análise de obras literárias -...

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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO FERNANDO ANTÔNIO NOGUEIRA PESSOA Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAspoemas completos de

alberto caeiro

fernAndo AntônionogueirA pessoA

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

www.sistemacoc.com.br

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sumário

1. ConteXto soCiAl e HistÓriCo .................................................... 7

2. estilo literário dA époCA ........................................................... 9

3. o Autor ................................................................................................. 12

4. A obrA .................................................................................................... 14

5. eXerCíCios ........................................................................................... 38

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poemas completos de alberto caeiro

fernAndo AntônionogueirA pessoA

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1. CONTEXTO sOCial E HisTÓRiCO

o ultimato da inglaterra a portugal, ocorrido em 1890 (dois anos após o nas-cimento do poeta Fernando Pessoa), e a crise financeira de 1890-1891 agravaram o descrédito da monarquia e deram ao movimento republicano um caráter de revolta patriótica, numa tentativa de salvar o país da crise em que se encontrava. O fracasso da primeira revolta republicana não impediu o enfraquecimento dos dois principais partidos políticos: o Regenerador e o Progressista. A ditadura de João Franco teve como consequência uma nova agitação em 1907-1908, que culminou no assassinato do rei D. Carlos e do príncipe real e, em 5 de outubro de 1910, o regime monárquico foi derrubado.

Em 1914, a luta pela hegemonia econômica e política entre as grandes potências provocou um conflito de proporções mundiais – a Primeira Guerra mundial (1914-1918).

o tratado de Versalhes, em 1919, no ano seguinte ao término da primeira guerra, reorganizou o mundo, e em particular a europa, de acordo com os prin-cípios da democracia liberal, favorecendo as nações vitoriosas.

A Revolução Russa de 1917 dividiu o mundo em dois blocos ideológicos: o comunismo e o capitalismo.

Os anos da Primeira Guerra Mundial foram muito difíceis para Portugal, porque as suas colônias foram cobiçadas pelas grandes nações. A instabilidade interna, agravada por greves, o surgimento da guerra e a disputa pelas colônias fizeram com que surgisse em Portugal um forte sentimento nacionalista, inspi-rado sobretudo no passado de glórias das conquistas marítimas e no mito do sebastianismo. Todos esses fatos influenciaram o surgimento do Modernismo português, em 1915, com a publicação da revista orpheu.

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Fernando antônio Nogueira pessoa

O desequilíbrio criado pela guerra fez surgir, em Portugal, tendências autoritárias. A ditadura de Sidônio Pais, em 1918, foi apenas o prenúncio de um movimento militar que, em 1926, levou Antônio de Oliveira Salazar ao poder, iniciando uma ditadura de direita que se estendeu até 25 de abril de 1974, quando ocorreu a Revolução dos Cravos.

PORTugal NO séCulO XXfatos históricos

• 1910 – Proclamação da República• 1910-1926 – Primeira República Domínio do Partido Democrático, com predominância centro- -esquerda;        Instabilidade político-social; Participação do país na Primeira Guerra Mundial• 1926 – Golpe de Estado• 1933-1974 – Ditadura militar salazarista• 1974 – Revolução dos Cravos (fim do salazarismo)

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2. EsTilO liTERáRiO da éPOCa

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Fernando antônio Nogueira pessoa

O MOdERNisMO PORTuguêsEm 1910, foi proclamada a República em Portugal. Teófilo Braga, um

intelectual amigo de Eça de Queirós e de Antero de Quental (este, um dos res-ponsáveis pela chamada Questão Coimbrã, marco do Realismo português), foi eleito o primeiro presidente. escritores e intelectuais foram nomeados para cargos administrativos, com o intuito de revigorar a cultura portuguesa.

Os novos ocupantes dos cargos administrativos tinham como meta traçar uma diretriz cultural, moral e filosófica para o país, condizente com o novo plano de desenvolvimento econômico. A diretriz encontrada foi o nacionalismo e, sobretudo, a nostalgia do passado glorioso da pátria. O nome da sociedade firmada e formada por esses intelectuais é auto-explicativo: Renascença Portu-guesa. Renascer é nascer de novo, e o intuito era o de fazer nascer novamente o brilhantismo pretérito da cultura portuguesa. Ou ainda melhor: “Renascer é regressar às fontes originais da vida, mas para criar uma nova vida. [...]A Sau-dade e Viriato, Afonso Henriques e Camões, desmaterializados, reduzidos a um sentimento, postos em alma estreme. A saudade é o próprio sangue espiritual da Raça: o seu estigma divino, o seu perfil eterno”, no dizer do próprio Teixeira de Pascoais, o líder desse movimento.

A Renascença Portuguesa tinha uma revista publicada mensalmente, intitulada a Águia, cujo primeiro número saiu em janeiro de 1912, contendo textos de importantes escritores, como Teixeira de Pascoais, Guerra Junqueiro e fernando pessoa.

Inicialmente, Fernando Pessoa aderiu ao saudosismo do movimento, ao ideário do nacionalismo místico da Renascença Portuguesa. Aliás, em um dos ar-tigos que publicou na revista a Águia, fernando pessoa profetizou o surgimento, em Portugal, de um supra-Camões, “um ressurgimento assombroso, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido”.

Entretanto, o mesmo Fernando Pessoa que apoiou os ideais da Renascença Portuguesa acabou rompendo com seus integrantes e, em abril de 1915, em com-panhia de Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro, lançou a revista orpheu. A revista estava em sintonia com as novas tendências estéticas, como o Cubismo francês e o Futurismo italiano, numa postura nitidamente contrária ao saudosismo de a Águia. Aliás, toda poesia do heterônimo Alberto Caeiro é uma forma de negar o mistério e o transcendentalismo da poesia de Teixeira de Pascoais.

A revista orpheu teve vida breve; apenas dois números circularam. O grande público ainda não estava preparado para as propostas estéticas dos seus integrantes. As propostas do orfismo requeriam mudança de hábitos mentais, disposição para aceitar temas complexos e sintonia com os movimentos da vanguarda européia. Só muitos anos depois é que foi amplamente reconhecida a importância da geração de orpheu, principalmente de fernando pessoa, que teve sua obra publicada dez anos após sua morte.

