espaços consentidos - gestão do patrimônio cultural em...

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 ESPAÇOS (CON)SENTIDOS? GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EM MARIANA/MG PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO FLORA D’EL REI LOPES PASSOS RESUMO Frente às práticas de espetacularização das cidades, onde a criação de imagens e consensos são ingredientes na venda dos espaços e na legitimação de políticas excludentes, esta pesquisa defende processos horizontalizados de gestão em sítios urbanos tombados, construídos a partir do dissenso, resistência e mobilização social. No imbricamento entre cultura e espaço urbano, especificamente em cidades patrimonializadas, elementos materiais e imateriais influenciam não apenas na (re)produção e (re)significação da paisagem cultural dos sítios urbanos, mas na apropriação dos seus espaços, na formação de um sentimento de pertencimento atrelado à memória dos sujeitos e no estabelecimento de dinâmicas socioespaciais e culturais diversas. Assim, sob uma perspectiva crítica e voltada às questões do patrimônio cultural, pretende-se debater sobre as possibilidades de construção de políticas públicas na contemporaneidade em Mariana, Minas Gerais, principalmente, no contexto pós rompimento da barragem de rejeitos de mineração que destruiu subdistritos inteiros do município, em novembro de 2015. Entende-se que os processos de gestão e planejamento devem ser construídos a partir das vivências cotidianas, apropriação nos espaços públicos e de ações locais que constroem memórias coletivas, sentidos e sensações na cidade. Neste sentido, práticas socioculturais que resistem desde o período setecentista em Mariana, bem como coletivos contemporâneos que questionam o status quo através da arte, comunicação ou política, são percebidos como experiências que denunciam ações verticais e excludentes, afirmam o direito à cultura, à memória coletiva e, assim, sugerem outros projetos de cidade. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural; Gestão; Mariana-MG.

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

ESPAÇOS (CON)SENTIDOS? GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EM MARIANA/MG PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO

FLORA D’EL REI LOPES PASSOS

RESUMO

Frente às práticas de espetacularização das cidades, onde a criação de imagens e consensos são ingredientes na venda dos espaços e na legitimação de políticas excludentes, esta pesquisa defende

processos horizontalizados de gestão em sítios urbanos tombados, construídos a partir do dissenso,

resistência e mobilização social. No imbricamento entre cultura e espaço urbano, especificamente em

cidades patrimonializadas, elementos materiais e imateriais influenciam não apenas na (re)produção e

(re)significação da paisagem cultural dos sítios urbanos, mas na apropriação dos seus espaços, na

formação de um sentimento de pertencimento atrelado à memória dos sujeitos e no estabelecimento

de dinâmicas socioespaciais e culturais diversas. Assim, sob uma perspectiva crítica e voltada às

questões do patrimônio cultural, pretende-se debater sobre as possibilidades de construção de políticas públicas na contemporaneidade em Mariana, Minas Gerais, principalmente, no contexto pós

rompimento da barragem de rejeitos de mineração que destruiu subdistritos inteiros do município, em

novembro de 2015. Entende-se que os processos de gestão e planejamento devem ser construídos a

partir das vivências cotidianas, apropriação nos espaços públicos e de ações locais que constroem

memórias coletivas, sentidos e sensações na cidade. Neste sentido, práticas socioculturais que

resistem desde o período setecentista em Mariana, bem como coletivos contemporâneos que

questionam o status quo através da arte, comunicação ou política, são percebidos como experiências

que denunciam ações verticais e excludentes, afirmam o direito à cultura, à memória coletiva e, assim, sugerem outros projetos de cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural; Gestão; Mariana-MG.

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CONSENTING SPACES? CULTURAL HERITAGE MANAGEMENT IN MARIANA/MG, BRAZIL

ABSTRACT

Facing practices of spectacularization in cities, where the creation of images and consensuses are

ingredients in the sale of spaces and in the legitimization of exclusionary policies, this research defends

horizontalized processes of management in urban heritage, built on dissent, resistance and social

mobilization. In the imbrication between culture and urban space, specifically in cities declared as

heritage, material and immaterial elements interfere not only with the (re)production and (re)signification

of the cultural landscape of the urban sites but with the appropriation of their spaces, formation of a

feeling of belonging linked to the memory of individuals and in the establishment of different social and

cultural dynamics. Thus, from a critical perspective and focused on cultural heritage issues, it is intended

to discuss the possibilities of building public policies in the city of Mariana, Minas Gerais, Brazil, after

the disruption of a mining dam which destroyed entire sub-districts at the municipality in November 2015.

It is understood that the management must be constructed from daily experiences, appropriation in

public spaces and local actions that seek to construct collective memories, senses and sensations in

the city. In this sense, cultural manifestations that have resisted since the eighteenth century in Mariana,

as well as contemporary collectives that question the status quo through art, communication or politics

are perceived as experiences which denounces vertical and exclusionary actions, affirming the right to

culture, collective memory and suggesting other projects of the city.

