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I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular Tendências e convergências da música na cultura midiática
21 a 23 de outubro de 2009, UFMA, São Luis – MA.
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A punga como performance: comunicação corpo e música no Tambor de Crioula1
Bruno Soares Ferreira2
Jane Cleide Sousa Maciel3
RESUMO
Compreensão da punga como performance e o entendimento dos processos comunicativos
verbais e não-verbais dentro da manifestação popular do Tambor de Crioula. A performance
como experiência estética que engendra uma comunicação baseada na percepção dos sentidos,
expressa pela a dança e música. Comunicação entre punga-som e punga-corpo.
Palavras-chave: Comunicação; Performance; Punga; Tambor de Crioula.
1. Tambor de Crioula: dança de umbigada
O Tambor de Crioula é uma manifestação popular maranhense secular de origens africanas,
constituída num espaço híbrido localizado entre o profano e o sagrado, pois ela é associada ao
culto a São Benedito4, contudo não estando limitada a uma época do ano, mas se realiza como
uma brincadeira que acontece nas mais diversas situações em cidades do Maranhão como São
Luís, Alcântara e Rosário: pagamento de promessas (estando ou não ligado a cultos afro-
religiosos, como o Tambor de Mina), as mais diversas comemorações como casamentos ou
aniversários, Carnaval e São João (estruturado ou não como espetáculo5), com periodicidade
em espaços no Centro Histórico de São Luís estando vinculado ao turismo, mas também
como uma nova forma de ocupação de uma cidade que oscila entre o rural e urbano.
1 Texto apresentado no I Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular – MUSICOM, na UFMA, em São Luis – MA, outubro de 2009. 2 Bacharel em Comunicação Social e Especialista em Jornalismo Cultural pela UFMA. [email protected] 3 Bacharel em Comunicação Social pela UFMA. [email protected] 4 É um dos santos mais populares do país, principalmente entre a população de origem africana, que o associa aos padecimentos do negro brasileiro. No Maranhão, no Tambor de Mina ele é sincretizado com Averequete. Alguns dos brincantes mais antigos acreditam inclusive que São Benedito, quando vivo, também tocava Tambor de Crioula (FERRETTI, 2002) 5 Segundo RAMASSETE (2009), na década de 1970 haviam 20 grupos cadastrados em São Luís. Atualmente, existem cerca de 80 grupos cadastrados. Somente grupos cadastrados podem participar das programações oficiais, promovidas pelas secretarias estadual e municipal de cultura.
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Para a realização deste estudo, foi utilizada uma metodologia baseada nas microssociologias,
através do interacionismo simbólico (LAPASSADE, 2005), corrente pela qual os sujeitos
utilizam a experiência retirada da participação para a criação dos conceitos utilizados.
Selecionamos dois universos distintos e específicos: o primeiro é o ambiente da Praia Grande,
bairro do Centro Histórico de São Luís, no qual o Tambor de Crioula acontece atualmente em
três dias na semana de forma periódica, já fazendo parte da paisagem cotidiana daquela
comunidade:
Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira
Tambor da Ágora do Centro de Criatividade Odylo Costa, Filho
Tambor da Lua, em frente à Companhia Circense de Teatro de Bonecos durante a “Vida é Uma Festa”
Tambor da Feira, no Mercado das Tulhas/ Tambor da Faustina, na Praça da Faustina
O segundo momento é a Festa de São Benedito em Alcântara, considerada a maior festa de
Tambor de Crioula no estado, que acontece geralmente na lua cheia6 do mês de agosto, mas
que esse ano de 2009 foi realizada entre os dias 29 e 31 de agosto. A intenção de analisar
esses dois momentos era de verificar duas nuances do tambor, um mais cotidiano e profano,
outro mais extra cotidiano e sagrado, não opondo, mas as compreendendo como
complementares.
