análise de obras literárias -...

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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS ANGÚSTIA GRACILIANO RAMOS Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAsAngústiA

GrAciliAno rAmos

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

www.sistemacoc.com.br

sumário

1. contexto sociAl e HistÓrico .................................................... 7

2. estilo literário dA épocA ........................................................... 9

3. o Autor ................................................................................................. 12

4. A obrA .................................................................................................... 14

5. exercícios ........................................................................................... 33

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GrAciliAno rAmos

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1. Contexto soCial e HistÓRiCo

na história do brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 a 1930, aproximadamente, é chamado de república Velha, “a política do café com leite”, porque ocupava a presidência da república ora um governo mineiro, ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das oscilações do mercado. exemplo típico dessa política foi o chamado Acordo de taubaté, de 1906, segundo o qual são paulo, rio de Janeiro e minas Gerais se comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível dos preços.

A sociedade brasileira, no início do século xx, sofreu transformações gra-ças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região centro-sul do país. entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos foi marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura canavieira do nordeste entrou em declínio, pois ela não tinha como competir com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.

No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam no brasil: de um lado, a urbanização da região centro-sul, com sua conse-quente industrialização, e, de outro, o atraso das regiões norte e nordeste. e um terceiro fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais, com seus arranjos políticos, não representavam os novos extratos

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socioeconômicos. o resultado disso foi o surgimento de um quadro caótico que teve seu término com a chamada revolução de 1930 e o estado novo de Getúlio Vargas.

na bahia, ocorreu a chamada Guerra de canudos; em Juazeiro, no ceará, o fenômeno do jagunço e a política do padre cícero; os movimentos operários, em são paulo; a criação do partido comunista; o tenentismo, que teve seu ápice na coluna prestes, combatida por Arthur bernardes e Washington luís. É claro que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, parecendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. entretanto, no conjunto, revelavam a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios. o estouro da bolsa de nova York em 1929 e o movi-mento tenentista colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada revolução de 1930, dando início ao chamado estado novo ou era Vargas.

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2. estilo liteRáRio da époCa

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Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a todas essas transformações sociais e históricas listadas no item anterior, porque, soma-dos a elas, eventos importantes na esfera artística vinham acontecendo, como a publicação de Os sertões, de euclides da cunha, Triste fim de Policarpo Quaresma, de lima barreto, e Canaã, de Graça Aranha, os quais chamaram a atenção para aspectos da realidade do país, até então não tematizados pela literatura brasi-leira, ao menos da forma como o fizeram seus autores nestas três publicações. Vivia-se também, na europa, a ebulição artística internacional provocada pelos movimentos vanguardistas, que consolidaram em sua esteira as teorias futurista, surrealista, cubista e dadaísta. No âmbito da língua portuguesa, surgia oficial-mente o modernismo português em 1915. dois anos depois, no brasil, Anita Malfatti realizava sua famosa exposição de telas inspiradas no expressionismo alemão, o que provocou a irada reação de monteiro lobato no seu famoso artigo Paranoia ou mistificação?

A soma de todos esses fatos – sociais e históricos – acabou por gerar deter-minadas reações e condições no seio da incipiente intelectualidade brasileira, no sentido de que, a partir daí, era necessário que fossem dados alguns passos para qualquer direção, desde que essa direção mudasse os rumos seguidos até então, tanto pelo pensamento sociológico nacional quanto pela arte brasileira.

essas reações aconteceram de tal forma que o modernismo brasileiro, in-dependentemente do rótulo pelo qual viesse a ser nomeado, estava fadado a ser aquilo em que se transformou naturalmente: maturidade e emancipação da arte brasileira. isso se deu principalmente por ter sido o modernismo um olhar novo e perscrutador sobre a realidade social do país, a qual começou a ser artística e detidamente observada, seja com benevolência por alguns, seja com rigor crítico por outros. essa realidade passou, então, a ser considerada com a importância que de fato tem: essência do país.

Foi esse olhar, essa análise que gerou a rebeldia contra os padrões da arte europeia, a qual, em alta porcentagem, ainda tinha seus traços facilmente identifi-cáveis na arte brasileira. esse olhar fez com que os modernistas da primeira hora tentassem identificar a verdadeira cultura nacional, para fazer dela a autêntica matéria-prima da sociologia e da arte nacionais, e, no passo seguinte, propuses-sem e praticassem uma arte de ruptura com os modelos anteriores.

Foi esse novo olhar que nos apresentou o homem sertanejo da caatinga e do norte de minas com sua particular visão de mundo; o dos canaviais e dos engenhos; o da briga pelo cacau; o caboclo dos cafezais e o das “rocinhas” do interior paulista; o dos imigrantes italianos de são paulo; o vivente dos pampas, no seu trabalho de campeador ou às voltas com as lutas fronteiriças; o homem da periferia das grandes cidades. Além disso, mostrou-nos, ainda que ficcional-mente, nossas lutas históricas regionais, o sentimento nacionalista e, sobretudo, o jeito de ser brasileiro de cada um, na fala peculiar, nas tradições e nas práticas

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quotidianas a que chamamos de regionalismo. e esse novo olhar nos revelou, entranhados nas frinchas e poros desses temas, a nossa sensibilidade e os nossos sentimentos, seja como indivíduos, seja como coletividade.

é esse vastíssimo painel que resultou da renovação da arte brasileira, painel que se constitui no grande legado modernista ao país, a ponto de esse movimento ser considerado, legitimamente, como a independência da arte do brasil.

2ª GeRaÇÃo do ModeRnisMo (1930-1945)

em literatura, o período entre 1930 e 1945 caracteriza-se pela tendência do posicionamento ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida, sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. A Revolução de 1930, o declínio e a dissolução das estruturas sociais e econômicas do nordeste e a imigração nas estradas do Sul apareciam nos novos estilos de ficção, caracteri-zada pela observação real e direta dos fatos. euclides da cunha e lima barreto, do pré-modernismo, não eram mais exceções, mas sim os primeiros a abordar o elemento regional/social e, como tal, ganharam sucessores. As elites urbanas e seus intelectuais analisavam e procuravam compreender o país nos seus novos aspectos. o campo de visão em que o artista atuaria se ampliava extremamente e passava a lhe oferecer uma gama jamais vista quanto à variedade temática, atitude filosófica, política, formal e psicológica, sejam individuais ou coletivas, resultando ensaio, teatro, prosa e poesia em quantidade e variedade.

diante de tal complexidade, a prosa passou a ser o gênero mais cultivado, principalmente na vertente regionalista, com produções de Graciliano ramos, érico Veríssimo, Jorge Amado, raquel de Queirós, José Américo de Almeida e José lins do rego.

Além do aspecto regional, usava-se o texto também para analisar ou denun-ciar injustiças sociais, dificuldades com o trabalho, com o meio, com o abandono do cidadão por parte do estado, resumindo tudo na falta de perspectiva de uma vida minimamente decente para o cidadão anônimo, modelo, aliás, ao qual se enquadra a temática de Graciliano ramos, autor de Angústia.

A preocupação com essas realidades foi tão intensa nesses autores que a linguagem literária evoluiu muito pouco, principalmente se considerarmos as propostas inovadoras da geração modernista de 22, isso porque preocupações com a linguagem foram relegadas a segundo plano, haja vista que a essência do projeto artístico desses autores centrava-se nos planos social e histórico.