KEY-WORDS: Cultural Heritage; Management; Mariana-MG.

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CULTURA E ESPAÇO URBANO: FORJANDO CONSENSOS

Considerado de acordo com seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana – isto é, social – como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo o descobre como a negação visível da vida; como negação da vida que se tornou visível. (DEBORD, 1997, p. 16)

A espetacularização das cidades contemporâneas é um fenômeno que tem sido estudado em diversas

partes do mundo, ainda que passados 50 anos da primeira publicação da obra do filósofo francês Guy

Debord: A sociedade do espetáculo1. Esta obra, notabilizada no contexto das greves e manifestações

de “Maio de 1968” na França, denuncia a sociedade ocidental moderna, mediada por imagens e orientada para o consumo e a mercantilização da vida. Segundo o autor, “o espetáculo não é um

conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (DEBORD,

1997, p. 14). Conforme apontado acima na citação introdutória, é na afirmação da aparência que se

desencadeia a negação da vida.

Refletir e debater sobre a função social, o caráter político dos espaços urbanos e sobre o direito à

cidade como condição fundamental das sociedades contemporâneas, tem se tornado cada vez mais

importante, em diversas instâncias, institucionalizadas ou não. Nas cidades com conjuntos urbanos

tombados essas questões deveriam ser norteadoras não apenas de políticas públicas de uso e ocupação do solo urbano, mas de políticas de preservação do patrimônio cultural. Diferentemente dos

processos de gestão e planejamento urbanos que traduzem essas cidades como vitrines ou cenários

espetaculares e consensuais, os espaços patrimonializados devem ser pensados como resultantes das

vivências cotidianas dos cidadãos que (re)significam constantemente o território e guardam relação

com os sentidos e sensações na cidade.

Em seu livro “Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental” o sociólogo americano Richard

Sennett associa a dispersão geográfica das cidades e as modernas tecnologias para entorpecer o corpo humano à dispersão da massa de corpos que antes se aglomeravam nos centros urbanos e passam,

então, a se preocuparem mais “em consumir, do que qualquer outro propósito mais complexo, político

ou comunitário” (SENNETT, 1997, p. 19). Segundo o autor, nas cidades que se entregam às exigências

do tráfego e ao movimento acelerado de pessoas, surgem espaços neutros e deslocam-se corpos

“dessensibilizados”.

Ao adotar a ideia de “simultaneidade simbólica”, Henri Lefebvre (2008) afirma que cada época histórica

constrói uma centralidade específica e, na cidade capitalista moderna, a dimensão lúdica – ligada ao

imprevisto, ao jogo das relações sociais, aos encontros, ao “teatro espontâneo” – muitas vezes se entrelaça à dimensão do consumo, que é o tipo peculiar e específico de centralidade criado pela cidade

capitalista. Nessa cidade, o domínio prevalece sobre a apropriação, negando a possibilidade do lúdico

no espaço urbano, agora instrumentalizado para o turismo e a diversão programada e previsível

(LEFEBVRE, 2008).

No contexto contemporâneo das políticas neoliberais, o empresariamento urbano dos espaços,

espacialmente públicos, reforça a promoção de imagens de marca consensuais de cidade, pensadas

1 “A Sociedade do Espetáculo” foi publicada pela primeira vez em 1967, em Paris, França.

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enquanto peças publicitárias (JACQUES, 2010), consagrando-se projetos de cidade dominantes que

despertam o espírito cívico, o orgulho, a sensação de pertencimento, ao mesmo tempo em que

pretendem neutralizar os conflitos sociais e as diferenças (SÁNCHEZ, 2010). Projetos recentes de

“renovação” ou “revitalização” de áreas “históricas” em cidades brasileiras, que frequentemente

importam modelos eurocêntricos e estadunidenses, podem ser estudados como exemplos da

materialização da segregação, exclusão e dominação entre grupos sociais nos espaços urbanos.

Nas cidades que possuem sítios urbanos tombados como patrimônio cultural é notável a imposição de barreiras materiais e simbólicas por processos de gestão e planejamento. A população de baixa renda

moradora dos bairros da periferia, muitas vezes, não se sente pertencente ao “centro histórico”, o que

é resultado das próprias políticas públicas excludentes e de atuações discriminatórias de parcelas da

sociedade civil. Soma-se a isso o modelo de turismo usualmente implantado, sem participação popular

e voltado a um público mais abastado. Nestes contextos a cultura se torna instrumento poderoso de

controle simbólico, especialmente em estratégias de desenvolvimento urbano apoiadas na preservação

histórica ou na “herança” local (ZUKIN, 1995). Assim, a (re)criação de “cenários” nas cidades

patrimonializadas refletem um processo de “culturalização” verticalizado que valoriza elementos específicos (materiais ou imateriais) em detrimento, por exemplo, do uso coletivo, função social ou da

própria fruição dos espaços.