Em São Luís, o Tambor de Crioula dá-se em espaços públicos7 como feiras, praças e ruas,
onde acontece uma grande circularidade de pessoas. Muitos brincantes de tambor são
feirantes e trabalhadores das redondezas, em grande maioria são pessoas advindas do interior
do Maranhão, trazendo consigo, cada uma delas, suas peculiaridades em relação ao Tambor
de Crioula, fazendo um verdadeiro momento de interação entre os diferentes sotaques quando
se encontram no Centro Histórico, em especial no bairro da Praia Grande. No entanto,
também existem brincantes que poderiam ser identificados a partir de outras referências,
como: estudantes universitários, estudantes de percussão, turistas brasileiros e estrangeiros,
6 Além da função ritualística, pois acontece com frequência dos tambores seguirem o calendário lunar, há ainda a função prática em realizar o tambor em noites mais claras em épocas que não havia energia elétrica. 7 “Esfera ou Espaço Público é um fenômeno social elementar (...) uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos” (HABERMAS, 1997, p. 92)
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garotas de programa (usando a vitrine que o Tambor de Crioula proporciona para fazer
contatos, especialmente com estrangeiros), artistas populares, hippies, entre outros.
Essas pessoas, ao contrário das que tiveram suas vivências marcadas pelo Tambor de Crioula
desde a mais tenra idade, geralmente aprendem por meio de oficinas ou participando dos
tambores no bairro da Praia Grande, onde existe uma abertura maior para o processo de
aprendizado do que em grupos que tomam pra si uma referência de serem mais tradicionais,
nos quais o pertencimento depende do relacionamento com o grupo e participação naquela
comunidade.
Já no interior do estado, especialmente na cidade de Alcântara, o tambor acontece de forma
menos periódica, tendo como principal momento a festa de São Benedito, que já tendo
passado por várias famílias, hoje se organiza como o segundo maior evento da cidade, depois
da festa do Divino Espírito Santo. Neste ambiente, acontece um diálogo entre o urbano e
rural, representado pelo encontro de pessoas da capital maranhense, turistas,
brincantes/devotos dos povoados vizinhos como Itamatatiua e Samucangaua, sendo grande
parte destes descendentes de quilombolas. A dimensão sagrada nesse contexto é marcado pelo
pagamento de promessa, tanto do dono da festa quanto de outros devotos, que se expressam e
colaboram das mais diversas formas, contudo o profano está sempre muito próximo,
representado por exemplo pelo uso de bebidas alcoólicas e pela interação com demais festas
que acontecem concomitantemente, como radiolas de reggae e bandas de música.
O Tambor de Crioula (ou somente tambor) se expressa profundamente pela punga ou
umbigada, presente em danças africanas e que no Brasil acontecem também no Jongo ou
Caxumbo, no Coco e no Samba de Roda. A punga dentro do tambor se expressa com
múltiplos significados, todos interligados, dinâmicos e complementares, resultando em um
ambiente maior, o qual chamaremos de performance8, entendida nesse trabalho como a
manifestação integrada de todos os elementos que constituem a brincadeira tambor de crioula,
em seus aspectos materiais e imateriais em movimento, ou seja, durante todo o ciclo de sua
ocorrência.
8 Estas não se restringem apenas a cerimônias, rituais, eventos musicais e teatrais etc., mas que se estendem a muitos domínios da vida, seja ela tribal ou inserida no mundo industrial e moderno, sendo assim um tipo de comportamento, uma maneira de viver experiências. (PINTO, 2001)
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O Tambor de Crioula é considerado a brincadeira maranhense com maior influência africana,
diferente do bumba-meu-boi, por exemplo, que além dessas características, possui várias
outras, indígenas ou mesmo européias. Sua percussão é feita a partir de três tambores: o
meião, o crivador e o tambor grande9. Este último é considerado o principal, pois nele é
marcada a punga sonora, representada pela execução sistemática de um “toque grave e
acentuado, conseguido na parte central do couro (...) muitas vezes tocado com a mão fechada
(murro)” (FERRETTI, 2002: p.85). Em alguns lugares, além dos tambores, são tocados
também dois pedaços de pau percutidos no tambor grande, chamados de matracas ou maracás.