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A revista presença, fundada em 1927, marcou o segundo momento do mo-dernismo português. O grande mérito do grupo responsável por essa publicação foi divulgar as conquistas da primeira fase do Modernismo. Embora o contexto político em que surgiu tenha sido extremamente complexo (momento em que a extrema-direita ocupava o poder), o terreno para a divulgação das novas ten-dências literárias já estava mais acessível ao público mediano.

Descontentes com os ideais republicanos, os poetas e intelectuais que formavam o grupo Presença desejavam uma literatura desvinculada de qual-quer pensamento político, social e religioso. Desejavam eliminar da literatura portuguesa características que lhe eram caras, como o historicismo e o subjeti-vismo romântico. Segundo José Régio, um dos principais integrantes do grupo, a literatura não deve procurar compromissos com a realidade externa, mas com aquela que “provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística”. Por parte “mais virgem”deve-se entender o inconsciente, as sensações individuais e a intuição. O artista deve se comprometer com o seu universo interior e, de forma objetiva, procurar traduzir esse universo.

Os autores mais representativos desse grupo são: José Régio, Miguel Torga, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e Branquinho da Fonseca.

Modernismo em Portugal

• 1915 – orpheu• 1927 – presença

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3. O auTOR

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888, e lá morreu em 1935, de cirrose hepática, com apenas 47 anos. Viveu dez anos na África do Sul, onde seu padrasto era cônsul, e ali fez seus estudos primários e secundários, passando a dominar a língua inglesa. Voltou definitivamente a Portugal em 1905, matriculando-se no curso superior de Letras, que cedo abandonou.

A vida pessoal do poeta está indissociavelmente ligada à literatura, sendo que, à luz das teorias literárias atuais, as declarações dele em cartas aos amigos e críticos não devem ser tomadas, necessariamente, como verdadeiras. Elas seriam partes do processo criativo de um projeto que o poeta não chegou a realizar e que consistia na reunião de toda a sua obra.

O fenômeno da heteronímia é o que mais exerce fascínio na poesia de Fernando Pessoa. A heteronímia consiste basicamente no desdobramento do eu poético em vários outros eus, diferentes entre si, tendo cada um uma bio-grafia e uma forma de pensar bastante singular. Os heterônimos são como personagens-escritores, como se o autor criasse personagens e lhes atribuísse uma biografia e uma ideologia. Entretanto, o próprio Fernando Pessoa ortô-nimo, isto é, quando o poeta assina os poemas com seu próprio nome, seria um personagem criado, uma invenção da sua consciência. Em outras palavras,

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Fernando Pessoa, ortônimo, e seus heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Coelho Pacheco (os heterônimos mais conhecidos, pois existem outros) são todos componentes de um mesmo ser que se multiplica para querer sentir e entender a vida em toda a sua complexidade. É como se disséssemos que apenas uma vida é pouco para vivenciar tudo o que há no mundo e, então, resolvêssemos nos multiplicar para viver todas as coisas que a vida real nos impede.

Embora tenha tido certo reconhecimento em vida, sobretudo dos amigos mais próximos, somente após a morte Fernando Pessoa tornou-se uma referên-cia na literatura portuguesa do século XX, sendo, inclusive, considerado um dos maiores poetas de todos os tempos. Fernando Pessoa é um daqueles gênios que conseguem captar certas tendências quando estas ainda estão principiando. Sua obra é uma resposta à posteridade contra o veredicto dos seus contemporâ-neos que não o souberam compreender. Em 31 de dezembro de 1934, seu livro mensagem ficou em segundo lugar no concurso literário instituído pelo Secreta-riado da propaganda nacional.

O heterônimo Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, em 16 de abril de 1889. Órfão de pai e de mãe, só teve instrução primária e viveu quase toda a sua vida no campo, sob a proteção de uma tia. Morreu tuberculoso, em 1915.

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4. a OBRa

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Segundo o próprio Fernando Pessoa, Alberto Caeiro surgiu no dia 8 de março de 1914. Fernando Pessoa teria se colocado em pé, diante de uma cômoda, e composto de uma só vez cerca de trinta dos quarenta e nove poemas de o guar-dador de rebanhos. Percebendo depois que o estilo dos novos textos era diferente do que vinha escrevendo, o poeta deu origem a Alberto Caeiro, concedendo-lhe um corpo, um modo de ser e uma biografia.

em carta a Adolfo Casais monteiro, datada de 13 de janeiro de 1935, o poeta explica como nasceu o heterônimo de o guardador de rebanhos:

...........................................................................................................................................

aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de campos), mas num estilo de meia regularidade, e abandonei o caso. esboçara-se, con-tudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (tinha nascido, sem que eu soubesse, o ricardo reis).

ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao sá-carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. abri com o título O guardador de rebanhos. e o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde de logo o nome de alberto caeiro. desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. e tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei outro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva oblíqua, de Fernando pessoa. imediatamente e totalmente. Foi o regresso de Fernando pessoa alberto caeiro a Fernando pessoa ele só. ou melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

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Os Poemas completos de Alberto Caeiro contêm:• o guardador de rebanhos (49 poemas)• o pastor amoroso (6 poemas)• poemas inconjuntos (70 poemas)

Principais características estilísticas de alberto Caeiro• Versos livres e sem rima• Coloquialismo

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• Estilo humilde, simples• Vocabulário simples• Repetição de palavras• Paradoxos (contradições)• Poesia próxima do andamento da prosa

Principais características temáticas de alberto Caeiro

• Antimisticismo (Para ele não há mistério: o que é é o que é.)• Panteísmo (Deus é materialização da natureza.)• Ateísmo e paganismo (O poeta crê apenas na natureza, não em Deus.)• Defesa das sensações (Somente as sensações podem levar o homem a co-

nhecer a realidade autêntica, que é a natureza.)• Negação da razão (O poeta defende o instinto e nega a cultura, o pensa-

mento e a razão.)• Propõe uma aprendizagem da desaprendizagem, isto é, o homem deve

deixar de pensar para poder sentir.• O pensamento é uma doença (o homem deve deixar de pensar e voltar

a sentir).