Segundo François Choay (2006), em sua obra “A alegoria do patrimônio”, em determinado momento,

a cultura perde seu caráter de realização pessoal, torna-se empresa e logo indústria. “Por sua vez, os

monumentos e o patrimônio históricos adquirem dupla função – obras que propiciam saber e prazer,

posto à disposição de todos; mas também produtos culturais, fabricados, empacotados e distribuídos

para serem consumidos” (CHOAY, 2006, p. 211). Nas palavras de Marilena Chauí (2006, p. 120), “o

patrimônio cultural e ambiental, que era fonte de poder para o Estado-nação, torna-se simplesmente

uma questão econômica e política de marketing”.

Mariana, cidade declarada “Monumento Nacional” pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional), localizada na região central do estado de Minas Gerais, é estudada neste artigo

como campo de disputa entre diferentes ideias e projetos de cidade. Disputa que se destaca,

principalmente, após o rompimento da barragem do Fundão da empresa Samarco Mineração S.A., em

05 de novembro de 2015, considerado o maior desastre socioambiental do Brasil e que especificamente

em Mariana causou mortes e destruições irreversíveis no território com consequências sociais e culturais que se prolongam desde então.

Defende-se que é a partir do conflito, do dissenso, da apropriação dos espaços públicos e da troca

entre distintos grupos sociais, que as cidades patrimonializadas são percebidas como cidades

vivenciadas, experienciadas e, a partir de então, podem ser construídos processos de gestão e

planejamento urbanos justos e inclusivos. Sob essa perspectiva, práticas socioculturais que resistem

desde o período setecentista em Mariana, bem como, coletivos contemporâneos que questionam o

status quo através da arte, comunicação ou política, são percebidos como experiências que denunciam

ações verticais e excludentes, afirmam o direito à cultura, à memória coletiva e, assim sugerem outros projetos de cidade, justos, coletivos e horizontais.

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MARIANA: PERMANÊNCIAS E (TRANS)FORMAÇÕES URBANAS

Conforme Roberto Monte-Mór (2001), o Brasil ao final do século XVII ainda se caracterizava como um

território de baixa ocupação populacional concentrada na sua extensa faixa litorânea, onde poucos

centros comandavam a extração de recursos naturais em amplas regiões enquanto que o restante das

povoações e núcleos que poderiam compor uma “rede urbana” eram aldeias, acampamentos,

povoados, missões e, em casos especiais, vilas. O sistema colonial baseado no latifúndio

autossuficiente, o trabalho escravo e o monopólio comercial da Coroa Portuguesa impediam uma

expansão e consolidação da base urbana. Segundo o autor, foi a riqueza mineral concentrada

principalmente em Minas Gerais que integrou a colônia diretamente, por algumas décadas, ao centro motor da economia mercantilista mundial, permitindo interações políticas e culturais inimagináveis na

colônia até então abandonada.

Assim, a exploração dos aluviões auríferos induziu o deslocamento populacional ao interior da Colônia

e a fixação nas margens dos rios, constituindo, entre outros, o antigo Arraial de Ribeirão do Carmo,

correspondente à atual cidade de Mariana. A consolidação dos primeiros núcleos ocorreu de forma

rápida e, em consequência do ouro encontrado em suas areias, a vila se estendeu paralelamente ao

Ribeirão do Carmo na direção Leste e, aos poucos, evoluiu na direção sul. A autora Cláudia Damasceno

Fonseca (1995), em sua dissertação de mestrado, conta sobre a gênese e transformação da paisagem cultural em Mariana.

Dentre os marcos temporais destacados por esta e outros pesquisadores, está o ano de 1745, quando

a Vila de Nossa Senhora do Carmo é elevada à categoria de cidade para que pudesse ser sede do

bispado. Era a única cidade da Capitania durante todo o século XVIII. Com a chegada do primeiro

bispo, em 1748, a cidade assumiu a posição de principal centro religioso da capitania, condição esta

que é efetivada por um grande número de obras civis e religiosas. Nesta época a cidade ganha um

traçado urbano em quadras retilíneas, desenhado pelo brigadeiro Alpoim, o chamado Plano Alpoim. Contudo, enquanto Villa Rica (atual Ouro Preto) se firmava como um centro dinâmico, de comércio e

serviços diversificados, Mariana nunca chegou a se constituir num centro terciário regional. Em fins do

século XVIII, com o declínio do ouro, a cidade viveu um processo de estagnação econômica que

perdurou até o princípio do século XX. A ausência de outras atividades dinâmicas fez com que não

houvesse durante esse tempo uma expansão urbana significativa do centro urbano consolidado. E a

mudança da capital mineira de Ouro Preto para Belo Horizonte, em 1897, também contribuiu para o

esvaziamento e a perda de prestígio e de investimentos na cidade de Mariana. Ainda na primeira

metade do século XX, a exportação do ouro passou a atingir cifras significativas e consolidou-se a base legal de sustentação da mineração brasileira.

