a vida de laboratório - resenha

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A prática da ciência: uma etnografia no laboratório The practice of science: an ethnographic study inside the laboratory Simone Petraglia Kropf* Luiz Otávio Ferreira** *Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz **Doutor em sociologia, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365 Prédio do Relógio 21040-360 Rio de Janeiro — RJ Brasil A tradução para o português do livro de Latour e Woolgar nos coloca o JL\ desafio de fazer a resenha de uma obra que, depois de quase duas décadas de sua primeira edição, tornou-se um clássico dos chamados estudos sociais da ciência. Optamos por enfrentá-lo organizando a presente apresentação a partir de uma questão que, ao nosso ver, se apresenta como crucial para a compreensão tanto dos conteúdos mais substantivos — e inovadores do livro, bem como do lugar que ele vem ocupando no campo da história e sociologia da ciência. Trata-se da discussão sobre qual o sentido, a pertinência e as implicações teóricas de um estudo etnográfico sobre a atividade científica. Um primeiro e importante aspecto que merece ser considerado nessa perspectiva é a própria situação que deu origem à pesquisa de campo realizada por Bruno Latour entre 1975 e 1977 junto ao grupo de cientistas chefiado por Roger Guillemin, e que serviria de base para a redação do livro com Steve Woolgar. No início da década de 1970, Latour trabalhava como pesquisador em sociologia do desenvolvimento na Costa do Marfim, com o seguinte objetivo: "explicar por que era tão difícil para executivos negros aclaptarem-se à vida industrial moderna" (Latour, 1986, p. 273). Argumentava que essa dificuldade não era, como muitos pretendiam, uma questão de inabilidade cognitiva intrínseca àqueles indivíduos, mas um problema relacionado ao processo de formação escolar, reprodutor do modelo francês, que desconsiderava que o aprendizado teórico requerido pela atividade tecnológica moderna estava totalmente dissociado das práticas concretas relativas à vida social dos alunos. Estimulado pela interlocução com seus colegas antropólogos, Latour (idem, p. 274) chegou a uma indagação que mudaria o rumo de seus interesses teóricos: "O que aconteceria a essa grande divisão entre raciocínio científico e raciocínio pré-científico se os mesmos méto- dos de campo usados para estudar os agricultores da Costa do Marfim fossem aplicados a cientistas de primeira linha?" Foi nessa ocasião que o professor Guillemin convidou-o a desenvolver uma pesquisa no Instituto Salk, na Califórnia. As reflexões de Latour na África nos fornecem uma chave importante para compreendermos a perspectiva que motivou e orientou sua investigação da prática científica. Embora tenha sido chamado a realizar uma análise epistemológica do laboratório, foram o olhar e o método da antropologia que o transformaram no sociólogo da ciência que foi "ao campo" empreender um estudo empírico detalhado das atividades cotidianas dos cientistas em seu habitat natural. É importante mencionar que, ao iniciar o período de sua

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A vida de laboratório

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  • A prtica da cincia: umaetnografia no laboratrio

    The practice of science: an ethnographicstudy inside the laboratory

    Simone Petraglia Kropf*Luiz Otvio Ferreira**

    *Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz**Doutor em sociologia, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz

    Av. Brasil, 4365 Prdio do Relgio 21040-360 Rio de Janeiro RJ Brasil

    A traduo para o portugus do livro de Latour e Woolgar nos coloca oJL\ desafio de fazer a resenha de uma obra que, depois de quase duasdcadas de sua primeira edio, tornou-se um clssico dos chamados estudossociais da cincia. Optamos por enfrent-lo organizando a presenteapresentao a partir de uma questo que, ao nosso ver, se apresenta comocrucial para a compreenso tanto dos contedos mais substantivos einovadores do livro, bem como do lugar que ele vem ocupando no campoda histria e sociologia da cincia. Trata-se da discusso sobre qual o sentido,a pertinncia e as implicaes tericas de um estudo etnogrfico sobre aatividade cientfica.

