estratégias e ressignificações na espetacularização dos maracatus nação pernambucanos

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    Estratégias e ressignificações na espetacularização dos maracatus nação

    pernambucanos.1 

    Anna Beatriz Zanine Koslinski (UFPE)

    Resumo

     Neste início de século, os maracatus nação pernambucanos, que em tempos passadostinham visibilidade apenas nas comunidades afro descendentes do Recife e arredores, setornaram um dos principais espetáculos do carnaval da cidade, recebendo maisinvestimentos por parte das iniciativas públicas e privadas, atraindo a atenção não só dosturistas como também de pernambucanos de outras classes sociais. Neste contexto, onde osmaracatus nação são compreendidos como mais um objeto de consumo da sociedadecapitalista, percebem – se modificações nos modos de apresentação, organização e tambémem alguns sentidos da prática. Isso não significa que os maracatuzeiros aceitam

     passivamente as pressões da indústria cultural ou dos órgãos que regem as políticasculturais, o que ocorre é uma ressignificação de seus valores e símbolos perante essas novasdemandas. Rituais como as obrigações religiosas e o desfile da federação carnavalesca, sãoespaços privilegiados para compreender tais estratégias, demonstrando que, apesar deestarem inseridos na lógica mercantil, os maracatus nação não deixam também de darimportância a valores considerados sagrados e tradicionais, que fazem parte de seu universosimbólico. Dentro desta perspectiva, este trabalho pretende compreender como osmaracatus atualizam a estrutura e sentidos das obrigações religiosas e desfile da federaçãocarnavalesca, neste momento onde sua espetacularização e o interesse por parte do sistemacapitalista se torna mais evidente.

    Palavras chave: maracatu nação –  espetacularização –  cultura popular.

    A cidade do Recife e seus arredores, assim como outras capitais do nordeste

     brasileiro, é um dos destinos mais procurados por turistas no Brasil, não só por conta de

    suas belezas naturais, mas nos últimos anos também por conta de sua cultura popular. O

    carnaval é sem dúvida o período que atrai mais turistas para a região, assim como também é

    o período onde a maioria dos grupos de cultura popular tem maior visibilidade. Este é o

    caso dos maracatus nação pernambucanos, manifestação que participa da Abertura do

    Carnaval Multicultural do Recife2, sendo considerada como uma das principais atrações do

    evento. De fato, se no passado os maracatus nação eram conhecidos apenas pelas

    1 Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de2012, em São Paulo, SP, Brasil.2 Carnaval Multicultural do Recife é o titulo dado ao modelo de carnaval da cidade criado pela gestão daPrefeitura da Cidade do Recife em 2002.

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    Para se compreender como se formou o contexto dos maracatus nação e seus

    espaços de visibilidade nos dias atuais, é interessante observar como eram esses espaços no

     passado.

    O contexto dos maracatus nação nos séculos XIX e XX

    Como já foi apontado na introdução deste trabalho, a visibilidade e interesse

    despertado pelos maracatus nação é algo muito recente. A desvalorização que os maracatus

    nação enfrentavam no passado contribuiu inclusive para que exista pouca documentação

    acerca de como eles se organizavam, principalmente em se tratando do século XIX. O que

    se sabe, principalmente por conta de registros em jornais, é que a visão que a sociedade

    recifense tinha dos maracatus4 era bastante negativa, e que por conta de denúncias acerca

    do incomodo que eles causavam, os maracatus eram alvo de perseguições policiais (Lima2005; 2008). Isso condiz com o com a mentalidade da elite da época no Brasil como um

    todo, que via a cultura negra como um empecilho ao processo civilizatório almejado pelo

     país, amparado nas teorias racistas tão em voga no período5.

    Por estas razões, tudo indica que os maracatus, assim como outras manifestações da

    cultura popular, encontraram no período carnavalesco, um espaço para a legalidade, já que,

    desde que se organizassem em agremiações, tais manifestações poderiam desfilar pelas

    ruas, por meio de licenças concedidas pela polícia (Lima, 2005; 2008). De início, o modocomo os desfiles ocorriam era mais espontâneo, a normatização e institucionalização do

    carnaval, foi algo que ocorreu aos poucos. Compreender, mesmo que de forma sucinta

    como se deu esse processo é pertinente, pois ele tem relação direta com o formato de

    espetáculo que o carnaval do Recife e as manifestações que o compõe foram tomando.

    Até a fundação da Federação Carnavalesca, em 1935, o carnaval não possuía uma

    única instituição que o financiasse. Cada agremiação ou baile buscava os recursos para

    organizar seu desfile ou evento por conta própria, através de doações de famílias, políticos

    4  Me refiro aqui à manifestação de modo mais genérico, ou seja, simplesmente como maracatu pois atémeados do século XX, os registros documentais não apontavam para distinções específicas entre os maracatusnação e os maracatus de orquestra, conhecidos também como maracatus rurais. Para maiores informações verLima (2008).5  Para maiores informações acerca do pensamento social brasileiro e do racismo científico ver: Schwarcz(2003) e Ortiz (1985).

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    ou comerciantes. Os concursos carnavalescos eram organizados de modo informal pelos

     jornais da cidade, sem que houvesse a divisão deles por categorias, ou seja, diferentes tipos

    de agremiações participavam da disputa (Araújo, 1996). Com o surgimento da Federação

    Carnavalesca, os recursos para as agremiações associadas eram distribuídos por ela, sendo

    que os grupos considerados menos importantes, como era o caso dos maracatus, recebiam

    quantias menores, portanto eles continuavam solicitando recursos por meio das doações.

