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    RevistaANTHROPOLGICAS, ano 14, vol.21 (1): 39-76 (2010)

    Espetacularizaoe canibalizao das culturas

    populares na Amrica Latina

    Jos Jorge de Carvalho1

    Resumo

    Este ensaio oferece um quadro terico para a compreenso dedois processos estticos, polticos e econmicos que afetam as cul-turas populares em praticamente todos os pases latino-america-nos: a espetacularizao e a canibalizao. Esses dois processos

    esto vinculados a uma mercantilizao das formas culturais tradi-cionais, que so expropriadas dos seus circuitos comunitrios poragentes externos a servio do turismo e do entretenimento. Pro-ponho um modelo conceitual para articular as intervenes detodos os agentes envolvidos nessa conjuntura: os artistas popu-lares e suas associaes, os organismos do Estado, os pesquisa-dores e intelectuais, a sociedade civil, os produtores culturais, aindstria cultural, as empresas de turismo e as de publicidade. Oobjetivo do ensaio estimular cada vez mais o protagonismo dosmestres, mestras e artistas na preservao e nas dinmicas decrescimento e transformao das culturas populares.

    Palavras-chave: Culturas populares, Espetacularizao,Canibalizao, Resistncia cultural.

    1 Professor de Antropologia da Universidade de Braslia e Coordenador do InstitutoNacional de Cincia e Tecnologia do MCT/CNPq de Incluso no Ensino Superiore na Pesquisa. Email: [email protected]

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    Abstract

    This article offers a theoretical framework for the understandingof two aesthetic, political, and economic processes which affectpopular cultures in practically all the countries of Latin America:spectacularization and cannibalization. These two processes areconnected to a mercantilization of traditional cultural forms whichare expropriated of their communal circuits of performance byexternal agents working for the tourism and entertainment in-dustry. I put forward a conceptual model to understand the articu-lation of the roles played by all the actors involved in this process:popular artists and their groups, State organisms, researchers andintellectuals, civil society, cultural producers, culture industry, tou-rism and advertisement industry. The principal aim of the article isto stimulate the growing protagonism of traditional artists in thepreservation, expansion, and transformation of popular cultures.

    Keywords: Popular culture, Spectacularization, Cannibalization,Cultural resistance.

    Introduo

    O presente ensaio forma parte de um conjunto de textos artigos,ementas, intervenes, conferncias, notas tcnicas resultantes do meuengajamento, ao longo da presente dcada, na luta coletiva pela imple-mentao de polticas pblicas de apoio aos mestres e mestras das cultu-ras populares e s suas associaes. Participei como conferencista do I

    Seminrio Nacional de Polticas Pblicas para as Culturas Populares, ocorridoem Braslia em fevereiro de 2005 (Carvalho 2005). Esse encontro foi ummarco histrico na luta pela afirmao das culturas populares brasileiras,primeiro devido sua dimenso indita, ao reunir quase mil mestres,mestras e brincantes na capital do pas; segundo, por ter permitido aconsolidao de uma plataforma poltica em que as vozes de mestres e

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    mestras passaram a fazer parte imprescindvel de qualquer projeto deapoio estatal s nossas tradies populares.

    Aps o Encontro de 2005 participei, a pedido da Secretaria daIdentidade e da Diversidade (SID) do Ministrio da Cultura, da Oficina dePlanejamento Estratgico das Culturas Populares, realizada no Rio de Janeiroem maro de 2006, a qual avanou na plataforma de reivindicaes demestres e mestras (Carvalho 2006). Em seguida, redigi, tambm a pedidoda SID, o documento de fundamentao do I Encontro Sul-Americano dasCulturas Populares, ocorrido em Braslia em setembro de 2006 e durante o

    qual proferi a conferncia que serviu de base para o presente texto(Carvalho 2008)2.

    O I Encontro Sul-Americano das Culturas Popularesofereceu uma rarachance de dilogo de pesquisadores com artistas e mestres da culturapopular para avanarmos na construo de um projeto articulado capazde superar, nos seus vrios nveis de complexidade, os problemas enfren-tados hoje pelas culturas populares no Brasil e nos demais pases da

    Amrica Latina. O Encontro plasmou um esforo conjunto do Minist-rio da Cultura, da sociedade civil organizada, da academia, dos produ-tores culturais e, principalmente, das associaes,comunidades e organi-zaes dos prprios artistas populares, na expectativa de promover um

    florescimento mais pleno e mais digno das tradies culturais do nossocontinente.

    O tema da espetacularizao e canibalizao foi resultado dosdilogos iniciados aps o I Seminrio Nacional para Polticas Pblicas para asCulturas Populares, de 2005. Os dois termos procuram exprimir a percep-o e a conscincia de que as culturas populares esto sendo expostas aum movimento crescente e contnuo de invaso, expropriao e preda-o, conectado basicamente com a voracidade das indstrias do entrete-nimento e do turismo e tambm com a cooptao de artistas popularespor parte de polticos regionais populistas.

    Finalmente, em 2007 redigi, tambm a pedido da SID, a funda-

    mentao do II Encontro Sul-Americano das Culturas Populares, ocorrido em

    2 O tema deste documento suscitou uma entrevista longa concedida em Buenos Aires Revista Marea, em que amplio e ilustro de modo distinto alguns dos pontos aquidesenvolvidos (Carvalho 2007). Todavia, o presente ensaio uma verso bastanterevisada e ampliada do texto inicial.

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    Caracas em dezembro de 2008. Propus ainda, naquela ocasio, que reti-rssemos desse segundo encontro de mestres e mestras das tradiesculturais de todo o continente uma Carta Sul-Americana das Culturas Popu-lares, escrita com a participao de todos os atores envolvidos nessecomplexo e rico processo de retomada de nossas tradies como ummodo de atualizar (e tambm de trazer memria de uma nova geraode artistas e pesquisadores) a famosa Carta do Folclore Americano, a qual foitambm redigida em Caracas em 1971 exclusivamente por um conjuntode pesquisadores e assim-chamados expertos em folclore. Dada a suaimportncia poltica e simblica, reproduzo em anexo essa nova CartaSul-Americana das Culturas Populares.

    Hierarquia econmica e hierarquia esttica:

    onde esto as artes populares frente as artes eruditas

    Afirmo, de sada, que uma reflexo consistente sobre os problemasespecficos das culturas populares pressupe o acesso pblico e transpa-

    rente ao quadro total dos gastos do Ministrio da Cultura para apoiar asvrias atividades artsticas e culturais do pas. preciso conhecer exata-mente o lugar econmico ocupado por cada um dos diversos estilos deexpresso cultural (erudita, popular comercial, tradicional ou folclrica) eavaliar o discurso de igualdade e cidadania para todos, projetado pelogoverno federal.

    Essa demanda por transparncia se impe como inevitvel porque,quando a cultura popular convertida em espetculo desterritorializado(isto , deslocado de sua comunidade ou circuito de origem), ela passa aganhar valor diante de consumidores de classe mdia urbana que podemtransitar tambm por outras atividades culturais, como a Bienal de So

    Paulo, a Orquestra Sinfnica do Teatro Nacional do Rio de Janeiro, osFestivais (nacionais e internacionais) de Dana, Msica e Teatro, etc.Deve-se ento indagar quanto vale a cultura popular na viso do Estadobrasileiro. Quem definiu, e com que critrios, que a cultura popularrecebe sempre um apoio to menor que o oferecido at hoje arte eru-

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    dita ou arte popular comercial? E, quanto rende a cultura popularcomo produto ou servio oferecido pela indstria do entretenimento?

    A dimenso esttica no pode ser reduzida dimenso econmica,mas tambm no pode ser analisada sem tomar a economia em conta.Sabemos que existe uma hierarquia no valor alocado s diferentes formasde expresso cultural e um dos modos de medir essa diferena deprestgio o preo que se paga pela performancedos diferentes grupos cul-turais. Por exemplo, ensinamos nas aulas de Antropologia que uma sin-fonia de Beethoven no melhor nem pior que um auto completo de

    Cavalo Marinho. Este sistema de valores, em princpio mais democr-tico, quando contrastado com os valores aristocrticos e burgueses quedefendiam a superioridade da cultura erudita, o que definimos comorelativismo cultural, ou pluralismo esttico. Contudo, esse relativismono explica por que preciso pagar R$ 100.000,00 por ms para ummaestro da Orquestra Sinfnica de So Paulo e apenas R$ 1.000,00 paraum mestre de Cavalo Marinho. Essa discrepncia de valor no se explicapelo mercadopelo contrrio, ela o resultado de uma estrutura estatalde prestgio que foi imposta pelas elites do pas desde o Brasil Colnia.Enquanto colocarmos a discusso apenas no culturalismo, estaremosescamoteando a hierarquia de prestgio que ns mesmos criamos e

    reproduzimos. Alm disso, o que assegura a reproduo dessa desigual-dade precisamente o silenciamento(ou mesmo censura) desse tema.

