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IV ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA POPULAR Linguagens e identidades da musica contemporânea 15 a 17 de agosto de 2012, Universidade de São Paulo – ECA/USP 1 OS LPS COMO MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE PROJETOS ESTÉTICO-IDEOLÓGICOS: os casos do Trio Surdina, Jacob do Bandolim e Martinho da Vila. Coordenação: JOSÉ ROBERTO ZAN (Universidade Estadual de Campinas) RESUMO DA MESA No ano de 1948, a empresa CBS lançava no mercado mundial um novo suporte fonográfico, o LP, que se diferenciava dos formatos anteriores principalmente por possibilitar um tempo maior de gravação sonora. Porém, conforme apontado por autores como Paiano (1994), Fenerick e Marquioni (2008) e Dias (2008), mais do que mero suporte para uma produção musical, o LP transformou a maneira de fazer música popular. Com o novo formato, não apenas o artista ganhou maior projeção, mas abriu-se a possibilidade de se conceber um álbum enquanto totalidade e não somente como coletânea de canções. Os trabalhos desenvolvidos para esta mesa destinam-se a mostrar de que maneira os LPs explicitam projetos estético-ideológicos o que se traduz tanto na sua dimensão sonora – a gravação em si e a técnica com a qual ela é realizada – quanto na visual – imagens e textos nas capas e encartes. Para isso, analisamos três casos: o Trio Surdina, cujos LPs apontam para uma distinção e segmentação de gostos na música popular; Jacob do Bandolim, cujos primeiros discos nesse formato compõem uma determinada leitura do passado orientada pela busca da “tradição” do choro; e Martinho da Vila, que busca se firmar como sambista “autêntico” no interior de uma indústria fonográfica bastante racionalizada. PALAVRAS-CHAVE: música popular brasileira, LPs, comunicação SUMÁRIO Resumo da mesa ................................................................................... 01 I Olhando o passado através dos primeiros discos de Jacob do Bandolim................................................................................................ Gabriel Sampaio Souza Lima Rezende 02 II O Hi-Fi enquanto processo e produto: a Musidisc e a produção fonográfica do Trio Surdina nos anos 1950........................................ Rodrigo Aparecido Vicente 17 III Vende-se um sambista “autêntico” em 16 canais: os primeiros LPs de Martinho da Vila e a construção de sua imagem no mercado da música popular...................................................................................... Adelcio Camilo Machado 33

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os casos do Trio Surdina, Jacob do Bandolim e Martinho da Vila.

Coordenação: JOSÉ ROBERTO ZAN (Universidade Estadual de Campinas)

RESUMO DA MESA

No ano de 1948, a empresa CBS lançava no mercado mundial um novo suporte fonográfico, o LP, que se diferenciava dos formatos anteriores principalmente por possibilitar um tempo maior de gravação sonora. Porém, conforme apontado por autores como Paiano (1994), Fenerick e Marquioni (2008) e Dias (2008), mais do que mero suporte para uma produção musical, o LP transformou a maneira de fazer música popular. Com o novo formato, não apenas o artista ganhou maior projeção, mas abriu-se a possibilidade de se conceber um álbum enquanto totalidade e não somente como coletânea de canções. Os trabalhos desenvolvidos para esta mesa destinam-se a mostrar de que maneira os LPs explicitam projetos estético-ideológicos o que se traduz tanto na sua dimensão sonora – a gravação em si e a técnica com a qual ela é realizada – quanto na visual – imagens e textos nas capas e encartes. Para isso, analisamos três casos: o Trio Surdina, cujos LPs apontam para uma distinção e segmentação de gostos na música popular; Jacob do Bandolim, cujos primeiros discos nesse formato compõem uma determinada leitura do passado orientada pela busca da “tradição” do choro; e Martinho da Vila, que busca se firmar como sambista “autêntico” no interior de uma indústria fonográfica bastante racionalizada.

PALAVRAS-CHAVE: música popular brasileira, LPs, comunicação

SUMÁRIO

Resumo da mesa ...................................................................................

01

I Olhando o passado através dos primeiros discos de Jacob do Bandolim................................................................................................ Gabriel Sampaio Souza Lima Rezende

02

II O Hi-Fi enquanto processo e produto: a Musidisc e a produção fonográfica do Trio Surdina nos anos 1950........................................ Rodrigo Aparecido Vicente

17

III Vende-se um sambista “autêntico” em 16 canais: os primeiros LPs de Martinho da Vila e a construção de sua imagem no mercado da música popular...................................................................................... Adelcio Camilo Machado

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- I -

Olhando o passado através dos primeiros discos de Jacob do Bandolim1

Gabriel S. S. Lima Rezende2 Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP Resumo: Além de exímio instrumentista e de compositor de “clássicos” do repertório do choro, Jacob do Bandolim se destaca na história da música popular brasileira por ocupar o posto de defensor ferrenho da “autêntica tradição” do choro. Essa disposição, que se reflete sobretudo nos esforços dirigidos ao “resgate” de autores e obras “esquecidos”, parece ser fio condutor de toda a trajetória artística do bandolinista, desde os seus primórdios. Evidentemente, isso implicou uma leitura seletiva do passado e, consequentemente, resultou numa visão idealizada da história do gênero. O objetivo desta comunicação é discutir como os primeiros discos de Jacob no formato LP buscam comunicar uma determinada leitura de um “passado originário” do choro que, entretanto, carrega em si as marcas do período histórico no qual foi produzida. Palavras-chave: Jacob do Bandolim, choro, invenção das tradições.