    Um primeiro e importante aspecto que merece ser considerado nessaperspectiva a prpria situao que deu origem pesquisa de camporealizada por Bruno Latour entre 1975 e 1977 junto ao grupo de cientistaschefiado por Roger Guillemin, e que serviria de base para a redao do livrocom Steve Woolgar. No incio da dcada de 1970, Latour trabalhava comopesquisador em sociologia do desenvolvimento na Costa do Marfim, com oseguinte objetivo: "explicar por que era to difcil para executivos negrosaclaptarem-se vida industrial moderna" (Latour, 1986, p. 273). Argumentavaque essa dificuldade no era, como muitos pretendiam, uma questo deinabilidade cognitiva intrnseca queles indivduos, mas um problemarelacionado ao processo de formao escolar, reprodutor do modelo francs,que desconsiderava que o aprendizado terico requerido pela atividadetecnolgica moderna estava totalmente dissociado das prticas concretasrelativas vida social dos alunos. Estimulado pela interlocuo com seuscolegas antroplogos, Latour (idem, p. 274) chegou a uma indagao quemudaria o rumo de seus interesses tericos: "O que aconteceria a essa grandediviso entre raciocnio cientfico e raciocnio pr-cientfico se os mesmos mto-dos de campo usados para estudar os agricultores da Costa do Marfim fossemaplicados a cientistas de primeira linha?" Foi nessa ocasio que o professorGuillemin convidou-o a desenvolver uma pesquisa no Instituto Salk, na Califrnia.

    As reflexes de Latour na frica nos fornecem uma chave importantepara compreendermos a perspectiva que motivou e orientou sua investigaoda prtica cientfica. Embora tenha sido chamado a realizar uma anliseepistemolgica do laboratrio, foram o olhar e o mtodo da antropologiaque o transformaram no socilogo da cincia que foi "ao campo" empreenderum estudo emprico detalhado das atividades cotidianas dos cientistas emseu habitat natural. importante mencionar que, ao iniciar o perodo de sua

  • imerso no laboratrio, Latour encontrava-se na clssica posio do etngrafoque depara com uma cultura a ele totalmente estranha. Como o prprioautor aponta, seu conhecimento de cincia era nulo e seu domnio da lnguainglesa, fraco. Alm disso, ele desconhecia totalmente a existncia cios estudossociais da cincia (idem, ibidem, p. 273). Esse ltimo ponto, surpreendenteem se tratando do autor que produziria um livro que marcaria o debatecontemporneo da sociologia da cincia, refora a centralidade assumida pelaabordagem etnogrfica. Foi essa perspectiva metodolgica o ponto de par-tida para a anlise da cincia proposta em A vida de laboratrio. O dilogocom as questes constitutivas daquele debate e tudo leva a crer que aparceria com Woolgar foi decisiva nesse sentido foi um desdobramento, eno o ponto de partida, das questes levantadas pelo trabalho emprico.

    O carter microscpico e artesanal da pesquisa de campo tem sidoapontado como um dos aspectos mais inovadores do ponto de vista dotratamento da cincia proposto pelo livro, por se diferenciar radicalmentedos estudos de natureza historiogrfica e/ou sociolgica que se baseavamestritamente em fontes textuais sem a observao direta da prtica cientficaem curso. Tal procedimento metodolgico veio de encontro aos preceitostericos do chamado Programa Forte da Sociologia do Conhecimento,elaborado por David Bloor e Barry Barnes na dcada de 1970, e que, seguindoa trilha aberta por Thomas Kuhn, pretendeu empreender uma anlisesociolgica dos contedos do conhecimento cientfico, rompendo assim comuma tradio de estudos sociais da cincia restrita investigao das relaesentre cientistas e dos aspectos institucionais da atividade cientfica. Poroutro lado, ainda que diretamente associado a esse programa terico maisamplo, o livro recebeu crticas justamente por sua suposta incapacidade ciedesdobrar, da descrio microssociolgica do laboratrio, questes quepermitissem uma compreenso global da cincia como atividade social. Aquesto que est na base dessa dualidade de leituras : qual o alcance tericoda pesquisa etnogrfica? O debate contemporneo entre os antroplogos arespeito do valor da etnografia e do vnculo entre teoria e pesquisa nosajuda a responder essa pergunta.