    Em troca eles prometiam desfilar em frente ao estabelecimento comercial ou casa dos

    doadores no período do carnaval.

    A Federação Carnavalesca organizou concurso próprio, que vem a ser o concurso

    existente no carnaval atual, com os devidos reajustes, por conta do aumento das proporções

    da festa e de da quantidade de agremiações registradas. Em 1955, a Federação passa a fazer

     parte do poder público, que organiza o carnaval do Recife até os dias de hoje, por meio da

     própria Federação Carnavalesca, da Fundação de Cultura da Cidade do Recife além da

    Prefeitura da Cidade do Recife (Lima, 2010).

    Os registros do modo como se organizavam os desfiles do maracatu até a década de

    1940 são poucos, o que não permite com que se possam afirmar quais eram as figuras do

    cortejo ou instrumentos utilizados (Lima 2005; 2008). No entanto, o maestro Guerra-Peixe

    em sua obra  Maracatus do Recife  (1955/1980) já aponta para as figuras existentes nos

    desfiles dos maracatus nação, além de descrever seus instrumentos e alguns baques,

    tomando como base a pesquisa realizada por ele no Maracatu Elefante no fim dos anos

    1940. Sua pesquisa apontou o trajeto realizado pelo referido maracatu nação no dia do

    desfile da federação, trajeto esse confirmado pelo relato de memória de diversos

    maracatuzeiros6.

     Na época, os maracatus tinham por hábito no domingo de carnaval ir caminhando a

     pé da sede da agremiação, até a Praça do Diário onde ocorria o desfile da federação. No

    6 Os relatos de memória dos maracatuzeiros que serviram de fonte para esta pesquisa são os registrados ementrevistas realizadas pelos projetos História e Memória dos Maracatus Nação Pernambucanos(FUNCULTURA, FUNDARPE, UFPE, 2010), Inventário Sonoro dos Maracatus Nação Pernambucanos(FUNCULTURA, FUNDARPE, UFPE, 2010) e Inventário Cultural dos Maracatus Nação Pernambucanos(FUNDARPE, IPHAN, UFPE, 2011; em andamento), dos quais participei como pesquisadora. As entrevistasrealizadas nesses projetos estão disponíveis no Laboratório de História Oral da Universidade Federal dePernambuco (LAHOI/UFPE). Os demais relatos estão presentes nas obras de Ivaldo Marciano de FrançaLima (2005,2008,2010).

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    entanto, ao longo do trajeto, os grupos passavam pelo Sítio de Pai Adão, renomado terreiro,

    considerado a casa mais antiga de culto nagô que se tem notícia em Pernambuco, pelas

    comunidades onde havia comerciantes, políticos ou famílias que doaram recursos à

    agremiação, pelo Pátio do Terço no Bairro de São José, em frente à casa de Sinhá, Iaiá e

    Badia, famosas ialorixás e carnavalescas da cidade até chegar à Praça do Diário. Deste

    modo, as agremiações saíam da sede no período da tarde para chegar ao centro da cidade

    apenas durante a noite. Ainda de acordo com relatos de memória, a prática dos maracatus

    desfilarem a pé até o centro da cidade, perdurou até o fim dos anos 1970, quando o poder

     público passa a fornecer ônibus que levava as agremiações de suas comunidades até o local

    onde ocorria o concurso.

    O historiador e maracatuzeiro Ivaldo Marciano de França Lima, narra que até a

     partir dos anos 1960, os maracatus nação passam a enxergar no concurso, um campo de

    disputa por espaços e legitimidade, onde poderiam mostrar seu esplendor e chamar a

    atenção do poder público para si. Assim como nos dias atuais, havia grande rivalidade entre

    os maracatus nação e questionamentos em relação ao resultado do concurso. No entanto, é

     preciso lembrar que nos anos de 1960, 1970 e 1980, os maracatus não eram o centro das

    atenções mas sim as troças, clubes de frevo e escolas de samba. Deste modo, a articulação

    dos maracatuzeiros em um momento desfavorável mostra a luta deles em obter melhores

    condições e espaços no mercado cultural que se formava, independente do contexto em quese encontravam. A situação dos maracatus nação só muda definitivamente no início do

    século XXI, mas ao longo dos anos 1990, por uma série de motivos a manifestação passa a

    ter mais visibilidade.

    Em 1989, um grupo de pessoas brancas de classe média7  resolve criar um grupo

    cultural chamado Maracatu Nação Pernambuco (Guillen, Lima, 2007). O grupo realizou

    uma releitura de alguns aspectos dos maracatus nação, estilizando baque, dança e figurino,

    construindo assim um espetáculo de palco e também um cortejo. As pessoas do grupo já

     possuíam boas redes de contatos no meio artístico e cultural local, e obtém relativo sucesso

     já no início de sua trajetória, realizando apresentações pelo Brasil e também no exterior.

     Não se pode negar também a contribuição do sucesso da banda Chico Science e Nação

    7 Acredito que o fator racial contribui para o modo como se dão as relações entre os maracatus nação e osgrupos percussivos, por isso não deve ser ignorado ou diluído no fator da classe social.