    J mencionamos as diferenas de salrio de um mestre ou umamestra para um maestro. Outro exemplo escandaloso dessa discrepncia,ainda sob a perspectiva das verbas pblicas destinadas msica popularcomercial, foi o cach, de R$ 400.000,00, pago pela Prefeitura Municipaldo Recife aos cantores Sandy & Jnior, para um show de Natal, emdezembro de 2004. Essa mesma prefeitura pagou, trs meses depois,apenas R$ 800,00 para cada grupo de Maracatu que se apresentou noCarnaval recifense de 2005. No importa o que diga a Prefeitura acercada importncia do Maracatu para a cultura pernambucana, o fato con-

    creto que o cach de Sandy & Jnior (independente inclusive dequalquer discusso sobre esttica musical, mas fixando-nos apenas nadimenso econmica e social do circuito artstico de indstria cultural demassa ao qual eles pertencem) seria suficiente para sustentar todas asorganizaes de folguedos populares na regio do Recife e de Olinda por

    vrios anos. Ao invs disso, o que aconteceu foi um aprofundamento da

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    desigualdade entre a msica popular de massa e as tradies musicais deraiz africana.

    Para definir minimamente o campo em discusso, as culturaspopulares podem ser concebidas, em termos gerais, como um conjuntoheterclito de formas culturaismsica, dana, autos dramticos, poesia,artesanato, cincia sobre a sade, formas rituais, tradies de espirituali-dadeque foram criadas, desenvolvidas e preservadas pelos milhares decomunidades do pas em momentos histricos distintos. Elas se presenti-ficam independentes umas das outras, ainda que em simultaneidade,todas com relativa autonomia em relao s instituies oficiais doEstado, embora estabelecendo com elas relaes constantes de troca edelas recebendo algum apoio eventual ou intermitente. As culturas popu-lares distinguem-se tambm do que chamo de cultura popular comercialpor no necessitarem dos implementos da indstria audiovisual, nempara a sua concepo, nem para a sua produo, nem para a sua circula-o no contexto em que foram criadas e em que so preservadas3. Nessesentido, pautam-se por um princpio de autonomia na frugalidade, namedida em que se reproduzem utilizando seus modestos recursos mate-riais e vastos recursos simblicos e tomando em conta seus ritmos pr-prios de continuidade, mudanas e transformaes. Em um nvel dife-rente de abstrao, podemos dizer que a autogesto e a auto sustentabili-dade comunitrias so os princpios que organizam a produo dasculturas populares, enquanto a oralidade o seu meio predominante deexpresso e de transmisso. Dialogando com o tema da resistncia sim-blica e poltica, j tratado por tantos autores, digamos que a marca fun-dante da cultura popular na Amrica Latina tem sido a sua capacidade deresistir presso das elites para homogeneizar uma cultura nacionalsegundo a perspectiva da cultura erudita ocidental. Inclui-se nessa per-spectiva homogeneizadora o cristianismo, como cosmoviso dominante

    3 Para mim, a msica popular comercial constitui aquele universo de gneros musicaisque j nascem integrados indstria fonogrfica. Por sua vez, as expresses musi-cais ligadas s culturas populares so criadas e preservadas pelos grupos e pelascomunidades e, mesmo que sejam eventualmente difundidas tambm atravs dagravao, no mantm uma dependncia orgnica com a indstria fonogrfica,como o caso da msica popular comercial.

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    e a religio catlica, como instituio paraestatal de controle simblicodas populaes.

    Ao falar de resistncia das culturas populares, podemos pensar emdois processos principais: por um lado, um embate aberto com o Estadoque procurou dirigir e controlar as expresses simblicas em uma dire-o distinta dos valores estticos e espirituais das classes populares. Uma

    vez pressionados a conformar, artistas populares resistiram unilaterali-dade estatal e negociaram posies, direitos e deveres, lanando mo de

    vrios modos de organizar seus interesses artsticos prprios. Da ser

    possvel conceber a tradio cultural popular como uma tradio de insti-tuies culturais populares, com suas pedagogias e hierarquias distintasdaquelas impostas populao por meio dos aparelhos ideolgicos doEstado. O outro modelo de resistncia consistiu em aproveitar as bre-chas, as lacunas e as cegueiras das elites estatais, que no perceberam ouno julgaram de interesse controlar certas expresses simblicas. Assim,foi mais fcil para as classes populares mant-las por mais tempo pormeio de uma estratgia consciente de ocultamento, invisibilizao, dis-farce ou camuflagem.

    O percurso das culturas populares no ltimo sculo , portanto,anlogo histria de todos os biomas brasileiros, como no caso atual da

    floresta amaznica: um por um, nossos biomas foram sendo predadospela expanso do sistema econmico desigual e excludente que nossamarca de sociedade desde 1500. Nos primeiros sculos dessa invaso, amaioria das expresses artsticas e as tcnicas de espiritualidade no-crists dos povos indgenas, dos africanos escravizados e das classespopulares permaneceram sem maior interesse de explorao por parte daelite branca controladora do Estado, da economia e dos meios de pro-duo. Aquelas tradies foram simplesmente silenciadas ou extermina-das em nome de um projeto de dominao cultural intolerante, a um stempo eurocntrico e catlico romanizador.

    Atualmente, assistimos a um interesse crescente por manifestaes

    populares, que por muito tempo no haviam despertado a ateno dasclasses dominantes nacionais, nem da indstria do entretenimento.

    Quando essa indstria (apoiada pelo Estado e mediada pelossegmentos de classe que controlam suas principais instituies) avaliaque certos clichs e certas modas da cultura popular comercial comeama declinar, nessa espcie de bolsa de valores de bens estticos e simb-

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    licos do mundo (bolsa evidentemente informal, qual pertence Holly-wood), ela passa a procurar expresses culturais tidas como virgens,remotas ou exticas, que possam ser transformadas em novos benssimblicos e estticos comercializveis4. Para isso, coloca todas astecnologias audiovisuais a servio da mobilizao cultural. Primeiro,coloca-os sob a lupa do marketing,para avaliar o potencial econmico doextico; e depois, frente aos holofotes do entretenimento, para quepassem a render dividendos para os produtores e os empresrios.

    Vale ressaltar que artistas populares no so vtimas apenas daclasse poltica e da indstria do entretenimento, mas tambm de acad-micos e de intelectuais. Afinal, nossa reflexo sobre o tema da predao eda mercantilizao da produo cultural, alm de escassa e fragmentria,est datada em relao situao atual das culturas populares. A maioriados pesquisadores ainda trata este assunto a partir de uma teoria dohibridismo e da negociao de sentido, que sustenta uma ideia nadarealista de mtua influncia e reciprocidade.

    Essas dimenses de troca certamente existem, porm no conse-guem eliminar as perversidades e as manipulaes a que so expostosmestres e mestras, em seus contratos de apresentao e gravao dediscos com as produtoras, ou em suas parcerias com as secretarias muni-cipais e estaduais de cultura para projetos culturais e educativos.

    No ponto em que estamos atualmente, j no faz sentido falar emculturas hbridas ou em trocas culturais sem tomarmos em conta asgritantes assimetrias de poder no campo da cultura.

    Um sintoma claro da predao cultural o fato de que, por muitotempo, apenas os brinquedos e folguedos que tinham um carter real-mente laico, ligados s festas voltadas para a confraternizao e a diver-so eram as expresses que mais interessavam s elites. A partir dasltimas dcadas, porm, a classe mdia urbana consumidora de espet-culos avanou mais em direo s culturas populares.

    Consequentemente, muitas manifestaes devocionais, que semantinham at ento intocadas, tambm esto sendo submetidas, emmeio a essa nova onda de predao cultural, ao escrutnio mercantili-

    4 Utilizo a metfora da bolsa de valores porque de fato as produes de Hollywood e

    das megacorporaes da indstria audiovisual se sustentam no mercado de aes.

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    zador dos produtores e dos interesses de manipulao da classe poltica.No momento presente, ento, uma grande parte da cultura popular sofreuma presso sem precedentes para ser espetacularizada.

    Espetacularizao

    Defino espetacularizao como a operao tpica da sociedade demassas, em que um evento, em geral de carter ritual ou artstico, criado

    para atender a uma necessidade expressiva especfica de um grupo e pre-servado e transmitido atravs de um circuito prprio, transformado emespetculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidadede origem. O termo espetculo, com sua raiz specs, de olhar, vem do latimque significa, basicamente, tudo o que chama a ateno, atrai e prende oolhar (Cunha1982). Dessa raiz derivou-se uma enorme gama de termos

    vinculados ideia de distanciamento e objetificao de tipo ocularista:spectator, aquele que v, o espectador que aprecia o spectaculum, a festapblica ou espetculo. E se speculum o espelho, aquele que observapode tambm dedicar-se speculatioe especular, isto , realizar um escru-tnio objetificador a respeito do outro que para ele se espetaculariza, ou

    por sua prpria deciso ou porque foi, por sua vez, espetacularizado aservio de um terceiro (Chau 1988).

    O processo de transformar eventos pblicos (sociais ou comunit-rios) em espetculo possui uma longa histria e o exemplo mais bvioseria o circo romano: o espetculo dos gladiadores no Coliseu tornou-sesmbolo da ideia de entretenimento, alienao e manipulao das massasexploradas e excludas do poder poltico. Tambm na Europa ps-Re-nascena, os autos-de-f da Inquisio, as execues e linchamentos dosdspotas franceses, as coroaes barrocas, eram eventos concebidoscomo espetculo para as massas. Contudo, um novo sentido de espet-culo surgiu no incio do sculo XIX com a sociedade de massa da era

    urbano-industrial, que passou a ser manipulada tanto pelo Estado comopelo capital por meio da indstria cultural.