    Como indica Mariza Peirano (1995), a tradio terica da antropologiacontempla diversas formas de combinar a tenso sempre presente entre oparticular/etnogrfico e o universal/terico. Nesse sentido, o trabalho deClifforfd Geertz (1989) destaca-se ao chamar a ateno para a riqueza cioentrelaamento entre o repertrio de conceitos gerais das cincias sociais ea descrio minuciosa estabelecida pela etnografia ("descrio densa").Segundo esse autor, a pesquisa de campo ocupa um lugar central nainvestigao antropolgica, pois as anlises locais de eventos exticos so oque efetivamente propicia o tratamento de questes totalizacloras.Corroborando tal linha argumentativa, Peirano (1995, p. 43) afirma que "apesquisa etnogrfica o meio pelo qual a teoria antropolgica se desenvolvee se sofistica quanto desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comumno confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e aobservao dos nativos que estuda". De acordo com essa concepo, asetnografias constituem, mais do que os sistemas tericos por elas suscitados,a maior herana da antropologia, e essa a razo pela qual os dados levantadospor uma boa etnografia freqentemente servem de fontes para novasabordagens e formulaes tericas.

  • Partindo da viso de que os trabalhos etnogrficos podem e devem serefetivamente fertilizadores da teoria, cabe analisar em que sentido A vida delaboratrio desempenha este papel. Tal apreciao foi desenvolvida peloprprio Woolgar (1982) ao comentar o estado da arte dos estudos delaboratrio. Segundo o autor, uma questo fundamental levantada por taisestudos diz respeito ao seu valor metodolgico enquanto chave paraespecificar o carter da atividade cientfica, tendo por base a "clusula" daobservao da cincia "como ela acontece". Um caminho para avaliar asdiferentes respostas dadas a tal questo aponta no sentido de duas concepesdistintas sobre a natureza da abordagem etnogrfica tal como aplicada aoestudo da cincia, concepes estas que Woolgar chama de "instrumental" e"reflexiva".

    A concepo instrumental seria a que atribui etnografia de laboratrio opapel de "revelar", a partir de um acesso direto ao ambiente da prticacientfica, o que esta apresenta de novidade, de diferente em relao ao queera esperado. Uma conseqncia dessa leitura instrumental a crtica feitaaos estudos de laboratrio como linha de investigao meramente voltadapara os aspecto "micro" da cincia e, enquanto tal, incapaz de estabelecer osignificado especfico da atividade cientfica para alm dos limites internos econtingentes relativos ao cotidiano do laboratrio.

    Segundo Woolgar, o fato de os estudos de laboratrio basearem a anlisenas observaes detalhadas dos eventos locais referentes vida diria doscientistas significa que as questes analticas da derivadas no tenhamrelevncia. Ao contrrio, a grande virtude destacada nesses estudos,justamente devido ao seu carter etnogrfico, a capacidade de enfrentarproblemas de "macro" importncia usando "micro" materiais. O pontofundamental saber a quais questes dessa natureza eles buscam responder.Nesse sentido, Woolgar ressalta que a compreenso mais substantiva dasquestes para as quais se direciona o esforo analtico dos estudos delaboratrio exige que se v alm de uma concepo instrumental e que seadote uma concepo reflexiva da etnografia, que o que efetivamenterepresenta o principal propsito desse esforo.