A punga sonora é também reproduzida pela dançarina, denominada coreira, que a marca com
as mais diversas partes de seu corpo, com ênfase para a barriga.
A punga pode também ser a umbigada, encontro dos ventres de duas coreiras: uma que dança
no tambor grande e outra que pede licença para também dançar. A umbigada geralmente
acontece no meio do círculo, mas não obrigatoriamente, após as duas girarem10. A punga se
apresenta como uma performance cíclica tanto da percussão quanto da expressão da dança,
como também nas toadas11 que marcam a punga em uma determinada sílaba tônica.
Em todas as formas de apresentação e expressão do tambor em processos ritualísticos, a
experiência estética de dança, música e vivência de prazer coletivo, organizam-se como
experiência social e nela, a punga é certamente o ponto central. Nossa pergunta dentro deste
texto é: que tipo de comunicações acontecem dentro dessa manifestação para que as pungas
aconteçam? Entender a punga como objeto polifórmico na performance é também nossa
intenção.
1. A punga-som
A princípio, podemos identificar alguns elementos no Tambor de Crioula dentro do aspecto
relacionado ao som enquanto elo dos outros elementos constituintes da manifestação. Uma
9 Outras nomenclaturas podem ser dadas aos tambores: O crivador é também chamado de pererengo ou tambor pequeno, o meião de socador e o tambor grande de roncador ou rufador. 10 Em São Luís, é comum as coreiras girarem antes de darem a umbigada; já em Alcântara, a umbigada pode inclusive não acontecer, assim como a permissão para a entrada na roda pode ser concedida de forma mais sutil, como um convite feito de uma coreira a outra para entrar na roda. 11 Cantos repetitivos, à semelhança de estribilho. (Fonte: http://www.rosanevolpatto.trd.br/dancatamborcrioula.htm )
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vez que a punga-som é a base expressiva do Tambor de Crioula, é ela que faz o encadeamento
entre os diferentes elementos que constituem a brincadeira.
Logo após os tambores terem sido aquecidos na fogueira12 e levados para o local onde serão
tocados, o cantador começa a toada dentro do ritmo, estabelecendo a nuance da punga e suas
variações, através do canto e do coro que responde ao cantador, para que os tocadores
comecem a tocar e possam iniciar a comunicação que se estabelece entre o canto e tambores.
Ainda em relação ao canto, podemos dizer que o mais comum é o cantador começar uma
toada para logo em seguida os tocadores fazerem sua participação. No entanto, acontece de os
tambores começarem para que o cantador sinta a punga e comece a cantar, como no seguinte
exemplo:
Eu vou criança, eu vou Cantar pra São Benedito, eu vou
(Côro) Eu vou criança, eu vou
Cantar pra São Benedito, eu vou
Foi ele quem me chamou, eu vou Cantar Pra São Benedito, eu vou
(Côro) Foi ele quem me chamou, eu vou
Cantar Pra São Benedito, eu vou
A comunicação percussiva ocorre entre os três tambores (e as matracas, quando o grupo as
usa), de modo que cada um deles é responsável por uma parte da célula rítmica que é a base
para a execução da dança. O primeiro tambor a tocar é o meião, que faz a base, depois começa
o crivador, fazendo o contratempo sobre a base do meião, e finalmente se toca o tambor
12 A fogueira desempenha um papel fundamental no Tambor de Crioula, pois cria o ambiente ritualístico que proporciona a brincadeira. “O fogo não fala aos animais, mas, fala ao homem. Ante o fogo, o animal se espanta e foge, mas o homem espanta-se e aproxima-se. É que entre ele e o fogo, há alguma coisa que os irmana. Em todos os povos, o fogo é objeto de culto, e do culto mais profundo.” (Fonte: http://circulocubico.wordpress.com/2008/05/16/o-simbolismo-do-fogo-atravs-do-tempo-culturas-e-religies/)
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grande, fazendo a marcação da punga sobre a base dos outros dois tambores e improvisando
de acordo com o ritmo e experiência do tocador. O tocador de matraca começa geralmente
depois do crivador ou do tambor grande.