    Resumindo um tema complexo, a espetacularizao das institui-es pblicas e privadas no mundo moderno ocidental um processoderivado diretamente de vrias revolues tecnolgicas coetneas ao alto

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    capitalismo, as quais se acumularam e se articularam seguidamente apartir da segunda metade do sculo XIX: a inveno da fotografia, asgrandes lojas de departamentos, a circulao das revistas de moda, ofongrafo, a expanso das rdios e do cinema e finalmente a inveno dateleviso. No momento em que se imps uma indstria audiovisualpoderosa na vida urbana, foi ento possvel espetacularizar no apenas opoder, como j havia sido feito antes, mas tambm os aspectos maisprivados da vida individual e em sociedade.

    A espetacularizao um processo multidimensional. Para come-ar, implica em um movimento de captura, apreenso e mesmo de con-finamento. Trata-se de enquadrar, pela via da forma, um processocultural que possui sua lgica prpria, cara aos sujeitos que o produzem,mas que agora ter seu sentido geral redirecionado para fins de entreterum sujeito consumidor dissociado do processo criador daquela tradio.

    A metfora bsica do olhar (ver o evento e no participar dele, a no serapenas como voyeur, o espectador que no se expe nem se entrega)aponta para uma atitude de distncia, de no envolvimento. Ver a brinca-deira espetacularizada, a um s tempo, consumi-la e defender-se dela,para que no seja capaz de influenciar o horizonte de vida do consumi-dor. E, na medida em que essa influncia de fato no sucede, o espet-culo fica esvaziado do seu poder maior, que seria o de irromper nohorizonte existencial do sujeito que se expe ao seu campo expressivo eento transformar o sentido de sua existncia. Assim definido, o espet-culo moderno aproxima-se da ideia de vivncia, que Walter Benjaminopunha ideia de experincia. Enquanto a experincia aponta para umimpacto existencial no indivduo (de cunho esttico, emocional, intelec-tual, espiritual, afetivo) que ajuda a reconect-lo com a comunidade a quepertence e com a sua tradio especfica, permitindo-lhe um maior enrai-zamento do seu prprio ser, a vivncia o fenmeno tpico do mundomoderno urbano-industrial massificado, caracterizado pela ausncia deprofundidade histrica e tradicional dos eventos e, consequentemente,por sua superficialidade e fugacidade, tanto no nvel individual como nocoletivo. Espetacularizar significaria, ento, entre outras coisas, dissolvero sentido do que exibido para deleite do espectador (Benjamin 1985a,1985b).

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    Dizer que as culturas populares so espetacularizadas significa afir-mar a existncia de vrios processos simultneos:

    a) Que elas so descontextualizadas segundo os interesses daclasse consumidora e dos agentes principais da espetaculari-zao;

    b) Que elas so tratadas como objeto de consumo; e, maiscomplexo ainda, como mercadoria. Passam, assim, do valorde uso com que se inscrevem no contexto das comunidades

    que as criam e reproduzem, para se tornar valor de troca,passveis de serem mais ou menos importantes a dependerdos padres de desejo e de fruio dos consumidores que asescolhem e identificam;

    c) Que so ressignificadas de fora para dentro. Sero os inter-esses embutidos no olhar do consumidor que definiro onovo papel que passaro a desempenhar. Trata-se aqui deuma operao muito distinta das eventuais e mltiplas ressig-nificaes que so provocadas de dentro, ou seja, pelos pr-prios artistas populares no contexto das comunidades ondeatuam.

    Esse formato de espetculo de que falamos inverte a lgica desubjetivao proposta pela indstria audiovisual. No caso da publicidadee do cinema, o espectador capturado pela mirada que lhe lanadapelos sujeitos representados na tela, no outdoor ou na foto da revista. Acondio de sujeito, isto , o protagonismo principal (ou a agncia, comoquerem alguns tericos) est, neste caso, no palco e no na plateia.5Inversamente, no caso das culturas populares, os artistas chegam aopalco atravs de uma operao de captura escpica, quase sempre comoum coletivo que se apresenta em uma condio de objeto para deleitedos sujeitos consumidores.

    5 Esta basicamente a teoria lacaniana da subjetivao pela imagem, aplicada porStuart Hall para os processos individuais de identificao e para as polticas derepresentao de identidades sociais (Hall 1997) e por Kaja Silverman para a culturavisual em geral (Silverman 1995).

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    A espetacularizao o poder do olhar, que pode ser construdode fato como dois poderes opostos e conflitantes. Por um lado, o poderdo espetculo pode ser o poder de quem olha e olhado, como o casodo poeta popular que recita na feira, dos brincantes de uma folia que sedeslocam tocando e cantando pelo povoado, ou dos danarinos que seapresentam em seu ambiente comunitrio. Em todos esses casos, artistae pblico se olham em um espao comum e familiar aberto s trocas,inclusive de posies, entre quem olha e quem olhado.

    A espetacularizao possui um outro lado, predador, ou objetifi-cador, que o olhar que no se sabe olhado por aquele que comanda oseu olhar; e que tambm o olhar daquele que se recusa a ser olhado.Este o olhar do consumidor, que no pode suportar o espelho da suacondio objetificada de sujeito para o consumo. Esse olhar que serecusa a ser olhado o mesmo que, contraditoriamente, torna-se prisio-neiro da fantasia de que ser olhado com um olhar de aceitao por partedaquele a quem olha como objeto de seu entretenimento. esse tipo deolhar que produz o consumidor, sujeito-objeto da vida em uma socie-dade espetacularizadora6.

    H que mencionar aqui dois dos principais tericos do espetculonas sociedades ocidentais contemporneas: Guy Debord, autor do cls-sicoA Sociedade do Espetculo(Debord 1997) e Jean Baudrillard, autor detextos igualmente clssicos sobre o tema, entre eles A Sociedade deConsumo (Baudrillard 1975). Ainda que inspiradores, esses dois autores sedistanciam parcialmente da presente discusso sobre a espetacularizaopor dois motivos que se complementam. Primeiramente, porque ambospartem do princpio de que o esvaziamento de sentido trazido por essecapitalismo espetacularizante generalizado; e em segundo lugar, porquesua leitura, ainda que til para entender muitos dos dilemas contempo-rneos da cultura na Amrica Latina, concentra-se nas expresses cultu-rais das sociedades industriais avanadas do mundo ocidental (Europa epases ricos anglo-saxes), sociedades que no possuem mais (como jtiveram no passado) o rico circuito das culturas populares que umamarca to forte das nossas sociedades latino-americanas.

    6 Teorizei esse lugar trgico do consumidor em outro ensaio (Carvalho 2000).

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    Em resumo, Debord e Baudrillard dissecam o vazio de uma socie-dade inteiramente espetacularizada, enquanto procuro aqui teorizar osdilemas da espetacularizao de algumas das expresses culturais popu -lares, processo mais recente e ainda passvel de interveno.

    Devemos ser conscientes de que ainda contamos no Brasil cominmeros gneros de espetculos de cultura popular que so produzidose absorvidos pelas comunidades a que pertencem os artistas populares.Em sntese, muitos das performances de grupos de Cavalo Marinho,Cabocolinhos, Sambas de Roda, Cco de Zamb, entre tantas outras,

    ainda no foram absorvidas pelo circuito da espetacularizao mercan-tilizadora que j dominou completamente o espao vital dos membrosdas sociedades industriais avanadas, sobre as quais aqueles autoresescreveram.

    A espetacularizao da poltica, como um processo de dimensesmundiais, alcanou seu paroxismo nas ltimas dcadas, como no casodas campanhas estaduais e presidenciais em vrios pases, tanto no Pri-meiro como no Terceiro Mundo. As eleies so, portanto, como diz

    Jean Baudrillard, carnavalizadase o verbo carnavalizar j aponta para aretirada da dimenso de seriedade do fenmeno, ao mesmo tempo emque funciona como a referncia tpica do espetculo da moderna socie-

    dade de massas: turstico, narcotizante, mercantilizado. No nosso caso, aintensidade da canibalizao e da espetacularizao ainda um fen-meno relativamente recente e confinado predominantemente a um nichoespecfico dentro da indstria do entretenimento.

    primeira vista, o processo de espetacularizao coloca artistaspopulares na condio de objeto: devero apresentar-se, alterando asbases de seus cdigos especficos, para deleite de espectadores de classemdia, em seus momentos de consumo de lazer ou cultura de turismo.

    Colocados no palco, so objetificados pelo olhar desses sujeitosque se entretm. Visto o processo mais de perto, porm, tambm osespectadores so objetificados pelos mesmos agentes que contratam os

    artistas populares. Afinal, brincantes, ainda que objetificados, so sujeitosque seduzem espectadores, que passam agora a ser objetos dessa sedu-o. Isso aponta para a estrutura subjacente de assujeitamento de artistase de pblico, estrutura que produzida e controlada pela indstria doentretenimento ou pela ordem poltica que contrata o espetculo. H um

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    sujeito oculto (e hegemnico) nessa interao espetacularizada: trata-sedo produtor cultural ou do poltico ou empresrio contratante.

    Podemos regressar aqui de novo ao exemplo clssico do Coliseuromano. Se os gladiadores eram objetos de entretenimento para asmassas, essas por sua vez eram tambm objeto de manipulao por partedas elites do poder, que as controlavam ao oferecer-lhes o espetculo damorte exposta na arena. O sujeito do poder assujeitava simultaneamenteos gladiadores e a massa de subalternos, colocando ambos em umacondio de objetos segundo os interesses daquele poder. Assim, inde-pendente e acima do fato de que tanto os gladiadores quanto a massa deespectadores fossem, mutuamente, sujeitos e objetos, respectivamente,uns para os outros, essa simetria de posies cessava quando se rela-cionavam com o poder que instituiu o Coliseu. O poder construa,atravs do espetculo, tanto os que se apresentavam quanto aqueles queos assistiam. A nica possibilidade de alcanar a condio plena desujeito se dava atravs da rebelio, tema praticamente intocvel nasalternativas atualmente colocadas para mestres das culturas populares emsuas relaes com o Estado e com a indstria do entretenimento.