    Woolgar afirma que, embora a pesquisa etnogrfica possa produzirnovidades sobre a cincia a partir da descrio minuciosa do laboratrio,esse um produto incidental da pesquisa etnogrfica reflexiva e no seuprincipal objetivo, que o de proporcionar a compreenso dos aspectos denossa prpria cultura que tomamos como estabelecidos. O estudo etnogrficodo laboratrio seria assim uma ocasio para investigar a atividade cientficacomo uma prtica social especialmente pertinente ao propsito de gerarinformaes sobre os processos sociais de raciocnio e argumentao emgeral. Parafraseando Geertz, ele afirma que a etnografia da prtica cientficadeve ser um estudo no laboratrio e no um estudo do laboratrio.1 justamente nesse sentido que a observao dos aspectos particulares ciavida de laboratrio pode oferecer sua contribuio terica mais efetiva, umavez que, "somente com uma concepo instrumental de etnografia, existe operigo de que as descries da prtica cientfica que emergem do laboratriocontinuem a servir apenas de ferragem para preocupaes tericas pre-concebidas" (idem, ibidem, p. 493). A orientao proposta por Woolgar nospermite resgatar o sentido original que levou Latour ao Instituto Salk e com-preender como o valor terico do livro produzido a partir dessa experincia

    1 Segundo Geertz

    1989), os etnlogosno estudam aldeias,mas em aldeias.

  • se nutriu de uma concepo de etnografia que, nas palavras de Geertz,apresenta-se como fonte no apenas de hipteses especficas relativas aocampo, mas sobretudo de um conjunto de padres de interpretao social ecultural (Peirano, 1995, p. 51).

    Se, de acordo com tal perspectiva, A vida de laboratrio deve ser lidocomo um estudo que permite refletir em que medida a cincia esclarecesobre as prticas gerais de raciocnio e argumentao, cabe a pergunta: Quaisos aspectos da anlise que nos conduzem mais substantivamente a essareflexo? Quais as ferramentas o livro apresenta para essa travessia cioparticular/etnogrfico ao universal/terico?

    O argumento central proposto por Latour e Woolgar que a cincia no sedistingue de outras prticas sociais, como postula a epistemologia, em funode uma superioridade cognitiva derivada da racionalidade intrnseca a estaatividade. O cientista, como qualquer outro ator social, algum que se utilizade estratgias persuasivas que visam garantir a aceitao dos enunciados porele produzidos. Nessa perspectiva, os autores corroboram a tese fundamentaldo Programa Forte, segundo a qual o conhecimento cientfico um sistemade convenes socialmente estabelecido e reproduzido. O princpiometodolgico que informa tal perspectiva o da simetria, ou seja, a idia deque tanto o enunciado cientfico "verdadeiro" quanto o "falso" assumem taisatributos no por suas qualidades internas distinguidas pelo "bom" ou "mau"uso do mtodo cientfico, mas em funo de um processo social deconvencimento que possibilitou que eles fossem reconhecidos enquanto tais.

    Porm, Latour e Woolgar declaram a inteno de estender o princpio ciasimetria na direo de um questionamento das prprias noes tradi-cionalmente aceitas pelos socilogos para explicar o carter "social" cioprocesso de fabricao do conhecimento cientfico. Esse foi o motivo que oslevou a no utilizar categorias como "fator social" ou "contexto social", masbuscar novos conceitos que pudessem explicar melhor os contornos prprios vida (social) da cincia.2 Assim, sua contribuio mais original seria fazeravanar a anlise sociolgica da atividade cientfica para alm cia tese de queesta socialmente construda, enfrentando efetivamente o desafio cie apontare compreender de que maneira a cincia, sendo uma prtica de construode enunciados e de argumentao persuasiva sobre a validade cios mesmos semelhante a outras prticas sociais, realiza concretamente essa prtica eem que sentido isso feito de maneira singular. Na nossa leitura, esse efetivamente o aspecto mais inovador e interessante da anlise desenvolvidana obra e, nessa perspectiva, o suporte emprico fornecido pela abordagemetnogrfica decisivo.

    A tese que Latour e Woolgar pretendem demonstrar que o fato cientfico,estvel e estabelecido como "natural", o resultado de um processo deconstruo que tem a peculiaridade de s se completar enquanto tal namedida em que capaz de apagar qualquer trao de si prprio. Ou seja, aproduo do fato cientfico depende necessariamente de estratgias eprocedimentos extremamente eficazes no sentido de eliminar os vestgiosda trajetria na qual ele foi produzido. Os autores buscam demonstrar essatese a partir de algumas noes cujo alcance explicativo testado no confrontocom o material etnogrfico.