Em 14 de maio de 1938 a cidade de Mariana foi tombada como patrimônio nacional pelo então SPHAN,

Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN). E, em um período de

aproximadamente 10 anos, além da inscrição do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico no Livro de

Tombo das Belas Artes, foram também tombados diversos bem imóveis, especialmente templos

religiosos, e alguns exemplares da arquitetura civil do barroco mineiro. Com o passar dos anos, apesar

das políticas de preservação terem conseguido, de certa forma, frear a verticalização e o adensamento

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no interior do conjunto tombado, nota-se uma expansão urbana acelerada e desordenada, com

ocupações informais e loteamentos incentivados pelo próprio poder público municipal para suprir a

demanda por moradia advinda da chegada das companhias mineradoras e siderúrgicas, o que ocorre

a partir da década de 1940 e, principalmente, nas décadas de 1960 e 1970.

A nova periferia urbana em Mariana vem sendo constituída tanto através de processo espontâneo de ocupação do solo, por populações de baixa renda em regiões desvalorizadas, quanto através de loteamentos implementados durante o mandato do ex-prefeito João Ramos Filho (...). Estes loteamentos foram implementados, portanto, sem inclusão de nenhuma praça, área verde ou algum tipo de equipamento urbano necessário ao súbito adensamento urbano, como escolas, creches ou posto de saúde. A maioria destes loteamentos não é dotada sequer da infraestrutura urbana básica, de água tratada, esgotos sanitários, energia elétrica e calçamento de ruas (FISCHER, 1993, p. 70).

Com relação à interface com a preservação do patrimônio, vale notar que estes novos loteamentos

ocuparam áreas de encosta que emolduram o conjunto tombado, ou seja, áreas de “amortecimento” da paisagem onde deveriam ser adotados parâmetros de ocupação do solo, volumetrias e materiais de

acabamento que não causassem impactos à ambiência do núcleo tombado. Contudo, nota-se ausência

de qualidade e conforto ambiental no padrão edilício e de infraestrutura urbana e equipamentos e

serviços públicos básicos. Vale ressaltar que nesta época o IPHAN não possuía escritório técnico local

e, mesmo depois de criado, o quadro técnico reduzido e a falta de recursos e de normatização

específica para Mariana dificultavam (e dificultam) sobremaneira a fiscalização das ocupações formais

e informais no território.

Foto 01: Mariana em meados do século XX. Foto 02: Mariana em 2016. Fontes: Arquivo da Casa Setecentista (01); Autoria própria (02)

O auge da exploração mineral brasileira da década de 1970 não perdurou por muito tempo e ao final

da década seguinte, com a crise econômica mundial, ocorreu o declínio dos investimentos internacionais seguido da decadência do governo militar. A vinda das grandes empresas mineradoras

não apenas induziu o crescimento populacional e consequentemente as ocupações formais e informais

na cidade, mas ainda, criou uma relação de dominação financeira com a Prefeitura Municipal, advinda

da arrecadação dos royalties da mineração e a geração de emprego, dependência esta que perdura

até os dias atuais. Dados mais recentes mostram que apesar da crise da mineração, o estado de Minas

Gerais ainda é responsável por aproximadamente 67% da produção de minério de ferro do país

(IBRAM, 2012) e arrecadou R$ 300.069.000,00 de Compensação Financeira por Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o que equivale a 43,3% da arrecadação nacional.

Nos últimos dez anos o município de Mariana foi governado por oito prefeitos diferentes. Uma análise

ainda que superficial das recentes gestões municipais da cidade demonstra marcas de políticas

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clientelistas e corruptas, como a compra de votos, além do uso ilícito de recursos públicos em

campanhas eleitorais. A rápida ascensão econômica de atores políticos também demonstra como as

eleições estão dadas no poderio sustentado pelo financiamento de empresas privadas, usualmente das

mineradoras.

As consequências da dependência econômica e simbólica com o setor minerário na região são

perversas. Nos momentos de crise as consequências socioambientais são ainda piores. A exploração

do trabalho, as demissões de trabalhadores e a extração nas minas aumentam enquanto a arrecadação municipal diminui. Sob pressão das mineradoras, licenças ambientais são flexibilizadas, novas minas

são licenciadas, e o poder público age em conjunto com os empreendedores. Todas as questões

socioambientais que circundam a mineração são secundarizadas e silenciadas frente à imponência

econômica da exploração mineral.

O fato acima exposto pôde ser claramente percebido no crime ocorrido em 05 de novembro de 2015,

quando rompeu uma barragem de rejeitos de mineração – barragem do Fundão – no município de

Mariana, de responsabilidade da empresa Samarco Mineração S.A., controlada pelas empresas Vale

e BHP Billiton. Considerado o maior desastre socioambiental ocorrido do Brasil, a “lama” que desaguou no Rio Doce e chegou ao oceano atlântico nos litorais do Espírito Santo e sul da Bahia, acarretou em

um passivo ambiental irrecuperável e impactos sociais e culturais de drásticas proporções. Causou

mortes, soterrou subdistritos (como Bento Ribeiro e Paracatu de Baixo, ambos em Mariana), deixou

centenas de pessoas sem moradia, sem trabalho, sem água e sem sustento em diversos municípios –

e em comunidades originárias que vivem às margens do Rio Doce como os índios Krenak –, matou

milhares de animais e vegetais, extinguindo espécies e desequilibrando a fauna e a flora ao longo do

Rio Doce até o mar. Resultados de investigações da Polícia Federal, de junho de 2016, demonstram

que a empresa Samarco já sabia dos riscos de rompimento da barragem do Fundão antes do desastre, o que resultou no indiciamento de oito pessoas por crime ambiental até o momento.

