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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS VESTIDO DE NOIVA NELSON FALCÃO RODRIGUES Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAsvestido de noiva

nelson FAlcãorodrigues

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

www.sistemacoc.com.br

sumário

1. contexto sociAl e HistÓrico .................................................... 7

2. estilo literário dA épocA ........................................................... 9

3. o Autor ................................................................................................. 12

4. A obrA .................................................................................................... 14

5. exercícios ........................................................................................... 22

Ao

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vestido de noiva

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1. Contexto soCial e HistÓRiCo

Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, talvez fosse de se esperar que uma onda de otimismo e esperança se espalhasse por todo o planeta. Mas a experiência do final da Primeira Guerra, em 1919, mostrou que a crença em uma paz eterna seria ilusória, impedindo o desenvolvimento de qualquer esperança. Além do mais, o tempo só provou que a Segunda Guerra era iminente.

Duas forças políticas antagônicas emergiram do panorama do pós-guerra: Estados Unidos e União Soviética. Cada uma delas representava uma ideologia diferente: o capitalismo e o comunismo. Segundo a visão que se estabeleceu na época, o crescimento de uma significava o desaparecimento da outra. As duas superpotências passaram, então, a se enfrentar, em dois planos. No terreno diplomático, praticavam embargos econômicos a nações aliadas de uma e de outra, ameaças e perseguições. No plano da guerra indireta, as duas forças envolveram-se em disputas locais. Foi assim na Coreia, na década de 1950, e no Vietnã, na década de 1960. Esse período de enfrentamento ficou conhecido como Guerra Fria.

Era difícil a qualquer nação do mundo manter-se em completo isolamento ou alheia ao conflito, em posição de neutralidade. A polarização ideológica ca-pitalismo/comunismo impunha às nações posicionamento e que arcassem com as consequências dele, sempre nefastas para países subdesenvolvidos.

Na década de 1940, o Brasil estava sob o estado novo getulista. Não havia uma grande tradição teatral brasileira, e grande parte das obras encenadas era estrangeira. Como consequência da Segunda Guerra Mundial, muitas pessoas envolvidas com teatro na Europa, como, por exemplo, Ziembinski – diretor da primeira montagem de vestido de noiva para cá fugiram, dando novo impulso à

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nossa cena teatral, com novas técnicas de montagem. Nosso teatro passou das comédias de costumes para o grande teatro, com autores “antenados” com o melhor do mundo, mas profundamente brasileiros.

Duas décadas depois da revolução cultural que foi a semana de arte Moderna, finalmente os novos ventos chegaram ao teatro, que se renovaria de forma definitiva.

Como afirma um dos maiores críticos teatrais brasileiros, Sábato Magaldi: nelson Rodrigues representava para o palco o que trouxeram villa Lobos para a mú-sica, Portinari para a pintura, niemeyer para a arquitetura e Carlos drummond de andrade para a poesia.

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2. estilo liteRáRio da époCa

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O Modernismo brasileiro foi se configurando paralela e posteriormente a fatos históricos e artísticos importantes. Entre os primeiros, sobressaem-se a Primeira Grande Guerra (de 1914 a 1918), a incipiente industrialização de São Paulo, a intensificação de correntes migratórias, especialmente a do êxodo rural, o processo de falência da política do café com leite e o centenário da Independên-cia política brasileira. Entre os segundos, destacam-se a publicação do livro os sertões (Euclides da Cunha – 1902), a ebulição artística internacional, provocada pelos movimentos vanguardistas europeus (futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, principalmente), o início do Modernismo português, a exposição de Anita Malfatti (Modernismo alemão) e, a propósito dela, o consequente artigo de Monteiro Lobato (Paranoia ou mistificação?).

O Modernismo brasileiro, independentemente do nome que poderia ter tido, estava fadado a ser aquilo em que se transformou naturalmente: a maturi-dade e a emancipação da arte brasileira, principalmente por ter sido um olhar novo e perscrutador sobre a realidade social do país, o qual passou a ser artística e detidamente observado, seja com benevolência, seja com rigor crítico, mas que, finalmente, passou a ser observado.

Foi essa análise que gerou rebeldia contra os padrões da arte europeia, a qual, em alta porcentagem, ainda tinha seus traços identificáveis na arte brasileira e fez com que os modernistas da primeira hora buscassem a real cultura nacional para fazer dela a autêntica matéria-prima e, no passo seguinte, propusessem e praticassem uma arte de ruptura e, por isso mesmo, agressiva.