Em busca do passado: “resgatando” chorinhos e chorões

Num escuro acervo de relíquias do passado, entre tapeçarias e molduras, ergue-se

a figura de Jacob do Bandolim. Bem vestido, em reverência às reminiscências dos tempos

idos, mas à vontade, como se estivesse num lugar que lhe fosse familiar, Jacob mira com

satisfação uma partitura. Esta, por sua vez, se apresenta como fragmento selecionado entre um

farto passado musical. Talvez não houvesse imagem mais adequada para simbolizar o celeiro

esquecido onde se amontoam as riquezas que esse passado representa do que a imagem do

baú que beira a figura de Jacob; e talvez não houvesse melhor maneira de simbolizar a fartura

desse passado do que a imagem de Jacob pisando sobre as partituras que transbordam daquele

baú, numa espécie de evocação do “desperdício”. E talvez não haja melhor forma de

representar a idéia que percorre a trajetória artística de Jacob do Bandolim desde finais dos

anos 40: a imersão num caudaloso passado musical para fazer o resgate de obras e autores

esquecidos. Representantes de um passado idílico da música popular brasileira, e

representados pelo meio material mais adequado para simbolizar a profundidade desse

1 Trabalho apresentado a Mesa Coordenada Nº 5: Os LPs como meios de comunicação de projetos estético-ideológicos: os casos do Trio Surdina, Jacob do Bandolim e Martinho da Vila, do IV Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2012, na Escola de Comunicação e Artes da USP, São Paulo/SP. 2 Bacharel em Música Popular, Mestre em Sociologia e doutorando em Música pela UNICAMP, com pesquisa financiada pela FAPESP. É membro do Grupo de Pesquisa Música popular: história, produção e linguagem Link para acessar o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5765805416761553.

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passado, a partitura, “chorinhos e chorões” são submetidos à ação daquele que resgata. O

bandolim às suas costas não nos deixa esquecer que essa ação não é uma finalidade em si

mesma. Não se trata de um colecionador de relíquias, senão de um artista em busca da

substância de sua obra. Trata-se do interpretar “as páginas do passado”, tal como aludiu o

redator da contracapa do LP que viria a suceder “Chorinhos e Chorões” (“Valsas e Choros

Evocativos”, 1962), ao trabalho de cantores e intérpretes que antecederam Jacob. Na

sequência desse comentário, o autor se refere a Jacob como “dono de incalculável repertório e

extremado amante da música antiga, música que ao seu ver não tem época”. E, mais adiante,

explicita o sentido da capa de “Chorinhos e Chorões”:

“Jacob não é apenas este virtuose do bandolim que estamos habituados a ouvir interpretando, com rara habilidade digital, os mais variados choros, valsas, tanguinhos, sambas, frevos e outros gêneros do vasto repertório da música popular brasileira. É também, compositor e profundo conhecedor dessa música, que há mais de vinte anos vem pesquisando e cultivando. Música que ele vem amoldando, de maneira fluente e agradável, às características peculiares de seu instrumento” (texto anônimo da contracapa do LP “Valsas e Choros Evocativos”, 1962) 3.

Muito provavelmente, a adequação de sentido entre a capa de “Chorinhos e

Chorões” e o texto da contracapa de “Valsas e Choros de Antigamente” não tenha sido

deliberadamente visada pelo autor do texto. Se em 1947, ao dar as boas vindas a Jacob ao

campo da produção fonográfica, Almirante já subordinava a mirada ao passado do

bandolinista à sua defesa da “tradição” da música popular brasileira4, nos 15 anos que se

seguiram até o lançamento de “Valsas e Choros de Antigamente” a trajetória artística de

Jacob se notabilizou justamente pela luta incansável em defesa dessa tradição. Entre os seus

legados está o famoso arquivo com farta documentação sobre a história da música popular no

Brasil5. Assim, essa luta tornou-se a principal fonte irradiadora de sentidos sobre o papel

daquela trajetória dentro da história da música popular brasileira.

Atribui-se a Jacob, por exemplo, um papel de destaque na incorporação das obras

de Ernesto Nazareth ao repertório do choro. Desde inícios da década de 1950, o bandolinista

gravou um álbum composto por quatro discos de 78 rpm com músicas do referido compositor,

3 A ortografia das citações extraídas das contracapas dos LPs de Jacob foi atualizada. 4 Na edição de 29-10-1947 do programa “O Pessoal da Velha Guarda”, Almirante destacava: “Jacob Bittencourt, o nosso queridíssimo Jacob do Bandolim, figura marcante da música popular de nossos dias, campeão de brasilidade, batalhador incondicional pelas nossas músicas de hoje e de ontem, acaba de fazer sua primeira gravação[,] ouvintes. [...]. Jacob é o novo da Velha Guarda. E é pois com alegria sincera que desejamos o sucesso de suas gravações” (grifo nosso). 5 Segundo a sua principal biógrafa, Ermelinda Paz, Jacob já começara a colecionar esses documentos em 1939, aos 21 anos. (PAZ: 1997, p. 97). Os detalhes sobre a documentação contida no referido arquivo podem ser encontradas nessa mesma biografia (idem, pp. 102-3).

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que foram relançados no formato LP em 1955 sob o título de “Jacob revive músicas de

Ernesto Nazareth”. No texto da contracapa, cuja afinidade de sentidos com a imagem da capa

de “Chorinhos e Chorões” é notável, lê-se:

“Jacob veio emprestar um novo matiz às composições de Nazareth, comumente interpretadas ao piano ou por orquestras. Músico estudioso de nossa música, além de privilegiado compositor, logo tornou-se conhecido como um dos maiores intérpretes de Nazareth, sendo digna de admiração a forma como contornou dificuldades técnicas surgidas na adaptação ao estreito campo das oito cordas do bandolim, de melodias compostas no vasto teclado do piano. Realizou, ainda, um sério trabalho de pesquisa, confrontando peças, escolhendo as que lhe pareceram mais representativas do talento de Nazareth, numa tarefa realmente árdua.” (texto anônimo da contracapa do LP “Jacob revive músicas de Ernesto Nazareth”, 1955).