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3. o aUtoR

Graciliano ramos nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Fez apenas os estudos secundários em maceió. Após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, fixou-se em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas; fez jornalismo e política, chegando a exercer a prefeitura da cidade. estreou em livro em 1933, com o romance Caetés. nessa época, trabalhou em maceió, dirigindo a Imprensa Oficial e a Instrução Pública, e travou conhecimento com José Lins do rego, raquel de Queirós e Jorge Amado.

em março de 1936, foi preso por atividades consideradas subversivas, sem, contudo, ter sido acusado formalmente. Após sofrer humilhações e percorrer vários presídios, foi libertado em janeiro do ano seguinte. essas experiências pessoais são retratadas no livro Memórias do cárcere. em 1945, com a queda da ditadura de Getúlio Vargas e a volta do país à normalidade democrática, Graci-liano filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, o qual integrou até 1947, quan-do o partido foi novamente considerado ilegal. em 1952, viajou para os países socialistas do leste europeu, experiência descrita em Viagem. Faleceu no rio de Janeiro, em 20 de março de 1953.

Graciliano ramos foi o principal escritor do chamado romance regionalista da 2ª fase do modernismo. sua obra focaliza não só o drama do nordeste (a seca,

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o coronelismo, as desigualdades sociais), como também o mundo psicológico das personagens. seus livros podem ser didaticamente divididos em três tipos de romance: psicológico, sociopolítico e autobiográfico.

inscrevem-se na linha do romance psicológico – análise e descrição do interior da personagem – as narrativas Caetés, São Bernardo, Angústia e o livro de contos insônia. no campo da narrativa sociopolítica, destaca-se Vidas secas e, como livros autobiográficos, ele escreveu Infância e Memórias do cárcere.

o estilo de Graciliano ramos caracterizou-se por uma linguagem objetiva, sem artifício de requintes literários, caprichando, no entanto, no registro da fala regional. suas frases e períodos são curtos e, quanto ao conteúdo, está sempre disposto a abordar a problemática social, ficando o individual como represen-tante do coletivo, posicionando-se clara e corajosamente contra a opressão e as injustiças sociais. uma constante na obra de Graciliano ramos é a tensão: entre o indivíduo e o meio social, entre o indivíduo e o meio físico, entre o indivíduo e o sistema e do indivíduo consigo mesmo. essa oposição nos remete ao fatalismo pessimista que lembra machado de Assis.

obRasRomance 1933 – Caetés 1934 – São Bernardo1936 – Angústia1938 – Vidas secas

Conto1947 – insônia

Memórias1945 – infância1953 – Memórias do cárcere1962 – Linhas tortas1962 – Viventes das AlagoasAs duas últimas obras foram publicadas postumamente.

literatura infantil1944 – Histórias de Alexandre1946 – Histórias incompletas

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4. a obRa

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A literatura de Graciliano ramos está longe de ser obra de concessão ao grande público. talvez a única exceção a isso seja o livro de contos Histórias de Alexandre, curiosa experiência do autor no campo da literatura infanto-juvenil. Quanto a esse mister, de fazer ou não concessões, Angústia, provavelmente, inscreve-se como o mais complexo livro do autor, ao menos tecnicamente, mas é, indiscutivelmente, o que ausculta mais detida e profundamente o pensamento, a introversão humana. o texto de Angústia funciona como se fosse o diário mental do personagem narrador Luís da Silva, no qual ele vai registrando suas reflexões dia a dia e, claro, vai se desnudando diante do leitor, gradativamente.

Através das observações pessoais desse personagem, vamos assistindo à montagem do cosmo social que o rodeia e, a exemplo do narrador bentinho de D. Casmurro, essa visão é a que o narrador tem como verdade, mas é uma verdade filtrada pelas suas limitações naturais, pelos seus interesses circuns-tanciais e, principalmente, pelas suas frustrações.

Apesar de o texto transmitir toda a angústia vivida pelo personagem luís, a leitura gera no leitor um paradoxo, já que dessa angústia sobrevém sensação de opressão, de mal-estar, que incomoda, ao mesmo tempo em que estabelece sensação envolvente, que prende o leitor a uma leitura sufocante, mas da qual emana estranho prazer em acompanhar a reflexão amarga e pessimista de Luís da silva. Vamos inteirando-nos de seu relacionamento sempre tenso com todas as pessoas do seu meio social, a ponto de irmos lendo e sofrendo, porque, durante a leitura, descobrimo-nos esperando constantemente que aconteça uma situação ou consequência desagradável nesse relacionamento.

A maestria e a essência da obra consistem exatamente nisso, ou seja, fazer o leitor “navegar” pelo labirinto do pensamento de um personagem narrador, que traz, desde recordações tristes, passa por ideias mesquinhas, mas irrelevan-tes e inconsequentes, até chegar ao assassinato perpetrado por esse narrador, premeditadamente.

Assim é que podemos ter alguns resumos temáticos, como os que se se-guem.

– A tragédia de uma vida condicionada a um complexo de inferioridade nem sempre justificado

– o poder do poder econômico– A influência da palavra escrita e seu poder de dominação– A fragilidade e a dependência da mulher em relação ao homem– os valores provincianos como forma de condicionamento dos mais

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Ainda não disse que moro na rua do Macena, perto da usina elétrica. Ocupado em várias coisas, frequentemente esqueço o essencial. Que, para mim, a casa onde moramos não tem importância grande demais. Tenho vivido em numerosos chiqueiros. Provavelmente esses imóveis influíram no meu caráter, mas sou incapaz de recordar-me das divisões de qualquer deles. Não esperem a descrição destas paredes velhas que Dr. Gouveia me aluga, sem remorso, por cento e vinte mil-réis mensais, fora a pena de água............................................................................................................................................

O meu horizonte ali era o quintal da casa à direita: as roseiras, o monte de lixo, o mamoeiro. Tudo feio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas: algumas rosas apenas, miúdas. Monturos próximos, águas estagnadas mandavam para cá emanações desagradáveis. Mas havia silêncio, havia sombra. O vozeirão de Vitória era um murmúrio abafado. Talvez o mamoeiro, as roseiras, o monte de lixo me passassem despercebidos, e se menciono, é que, escrevendo estas notas, revejo-os daqui............................................................................................................................................

Lembrei-me da fazenda de meu avô. As cobras se arrastavam no pátio. Eu juntava punhados de seixos miúdos que atirava nelas até matá-las (...) Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia num banco do copiar. Eu olhava de longe aquele enfeite esquisito. A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra batida e gritava: Tira, tira, tira............................................................................................................................................

Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brinquei só............................................................................................................................................

Alguns dias depois, achava-me no banheiro, nu, fumando... Abro a torneira, molho os pés............................................................................................................................................

Nu, deitado de costas na cama de ferro, esfregava-me no colchão estreito e coçava-me, mordido pelas pulgas. No quarto, escuro para a conta da Nordeste não crescer, a luz que havia era a do cigarro, que me fazia desviar os olhos de um lado para outro. Não podia deixar de olhá-la. Às vezes me entorpecia, e a luz ia diminuindo, cobria-se de cinza. De repente despertava sobressaltado: parecia-me que, se o cigarro se apagasse, alguma desgraça me sucederia. E entrava a fumar desesperadamente, e soprava a cinza. Impossível dormir............................................................................................................................................

Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.

Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exa-tamente. Fujo dos negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e putaria.

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luís da silva é funcionário público, escreve para jornais locais, lê muito e ganha pouco, mas, a rigor, profissionalmente também produz pouco, já que lhe é comum a perda de razoável parte do seu tempo com reflexões sobre sua vida e sobre a de outras pessoas, com idas e vindas pela casa ou pela cidade sem objetivo concreto ou útil.

é razoavelmente culto, até considerado intelectual, tendo em vista a limi-tação cultural do meio em que atua, mas extremamente frustrado e revoltado com sua situação.

Vive numa moradia simples e suja em um bairro de classe média, convi-vendo com uma vizinhança constituída de pessoas simples, que o tratam com respeito e com alguma solenidade, por entenderem que ele lhes é superior, con-siderando-se seu trabalho e o fato de que é um homem que lê.

À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.

Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guar-da-comidas, automóveis roncam na rua.

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates.

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Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas.

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Agarrava a papelada com entusiasmo de fogo de palha. Tempo perdido. Marina não ia para o diabo. E eu me metia por estas ruas, passava horas no café, lesando, bebendo. Seria fácil regularizar a minha vida, liquidar as contas, botar tudo de novo nos trilhos. Um pouco de boa vontade, método.

– Outro conhaque.Método, perfeitamente, tudo se arranjaria. Saía dali, ia olhar as vitrinas e os car-

tazes. Bacharel idiota, aperreando um bom inquilino. Porcaria.

Apesar de tímido, inicia um relacionamento com marina, vizinha, jovem, sensual e volúvel. no início da relação, luís sente algum desprezo por ela por causa da frivolidade, da ignorância e dos valores fúteis da moça, mas, depois de algum tempo, ela passa a ter muita importância para ele não só por representar

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uma conquista rara no parco cenário de sua trajetória amorosa, em razão da sua timidez e do seu “desajeito” com mulheres, mas principalmente pela atração fí-sica que ela exerce sobre “o solitário Luís”; afinal, trata-se de uma mulher bonita, aparentemente fácil e, provavelmente, sexualmente acessível.

Afinal, para a minha história, o quintal vale mais que a casa. Era ali, debaixo da mangueira, que, de volta da repartição, me sentava todas as tardes, com um livro. Foi lá que vi Marina pela primeira vez, em janeiro do ano passado. E lá nos tornamos amigos............................................................................................................................................

Foi numa dessas suspensões que percebi um vulto mexendo-se no quintal da casa vizinha. Como já disse existe apenas uma cerca separando os dois quintais.

O vulto que se mexia não era a senhora idosa: era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam oxigenados. Foi só o que vi, de supetão, porque não sou indiscreto, era inconveniente olhar aquela desconhecida como um basba-que. Demais não havia nada interessante nela............................................................................................................................................

Marina tinha deixado de ver-me à tarde, mas todas as noites a gente se reunia no fundo do quintal. Ela passava pelo buraco da cerca, encostava-se ao tronco da mangueira, e eram beijos, amolegações que nos enervavam.

– Vamos entrar, descansar um bocado, Marina. Já que chegou aqui, dê mais uns passos.

– Você está maluco? Eu vou dar o fora. Qualquer dia a gente mete o rabo na rato-eira. Os velhos descobrem tudo, estrilam, e é um fuzuê da desgraça.

– Deixa disso, Marina, vamos lá para dentro.– Good-bye.– Vem cá, Marina. – Vai-te embora, Lobisomem.

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Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir. Naturalmente gastei meses cons-truindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combina-vam bem, davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada. Agora mesmo temo deixar aqui uma sucessão de peças e de qualidades: nádegas, coxas, olhos, braços, inquietação, vivacidade, amor ao luxo, quentura, admiração a D. Mercedes. Foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que ia encontrar-me à noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, ingrata, leviana. Os defeitos, porém, só me pa-receram censuráveis no começo das nossas relações. Logo que se juntaram para formar

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com o resto uma criatura completa, achei-os naturais, e não poderia imaginar Marina sem eles, como não a poderia imaginar sem corpo. Além disso ela era meiga, muito limpa. Asseio, cuidado excessivo com as mãos. Passava uma hora no banheiro, e a roupa branca que vestia cheirava. Nos nossos momentos de intimidade eu sentia às vezes uma tentação maluca; baixava-me, agarrava-lhe a orla da camisa, beijava-a, mordia-a. Isto me dava um prazer muito vivo............................................................................................................................................

Marina apareceu, enroscando-se como uma cobra de cipó e tão bem vestida como se fosse para uma festa. Ao pegar-me a mão, ficou agarrada, os dedos contraídos, o braço estirado, mostrando-se, na faixa de luz que entrava pela janela. Isto me dava a impressão de que o meu braço havia crescido enormemente. Na extremidade dele um formigueiro em rebuliço tinha tomado subitamente a conformação de um corpo de mulher. As formigas iam e vinham, entravam-me pelos dedos, pela palma e pelas costas da mão, corriam-me por baixo da pele, e eram ferroadas medonhas, eu estava cheio de calombos envenenados. Não distinguia os movimentos desses bichinhos insignificantes que formavam o peito, a cara, as coxas e as nádegas de Marina, mas sentia as picadas – e tinha provavelmente os olhos acesos e esbugalhados. Com uma sacudidela, desembaracei-me da garra que me prendia e tornei-me um sujeito razoável (...)

num dado momento de sua vida, luís conhece Julião tavares, advogado e de família rica. esse contato, já no início, não agrada luís, que de hábito é arredio a contatos sociais, e ele não entende por que não afasta Julião do seu convívio, como já fizera com outras pessoas.

Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu para aparecer aqui em casa. Lembram-se dele. Os jornais andaram a elogiá-lo, mas disseram mentira. Julião Tavares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atribuíram. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor. No relógio oficial, nos cafés e noutros lugares frequentados cumprimentava-me de longe, fingindo superioridade:

– Como vai, Silva?À noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava,

desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. E lá vinham intimidades que me aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum.

Conheci esse monstro numa festa de arte no Instituto Histórico. De quando em quando um cidadão se levantava e lia uma composição literária. Em seguida uma senhora abancava ao piano e tocava. Depois outra declamava. Aí chegava de novo a vez do homem, e assim por diante. Pelo meio da função um sujeito gordo assaltou a tribuna e gritou um discurso furioso e patriótico. Citou os coqueiros, as praias, o céu azul, os canais e outras preciosidades alagoanas, desceu e começou a bater palmas

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terríveis aos oradores, aos poetas e às cantoras que vieram depois dele. À saída deu-me um encontrão, segurou-me um braço e impediu que me despencasse pela escada abai-xo. Desculpou-se por me haver empurrado, agradeci ter-me agarrado o braço e saímos juntos pela rua do Sol. Repetiu pouco mais ou menos o que tinha dito no discurso e afirmou que adorava o Brasil.

– Ah! Eu vi perfeitamente que o senhor é patriota.

Gradativamente, o narrador vai sentindo aversão pelo novo “amigo”, pois Julião concentra todas as características e conceitos detestados pelo narrador, ou seja, Julião é exatamente o oposto daquilo que luís sente e pensa sobre sociedade, religião, política, literatura e demais assuntos. Além disso, Julião tavares é rico, capitalista, o que contraria a ideologia social de luís da silva. como se não bas-tasse, Julião tratava todos com uma compreensão condescendente, magnânima, como se fizesse favor em dar atenção aos outros, quando, na verdade, estava concentrado em si mesmo, pois se trata de indivíduo egoísta, sente-se poderoso e se dá grande importância. é conservador, como consequência das atividades comerciais de sua família, já que o status quo social e econômico tem conveni-ências para os negócios de sua família, enquanto os valores de luís são ditados por um sentir idealista, logo mais autêntico e desinteressado pessoalmente, ao menos de acordo com o que ele transparece para o leitor.

A cólera engasgava-me. Julião Tavares começou a falar e pouco a pouco serenou, mas não compreendi o que ele disse. Canalha. Meses atrás se entalara num processo de defloramento, de que se tinha livrado graças ao dinheiro do pai. Com o olho guloso em cima das mulheres bonitas, estava mesmo precisando uma surra. E um cachorro daquele fazia versos, era poeta.

Aprumava-se, as palavras corriam-lhe facilmente, mas continuei a ignorar o que significavam.

– Tem negócio comigo? repeti sem pensar que o tipo já havia provavelmente dado resposta.

A loquacidade de Julião Tavares aborrecia-me. Uma voz líquida e oleosa que escorria sem parar. A minha cólera esfriava, o suor colava-me a camisa ao corpo.