Foi esse novo olhar que nos apresentou o homem sertanejo da caatinga e do norte de Minas com sua particular visão do mundo: o dos canaviais e dos engenhos, o da briga pelo cacau, o do caboclo dos cafezais e o das “rocinhas” do interior paulista, o dos imigrantes italianos de São Paulo, o do vivente dos pampas, no seu trabalho de campeador ou às voltas com as lutas fronteiriças, o do homem da periferia das grandes cidades. Esse novo olhar mostra nossas lutas históricas regionais, o sentimento nacionalista e, sobretudo, o jeito de ser brasileiro de cada um, com sua fala peculiar, sua sensibilidade e seus sentimen-tos, seja como indivíduo, seja como coletividade. É esse vastíssimo painel que constitui a renovação da arte brasileira a qual configurava um grande legado modernista ao país, a ponto de o modernismo ser considerado, legitimamente, a independência da arte do Brasil.

A obra de Nelson Rodrigues enquadra-se no Modernismo da terceira ge-ração, ainda que esse enquadramento não seja perfeito. No entanto, se for reto-mado o raciocínio acima, relativo à questão do novo olhar sobre a arte brasileira, é preciso concordar que o teatro rodrigueano constitui uma faceta única, porque tem seu próprio código, suas idiossincrasias, correndo em trilho exclusivo.

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3. o aUtoR

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 1912, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1980.

Era romancista, contista e cronista. Porém foi como teatrólogo que se con-sagrou, principalmente com a encenação da peça vestido de noiva.

Ele foi jornalista e autor de inúmeras crônicas, muitas publicadas numa coluna intitulada a vida como ela é. Suas obras mais famosas, em teatro, são Beijo no asfalto, de 1960, e toda nudez será castigada, de 1966.

Muitas de suas obras foram adaptadas para o cinema (Boca de ouro, a fale-cida, O beijo, os sete gatinhos, toda nudez será castigada, o casamento), fazendo de Jece Valadão, na década de 1960, o grande ator rodrigueano.

Nelson Rodrigues foi o grande renovador da dramaturgia brasileira. Em suas obras, o objeto central são os dramas, os vícios e as angústias da classe média brasileira. Mas do que isso, segundo Sábato Magaldi, ele desvenda, sem nenhum véu mistificador, a própria natureza humana.

Foi Nelson Rodrigues que colocou nosso teatro em compasso com o teatro mundial, ao incorporar os processos do subconsciente e do inconsciente (os im-pulsos humanos), por exemplo, rompendo com um teatro apenas de costumes.

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Uma de suas marcas era a multiplicidade de ações. Eis aí uma de suas grandes contribuições ao nosso teatro: a renovação da forma com que uma peça deveria ser encenada.

Um de seus principais temas era o caráter transgressor do desejo, sobretudo o sexual, ainda mais numa sociedade reprimida e repressora como a burguesa.

Em seus textos, explorou o relacionamento amoroso, com destaque para o adultério. Sobre isso, ele disse certa vez ao amigo Sábato Magaldi:

desde garoto que me preocupo com a eternidade do amor. Quando sei que um vago casal se separou, sofro com isso. É quase uma dor pessoal, quase uma ruptura na minha vida. Mas as pessoas se separam porque realmente não se amavam. agora mesmo, aos 61 anos de idade, acho que a pior forma de adultério é a viúva que se casa novamente.

Um dado interessante sobre Nelson é que ele fazia questão de frisar sua verdadeira vocação: o romance. Mas, por uma necessidade financeira, escreveu sua primeira peça teatral. O curioso é que, antes de escrevê-la, havia lido apenas uma única peça – Maria Cachucha, de Joracy Camargo; já os romances, devorava-os desde os tempos de menino.

Seja como for, teatrólogo, romancista, contista, cronista, Nelson Rodrigues está cada vez mais presente na vida dos leitores.

Hoje, sem dúvida, é o dramaturgo brasileiro mais representado em nossos palcos.

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4. a oBRa

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Vestido de noiva teve o tipo de sucesso que cretiniza um autor. Parti para Álbum de Família, que é um anti-Vestido de noiva. o teatro é mesmo dilacerante, um abcesso. teatro não tem que ser bombom com licor.

Rodrigues

vestido de noiva é a peça teatral que inaugurou o Modernismo no teatro brasileiro; foi encenada, pela primeira vez, por um grupo amador denominado os comediantes, em 28 de dezembro de 1943, no Rio de Janeiro.