    Tomar em conta esse duplo processo de objetificao ajuda-nos acompreender os determinantes da interao entre espectadores de classemdia e artistas populares que se apresentam para entret-los. Ambos seencontram, trocam olhares e so mutuamente olhados (espectadorespara consumir, artistas para seduzir) em um espao definido no maisinteiramente por eles. Caso a apresentao seja contratada pelos poderespblicos, sero eles que tentaro orientar, para seu benefcio, o sentido eos limites dessa interao; e quando se tratar de um evento apenascomercial, sero os produtores que procuraro estabelecer os contornosprecisos do evento segundo a lgica da mais-valia.

    Essa estrutura especfica da espetacularizao das culturas popu-lares condiciona e dificulta a formao de alianas polticas entre artistaspopulares e classe mdia. Apesar de aumentar a proximidade entre osdois grupos, ambos so assujeitados (como espectadores e gladiadoresdo Coliseu romano ou assistentes e participantes de um reality show, porexemplo), por um lado, pelas condies do espetculo que nenhum dosdois controla e s quais lhes cabem responder e reagir segundo limitesmuito estreitos.

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    Nos dois casos aqui mencionados, os consumidores no podemmuito mais que escolher com que gladiadores ou com que participantesdo reality show iro se identificar, positiva ou negativamente. Por outrolado, no que tange aos artistas desses eventos (lutadores e pretendentesao prmio final), sua escolha ainda menor, pois est condicionada aoenfrentamento com os concorrentes e reao do pblico consumidor aesse enfrentamento.

    Em suma, no se deve falar da espetacularizao sem colocar otema da rebelio. Nem o populismo poltico, nem o capitalismo do

    entretenimento permitiro que artistas populares possam expandir suastradies sem que sejam expropriadas, espetacularizadas ou canibaliza-das. Tambm no permitiro classe mdia urbana, por mais bem inten-cionada que esta seja, a possibilidade de apreender os cdigos estticos eespirituais contidos nas expresses da cultura popular de modo a infun-dir outras dimenses s suas vidas.

    A espetacularizao, assim concebida, um fenmeno no apenasesttico-simblico, mas tambm econmico, social e poltico. As injun-es estticas e econmicas impostas a artistas populares pela indstriado entretenimento j esto razoavelmente descritas e avaliadas.

    Em algum momento, contudo, ser preciso abrir a discusso com

    os mestres e as mestras acerca das injunes estritamente polticas quecondicionam a espetacularizao das suas expresses artsticas. Se gru-pos e associaes correm o risco de descaracterizao (diante dos olhosda prpria comunidade, inclusive) e perda de sua autonomia esttica,simblica e espiritual, isso se deve tambm cooptao de mestres emestras por parte das classes polticas locais e regionais.

    Como possvel que tradies culturais populares to ricas e tointimamente conectadas com a vida das comunidades em que florescemsejam colocadas a servio da legitimao de populismos estaduais emunicipais corruptos? No caso do Maranho, por exemplo, Jos Sarneye Roseane Sarney construram, ao longo de trs dcadas, uma relao de

    aparente cumplicidade com mestres e mestras da cultura popular, o queno os impediu de deixar o estado entre os mais injustos socialmente dopas, com os piores ndices nacionais de desenvolvimento humano. Emuitos mestres e mestras da Bahia foram tambm cooptados pelomesmo tipo de populismo corrupto capitaneado por Antnio CarlosMagalhes.

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    Ao longo de 40 anos o carlismo conseguiu projetar uma imagemespetacularizada da chamada cultura popular baiana, enquanto os

    ndices sociais do estado chegaram a ficar entre os trs mais baixos dopas, ao lado justamente do Maranho. Essa mesma pergunta pode sercolocada para mestres e mestras de outros estados e municpios: asexpresses locais de cultura popular ajudaram a legitimar regimes esta-duais e municipais corruptos e injustos e assim perpetuar seu controlesobre os estados e os municpios. E foi justamente nos ltimos vinteanos, desde o incio da chamada Nova Repblica, marcada pelos popu-lismos regionais corruptos, que as culturas populares mais tm sidoespetacularizadas.

    Obviamente, a mesma pergunta pela cooptao deve ser dirigidaaos ativistas polticos, aos funcionrios pblicos federais, estaduais emunicipais, s ONGs que trabalham na rea da cultura popular, aosprodutores culturais, aos jornalistas e tambm a ns, intelectuais e aca-dmicos. Canibalizao e espetacularizao somente so possveis atra-

    vs da participao de vrios atores, seja na produo e divulgao doseventos, na mediao e na negociao com a comunidade e, finalmente,na justificao (em vez da crtica e da contestao) do uso da culturapopular em espaos extracomunitrios, com fins de mercantilizao oude propaganda de regimes polticos.

    O que no pode deixar de ser colocado a parte desse problemacomplexo que toca mais diretamente aos prprios artistas populares.Sabemos que no so eles os primeiros responsveis pela espetaculari-zao profanadora: afinal, a desigualdade de poder, o baixo ndice decidadania e a carncia material extrema de 99% dos brincantes dificultama deciso do grupo de recusar ofertas para apresentaes, mesmoquando tenham que ceder sobre aspectos importantes das tradies.

    Por sua vez, no possvel colocar a todos os mestres e as mestrasna condio de vtimas absolutas da falta de escrpulos dos demais agen-tes envolvidos no processo de expropriao. A questo central que essaestrutura de cooptao somente funcionou bem para os polticos e osprodutores culturais. Ainda que alguns mestres, mestras e brincantestenham melhorado um pouco de padro de vida pelos apoios recebidos,as comunidades que abrigam essas tradies populares cooptadas conti-nuam pobres (e algumas miserveis) at hoje. Talvez os trs governa-

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    dores mencionados tenham contribudo para dar uma maior visibilidades manifestaes culturais dos seus estados, mas suas administraes noresultaram em nenhuma ampliao significativa do acesso cidadaniapara as classes populares que preservam essas tradies.

    Retomando um ponto anterior, pensemos nos efeitos das tecno-logias de espetacularizao, desde o incio do sculo XX at os dias dehoje. O cinema se construiu como um intertexto e uma forma de expres-so multimdia. Desse modo, passou rapidamente a funcionar, desde asegunda dcada do sculo passado, como um mega-discursopara o qual

    convergiram outras linguagens artsticas e expressivas: fotografia parada,fotografia em movimento, artes sonoras, literatura, teatro, arquitetura,paisagismo, decorao, moda. Obviamente, a capacidade de gerar espet-culo com as formas concretas de vida se intensificou a partir dos anos1950 com a expanso dos programas de televiso, que puderam repro-duzir e recriar a representao espetacular da vida produzida pelo cine-ma7.

    A televiso reproduz e intensifica o efeito ideolgico das narrativasdo cinema, tornando-as infinitamente mais invasivas na vida cotidianadevido grande mobilidade do aparelho de TV. Alm disso, sintetiza ointertexto cinematogrfico bsico em sries e telenovelas, porm maximi-

    zando os elementos visuais de mais fcil identificao com o pblico (osprimeiros planos, por exemplo, a nfase nos rostos, a cmera fixa, osinteriores e os exteriores empobrecidos de signos).

    A partir dos anos 1960, acredito que a publicidade converteu-se nomega-discurso que articula todos os gneros de produo culturalconectados diretamente com o espetculo (o cinema, a televiso, a foto-grafia e os shows de msica e dana). A publicidade articula com eficciatodos os formatos narrativos e todos os meios de comunicao existen-tes, sejam eles materiais ou imateriais, estticos ou cinticos. Por sua vez,enquanto todos os outros meios ainda guardam suas especificidadesexpressivas (o disco, o rdio, o cinema, a televiso, a revista, o pster, o

    banner, o cartaz, o decalque), a publicidade no se preocupa com limitese por isso o reino da espetacularizao levada ao extremo: qualquer

    7 Neil Gabler (1998) mostra, em um ensaio bastante original sobre a indstria culturalnorte-americana, como a representao espetacularizada da vida no cinema trans-formou a prpria vida em um espetculo de cinema.

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    meio e qualquer formato narrativo pode ser atrofiado, subvertido ouhipertrofiado, sem nenhuma fidelidade s caractersticas tcnicas deproduo esttica e simblica que justificaram previamente a necessidadede inovao que eles representam.

    Paralelamente, para a publicidade qualquer forma cultural j esta-belecida no passa de matria prima a ser manipulada na construo deuma campanha: o mesmo valor instrumental atribudo a um bal, umreisado, um tear tradicional ou o trecho de um filme clssico. Restaavaliar as consequncias, que so distintas, para cada uma dessas formasculturais quando elas so formatadas segundo os interesses da publici-dade. No caso das expresses de tradio oral, elas certamente no saemilesas da espetacularizao publicitria, pois seu senso esttico e espiri -tual est calcado em elementos alheios indstria audiovisual moderna,universo delas antittico, que gerou o mundo informe da publicidade,surgida que foi na poca em que declinaram, nos pases industriaisavanados, as formas orais de cultura popular.