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    Zumbi (que misturava o rock a outros ritmos das culturas populares como os maracatus

    nação), para que o ritmo se tornasse conhecido em outras partes do Brasil 8.

    Ainda nos anos de 1990, a classe média se insere no contexto dos maracatus nação

     por meio da participação como batuqueiros e passistas no Maracatu Nação EstrelaBrilhante. O interesse desses jovens pela nação favorece a participação do grupo em

    grandes eventos do mercado cultural como o Abril Pró Rock, além de viagens pelo Brasil e

    também pelo exterior.

    Resumindo, no fim dos anos 1990, o maracatu já era conhecido por diversas classes

    sociais em Pernambuco e também pelo Brasil. Existia no período uma série de grupos como

    o Maracatu Nação Pernambuco, que além de serem compostos por pessoas de classe média

    também forneciam oficinas da dança e do baque do maracatu para quem tivesse interesse,na maioria dos casos cobrando mensalidades por isso. Utilizarei a denominação de grupos

     percussivos para me referir a estes grupos a partir deste ponto9. O Maracatu Nação Estrela

    Brilhante, despertava gradativamente o interesse da classe média e se inseria no mercado

    cultural. E quanto ao restante das nações de maracatu? Elas continuavam disputando os

    concursos carnavalescos, mas ainda sem atrair os olhares do grande público para si10.

    Os maracatus nação no século XXI

    Enquanto os grupos percussivos conquistavam espaços no mercado cultural por

    meio de apresentações e oficinas de maracatu já nos anos 1990, os maracatus nação

    considerados tradicionais conquistam maior visibilidade e espaços no mercado após a

    criação do modelo de Carnaval Multicultural na cidade do Recife. Ao buscar criar um

    modelo de carnaval que marcasse uma identidade pernambucana e se diferenciasse dos

    carnavais de Salvador e do Rio de Janeiro, que já possuíam identidade própria, a prefeitura

    8 O sucesso de Chico Science fez com que muitas pessoas ao redor do Brasil ouvissem falar pela primeira vez do maracatu, eu mesma sou exemplo disso. No entanto, essas pessoas muitas vezes confundiamo ritmo tocado pela banda como sendo o próprio maracatu, ou mesmo que soubessem que era uma releitura,não tinham conhecimento de como os maracatus se organizavam em Pernambuco, ou qual era a diferençaentre maracatu nação, maracatu rural ou grupos percussivos.9  Existem várias definições para esses grupos como maracatus parafolclóricos, batucadas ou grupos

     percussivos. Acredito que a última definição seja a mais pertinente, já que alguns desses grupos misturam oritmo do maracatu a outros ritmos populares como o coco, ciranda ou afoxé.10 Informação concedida por Lindivaldo Leite Júnior, conhecido por Junior Afro em entrevista realizada nodia 09/04/12 para o projeto de pesquisa Inventário Cultural dos Maracatus Nação.

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    do Recife, com a colaboração de alguns ativistas culturais, incluindo alguns militantes

    negros11, resolvem colocar os maracatus nação como atração principal da abertura do

    carnaval e reestruturar o evento como um todo com o intuito de fornecer mais visibilidade

     para as agremiações que representavam as culturas populares pernambucanas. Deste modo,

    os trios elétricos foram abolidos, e foram criados diversos palcos (também chamados de

     polos) não só na região central como também nas periferias da cidade para a apresentação

    das agremiações e também de artistas de outras vertentes de fama regional, nacional e em

    alguns casos internacional. Daí o termo “multicultural” no título da festa; o carnaval

     pretende atingir e agradar o mais diversificado público sem deixar de lado a identidade

     pernambucana. Tal modelo de carnaval fez muito sucesso, incluindo seu evento de

    abertura.

    Os espaços onde os maracatus possuem maior visibilidade do grande público é a

    Abertura do Carnaval e a Noite dos Tambores Silenciosos12, no entanto, o evento mais

    esperado pelos maracatuzeiros ainda é o Concurso das Agremiações Carnavalescas. Mesmo

    que o público para o concurso seja composto em sua maioria por pessoas das próprias

    comunidades dos maracatus nação, ser campeão do concurso confere ao grupo prestígio e

    legitimidade perante os outros maracatus como também o poder público. Além disso, os

     primeiros colocados recebem prêmios em dinheiro, e as nações que permanecem no grupo

    especial ainda garantem sua participação na Abertura do Carnaval, o que lhes confere maisuma remuneração além da já mencionada visibilidade. Conclui-se que, assim como no

     passado, o concurso carnavalesco continua sendo um espaço de legitimidade e disputa entre

    os maracatus nação.

    Com o advento do século XXI, os maracatus nação se consolidam como mais um

     produto a ser oferecido pelo mercado cultural sob o formato de espetáculo. Sua

    espetacularização trouxe consigo ressignificações em suas mais diversas dimensões. O

    desfile no Concurso das Agremiações Carnavalescas, além de ser valorizado pelos

    maracatuzeiros, é uma das poucas oportunidades onde, até mesmo por conta do

    11 Lindivaldo Leite Junior, militante de movimentos negros foi um dos principais articuladores da referidaequipe.12 A Noite dos Tambores Silenciosos é um evento criado no fim da década de 1960 mas que ao longo dosanos foi sendo ressignificado sendo considerado como uma celebração de caráter religioso. Para maisinformações sobre a Noite dos Tambores Silenciosos ver Guillen (2008).