O enredo se passa em três atos, nos quais há três planos que se misturam, numa clara influência da obra psicanalítica de Freud. Evidencia-se a tentativa de exteriorizar o que se passa no subconsciente da personagem Alaíde.

atenção – Esse tipo de encenação era uma novidade que rompia com a regra clássica de teatro, estabelecida por Aristóteles, segundo a qual deve haver a unidade de ação em um só tempo e em um só espaço, ou seja, a chamada regra das três unidades.

A ação desenvolve-se de forma fragmentada e psicológica. Há um entrelaça-mento constante entre os três planos propostos pelo dramaturgo (realidade, aluci-nação e memória). Por uma questão didática, eles serão descritos separadamente.

O leitor-espectador pode acompanhar o que se passa nos delírios de Alaíde, já que o palco é dividido em três partes que correspondem a cada um dos planos de ação.

Essa fragmentação resulta do próprio estado da personagem Alaíde, de quem se procura revelar a personalidade. É como se ela estivesse atrás de sua própria identidade ou de seus desejos profundos, e esse processo a leva à fragmentação.

enRedoAlaíde morou em uma casa que fora de uma prostituta de luxo no ano de

1905, chamada Madame Clessi. Essa mesma mulher havia sido assassinada por um jovem namorado.

Alaíde, ao saber que a mãe iria queimar as coisas que estavam no sótão, vai até lá e encontra os pertences da prostituta; roupas, ligas, espartilho, um diário etc. E é através desse diário que Alaíde toma conhecimento da existência de Madame Clessi. Fascinada com a sua personalidade de mulher independen-te, Alaíde procura se aprofundar através de recortes de jornais que noticiam a morte da “cocote”.

Alaíde é atropelada na Glória, tendo o motorista fugido do local. É levada, ainda com vida, para o hospital (plano da realidade).

No plano da alucinação, Alaíde sai à procura de Madame Clessi. E será essa a pessoa – “uma espécie de psicanalista” – que a ajudará a reconstituir os fatos (embaralhados) de seu passado recente.

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Na verdade, Madame Clessi tem a função de estimular Alaíde a se recor-dar de tudo (plano de memória). E isso vai acontecendo aos poucos.

Ela começa por se lembrar de Pedro, seu marido. Depois, uma mulher com um véu tampando o rosto. As duas, Alaíde e a mulher de véu, travarão um intenso diálogo estimulado por Madame Clessi.

A mulher do véu acaba revelando à Alaíde que Pedro tinha sido seu namorado e que ela, Alaíde, o havia “roubado” dela.

Enquanto isso, três pessoas, no plano da alucinação, velam um corpo invisível.

Mais tarde, Alaíde fica sabendo que a mulher de véu era sua irmã Lú-cia. Madame Clessi fica sabendo também que o corpo que velavam era o seu próprio corpo.

Alaíde desconfia de que Pedro e Lúcia estavam tramando a sua morte. Ela, então, diz que, mesmo morta, caso Lúcia se casasse com Pedro, não a deixaria mais em paz.

No plano da realidade, os médicos atestam a morte de Alaíde. Pedro aproxima-se de Lúcia, sendo repelido por ela. Motivo: Lúcia havia jurado, junto ao corpo de Alaíde, nunca mais se envolver com Pedro.

Lúcia, perturbada, começa a sentir a presença da irmã morta. Para descan-sar, Lúcia faz uma viagem. Na volta, prepara-se para casar com Pedro, quebrando o juramento feito à irmã. Enquanto se preparava, vestida de noiva, Lúcia pede para sua mãe não deixar que Pedro a veja antes do casamento. Pronta, Lúcia estende o braço, pedindo o buquê. O fantasma de Alaíde aproxima-se, numa atitude de quem vai lhe entregar o buquê. Tudo leva a crer que Alaíde não cum-prirá o seu juramento e aceitará a decisão de Lúcia de se casar com Pedro.

seGUe a desCRição dos tRês planos eM sepaRado.

o plano da RealidadeNesse plano, o ruído do atropelamento e as sirenes das ambulâncias

aparecem constantemente como que lembrando o ocorrido. Alaíde, moça da sociedade carioca, casada com um homem rico, é atropelada por um automó-vel no largo da Glória. O motorista foge sem que anotem o número da placa. Rapidamente transforma-se em notícia avidamente disputada por jornalistas indiferentes a seu sofrimento.