Além dessas nuances, também existe a comunicação entre os cantadores, com as toadas sendo
executadas no formato “pergunta e resposta”, na qual um cantador quando faz a voz principal
(pergunta), os outros fazem o coro (resposta), ocorrendo nessa parte, um espaço articulado
para os improvisos, na forma de repente13, e a dança das coreiras de frente para o tambor.
Todas essas particularidades juntas ainda correspondem a um signo dinâmico frente ao
espectador, seja este signo expresso como ritual ou como apresentação, como uma verdadeira
representação de que o todo é maior que a soma das partes.
Uma característica importante na manifestação das partes acima descritas é a da disputa
enquanto constituinte de um diálogo, tanto entre os coreiros e coreiras quanto no contato do
tambor com os elementos que estão fora da brincadeira do tambor. Essa característica de
disputa pode ser entendida enquanto exaltação ritualizada da sexualidade e agressividade,
como também pode ser uma forma de sublimar essas forças humanas através da experiência
social dos sujeitos, canalizando para uma manifestação coletiva que em si traz aspectos
evidentes de resistência cultural. Esse tipo de manifestação ritualizada da sexualidade pode
ser verificada pelas expressões utilizadas no tambor de crioula, como por exemplo,
“emprenhar”, que acontece quando a música pára antes da coreira sair da roda ou de pungar
com outra coreira.
A punga na sua expressão sonora é constituída primordialmente pelo reverberar do couro dos
tambores. É um momento cíclico o qual vai sendo enfatizado em cada gesto dos participantes,
dança das coreiras, ritmo do canto e suas nuances. Esta ocorrência constante é o que
transforma o som da punga num fio condutor a percorrer toda a performance cultural dentro
do Tambor de Crioula, se constituindo na expressão maior de sua expressão.
Os percussionistas assumem um papel relevante já que os tambores não têm mera função de
entretenimento do espaço, é através deles que a atmosfera do rito é criada, por mais que o
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sagrado não seja evocado diretamente (como no caso de apresentações para turistas). Eles se
organizam de forma hierárquica na roda, o que enfatiza as lutas de poder neste pólo
masculino. A maioria dos coreiros toca e canta, sendo que é normalmente um que detém o
controle geral da situação, que na prática é dado pelo sopro do apito que manda parar ou pede
a concentração de todos para se iniciar mais uma toada. Tal homem recebe com frequência o
título de mestre.
2. A punga-corpo
A dança do Tambor de Crioula, como já dissemos, é marcada pela umbigada, característica de
danças africanas atribuídas à região da Angola; o encontro de dois ventres femininos, como
no caso do Tambor de Crioula, ou do feminino com masculino, como na dança pernambucana
do Jongo. Nas duas, a umbigada poderia se entendida como uma troca de energias vitais
expressas pelo corpo dos dançarinos que, antes do toque, comungam de uma coreografia
espontânea, ou seja, um conjunto rítmico corporal desenvolvido no seio da dança.
A punga ou umbigada é também a permissão que uma coreira pede para a outra que dança em
frente ao tambor grande; a energia que estava em uma, adquirida por estar diante do emissor
do som principal, a punga sonora, é passada para outra, para que se mantenha a ordem cíclica
da performance e a energia da brincadeira se propague em constante movimento. Sendo
assim, pudemos verificar que a punga-som antecede a punga-corpo, inclusive para estabelecer
o elo rítmico necessário à dança.
No tambor, além de um conjunto de passos, a coreografia é marcada também pelos macetes e
truques que se processam na performance, que poderíamos chamar de ginga, afinal nesse caso
específico a dança seria também um jogo entre as coreiras e os coreiros. Podemos citar os
exemplos da punga roubada pelo coreiro, que marcando a punga sonora, “engana” a dançarina
mudando repentinamente a execução da percussão, fazendo com que ela não acerte a punga;
ou pelas coreiras, quando uma mulher passa diante da outra e essa última volta para o tambor
grande negando-lhe momentaneamente a umbigada para continuar dançando.