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    regulamento, os maracatus nação se apresentam de maneira completa (corte, passistas e

     batuque) e por esta razão se mostra como espaço privilegiado para se observar as

    mencionadas ressignificações, que muitas vezes se encontram refletidas nele. As

    ressignificações podem ser observadas no baque dos maracatus nação, na dança, na estética

    do figurino e quantidade de componentes.

    Ernesto Ignácio de Carvalho, em sua dissertação de mestrado denominada Diálogo

    de Negros Monólogos de Brancos: Transformações e Apropriações Musicais no Maracatu

    de Baque Virado (2007) discorre dentre outras questões, sobre as mudanças ocorridas no

     baque dos maracatus nação a partir do início dos anos 1990. Após descrever as mudanças,

    ele classifica os baques dos maracatus nação como sendo de sonoridade recente ou antiga.

    Ele considera os baques classificados como recentes como sendo mais estilizados, logo,

    mais próximos dos baques utilizados pelos grupos percussivos, além de possuir modo de

    ensino e aprendizagem distinto do baque de sonoridade antiga. O júri do concurso parece

    valorizar este estilo de baque, pontuando com altas notas o batuque dos maracatus que

     possuem essa característica. Como reflexo, cada vez mais os maracatus nação se apropriam

    dessa lógica. O ultimo maracatu nação a abandonar a sonoridade antiga, o Encanto da

    Alegria, alega que o fez sob pressão do júri que não valorizava o jeito antigo de se tocar.

    Com a mudança, o batuque conseguiu obter nota máxima no quesito batuque.

    O cortejo dos maracatus nação jamais precisou ensaiar ou mesmo coreografar sua

    dança. O aprendizado sempre se deu no contexto comunitário, por meio da observação e

    vivência no maracatu, tal como ocorre na maioria dos contextos de aprendizado da cultura

     popular 13. No entanto, tem se observado que algumas alas acrescentadas recentemente aos

    cortejos dos maracatus, como a ala dos escravos, tem apresentado coreografia estilizada. A

    coreografia não é item obrigatório do desfile, mas os grupos que a apresentam tem ficado

    nos primeiros lugares, o que estimula os demais a adotarem à prática. No contexto do

    concurso é comum que algumas práticas adotadas por algum grupo caia no gosto do júri e

    fazendo com que o restante necessite se enquadrar, favorecendo a padronização da

    manifestação.

    13 Para maiores informações acerca da transmissão de conhecimento nos contextos das culturas populares ver:Sandroni (2008).

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    Um bom exemplo desta problemática é a quantidade de componentes exigida pelos

    organizadores do concurso. Relatos de memória apontam que os maracatus de antigamente

    desfilavam com cerca de 60 componentes. Na década de 1980, o Maracatu Porto Rico

    coloca quase 200 pessoas na avenida (Lima, 2010) por meio de contratação de grupos de

    dança para tomar parte no desfile. Tal prática foi sendo valorizada e atualmente o

    regulamento exige o mínimo de 160 pessoas no desfile. Como nem sempre é fácil mobilizar

    as pessoas das próprias comunidades para o feito, muitos grupos se obrigam a contratar os

    grupos de dança, o que acaba por modificar os vínculos comunitários característicos dos

    maracatus. É preciso lembrar que não são todas as nações que obtêm recursos para realizar

    esses contratos, o que acarreta no aumento das desigualdades entre os maracatus nação. Os

    que possuem, chegam a colocar 350 pessoas na passarela.

    Por fim, ao longo dos anos pode se afirmar que novos personagens foram

    acrescentados à corte, como as vassalas das rainhas trajadas como odaliscas, orixás e

    entidades da jurema, além da corte mirim, o que acarretou também no aumento da demanda

     por costureiras e figurinistas. Se antes a costura ocorria no contexto comunitário, é cada vez

    mais frequente a terceirização das costureiras, o que também modifica os vínculos

    comunitários da manifestação.

    O estilo do figurino da corte, que antes era mais sóbrio, adquire novos contornos

    com a inserção de tecidos como lamê, paetê, além de lantejoulas e plumas, trazendo à corte

    dos maracatus nação uma estética mais extravagante, próxima a das escolas de samba do

    Recife e Rio de Janeiro. Já no figurino dos batuqueiros é possível observar uma mudança

    na estética que tem se mostrado cada vez mais afro. Se até o fim dos anos 1990 o traje

    clássico era composto por calça social branca, sapato branco, camisa polo nas cores da

    nação e chapéu de palha, hoje são utilizados elementos como palha da costa, búzios, elmos

    ou bandanas, dentre outros acessórios que conferem uma africanidade a esses trajes. Tal

    africanidade tem se mostrado também no traje dos lanceiros e na presença dos orixás no

    desfile. Isso pode apontar uma tendência de fortalecer a ligação religiosa dos maracatus

    com os xangôs, no sentido de talvez, conferir-lhes mais autenticidade e ortodoxia, tal como

    ocorreu com o ideal de pureza africana dentro dos terreiros espalhados pelo Brasil (Motta,

    2003).

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    De fato, a religiosidade dos maracatus nação tem se expressado de maneira mais

    explícita desde o início do século XXI. Se antes se sabia de sua existência, mais por conta

    do discurso dos maracatuzeiros, hoje ele se revela por meio de símbolos externos, como no

    figurino do desfile, por exemplo. Outros meios utilizados para se expressar a religiosidade

    nos maracatus atualmente são as loas. Se no passado sua temática era acerca do próprio

    maracatu, seus símbolos de realeza e sua história 14, atualmente observa-se cada vez mais a

    referência aos orixás e entidades da jurema.