Entre 1947, data de lançamento do seu primeiro compacto como artista principal,

e o lançamento do LP com músicas de Ernesto Nazareth, Jacob lançou um número

representativo de discos de 10 polegadas (78 rpm) que, via de regra, alternam uma música de

sua própria autoria com uma de compositores nascidos durante a segunda metade do século

XIX6. A reedição de gravações contidas nesses compactos será a base dos dois LPs que

sucedem aquele dedicado a Nazareth, “Valsas Evocativas” (1956) e “Choros Evocativos”

(1957). Estes, por sua vez, serão reunidos cinco anos mais tarde no lançamento do já citado

“Valsas e choros evocativos”, cuja música de abertura, mantendo a ordem do LP de 56,

intitula-se “Revendo o Passado”. Se a trajetória artística de Jacob que se delineia através da

sua produção fonográfica busca explicitar sua vinculação a um projeto estético-ideológico

orientado para o “resgate” do passado, compreender qual passado era esse representa uma

tarefa um pouco mais sutil.

Revendo o passado

No depoimento de 1967 dado ao MIS, enquanto comentava a sua discografia,

Jacob é indagado sobre as origens do choro. Recorrendo ao texto de sua autoria, estampado na

contracapa de “Na roda do choro” (1961), Jacob declara:

“Eu afirmei aqui, que um musicólogo afirmou que o vocábulo se origina de xôlo, um concerto vocal com danças dos cafres da Contra-Costa, e que, por confusão com o parônimo português, passou a grafar-se choro. Outro musicólogo chegou a assegurar que advém de Chorus, latim. Aceito, entretanto a versão dos chorões remanescentes com quem tenho permanente contato: “Choro” pode significar um grupo de instrumentos: flauta, violão, cavaquinho, bandolim, clarinete, oficleide, etc. ou, o ato de se reunirem para tocar, exemplo: fui a um choro... ou ainda melodia de compasso

6 Vale lembrar que, naquele momento, já se consagrava na interpretação da história da música popular o remeter-se às últimas décadas do século XIX como o período em que se origina o choro.

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dois por quatro e que se caracteriza por frases sentimentais ou modulações inesperadas, e se por vezes alegre, deve-se ao andamento que lhe é imprimido, mas na sua feitura um daqueles requisitos há de ser satisfeito, isto é, a frase sentimental ou a modulação inesperada. Um famoso choro, dos mais saltitantes que é o Um a Zero de Pixinguinha, ao tocarmos lentamente, notaremos como é lastimoso o fraseado do quarto e quinto compasso da primeira parte: [solfeja]. Taí o sentimento imprimido ao choro, taí a cobrança do tributo, exato. Da polca, originária da Europa, dançante e modulada, originou-se o choro. No Brasil, as três raças tristes, cobraram o seu tributo tornando-a mais lenta e melodiosa, porém, dançante ou não, continuaram conhecidas como polcas, não há quem encontre em impresso ou disco dos mais antigos o vocábulo choro, todas eram polcas, mas como emocionavam quem as tocava ou ouvia, eram denominadas músicas de choro, de fazer chorar. Cadernos em meu poder, organizados em manuscritos em fim do século passado confirmam esta assertiva, posteriormente é que às próprias composições indistintamente se passou a chamar de choro.” (JACOB DO BANDOLIM: 1967).

A remissão inicial à origem do termo “choro” e aos seus significados, que traz as

marcas do discurso positivista que articulava as discussões sobre música popular desde os

anos 50, conduz finalmente às considerações sobre as “origens” do gênero. E não é de se

espantar que, em contrapartida, ela se articule em torno ao mito fundador do “povo

brasileiro”. O elemento factual, a polca, e a síntese espiritual definidora da brasilidade, (a das

“três raças tristes”), se fundem numa nova síntese: a polca “sentimentalizada” é a origem ao

choro. Que essa definição se dê puramente no plano do mito, que o pouco de historicidade

alcançado com a referência à atuação de Callado na organização dos conjuntos de choro

apareça, ainda no texto da contracapa lido por Jacob em seu depoimento, separada das

“origens do choro” numa seção intitulada “primeiros divulgadores”, poder-se-ia explicar pelo

seu caráter de divulgação. Mas justamente a retomada dessa narrativa no depoimento ao MIS

aponta no sentido contrário. Ao invés de ser casual, ou estar determinada por fatores

contingentes, ela parece ser consoante com as demais representações construídas sobre as

“origens” do choro.

Aparentemente desvinculada das idéias expostas na contracapa de “Na roda do

choro”, uma imagem mítica do passado também emerge dos LPs de Jacob. A capa de “Valsas

e Choros Evocativos” não deixa dúvida quanto ao passado evocado: trata-se da Belle Époque

carioca. A imagem do galanteio em primeiro plano, perfeitamente equilibrada pelas

vestimentas do casal, é contraposta a um plano de fundo ilustrado que, em seu contorno

difuso, remete ao sonho distante do Brasil civilizado: uma sociedade congelada no tempo do

lazer e da diversão. Não se trata da Belle Époque no intenso dinamismo histórico

impulsionado e continuamente alimentado pelas violentas contradições do período, mas sim

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da imagem mítica de sociedade moderna e civilizada que mediava a relação com o real7.

Numa edição de 1898, o editor do semanário Rua do Ouvidor dava as boas vindas à nova era

que se anunciava:

“Temos ordem no progresso e as ordens prosperam. Dissiparam-se os fantasmas que assustavam a burguesia. [...]. O Brasil vaga sereno e galhardamente em mar de rosas e em completa calmaria... madura. [...]. Somos pois em plena bonança e as instituições momentaneamente abaladas prontamente reconsolidadas [...] Fala-se aqui em crise financeira, mas isso não passa de boato, e para prová-lo aí temos o desenvolvimento do gosto pela bicicleta, luxo caro.” (apud NEEDELL: 1993, p. 39).

Estampada no centro da capa do LP “Valsas Brasileiras de Antigamente”, é a

bicicleta que insere a devida distância através da qual o flerte, enquanto ideal de conduta

amorosa, se desdobrava.