A roupa do intruso era bem feita, os sapatos brilhavam. Baixei a cabeça. Os meus sapatos novos estavam mal engraxados, cobertos de poeira. Pés de pavão.

Julião Tavares falou sobre a política do país. A enxurrada cobria-se de nódoas de gordura, que se alastravam.

Ia lá discutir com aquele bandido? O meu desejo era insultá-lo.– Nunca estou em casa a esta hora. Estou no serviço, percebe? Sou um homem

ocupado.

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– Perfeitamente, respondeu Julião Tavares. Uma vida cheia, uma vida nobre, dedicada ao trabalho.

Só a pontapés.– Muito bonito, seu doutor.Ultimamente, embora repugnado, eu o tratava por você.– Uma coisa é jogar frases em cima do trabalho alheio, outra é pegar no pesado. Julião Tavares fechou a cara:

como se não bastassem essas diferenças, Julião, pelo fascínio que o seu poder econômico exerce, acaba por conquistar marina, com quem luís já se preparava para casar, tendo, inclusive, gastado suas poucas economias para que ela comprasse o enxoval.

luís amarga mais essa humilhação, entre tantas já vividas, e seu ódio por Julião toma cores, forma e intensidade definitivas.

meses depois, Julião abandona marina e ela, logo depois, percebe que está grávida dele. desesperada, vai a uma parteira e provoca o aborto, fato que luís descobre ao vê-la entrar na casa da parteira e sair de lá.

Ao chegar à rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas. O homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.

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– Marina, esse procedimento é incorreto. Porque não me larga? Dê o fora, de-socupe o beco.

– Está roendo courana. Coitadinho dele.Não tornamos a falar em casamento. Creio que ela procedeu assim por hábito. Ou tal-

vez quisesse pagar os objetos que tinham esgotado a minha fortuna. Mas ia-se distanciando, e eu não podia agarrá-la. Às vezes ficava trombuda, aparentando gravidade. As distrações eram constantes, aquele modo de se descangotar, abrir a boca e olhar por cima da cabeça da gente. Isto me amarrava e atenazava. Presumo que a intenção dela era desembaraçar-se de mim lentamente, ou desembaraçar-se ela própria do costume que havia adquirido.

À tarde eram aqueles manejos, mas pela manhã, quando eu saía para a repartição, plantava os cotovelos na janela e enxeria-se com Julião Tavares. Uma vez por semana eu largava o serviço antes do meio-dia, só para pegá-los. Ao dobrar a Rua Augusta, avistava Julião Tavares na prosa com ela, vermelho, soprando, derretendo-se, a roupa de

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brim com manchas de suor nos sovacos. Vendo-me, o canalha voltava as costas, porque estava intrigado comigo. Abri-me com d. Adélia, comentei aquele escândalo:

– A senhora aprova o comportamento de sua filha? D. Adélia torceu as mãos, engoliu em seco e respondeu numa atrapalhação:– É a mocidade. Perdi os estribos:– Que mocidade! É sem-vergonheza. Não lhe invejo a sorte, d. Adélia. Sua filha

acaba mal.

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Pouco a pouco nos fomos distanciando, um mês depois éramos inimigos. A prin-cípio houve brigas, reconciliações desajeitadas, conversas azedas com d. Adélia. Tempo perdido. Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. Comecei a passar trombudo pela calçada, remoendo a decepção, que procurei recalcar.

– Mulheres não faltam.

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– Cabritinha enxerida. Esfregando-se nos homens.O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas, íntimo da família, unha com

carne. Empurrava a porta, entrava como se aquilo fosse dele. Seu Ramalho nem se voltava: debruçado à janela, aperreado, fumando cachimbo, mordia os beiços, encolhia os ombros.

Vinha conversar comigo, desabafava:

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E Julião Tavares continuou a frequentar a casa, levando presentes às mulheres. As vezes jantava lá. Nesses dias um carregador trazia do armazém de Tavares & Cia. um caixão de embrulhos, latas e garrafas. Da minha sala de jantar, eu ouvia as conversas, as risadas, o barulho dos vidros e dos talheres. No fim a coisa descambava em discurso.

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Mais algumas pernadas, e os dois estavam defronte do café. Julião Tavares passava como um pavão. E o pessoal se calava, arregalava os olhos para Marina, que não ligava importância a ninguém, ia fofa, com o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, os beiços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinça. Entravam no cinema, Julião Tavares comprava um jornal. Na sala de espera toda a gente se voltava, com uma per-gunta nos olhos. Julião Tavares sentava-se, fingia ler os telegramas, vaidoso. – “Quem é?” Informações em voz baixa, muita inveja. Sim senhor. Que bicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homens............................................................................................................................................

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As visitas de Julião Tavares foram escasseando e a alegria ruidosa de Marina pouco a pouco desapareceu. Havia grande silêncio na casa vizinha. Seu Ramalho estava contente.

– Parece que a tonta criou juízo.– Acha? perguntei incrédulo.– É cá uma ideia. Essa gente moça desembesta e faz tolice. É o sangue. Mas um

dia acerta a pisada.D. Adélia andava com a cara comprida e o nariz vermelho, assoando-se e soltando

longos suspiros. Uma tarde encontrei Marina engulhando junto ao mamoeiro. Eram arrancos que a sacudiam toda, a faziam torcer-se agarrada ao tronco, o rosto contraído, muito descorado. Não me viu e entrou em casa cuspindo.

– Que terá ela? disse comigo sem atinar com o motivo dos engulhos, da palidez e das cusparadas.

– An! Estava feia. Bem. Estava feia demais, amarela, torcendo-se, enxugando na manga a cara molhada de suor, tentando vomitar, cuspindo à toa na roupa.

– Ótimo!Onde andavam os vestidos caros, as tintas, os tremeliques e os modos insolentes

que escandalizavam d. Rosália? Estava ali com os músculos da cara repuxados, fechando os olhos, agitando a cabeça como uma lagartixa.

– Que diabo tem ela?Desgovernada, cuspindo-se.– Ótimo! Está muito bem assim. Que se lixe.

A soma desses últimos fatos acarreta certo desequilíbrio no narrador luís, que, aliás, já não apresenta comportamento sereno, racional, constante. resolve, então, matar Julião. A partir daí, o personagem luís talvez não tem consciência de que a eliminação de Julião poderia fazê-lo readquirir seu próprio equilíbrio anterior a esses últimos acontecimentos, ainda que esse equilíbrio precário o fa-ria voltar ao eixo da rotina entediante e mesquinha na qual vivera até ali. tanto isso é verdadeiro que, durante o assassinato, luís sente-se forte e importante, desmentindo a própria autoavaliação que sempre se fazia, no sentido de que ele era pessoa insignificante.

luís assassina Julião por enforcamento, de madrugada, numa rua de-serta, esperando-o na escuridão e enlaçando-o pelo pescoço com uma corda. com enorme esforço, por culpa do peso do morto, consegue levantá-lo por um galho de uma árvore, deixando-o pendurado pela corda, com o intuito de simular suicídio.

Ferido nas mãos, cansado, sujo e rasgado, lentamente volta para casa. pede que a empregada Vitória ligue para a “repartição” avisando que ele não está bem e que não vai trabalhar.

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Marina era instrumento e merecia compaixão. d. Adélia era instrumento e merecia compaixão. Julião Tavares era também instrumento, mas não tive pena dele. Senti foi o ódio que sempre me inspirou, agora aumentado.

Necessário que ele morresse. Julião Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue. Em sonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados, a língua fora da boca.