A vítima é levada para o hospital, onde é submetida a uma intervenção cirúrgica por quatro médicos frios e burocráticos. Ela morre e Lúcia, sua irmã, chora. Durante o velório, Lúcia e Pedro, marido de Alaíde, discutem. Revela-se o romance entre os dois.

Lúcia havia afirmado que só deixaria Pedro tocá-la quando estivessem casados. Os dois chegaram a planejar a morte de Alaíde.

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Alaíde roubara Pedro de Lúcia, mas esta reconquistou o antigo namorado.Alaíde se casou, mas ficara perturbada com a revelação da irmã, no dia do casa-mento, de que haveria um suposto romance entre ela e Pedro.

Com a morte de Alaíde, a irmã sente remorsos (chegara a ameaçar Alaíde de morte) e chega a suspeitar de que Pedro tivesse planejado o atropelamento. Os dois acusam-se pela morte de Alaíde. De fato, haviam combinado o crime. Veja essa cena:

Lúcia (com desespero) – Foi você quem botou isso na minha cabeça – que ela devia morrer!

Pedro (com cinismo cruel) – então não devia?Lúcia (desesperada) – você é um miserável! nem ao menos espera que o corpo

saia! Com o corpo, ali, a dois passos. (aponta para a direção do que deve ser a sala contígua) você dizendo isso!

Pedro (insinuando) – Quem é o culpado?Lúcia (espantada) – eu talvez!Pedro (enérgico) – você, sim!Lúcia (espantada) – tem coragem...Pedro – tenho. (com veemência) Quem foi que disse: “você só toca em mim,

casando!”. Quem foi?Lúcia – Fui eu, mas isso não quer dizer nada!Pedro (categórico) – Quer dizer tudo! tudo! Foi você quem me deu a ideia do

“crime”! você!Lúcia (com medo) – você é tão ruim, tão cínico, que me acusa!Pedro (com veemência, mas baixo) – ou você ou ela tinha que desaparecer.

Preferi que fosse ela.Lúcia (com angústia) – essa conversa quase diante do caixão!Pedro (sempre baixo) – não estudamos o “crime” em todos os detalhes? você

nunca protestou! você é minha cúmplice.Lúcia (alheando-se, espantada) – Mandaram tantas flores!Pedro (insistente) – agora você se acovarda porque o corpo ainda está aqui!

Lúcia parece enlouquecer, pois ouve a voz da irmã morta (remorso?). Por conselho da mãe, Lúcia retira-se para uma temporada de descanso na fazenda. Ao voltar, prepara-se para casar com Pedro. As famílias aceitam o casamento como algo absolutamente natural.

No final do espetáculo, tocam simultaneamente a marcha fúnebre e a mar-cha nupcial (mistura entre amor e morte), e Alaíde entrega um buquê para Lúcia, momento em que os planos da alucinação e da realidade se cruzam.

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o plano da alUCinação (os desejos reprimidos revelam-se)É consequência dos momentos que se sucedem ao atropelamento da per-

sonagem principal e antecedem sua morte, pois, a partir desta, a personagem junta-se a Clessi, transformando-se num fantasma lírico.

É como se a mente de Alaíde estivesse se apagando, mas antes corporifica as personagens que povoam sua cabeça e seus desejos.

Através da alucinação, apresentam-se todos os delírios e as divagações da personagem, quando o seu subconsciente traz de volta Clessi, uma prostituta, e mulher admirada por Alaíde. (desejos reprimidos?). A identificação com a prostituta parece aliviar Alaíde da frustração de seus sonhos em decorrência do casamento infeliz.Além disso, ela parece buscar algo que rompa com o cotidiano burguês a cujas regras se submetia.

Alaíde sabia tudo sobre Clessi, já que sua família morara na casa que tinha sido da prostituta e em cujo sótão a protagonista encontrou um diário sobre ela. O diário cativante fascinou Alaíde, que chegou até mesmo a ir à biblioteca bus-car maiores informações em jornais antigos sobre aquela personagem cativante, assassinada pelo próprio namorado.

A protagonista, que vivia um casamento marcado pelas convenções sociais, interessou-se por aquela mulher que simbolizava uma liberdade atraente. Neste plano, os pensamentos e as falas misturam-se, às vezes, de forma absolutamente incoerente, predominando o sem-sentido (nonsense).