A negligência com a preservação do patrimônio cultural também ganha destaque entre os impactos de

um projeto de cidade voltado aos interesses do capital e não da comunidade local. A história dos

subdistritos soterrados – Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo – é hoje recuperada pelas famílias

atingidas que lutam pelos seus direitos básicos, incluindo o da moradia digna, da comunicação e da

memória coletiva.

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Foto 03: Capela de São Bento, em Bento Rodrigues, antes do rompimento da barragem. Foto 04: Vista parcial da área atingida em Bento Rodrigues após a tragédia. Fontes: http://www.estradarealbike2015.wordpress.com/ (03); http://www.uirauna.net/ (04)

Criada pela empresa Samarco S.A. para as reparações e compensações aos danos ocasionados pelo

rompimento da barragem, a Fundação Renova vem ocupando atualmente uma posição de grande

destaque nos processos de gestão e planejamento municipais. Ainda que não caiba aqui fazer um

balanço de suas ações e envolvimento com atores institucionais, é importante ressaltar que já existem

indícios de empreendedorismo urbano vinculado a um projeto de cidade excludente e que reforça

relações de dominação e poder.

A APROPRIAÇÃO NOS ESPAÇOS PATRIMONIALIZADOS: POR OUTRO PROJETO DE

CIDADE

Nesta mesma cidade espetacularizada, onde predominam processos de gestão e planejamento

urbanos verticalizados onde são forjados consensos, coexistem outras cidades. Sujeitos sociais diversos (articulados de forma intitucionalizada ou não) propõem ações de resistência e afirmam o

direito à cidade, à cultura e à memória na cidade, resgatando a essência política dos espaços

patrimonializados. Sob essa perspectiva, o presente trabalho busca contribuir para o debate sobre a

importância de “dar voz” ou “dar espetáculo” a estes sujeitos e ações e de perceber a cultura como

campo de resignificação do espaço urbano. Nas palavras de Ana Clara Torres Ribeiro é necessário

“valorizar o espetáculo criado pelo ‘estar junto’ e reconhecer o ‘dar espetáculo’ como possibilidade de

reinvenção da experiência urbana” (RIBEIRO, 2010, p. 39).

Para a esquerda, a cultura é a capacidade de decifrar as formas da produção social da memória e do esquecimento, das experiências, das ideias e dos valores, da produção das obras de pensamento e das obras de arte e, sobretudo, é a esperança racional de que dessas experiências e ideias, desses valores e obras surjam um sentido libertário, com forças para orientar novas práticas sociais e políticas das quais possa nascer outra sociedade (CHAUI, 2006, p. 08).

O geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2010) apresenta a noção de “práticas espaciais” como práticas

sociais forte e diretamente impregnadas da dimensão espacial, em aspectos que vão da identidade à

organização:

As práticas espaciais têm servido, obviamente, tanto à dominação, à coerção, à imposição de cima pra baixo ou de fora para dentro das leis e normas que regulam a vida de um grupo ou sociedade, quanto à emancipação, à autodeterminação, à autodefesa legítima, ao autogoverno, à instituição livre e lúcida das leis e normas pelo próprio corpo de cidadãos, diretamente (SOUZA, 2010, p. 13).

Desde uma perspectiva “estado-crítica” o autor afirma que a luta institucional não substitui a ação direta,

mas sim, subordina-se a ela, assim como a tática se subordina à estratégia, e não o contrário. Na

fórmula “com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado”, são dos dois últimos ingredientes – e

principalmente o último – que devem predominar, considerando o risco da cooptação e degeneração

dos movimentos e a necessidade de uma mudança socioespacial profunda como pré-requisito para se

poder falar em maior justiça social e melhorias substanciais da qualidade de vida da maior parte da população (SOUZA, 2010).

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Ao refletir sobre as práticas espaciais insurgentes, Souza (2010) destaca a ação direta como principal

elemento e esclarece que políticas públicas e instâncias participativas iniciadas e bancadas pelo Estado

não podem ser consideradas insurgentes, afinal, nenhum Estado capitalista poderia desenvolver

práticas, marcos legais etc., que insurgissem, efetivamente, contra a propriedade privada e os demais

pilares da ordem socioespacial heterônoma.