13 Repente (conhecido também como desafio) é uma tradição cuja origem remonta aos trovadores medievais. Especialmente forte no nordeste brasileiro, é uma mescla entre poesia e música na qual predomina o improviso –
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Tal coreografia, assim como ocorre na música, tem base cíclica. Apesar de uma grande
variação entre os estilos e passos do tambor de crioula14 e deles não se processarem em uma
ordem fechada, podemos dizer que sua base é um movimento circular, executado por um pé
tendo o outro como apoio, sendo esse movimento que dá origem aos demais. Por meio desse
movimento é marcada a punga, geralmente com o pé adiante, concomitantemente, com
movimentos de braços, ombros, cabeça, ventre, ou seja, todo o conjunto corporal, já que a
punga é um movimento pontual, porém não isolado da expressão corporal como um todo.
Mulher marcando a punga diante o tambor grande e punga de homem, na festa de São Benedito, Alcântara 2009
Na performance, o agrupamento dos elementos corpo-dança-individual (performance da
coreira) e corpo-dança-coletivo (performance da roda do tambor), tomam a circularidade
como alicerce para as mais diferenças variações rítmicas corporais, sonoras e relacionais. O
movimento circular da roda acontece geralmente de forma anti-horária (a coreira sai da direita
para a esquerda, em direção ao tambor grande), lembrando como acontece com o próprio
a criação de versos "de repente". 14 A dança varia entre as brincantes do interior do estado do Maranhão e as da capital, das mudanças existentes na passagem dos passos das mais velhas às mais novas, bem como a própria diferença da apropriação do corpo em coreiras das mais diferentes idades.
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tempo cíclico15, o tempo do ritual, do irreal, do ilusório, do sagrado, da imagem e do
imaginário. Vale ressaltar que toda atmosfera do tambor também se organiza para ser um
momento quase onírico, proporcionando que a dança se apodere do corpo para dar lugar a
representação do “espírito”16.
Atribui-se ao tambor a dança com saia rodada, mas sabe-se que quanto mais doméstica é a sua
execução, mais espontânea se dá, inclusive nas vestimentas de seus participantes17. Contudo,
o que devemos perceber é que a saia rodada permite uma acentuação do movimento cíclico, a
ponto de se perceber, também através dela, a marcação da punga. O “rodar da saia” faz parte
também da busca pelos estados alterados da consciência durante a performance,
principalmente com o acréscimo de bebidas durante a brincadeira; a dançarina após rodar, “se
entorpece” da apropriação do seu corpo.
Imaginemos a seguinte sequência coreográfica (não a pensando como regra): a coreira sai do
seu lugar na roda, vai dançar na frente dos dois tambores menores: médio e crivador, saúda a
roda, pede licença a coreira que dança diante do tambor grande, faz com ela a umbigada. Em
seguida, vai dançar diante do grande, que se encontra apoiado entre as pernas do
percussionista que está de pé. Ambos marcam a mesma punga: o tocador através do tambor e
a coreira com o corpo. O encontro entre essas duas intenções, sonora e corporal, é uma
sincronia baseada em uma comunicação, que acontece sutil, porém fortemente, para todos
aqueles que ali comungam da manifestação. É preciso lembrar da existência, nesse contexto,
de outro tipo de punga, a masculina, caracterizada por movimentos desequilibrantes, como
joelhadas no baixo ventre ou na coxa, rasteiras e outros movimentos realizados de acordo com
a destreza do coreiro que geralmente está no coro da roda.