NOTA: existe um paradoxo (contradição) permanente na poesia de Alberto Caeiro; ele nega a cultura, o pensamento e a razão, mas para negá-los ele faz uso da escrita, da literatura, que é sempre uma atividade intelectual, racional e cultural.

O GuArdAdOr de rebAnhOsA leitura atenta dos 49 poemas de o guardador de rebanhos permite a ve-

rificação de uma pequena história por trás dos versos. No alto de um pequeno monte (outeiro) vive um pastor solitário, que passa os dias compondo versos, seja em sua casa ou nos caminhos do campo. Para que possa escrevê-los, convive intensamente com a paisagem, integrando-se a ela por meio dos cinco sentidos. Quando seus versos estão prontos, ele os envia para a humanidade da mais alta de sua casa: da mais alta janela da minha casa / com um lenço branco digo adeus / aos meus versos que partem para a humanidade. depois recolhe-se e alguém lhe traz um candeeiro que ele deixa aceso, deita-se na cama e, sem pensar em nada, deseja apenas sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.

eu nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse.

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minha alma é como um pastor, conhece o vento e o sol e anda pela mão das estações a seguir e a olhar. toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela.

mas a minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

como um ruído de chocalhos para além da curva da estrada, os meus pensamentos são contentes. só tenho pena de saber que eles são contentes, porque, se o não soubesse, em vez de serem contentes e tristes, seriam alegres e contentes.

pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho.

e se desejo às vezes por imaginar, ser cordeirinho (ou ser o rebanho todo para andar espalhado por toda a encosta a ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora.

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Quando me sento a escrever versos ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, escrevo versos num papel que está no meu pensamento, sinto um cajado nas mãos e vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, e sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende.

saúdo todos os que me lerem, tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. saúdo-os e desejo-lhes sol, e chuva, quando a chuva é precisa, e que as suas casas tenham ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta onde se sentem, lendo os meus versos. e ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural — Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças se sentavam com um baque, cansados de brincar, e limpavam o suor da testa quente com a manga do bibe riscado.

No primeiro poema, encontramos as principais características formais e temáticas do livro. Em versos livres e brancos (sem métrica e sem rima), como ocorrerá em todos os outros poemas, o poeta expõe suas ideias, que consistem basicamente na negação do pensamento e na valorização da natureza. No início do poema, o poeta diz que nunca cuidou de ovelhas, mas se sente como um pastor, porque valoriza o que está na natureza e pode ser captado pelos sentidos. Portanto, defende as sensações e nega os pensamentos, e o que pode ser captado pelos sentidos será a matéria da sua poesia.

Na sequência, explica que, quando se senta para compor seus versos ou quan-do os compõe enquanto caminha pelo campo, ele os escreve num papel que traz no seu pensamento. Na última estrofe, traça um perfil do leitor ideal: um homem simples, mas que goste de ler, a ponto de ter em casa uma cadeira ao lado da janela para o exercício da leitura. Mas este leitor não deve interpretar o texto como faria um leitor qualquer; pelo contrário, deve procurar entendê-lo como algo natural, como se fosse uma extensão da natureza, algo assim como uma árvore.

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No segundo poema, ocorre uma comparação entre o olhar do poeta e o olhar da criança. O poeta deve olhar para as coisas com o mesmo encanto com que a criança sente o mundo.

o meu olhar é nítido como um girassol. tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás... e o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, e eu sei dar por isso muito bem... sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras... sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo...

creio no mundo como num malmequer, porque o vejo. mas não penso nele porque pensar é não compreender...

o mundo não se fez para pensarmos nele (pensar é estar doente dos olhos) mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar...

A ideia central do poema é a de que o poeta deve se encantar com o mundo, sem procurar compreendê-lo. Deve procurar sentir o mundo como uma eterna novidade. Jamais deve procurar interpretá-lo racionalmente. O poeta não deve ter filosofia, deve ter sentidos. Deve amar sem pensar nas razões do amor.

O terceiro poema é uma homenagem ao poeta do período realista portu-guês Cesário Verde:

ao entardecer, debruçado pela janela, e sabendo de soslaio que há campos em frente, leio até me arderem os olhos o livro de cesário Verde.

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Que pena que tenho dele! Ele era um camponês Que andava preso em liberdade pela cidade. mas o modo como olhava para as casas, e o modo como reparava nas ruas, e a maneira como dava pelas cousas, É o de quem olha para árvores, e de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

por isso ele tinha aquela grande tristeza Que ele nunca disse bem que tinha, mas andava na cidade como quem anda no campo E triste como esmagar flores em livros e pôr plantas em jarros...

O poeta Cesário Verde rompeu com a subjetividade da poesia portuguesa; num estilo concreto e objetivo, trouxe para a poesia aspectos do cotidiano do mundo urbano e uma visão objetiva do campo. Alberto Caeiro identifica-se com Cesário Verde porque este olhava para as coisas como se cada objeto tivesse uma identidade própria. Caeiro acredita que Cesário Verde “andava pela cidade como quem anda no campo”, ou seja, observando atentamente cada objeto. Acredita também que a capacidade de observação de Cesário Verde era incompatível com as limitações do mundo urbano, e por isso afirma que ele “andava preso em liberdade pela cidade”.

o poema seguinte é um dos principais de o guardador de rebanhos:

Há metafísica bastante em não pensar em nada. o que penso eu do mundo? sei lá o que penso do mundo! se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre deus e a alma e sobre a criação do mundo?

Não sei. para mim pensar nisso é fechar os olhos e não pensar. É correr as cortinas da minha janela (mas ela não tem cortinas).

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o mistério das cousas? sei lá o que é mistério! o único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, começa a não saber o que é o sol e a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, e já não pode pensar em nada, porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. a luz do sol não sabe o que faz e por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? a de serem verdes e copadas e de terem ramos e a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, a nós, que não sabemos dar por elas. mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem?

“constituição íntima das cousas”... “sentido íntimo do Universo”... tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. É incrível que se possa pensar em cousas dessas. É como pensar em razões e fins Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

pensar no sentido íntimo das cousas É acrescentado, como pensar na saúde ou levar um copo à água das fontes.

o único sentido íntimo das cousas É elas não terem sentido íntimo nenhum. Não acredito em deus porque nunca o vi. se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela minha porta dentro dizendo-me, Aqui estou!