Evidentemente, todas essas imagens se apresentam sob o signo da nostalgia:

“Quando dizemos ‘antigamente’, claro que desejamos nos referir àquela época romântica de início de século, aos ‘velhos bons tempos’ das modinhas, das serestas, dos choros da candura, da poesia, do amor casto. Aquele bucólico período que assinalou a fase áurea da sala-de-visitas com o seu indefectível piano a um canto, uma pletora de retratos de família na parede colorida, vistosas flores artificiais em magnificentes jarros, uma variedade infinda de porcelanas... Este é o quadro, a visão, que Jacob engendra em nosso imaginário ao dispensar, com o virtuosismo que o caracteriza, tratamento adequado a uma dúzia de ‘valsas de antigamente’, valsas que [...] são, na realidade, músicas que fizeram vibrar os corações românticos das primeiras décadas do nosso século.” (texto anônimo da contracapa do LP “Valsas e Choros Evocativos”, 1962).

Essa evocação nostálgica de um passado idílico já estava bem esboçada no LP de

estreia de Jacob. A ilustração “a la” Belle Époque de um bandolim divide a capa de “Jacob

revive música de Ernesto Nazareth”, e separa o casal que dança descontraidamente, mas no

mais rigoroso estilo do período, da foto do bandolinista. A unidade da composição gráfica,

que se desenrola sobre um fundo rosa, acentua a distância que separa a ilustração da foto de

Jacob em tonalidades de cinza (a fotografia colorida já era utilizada nas capas de discos), de

modo que esta última aparece claramente superposta à primeira. No texto da contracapa lê-se

que as páginas de Nazareth “são sempre uma evocação pungente de um passado cheio de

romantismo e nostalgia”, e essa situação ganha em significação na medida em que aquele

passado é visto como repositório da “alma brasileira”. Fala-se, portanto, das origens do choro

no Rio de Janeiro Imperial, mas evoca-se a imagem idealizada do período que deitou por terra

todas as formas de continuidade com aquele passado, aplainando o terreno da “antiga ordem”

para elevação da nova sociedade capitalista.

7 Cf. NEEDELL (1993).

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Não surpreende, portanto, que a evocação desse passado apareça também na

forma de imagens da natureza. A noite enluarada estampada na capa de “Valsas Evocativas”

(1956) remete aos “‘velhos bons tempos’ das modinhas, das serestas, dos choros da candura,

da poesia, do amor casto”, ou, em outras palavras, àquele “bucólico período” que se foi. E

talvez também seja esse o sentido da imagem estampada na fronte de “Primas e Bordões”

(1962). Mas a sua expressão mais acabada parece ser a capa do disco “Época de Ouro”. Muito

embora se trate de um disco em reverência àquele período que se cristalizava na memória da

música popular como a “época de ouro”, ou seja, à década de 30 e início da seguinte, a

historicidade desse período se dissolve na sua representação imagética. Simbolizada por uma

bailarina, ideal de pureza e delicadeza, a “época de ouro” é contemplada do alto de uma

árvore enquanto gesticula suavemente com os olhos fechados, parecendo querer dizer:

“Quando essas melodias nos chegam, chegam-nos também lembranças deliciosas de um

tempo que já vai longe”8.

Tradição versus modernização?

Em finais da década de 50 o problema da modernização fora alçado a uma espécie

de “espírito do tempo” e, como tal, também deixou as suas marcas na produção dos “bens

culturais”, até mesmo naquela que parecia mais refratária aos seus “encantos”9. Assim, no

subtítulo do disco sobre a “Época de ouro” lemos: “Jacob e seu bandolim em Hi-Fi”. Além de

remeter a uma série de transformações ocorridas na base material da produção e reprodução

de fonogramas, aquela sigla, abreviação de High Fidelity, funcionava também como uma

espécie de “envoltório ideológico” que recobria os produtos musicais com uma aura de

modernidade (ZAN: 1997, 113 e ss.). Evidentemente, esse fator isolado não diz muita coisa,

uma vez que poderia tratar-se meramente de uma estratégia de venda da RCA-Victor.

Entretanto, quando considerado em conjunto com outros elementos do disco, a aura que ele

projeta ganha em densidade.

Além de ser o primeiro LP de Jacob em que todos os fonogramas foram

produzidos em função da unidade da obra10, este também foi o primeiro disco do bandolinista

gravado em Hi-fi. O aspecto técnico de sua produção, que se destaca em sua capa, foi

8 Texto que anuncia o primeiro programa da série “O pessoal da velha guarda”. 9 Basta aqui lembrar que tradição e modernidade representavam, em certa medida, polos opostos nos discursos sobre música popular ao longo da década de 1950. 10 Os LPs anteriores foram compostos basicamente de reedições de fonogramas no formato 78 rpm/10 polegadas. Conferir PUGLIESI e PRATA (2002).

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amplificado em sua contracapa. Nela, um pequeno texto, assinado por E.B., inicia a

apresentação do disco com as seguintes palavras:

“Entre os LPs já gravados no Brasil focalizando um solista instrumental, talvez não exista nenhum que rivalize com este ÉPOCA DE OURO, de Jacob. Porque as qualidades de que se reveste são realmente preciosas – tanto no que diz respeito à parte artística, com este fabuloso bandolinista fazendo-se apoiar por magníficos acompanhamentos e mais uma vez pondo em destaque a beleza da legítima música brasileira, como no setor técnico, onde os mais modernos processos de gravação em Alta Fidelidade foram empregados sob condições acústicas perfeitas – o equilíbrio das forças sonoras aqui é flagrante.” (E.B., texto da contracapa do LP “Época de Ouro”, 1959)

Apesar da ênfase na “modernidade” do “setor técnico”, colocada em paralelo com

a “parte artística”, o texto se esforça por colocar os conteúdos correspondentes a essas

denominações nos seus devidos lugares, de modo que “os mais modernos processos de

gravação” apenas revelariam, em “alta fidelidade”, a “beleza da legítima música brasileira”.