    O ritual que concretiza o fundamento religioso dos maracatus nação é sem dúvida a

    obrigação religiosa oferecida à orixás, entidades e artefatos do maracatu com o fim de

    trazer proteção e prosperidade ao grupo no período carnavalesco. Os poucos registros

    existentes acerca das obrigações religiosas dos maracatus nação foi o realizado por Guerra-

    Peixe (1980) acerca do Maracatu Elefante. De acordo com o autor, o referido grupo dava

    oferecimento15 à um dos tambores, o zabumba mestre, e o responsável por tocá-lo precisava

    ter responsabilidade para cumprir com os resguardos implicados ao período pós obrigação.

    Ele também menciona que as calungas representavam os ancestrais africanos e que após a

    volta do maracatu para à sede ela era guardada no pegi (local onde se situam os orixás nos

    terreiros), o que indica que na época, para o Maracatu Elefante ela já possuía uma dimensão

    sagrada; no entanto não ficou claro se ela recebia ou não algum tipo de oferecimento.

    Atualmente cada maracatu nação realiza as obrigações religiosas à seu modo. Todos

    realizam oferecimento para as calungas, no entanto, alguns também realizam obrigação

     para tambores por vezes demais instrumentos, além de alguns artefatos como estandarte,

     pálio, coroas, etc. A presença de grande quantidade de maracatuzeiros que não pertencem à

    comunidade faz com que o responsável pelas obrigações religiosas do grupo não obtenha o

    controle sobre o cumprimento do resguardo dos batuqueiros que tocarem determinados

    instrumentos. Isso fez com que alguns maracatus nação optassem por não mais dar

    obrigação a qualquer instrumento, temendo que o comportamento indevido prejudique ao

    grupo como um todo. A mesma situação, ou seja, a quantidade de pessoas não pertencentes

    às comunidades maracatuzeiras, fez com que alguns grupos decidissem fechar ou abrir à

    14 Para exemplos de toadas executadas pelos maracatus no passado vide Guerra Peixe (1980).15 Os oferecimentos dados aos orixás, entidades e objetos considerados sagrados nos maracatus nação podemvariar, entre sacrifícios de animais, oferecimento de comidas secas, frutas, doces ou bebidas alcoólicas.

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    obrigação para pessoas que não possuem vínculos com a religiosidade afro-indo-brasileira.

    Existe o caso de um maracatu nação específico, onde muitos maracatuzeiros relatam que na

    década de 1980, as obrigações e alguns fundamentos eram totalmente resguardados às

     pessoas pertencentes ao terreiro, mas que com o crescimento da popularidade do maracatu,

    rituais, obrigações e segredos do fundamento foram aberto, o que atraiu muitas pessoas

     para as festas e grandes obrigações realizadas no terreiro, mas que esvaziaram o terreiro em

    suas práticas cotidianas, pois muitos filhos de santo que não concordaram com a abertura se

    afastaram. Por mais que as informações acerca das obrigações realizadas no passado sejam

     poucas, tudo indica que atualmente a necessidade de evocar à obrigação para se provar o

    fundamento religioso aumentou.

    A pergunta que surge é: porque no passado não existia a necessidade de se afirmar e

    expressar os vínculos religiosos dos maracatus nação com tanta evidência? Se o vínculo

    religioso é, de acordo com os maracatuzeiros, uma das principais características dos

    maracatus nação, porque hoje ele precisa ser evidente? Ao que tudo indica, é por conta da

    necessidade que os maracatus nação têm de se diferenciarem dos grupos percussivos, sendo

    que a existência deles, a meu entender, é uma das consequências da espetacularização das

    culturas populares. Se forem avaliadas as ressignificações operadas pelos maracatuzeiros

    dentro de seu desfile, será possível observar que as fronteiras identitárias entre os maracatus

    nação e esses grupos tem se diluído com o tempo. Deste modo, compreender a atual relação

    e disputa de mercado entre as duas manifestações, se torna fundamental para entender as

    ressignificações e estratégias de inserção no mercado operadas pelos maracatus nação.

    Maracatus Nação e Grupos Percussivos: fronteiras identitárias e disputas de

    mercado.

    Até o início do século XXI, o que diferenciava um maracatu nação de um grupo

     percussivo era o seu baque, seus vínculos comunitários e religiosos, além de seus sentidos,que por conta desses múltiplos vínculos, extrapolavam a dimensão do entretenimento, tão

     presente nos grupos percussivos. Por vínculos comunitários, compreende-se o modo como

    os maracatus nação se organizam, nas comunidades; a maioria de seus componentes

     pertenciam ao mesmo local, compartilhando uma série de práticas para além do contexto do

    maracatu, os figurinos eram feitos pelos próprios maracatuzeiros, e muitas vezes eles

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    frequentavam os mesmos terreiros e demais espaços. Não estou afirmando que tal contexto

    não exista mais, porém, de acordo com a descrição realizada neste trabalho acerca das

    dimensões do desfile, percebe-se uma tendência de ruptura desses vínculos comunitários a

     partir do momento em que os maracatus nação terceirizam a costura de seus figurinos,

    contratam grupos de dança de fora da comunidade para tomarem parte em seu desfile, e

    recebem componentes da classe média em seu batuque. Deste modo, aquilo que atualmente

    diferencia um maracatu nação de um grupo percussivo, pode vir a não diferenciar mais.