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Julião Tavares parou e acendeu um cigarro. Por que parou naquele momento? Eu queria que ele se afastasse de mim. Pelo menos que seguisse o seu caminho sem ofender-me. Mas assim... Faltavam-me os cigarros, e aquela parada repentina, a luz do fósforo, a brasa esmorecendo e avivando-se na escuridão, endoidecia-me. Fiz um esforço desesperado para readquirir sentimentos humanos:

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Contraí as mãos frias e molhadas de suor, meti-as nos bolsos para aquecê-las. Para aquecê-las ou levado pelo hábito. A aspereza da corda aumentou-me a frieza das mãos e fez-me parar na estrada, mas a necessidade de fumar deu-me raiva e atirou-me para a frente. Entrei a caminhar depressa, receando que Julião Tavares escapasse. Novamente os passos leves no chão coberto de folhas secas. Distinguia-se agora muito bem a sombra escura na garoa peganhenta. A garoa me entrava no bolso e gelava os dedos, que esfregavam a corda.

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Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afas-taram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes, todos os moradores da cidade eram figurinhas insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da Pedra, a palmatória de mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. Tanta empáfia, tanta lorota, tanto adjetivo besta em discurso – e estava ali, amunhecando, vencido pelo próprio peso, esmorecendo, escor-regando para o chão coberto de folhas secas, amortalhado na neblina. Ao ser alcançado pela corda, tivera um arranco de bicho brabo. Aquietava-se, inclinava-se para a frente,

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os joelhos dobravam-se, o corpo amolecia. Eu tinha os braços doídos e as mãos cortadas. Enquanto Julião Tavares estivesse com a cabeça erguida, a minha responsabilidade não seria tão grande como depois da queda............................................................................................................................................

Com os diabos!E larguei o corpo, que foi bater numa cerca, por baixo de uns galhos de árvore que

aumentavam a escuridão.– Com os diabos! Sentei-me ao pé da cerca, enxuguei o suor que me corria pela testa. Cansado. A mão

direita doía-me horrivelmente, mas continuei a apertar com ela a corda que a circulava. A mão esquerda estava livre. Levei-a ao bolso à procura de cigarros.

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Os dentes já não batiam. Curvei-me, procurando a cabeça de Julião Tavares. Encontrei o chapéu caído, um braço, que soltei arrepiado porque nunca havia tocado em cadáveres. A ideia de que Julião Tavares era um cadáver estarreceu-me. Não tinha pen-sado nisto. Horrível o corpo imóvel, esfriando. Lá estava a cabeça ainda morna. Enjoado, cuspindo muitas vezes, erguia-a, passei o laço no pescoço. Prendi nos dentes a outra ponta da corda, subi à cerca, trepei-me num galho da árvore. E comecei o trabalho de guindar o morto. A mão direita puxava a corda, que se movia lenta por cima do ramo; do outro lado a mão esquerda aguentava o peso do corpo.

Na sequência, fica prostrado, de cama. Seus dois únicos amigos, Moisés e pimentel, vêm visitá-lo. continua acamado, vivendo intensa angústia, diante da possibilidade de seu crime ser descoberto e ele vir a ser preso e julgado culpado. Começa a desconfiar de que está sendo vigiado por quase todos e, a partir daí, seu pensamento torna-se confuso. em sua cabeça, misturam-se imagens do passado e do presente. é um processo extremamente doloroso para ele, porque, acima de todo esse embaralhar de ideias, sobreleva a síndrome de vir a ser descoberto, preso e condenado, mas ele precisa descansar. numa espécie de delírio, pessoas com quem ele convivera no passado chegam, e ele as convida para se deitarem com ele em sua cama e descansarem juntos.

luís precisa descansar de seus ódios, de suas dores e humilhações morais, de suas frustrações e de seus medos.

Todo aquele pessoal entendia-se perfeitamente. O homem cabeludo que só cui-dava da sua vida, a mulher que trazia uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro vaqueiro, as figuras do reisado, um vagabundo que dormia nos bancos dos jardins, outro vagabundo que dormia debaixo das árvores; tudo

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estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor. José Baía acenava-me de longe, sorrindo, mostrando as gengivas banguelas e agitando os cabelos brancos. – “José Baía, meu irmão, estás também aí?” José Baía, trôpego, rompia a marcha. Um, dois, um, dois... A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Baía e vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, sinha Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha deitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar-se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades. – “José Baía, meu irmão, há que tempo!” As crianças corriam em torno da barca. – “José Baía, meu irmão, estamos tão velhos!” Acomodavam-se todos. 16.384. Um colchão de paina. Milhares de figurinhas insignifi-cantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras. 16.384. Íamos descansar. Um colchão de paina.

peRsonaGens

luís da silva – personagem narrador, protagonista, vai colocando-nos a par do universo da obra através de seu pensamento contínuo, à medida que se desnuda espiritual, mental e moralmente. Assim, vamos conhecendo, principal-mente, seu ódio por tudo aquilo que, provavelmente, ele gostaria de possuir ou viver, mas, diante da impossibilidade de alcançar certos objetivos ou realizar alguns de seus sonhos, sente-se socialmente inferiorizado pelas suas limitações econômicas e pela dificuldade em lidar com o prazer e com a sexualidade, sendo, inclusive, desajeitado com as mulheres. sente-se humilhado, age com timidez, tende à solidão, convivendo apenas com algumas poucas pessoas. isolado, torna-se amargo, pessimista, mesquinho, às vezes cínico e sempre profundamente frustrado. tem baixa autoestima, achando-se inferior sob o ponto de vista cul-tural, apesar de ser dono de razoável erudição. odeia os ricos, vendo-os como exploradores e parasitas, e despreza os que classifica de pseudointelectuais. Esse comportamento acaba por colocar em segundo plano qualidades positivas da sua personalidade, como experiência de vida, cautela, sentimento de piedade, de respeito e compreensão, relativamente a algumas pessoas.

A maior parte da narração acontece num período em que luís é funcioná-rio público e redator de jornal. Antes disso, fora “instrutor de primeiras letras” (professor alfabetizador), trabalhando como itinerante, de fazenda em fazenda. bastante lido e culto.

Trabalho num jornal. À noite dou um salto por lá, escrevo umas linhas. Os chefes políticos do interior brigam demais. Procuram-me, explicam os acontecimentos locais, e faço diatribes medonhas que, assinadas por eles, vão para a matéria paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pela publicação.

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Arrumo desaforos em quantidade, e para redigi-los necessito longas explicações, por-que os matutos são confusos, e acontece-me defender sujeitos que deviam ser atacados.

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O carro passa pelos fundos do tesouro. É ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado.

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(...) positivamente que ela me observava. Encabulei. Sou tímido: quando me vejo diante de senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo regulamento. O Estado não me paga para eu olhar as pernas das garotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou feio. Perfeitamente, tenho espelho em casa. Os olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso.

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Caminho como um cego, não poderia dizer por que me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio – e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel para bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me. – “Perdão! Perdão!” digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho.

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A minha camisa estufa no peito, é um desastre. Quando caminho, a cabeça baixa, como a procurar dinheiro perdido no chão, há sempre muito pano subindo-me na barriga, machucando-se, e é necessário puxá-lo, ajeitá-lo, sujeitá-lo com o cinto, que se afrouxa. Estes movimentos contínuos dão-me a aparência de um boneco desengonçado, uma cria-tura mordida pelas pulgas. A camisa sobe constantemente, não há meio de conservá-la estirada. Também não é possível manter a espinha direita. O diabo tomba para a frente, e lá vou marchando como se fosse encostar as mãos no chão. Levanto-me. Sou um bípede, é preciso ter a dignidade dos bípedes. Um cachorro como Julião Tavares andar empertigado, e eu curvar-me para a terra, como um bicho! Desentorto o espinhaço. Que é que me pode acontecer? Se dr. Gouveia passar por mim, finjo não vê-lo. É impossível pagar o aluguel da casa. Não pago. Hei de furtar? Dr. Gouveia que se lixe.