É uma espécie de briga que se assemelha ligeiramente à capoeira, onde o objetivo de cada um é derrubar o companheiro. Isso faz lembrar a hipótese de que o tambor de crioula inicialmente era um
15 Podemos exemplificar com uma toada essa expressão da relação do tambor com esse tempo cíclico, “no inverno é boi, no verão é couro”, ou seja, o animal que é criado no período chuvoso (o “inverno” maranhense) é morto no verão, período de estiagem, quando seu couro poderá ser usado inclusive dentro da brincadeira. 16 Como muitos participantes possuem ligação com a religiosidade popular, é muito comum a coreira, por exemplo, passar cachaça na nuca, pra não ter uma incorporação durante a brincadeira. Os tocadores, por sua vez, passam cachaça nas mãos, pra amenizar a dor causada pela execução do instrumento, que frequentemente deixa as mãos cheias de bolhas de sangue, que acabam estourando e sangrando sobre o couro do tambor. 17 A padronização do tambor, intensificada na última década e diferente daquela explicada no livro “Tambor de Crioula- ritual e espetáculo” (2002), marcou o uso da saia rodada, especialmente as de chita. Contudo, em festas familiares ou “de terreiro” é comum as coreiras dançarem com as roupas que estão, sendo saia rodada ou não.
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exercício de luta como a capoeira. É aplicada no joelho ou dada em forma de rasteira nos pés. Há cidades do interior do Maranhão, em que os homens usam um cacete (espécie de bastão), como proteção na hora da punga. (FERRETTI, 2002, p.69)
De uma forma mais abrangente, a disputa poderia ser entendida como um constante estado de
alerta das pessoas do Tambor de Crioula, tanto com o andamento da brincadeira quanto com
os elementos externos que possam vir a interferir. Por isso, o formato circular é propício para
que todos participantes enquanto estiverem olhando pra dentro da roda, automaticamente e na
forma de um todo orgânico estão olhando ao mesmo tempo para o fora do outro lado da roda.
A roda, então, manifesta-se como uma válvula de escape para dois sentimentos geralmente
oprimidos na sociedade: a agressividade e a sexualidade. Nela, o masculino e feminino se
complementam e a própria roda funciona como um microcosmo em interação com o espaço
aberto.
3. Punga como performance do encontro
Entendidos os conceitos de punga-som e punga-corpo, avançaremos na idéia da punga como
performance do encontro, a punga-elo, o ponto principal dentro do Tambor de Crioula, ou
porque não dizer, seu punctum, aquilo que punge. A punga é uma pulsão vital que transpassa
o limite do individual e atinge uma representação coletiva. A roda de tambor é um corpo
pulsante.
Corpo e som representam uma única expressão na roda: a punga. No entanto, para que isso
aconteça é preciso haver um diálogo constante entre os pólos feminino e masculino. Essa
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comunicação, conforme já dissemos, acontece pela absorção sensitiva o ambiente como um
todo, em um processo em que os signos lingüísticos fundem-se com a percepção individual
aos estímulos, em uma atividade cultural que leva a um estado de euforia e transcendência
coletiva. Como se sabe, tambores são tocados em circunstâncias sagradas e/ou profanas nas
mais diferentes culturas.
Com a toada dá-se início ao movimento da roda, que é “aberta” por uma coreira; sua
experiência de absorção daquela musicalidade permite-a perceber com facilidade a punga
sonora, ou seja, expressar a performance do Tambor que acontece por uma experiência
sensório-motora e musical, pois é através da introspecção da percussão e sua exteriorização
que os corpos materializam o som com os corpos.
Coreira dança com a imagem de São Benedito em Alcântara, 2009
Desta forma, as comunicações se processam baseadas em dois momentos distintos e
complementares. Um é o da introspecção, induzida pelo ambiente ritualístico: o som dos
tambores, estados de alteração de consciência dado por substâncias como o álcool, por
exemplo, e pela presença do elemento sagrado, sempre em interação com o profano. Por isso
é comum vermos tanto coreiras quanto coreiros dançando, cantando ou tocando de olhos
fechados, talvez em estados de transe18 ou então a coreira dançando com uma estátua de São
Benedito sobre a cabeça ou no colo.
18 O transe é uma experiência extra cotidiana comum em manifestações populares, especialmente nas afro, que não quer dizer necessariamente o estado de incorporação, no qual existe a crença de interação com forças sobrenaturais, comumente pensadas como espíritos.