(isto é talvez ridículo aos ouvidos de quem, por não saber o que é olhar para as cousas, Não compreende quem fala delas com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

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Fernando antônio Nogueira pessoa

Mas se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e o luar, então acredito nele, então acredito nele a toda a hora, e a minha vida é toda uma oração e uma missa, e uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores e os montes e o luar e o sol, para que lhe chamo eu deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; porque, se ele se fez, para eu o ver, Sol e luar e flores e árvores e montes, se ele me aparece como sendo árvores e montes E luar e sol e flores, É que ele quer que eu o conheça Como árvores e montes e flores e luar e sol.

e por isso eu obedeço-lhe, (Que mais sei eu de deus que deus de si próprio?). obedeço-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e vê, E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, e amo-o sem pensar nele, e penso-o vendo e ouvindo, e ando com ele a toda a hora.

O poeta começa afirmando que pensar em nada já é um exercício metafísico e, por isso mesmo, nada pensa do mundo. para ele, o que os homens chamam metafísica é um erro, porque as coisas não possuem significados profundos ou mistérios inacessíveis aos homens. As coisas apenas são o que são. O intelecto não é a única forma de conhecimento; as sensações levam o homem ao conheci-mento verdadeiro, e o conhecimento verdadeiro vem a ser aquilo que os sentidos captam da natureza.

se deus pudesse ser captado pelos sentidos, o poeta acreditaria nele. mas, como deus é apenas um conceito criado pelo intelecto e pela cultura, o poeta nega sua existência (ateísmo), pois, se Deus é invisível, insosso, inodoro, inau-dível e intangível, ele não existe. Para Caeiro, o que não pode ser captado pelos sentidos não existe.

Os poemas de números 6 (“Pensar em Deus é desobedecer a Deus”) e o 39 (“O mistério das cousas, onde está ele?”) desenvolvem o mesmo tema. Neles, o poeta valoriza os sentidos como a única forma autêntica de conhecimento da realidade.

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O poema de número 8 é, certamente, o que mais fere a suscetibilidade dos cristãos, pois apresenta o menino Jesus como uma criança que veio para a terra porque estava cansada da monotonia do céu. Hospedado no casebre de Alberto Caeiro, o menino conta que Deus é um velho estúpido e doente, que escarra no chão e diz indecências. Conta ainda que “Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica”. Na forma humana, em companhia de Caeiro, o menino Jesus é agora uma criança alegre, realizando todas as brincadeiras típicas de crianças, sendo guiada sempre pelo amor e pela ingenuidade. A visão espontânea que a criança tem da natureza é compatível com a visão de Alberto Caeiro, que muito aprende com a simplicidade do menino. Caeiro o toma como o verdadeiro menino Jesus, negando a tradição cristã que o considera divino e, por isso mesmo, inacessível aos homens.

O poema de número 9 é uma chave para se entender com nitidez o pen-samento de Alberto Caeiro:

sou um guardador de rebanhos. o rebanho é os meus pensamentos e os meus pensamentos são todos sensações. penso com os olhos e com os ouvidos e com as mãos e os pés e com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la e comer um fruto é saber-lhe o sentido. por isso quando num dia de calor me sinto triste de gozá-lo tanto. e me deito ao comprido na erva, e fecho os olhos quentes,

sinto todo o meu corpo deitado na realidade, sei a verdade e sou feliz.

Em 14 versos livres e brancos, o poeta apresenta uma síntese do seu pen-samento. Inicialmente, afirma ser um “guardador de rebanhos” e, em seguida, informa que o rebanho são seus pensamentos e que seus pensamentos são todos sensações. Os três versos seguintes reforçam a valorização dos sentidos.

na segunda estrofe, o poeta insiste no fato de que os sentidos traduzem a realidade e, por isso, afirma que pensar uma flor é cheirá-la e compreender um fruto é comê-lo. Em seguida, diz que a felicidade lhe chega através dos sentidos; os sentidos entram em contato com a realidade sem nenhuma intermediação do intelecto, o que lhe permite conhecer a realidade e a felicidade autênticas.

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Para Alberto Caeiro, o verdadeiro conhecimento da realidade não se dá pela inteligência, mas pelos cinco sentidos. No poema anterior, o fato de ele se integrar à natureza, sentindo-a simultaneamente pelos cincos sentidos, torna-o pleno de felicidade, porque ele passa a compreender o mundo como um animal, sem nenhuma interferência do intelecto. Esta é a lição que pretende ensinar aos seus leitores: a aprendizagem da desaprendizagem. O homem deve esquecer-se de tudo o que o prende à vida cultural para que possa sentir livre e intensamente a verdade do mundo, que consiste em sentir a natureza.

O poema de número 10 contém um breve diálogo entre o pastor e um homem que passa pelo seu caminho:

“olá, guardador de rebanhos, aí à beira da estrada, Que te diz o vento que passa?”

“Que é vento, e que passa, e que já passou antes, e que passará depois. e a ti o que te diz?”

“muita cousa mais do que isso. Fala-me de muitas outras cousas. de memórias e de saudades e de cousas que nunca foram.”

“Nunca ouviste passar o vento. o vento só fala do vento. o que lhe ouviste foi mentira, e a mentira está em ti.”

O homem pergunta ao pastor o que diz o vento. Este responde que o vento apenas passa, que já passou antes e passará depois. O outro o contradiz, dizendo que o vento lhe fala de memórias, de saudades e de coisas que nunca existiram. O pastor, irritado, corrige o seu interlocutor, afirmando-lhe que o vento apenas fala do vento e que atribuir-lhe quaisquer outros significados é um engano.

O poema de número 11 pode ser entendido como manifestação do senso-rialismo (valorização dos sentidos) de Alberto Caeiro:

aquela senhora tem um piano Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que as árvores fazem...

para que é preciso ter um piano? o melhor é ter ouvidos e amar a Natureza.