Entretanto, o problema da modernização estende as suas raízes ao âmago do LP.

No plano da criação em música popular, esse problema “assombrara” a

imaginação dos músicos ao longo de toda a década de 1950 e, naquele ano de 1959, alcançara

uma de suas respostas mais acabadas no LP Chega de Saudade11. Uma das principais

expressões desse problema, diretamente relacionada com a crescente importância alcançada

pelos arranjadores ao longo das décadas de 1940 e 50 (Radamés Gnattali, Pixinguinha, Lyrio

Panicalli, Léo Peracchi, Tom Jobim etc.), foi a polêmica em torno do impacto da prática dos

arranjos sobre a autenticidade da música popular, ou seja, se ela ameaçava ou não essa

autenticidade. Enquanto os ferrenhos defensores da “verdadeira tradição” denunciavam o

caráter potencialmente deletério dessa prática, os arranjadores, em defesa de seus interesses,

afirmavam a “neutralidade” de suas criações. Tom Jobim, quando indagado sobre a

necessidade da preservação das características da música brasileira, responde: “[a] integridade

da música brasileira se acha garantida e não depende da minha resposta. As vestimentas

orquestrais jamais afetarão o seu perfume” (apud POLETTO: 2004, p. 76). Apesar de

justificar a prática dos arranjos como condizente com a própria natureza da música brasileira

– ser amálgama de influências –, bem como pelo viés da inevitável evolução musical, o

discurso de Jobim e de seus companheiros, que tem na noção de “vestimenta” seu ponto

central, se assemelha muito à estrutura do texto da contracapa do “Época de Ouro”: a técnica

não altera a essência, apenas a aparência. O próprio Jacob aponta nesse sentido quando, na

11 Conferir GARCIA (1999).

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contracapa de “Chorinhos e Chorões”, anuncia que abandonou, por algum tempo, “as ricas e

lindas orquestrações com que vínhamos apresentando belas páginas do passado”. Radamés,

que divide os arranjos do “Época de ouro” de Jacob com o Maestro Carioca, defendia que

“orquestrar a música popular absolutamente não é desvirtuá-la (...) desde que os instrumentos

musicais utilizados pelo orquestrador tenham por objetivo acentuar os valores rítmicos,

melódicos e harmônicos”, e já deixa claro onde devemos procurar aquela essência: “o ritmo,

fundamentalmente, deve-se preservá-lo a todo custo”12 (apud SARAIVA: 2007, p. 54).

Vejamos, através de comparações com transcrições de fragmentos retirados de gravações

realizadas na segunda metade da década de 30, alguns exemplos de como os arranjos de

Radamés do Maestro Carioca “vestem” a “época de ouro”:

Exemplo 1: primeiros 8 compassos da seção A intermediária da gravação de “Longe dos olhos” (Cristóvão Alencar e Djalma Ferreira) de Francisco Alves (1936)

12 Vale lembrar que Jacob afirmará algo parecido em seu depoimento ao MIS: “Você encontra mais no choro primeiro o ritmo, segundo a frase melódica, a harmonia pouco interessa”. (JACOB DO BANDOLIM: 1967, citado também em CÔRTES: 2007, pp. 9-10).

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Exemplo 2: primeiros 8 compassos da seção A intermediária da gravação de “Longe dos olhos” no LP Época de ouro (1959, arrj. Maestro Carioca)13

Podemos ver que o tratamento dado pelo Maestro Carioca se afasta daquele

apresentado na gravação que remete à “época de ouro” pela combinação de diversos

elementos: figuração melódica, acentuação, articulação, escrita em bloco, emprego da escala

menor melódica sobre o acorde de tônica etc. Esse afastamento se realiza, entre outros fatores,

através da aproximação a elementos característicos de certos gêneros de jazz norte-

americanos, como, por exemplo, o swing. Nota-se, nesse sentido, a intervenção constante do

naipe de saxofones durante a exposição da melodia feita pelo bandolim, a modo dos

backgrounds recorrentes na escrita para big-band.

Façamos novamente a comparação a partir da introdução escrita por Radamés

para a canção “Já sei sorrir”.

Exemplo 3: trecho inicial da introdução de “Já sei sorrir” na gravação de Sílvio Caldas (1939)

13 A versão de Jacob está na tonalidade de lá menor, mas, aproveitando o acorde de dó maior como pivô, a seção intermediária construída pelo Maestro Carioca desenvolve o material melódico na tonalidade de mi menor.

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Exemplo 4: trecho inicial da introdução de “Já sei sorrir” na gravação do LP Época de ouro (1959, arrj. Radamés Gnattali)

Nesta elaboração do material melódico que, à semelhança da gravação de Sílvio

Caldas feita em 1939, foi retirado da seção B da composição de Ataulfo Alves, também se

verifica a incorporação de diversos elementos recorrentes na escrita jazzística, como, por

exemplo, a figura rítmica formada por tercina de semicolcheias + duas semicolcheias no

compasso 1, a ascensão cromática da relação de terças no compasso 2, o uso da blue-note no

compasso 6, as acentuações e articulações, e a escrita em bloco. Chama a atenção a figuração

rítmica do terceiro compasso do arranjo de Radamés, que prepara a apresentação da melodia

executada em bloco pelos saxofones, na medida em que parece dialogar com a figuração

executada pelo violão no compasso anacrústico da introdução apresentada na gravação de

1936. Apesar da coincidência, as diferenças de instrumentação, articulação e acentuação

alteram completamente o sentido musical dessa figuração.