Instâncias institucionais de participação popular nas decisões e definições de políticas públicas (para

as cidades e para o patrimônio cultural por exemplo) são definidas como “espaços convidados” pela autora Faranak Miraftab (2009) em seu artigo “Insurgent Planning: situating radical planning in the

global South”. Para além dos “espaços convidados” existem os “espaços inventados”, ou seja, ações

coletivas que partem da população pobre e confrontam diretamente as autoridades e desafiam o status

quo. A relação entre os dois tipos de espaços não é dicotômica, mas interacional e mútua.

Conforme defende a autora, o planejamento insurgente é caracterizado como contra hegemônico, pois

desestabiliza a ordem normal das coisas; transgressor, pois transpassa o tempo e o espaço colocando

memória e consciência histórica no centro das atenções; e imaginativo, na medida em que promove

um novo conceito de mundo possível e necessário e defende uma sociedade justa.

O Planejamento insurgente, assim, subentende ações coletivas para a transformação da realidade

urbana buscando uma sociedade justa. Nesta mesma linha podemos citar o planejamento radical.

Conforme defendido por John Friedman (2003) é necessário que planejamento seja no tempo real, do

cotidiano, e não do tempo futuro. Sobre a dimensão espacial, o autor defende a valorização do regional

e local em detrimento da escala nacional e transnacional. São 03 razões pelas quais o autor defende

privilegiar o regional e local: 1) necessidade de atentarmos para a variedade existente nas escalas

regionais e locais e valorizar essas especificidades; 2) presença da sociedade civil organizada nas

decisões públicas; 3) as regiões e localidades são o espaço do dia-a-dia das pessoas. Friedman defende este novo planejamento "não-euclidiano" com 05 características básicas: normativo; inovativo;

político; transacional; e baseado no ensinamento social, ou seja, do senso comum.

Neste sentido, torna-se necessário reconhecer o senso comum, dar visibilidade ao espaço vivido, da

interação coletiva, da troca social e da apropriação que, segundo Lefebvre (1991), guarda relação com

o corpo, com as ameaças à existência através de sanções diversas, com as emoções colocadas à

prova a todo instante. Esse espaço vivido, ele não é concebido, é espaço de representação, mais que

representação do espaço (LEFEBVRE, 1991).

A autora Paola Jacques contesta a cristalização de imagens de marca consensuais de cidade e defende

uma possibilidade de “micro-resistência” à espetacularização urbana, “encontrada no próprio uso

cotidiano da cidade, em particular na experiência não planejada ou desviatória dos espaços públicos,

ou seja, nos seus usos conflituosos e dissensuais” (JACQUES, 2010, p. 110). É por meio das

apropriações e improvisações dos espaços que se legitima ou não, e se reinventa, aquilo que foi

projetado pelos urbanistas. Por meio das corpografias urbanas2 voluntárias – decorrentes das

2 O termo corpografia, para designar um tipo de registro da cidade no corpo de seus habitantes, foi inicialmente sugerido pelo arquiteto urbanista Alain Guez, a partir da leitura do artigo “Éloge dês errants l’art d’habiter la ville” apresentado por Paola Berenstein Jacques no Colóquio Cerisy-la-Salle em setembro de 2006, publicado em:

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errâncias, das experiências ou práticas conflituosas e dissensuais da cidade – descobre-se uma “outra

cidade” escondida, ocultada, apagada ou tornada opaca pelas estratégias de marketing urbano, que

coexiste por trás dos cartões postais das cidades espetaculares contemporâneas e sobrevive no corpo

daqueles que a experimentam.

Nesse sentido, de resistência à despolitização e estetização dos espaços concebidos e “reais”,

emergem outros conceitos e noções como o de espaço diferencial, de Lefebvre (1991), espaço que

não só permite como também explicita e reafirma as diferenças, ou ainda, as contradições. E é no cotidiano, na interação coletiva e no diálogo, que reside a possibilidade do espaço vivido e da

participação. Segundo o autor, o espaço social contém potencialidades para:

[...] responder às exigências do corpo ‘transportado’ para fora de si no espaço, um corpo que, ao colocar resistência, inaugura o projeto do espaço diferencial (ou o espaço de uma contracultura, ou um contraespaço, no sentido de uma alternativa inicialmente utópica frente ao espaço ‘real’ existente (LEFEBVRE, 1991, p. 349).

Ainda segundo Paola Jacques (2010), assim como os jogos psicogeográficos e as derivas – exercícios

de experimentação no meio urbano praticados pelos situacionistas – ou as “táticas desviacionistas” propostas por Michel de Certeau (no livro “A invenção do cotidiano”), a experiência artística também

poderia ser considerada questionadora dos consensos estabelecidos ou ainda como fomentadora de

outras formas de dissenso. Ou seja:

[...] arte como uma forma de ação dissensual que possibilitaria a explicação dos conflitos escondidos, do campo de forças que está por trás da cidade-logotipo-imagem espetacular. Uma ação artística enquanto micro-resistência, experiência sensível questionadora de consensos estabelecidos e, sobretudo, potência explicitadora de tensões do e no espaço público, em particular diante da atual pacificação, despolitização e estetização consensual dos espaços públicos globalizados. (JACQUES, 2010, p. 116)

No Brasil, de uma forma geral, existem inúmeras práticas socioculturais, que ao se apropriarem dos

espaços públicos nas cidades, sugerem vínculos identitários com o território, como as batucadas e

rodas de samba e choro, o teatro de rua ou a capoeira, por exemplo. Vale ressaltar que, não raro, festas e manifestações culturais, do sagrado ao profano, são capturadas na reinvenção da cidade

espetacularizada, atraindo milhares de turistas de norte a sul do país.