    O mesmo pode ser dito em relação ao baque dos maracatus. A preferência pelos

     baques estilizados tem feito com que o baque dos maracatus nação também perca sua

    especificidade se comparado a esses grupos, restando assim aos vínculos religiosos o papel

    de marco diferenciador entre os maracatus nação e os grupos percussivos. Por esta lógica,

    seria possível que um grupo percussivo que passasse a realizar obrigações religiosas,

    obtendo assim seus fundamentos e ligações com o xangô ou jurema, se tornar um maracatu

    nação considerado legítimo? Tal realidade não é tão distante, já que existem casos de

    grupos percussivos que reivindicam a identidade de maracatu nação por alegarem possuir

    os vínculos religiosos, como é o caso do Maracatu Nação Pernambuco 16. Se os grupos

     percussivos forem considerados maracatus nação eles entrarão na disputa de possíveis

     políticas públicas com vistas a beneficiar as culturas populares, assim como disputarão os

    espaços já garantidos aos maracatus nação no mercado cultural, como os obtidos na

    Abertura do Carnaval, Noite dos Tambores Silenciosos e Concurso de Agremiações

    Carnavalescas.

    De modo inverso, os maracatus nação também tentam se inserir nos espaços

    dominados pelos grupos percussivos, como o mercado de oficinas do baque e dança do

    maracatu e apresentações fora do período carnavalesco além de suas consequentes viagens.

    Dentre as mais de 23 nações de maracatu existentes em Pernambuco17, apenas 5 (Estrela

    Brilhante do Recife, Estrela Brilhante de Igarassu, Porto Rico, Leão Coroado e Cambinda

    16  O principal articulador do grupo, Bernardino José, vem afirmando que o grupo possui fundamentosreligiosos que o configuram como sendo um maracatu nação.17 A maioria dos maracatus nação de Pernambuco, a exemplo do Estrela Brilhante, Porto Rico e CambindaEstrela pertencem à Associação dos Maracatus Nação de Pernambuco (AMANPE), fundada em 2009. Já oEstrela Brilhante de Igarassu e Leão Coroado, não pertencem à associação, mas receberam o título dePatrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, recebendo remuneração mensal vitalícia por parte do governo doestado.

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    Estrela18) já realizaram oficinas fora de Pernambuco e somente uma mantém uma oficina

     paga, voltada para a classe média em Recife (Porto Rico), nos moldes das oficinas

    oferecidas pelos grupos percussivos. São essas mesmas nações, que obtém maior

    quantidade de apresentações fora do período carnavalesco. Tal realidade aponta para um

    contexto de desigualdade não só entre os maracatus nação e os grupos percussivos, como

    também entre os próprios maracatus nação.

    Com a apresentação dessa problemática, que aponta um caminho de diluição de

    fronteiras entre os maracatus nação e grupos percussivos favorecidas por demandas do

    mercado, não afirmo uma postura contrária às mudanças e ressignificações ocorridas dentro

    dos maracatus nação, tampouco acredito que eles devam simplesmente ignorar as demandas

    do mercado cultural. Contudo, acredito que deve-se buscar possibilidades para que essas

    ressignificações e novas demandas possam ser direcionadas de modo a beneficiar os

    maracatus nação e suas comunidades como um todo.

    Ao estudar as ressignificações ocorridas nas culturas, Nestor García Canclini

    (2008), utiliza o termo “hibridação”, que é definido pelo autor como um conjunto de

     processos de intercâmbios e mesclas de culturas ou entre formas culturais, podendo gerar

    assim novas formas, configurações e sentidos dentro de uma cultura. O antropólogo em

    questão não acredita que existam culturas puras, do contrário, de certa forma todas asculturas são híbridas, pois já mantiveram contato com outras culturas e estão em

     permanente processo de mudança, contudo, com o advento da globalização, o acesso que

    uma cultura pode ter em relação ao repertório de outra se intensificou. No caso dos

    maracatus nação, no passado quase não havia diálogo dele com grupos culturais de classe

    média, ou mesmo com espectadores da referida classe social; hoje a situação é outra, e as

    influências que os maracatus nação exercem e recebem dos grupos percussivos, além das

    sofridas pelo contexto de sua espetacularização é evidente.

    Junto da globalização, também se intensifica o papel das indústrias culturais que,

    cada vez mais se interessam pelo exótico com o intuito de convertê-lo em mais um produto

    18 O Maracatu Nação Cambinda Estrela realizou sua primeira oficina em Porto Alegre no ano de 2011. Existeuma resistência muito grande dos grupos percussivos fora de Pernambuco em financiarem a vinda de mestresde outros maracatus nação além dos supracitados.