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Ao comparar o som do piano ao som das águas do rio e das árvores, o poeta manifesta sua predileção pelos sons da natureza. Embora o som do piano possa ser agradável, ele é preterido, deixado de lado, porque é resultado do intelecto humano. Um piano não nasce piano, o homem o constrói, enquanto o som das águas e das árvores são naturais. Por isso ele insinua que é melhor ouvir o som dos ruídos da natureza do que o som artificial do piano.

O poema de número 14 é metalinguístico:

Não me importo com as rimas. raras vezes Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me porque me falta a simplicidade divina De ser todo só o meu exterior

olho e comovo-me, comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, e a minha poesia é natural como o levantar-se vento...

Alberto Caeiro diz que não dá importância às rimas, preferindo imitar a espontaneidade dos elementos da natureza. Como na natureza não é comum haver duas árvores iguais uma ao lado da outra, o poeta considera artificial o uso das rimas, e por isso não as pratica. Seu estilo reflete o caminho natural e espontâneo que as águas percorrem, por isso o estilo é simples, natural e despretensioso.

O poema de número 18 apresenta o desejo do poeta de integrar-se comple-tamente à natureza para jamais pensá-la e sempre senti-la, porque a simplicidade da vida natural é preferível à condição humana.

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada e que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm e que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro e que ele me batesse e me estimasse...

antes isso que ser o que atravessa a vida olhando para trás de si e tendo pena...

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Poema composto em dísticos (estrofes com dois versos); nele, o poeta apresenta a seguinte ideia: antes ser o pó da estrada que os pobres pisam, ser os rios que correm e são utilizados pelas lavadeiras, ser as árvores à beira do rio (choupos) tendo o céu por cima e a água por baixo, ser um burro que recebe as pancadas e o afeto de seu dono que ser uma pessoa que se arrepende do que viveu. O pó da estrada, os rios, as árvores e o burro nunca se arrependem porque não pensam, apenas vivem. Somente o homem, com sua consciência, pode ter pena de si mesmo pela vida que viveu.

O poema de número 20 apresenta a ideia de que a experiência pessoal e concreta é mais importante que o conhecimento abstrato:

o tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

o tejo tem grandes navios e navega nele ainda, para aqueles que veem em tudo o que lá não está, a memória das naus.

o tejo desce de espanha e o tejo entra no mar em portugal. toda a gente sabe isso. mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia e para onde ele vai e donde ele vem. e por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia. pelo tejo vai-se para o mundo. para além do tejo há a américa e a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia.

o rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele. Marcado pelo paradoxo e pela repetição, o poema apresenta a ideia de que

o rio Tejo, ao adquirir os significados culturais que lhe foram atribuídos, tornou-se um rio importante, mais importante que o rio da aldeia do poeta. entretanto, o valor histórico e geográfico do Tejo fez com que ele deixasse de ser um rio natural, tornando-se um conceito cultural. por isso, o poeta prefere o rio da sua aldeia, porque pode conhecê-lo pelo convívio, pela vivência direta.

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Opondo os conceitos culturais à experiência concreta, Caeiro valoriza a ex-periência porque esta permite o conhecimento direto, aproximando o homem da natureza. Quem está ao pé do rio da sua aldeia não pensa nada, apenas sente.

O poema de número 24 propõe explicitamente a “aprendizagem de desa-prender”:

o que nós vemos das cousas são as cousas. por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos se ver e ouvir são ver e ouvir?

o essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa.

mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender e uma sequestração na liberdade daquele convento de que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas E as flores as penitentes convictas de um só dia, Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas Nem as flores senão flores. Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Segundo o poeta, a simplicidade do conhecimento da realidade através dos sentidos exige um esforço que consiste em abandonar todos os conceitos intelectuais, ao que ele chama de “aprendizagem de desaprender”.

No final do poema, Caeiro ironiza os poetas metafísicos dizendo que estes transformam as estrelas em “freiras eternas” e as flores em “penitentes convictas de um só dia”, deixando de ver as coisas como elas realmente são, ou seja, as flores como flores e as estrelas como estrelas.

O poema de número 28 refere-se explicitamente aos poetas místicos:

li hoje quase duas páginas do livro dum poeta místico, e ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes, E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem E dizem que as pedras têm alma

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E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas flores, se sentissem, não eram flores, Eram gente; E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras; E se os rios tivessem êxtases ao luar, os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios para falar dos sentimentos deles. Falar da alma das pedras, das flores, dos rios, É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos. Graças a deus que as pedras são só pedras, e que os rios não são senão rios, E que as flores são apenas flores.

por mim, escrevo a prosa dos meus versos E fico contente, Porque sei que compreendo a Natureza por fora; e não a compreendo por dentro Porque a Natureza não tem dentro; senão não era a Natureza.

O poema afirma que os poetas místicos são homens doentes, porque atri-buem características humanas a elementos da natureza, dizendo que “as pedras têm alma” e que “as flores sentem”. Caeiro repudia a ideia de que as coisas sentem ou tenham alma; para ele, as coisas são apenas as coisas, não possuem mistério nem sentido oculto.

A última estrofe é metalinguística. O poeta alude ao seu estilo, afirmando mes-clar prosa e verso, característica que normalmente recebe o nome de prosaísmo.

O poema de número 29 apresenta a ideia de que a beleza da poesia reside na multiplicidade de sentidos, que, às vezes, são contraditórios, mas são a pró-pria natureza da poesia.

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo. mudo, mas não mudo muito. A cor das flores não é a mesma ao sol de que quando uma nuvem passa ou quando entra a noite E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores. por isso quando pareço não concordar comigo, reparem bem para mim: se estava virado para a direita,

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Voltei-me agora para a esquerda, mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés— o mesmo sempre, graças ao céu e à terra e aos meus olhos e ouvidos atentos e à minha clara simplicidade de alma...

Ao dizer que “Nem sempre sou igual no que digo e escrevo”, Caeiro afirma que sua poesia é contraditória, mas contraditória apenas na aparência. Por isso compara sua poesia às flores, porque estas também assumem aspectos diferen-tes conforme a variação da luz. Portanto, a contradição em sua poesia é apenas uma aparência, porque ela se funda numa unidade decorrente da simplicidade do seu ser.