Os fatos da vida de Clessi embaralham-se aos delírios de Alaíde. Clessi vai ajudar Alaíde a se lembrar do dia de seu casamento com Pedro. O papel da prostituta é muito parecido com a de um psicólogo que encaminha o paciente ao encontro de suas lembranças. Nessas lembranças, surge a mulher do véu, a quem Alaíde não reconhece (sentimento de culpa, resistência inconsciente, remorso?), mas com quem discute enquanto se vestia para o casamento.

Clessi – Ela só apareceu depois! Você sozinha no quarto, sem ninguém, Alaíde? Uma noiva sempre tem gente perto. o quê? você pode não se lembrar, mas lá devia ter alguém, sem ser sua mãe! Lembre-se.

Clessi insiste em obter mais informações, forçando Alaíde a tentar ver o rosto dessa mulher, que será revelado mais tarde: é sua irmã, Lúcia, que guardara todo o seu ressentimento para se vingar no dia do casamento da irmã.

É nesse plano também que Alaíde será acusada de ter assassinado o ma-rido. Mas isso não se confirma no plano da realidade. Além disso, Clessi vai ao seu próprio velório.

o plano da MeMÓRia (resgate do passado)Plano ligado às lembranças de Alaíde, que, tendo sofrido o acidente e

estando em estado de choque, faz uma espécie de flashback (volta ao passado) para trazer, à cena, fatos importantes que antecederam o momento fatídico do

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atropelamento. Nesse eterno retorno às lembranças, que pareciam perdidas, uma vez que a personagem parece não se lembrar delas, Alaíde recorda o fato de ter discutido com a irmã, nos momentos que antecederam o casamento. Também neste plano, temos a reconstituição de algumas partes do namoro de Clessi com o jovem estudante, pois, em alguns instantes, a memória de Alaíde mistura-se com a da prostituta, com quem a personagem se identifica (alter ego). O namo-rado de Clessi quis fazer um pacto de sangue com ela, para morrerem juntos, mas ela não quis. Clessi, em certo momento, tem de enfrentar o preconceito da mãe do rapaz.

naRRadoRO gênero dramático (o teatro) não apresenta um narrador tradicional. As

ações e falas acontecem diretamente. O autor faz pequenas intervenções denomi-nadas rubricas, com as quais dá dicas para a montagem da peça e para a atuação dos atores. Observe as rubricas, em parênteses, no fragmento abaixo:

Mulher (gritando) – Quem fala?Redator do DIÁRIO (comendo sanduíche) – O DIÁRIOMulher (esganiçada) – Aqui é uma leitora.Redator do DIÁRIO – Muito bem.Mulher – Eu moro num apartamento, na Glória! Vi um desastre horrível!Redator do DIÁRIO – Uma mulher atropelada.Mulher – A culpa foi do chofer. Eles passam por aqui, o senhor não imagina!

Então, quem tem criança!...Redator do DIÁRIO – Claro!(...)(Trevas. Luz no plano da alucinação. Alaíde e Clessi no mesmo lugar. Mas no

chão, deitado, está realmente um homem – o mesmo de sempre. Roupa diferente.)

Alerta-se para o uso especialíssimo do microfone nesse texto, que permite, em vários momentos, que as vozes de personagens surjam como uma espécie de consciência ou de elo entre os planos. A linguagem da obra não apresenta grandes erudições.

espaçoO palco é dividido em três partes, que são iluminadas de acordo com o de-

senrolar do enredo. Algumas vezes, há dois planos iluminados simultaneamente. Alguns cenários apresentados no palco, ou apenas sugeridos, são o velório de Clessi e de Alaíde, o local em que Alaíde se prepara para o casamento e a casa de prostituição de Clessi.

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Leia o comentário feito por Manuel Bandeira:

sem dúvida o teatro desse estreante desnorteia bastante, porque nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade física. nelson Rodrigues é poeta.

teMpoO tempo está mais voltado para o plano psicológico que propriamente cro-

nológico. A mente de Alaíde está desagregada. A única data estabelecida pertence ao passado, reconstruindo o período da morte da personagem Clessi no ano de 1905. O tempo da ação é, portanto, posterior a isso, na década de 1940. Não há linearidade cronológica, uma marca do caráter modernista da obra.

peRsonaGensSuas personagens chegam a ser consideradas caricaturas, já que são seres

que apresentam algum defeito ou virtude exacerbada.

1. alaídePersonagem principal, é casada com Pedro e irmã de Lúcia.É interessante observar que Alaíde vê Pedro em vários homens:

Aquele tem a cara de meu noivo. Os olhos, o nariz do meu noivo – estão-me per-seguindo. todo o mundo tem a cara dele.