    A primeira delas a de inscrio literria, que diz respeito aosprocedimentos de materializao dos objetos de estudo da cincia atravs

    " Essa foi a razo queos fez suprimir o termo"social" cio subttulo dolivro por ocasio ciesua segunda edio.

  • de traos, pontos, grficos, espectros e demais registros produzidos poraparelhos manipulados no sentido cie formalizar literariamente os fenmenosque serviro posteriormente de matria-prima para a elaborao dosenunciados cientficos. Tais aparelhos so denominados inscritores, e suaimportncia no laboratrio deve-se ao fato cie que eles so os meios que doexistncia material aos fenmenos investigados. Ainda que as representaesgrficas j tivessem sido destacadas como uma forma caracterstica cieapresentao cios contedos cia cincia (Moles, 1981), a novidade trazidapor Latour e Woolgar que as inscries literrias no so concebidas comoindicadores ou representaes cia presena de uma substncia "exterior" ou"prvia": a substncia s se configura enquanto tal sob a forma materialdessas inscries. realidade produzida pelos inscritores que os cientistasse referem quando falam das entidades "objetivas" por eles enunciadas.Uma caracterstica essencial cia maneira como os inscritores so utilizados nolaboratrio que, uma vez obtidas as inscries, rapidamente so esquecidosos procedimentos e etapas circunstanciais que conduziram sua produo,sendo estes ento relegados ao domnio cia "pura tcnica". Dessa forma,alcana-se o efeito cie considerar o fenmeno em questo um objeto "natural",dotado cie uma realidade prvia e totalmente independente.

    a partir cias inscries assim produzidas que os cientistas elaboram seusenunciados e essa uma segunda noo importante para a compreensocia atividade cio cientista no laboratrio. Os enunciados so cie diferentestipos e, atravs cie um conjunto cie operaes sobre e entre eles, os cientistasbuscam transformar os que se apresentam como assertivas meramenteespeculativas em enunciados referentes a um fato plenamente institudo.Tais operaes constituem diversas estratgias discursivas postas em aocom o intuito cie aumentar o poder cie convencimento cie um ciado enunciado,aumentando assim o seu grau cie "faticiclacle". Nessa perspectiva, a atividadedo cientista no laboratrio pode ser definida como uma luta constante paracriar e fazer aceitar certos tipos particulares cie enunciados. A dinmica dasoperaes atravs das quais se transforma um tipo de enunciado em outroresulta no que os autores chamam cie campo agonstico. O que importadestacar que um enunciado no existe por si prprio, mas sim nos contextoscontingentes e especficos em cada momento cie configurao clesse campode foras. Se mudam as condies cio contexto local, mudam necessariamenteas operaes entre enunciados postas em prtica e, conseqentemente, osrumos cio processo cie construo cio fato.

    As noes cie sistema cie inscries literrias e cie operaes sobreenunciados encaminham a anlise para seu ncleo, referente noo cieconstruo cio fato cientfico. Segundo os autores, um fato cientfico se defineenquanto "'um enunciado' que no est mais acompanhado por qualqueroutro enunciado que modifique a sua natureza (isto , ele no mais'moclalizaclo')" (p. 33). A investigao das operaes prticas atravs ciasquais esse processo se realiza apresenta-se assim como o objeto central cioestudo cia cincia praticada no laboratrio.

    Da mesma maneira como apontado na etapa relativa produo dasinscries, Latour e Woolgar chamam a ateno para a caracterstica peculiarque distingue o processo de transformao de um enunciado num fatoestabelecido. Trata-se de um processo que se realiza na medida em quelana mo de certos dispositivos pelos quais torna-se muito difcil detectar