O poema de número 32 apresenta o tema da poesia social não para justificá-lo, mas para repudiá-lo:

ontem à tarde um homem das cidades Falava à porta da estalagem. Falava comigo também. Falava da justiça e da luta para haver justiça e dos operários que sofrem, E do trabalho constante, e dos que têm fome, E dos ricos, que só têm costas para isso.

e, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos e sorriu com agrado, julgando que eu sentia O ódio que ele sentia, e a compaixão Que ele dizia que sentia.

(mas eu mal o estava ouvindo. Que me importam a mim os homens e o que sofrem ou supõem que sofrem? sejam como eu — não sofrerão. todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros, Quer para fazer bem, quer para fazer mal. a nossa alma e o céu e a terra bastam-nos. Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)

eu no que estava pensando Quando o amigo de gente falava (e isso me comoveu até às lágrimas), era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos a esse entardecer Não parecia os sinos duma capela pequenina A que fossem à missa as flores e os regatos e as almas simples como a minha.

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(louvado seja deus que não sou bom, E tenho o egoísmo natural das flores e dos rios que seguem o seu caminho preocupados sem o saber Só com florir e ir correndo. É essa a única missão no mundo, Essa — existir claramente, E saber fazê-lo sem pensar nisso.

e o homem calara-se, olhando o poente. mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Na estrofe inicial, surge um homem falando das injustiças sociais, defenden-do os pobres e oprimidos. Caeiro está entre os ouvintes. O homem que pregava repara que Caeiro está chorando e interpreta que ele chorava por compaixão aos pobres. Mas o poeta explica que mal ouvia o homem. Enquanto este falava, ele estava pensando nas metáforas dos poetas metafísicos e isto o fez chorar: “Eu no que estava pensando / Quando o amigo de gente falava / (E isso me comoveu até às lágrimas) / Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos / A esse entardecer / Não parecia os sinos duma capela pequenina”.

Para Alberto Caeiro, o problema das injustiças sociais é insolúvel, por isso não adianta querer abordá-lo. Para ele, o mal do mundo decorre do fato de umas pessoas se preocuparem com outras, seja para praticar o mal ou o bem. A fala do homem não lhe diz respeito, porque ouvi-lo não altera a realidade das coisas.

No penúltimo poema, Caeiro despede-se dos seus versos:

da mais alta janela da minha casa com um lenço branco digo adeus aos meus versos que partem para a Humanidade.

e não estou alegre nem triste. esse é o destino dos versos. escrevi-os e devo mostrá-los a todos porque não posso fazer o contrário Como a flor não pode esconder a cor, Nem o rio esconder que corre, Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência e eu sem querer sinto pena como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá? Quem sabe a que mãos irão?

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Flor, colheu-me o meu destino para os olhos. Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas. Rio, o destino da minha água era não ficar em mim. submeto-me e sinto-me quase alegre, Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

ide, ide de mim! Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. Murcha a flor e o seu pó dura sempre. corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Ao despedir-se dos seus versos, Caeiro faz uma reflexão sobre o destino dos textos literários: uma vez escrito, os versos adquirem autonomia e destino próprios, separando-se do seu criador. Este sabe que o que foi escrito tem sua finalidade, que é a de ser lido. Daí a comparação que faz entre o destino dos tex-tos e as flores e águas: o destino de um texto escrito é a sua leitura, assim como o destino de uma flor é revelar sua cor, e o destino das águas é seguir seu curso pelo leito do rio. Os versos devem deixar o autor para integrarem-se na vida coletiva dos leitores, assim como as árvores mortas ficam dispersas na natureza e a flor murcha transforma-se em pó e a água do rio entra no mar.

Como se sente completamente integrado à natureza, o poeta afirma que “Passo e fico, como o Universo”, porque, segundo ele, na inconstância do mundo reside a própria constância.

O poema de número 49 fecha o livro; nele, Caeiro, após ter enviado seus poemas para a humanidade, recolhe-se para os seus aposentos. Não para ler, pensar ou dormir, mas para sentir a vida passar pelo seu corpo como um rio corre pelo seu leito.

meto-me para dentro, e fecho a janela. trazem o candeeiro e dão as boas noites, e a minha voz contente dá as boas noites. Oxalá a minha vida seja sempre isto: o dia cheio de sol, ou suave de chuva, ou tempestuoso como se acabasse o mundo,

a tarde suave e os ranchos que passam Fitados com interesse da janela, o último olhar amigo dado ao sossego das árvores, e depois, fechada a janela, o candeeiro aceso, sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir, sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito. E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

Cumprida sua tarefa, o poeta nada mais deseja além de sentir a vida fluir pelo corpo tão naturalmente como a água de um rio correndo pelo seu leito.

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O PAstOr AmOrOsOo pastor amoroso contém seis poemas (certas edições apresentam 8 poe-

mas); neles, um pastor acaba por esquecer-se de seu ofício, por estar apaixonado. No princípio, acreditava que o amor refinava seu trabalho e sua sensibilidade. Mas, quando foi abandonado, percebeu o engano que cometera, porque na verdade nunca havia sido amado. Assim, dá-se conta de que se afastara do seu ofício de pastor.

O poema de abertura introduz o tema do amor:

Quando eu não te tinha amava a Natureza como um monge calmo a cristo... agora amo a Natureza como um monge calmo à Virgem maria, religiosamente, a meu modo, como dantes, Mas de outra maneira mais comovida e próxima... Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos até à beira dos rios; sentado a teu lado reparando nas nuvens reparo nelas melhor — tu não me tiraste a Natureza... tu mudaste a Natureza... Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, por tu me escolheres para te ter e te amar, Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente sobre todas as cousas. Não me arrependo do que fui outrora porque ainda o sou. A companhia da amada parece aumentar a sensibilidade do poeta: agora

ele sente melhor a paisagem, os rios e a natureza. Mas não se arrepende de não ter visto a natureza pelo prisma do amor antes de conhecê-la, porque sabe que é feito daquilo que foi. Isto significa que o sentimento amoroso apenas lapidou as lentes pelas quais ele vê a natureza, porque ele já a via antes. Agora, ele a vê de mais perto, porque o amor aproxima o homem da natureza.