Essa ideia de que “todo homem se parece” é reforçada pela cena em que Clessi está sendo velada e um homem que estava no velório aproveita o momento para investir numa mulher e tentar obter algum favor sexual. O próprio autor sugere que vários papéis masculinos sejam representados pelo mesmo ator. Veja esta rubrica do primeiro ato.

O mesmo cavalheiro aparece em toda a peça, com roupas e personalidades diferentes.

2. pedro tem um caso com Lúcia, sua cunhada e ex-namorada; é cínico, frio e calculista.

3. lúcia, irmã de Alaíde, é uma mulher vingativa e rancorosa; sente remorsos após a morte da irmã.

4. Madame Clessi, prostituta morta em 1905, mulher bela e misteriosa, espécie de alter ego de alaíde e também sua “terapeuta”, já que a leva a enfrentar seus fantasmas e a encarar a Mulher de Véu (Lúcia). Será assassinada por seu amante adolescente. Há quase uma relação incestuosa entre Clessi e seu amante adoles-cente (ela dá a ele uma mesada, por exemplo). Além disso, esse rapaz se parecia com o filho de Clessi, que morrera aos 14 anos. Observe o trecho abaixo:

Clessi – Está bom. Que menino! (noutro tom) Agora vá, meu filho!

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5. Gastão e d. lígia, pais de Alaíde e Lúcia6. d. laura, mãe de Pedro7. Mulher de Véu, figura misteriosa que depois se revelará ser Lúcia8. namorado de Clessi, adolescente, matará Clessi e tem o mesmo rosto de

Pedro.

GêneRoTrata-se de obra teatral, não só pela estrutura (atos e cenas), mas também

pelos recursos usados (cenários, luzes, palco etc.) e pelo processo de presentifi-cação do passado.

oUtRas ConsideRações

• Alaíde reconstrói partes dos acontecimentos em cima de ... e o vento levou.• O triângulo amoroso que aparece em vestido de noiva é apresentado em

outras peças de Nelson Rodrigues, tornando-se, dessa forma, uma “marca registrada” do autor.

• Segundo Carmine Martuscello, em sua obra o teatro de nelson Rodrigues – Uma leitura psicanalística: a própria alaíde revela que está sempre confundin-do os namorados, achando que Pedro e o amante de Madame Clessi têm a mesma cara, o que não só aumenta a identificação entre as duas como transforma Pedro num filho – ou num pai, o que dá no mesmo, num processo similar ao que faz a prostituta com seu namorado.

• O grotesco, ou seja, aquilo que suscita riso ou escárnio, é um recurso muito usado pelo autor:

Alaíde (sardônica) – Por que você não fez a mesma coisa? A palavra “sardônica” possui esse significado.• Segundo Sábato Magaldi, para o aniquilamento da personalidade de Ala-

íde, representado pelo atrito com Lúcia, o acidente equivale a um tiro de misericórdia e de libertação. E mais adiante comenta: “o certo é que a estreia de Vestido de noiva fez com que o teatro brasileiro perdesse o complexo de inferioridade.”

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5. exeRCíCios

1. pUC-spA respeito da obra vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, é incorreto afirmar que:a) apresenta um enredo que se apoia na ação de

uma moça que roubou o namorado da irmã.b) tem como verdadeiro núcleo e ponto de apoio

de construção do texto o interesse de Alaíde por Madame Clessi, despertado pelos porme-nores do diário e pelas fotografias encontradas no sótão.

c) constrói-se a partir de três planos diferentes, dos quais o da alucinação se caracteriza como espaço de encontro de Alaíde e Madame Clessi.

d) desenvolve-se na faixa de tempo explicitada no plano da realidade, que vai do momento do acidente à morte de Alaíde.

e) está centrada na figura da mulher de Véu, antagonista e móvel da ação e que provoca o desfecho trágico do assassinato de Pedro.

02. pUC-spDe vestido de noiva, peça de teatro de Nelson Rodrigues, considerando o tema desenvolvido, não se pode dizer que aborda:a) o passado e o destino de Alaíde por meio de suas lembranças desregradas.b) o delírio de Alaíde caracterizado pela desordem da memória e confusão entre

realidade e sonho.c) o mistério da imaginação e da crise subconsciente identificada na superposição

das figuras de Alaíde e de Madame Clessi.d) o embate entre Alaíde, com suas obsessões, e Lúcia, a mulher de Véu, anta-

gonista e um dos móveis da ação.e) a vida passada de Alaíde revelada no casual achado de um velho diário e de

um maço de fotografias.