Até mesmo o ritmo, cuja ligação essencial com a “brasilidade” nunca foi

absolutamente clara – fato que, certamente, permitiu a compositores e instrumentistas certa

flexibilidade de criação e interpretação, fugindo ao enrijecimento estereotipador de fórmulas

de “brasilidade” –, parece ter sido permeado por figurações e inflexões recorrentes no

repertório de jazz das big bands norte-americanas. Neste ponto, apenas lembraremos que, em

finais dos anos 50, parte representativa dos músicos, produtores musicais, etc. via o jazz como

uma fonte de recursos estético-musicais potencialmente modernizadores da música popular

brasileira (SARAIVA: 2007). Se Jacob era ou não consciente dessa aparente ambiguidade

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entre ideal e realização, se percebia o aspecto “moderno” da vestimenta, se reconhecia que ela

alterava a face da “época de ouro”, e se escutava a ressonância da estética jazzística em seu

LP, constituem questões que não caberá a este texto responder (apesar dos indícios de que,

para ele, a situação não se articulava do modo como a estamos abordando). Entretanto, esta

não seria a primeira nem a última vez que a busca da tradição esbarra no problema da

modernização. O encontro entre as duas tendências perpassa toda a trajetória do bandolinista,

apesar de ocorrer, em comparação com o “Época de Ouro”, de forma mais esporádica e mais

sutil.

A roda de choro

Mais do que um encontro entre tendências aparentemente antagônicas, a forma

como a busca pela tradição se realiza no diálogo com “elementos de modernidade” no LP

“Época de Ouro” talvez nos permita pensar que o problema da tradição está visceralmente

ligado ao da modernização. Em seu lado mais evidente, essa afirmação poderia ser justificada

da seguinte maneira: a busca pela tradição é uma reação à massificação do rádio e à

“mundialização da cultura”14. Numa perspectiva menos idealista, é possível mostrar como a

ascensão e a permanência de figuras-chave da música popular na década de 30 no topo de

instituições relacionadas com a organização do campo da música popular (como as sociedades

de direitos autorais) concorreu para uma idealização do passado ao qual essas figuras

pertenciam, frente a um presente que lhes subtraía não somente importância política, mas,

sobretudo, o espaço no mercado de música (MORELLI: 2000). Em ambos os casos, o passado

idealizado aparece como reação às transformações que o presente lhe impõe, transformações

que logo entrarão em afinidade com o desejo de modernização. Era um passado colorido

contra um presente em tons de cinza.

O rumo da argumentação apresentada neste estudo pode conduzir esse problema

por um outro caminho. Enquanto imagem mítica de uma sociedade harmoniosa, a Belle

Époque carioca, que outrora fora sinônimo de ímpeto modernizador e civilizador, pôde, nos

anos 50, aparecer como repositório da tradição. Nesse movimento, entretanto, não perdeu

completamente aquele caráter, mas o congelou em imagens. Nessas imagens, que eram

14 De um modo geral, a historiografia tende a tratar problemas como o da “decadência” e da retomada da “tradição”, que surgem no discurso de determinados grupos de agentes do campo musical a partir de finais da década de 1940, como sendo frutos de uma espécie de “choque de valores” experimentado por esses grupos na confrontação com as transformações dos hábitos de consumo de música, relacionadas, por exemplo, com a massificação do rádio, com a “invasão” da “música estrangeira” etc.

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também as imagens que a sociedade da Belle Époque carioca projetava sobre o mundo social,

com o qual estava em gritante contraste, tratava-se justamente de ocultar o mundo do

trabalho15. Entretanto, no processo de implantação da ordem burguesa no Brasil, “[o] conceito

de trabalho se erige, então, no princípio regulador da sociedade” (CHALHOUB: 1986, p. 48).

Ele é percebido nas inúmeras iniciativas levadas a cabo para inculcar nas classes baixas uma

ética de trabalho assalariado condizente com a nova ordem que se tentava impor. No que

tanges às relações de trabalho na esfera da música popular, esse “problema” permanecerá

latente até o momento em que a geração de músicos como Jacob do Bandolim e Radamés

Gnattali passam a criticar a falta de competência técnica, de comprometimento e a “mistura de

papéis” de cada instrumento na execução musical. E não é por acaso que isso ocorre num

período de profissionalização das relações de trabalho no interior do setor radiofônico, ao qual

essas figuras estiveram umbilicalmente ligadas. No caso de Jacob, a disciplinarização do

músico de choro se tornou um dos principais motes da sua prática16, e se conjugou num

mesmo esforço com a sua busca pela tradição. Mas, quando apareceu, ele sempre esteve

mascarado pela idéia de espontaneidade e pela valorização da “improvisação”:

“Creio mesmo, que a perfeição do seu acompanhamento [do grupo que acompanha Jacob nesse LP] dispensaria nossos solos. Para isso, cada elemento, obedecidas certas convenções, teve inteira liberdade para expandir-se e improvisar. Todavia, souberam dosar seu talento, evitando cruzamentos ou perturbações à linha melódica”. (JACOB DO BANDOLIM, texto da contracapa do LP “Chorinhos e Chorões”, 1961). Essa situação também encontra sua expressão na imbricação entre os meios

técnicos de produção e a performance registrada. Sabe-se que, em “Chorinhos e chorões”,

Jacob gravou sua parte num momento posterior ao da gravação do acompanhamento,

utilizando-se desta como playback para o estudo e planejamento rigoroso de sua

15 Sigo aqui a análise de Needell sobre a Belle Époque carioca, feita a partir do conceito benjaminiano de fantasmagoria. Conferir NEEDELL (1993). 16 Sobre esse aspecto da prática de Jacob, amplamente destacado pela bibliografia, podemos citar o seguinte trecho da biografia escrita por Ermelinda Paz: “Tudo tinha que sair e ser necessariamente perfeito. Os programas e gravações tinham que começar na hora marcada, os músicos deviam estar preparados técnica e musicalmente, com suas partes sabidas e dominadas, seus instrumentos cuidados e afinados antes da hora, coisas que, apesar de corretas e obviamente necessárias para um bom resultado musical, raramente aconteciam... Jacob não admitia um erro sequer, fosse de quem fosse, e externava seu desapontamento de modo duro, na frente de qualquer pessoa. (PAZ: 1997, pp. 35-6).