Assim, no poema seguinte, Caeiro apresenta sua ideia de felicidade, que consiste na companhia da amada junto à natureza:

Vai alta no céu a lua da primavera penso em ti e dentro de mim estou completo.

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corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira. Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo, E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores. Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores, isso será uma alegria e uma verdade para mim. O idílio amoroso é completo: é primavera, a lua está brilhante no céu e

o poeta sente-se feliz por pensar em sua amada. No dia seguinte, caminharão juntos pelo campo, e o poeta tem a consciência antecipada da felicidade de que ambos usufruirão. Para ele, a sensação antecipada da felicidade já anuncia a sua concretização.

Na sequência, o poeta apresenta a ideia do amor como uma companhia:

o amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos, porque já não posso andar só. Um pensamento visível faz-me andar mais depressa e ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. e eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. todo eu sou qualquer força que me abandona. toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. A intensidade do sentimento afetivo faz surgir no poeta a ideia de completude,

isto é, só por pensar nela o poeta sente-se completo. Mesmo a ausência dela é algo que ele carrega consigo. Quando não a vê, sente-se forte porque pode imaginá-la. Entretanto, quando a vê, tem medo, porque não sabe como manifestar seu desejo. A imagem da amada tem um valor maior que a própria presença dela, pois, ao imaginá-la, o poeta sente-se completo e na sua presença sente-se fragilizado.

No quarto poema, Caeiro percebe que não foi amado e que não cumpriu suas funções de pastor, o que levou outros pastores a ralhar com ele.

o pastor amoroso perdeu o cajado, e as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.

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Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado. outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas. Ninguém o tinha amado, afinal.

Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo: os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre, as grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes. (e de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)e sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.

Logo no início, o poeta afirma ter perdido o cajado, isto é, afastara-se das suas funções de pastor, o que fez com que as ovelhas errassem pelas encostas, obrigando outros pastores a recolhê-las. O poeta percebe que amar é “ver” com o intelecto, e não com os cinco sentidos. Quando o poeta amou, perdeu o cajado, ou seja, perdeu-se. Amou e não foi amado, por isso percebeu que era preciso retornar à sua teoria realista sensorial. A diferença, agora, consiste na dor que carrega consigo.

No penúltimo poema, o poeta afirma que é preferível pensar na amada a estar com ela:

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, e vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela. Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, e em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança. amar é pensar. e eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. tenho uma grande distração animada. Quando desejo encontrá-la Quase que prefiro não a encontrar, Para não ter que a deixar depois. Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só pensar nela. Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. A predileção pela ideia e não pela pessoa aproxima o amor do pastor do

conceito de amor platônico, chegando mesmo a afirmar que amar é pensar. ele passa as noites imaginando a amada, e cada pensamento permite

uma imagem diferente dela. Assim, pensá-la é senti-la, por isso conclui que amar é pensar. Não deseja encontrá-la; aliás, afirma não desejar nada além de pensar nela.

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POemAs InCOnjuntOsos poemas inconjuntos retomam os temas de o guardador de rebanhos, acres-

cido de um tema novo: a morte. A forma empregada é a mesma da dos poemas anteriores: versos livres e brancos, estilo simples, vocabulário das pessoas que moram nos campos portugueses. O poeta elabora algumas reflexões materialistas sobre a morte. Como o próprio título indica, poemas inconjuntos não apresentam uma unidade cartesiana de sentido, isto é, não apresenta uma sequência linear com começo, meio e fim. Os textos não apresentam um desenvolvimento linear dos temas, como ocorre em o guardador de rebanhos e o pastor amoroso.

Quando tornar a vir a primavera talvez já não me encontre no mundo. Gostava agora de poder julgar que a primavera é gente para poder supor que ela choraria, Vendo que perdera o seu único amigo. mas a primavera nem sequer é uma cousa: É uma maneira de dizer. Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes. Há novas flores, novas folhas verdes. Há outros dias suaves. Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

Inicialmente, o poeta imagina que, quando a primavera retornar, ele talvez já não esteja vivo. Desejaria que a primavera fosse uma pessoa para que ela pu-desse lamentar a sua morte. Entretanto, sua consciência materialista o adverte de que a primavera é apenas uma maneira de dizer, não uma pessoa. Tudo está sujeito às leis da natureza, porque tudo é real. nada torna ou repete porque a natureza não é um conceito, mas uma realidade objetiva, ou seja, os termos “tornar” e “repetir” são conceitos do homem, e não da natureza.

Outra manifestação realista da morte ocorre no seguinte poema:

se eu morrer novo, sem poder publicar livro nenhum, Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa, peço que, se se quiserem ralar por minha causa, Que não se ralem. se assim aconteceu, assim está certo.

mesmo que os meus versos nunca sejam impressos, eles lá terão a sua beleza, se forem belos. Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir, Porque as raízes podem estar debaixo da terra Mas as flores florescem ao ar livre e à vista. tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

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se eu morrer muito novo, oiçam isto: Nunca fui senão uma criança que brincava. Fui gentio como o sol e a água, De uma religião universal que só os homens não têm. Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma, Nem procurei achar nada, Nem achei que houvesse mais explicação Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva — ao sol quando havia sol e à chuva quando estava chovendo e nunca a outra cousa, sentir calor e frio e vento, e não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam, mas não fui amado. Não fui amado pela única grande razão — porque não tinha que ser.

consolei-me voltando ao sol e à chuva, e sentando-me outra vez à porta de casa. Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados como para os que o não são. sentir é estar distraído. O poeta apresenta o tema da morte e do destino do texto literário. Co-

meça por negar importância à sua vida pessoal e por ressaltar a importância dos versos. Acredita que, se os versos são portadores de beleza, eles devem ser impressos, porque “as raízes podem estar debaixo da terra / Mas as flores florescem ao ar livre”. Em seguida, apresenta uma síntese do seu pensamento, afirmando que sempre procurou integrar-se à natureza, aceitando-a, sem procurar compreendê-la. Seu pensamento manifesta-se de forma materialista e objetiva, mesmo diante de questões afetivas. Por isso, afirma que, quando amou e não foi amado, não o foi porque não deveria ter sido. Não há explicação para o fato de não ter sido amado, há apenas o fato.