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    a ser consumido (Carvalho 2004; 2010), favorecendo os processos de hibridação (García

    Canclini, 2008), a exemplo do que ocorre com os maracatus nação (que até então é

    considerado exótico pelos brancos da classe média). O autor ressalta ainda que os processos

    de hibridação podem ser ou não planejados. No caso dos maracatus nação, percebe-se que

    as ressignificações foram operadas de modo a inseri-los nos padrões desejados pelo

    mercado. Para García Canclini, abordar a forma como ocorrem os processos de hibridação,

    ao invés de apenas descrever a hibridação em si, é importante no sentido de perceber que

    ele pode operar por meio de coações, como no caso quando ocorre em meio de sistemas de

     produção e consumo. Ao utilizar o termo “coação” associado a certos processos de

    hibridação, o antropólogo indica que esses processos nem sempre são livres de conflito ou

    disputa de poder; como ele mesmo cita em sua obra:

    “uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do

    que não se deixa, ou não quer, ou não pode ser hibridado (García Canclini, 2008, p.xxv)”. 

    Deste modo, percebe-se que as ressignificações são inerentes à cultura; as culturas

     populares, principalmente as concentradas em espaços urbanos, não estão isoladas dos

    valores, demandas e anseios da sociedade mais ampla, incluindo o mercado cultural. Por

    esta razão não é possível pensar que esses valores não influenciem as ressignificações

    operadas nas culturas populares, logo não seria pertinente adotar uma postura contra as

    ressignificações mas sim, problematizar o modo como elas ocorrem, para quem sabe

    encontrar um meio de diminuir as assimetrias nas relações que envolvem o processo.

    O antropólogo José Jorge de Carvalho, vem há uma década se dedicando à luta

    coletiva pela implementação de políticas públicas de apoio aos mestres e mestras das

    culturas populares e suas associações. Em seu artigo intitulado  Espetacularização e

    Canibalização das Culturas Populares na América Latina, o antropólogo explica que a

    utilização dos termos espetacularização e canibalização procuram:

    “exprimir a percepção e consciência de que as culturas populares estão sendo expostas a um

    movimento crescente e contínuo de invasão, expropriação e predação, conectado basicamente com a

    voracidade das indústrias do entretenimento e do turismo e também com a cooptação de artistas populares por

     parte de políticos regionais populistas” 

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    O autor define como espetacularização:

    “a operação típica da sociedade de massas em que um evento, em geral de caráter ritual ou artístico,

    criado para atender a uma necessidade expressiva específica de um grupo e preservado e transmitido através

    de um circuito próprio é transformado em espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da

    comunidade de origem.” 

    Em outro estudo (Carvalho, 2004), o antropólogo afirma que ao adquirir o formato

    de espetáculo muitas manifestações populares transformaram o modo de se fazer a cultura,

    incorporando elementos como tempo, espaço e estética impostos pela cultura de quem

    detêm o domínio da indústria cultural. Deste modo a cultura popular teria sido padronizada

    num formato que agradasse ao público que irá assistir e pagar pelo espetáculo, sendo assim

    destituída de seus sentidos originais e adquirindo outros significados para o povo a quem

    ela pertence e também para a classe que a consome. Como já foi esboçado nesse trabalho,

    com o processo de espetacularização, os vínculos comunitários existentes nos maracatus

    nação estão se alterando, assim como sua organização interna, tanto nas formas de

    expressão como modos de fazer.

    O deslocamento de tempo e espaço a que o autor se refere podem ser observados no

    contexto da espetacularização dos maracatus nação quando se pensa nas apresentações de

     palco, tão comuns hoje mas, praticamente inexistentes no passado. O tempo da cultura

    também mudou, pois os contratos, estabelecem o tempo exato em que deve durar uma

    apresentação. Nos cortejos realizados nos carnavais do passado, principalmente antes de

    sua normatização e institucionalização, o tempo era mais flexível.

    Além do exposto, José Jorge de Carvalho (2010) salienta que no contexto da

    espetacularização, são fatores externos, como o lucro que um espetáculo cultural pode

    gerar, é o que vai definir a emergência ou ocultação dos símbolos da cultura. Ao se pensar a

    situação dos maracatus nação, é cada vez mais perceptível a externalização de símbolos que

    representam a dimensão sagrada. Neste trabalho já foi colocada a hipótese de que para se

    diferenciar dos grupos percussivos, os maracatus nação acabam externalizando seu atual

    marco classificatório. Isso acaba se tornando inclusive uma necessidade do mercado, que

     procura nos maracatus nação o carimbo da tradição. Aqui compreende-se que a

    religiosidade representa a tradicionalidade no maracatu nação, já que o baque e demais

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    fronteiras identitárias estão se diluindo com a dos grupos percussivos. Quando não existia a

    concorrência, a necessidade de se afirmar a identidade de maracatu nação não existia.

    Como já se sabe nos estudos das ciências sociais, a identidade emerge no confronto com o

    outro (Bauman, 1999; Hall, 2006; Oliveira, 1978).

    Por fim, o antropólogo questiona sobre o valor dado à cultura popular no momento

    em que ela se torna mais um produto no mercado, a ser consumido por pessoas da classe

    média urbana. Se comparado ao valor dado à artistas de fama nacional ou internacional, a

    quantia reservada aos cachês desses grupos é irrisória. No entanto, Carvalho afirma que a

    desigualdade e o baixo índice de cidadania da maioria dos praticantes da cultura popular faz

    com que muitos deles eles aceitem as condições impostas pelo mercado. Ele ressalta

    também que as vezes, ao adentrarem nessa lógica, alguns mestres da cultura popular

    melhoraram suas condições sócio econômicas, porém a comunidade continua na mesma

    situação. Essa característica pode ser observada nos poucos maracatus nação mais

    conhecidos no mercado cultural. Nas palavras de Carvalho:

    “no campo em que estamos, não há mais sentido em se falar em culturas híbridas ou em trocas

    culturais sem tomarmos em conta gigantes assimetrias de poder no campo da cultura” (Carvalho, 2010, p 46.) .