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interpretação17, sendo talvez pioneiro no Brasil neste uso das técnicas de gravação para a

produção de uma performance com aura de espontaneidade18.

Em contraste, a expressão mais acabada do ideal de prática musical

“genuinamente chorona” pode ser encontrado no LP “Na roda do choro”. Enquanto a capa

remete ao imaginário relacionado com as práticas “primordiais” do choro, pretensamente

“resgatadas” por Jacob em seus saraus, na contracapa, o chorão é definido pelo seu

temperamento rebelde frente à disciplinarização do trabalho:

“É em princípio um improvisador. Passa a vida planejando ensaios que nunca realiza. Porque indisciplinado, rebelde, os transforma em memoráveis reuniões, onde prefere demonstrar seu talento, emotividade e capacidade de improvisador. Não faz questão de ser remunerado, mas não dispensa, onde toca, um bom prato ou um gostoso trago ... ou ambos ao mesmo tempo. Prefere o sereno ao abrigo. E até mulher nessas reuniões, é, para o chorão, apenas um incidente...” (JACOB DO BANDOLIM, texto da contracapa do LP “Na roda do choro”, 1960)

Nenhuma alusão direta ao trabalho realizado nos ensaios, ao emprego das técnicas

de gravação, às relações de trabalho nas rádios; as marcas desse mundo deixam-se entrever

apenas pela via da negação do profissionalismo, entendido aqui como exercício de atividade

remunerada da qual depende o músico para a reprodução de sua vida material. E essa negação

aparece na tonalidade romântica da ideologia da “arte pela arte”. É ela que recobre não

somente a própria escolha de Jacob pelo funcionalismo público, mas todo o seu empenho em

canalizar as energias do músico de choro do “mero interesse na música como meio de vida”19

para o empenho e disciplina no exercício da atividade musical como um fim em si mesma. Ou

seja, trata-se de uma reação ao presente que contém um elemento ambíguo de modernização.

Se por um lado, a intervenção de Jacob na forma como estavam organizadas as relações de

trabalho no campo da música popular ia de encontro ao próprio processo de modernização

dessas relações no setor radiofônico como um todo, por outro lado, ela se distancia desse

processo na medida em que, orientada por uma visão idealizada do passado da música

17 Essa situação repetiu-se no LP “Primas e Bordões” e, provavelmente, em outros. As gravações dos acompanhamentos dos discos “Chorinhos e chorões” e “Primas e Bordões”, utilizadas por Jacob como playback, foram publicadas recentemente junto com o livro Tocando com Jacob (2006). 18 Sobre as mudanças nas técnicas de gravação, e o modo como Jacob empregava as inovações nesse campo, Ronaldo do Bandolim comenta: “Eles gravavam tudo tipo à moda antiga, entende? Na base da cera, depois foi modernizando, modernizando e o Jacob se eu não me engano, foi o primeiro músico, chamado grupo instrumental, que gravou em playback no Brasil. [...] Tipo assim: gravar uma base depois ele vai e bota o bandolim [...].” (apud CÔRTES: 2007, p. 47). Sobre a forma como Jacob realizava as gravações, Joel Nascimento comenta: “[...] pra gravar, ele não improvisava, ele já havia ensaiado, já havia pronto” (Idem, ibid.) 19 Palavras de Roberto Kinsman Benjamin, fundador do Club Beethoven, no Folhetim “Sociedade de Concertos Clássicos” do Diário de Notícias, em 15/10/1886 (apud MOURA: 2008, p. 44).

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popular, buscava resgatar as formas de sociabilidade “primordiais” em torno das quais essa

música teria sido praticada.

Conclusões

A origem mítica da polca sentimentalizada pela “alma brasileira”, as imagens da

Belle Époque conjugadas com a nostalgia das últimas décadas do Brasil império e a primeira

do Brasil república, a roda de choro e o ideal das práticas musicais “primordiais” em torno

desse gênero etc., são elementos presentes nos primeiros LPs de Jacob do Bandolim que dão

contornos a um projeto estético-ideológico. Inscritos nele, em sulcos incisivos ou em sutis

arranhões, também estão as disputas simbólicas, as transformações nas técnicas de produção

musical e as próprias mudanças nas relações de trabalho no campo da música popular.

Referências bibliográficas

ALMIRANTE (Henrique F. Domingues). O pessoal da velha guarda. Série de programas transmitidos entre 1947 e 1952 pelas rádios Tupi e Tamoio. Transcrição: Alexandre Dias. Disponível em http://daniellathompson.com/Texts/Pessoal/Pessoal.htm. 11/03/2012. BITTENCOURT, Jacob P. Depoimento prestado ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 24 de fev. de 1967. Fita magnética. MIS. CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim : o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986. CÔRTES, A. O estilo interpretativo de Jacob do Bandolim. Dissertação de Mestrado em Música, IA/UNICAMP. Campinas, 2006. GARCIA, Walter. Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999. MORELLI, Rita de C. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 2000. MOURA, Rogério S. de Recompondo o passado: Alberto Nepomuceno sob a Batuta Modernista. Dissertação (Mestrado em História) – PUC/RJ, Rio de Janeiro, 2008. PAZ, Ermelinda. Jacob do Bandolim. Rio de Janeiro: Funarte, 1997. PUGLIESI, Maria V.; PRATA, Sergio. Tributo a Jacob do Bandolim: discografia completa. Rio de Janeiro: Centro Cultural Antônio Carlos Carvalho, 2002.

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SARAIVA, Joana M. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. Rio de Janeiro, 2007. 109f. Dissertação (Mestrado em História Social). PUC/RJ. Tocando com Jacob: partituras & playbacks. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2006. ZAN, José R. Do fundo de quintal à vanguarda: contribuição para uma história social da música popular brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). UNICAMP.

