algumas considerações em torno da construção de · pdf...

Download Algumas considerações em torno da construção de · PDF fileHeródoto refiere Tartessos como un territorio occidental frecuentado por Focences y Samios en torno a los siglos VII

If you can't read please download the document

Upload: truongnga

Post on 08-Feb-2018

221 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 91

    Algumas consideraes em torno da construo deTartessos em Herdoto

    Gerin2009, 27, nm. 1 91-125

    ISSN: 0213-0181

    Pedro ALBUQUERQUE*

    RESUMENHerdoto refiere Tartessos como un territorio occidental frecuentado por Focences y Samios en torno a lossiglos VII y VI a.C. (I, 163 y IV, 152). Estes relatos son analizados de acuerdo con la tradicin pica, cuyaimportancia es notoria en el siglo VI a.C. en la poesa, as como con la construccin de los paisajes mticosoccidentales en Hesiodo y en los Poemas Homricos.

    Palabras clave: Hesiodo; Poemas Homricos; Herdoto; Paisajes Mticos Occidentales; Tradicin pica.

    Some considerations about the construction of Tartessos in Herodotus (I, 163 and IV, 152)

    ABSTRACTHerodotus refers Tartessos as an occidental territory visited by Phoceans and Samians around the VII and VICenturies B.C. (I, 163; IV, 152). These stories are analised according to Epic Tradition, which importance isnoted around VI Century B.C. in poetry, as well as the construction of the occidental mythological landsca-pes in Hesion and in the Homeric Poems.

    Key words: Hesiod; Homeric Poems; Herodotus; Occidental mythological landscapes; Epic Tradition.

    Universidad de [email protected]

    A Francisco Moreno Arrastio, com admirao

    "O texto no muda. O que muda o nosso olhar. Mas o texto no age sobre as reali-dades do mundo seno atravs do filtro do nosso olhar. Olhar que em cada poca sedemora sobre certas frases e desliza por outras sem as ver."

    Amin Maalouf, As Identidades Assassinas

    * O presente texto uma verso abreviada da dissertao de Mestrado em Pr-histria e Arqueologiaapresentada Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o ttulo Tartessos: Entre Mitos eRepresentaes (Albuquerque, 2008), orientada pela Prof. Ana Arruda e Prof. Jos S. Horta. Devo dirigir umagradecimento muito especial aos membros do jri (Rui Morais, Ana Arruda, Jos Horta, Amlcar Guerra eVictor Gonalves) pelos importantes comentrios que fizeram ao trabalho por ocasio da sua defesa, bemcomo a todas as pessoas que tornaram este trabalho possvel

  • Quando Herdoto refere, na sua obra, Tartessos, aparenta reproduzir tradiesorais, seleccionando as suas informaes e adaptando-as ao objectivo que o seu dis-curso impunha. Como o prprio autor afirma, o seu conhecimento do ExtremoOcidente para l das Colunas de Hracles (=CsH) diminuto, o que leva a conside-rar, como ponto de partida, que Tartessos no fazia parte dos interesses primordiaisdos nove livros da sua Histria. No entanto, o seu interesse pelos feitos humanos terconduzido apresentao de dois episdios: um, que lembra uma viagem colectiva(dos Focenses em I, 163) e outro, uma viagem individual (Colaios de Samos, em IV,152), ambos a Tartessos.

    O olhar de Herdoto sobre essas tradies deixa entrever alguns aspectos quetero estado na sua origem, nomeadamente um carcter pico. neste contexto queos textos de Hesodo e Homero ganham importncia, uma vez que neles encontra-mos elementos que podem ser utilizados quando nos debruamos sobre a ideia deOcidente que presidiu construo das paisagens ocidentais e, por conseguinte, dastradies que a elas se referem. Em primeiro lugar, tanto Os Trabalhos e os Diascomo Odisseia apresentam duas vertentes dessa construo: nestes poemas apresen-tam-se concepes escatolgicas, por um lado, e condies extraordinrias de vidahumana, por outro, cujas caractersticas so muito similares. Em segundo, estes poe-mas, embora tenhamos acesso sua reproduo escrita, destinavam-se a ser ouvidos,respeitando tpicos e frmulas que, como veremos, aparentam estar presentes nosrelatos de Herdoto1.

    O olhar que se lana sobre estes textos pretende destacar elementos literrios quelhes so comuns, procurando enquadrar os discursos nos contextos histricos em queforam produzidos e como pretendiam agir "sobre as realidades do [seu] mundo". Poreste motivo, o primeiro ponto (I) dedicado a algumas questes que os textos utili-zados levantam (Os Trabalhos e os Dias, Odisseia e Histrias). O segundo (II) decarcter metodolgico, onde se enquadra o olhar deste trabalho sobre o que se tratano ponto III: a representao do Ocidente. O ponto (IV) diz respeito concepo dosconfins da terra por Herdoto, onde se inclui os relatos sobre Tartessos. Esta anliseabre campo para a representao literria das riquezas do Ocidente no ponto (V) naperspectiva Helnica, enquanto que o ponto VI procura analisar o papel dos Fenciosnesta construo do Ocidente, transmitida sob a formulao de tpicos literrios,mormente baseados na riqueza agrcola e pastoril. Os aspectos tratados no trabalhoso discutidos no ponto VII.

    I

    1. A cronologia de Hesodo, bem como a sua anterioridade/ posterioridade emrelao a Homero, um tema de ampla discusso. Para alguns autores antigos, o

    Algumas consideraes em torno da construo de...P. Albuquerque

    92 Gerin2009, 27, nm. 1 91-125

    1 Excepto quando assinalado, utilizam-se as tradues de M. H. da Rocha Pereira (1998, Hesodo) , J.M.Pabn (2000, Odisseia) e C. Schrader (2000, Herdoto). As duas ltimas, nos trechos assinalados, so adap-tadas ao Portugus.

