 1/2, pg. 5-44 dez/jan. 2009. Disponível em <http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/download/2007/1261> Acessado em 18 de março de 2018.

MOREAU, Filipe Eduardo.Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. Annablume, 2003.

ROCHA, Levy Curcio da. Viagem de Pedro II ao Espírito Santo. Vitória, ES: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2008.

SAHLINS, Marshal David. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

i Existe uma incongruência quanto ao nome do aldeamento localizado onde hoje é Anchieta. Em algumas fontes

é encontrado Rerigtiba ou Reritiba, como por exemplo, no texto da ABAPA citado. Outros pesquisadores e historiadores, com o exemplo de Mattos (2009), usam a nomenclatura Iriritiba. De acordo com historiadores ambos os nomes fazem menção a um lugar com muitas ostras.