3. Leia o seguinte trecho da obra vestido de noiva:

3ª mulher (com voz lenta e velada) – Madame Clessi morreu! (brusca e violenta) agora, saia!

Alaíde (recuando) – É mentira. Madame Clessi não morreu. (olhando para as mulheres) Que é que estão me olhando?(noutro tom) não adianta, porque eu não acredito!...

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2º mulher – Morreu sim. Foi enterrada de branco. Eu vi.Alaíde – Mas ela não podia ser enterrada de branco!Não pode ser.

Responda:a) O que são os trechos entre parênteses no excerto anterior?b) Qual o motivo da fixação de Alaíde por Clessi?c) Por que motivo Clessi não poderia ser enterrada de branco? Essa posição de

Alaíde exterioriza quais valores da protagonista?

4.Leia atentamente o excerto do plano da realidade presente no último ato da obra vestido de noiva.

Mãe – Minha filha!Lúcia (espantada) – Está ouvindo, mamãe? Ela outra vez! Ela voltou – não disse?Mãe – Não é nada, minha filha. Ilusão sua.Lúcia (atônita) – Mas eu ouço a voz dela. Direitinho! Falando!Mãe – Você parece criança, minha filha! Lúcia (com ar estranho) – Não foi nada. Bobagem.Alaíde (microfone) – Você sempre desejou a minha morte. Sempre-sempre.

a) Dado que Alaíde já estava morta nessa cena, o que pode estar acontecendo a Lúcia?

b) Qual o recurso utilizado pelo dramaturgo para introduzir as opiniões e refle-xões da protagonista morta?

5.Responda às questões a seguir a partir da leitura do trecho apresentado e da peça vestido de noiva. Estamos no plano da alucinação.

Homem (para Alaíde, sinistro) – Assassina!Clessi (espantada) – O quê?Homem (indicando) – Ela!Assassina!Clessi (para Alaíde) – Você?Alaíde (nervosíssima) – Não me pergunte nada. Não sei. Não me lembro. (num

lamento) se, ao menos, soubesse quem é Lúcia!Homem (angustiado) – Não tem ninguém aqui? Quero chope!Alaíde (em pânico) – Ele quer me prender!Não deixe!Clessi (assombrada) – Você... Matou? Você?Alaíde (desesperada) – Matei, sim. Matei, pronto!

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Homem (queixoso) – Meu Deus! Não tem ninguém para me servir. (com an-gústia) ninguém! (olha para Alaíde) assassina!

Alaíde (patética) – Matei. Matei meu noivo.Homem – Ela disse – “matei meu noivo”. Foi. Eu assisti.Alaíde – Não assistiu nada!Não tinha ninguém. Lá não tinha ninguém. E não

foi meu noivo. Foi meu marido!Clessi (frívola) – Marido ou noivo, tanto faz.Alaíde (histérica, para o homem) – Agora me leve, me prenda – sou uma assassina.Homem – Não prendo. Não tenho nada com isso! (angustiado) não há ninguém

para me servir? (melancólico) ninguém.Clessi – O senhor tem a cara do marido de Alaíde?Alaíde – Tem sim. Ele vai dizer que não, mas tem.Homem (grave) tenho...

a) Sabemos, de fato, que Alaíde não matou seu marido. O que estaria ocorrendo nessa cena?

b) O nonsense em teatro é uma abordagem teatral em que uma cena ou elemento cênico aparentemente não tem a menor conexão com outro. Indique o nonsense dessa cena.

c) “O senhor tem a cara do marido de Alaíde?” – esse tipo de afirmação é único nessa obra? O que significa simbolicamente?

6.Responda às questões propostas a partir do excerto abaixo, retirado do plano da alucinação:

Clessi – Você parece maluca!Alaíde (ao lado de Clessi) – Eu?Clessi – Você está fazendo uma confusão! Casamento com enterro! ... Moda

antiga com moda moderna! ninguém usa mais aquele chapéu de plumas, nem aquele colarinho!

Alaíde (agoniada) – Tudo está tão embaralhado na minha memória! Misturo coisa que aconteceu e coisa que não aconteceu. Passado com o presente. (num lamento) É uma misturada!