Julião tavares – Antagonista de luís da silva. Fisicamente é forte, gordo, sempre suado e vestido com roupas caras. é bacharel, de razoável cultura, tem veleidades de poeta. Rico – filho de comerciantes –, procura se mostrar satisfeito socialmente, sem a rebeldia de luís da silva, já que tem interesse pessoal em que

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as instituições funcionem, afinal de contas pertence a uma família capitalista, logo é conservador, católico e reacionário. individualista, consequentemente egoísta, só age em função de seu interesse pessoal, tanto que seduz várias jovens, as quais nada podem fazer contra ele, pois são mulheres de famílias pobres que acreditam em suas promessas de bem-estar, através de sua riqueza. no máximo, ele lhes dá uma pequena quantia de dinheiro para que se calem. Assim acontece também com marina, namorada de luís.

O outro sujeito inútil que nos apareceu era muito diferente. Gordo, bem vestido, per-fumado e falador, tão falador que ficávamos enjoados com as lorotas dele. Não podíamos ser amigos. Em primeiro lugar o homem era bacharel, o que nos distanciava. Pimentel, forte na palavra escrita, anulava-se diante de Julião Tavares. Moisés, apesar de falar cinco línguas, emu-decia. Eu, que viajei muito e sei que há doutores quartaus, metia também a viola no saco.

Além disso Julião Tavares tinha educação diferente da nossa. Vestia casaca, fre-quentava os bailes da Associação Comercial e era amável em demasia.

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Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo por alto a vida, o nome e as intenções do homem. Família rica. Tavares & Cia., negociantes de secos e molhados, donos de prédios, membros influentes da Associação Comercial, eram uns ratos. Quando eu passava pela Rua do Comércio, via-os por detrás do balcão, dois sujeitos papudos, carrancudos, vestidos de linho pardo e absolutamente iguais. Esse Julião, literato e bacharel, filho de um deles, tinha os dentes miúdos, afiados, e devia ser um rato, como o pai. Reacionário e católico.

– Por disciplina, entende? Considero a religião um sustentáculo da ordem, uma necessidade social.

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Em toda a parte era assim. Derramava-se no bonde e se alguém lhe tocava as pernas, desenroscava-se com lentidão e lançava ao importuno um olhar duro.

Eu encolhia-me, reduzia-me e, em caso de necessidade, sentava-me com uma das ná-degas. As viagens se tornavam horrivelmente incômodas, mas havia-me habituado a elas, e ainda que o carro estivesse deserto, não poderia espalhar-me como Julião Tavares: receava que me viessem empurrar e tomar, sem pedir licença, algumas polegadas da tábua estreita.

Marina – Jovem bonita, sensual, fútil, vaidosa, volúvel e superficial, além de indolente. Gasta as economias de luís da silva a título de preparar-se para se casar com ele, no entanto, com grande facilidade, é seduzida por Julião tavares, abandonando luís. Grávida de Julião, é relegada por ele. Aborta clandestina-mente, sendo xingada de puta e ameaçada por luís de ser denunciada à polícia. Essa reação reflete toda a mágoa e rancor de seu ex-noivo.

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O vulto que se mexia não era a senhora idosa: era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam oxigenados. Foi só o que vi, de supetão, porque não sou indiscreto, era (inconveniente olhar aquela desconhecida como um bas-baque. Demais não havia nada interessante nela.

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Se aquela tonta prestasse, estaria ajudando a mãe, ensaboando panos. Preguiça. Estava era lendo besteiras, arrancando cabelos das sobrancelhas com a pinça ou raspando os sovacos. A princípio ainda tratara dos canteiros. Habituara-se depois a levar para ali um romance, que não abria. Conversava. E eu me zangava com as conversas dela, que, como já disse, eram malucas. Zangava-me de verdade. Mas estava ali com os olhos meio fechados, espiando os canteiros e esperando que a mulherinha chegasse.

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Estava num entorpecimento estúpido. Tive a impressão extravagante de que o ar havia tomado de repente a consistência mole e pegajosa de goma-arábica. Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, nadava, desesperadamente bonita, o peitinho redondo subindo e descendo, a querer saltar pelo decote baixo, pimenta nos olhos azuis, os cabelos de fogo desmanchando-se ao vento morno e empestado que soprava dos quintais. Veio-me o pensa-mento maluco de que tinham dividido Marina. Serrada viva, como se fazia antigamente. Esta ideia absurda e sanguinária deu-me grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cabeça e tronco para outro. A parte inferior mexia-se como um rabo de lagartixa cortado. Mas eu não reparava na parte inferior, que tanto me perturbara: recebia as faíscas dos olhos azuis e desejava enxugar com beijos a saliva que umedecia os beiços um pouco grossos da minha amiga. Estava linda. Tinha corrido por ali alguns minutos como um rato, chiando. Eu era um gato ordinário. Podia saltar em cima dela e abocanhá-la ao pé das estacas podres que Vitória remove todos os meses, desafiava-me com os olhos e com os dentes miúdos. Não saltei.

Vitória – empregada, agregada de luís. Aparentemente distraída ou ma-luca, mas percebe tudo o que se passa a seu redor. tem o hábito de enterrar suas economias em buracos feitos no quintal, às vezes “roubando” algum dinheiro dele, mas devolvendo-o posteriormente, num gesto sem explicação. tem, ainda, o hábito de ler a seção dos jornais em que se noticiam chegadas e partidas de navios. talvez, através desse hábito, queira dizer para o patrão luís que ele de-veria mudar de vida, viajar, ir para outro lugar; já que, para ela, é visível que o patrão, ali, naquela cidade, apenas “patinava” sem sair do lugar, girando como parafuso em volta do seu próprio eixo, que era, no mínimo, frágil e difuso.

Quando se cansa, agarra o jornal e lê com atenção os nomes dos navios que chegam e dos que saem. Nunca embarcou, sempre viveu em Maceió, mas tem o espírito cheio de barcos. Dá-me frequentemente notícias deste gênero:

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– O Pedro II chega amanhã. O Aratimbó vem com atraso. Terá havido desastre?Não sei como se pode capacitar de que a comunicação me interessa. Há três anos,

quando a conheci, a mania dela me espantava. Agora estou habituado. Leio o jornal e deixo-o em cima da mesa, dobrado na página em que se publica o movimento do porto. Vitória toma a folha e vai para a cozinha ler ao papagaio a lista dos viajantes.

No princípio do mês, quando se aproxima o recebimento do ordenado, excita-se e não larga o Diário Oficial

– Faltam dois dias, falta um dia, é hoje.E faz cálculos que não acabam, cálculos inúteis, porque não gasta nada: usa os

meus sapatos velhos e traz um xale preto amarelento que deve ter dez anos.Recolhe a mensalidade e mete-se no fundo do quintal, põe-se a esgaravatar a terra

como se plantasse qualquer coisa. Esquece os navios e as lições ao papagaio.Volta a tratar das ocupações domésticas, mas de quando em quando lá vai rondar

a mangueira e acocorar-se junto ao canteiro das alfaces. Dá um salto à cozinha, fala com o louro, tempera a boia. Minutos depois está novamente remexendo a terra.

Observo esses manejos. Sentindo-se observada, levanta-se, deita água no caco das galinhas, vai ao banheiro, sai com uma braçada de roupa, que estende no arame esticado entre a cerca e um dos ramos da mangueira. Entra em casa, abre o jornal e anuncia:

– O delegado fiscal viajou ontem.Nota, pela minha cara, que o delegado fiscal não me interessa e dá uma notícia

importante:– O arcebispo chegou do Rio.

dona adélia – mãe de marina. senhora humilde, infeliz, silenciosa. Amorosa com a filha, sobre quem não tem nenhuma autoridade, receosa até mesmo de aconselhá-la, quanto mais de admoestá-la a propósito de seu com-portamento reprovável. mais pede que ordena.

seu Ramalho – pai de marina. é um homem quieto, bom, sério, mas sem muita autoridade sobre a família e principalmente sobre a filha. Censura o comportamento dela em relação a Julião tavares. conversa com luís de vez em quando. sofre de asma.