    Falar em assimetrias de poder e das imposições de valores do mercado cultural

    também não significa em falar de passividade ou resignação dos maracatuzeiros. Osmaracatus nação, organizados por meio da Associação de Maracatus Nação de Pernambuco

    (AMANPE), fundada em 2009, vem lutando por melhores condições. Uma de suas

     principais reinvindicações está relacionada aos cachês e subvenções pagos pela prefeitura

    da cidade para a organização e apresentações dos maracatus nação no carnaval. Nesse

    sentido, a maioria dos maracatuzeiros não se mostra diretamente contra a espetacularização

    dos maracatus nação. As comunidades maracatuzeiras estão inseridas na sociedade mais

    ampla, estabelecendo com ela diálogos permanentes. Como qualquer cidadão dos grandes

    centros urbanos, os maracatuzeiros querem obter recursos financeiros para, além de

    melhorar as condições estruturais de suas agremiações, consumir. O fato das maiores

    reivindicações realizadas pelos maracatuzeiros ser relacionada ao aumento de cachês ou

    mesmo aumento de apresentações pagas, mostra o modo como eles compreendem o ser

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    “cidadão”. São poucos os maracatuzeiros que reivindicam por políticas públicas que não

    estejam diretamente relacionadas à obtenção de maiores recursos financeiros.

    Em sua obra Consumidores y Ciudadanos,  Nestor García Canclini observa que em

    uma sociedade capitalista permeada por tendências neoliberais, a participação social parecese organizar mais através do consumo que a forma pela qual se entende o exercício da

    cidadania, muitas vezes associado à participação coletiva de espaços públicos ou às regras

    abstratas da democracia (Garcia Canclini, 2009, p.29). Nesse contexto, o autor enxerga o

    direito ao consumo como mais uma das reivindicações relacionadas à prática cidadã, ao

    lado da moradia, educação e saúde. Por esta razão, de acordo com García Canclini (além de

    outros intelectuais que partilham do mesmo ponto de vista como Mary Douglas, Baron

    Isherwood e Arjun Appadurai) é necessário que se reconceitualize o consumo:

    “no como simples escenario de gastos inútiles e impulsos irracionales sino como lugar que sirve

     para pensar donde se organiza gran parte de la racionalidad económica, sociopolítica y psicológica en las

    sociedades. ” (García Canclini, 2009, p.16)19 

    Para o autor, adotar o supracitado ponto de vista acerca do consumo é uma das

    maneiras de associá-lo à cidadania. Isso ocorre porque, de acordo com García Canclini, ser

    cidadão tem a ver com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento.

    Quando um grupo seleciona um bem e se apropria dele, define o quais são os seus valores,assim como o modo de interagir e distinguir da sociedade. Nesse contexto, o autor afirma

    que estudar o modo como são produzidas as relações de continuidade, ruptura e hibridação

    entre sistemas locais e globais, tradicionais e modernos é um dos maiores desafios para se

    repensar a identidade e cidadania nos tempos atuais. Além disso, ele enfatiza que uma

    teoria das identidades e da cidadania atualmente deve levar em conta os modos diversos

    com que essas se recompõe nos desiguais circuitos de produção comunicação e apropriação

    da cultura.

    Por esta razão, os modos de organização, além das estratégias e ressignificações

    realizadas pelos maracatus nação de modo a se inserir no mercado que os espetaculariza,

    fornecem um panorama de seus valores, anseios e demandas.

    19  “não como simples palco de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas sim como lugar que serve para

     pensar onde se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades.” 

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    Considerações Finais

    A maioria dos maracatuzeiros da atualidade, não enxergam o passado de forma

    melancólica ou nostálgica, no sentido de quererem retomar o modo antigo de fazer a

    cultura. Para eles, desde o fim do século XX, o maracatu nação vem sendo valorizado pela

    sociedade e eles consideram isso como algo positivo. Isso não significa também que eles

    estão de acordo com o modo como o mercado organiza os espaços e valor atribuído aos

    maracatus nação. Eles consideram que a situação da manifestação melhorou muito se

    comparada ao passado, mas que ainda necessita melhorar. Deste modo, percebe-se que a

    atitude dos maracatuzeiros perante o mercado que eles desejam se inserir não é de

     passividade e nem de resistência, mas de constante diálogos e disputa de poder, seja entre

    eles e os contratantes de suas apresentações (sejam por parte da iniciativa pública ou privada), os grupos percussivos ou ainda entre os próprios maracatus nação.

    Compreender a complexidade do contexto dos maracatus na sociedade

    espetacularizada é a melhor forma de se reivindicar políticas públicas que façam sentido

     para os praticantes da cultura, e que regulem de forma mais igualitária os espaços e modos

    como os maracatus se inserem no mercado além de gerar uma real autonomia para os

    maracatus nação. Essa compreensão não retira o espaço dado ao diálogo dos

    maracatuzeiros junto dos órgãos fomentadores dessas políticas, que podem oferecer

    alternativas de autonomia aos maracatus nação que não estejam necessariamente ligadas à

    obtenção de recursos financeiros somente por meio de cachês pagos pelas apresentações. A

    construção de sentido se faz pelo diálogo e não imposição.

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