  • qualquer trao de sua produo. Um fato cientfico reconhecido enquantotal quando perde todos seus atributos temporais e integra-se no conjunto cieconhecimentos edificados por outros fatos. Nesse movimento, ele alcanauma qualidade que lhe permite eliminar as referncias ao contexto social ehistrico a partir do qual foi construdo, e assim resistir s tentativas cie explic-lo sociolgica e historicamente. Latour e Woolgar descrevem os mecanismosdiscursivos acionados pelos cientistas na direo desse "apagamento" ciascircunstncias relativas trajetria do fato: trata-se cio que eles chamam cieestabilizao de um enunciado. O momento inicial desse movimentocorresponde a uma importante mudana na qualidade do enunciado, quepassa a ser uma entidade cindida. Por um lado, apresenta-se como umaseqncia de palavras que dizem algo de um objeto, e, por outro, o prprioenunciado se coloca como um objeto que tem vida independente, ao qualse passa ento a atribuir cada vez mais realidade e importncia. Assim, aestabilizao se completa por meio de uma inverso: o objeto torna-se arazo que levou formulao do enunciado. Nas palavras dos autores: "Nocomeo cia estabilizao o objeto a imagem virtual cio enunciado; em seguida,o enunciado torna-se a imagem no espelho da realidade 'exterior'" (p. 193).

    A descrio desse processo fundamental, na medida em que ela permitecompreenso da eficcia da argumentao e enunciao cientfica em produzirfatos com um tamanho efeito de realidade. Segundo os autores, "no ummilagre que os enunciados paream corresponder to exatamente sentidades externas: eles so uma nica e mesma coisa" (p. 194). A suaseparao constitui justamente a etapa final do processo cie construo ciofato cientfico. Assim, Latour e Woolgar afirmam que a noo de realidadeno pode ser usada para explicar por que um enunciado se estabiliza emfato, por que tal realidade justamente um efeito e conseqncia dessaestabilizao. Isso, ressaltam os autores, no eqivale a uma posio relativistade negao da existncia da realidade. O que se postula que essa"exterioridade" conseqncia da atividade cientfica e no a sua condio.Este o ponto que justifica a relevncia de uma anlise do espao onde acincia concretamente praticada.

    Em suma, o argumento dos autores que a construo do fato cientficoenvolve, essencialmente, uma delicada negociao entre os cientistas, quepara isso se valem de mltiplas estratgias de argumentao persuasiva. Oque define a cincia como prtica social de produo de conhecimento portanto a interao entre os atores dada nas circunstncias locais econtingentes do laboratrio. Ao nosso ver, a descrio etnogrfica da cadeiade eventos e prticas que do forma concreta a essa interao a contribuiomais original cie A vida de laboratrio.

    Contudo, poderamos colocar a seguinte questo: Qual o sentido cia aodos cientistas no laboratrio? O que explica o comportamento desses atores?Segundo Latour e Woolgar, os cientistas se comportam de maneira similar aum investidor capitalista, ou seja, como algum que age com o objetivo demaximizar cada vez mais a lucratividade de seus investimentos, aumentandoassim a capacidade de reproduo ampliada de seu capital acumulado. Essaconcepo est formalizada na noo que os autores propem cie ciclo ciecredibilidade. A caracterstica essencial desse ciclo a busca contnua porum ganho de credibilidade que permita o reinvestimento e, conseqen-temente, um ganho posterior de credibilidade.

  • Na utilizao que Latour e Woolgar fazem da noo de ciclo decredibilidade como chave que fornece o sentido e a orientao da ao/interao dos cientistas residem, na nossa leitura, os aspectos maisproblemticos de sua anlise sobre a prtica cientfica. Tais limites sodecorrentes da prpria perspectiva interacionista que informa tal anlise.