Moisés – Amigo de luís e mais radical do que ele, quanto ao sentimento socialista. esse é seu assunto preferido. Além de pessimista, revolta-se com a injustiça social e com todo tipo de opressão. é atuante, prega suas ideias sempre que pode e costuma carregar consigo folhetos revolucionários.

é poliglota, inteligente e lê jornais com muita rapidez. tem um tio judeu, dono de loja, com quem trabalha. Vende fiado para Luís, que vai lhe pagando quando pode, e, enquanto isso não acontece, moisés evita o amigo para não constrangê-lo por causa da dívida. é corcunda e personagem interessante.

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pimentel – também amigo de luís, como ele jornalista e socialista. muito prático, só conversa ou escreve sobre o que é de fato útil, necessário, portanto é uma pessoa quieta, de pouquíssimas palavras. é furioso em suas críticas escritas sobre a sociedade e sobre a política.

seu ivo – Vagabundo, andarilho, bêbedo, ladrão eventual. passa de vez em quando pela casa de luís, que ordena a Vitória servir comida para seu ivo. Às vezes bebem “aguardente” juntos. de vez em quando, dorme na casa algumas noites; de repente, desaparece por tempos. luís o aceita bem, gosta de conversar ou mexer com ele, mas às vezes se incomoda com sua presença e o enxota. é seu ivo que lhe dá a corda com a qual enforcaria Julião, algum tempo depois.

Camilo pereira da silva – pai de luís. Figura rude, “apagada” e de-simportante como pai, já que pouco faz na sua função. passa dias deitado preguiçosamente em redes, às vezes lendo, outras vezes preparando palha para futuros cigarros. Acaba por dilapidar os poucos bens que sobraram da decadente herança que seu pai trajano, avô de luís, deixara.

durante a morte e velório de camilo, percebe-se o abandono em que fora criado luís. esse momento é uma das mais tocantes situações narradas no livro.

trajano pereira de aquino Cavalcante e silva – pai de camilo e avô de luís. Fazendeiro, ainda rico, mas já decadente. Homem de personalidade for-te, ao contrário do filho Camilo e do neto Luís. Ele não só inveja as facetas do caráter do avô, como, às vezes, envergonha-se diante de lembranças de certas ações corajosas de trajano, que acaba seus dias pobre e esclerosado.

espaÇo

A ação se passa em maceió, capital de Alagoas, estado natal de Graciliano ramos. pela narrativa não se percebe a cidade como um todo, porque o narrador não se preocupa em registrá-la de forma precisa, mas aparecem, fragmentada-mente, ruas, cafés, prostíbulo, igrejas e bairros. o sentimento que a personagem tem em relação à cidade é de falta de identificação com ela e até de desagrado.

teMpo

o tempo cronológico é o dos anos trinta, século xx, logo após o início do primeiro governo de Getúlio Vargas, mas prevalece o tempo psicológico, a ação interior através do fluxo das ideias e dos pensamentos de Luís da Silva. A ação se desenvolve nas frinchas do labirinto composto pelo incessante ir e vir do pensar do personagem narrador.

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FoCo naRRatiVo

A narração é feita em primeira pessoa pelo protagonista luís da silva, portanto não é narração onisciente, o que implica limitações naturais quanto às informações que o narrador tem sobre fatos a que ele não assistiu. no entanto, há algumas ações que, apesar de não terem sido presenciadas pelo personagem, são imaginadas por ele e devem, então, ser aceitas, pelo leitor, como reais.

Como as ações se desenvolvem dependentes do fluxo do raciocínio do narrador, não se trata de narração linear, cronológica. A narração avança ou recua no tempo, em relação ao presente, sendo natural a quantidade de flashbacks de que se compõe o texto, tanto assim que o primeiro capítulo, cronologicamente, corresponde a um tempo posterior ao assassinato de Julião por luís, quando este está se recuperando dessa terrível ação.

a CRÍtiCa

Também a solidão de Luís da Silva, em Angústia, cola-se à vida de um pequeno funcionário, de veleidades literárias, mas condenado a esgueirar-se na mornidão poenta das pensõezinhas de província e a repetir até à náusea os contatos com um meio onde o que não é recalque é safadeza. Tudo nesse romance sufocante lembra o adjetivo “de-gradado” que se apõe ao universo do herói problemático. A existência de Luís da Silva arrasta-se na recusa e na análise impotente da miséria moral do seu mundo e, não tendo outra saída, resolve-se pelo crime e pela autodestruição. O livro avança com a rapidez do objeto que cai: sempre mais velozmente e mais pesadamente rumo à morte e ao nada. Estamos no limite entre o romance de tensão crítica e o romance intimista. De um lado, a brutalidade da linguagem que degrada os objetos do cotidiano, avilta o rosto contemplado e cria uma atmosfera de mau humor e de pesadelo; de outro, a autoanálise, a “parada” que significa o esforço de compreender e de dizer a própria consciência. E tudo parece preparar o longo monólogo final que abraça um sem-número de imagens de um mundo hostil e as aquece com a febre que a recusa absoluta produziu na alma do narrador. Romance existencialista avant la lettre, Angústia foi a experiência mais moderna, e até certo ponto marginal, de Graciliano. Mas a sua descendência na prosa brasileira está viva até hoje.

Alfredo bosi in História concisa da literatura brasileira.

(...) A realidade, nos romances de Graciliano Ramos, não é deste mundo. É uma realidade diferente. Após ter lido Angústia até o fim, é preciso reler as primeiras pági-nas, para crompreendê-las. É um mundo fechado em si mesmo. Que mundo é?

“Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignifican-tes. Depois um esquecimento quase completo” – confessa Luís da Silva em Angústia. E depois: ”Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente. Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento.” E confessa:

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“Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim.” É assim com todos nós outros, quando entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, onde os roman-ces de Graciliano Ramos se passam: no sonho. Os hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos insignificantes com fortes afetos inexplicáveis, eis a própria “técnica do sonho”, no dizer de Freud. Álvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos, observa agudamente a abstração do tempo – “Mas no tempo, não havia horas”, cita o crítico – e acrescenta: “As outras personagens são projeções da personagem principal. Julião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro da personagem principal – inclusive o instrumento do crime.” Estas palavras do crítico constituem a chave da obra do romancista: descrevem perfeitamente a nossa situação no sonho, em que tudo é criação do nosso próprio espírito. (...)

Otto Maria Carpeaux, Visão de Graciliano Ramos.

5. exeRCÍCios1. (Fuvest-sp)

(...) Sem dúvida o meu aspecto era desagradável, inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois ape-lidos: bezerro-encourado e cabra-cega. (...)

Devo o apodo ao meu desarranjo, à feiúra, ao desengonço. Não havia roupa que me assentasse no corpo: a camisa tufava na barriga, as mangas se encurtavam ou alon-gavam, o paletó se alargava nas costas, enchia-se como um balão. (...)

Zanguei-me permanecendo exteriormente calmo, depois serenei. Ninguém tinha culpa do meu desalinho, daqueles modos horríveis de cambembe. Censurando-me a inferioridade, talvez quisessem corrigir-me. (...)