  • poeta de Ascra viveu antes da Olimpada de 776 (i.., entre 1100 e 850 a.C.)2, o quefoi questionado pela crtica mais recente. Hesodo no se enquadra na poesia pica,do mesmo modo que se diferencia dos Poemas Homricos pela introduo de dadosauto-biogrficos. A tradio no tem, necessariamente, um autor, ao passo que a suatransposio para um poema deve, necessariamente, ter. Por este motivo, muitos poe-mas foram atribudos, erroneamente, a um determinado autor, o que levou, p.e., F.Loureno (2006: 35 - 6) a considerar que Hesodo posterior a Homero.

    Ainda neste contexto, alguns autores salientam que algumas afirmaes do poetaseriam contemporneas dos scs. VIII e VII a.C. (cf. Lesky, 1995: 115ss; Finley,1982: 14-5), o que explicaria os versos de Trab. 653 - 659, em que se referem osjogos fnebres em honra de Anfidamante de Clcis. Porm, Plutarco afirma que osdois primeiros versos citados so esprios e relaciona o personagem com a GuerraLelantina (Moralia, 153 e-f; Tucdides I, 15, 3; Martn Snchez e Martin Snchez,1998: 106, n. 104), o que corresponderia a c. 700 a.C. (Osborne, 1998: 176 - 7).Nesta discusso entra tambm a questo da introduo do alfabeto, localizada no sc.VIII a.C. por alguns autores. Neste sentido, M. Bernal (1: 101) recua este fenmenoa cerca de 1400 a.C., colocando entre 1000 e 850 a.C. o auge da expanso fencia(Herdoto V, 58) e Hesodo no sc. X a.C.

    No obstante esta discusso, de referir que os poemas de Hesodo (Theog. eTrab.) aparentam receber tradies orientais e egpcias, provavelmente resultantes decolonizaes antigas (Bernal 1: 100 - 2, n. 59 e 62)3 ou de outros contactos. Estespoemas revelam-se, como, um ponto de encontro de tradies e civilizaes (egp-cia, fencia, babilnica, etc.), a julgar pela quantidade de traos comuns (MartnSnchez e Martn Snchez, 2000: 18; Lpez Ruiz, 2006: passim), cujas origens noso fceis de definir. A originalidade do poeta manifesta-se com a introduo daIdade dos Heris no Mito das Idades, onde se inclui a Ilha dos Bem-aventurados(=IBA) como destino dos heris de Tria e Tebas4.

    Os Trabalhos e os Dias, obra que coloca a mensagem de Teogonia no plano davida quotidiana, fundamental na proposta apresentada. Em termos gerais, umhino a Zeus (que coloca na primeira pessoa o autor e na segunda o seu irmo Perses)no contexto de uma disputa pela herana deixada pelo pai do poeta. Atravs destepoema verificamos a manifestao de um interesse especfico pelo trabalho humanoe pela justia distribuda por Zeus entre os lderes, num contexto poltico em que so

    Algumas consideraes em torno da construo de...P. Albuquerque

    93Gerin2009, 27, nm. 1 91-125

    2 De acordo com o Mrmore Prio (c. 264-263 a.C.: Canales Cerisola, 2004: 33, n. 4), Herdoto II, 53e Taciano I, 31, apud Bernal 1: 100, n.58). De facto, Herdoto refere que os autores citados so anteriores asi, pelo menos, quatrocentos anos, enumerando, por ordem, Hesodo e, depois, Homero, sem discutir quem anterior e quem posterior; Osborne (1998: 93) considera tambm que Hesodo ter vivido pela mesma pocaou um pouco antes de Homero.

    3 Para o tema das colonizaes antigas em espao helnico, veja-se a volumosa obra de Martin Bernal,Black Athena (ver referncias). Esta obra composta por trs volumes, dos quais consultei edies diferen-tes. Uma vez que apresentam datas de publicao distintas (1993, 1991 e 2006), optou-se por citar a obra con-soante o volume, isto , Bernal 1 (1993), 2 (1991) e 3 (2006).

    4 Estes espaos podem considerar-se como transversais a vrias culturas (cf. Martnez Hernndez, 1999:passim). A Idade dos Heris, por seu turno, um desvio ao esquema metlico apresentado pelo poeta.

  • os Basilei que julgam casos como este que ope os dois irmos5. O Mito de Prometeuexplica a condio humana: Zeus condenou o Homem ao trabalho (Trab. 42 - 105;Osborne, 1998: 172 - 174; Brown, 1998: 388). Para alm disso, Hesodo HabitavaAscra ("m no Inverno, terrvel no Vero, e nunca boa": Trab. 638 - 640) e, se aten-dermos ao seu discurso, os seus lderes no eram justos.

    Justia e prosperidade agrcola juntam-se, assim, em dois mundos opostos: porum lado, o dos homens de Ouro e, por outro, o da IBA, destinado a alguns heris.Estes mundos, pelo que o "Mito das Idades" d a entender, so o oposto do mundoda Idade do Ferro. O que equivale a dizer, como veremos, que estas condies idea-lizadas so projectadas para outros territrios que os heris visitam nas suas andan-as. Estes espaos so, necessariamente, diferentes daqueles onde so produzidos ospoemas: os seus habitantes vivem uma condio de abundncia (em contraste comas condies de sobrevivncia do "centro" do discurso) e sem guerras (em contrastecom a violncia, saques, invases, etc.). Por definio, no necessrio que as estas"utopias" (ou "mitos da cidade ideal") tenham uma localizao geogrfica (