[...] A repetição de rituais (desfiles, marchas, shows) e a ritualização de ações antes espontâneas indicam a afinidade eletiva entre espetáculo e poder [...]. Um espetáculo que agora se transforma em espaço de atuação para um número crescente de especialistas e em norte de investimentos públicos e privados dirigidos à multiplicação dos seus efeitos culturais e dos seus subprodutos imagéticos e sonoros (RIBEIRO, 2010, p. 33).

Na contramão dos processos de espetacularização e “culturalização” das cidades, esta pesquisa busca

mapear experiências sensíveis, particularmente na cidade de Mariana enquanto estudo de caso, e que, a partir da apropriação, dão sentido aos espaços. Algumas manifestações resistem desde o período

colonial, especialmente, aquelas com cunho religioso, como as procissões (da Semana Santa ou

Corpus Christi) e as festas de devoção aos santos padroeiros que ainda carregam muito do sincretismo

religioso unindo missas do catolicismo com congados e folias de reis.

BIASE, Alessia e BONNIN Philippe. L’habiter dans as poétique premiére – actes Du colloque de Cerisy-la-salle. Paris: Éditions Donner Lieu, 2008.

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Documentos históricos do século XVIII falam em festas de rua, danças e cavalhadas, além da presença de negros tocando flautas, oboés, órgãos e violinos, numa mistura de música sacra e profana, como sugerem os relatos “cousas da alegria”. Tais manifestações de sincretismo religioso podem ser observadas até hoje, nas festas populares dos diversos distritos de Mariana (FERREIRA, 2009, p. 16).

Foto 05: Manifestação religiosa na Praça Minas Gerais, Mariana, s/d; Foto 06: Festa do Divino na Praça Minas Gerais. Fontes: Arquivo Casa Setecentista (05); Élcio Rocha, em http://www.jornaloliberal.net/ (06).

Sobre a Festa do Divino Espírito Santo, que ocorre no Domingo de Pentecostes em Mariana, Ferreira

relata:

Nove dias antes do Domingo de Pentecostes tem início a novena (...). Às vésperas da Festa, os devotos, que contam também com a participação das guardas de congada, acompanham a procissão da bandeira e ao final, fazem o levantamento do mastro. No dia da Festa, após a missa, há a tradicional distribuição de medalhas, novenas e pães bentos, o que é um dos grandes atrativos, sempre acompanhados dos dobrados das corporações musicais centenárias e recentes da cidade de Mariana (FERREIRA, 2009, p. 26).

Quando essas festas ocorrem nos distritos de Mariana, a apropriação cultural se dá de modo

completamente diferente se comparado às festas que ocorrem na sede do município, no conjunto

tombado. As “quermesses” que ocorrem em comemoração à padroeira das igrejas localizadas nos

distritos, por exemplo, apesar de adaptadas à contemporaneidade – desde a escolha do gênero musical

ao formato das tendas onde se vende os quitutes – ainda preservam características como a

coletivização dos trabalhos entre os moradores da comunidade e a oferta da comida aos participantes da festa. Os laços destes moradores com seus distritos (de moradia ou origem), o sentimento de

pertencimento, são fortalecidos com as festas tradicionais. No Distrito de Camargos, por exemplo, as

principais festas celebradas são a do Santo Cruzeiro e de Nossa Senhora da Conceição. Conforme

relatado por Ferreira (2009), os moradores de Camargos informam que a devoção a Nossa Senhora

da Conceição iniciou-se no século XVII e perpetua até os dias atuais. Em referência a festa do Santo

Cruzeiro o autor descreve:

Na véspera da festa, a comunidade se reúne, enfeita o adro da igreja, os dois cruzeiros e o caminho entre eles com arcos e tochas de bambu. À noite, a bandeira sai de casa de um dos festeiros e segue até o Cruzeiro Novo. No dia seguinte, após cantarem a ladainha (em latim), é celebrada a Santa Missa. Em seguida, a procissão sai do Cruzeiro Novo em direção ao Cruzeiro Velho. Segundo o Seu Dario, em apenas um ano não foi possível contar com a presença do sacerdote, e a festa foi celebrada com auxílio de um seminarista de Barão de Cocais (FERREIRA, 2009, p. 47).