1. o trecho acima, narrado em 1ª pessoa, foi extraído do livro infância, de Graci-liano Ramos. O autorretrato lido permite identificarmos uma das personagens importantes do livro Angústia, do mesmo autor. indique-a.a) camilo pereira da silvab) moisésc) seu ivod) Julião tavarese) luís da silva

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2. o último período do texto fornece com perfeição um traço da personalidade do narrador de Angústia, encontrado na alternativa:a) intensa rebeldia contra seus próprios familiares.b) Autocrítica levando à baixa autoestima.c) despreocupação com a opinião alheia a seu próprio respeito.d) Humor negro sobre o comportamento humano.e) discordância sistemática da opinião de terceiros.

3. Aponte a alternativa em que se encontra uma característica modernista presente no livro Angústia, de Graciliano ramos.a) Atitude crítica em relação a certos valores sociais, como o provincianismo e

a falta de cultura.b) Ênfase a aspectos regionais e a tradições populares.c) clara aversão a comportamentos ditados pelo modismo estrangeiro.d) Violações gramaticais sistemáticas, como forma de desprezo pela línguapadrão.e) opção pela narrativa linear, cronológica, evitando flashbacks.

4. (Unicamp-sp)leia o seguinte trecho extraído do romance Angústia.

Onde andariam os outros vagabundos daquele tempo? Naturalmente a fome antiga me enfraqueceu a memória. Lembro-me de vultos bisonhos que se arrastavam como bichos, remoendo pragas. Que fim teriam levado? Mortos nos hospitais, nas cadeias, debaixo dos bondes, nos rolos sangrentos das favelas. Alguns, raros, teriam conseguido, como eu, um emprego público, seriam parafusos insignificantes na máquina do Estado e estariam visitando outras favelas, desajeitados, ignorando tudo, olhando com assombro as pessoas e as coisas. Teriam as suas pequeninas almas de parafusos fazendo voltas num lugar só.

rAmos, Graciliano. Angústia, rio de Janeiro:ed. record, 56. ed. 2003, p. 140-1.

a) no momento da narração, a posição social do narrador personagem difere de sua condição de origem? Responda sim ou não e justifique.

b) na citação acima, o termo “parafusos” remete ao verbo “parafusar” que, além do significado mais conhecido, também tem o sentido de “pensar”, “cismar”, “refletir”, “matutar”. Como esses dois sentidos podem ser relacionados ao modo de ser do narrador personagem?

c) de que maneira o segundo sentido do verbo “parafusar” está expresso na técnica narrativa de Angústia?

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5. (UFpR)A respeito de Angústia, de Graciliano Ramos, é correto afirmar:01) este é um volume do famoso ciclo da cana-de-açúcar, em que se narra a vinda

de um rapaz do engenho falido do avô, onde fora criado, para a cidade.02) o crime de luís da silva nos é apresentado como passional, mas é possível

dizer que ele também representa uma desforra social.04) trata-se de um romance regionalista típico, já que sua ação, passada no ser-

tão alagoano, gira em torno de um crime político muito comum no nordeste brasileiro.

08) luís da silva, oriundo de uma família de proprietários rurais, sente-se isolado na cidade, não se enquadrando bem em nenhum círculo social.

16) o narrador onisciente em 3ª pessoa permite a exploração psicológica de um crime tanto por parte do assassino, luís da silva, quanto da vítima, Julião tavares.

32) em várias ocasiões, a forma escolhida por luís da silva para cometer o as-sassinato – o enforcamento – é antecipada. exemplo disso é a semelhança que ele vê entre um cano exposto na cozinha de sua casa e uma corda.

64) A personagem principal, luís da silva, deseja uma revolução socialista, pois essa revolução pode transformá-lo em alguém mais importante que Julião tavares.

6. de forma sucinta, destaque as principais diferenças sociais e de personalidade entre luís da silva e Julião tavares.

7. (UdF)Aponte o item que melhor conceitua a obra Angústia, de Graciliano ramos. a) essa obra complementa Memórias do Cárcere, do mesmo autor, relativamente

às suas memórias, mas sem o seu envolvimento político.b) Narrativa ficcional de forte tendência psicológica, seguindo o fluxo do pen-

samento do narrador em 1ª pessoa.c) A exemplo das narrativas de Jorge Amado e érico Veríssimo, em Angústia,

Graciliano ramos privilegia a ação, de forma a registrar o universo das tra-dições nordestinas.

d) em Angústia, o autor movimenta as personagens em ações que lhe permitem registrar as relações exteriores entre pessoas de diferentes crenças e origens, como num painel ou palco teatral.

e) os contos reunidos no volume Angústia, de interação psicológica, assemelham-se aos de insônia, do mesmo autor, e a algumas coletâneas de clarice lispector.

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8.Quatro das frases abaixo são de luís da silva, protagonista do livro Angústia, de Graciliano ramos, e, ainda que fragmentadamente, ajudam a compor sua reali-dade psicológica e social. A quinta frase foi dita pelo antagonista Julião tavares e mostra uma faceta de sua personalidade. marque-a.a) À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o

pensamento vadio, longe do artigo que me pediram para o jornal.b) Agarrava a papelada com entusiasmo de fogo de palha. Tempo perdido.c) Afinal, para a minha história, o quintal vale mais do que a casa. Era ali, debaixo da

mangueira, que, de volta da repartição, me sentava todas as tardes, com um livro.d) Por disciplina, entende? Considero a religião um sustentáculo da ordem, uma neces-

sidade social.e) A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se.

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GabaRito1. e A dificuldade de inserção social, de conví-

vio, e a autocrítica severa são traços identi-ficadores do protagonista de Angústia, luís da silva.

2. b esse é um dos caracteres mais marcantes na

personalidade do protagonista luís da silva, de Angústia.

3. A b: a narrativa não tem preocupação regio-

nalista; c: não há nenhuma alusão a isso no texto; d: algumas falhas gramaticais são decorrentes do falar de personagens; e: a narração segue o fluxo do pensamento ou da consciência do personagem narrador.

4. a) Antes do momento narrado no trecho, luís

fora neto de proprietário rural decadente e filho de pequeno comerciante. Órfão, foi socorrido por conhecidos, também pobres. posteriormente, chegou a ser pedinte, ser-viu ao exército, foi mestre-escola, trabalhou como revisor, além de fazer poesias para ven-der para estudantes, acabando por chegar a funcionário público e redator de jornal. essas duas últimas atividades compunham a sua situação social no momento registrado pelo texto e lhe davam alguma estabilidade.

b) O primeiro significado tem o sentido de mera peça de um mecanismo maior, ou seja, insignificância. O segundo uso remete à estagnação social em que vivia o narra-dor: girava à volta do seu próprio eixo sem

sair do lugar, sem evoluir na escala social, atormentado pelas suas reflexões repetidas sobre seus ódios, ressentimentos e culpas.

c) o pensamento de luís gira em torno pra-ticamente das mesmas coisas, e uma delas é verdadeiramente uma obsessão, como se fosse uma “ideia-parafuso”: o assassinato de Julião tavares. essa ideia vai e volta constantemente, até que ele a realiza, o que lhe dá a sensação de algum poder, de não ser, afinal, tão insignificante; quem sabe assim tenha saído do lugar, do buraco em que fora colocado para ficar girando em torno de si mesmo.

5. 2 + 8 + 32 = 406. luís é pobre, sente-se fracassado e humilha-

do diante da sociedade; desenvolve rancor e pessimismo em relação a todos que, social-mente, estão em melhor condição que ele, além de criticar quase tudo na sociedade. Ao contrário dele, Julião tem dinheiro e é egoísta, não tendo nenhuma preocupação social em relação aos outros, pois, para ele, conta apenas o seu próprio interesse.

7. b Angústia é romance introspectivo, narrado

pelo personagem protagonista luís da silva.

8. d A atitude rebelde e anárquica de luís da sil-

va coloca-o antagonicamente às instituições sociais, ao contrário de Julião tavares, que, bem-sucedido economicamente, sente-se em paz com essas instituições.

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