    Fazer publicidade de um produto, de uma pessoa ou de um evento represent-lo como um espetculo prazeroso aos olhos e aos ouvidos,independente do contedo ou do significado especficos que possam sertransmitidos pelo evento, pelo produto ou pela pessoa ou grupo depessoas focalizadas pela campanha publicitria. importante lembrarque todas as instituies complexas e especializadas de uma sociedade demassa, com as dimenses da sociedade brasileira, dependem da publici-dade: o poder poltico faz propaganda de si mesmo, as expresses artsti-cas, os produtos industriais, o comrcio, as instituies educativas (priva-das e pblicas), as igrejas hegemnicas (catlicas e protestantes), oesporte, os sistemas de transporte, os meios de comunicao e, obvia-mente, a indstria da publicidade faz propaganda de si mesma.

    O centro vital do discurso publicitrio o espetculo: exteriorizante,estridente, egoltrico, profano, hiperblico, enganoso, sedutor, inconse-quente (so campanhas publicitrias, afinal: nada nesse mundo feitopara durar) e o que ainda mais crucial: controlador do sentido. Osentido especfico bsico, singular, de cada evento, produto ou pessoa neutralizado pela indstria da publicidade no momento em que forma-tado como espetculo. Voltando ao tema da cultura popular, quando umfolguedo popular reformatado para atender s demandas do consumo,

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    o sentido que transmite quando encenado no espao comunitrio tendea desaparecer. A espetacularizao atua assim como se fosse uma tradu-o realmente traidora (lembremos da clebre expresso italiana:traduttore/tradittore), pois o espectador assimila um sentido enganosa-mente distante do que acredita ser o original.

    Essa ideia do entretenimento refere-se a um momento de pausadiante de um mundo j desencantado e laico, no qual as pessoas estosaturadas por um horizonte de vida no satisfatrio, com pouco retornode gozo alm da entrega ao trabalho e gratificao financeira dele deri-

    vada. Entreter ter entre, isto , possuir no intervalo. experimentar ailuso de que se dono daquela manifestao durante um curto espaode tempo. possuir algo no momento fugaz entre dois vazios. A inds-tria que mais organiza esse entreter como iluso de posse provisria aindstria do turismo. No toa que, ao pensarmos na histria recentedos ministrios nos nossos pases, percebemos que praticamente nomundo inteiro o turismo se torna cada vez mais uma questo de Estado,de geopoltica e de capital. O turismo funcionaria supostamente comoum estimulador e um regulador do consumo de pessoas, coisas, luga-res, eventose da convivncia, de modo a satisfazer as necessidades deambos.

    A partir do momento em que a indstria cultural comea a organi-zar espetculos de cultura popular surgem as negociaes, em termosquase sempre desiguais, entre os produtores e os artistas populares. Esseregime capitalista das negociaes tem como referncia os parmetrosretirados de outros tipos de espetculos, de expresses culturais que j seconsolidaram em simbiose com a indstria cultural nas sociedades demassa. Estas expresses no so problemticas para os artistas que j seformaram nesse meio mercantilista, mas invariavelmente acarretam emperdas, simplificaes e deformaes para as expresses culturais tradi-cionais.

    Dentro da lgica do entretenimento, negocia-se quase tudo com

    mestres da cultura popular: o tamanho do grupo que ir se apresentar(nmero total e tipos de brincantes); que partes da manifestao seroexcludas (o que afeta diretamente o sentido do evento); e acima de tudo,o tempo de durao do espetculo. Por exemplo, um determinado espe-tculo popular pode incluir como parte constitutiva do drama desenvol-

    vido uma dimenso devocional, meditativa ou contemplativa; ou, no

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    sentido inverso, outra dimenso mais prxima do ertico ou do grotesco.Todavia, um contratante pode adotar uma lgica purista ou superficial deespetculo e decidir domesticar os significados moralmente mais desafia-dores da obra, excluindo aspectos considerados incmodos ou inconve-nientes para o grupo interessado em consumi-la. Em outros casos, podeser tentado a manipular os mitos fundantes da obra, de forma que seusaspectos mais sublimes, devocionais e transcendentes, que provavel-mente exigiriam um esforo maior por parte do consumidor para Alcan--los, sejam retirados, deixando em seu lugar os aspectos consideradosmais fceis de assimilao. Essa interferncia com fins mercadolgicosna dimenso do sublime e do transcendente, transforma grande partedos espetculos de cultura popular em meras histrias de aventuras, vio-lncia, humor e erotismo, dimenses que j fazem parte da fantasia doconsumidor e que passam a ser hipertrofiadas nas apresentaes espeta-cularizadas.

    Desse modo, um espetculo que se moveria entre a introspeco ea exposio, pode se transformar em espetculo de pura exposio eexternalidade. Ou ento, se mudar o contratante, pode suceder o inversoe as arestas dionisacas sero polidas para que o resultado seja um espe-tculo contido. Essas negociaes, que dizem respeito a escolhas na reada arte e da espiritualidade, vo se transformando em negociaes finan-ceiras: incluir (ou no) sensualidade ou recato pode (ou no) trazer lucropara o contratante. assim que a dimenso do lucro passa a organizar aemergncia do simblico e do esttico popular na perspectiva dos espec-tadores.

    Existe tambm uma esfera de negociao entre os grupos de cul-tura popular e as instncias do Estado. Artistas populares negociamrecursos a partir do que poderamos chamar de parmetros do pblico,ou parmetros sociais, de interesse comum. Separado dos interessesmercadolgicos canibalizadores e espetacularizadores, o espao daexpresso cultural pode ser tambm um espao de construo de Cida-dania.

    Esse mesmo avano na espetacularizao e na expropriao dosgneros tradicionais vem sendo feito pela classe poltica e pela indstriado entretenimento em praticamente todos os pases latino-americanos.

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    Tal movimento de consumo atende simultaneamente s classes mdiasnacionais e aos turistas estrangeiros, principalmente do Primeiro Mundo.

    Um dos fetiches mais vendidos para esses consumidores o corpodos artistas populares, exibido como uma imagem estetizada para o pra-zer do espectador. O corpo da cultura popular que canta, dana, recita,sorri, veste-se com singeleza, elegncia, bom gosto e naturalidade, entraem xtase, explode de alegria e vitalidade, passa a ser um bem escasso emum mundo desencantado, que submete os corpos de quem trabalha,seguindo essa lgica capitalista cada vez mais excludente e desumanizada,

    represso, couraa do no-sentir, intoxicao e seriedade foradada acumulao e da busca incessante de mais-valia. Podemos imaginartoda a complexa hierarquia do trabalho no mundo atual como compostade potenciais consumidores que, vivendo em corpos de pouca realizaoesttica e espiritual, tornam-se voyeursda espetacularizao dos corposdos artistas populares.

    As culturas populares como artes sagradas

    Em se tratando da espetacularizao dos corpos, as comunidades

    afro-americanas tm sido as mais pressionadas a expor suas tradiespara fins de consumo. Conforme desenvolvi em outros ensaios, a ima-gem do corpo afro-americano cada vez mais construda pela indstriado turismo como um smbolo globalizado do gozo atravs do lazer con-sumista (Carvalho 2003, 2004). Dado que j praticamente inevitvelnegociar com a indstria e a poltica do entretenimento, o dilemaprincipal agora passa a ser como estabelecer limites para essas negocia-es. Muitas das tradies afro-americanas desejadas para consumo sotradies sagradas e o sagrado no negocivel. Danas rituais de origemafricana como o candombl, o congado, o maracatu, as taieirase seusequivalentes em outros pases so performances de extrema sofisticao

    esttica, porm profundamente devocionais: ocorrem de acordo com umcalendrio religioso e segundo as conexes mitolgicas e rituais que dosentido e colocam limites s expresses artsticas deles derivadas. S fazsentido definir um campo de negociao para que as festas e rituais afro-

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    americanos se transformem em espetculo se ficar estabelecido previa-mente a existncia de um campo do inegocivel.

    Conforme dito antes, durante a maior parte do sculo 20, os pro-dutos da indstria cultural (cinema, televiso, msica comercial, etc.)eram suficientes para satisfazer a demanda de consumo simblico dasociedade de massa. A partir de um certo momento, porm, foi precisoprocurar novas dimenses da cultura popular que antes eram indiferentespara o Estado e os contratantes. A presso por espetacularizar a tradiofez com que muitos grupos tradicionais fossem obrigados a convivercom o desrespeito dimenso sagrada e devocional das tradies queapresentam. Esse processo de desrespeito pode ser condensado emoutro termo: profanao, que consiste em empurrar para o campo doprofano aquilo que antes pertencia ao campo do sagrado.

    A profanao (como a espetacularizao e a canibalizao) uma via de mo dupla. Por um lado, o prprio grupo que aceita seauto-profanar, isto , retirar a sua tradio cultural e devocional dadimenso protegida do sagrado e exp-la ao entretenimento dos consu-midores em um contexto profano. Por outro lado, so os espectadoresque tambm contribuem para esse desgaste, independente do esforodos artistas populares, na medida em que rejeitam a dimenso mtica esagrada, fixando-se apenas nos aspectos exteriores do espetculo.