Outras manifestações culturais também resistem há décadas, mais ligadas à vida profana nas cidades,

como é o caso do carnaval e das bandas musicais. Conforme relatado por representantes locais,

Mariana possui 11 entidades musicais, sendo 03 na sede e 08 nos distritos. Outros encontros e festivais

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que fazem parte da agenda cultural da cidade também merecem destaque, como é o caso do Encontro

de Palhaços, que ocorre há quase 10 anos e reúne pessoas de diferentes gerações e grupos sociais

em espaços públicos do núcleo histórico.

Foto 07: Manifestação cultural na Ponte de Tábuas, em Mariana, s/d; Foto 08: Encontro de Palhaços, na Praça Claudio Manoel. Fontes: Arquivo Casa Setecentista (07); http://www.jornaloliberal.net/ (08).

O rompimento da barragem do Fundão, em novembro de 2015, também tem sido motivador para a apropriação e ressignificação de alguns dos principais espaços públicos, especialmente praças, do

centro histórico de Mariana. O coletivo #UmMinutodeSirene3, organizado por pessoas da sociedade

civil e da população atingida pelo rompimento da barragem do Fundão, por exemplo, vem propondo

atividades de divulgação de informações sobre o desastre desde a visão dos atingidos e o contínuo

debate e a preservação da memória e da garantia dos direitos aos atingidos. Todo dia 05 de cada mês

o coletivo propõe uma manifestação diferente em algum espaço público de Mariana e soa um minuto

de sirene, para lembrar as falhas no plano de emergência da empresa Samarco e para manter a população em alerta. Em uma das manifestações, por exemplo, o coletivo propôs o “Domingo-Feira”,

uma feira de produtores da população atingida com apresentação da Folia de Reis de Paracatu de

Baixo. Além de ser um momento de denúncias, manifestos, troca de saberes, é também quando ocorre

a distribuição do Jornal “A Sirene” elaborado por um grupo de atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu

de Baixo com a colaboração de integrantes do coletivo #UmMinutodeSirene. O jornal, fruto de parceria

com a Arquidiocese de Mariana, já está em sua quarta edição e além da distribuição durante as

manifestações, são também disponibilizados em meio digital pelas redes sociais.

3 O nome do coletivo ganhou o símbolo hashtag “#” pois sua origem está diretamente ligada à comunicação nas redes sociais na internet. O hashtag permite que o internauta encontre com maior facilidade as várias informações que são postadas sobre o tema debatido pelo coletivo que, no caso, é o desastre socioambiental ocorrido em 05/11/2016 em Mariana/MG.

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Foto 07 - #UmMinutodeSirene na Praça Gomes Freire, em Mariana/MG; Foto 08 - Jornal “A Sirene” construído coletivamente com a população atingida. Fontes: Laura de Las Casas (07); Lucas de Godoy (08).

Para além dos procedimentos formais que “atestam” o valor cultural dos imóveis, sítios urbanos e dos

modos de criar, fazer e viver dos grupos formadores da sociedade, ou seja, dos tombamentos do

patrimônio material e registros de bens imateriais, torna-se essencial desvendar resistências e

insurgências cotidianas nas cidades, que propõe a apropriação sensível e crítica dos espaços urbanos

e, assim, (re)criam constantemente identidades territoriais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na contramão de processos de espetacularização das cidades, especialmente aquelas

patrimonializadas, torna-se fundamental refletir e debater criticamente sobre os processos de gestão e

planejamento urbanos que percebem os espaços como mercadorias, ou cenários de um turismo programado e destinado públicos mais abastados e colocam em segundo plano as vivências cotidianas

dos cidadãos. Frente a estes projetos de cidade que a partir da criação de consensos buscam legitimar

processos de dominação nos espaços urbanos, defende-se o resgate da memória coletiva, o

reconhecimento de vivências do cotidiano e insurgências urbanas, e o fortalecimento dos canais de

participação direta dos cidadãos.

Defende-se, assim, “dar espetáculo” às ações cotidianas de apropriação dos espaços públicos e de

troca entre os diferentes grupos sociais, e às expressões e práticas socioculturais como

potencializadoras do debate sobre o direto à cidade, à cultura na cidade e sobre diálogo e participação no planejamento urbano. As ações de coletivos culturais no território, muitas vezes, perturbam as

imagens consensuais de cidade propostas pelo poder oficial e, nesse sentido, se adaptam, se

reorientam, resistem ou reconfiguram, constantemente, suas experiências urbanas nos espaços

públicos.

Espera-se com este trabalho o “abrir” de outras cortinas, colocando no foco outras perspectivas da

cena urbana, não reduzidas aos discursos e ações do poder hegemônico, mesmo que à luz do

pensamento crítico. O imbricamento entre as dimensões material e imaterial do patrimônio cultural, o

enfoque sobre a memória coletiva e a afirmação da troca social e do dissenso na apropriação dos espaços públicos, constituem-se em importantes temáticas para a construção de um debate

participativo e crítico na cidade e para a reflexão sobre outras ideias e projetos de cidade inclusivos e

justos.

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