Clessi (impaciente) – Você fala tanto nessa mulher que morreu! Ela é o que, afinal?

a) Quem é essa mulher que morreu?b) Por que há um descompasso entre a roupa da morta e a moda moderna?c) A confusão “casamento – enterro” também aparece no final da obra simboli-

camente. Como isso ocorre?

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vestido de noivaA

ol-

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7.Leia esse diálogo entre Clessi e seu namorado e a seguir responda ao que se pede.

Namorado (sentando-se) – (baixo) sabe o que é que a gente podia fazer?Clessi (acariciando-o nos cabelos) – O quê?Namorado – Adivinhe.Clessi – Diga.Namorado (baixo) Morrer juntos. (face a face, os dois) vamos?Clessi (sonhadora) – Você se parece tanto com o meu filho que morreu! Ele tinha

14 anos, mas tão desenvolvido!Namorado (súplice) – Quer?Clessi (meiga) – Olhe assim. (pausa, contemplação) os olhos dele! direitinho!

a) Apesar de essa cena estar no plano da memória, ela apresenta o que se pas-sou com Clessi, e não com Alaíde. Comente tal fato utilizando o conceito de alter ego.

b) Relacione o excerto acima com o conceito psicanalítico conhecido como com-plexo de Édipo.

8.Leia o excerto abaixo que se encontra no plano da memória e que apresenta um diálogo entre Clessi e a mãe de seu namorado.

Clessi (choramingando) – O olhar daquele homem despe a gente!Mãe (com absoluta falta de compostura) – Você exagera, Scarlett!Clessi – Rett é indigno de entrar numa casa de família!Mãe (cruzando as pernas; incrível falta de modos) – Em compensação, Ashley

é espiritual demais. demais. assim também não gosto.Clessi (chorando, despeitada) – Ashley pediu a mão de Melânie! Vai-se casar

com Melânie!Mãe (saliente) – Se eu fosse você, preferia Rett (noutro tom) Cem vezes melhor

que o outro!Clessi (chorosa) – Eu não acho!Mãe (sensual e descritiva) Mas é, filha! Você viu como ele é forte! Assim! Forte

mesmo!

No trecho acima, as personagens de vestido de noiva subitamente se põem a recitar diálogos do filme e o vento levou. No contexto dessa obra de Nelson Rodrigues, esse recurso de composição configura-se como:a) crítica à internacionalização da cultura, reivindicando o privilégio dos temas

nacionais.b) sátira do melodrama, o que dá dimensão autocrítica à peça.c) sátira do cinema, indicando a superioridade estética do teatro.d) intertextualidade, visando a indicar o caráter universal das paixões humanas.e) metalinguagem, visando a revelar o caráter ficcional da construção dramática.

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nelson Falcão Rodrigues

GaBaRito1. e 2. e3. a) São as chamadas rubricas, ou seja, indica-

ções do autor para a montagem da peça.b) Clessi representaria a ruptura com os valores

tradicionais, o desejo livre do qual Alaíde não podia usufruir.

c) O branco é símbolo, entre outras coisas, de pureza em nossa sociedade. Alaíde demons-tra ser alguém presa a convenções sociais nesse trecho.

4.a) Lúcia provavelmente se sente culpada pelo

que ocorreu à irmã, e o fantasma de Alaíde a atormenta como numa espécie de remorso.

b) O recurso utilizado é o do microfone: uma voz em off apresenta para o público o que se passa na cabeça de Lúcia nessa cena.

5.a) Alaíde projeta, exterioriza um desejo seu:

ela não o matou, mas bem que gostaria de tê-lo feito.

b) O fato de no meio de uma revelação de um suposto crime alguém ficar preocupado com uma bebida.

c) Não. Em vários momentos, o rosto de Pedro é visto em outros personagens masculinos. É como se Pedro fosse uma figura simbólica representativa da postura masculina, ou seja, no fundo “todos os homens seriam iguais”.

6.a) A morta é a própria Clessi, que é levada

através da conversa com Alaíde a encarar a própria morte.

b) Clessi era uma espécie de prostituta de luxo do começo do século XX (1905), e o enredo da peça deve se passar nos anos 40.

c) Quando no final, uma rubrica indica que de-vem ser tocadas simultaneamente a marcha nupcial e a marcha fúnebre.

7.a) Alaíde se projeta muitas vezes em Clessi,

ocorrendo uma sobreposição entre sua vida e a da prostituta do começo do século.

b) O amante adolescente de Clessi a levava a lembrar-se de seu filho morto aos 14 anos. Há quase uma relação incestuosa, já que ela vê o filho no amante.

8. b