O poema seguinte realça a ideia de valorização das coisas sem a interfe-rência do pensamento:

Vive, dizes, no presente; Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.

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o que é o presente? É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. eu quero só a realidade, as cousas sem presente. Não quero incluir o tempo no meu esquema. Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas. Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

eu nem por reais as devia tratar. eu não as devia tratar por nada. Eu devia vê-las, apenas vê-las; Vê-las até não poder pensar nelas, Vê-las sem tempo, nem espaço, Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. Caeiro nega os conceitos de presente, passado e futuro exatamente porque

são conceitos. Para ele não existe o viver no presente, existe viver. E viver con-siste em sentir o que é como é, sem a interferência do intelecto, porque este cria conceitos que se interpõem entre o sujeito e a coisa. Ver é a verdadeira ciência porque nada exige do sujeito além da visão, o que significa que o essencial para o conhecimento são os sentidos. A verdade reside no contato dos sentidos com os objetos, nunca na abstração intelectual.

FinalizandoAlberto Caeiro é o poeta das sensações, totalmente contrário ao intelecto.

Para ele, o pensamento é uma doença que afasta o homem do conhecimento autêntico das coisas. A realidade autêntica, que é a natureza, somente pode ser captada pelos sentidos. A realidade captada pelo intelecto é falsa, porque é uma criação do intelecto.

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Fernando antônio Nogueira pessoa

5. EXERCíCiOs

1. Leia o texto e responda ao que se pede.

aquela senhora tem um piano Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que as árvores fazem ... para que é preciso ter um piano? o melhor é ter ouvidos e amar a Natureza.

a) Segundo o poeta, o som mais agradável é o do piano ou o das águas do rio? b) Por que o som do piano não deve ser invejado?c) Tomando o texto transcrito como referência da obra de Alberto Caeiro, expli-

que a relação que o poeta estabelece entre natureza e cultura.

2.Considere as seguintes afirmações sobre o heterônimo Alberto Caeiro, do poeta Fernando Pessoa, extraídas de literatura portuguesa – da idade média a Fernando pessoa, de José de Nicola:

para [ele], as coisas são como são. (...) por isso mesmo, seu mundo é o mundo do real-sensível (ou real objetivo), é tudo aquilo que existe e que percebemos através dos sentidos. (...) ele “pensa” com os sentidos.

Os versos que ilustram o heterônimo apresentado são:a) sou um guardador de rebanhos. / o rebanho é os meus pensamentos / e os meus

pensamentos são todos sensações. / penso com os olhos e com os ouvidos / e com as mãos e os pés / e com o nariz e a boca.

b) Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, / Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, / mas que mais vale estarmos sentados ao pé do outro / ouvindo correr o rio e vendo-o.

c) Não matou outros deuses / o triste deus cristão. / cristo é um deus a mais, / talvez um que faltava.

d) Dizem que finjo ou minto. / Tudo que escrevo. Não. /Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração.

e) Já disse: sou lúcido. / Nada de estéticas com o coração: sou lúcido. merda! sou lúcido...

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poemas completos de alberto caeiroA

ol-

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Texto para as questões 3 e 4

o tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

o tejo tem grandes navios e navega nele ainda, para aqueles que veem em tudo o que lá não está, a memória das naus.

o tejo desce de espanha e o tejo entra no mar em portugal. toda a gente sabe isso. mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia e para onde ele vai e donde ele vem. e por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

pelo tejo vai-se para o mundo. para além do tejo há a américa e a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia.

o rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele.3.a) Qual o rio preferido pelo poeta?b) O que determina a preferência do poeta?c) Quanto à forma, quais as características de Alberto Caeiro presentes no poema

acima?

4.a) Os três primeiros versos contêm uma contradição. De que contradição se

trata?b) Tendo como referência o pensamento de Alberto Caeiro, como explicar a

contradição?

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Fernando antônio Nogueira pessoa

gaBaRiTO1. a) O som do correr das águas do rio é mais

agradável.b) O som do piano não deve ser invejado por-

que ele é resultado do intelecto humano, portanto é artificial, enquanto o som do correr das águas do rio é natural.

c) Alberto Caeiro estabelece uma relação contra-ditória entre natureza e cultura porque, para ele, o que é natural é autêntico e verdadeiro, enquanto o que é cultural é falso e artificial, porque deriva do intelecto. Como ele valoriza as sensações e nega o intelecto, o som das águas do rio lhe agrada, porque é um som produzido pela natureza, enquanto o som do piano é resultado do trabalho do intelecto humano e, por isso, pode ser desprezado.

2. A3. a) o poeta prefere o rio da sua aldeia ao rio

tejo.b) O que determina a preferência do poeta é o

fato de o rio da sua aldeia não fazer pensar em nada, pois é um rio sem história e sem importância. O rio Tejo, ao adquirir impor-tância histórica e geográfica, converteu-se em um conceito, isto é, passou a ser apre-

ciado por sua importância histórica, e não pelo fato de ser um rio. Como Alberto Caeiro é avesso a qualquer conceito e a qualquer interpretação cultural, ele valoriza o rio da sua aldeia porque pode senti-lo sem ter que pensar nele.

c) O uso do verso livre e branco, o vocabulário comum e o estilo simples, a repetição de palavras e de estruturas frasais são marcas típicas do estilo de Alberto Caeiro.

4. a) A contradição consiste no fato de o poeta

simultaneamente afirmar e negar que o Tejo é mais belo que o rio da sua aldeia.

b) Segundo Alberto Caeiro, o Tejo é apenas um nome, um conceito, algo de que ouviu dizer, mas que não conhece. Como não o conhece pela experiência dos sentidos, o Tejo não tem para ele nenhuma importância, pois trata-se apenas de um nome. Já o rio da sua aldeia ele conhece pela vivência, através da experi-ência concreta dos sentidos. Assim, embora alguns possam afirmar a supremacia do Tejo sobre o rio da sua aldeia, para o poeta somente o que se conhece pelos sentidos é real, e, por isso, o rio da sua aldeia é mais importante e mais belo que o Tejo.