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O outro momento é o da interação, ou seja, a pessoa liga-se com a brincadeira em si e com
todos aqueles que ali comungam dela, interage também com sua comunidade como um todo e
a própria brincadeira se liga com aquilo que está fora dela, dentro do espaço-público (as
toadas geralmente expressam sentimentos do cotidiano comunitário). A própria estrutura do
Tambor se dá no formato de roda, onde todos os brincantes podem se observar e assim se
comunicar, mas também observar o que está fora dela, em um processo de proteção daquele
núcleo, sendo assim um dispositivo de segurança (o que parece fazer sentido nas
circunstâncias de opressão social em relação a brincadeira, que ocorria até pouco tempo, pela
discriminação social a qualquer representação afro).
Umbigada no Tambor da Faustina
Poderíamos chamar de comunicação estética essa que permite a ocorrência da punga-elo,
entendendo a estética como uma compreensão e construção do mundo através da percepção19
aguçada dos sentidos. No caso da punga, ela promove o encontro de corpo e música através
da apreensão e construção da performance coletiva pela visão, a compreensão dos olhares, da
dança, da performance da percussão e do coro; o som, tanto pela música, as comunicações
verbais que se processam, quanto por todos “ruídos” do ambiente; olfativa e degustativa, de
todos os odores e gostos permitidos no ambiente; a percepção tátil do ambiente, dos toques
entre os brincantes e da própria punga, como o contato principal.
Estética ou estesia são de fato designações aplicáveis ao trabalho dos sensível na sociedade. É um tipo de trabalho feito de falas, gestos, ritmos e ritos, movido por uma lógica afetiva em que circulam estados
19 (...) ‘Arte de perceber’, uma poética da percepção, portanto, um modo de conhecimento do sensível em sentido amplo – a faculdade de sentir do sujeito humano, semanticamente implicada no grego aisthánesthai, isto é, perceber por meio dos sentidos. Aisthesis (sensibilidade, estesia) por sua vez, é tanto sensação quanto percepção sensível (SODRÉ, 2006, p. 86)
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oníricos, emoções e sentimentos. A emoção é o primeiro que advêm como conseqüência da ilusão que fazemos de caminho para chegar a realidade das coisas. (SODRÉ, 2006: p.46)
4. Considerações
A partir desse estudo, podemos perceber que o Tambor de Crioula é uma linguagem, pois os
sujeitos primeiro interiorizam os elementos de sua discursividade, para então poderem com
tais elementos construírem narrativas através do ritual – pela performance – e em seguida,
utilizá-las em contato com o todo de forma ativa e dinâmica.
Também foi verificado que ao buscar desmembrar os elementos específicos do Tambor de
Crioula (canto/percussão, dança/música e religiosidade/festa), processa-se uma perda em
relação ao todo, pois tais elementos se apresentam de forma híbrida, ou seja, acontecem de
uma maneira que é impossível isolar alguma dessas partes das outras sem causar uma
descaracterização de sua manifestação cultural.
Outro ponto verificado em relação ao sujeito participante do Tambor de Crioula é a
constatação de que se tem a possibilidade de assumir inúmeras identidades, (coreiro, coreira,
tocador, cantador, coro, devoto, brincante, espectador, etc.), de acordo com o momento e a
dinâmica desenvolvida durante o ritual. Isso bem caracteriza a essência tradicional sobre o
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tambor em detrimento do sujeito e a inteligência coletiva que o mesmo representa: “As
questões que se desenvolvem numa inteligência coletiva (...) são ilimitadas e profundamente
interdisciplinares; deslizam e escorregam através de fronteiras e induzem o conhecimento
combinado de uma comunidade mais diversa”. (JENKINS, 2008, p.85)
A punga nesse contexto é o elo que arremata cada um desses elementos e os expressa através
da performance, aliando os diferentes saberes e conhecimentos a um todo que em si mantém e
preserva as ligações do ser humano com aspectos ancestrais os quais permeiam o ritual.
Podemos ainda afirmar que na contemporaneidade existe necessidade atávica que ressurge em
relação ao aspecto voltado para o cultivo de uma essência transcendente, como forma de
harmonizar suas capacidades e seu intelecto com um todo orgânico.
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Referências
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