    Ilustro esse processo com um exemplo por mim presenciado noPeru. A cidade de Cuzco conhecida como uma meca do turismo inter-nacional e por ser um polo de concentrao de arte tradicional andina. Adesigualdade de recursos do mundo gerou um tipo muito particular demais-valia esttica na indstria local do turismo com relao s apresen-taes de grupos tradicionais. Com pouco dinheiro, segundo os padresdo Primeiro Mundo, possvel contratar vrios grupos musicais, dedana e de mscara em uma nica ocasio. Deleitava-me uma noite emum restaurante com as apresentaes belssimas de seis grupos distintosde danas devocionais da rea do Cuzco8.

    8 Um dos pontos altos do I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares, de 2006 emBraslia foi a apresentao dos danarinos da irmandade devocional doQapaqNegroda milenar cidade de Pauqartambo, na regio do Cuzco.

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    Quando os artistas apresentaram a dana dos Saqras, uma sute debaile de mscaras que representam uma verso dos diabos que procuramperturbar a Virgem do Carmo, uma das mscaras se dirigiu a uma mesatomada por um casal de jovens turistas europeus. A mscara aproximou-se da moa danando, girando os longos dedos postios das duas mos einclinando o corpo vestido de traje barroco colorido, em um gesto ele-gante de cortesia. Em um movimento rpido e brusco, a jovem turistaempurrou-a para longe, enfastiada, ameaando levantar-se e se retirar dorestaurante. Para todos que presenciamos a cena, ficou evidente que a

    mulher foi incapaz de devolver minimamente o gesto de acolhimentoldico a ela dirigido pela mscara em seu momento de arte. Quando ocdigo sagrado afastado e o espetculo apresentado exclusivamentena lgica profana da mais-valia, os artistas populares ficam expostos agresso simblica dos espectadores. O mito vivo forte demais parauma imaginao to desencantada.

    O que torna a profanao um fenmeno dramtico que ela pre-sentifica o ato de negao do sagrado. A mscara que se apresenta conti-nua sendo um objeto artstico sagrado, mesmo que deslocado de seucontexto ritual prprio. Da a sua rejeio aparecer como um sintoma deuma relao impossvel, ainda que fantasiada, entre uma turista-especta-

    dora do Primeiro Mundo e um grupo de artistas de um pas pobre doTerceiro Mundo que se apresenta em um espetculo preparado para oentretenimento de consumidores. O danarino mascarado do Saqra, queat ento se projetava como portador de valores humanos universal-mente considerados como positivos (a gentileza, a cortesia, o acolhi-mento, a hospitalidade), foi ento reduzido pela turista que o rejeitou condio de um pobre artista inoportuno que precisou ser colocadodevidamente no seu lugar de subalterno. A mscara, cuja presenaimpunha ou facilitava o acesso a outro mundo mtico e espiritual, foirebaixada condio de um objeto incmodo e sem poder.

    Nesse episdio est embutida tambm uma dimenso do racismo e

    da desumanizao radical que estruturam essas relaes entre turistas enativos, pois cabe ao corpo exotizado,no-brancopermanecer no seulugar e manter a distncia tcita ou permitir a aproximao fsica reque-rida pelos turistas espectadores. Essa relao pode alcanar nveis obsce-nos de desigualdade, como nos casos to frequentes do turismo sexual,que muitas vezes inclui apresentaes de cultura popular. Em tais casos,

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    uma dupla fantasia de prazer e posse pode ser realizada pelo turistaquando contrata os servios sexuais de uma jovem que tambm umabrincante de algum grupo que se apresentou.

    A estrutura do turismo tnico, que a principal responsvel pelaespetacularizao das tradies culturais exticas, o pano de fundo doincidente do Cuzco e de inmeros outros que ocorrem frequentementedurante as apresentaes de artistas populares. Vem a calhar aqui per-feitamente uma frase do cineasta Dennis ORourke, autor do excelentedocumentrio Viagens Canibais, de 1988, sobre o turismo tnico de bran-cos ocidentais na Nova Guin: Uma lio do filme que os neogui -neenses experimentam os seus mitos como mitos, enquanto os turistasexperimentam os seus mitos como sintomas e histeria (ORourke 1999;Root 1996). A questo saber a quantas profanaes de turistas podemos mitos nativos resistir at perder definitivamente o seu lugar de mito.

    Podemos aqui lanar a proposta de um novo pacto entre governo,sociedade civil, pesquisadores e artistas populares parecida com o que foifeito em 1962, quando foi redigida a Carta do Samba,sob a coordenaode Edison Carneiro (Carneiro 1962). Naquela poca, representantes detodas as escolas de samba do Rio de Janeiro se reuniram no InstitutoNacional do Folclore para definir qual seria o formato do samba, comoum gnero musical e da escola de samba, como espetculo coreogrfico.

    A redao dessa Carta foi uma tentativa de colocar limites ao quepercebiam como uma descaracterizao daquelas formas artsticas. Assimorganizados, mestres e brincantes poderiam resistir melhor presso dosempresrios, da classe mdia canibalizadora, das secretarias (municipal eestadual) e das empresas de turismo.

    Proponho ento que definamos coletivamente, entre mestres, pro-dutores culturais, terceiro setor, pesquisadores e governo, o que exata-mente pertence, do ponto de vista esttico, ao reino do negocivel, e oque pertence ao reino do sagrado. O que ficar definido como sagradono poder mais ser descontextualizado para fins de entretenimentoficando, portanto, declarado inegocivel. Quem quiser apreci-lo deverobedecer s regras de tempo e espao que regem as tradies sagradas,bem assim como as regras prprias de etiqueta que definem os papis eos lugares sociais e fsicos dos que so iniciados na tradio ou membros

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    da sua comunidade de origem e os que dela se aproximam na condiode meros observadores ou apreciadores.

    Algumas irmandades tradicionais j esto experimentando soluesprprias no intuito de proteger os aspectos sagrados de seus rituais. Acomunidade dos Arturos de Contagem Minas Gerais, famosa pelo seuCongado, preparou recentemente um grupo jovem de dana e percussoespecificamente para apresentaes, denominadas de bizarria, fora docalendrio religioso da comunidade. Em um caso como este, a prpriacomunidade que comea a controlar o grau de espetacularizao de suas

    tradies, colocando um limite aos aspectos que pode ou no expor aopblico em situaes profanas9.

    Paralelamente, do lado dos pesquisadores, a Associao Brasileirade Etnomusicologia (ABET) criou, em 2006, uma Comisso de ticacom a finalidade de estabelecer um cdigo mnimo de postura para ospesquisadores. Objetiva-se que suas relaes com as comunidades, emque desenvolvem seus trabalhos de campo, sejam pautadas pelas ideiasde colaborao e parceria e no mais pela profanao e a canibalizao,atravs de gravaes, fotografias, filmes e demais materiais de registroque at agora, muito raramente, tm retornado para as comunidades,uma vez concludos os trabalhos de pesquisa.

    Canibalizao

    A espetacularizao consequncia de um longo processo de pre-dao e expropriao das culturas populares que definimos como cani-balizao. A metfora do canibalismo na rea da cultura j possui umalonga trajetria e associada hoje em dia principalmente indstria doturismo, que estimula as viagens de pessoas do Primeiro Mundo paralugares distantes, onde habitam seres de costumes exticos, suposta-mente inexplorados. Um dos costumes exticos que mais fascinam os

    turistas ocidentais justamente o canibalismo! Ou seja, o turista embarcaem uma viagem de aventuras controlada pela companhia de turismo paraconhecer e tornar-se, por um breve tempo, canibal do canibal. O canibal

    9 Sobre essa soluo dos Arturos, ver os ensaios de Glaura Lucas (2006a, 2006b).

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    cultural ento, tipicamente, um consumidor de costumes alheios e paraisso se desloca de seu contexto para o contexto do outro, primitivo,com a finalidade de usufruir de seu modo de vida e de suas expressesculturais. Tudo se passa como se o palco da espetacularizao noprecisasse mais ser removido da comunidade onde vivem os brincantes,para ser montado no ambiente urbano onde mora o consumidor. Comose a prpria comunidade, aldeia ou tribo em que vive o nativo fossetransformada em um palco, onde o seu prprio modo de vida tradicional espetacularizado segundo os padres do olhar do turista/espectador.

    Esse o modelo de canibalismo cultural que mostrado magistral-mente no j mencionado documentrio Viagens Canibais. Contudo, a ideiada canibalizao, isto , do ato de deglutir a cu ltura do outro, possuiuma longa histria no Brasil, muito anterior ao desenvolvimento daindstria do turismo. O que produz a espetacularizao contempornea a canibalizao praticada no apenas pelo turista, que deseja entreter-se com a cultura dos nativos, mas principalmente por outros intermedi-rios das elites polticas, sociais e econmicas, como produtores culturais,ONGs, artistas urbanos, servidores pblicos e pesquisadores.

    A histria da cultura popular na Amrica Latina a histria dessemovimento constante de ziguezague cultural e de classe, desde a Colniaat os dias de hoje. Ao longo dos sculos, consolidaram-se vrias expres-ses culturais hbridas nas classes populares, a maioria dessas expressesexibindo um sincretismo religioso e uma recolocao tanto dos elemen-tos autctones quanto dos europeus. As elites brasileiras foram canibali-zando aquelas formas hbridas nos movimentos artsticos do Roman-tismo, procurando represent-las em outro cdigo esttico.

    Esse ziguezague de hibridismo alcanou seu pice no movimentomodernista dos anos 20 do sculo passado, de que sobressai, comotestamento ideolgico, o Manifesto Antropofgico, de Oswald de Andrade.Este documento propicia a justificativa para a canibalizao irrestritadas culturas populares por parte de uma elite social e poltica centradaem So Paulo e com ramificaes no Rio de Janeiro, em Belo Horizontee demais centros de poder localizados no Sul e no Sudeste. A questo que j nessa poca o pas era riqussimo em tradies culturais populares.