    Um primeiro ponto a ser destacado a afirmao segundo a qual essanoo traz um avano substantivo em relao ao conceito de capital cientficoproposto por Bourdieu em sua anlise a respeito do campo cientfico,3 aindaque os autores reconheam que as discusses por ela introduzidas se baseiamem grande parte na perspectiva inaugurada por este conceito. A concepode ciclo de credibilidade, ao atribuir sentido s estratgias dos cientistasexclusivamente em funo das condies contingentes a partir das quaiseles agem no laboratrio, desconsidera a influncia de condies prvias e/ou exteriores aos limites desse campo particular de aes. nessa perspectivaque, ao nosso ver, ao invs de ampliar a formulao de Bourdieu, Latour eWoolgar acabam restringindo-a e no suplantando o seu potencial explicativo.Na concepo de Bourdieu, a idia de um capital social prvio permitejustamente compreender como os cientistas se posicionam desigualmenteno campo cientfico e a, partir destas posies, tm condies diferenciadasde se movimentar nesse campo e de investir seu capital cientfico de formaa ocupar novas posies. Nesse sentido, as posies iniciais dos cientistasnesse jogo de foras que constitui o campo da cincia no so irrelevantes,pois suas chances de "aposta" dependem do capital acumulado em outroscampos, dentre os quais o escolar assume importncia destacada.4 A lgicade funcionamento da cincia como um espao de luta concorrencial, aindaque tendo sua especificidade, no se explica unicamente pelos contornosparticulares a esse espao, como parece sugerir a noo de ciclo decredibilidade. Para usar a terminologia de Latour e Woolgar, a prpriaconformao local das aes dos cientistas enquanto estrategistas quecalculam seus investimentos em credibilidade depende das condies a partirdas quais o indivduo entra nesse 'mercado' que a cincia.

    Na nossa leitura, um outro limite, ainda mais decisivo, da abordagemproposta por Latour e Woolgar quanto ao sentido circunstancial da ao docientista no campo de foras no qual ele se movimenta reside na prprianoo de credibilidade. Segundo os autores, ela foi formulada com a intenode ampliar a noo de crdito para alm do seu sentido tradicional de buscade reconhecimento pelos pares. Os autores afirmam que a obteno dessereconhecimento por parte da comunidade cientfica apenas uma das diversasformas de crdito utilizadas pelo cientista para alcanar seu objetivo ltimo,como um investidor-estrategista, cuja meta aumentar sua prpriacapacidade de continuar investindo. Nas palavras dos autores, "por maisimportante que ele seja, o crdito como sinnimo de reconhecimento umproblema secundrio" e "no suficiente para analisar o comportamento dopesquisador" (pp. 213-4).

    Na nossa concepo, mesmo que se postule que o reconhecimento pelacomunidade no a nica dimenso que confere sentido intencionalidadeda ao do cientista, voltada para a otimizao de suas condies deinvestimento, consideramos que esse reconhecimento , em ltima instncia,o que necessariamente garante o potencial mesmo dessas estratgias, ouseja, o que estabelece as possibilidades e condies que o cientista tem

    3 Segundo Bourdieu

    (1983, p. 127), ocapital cientfico "uma espcie particularde capital social queassegura um podersobre os mecanismosconstitutivos do campoe que pode serreconvertido em outrasespcies de capital".

    4 Nas palavras de

    Bourdieu (1983, p.124), "os julgamentossobre a capacidadecientfica de umestudante ou de umpesquisador estosempre contaminados,no transcurso de suacarreira, peloconhecimento daposio que ele ocupanas hierarquiasinstitudas (as grandesescolas, na Frana, ouas universidades, porexemplo, nos EstadosUnidos)".

  • para investir. Tambm aqui consideramos que Latour e Woolgar ficam aqumcios elementos analticos fornecidos por Bourdieu, quando este afirma que,para se compreender as estratgias de ao do cientista, fundamentalanalisar a posio que estes ocupam no campo, e essa posio envolvenecessariamente a idia do crdito como reconhecimento pelos pares. curioso que o prprio caso da constaio do fator de liberao cia tirotropina(TRF) como fato cientfico, tal como analisado pelos autores, nos forneceindicaes significativas nesse sentido. Segundo eles apontam, foi a partir cieum lugar especfico na comunidade dos pesquisadores em neuro-endocrinologia que Roger Guillemin adotou a estratgia que se revelouextremamente bem-sucedida de investir toda a sua credibilidade nareformulao da disciplina tendo por base o objetivo de identificar a estruturado TRF.5

    Nessa perspectiva, concordamos com o argumento crtico cie ThomasGieryn (1982) quando este afirma que considerar o carter contingente,idiossincrtico e local da prtica do cientista no laboratrio no significa quese deva desqualificar como irrelevante os aspectos relativos organizaoda cincia como instituio, para alm das fronteiras desse espao especfico,tal como proposto pela perspectiva mertoniana. Latour e Woolgar afirmamque a ao do cientista calculada a partir das circunstncias que se apresentamem cada momento como contexto especfico para essa ao. Excluir adimenso relativa aos valores e normas institucionais da cincia empobrecea prpria compreenso de como tais circunstncias se configuram e comoos clculos so feitos a partir cie determinadas condies cie possibilidade.