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    Mais ainda, talvez o Brasil fosse culturalmente muito mais ricopelo seu lado dos artistas populares do que por suas instituies (frgeisat hoje) e movimentos de cultura erudita de base eurocntrica.

    A canibalizao sempre discutida no Brasil na perspectiva deum antropfago pertencente elite social do pas. Trata-se agora de noscolocarmos no lugar da presa desse canibal, o que significa identificar,sociolgica e historicamente, quem tem sido at agora o outro canibali-zado e averiguar o que esse outro acha de ser objeto dessacanibalizao.O famoso lema antropofgico S me interessa o que no meu

    afirmou uma espcie de direito inconteste dos artistas e intelectuais deelite a retirarem todos e quaisquer elementos das naes indgenas, dastradies afro-brasileiras e do chamado folclore em geral e inclu-los, talcomo os encontraram, ou transformando-os em suas obras e suas apre-sentaes pblicas. Tudo em nome de uma unidade nacional que foidecretada por essa mesma elite, sem nenhuma consulta ou combinaocom as classes populares.

    A atitude antropofgica tem sido uma prtica ininterrupta de cani-balizao cultural durante mais de 80 anos, sem haver sido jamaisquestionada a assimetria de poder (econmico, poltico, tecnolgico, dedifuso) entre os canibais urbanos de classe mdia (em sua esmagadora

    maioria brancos) e os canibalizados artistas populares de origem campo-nesa (ou caiara, sertaneja, ribeirinha e equivalentes), pobres, marginali-zados das redes de cidadania e de deciso nas esferas polticas (em suamaioria negros, pretos ou pardos). Os intelectuais e artistas que aindahoje defendem a antropofagia cultural procuram sempre restringir a dis-cusso s questes de esttica, como se todo artista tivesse o direitoinalienvel de utilizar o repertrio das culturas populares em suas cria-es. Contudo, eles nunca questionam a dupla assimetria de direitos queos favorece: os artistas populares no tm ainda mecanismos legais paraimpedir que os de fora faam uso dos seus repertrios, enquanto osartistas antropfagos de classe mdia contam com base legal para pre-

    servar a autoria de suas obras e impedir que outrem (como os artistaspopulares, por exemplo) possa utiliz-las.

    A canibalizao cultural tem sido concebida e justificada de vriosmodos. Eis alguns deles:

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    a) O canibal devora o outro para adquirir para si mesmo umasobrevida e reafirmar sua posio no seu meio (artstico, cul-tural, social, poltico, econmico). A comunidade do outrono assunto do seu interesse. Indiferente aos efeitos do seuato na vida daqueles que deglutiu, essa instncia da caniba -lizao uma forma depilhagem ou predao cultural.

    b) Em outra vertente legitimadora da antropofagia, costuma-seargumentar que o ato da canibalizao possibilita a conti-nuidade, no apenas daquele que canibaliza, mas tambmdaquele que foi canibalizado e que sobreviver nas entranhasdo corpo do canibal. O canibal torna-se assim, atravs daforma cultural hbrida que produz, depositrio de duas hist-rias: da histria da forma cultural primitiva que deglutiu eda histria da sua prpria arte. Essa verso da canibalizao defendida pelos que a praticam como um caso de hibri-dao agregadora ou aglutinadora. O canibal, neste caso,sente-se autorizado para narrar a saga do canibalismo comoalgo positivo que ele realiza em prol do canibalizado 10.

    c) Numa perspectiva mais fenomenolgica, a canibalizaoocorre quando uma forma cultural incorporada, com osseus sinais diacrticos prprios, a outra forma. Assim, muitospintores, msicos e escritores podem extrair elementos dastradies culturais indgenas ou afro-brasileiras e inseri-losnas suas obras. Esse elemento devorado sobrevive como umcristal, distinto e ntido na sua singularidade, ainda que agoraem um novo contexto. Ou seja, o primeiro ponto da caniba-lizao uma re-contextualizao e uma ressignificao de umsigno que antes circulava no mundo chamado do folclorepelas culturas populares. Ele foi retirado porque houve inter-esse artstico por parte de algum da elite em faz-lo. Conse-quentemente, esse smbolo ganha mais prestgio no novocontexto da arte erudita do qual passa a fazer parte.

    10 Um grande terico desse modelo de antropofagia foi Michel de Certeau (1986) que,obviamente, no pode ser responsabilizado pelo uso ideolgico e legitimador de suateoria por parte dos intelectuais e acadmicos modernistas brasileiros.

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    Mais adiante, poder ser absorvido e sobreviver ainda como parteda expresso de um outro artista.

    Aqueles que defendem a antropofagia como atitude de relaocom o outro argumentam que os dois grupos saem ganhando do encon-tro: os citadinos brancos de classe mdia, artistas ou produtores, apren -dem ou mesmo retiram elementos da cultura popular para desenvolverseus projetos; e os artistas populares tambm podem se inspirar na cul-tura dos visitantes e incorporar alguns dos seus elementos nos folguedose tambm retirar recursos materiais desse encontro.

    O que os antropfagos culturais da nossa elite nunca fizeram foiperguntar para brincantes e para mestres e mestras se eles gostam de serdevorados, dessa ou de qualquer outra maneira. Para defender moral-mente essa prtica de antropofagia preciso provar que esse o modocomo os grupos de artistas populares querem que os seus smbolos e asua arte sobrevivam.Todas as informaes de que dispomos indicam quea maioria dos grupos de cultura popular deseja que seus smbolossobrevivam e se transformem ao seu modo e no conforme os desgniosde pessoas que no pertencem ao seu mundo, no compartilham seus

    valores e nem se sentem comprometidos com o destino das suas comu-nidades.

    Revisar a ideologia modernista da antropofagia questionar alegitimidade poltica de um artista que se aproxima das artes popularescom uma inteno exclusiva de coleta de dados para estimular e darcorpo sua inspirao esttica. Muito longe desse modelo romantizado,de uma apropriao bem intencionada das tradies do outro, a prticada antropofagia cultural hoje uma atividade calculada e pragmtica, quepassa necessariamente pelo estabelecimento de vnculos estratgicos, co-merciais e/ou polticos com grupos de cultura popular, com a finalidadede produzir eventos, gravar CDs, filmar DVDs, publicar livros, folhetos;e s vezes, inclusive, apresentar-se em contextos de classe mdia com orepertrio dos grupos.

    Em uma quarta metamorfose antropofgica, o canibal devora ooutro e na medida em que o leva dentro de si, pode passar agora pelo

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    outro; isto , pode performar de ser o outro, retir-lo da cena doespetculo e apresentar-se como se fosse o outro11.

    No esqueamos, porm, das complexidades embutidas nessaalternncia topolgica de identidades. Lembremos que uma das princi-pais habilidades de um mestre ou uma mestra da cultura popular suacapacidade de brincar de ser muitos outros. Logo, pensemos que oartista forneo (em geral branco) que canibaliza o lugar do mestre ou damestra e rouba a sua cena, deseja brincar de ser o outro que o mestreou a mestra. Mas o canibal no consegue brincar de ser os vrios outrosque o mestre ou a mestra so capazes de brincar. Enquanto o canibal sconsegue vestir uma mscara, o mestre ou a mestra podem lanar mode vrias. A mascarada no , portanto, apenas a usurpao de um lugarque no nos pertence; ela implica, alm disso, em duas destituies: 1)um achatamento e uma banalizao do jogo polissmico das metamor-foses dos mestres e das mestras; e 2) uma simplificao e uma reduodesse lugar de expresso e criatividade. A mascarada tambm, nestesentido, um correlato do pensamento nico capitalista que convertetodas as coisas, materiais e imateriais, em mercadoria: uma nica mscaraque destitui vrias mscaras.

    Quando a discusso sai da esttica de elite e entra em questes decidadania, direitos autorais (individuais e coletivos), reproduo audio-

    visual de apresentaes, indstria cultural e turismo, o paradigma antro-pofgico dos modernistas, que sempre legitimou ideologicamente essedireito auto-outorgadodas elites brasileiras de espetacularizar e caniba-lizar as expresses culturais populares entra em crise poltica. Esperamosque o presente momento, com mestres e mestras mais preparados parademandar polticas pblicas para as culturas populares, marque o incio

    11 Em outro ensaio teorizei com detalhe esse processo, que denomino de mascarada(Carvalho 2004a). Esse quarto sentido da canibalizao o que melhor revela a

    dimenso racista dessa antropofagia cultural. Por exemplo, neste momento j temosmaracatus de brancos, congados de brancos, grupos de capoeira de brancos. Essaprtica implica quase sempre em roubar a cena do outro, estar no lugar do outro.Ela permite um paralelo com os Estados Unidos, na poca em que os chamadosminstrels, msicos brancos, pintavam-se de negros e apresentavam-se em shows, cari-caturando uma gestualidade tradicionalmente negra. A mascarada significa, por-tanto, brincar de ser o outro ocupando o lugar do outro.

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    do fim da era da canibalizao unilateral e da espetacularizao nonosso meio. Confiamos em que um paradigma mais justo e igualitrio derelacionamento das classes detentoras do poder poltico e econmicocom mestres e mestras dever surgir na forma de um novo modelo deintercmbio e de acesso pleno cidadania para os que preservam asculturas populares no Brasil e na Amrica Latina.

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    Anexo

    Carta Sul-Americana das Culturas Populares12

    I.Ns, participantes do II Encontro Sul-americano das CulturasPopulares, que representamos as delegaes da Argentina, Bolvia,Brasil, Equador, Paraguai, Venezuela, com a presena de Cuba

    como convidada, chamamos a ateno de nossos governos paraque reconheam o extraordinrio valor deste Encontro, que acei-tem e incorporem as afirmaes e as propostas dos mestres emestras das culturas populares, que so a alma, o passado, opresente e o futuro de nossa Amrica.

    A presente reunio se conecta tambm com os alinhamentos daConveno sobre a Proteo e Promoo da Diversidade dasExpresses Culturais da UNESCO (outubro de 2005), que vem,justamente, enfatizar a defesa, a valorizao e a promoo dasculturas tradicionais e o respeito diferena dos povos de todo omundo.Este momento tem um grande valor histrico tambm porque,

    em uma quarta semana de novembro (precisamente de 25 a 27 denovembro de 1970), h 38 anos, foi realizada em Caracas aprimeira Reunio Interamericana de Especialistas em Etnomusico-logia e Folclore, da qual resultou a Carta do Folclore Americano.Naquela poca e naquele contexto social, cultural e poltico, aCarta concretizou a aspirao de uma gerao de pesquisadores erepresentantes de rgos estatais e internacionais de todo o conti-nente para que as culturas tradicionais da Amrica Latina fossemprotegidas, difundidas e promovidas.

    12 A presente carta foi preparada e redigida, segundo minha formulao, durante o II

    Encontro Sul-Americano das Culturas Populares realizado em Caracas entre os dias25 e 28 de novembro de 2008 sob a organizao da Secretaria da Identidade e daDiversidade do Ministrio da Cultura do Brasil e o Centro da Diversidade Culturalda Venezuela. Lida publicamente no dia 28 de novembro de 2008, o primeiromanifesto sul-americano em defesa das culturas populares que foi redigido conjun-tamente e a partir das vozes dos prprios mestres e artistas das expresses culturaistradicionais do nosso continente.

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    Ao contrrio de como se props daquela primeira vez, na qual osmestres e artistas populares, os povos originrios e as comuni-dades de afro-americanas no estavam presentes, esta carta escrita com a participao deles e em um novo momento histricoda Amrica Latina, no qual muitos pases atualizaram suas consti-tuies, elaboraram polticas, programas e legislaes para incor-porar as demandas populares e o reconhecimento de toda suadiversidade cultural, de modo a promover a incluso social. E,ainda mais, em um momento em que os mestres das culturaspopulares tm a palavra e so protagonistas de suas conquistas e

    demandas, que este documento desperte a conscincia dos gover-nos sul-americanos para se identificarem com estes sentimentos ese comprometerem integralmente em implementar as propostasde polticas pblicas que os mestres e artistas populares, povosoriginrios e comunidades afro-americanas assinalaram nestedocumento.

    II.A partir do II Encontro Sul-americano das Culturas Populares, osmestres e as mestras, os grupos e redes da cultura popular, artesse artesos, pesquisadores e representantes dos Estados, de cadapas aqui representado, expressamos a necessidade de destacar o

    que foi invisibilizado e silenciado ao longo do tempo, de obtermais respeito, de garantir a cultura como um direito humanofundamental. Alm disso, esperamos que naquelas regies da

    Amrica em que, infelizmente, ainda se sofre com a falta derecursos, a discriminao e a ausncia de mecanismos adequadosde registro e proteo, se superem tais condies.Consideramos que a cultura produz vnculos sociais durveis eque, para fazer uma verdadeira revoluo com cidadania, temosque comear pela cultura, na medida em que um povo que no seenvolve no processo de construo de sua cultura no tem sentidode pertencimento.No podemos deixar morrerem as culturas populares, nem deixar

    que os produtos da indstria cultural transnacional, sem razes emnossos povos, tenham mais importncia e opaquem a nossa.O mundo tem que se abrir. necessrio criar um ambiente deconfiana no qual todos se sintam livres para expressarem suasartes e saberes. Hoje em dia desejamos ter mais espaos ondepossamos expressar nossos sentimentos. Existem aqueles que

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    podem e os que no podem. Precisamos deixar aflorar o senti-mento reprimido para que nos seja permitido crescer, como agerminao de uma planta, como a seiva que alimenta sua vida.Para transformar a realidade vivida atualmente pelos mestres eartistas populares, reconhecemos a importncia de promover aintegrao, no apenas regional, mas tambm entre os povos e osmestres e artistas populares. Precisamos eliminar simbolicamenteas fronteiras que so criadas pelos homens, para promover Inte-grao com Diversidade.Neste sentido, os grupos, redes, mestres populares e representan-tes dos Estados, aqui reunidos, afirmam que o sonho da integra-o est deixando de ser uma utopia e se convertendo em umarealidade. Estamos construindo uma tica popular dos nossospovos sul-americanos.

    A integrao nos faz irmos, enriquece saberes e sabores e secristaliza nos mbitos culturais, sociais e polticos.

    Acreditamos que a cultura pode se tornar um veculo de coeso,que nos mantm unidos como famlia e nos serve como alimentoespiritual. A promoo de encontros ajuda a garantir nosso direitode conhecer uma parte de ns mesmos que no conhecemos.Nestes encontros, a cultura e todo o universo cultural se abraam.Esta fuso cultural nos enriquece e nos alimenta, como uma vita-mina para a alma.

    Ao mesmo tempo, queremos garantir a integrao com diversi-dade. As diferenas ou variaes das manifestaes culturais noimplicam na desqualificao de algumas delas, mas sim, expressamo interesse em proteger as razes de cada uma.

    Alm da integrao, afirmamos que essencial a atuao doEstado para promover e dar base para multiplicar a sabedoriapopular dos mestres, sem ter a participao em organizaespolticas como condio.

    Valorizamos um governo popular que aponte para a inclusosocial, a proteo das culturas populares e que apoie as pessoasque esto trabalhando diretamente com a cultura popular.Por isso, acreditamos que necessrio romper com o paradigmado apoio nico s Belas Artes.E, mais que tudo, que a voz e a deciso sejam, a partir de agora epara sempre, dos mestres e artistas populares. Nesse sentido,precisamos defender a autenticidade e a autonomia das culturaspopulares, com um despertar para o coletivo.

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    III.Precisamos promover e preservar as culturas populares, reunindoe deixando flurem novas criaes. Para isso, deve haver em todosos pases um casamento entre a cultura e a educao, valorizandoos mestres como docentes nas escolas e universidades e ensinandoprofessores a danarem, tocarem e brincarem, por exemplo.Devemos unir cultura e educao se queremos a continuidade dasculturas populares, ensinar as crianas e os jovens para que se per-petue o saber e a cultura do que nos prprio. Se a educao um direito de todos, devemos criar as condies para que a cultura

    tambm possa ser. importante promover o conhecimento mtuo das expressesdas culturas populares, por meio de um mapeamento regional.Paralelamente, propomos a elaborao de uma poltica de gestode riscos das expresses das culturas tradicionais e, a partir disso,criar um fundo latino-americano para proteo e promoo denossas culturas.O registro e a difuso de tudo o que fazemos so tambm formasde resistncia.Para contribuir com a preservao e a dignidade deve ser criada,dentre outras coisas, uma penso digna aos mestres, que fazem abeleza de seu pas com tanto trabalho e amor.

    Devem ser criados centros de formao permanente sobre as cul-turas populares, para que os mestres e artistas possam circularentre os pases na qualidade de mestres, promovendo a intercul-turalidade.Requere-se proteger o patrimnio lingustico sul-americano, Fo-mentando seu reconhecimento como lnguas oficiais e promo-

    vendo sua aprendizagem e seu uso.Devemos ter conscincia de que as culturas populares no sopredadoras do meio ambiente. Ao contrrio, nas comunidades emque as tradies esto vivas, o meio ambiente e a biodiversidadeesto preservados. E, alm disso, os produtos industrializados des-cartados so transformados para gerar beleza, desfrute e desenvol-

    vimento humano.

    IV.Com estes processos, podemos construir nossa obra e nossossonhos. Podemos compartilhar e multiplicar nosso amor, paz e

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    liberdade. Assim, vamos chegando ao contexto necessrio para terapoio com humildade, unio e dilogo. devido possibilidade de criar um lugar onde toda a juventudesul-americana tenha vontade de aprender as tradies, que vale apena estarmos aqui e fazer todo este esforo. Assim, teremos apossibilidade de que os jovens resgatem os frutos velhos, seme-ando novas sementes para o futuro.Cultura popular reinventar o mundo. fundir o ouro, o cobre, ochumbo, a prata, construir os instrumentos, curtir o couro; moldar o barro, polir a pedra, tingir a areia, converter penas emcoroas verdadeiras, talhar a madeira, tecer as fibras das rvores e,com elas, tecer a fibra da humanidade nova. E cantem livres aos

    ventos que os levem a uma roda de dana que cultive nossospovos, nutrindo assim a nossa espiritualidade.Ns, mestres, mestras, artistas, pesquisadores das culturas popu-lares, povos originrios, comunidades afro-americanas e represen-tantes da sociedade civil e dos Estados, subscrevemos:

    Caracas, 28 de Novembro de 2008.

    Recebido em junho de 2009

    Aprovado para publicao em setembro de 2009