    Segundo os autores, um dos limites da etnografia que desenvolvem nesselivro a necessidade cie um estudo complementar sobre a "rede", "cia qualnosso laboratrio no passa de um ponto" (p. 33), que compreende atores,circunstncias e interesses distribudos por outros espaos e instituies paraalm da prpria cincia. Embora construdo no laboratrio, circulando nessacadeia de transformaes, tradues e deslocamentos constitutiva cia redeque o fato cientfico alcana sua estabilizao definitiva, conquistandoefetivamente sua legitimidade social. Essa noo de recle refora a recusacios autores em aceitar a tese da centralidade da comunidade cientfica comoespao institucional prprio para a construo do consenso e da legitimidadedo conhecimento cientfico. Assim, alm de no determinar as condies apartir das quais se configuram as aes dos cientistas, a comunidade, segundoos autores, tambm no o espao responsvel pela legitimao ciosresultados dessas aes. Contudo, ainda que se possa argumentar que alegitimidade cio fato cientfico ciada, em ltima instncia, na recle, alegitimidade do cientista, por sua vez, essencialmente construda atravsdo reconhecimento pela comunidade, e essa legitimidade que o habilita aproduzir enunciados e a investir na constaio de fatos estveis capazes ciecircular na rede.

    Assim, a desqualificao que os autores fazem da dimenso ciereconhecimento institucional relativa posio do cientista na comunidadeprejudica, ao nosso ver, a tese mais consistente e original que eles apresentam,que a de que a construo do conhecimento cientfico um processosocial cie argumentao persuasiva. Segundo o argumento fundamental clessatese, o que confere capacidade de convencimento a um enunciado e,conseqentemente, a possibilidade de sua transformao em fato no ,

    "* Os autores citam umcomentrio, ao nossover bastanteelucidativo, cie Schally,concorrente cieGuillemin, em queeste se refere "posio perifrica"(palavras cios autores)que ambos assumiamna comunidadecientfica americana.Segundo Schally:"Guillemin e eu somosimigrantes, obscurosdoutorzinhos,precisamos lutar parachegar ao topo"Cp. 119).

  • como supem os epistemlogos, sua racionalidade intrnseca, mas sim afora do cientista em persuadir aqueles aos quais se dirigem tais enunciados.Ora, o que confere ao cientista esse poder de convencimento seno acredibilidade e o reconhecimento estabelecidos pelos pares? Quem confereaos enunciados o estatuto de artefato ou fato seno os outros cientistas quelem e discutem os artigos nos quais os enunciados so formulados?

    Essa crtica no descarta a descrio etnogrfica dos processoscircunstanciais de interao no laboratrio como analiticamente relevantepara a anlise sociolgica da prtica cientfica. Ela chama a ateno para queos aspectos referentes dimenso institucional dessa prtica e a asformulaes tanto de Merton quanto de Bourdieu se destacam comocontribuies necessrias so fundamentais para aprofundar a prpriacompreenso desses processos.

    Como afirma Mariza Peirano (1995, p. 56), "toda boa etnografia precisaser to rica que possa sustentar uma reanlise dos dados iniciais". Ainda queconsiderando os limites apontados, estamos convencidos de que Latour eWoolgar desenvolveram uma boa etnografia e atravs dela efetivamentecontriburam para as discusses que a prtica cientfica apresenta s reflexesno campo das cincias sociais. Dezoito anos depois, A vida de laboratrio um livro a ser ainda muitas vezes revisitado.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBourdieu, Pierre 'O campo cientfico'. Em Renato Ortiz (org.), Pierre Bourdieu: sociologia.

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