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- II - O Hi-Fi enquanto processo e produto:

a Musidisc e a produção fonográfica do Trio Surdina nos anos 1950.20

Rodrigo Aparecido Vicente21 Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP Resumo: Em 1952, surgia o programa Música em Surdina, tencionando reproduzir no rádio a sonoridade dos pequenos conjuntos que atuavam nos ambientes intimistas e elegantes das boates que proliferavam na zona sul carioca. Dentre as diversas formações ali arregimentadas, apenas uma chegou ao disco: o Trio Surdina, integrado por Garoto (violão), Fafá Lemos (violino) e Chiquinho do Acordeon. Os registros fonográficos do conjunto foram realizados na Musidisc, gravadora especializada em LPs. Esta proposta discute como a sonoridade do trio e os conteúdos textuais e gráficos dos discos se inter-relacionam e compõem um projeto estético-musical entremeado por estratégias de promoção traduzidas sob o signo Hi-Fi, num contexto em que novos suportes e técnicas de gravação se consolidavam, revelando em última análise a busca pela distinção num mercado em vias de segmentação de gostos. Palavras-chave: música popular brasileira, indústria cultural, anos 1950, Trio Surdina.

1. Música em Surdina: a gênese em tempos de segmentação de gostos

Uma das raras críticas que se dirigiu diretamente ao Trio Surdina foi publicada em

1953, quando do lançamento do primeiro long-playing do conjunto:

(...) estréia em disco o notável Trio Surdina (...) Os solistas de acordeom, violão e

violino oferecem maravilhosos instantes de deleite espiritual. Suas criações atingem nível técnico excepcional!(...) Os três instrumentistas surpreendem pelo apuro técnico. Nós Três é página de feição originalíssima, ritmicamente, quer nas belas nuances melódicas que tira partido o excelente violão, ou nos maravilhosos graves do exímio acordeonista, secundados, ambos, pela técnica muito pessoal do violino. Trata-se, pois, de lançamento que orgulha a indústria do disco brasileiro na atualidade, constituindo o início de uma nova era, das mais brilhantes, para a fonografia do Brasil! Uma linda e artística capa, do desenhista Rodolfo, valoriza, igualmente, o longplaying Trio Surdina. (...) Felicitamos, efusivamente, a gravadora de Nilo Sérgio [Musidisc]. (Antonio & Pereira, 1982: 61-62).

“Apuro técnico”, “originalidade”, “deleite espiritual”, “nova era”... Essas seriam algumas das

palavras-chave do referido texto, empregadas aqui em sentido positivo e distintivo,

contrapondo-se até certo ponto a outras produções contemporâneas que procuravam se

distinguir e se legitimar sob as insígnias da “tradição” e do “autêntico”. Destaca-se também a

20 Trabalho apresentado a Mesa Coordenada Nº 3: Os LPs como meios de comunicação de projetos estético-ideológicos: os casos do Trio Surdina, Jacob do Bandolim e Martinho da Vila, do IV Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2012, na Escola de Comunicação e Artes da USP, São Paulo/SP. 21 É guitarrista, bacharel em Música Popular e mestrando em Música pela UNICAMP, tendo como orientador o Prof. Dr. José Roberto Zan. Link para acessar o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4162161037283075.

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presença do termo long-playing associado a uma gravadora nacional, a estreante Musidisc,

haja vista o recente desenvolvimento desse novo formato nos Estados Unidos (1948) - a partir

de inovações surgidas na Alemanha ainda no período da guerra -, cujos discos chegavam ao

Brasil apenas via importação, o que encarecia seus preços. Por se tratar de uma produção que

acabara de entrar para o mercado, essas palavras possivelmente suscitaram dúvidas ou, no

mínimo, a curiosidade do leitor comum ao omitir o nome dos integrantes do tão elogiado trio.

Longe de ser um mero “deslize” do autor, esse fato é apenas um dos inúmeros “mistérios” que

circundam o Trio Surdina.22 Para tentar desvendá-los, é necessário retomar sua gênese.

Isto se deu em 1952, no programa Música em Surdina, idealizado e produzido por

Paulo Tapajós na Rádio Nacional. Como o próprio nome sugere, a intenção do musical era

produzir uma sonoridade mais intimista, contida, opondo-se tanto à estridência dos populares

programas de auditório quanto às formações instrumentais mais densas, como a da Orquestra

Brasileira da Rádio Nacional, por exemplo. Para tanto, Paulo Tapajós arregimentou uma série

de solistas da emissora, pertencentes a gerações distintas, para compor conjuntos menores

(Mello, 2009). Foi assim que Garoto (1915-1955), multinstrumentista que gozava de amplo

prestígio à época e que estava na emissora desde 1942, encontrou-se com os recém-

contratados Fafá Lemos (1921-2004), violinista que transitou em orquestras sinfônicas e

populares durante toda a década de 1940, e Chiquinho do Acordeon (1928-1993), jovem

gaúcho que havia se transferido há pouco para a capital federal.

Um dado que esclarece algumas motivações e o formato do programa é a faixa de

horário que o mesmo ocupava: os “fins de noite” do rádio, situados após o concorrido

“horário nobre” - preenchido à época pelas radionovelas e audições humorísticas. Isso

significa que o público ao qual o Música em Surdina se dirigia também era distinto daquele

que ouvia e “consumia” os programas mais populares. Nesse sentido, sua estética se

coadunava com a das pequenas boates em voga sobretudo na zona sul do Rio de Janeiro

(Saroldi & Moreira, 1984: 76), freqüentadas predominantemente por membros da classe

média em ascensão desde o final da Segunda Guerra. Tratavam-se de espaços restritos, em

todas as acepções da palavra: adequados aos pocket shows, às formações instrumentais

22 A principal dificuldade encontrada nesta pesquisa diz respeito à escassez de informações sobre a origem e trajetória do Trio Surdina. Até o momento, quem melhor esclareceu uma série de interrogações existentes em torno do conjunto foi o pesquisador Jorge Mello que, através de seu blog, publicou diversas matérias que reconstituem a breve e nebulosa história do trio, todas pautadas em fontes privilegiadas a que teve acesso como, por exemplo, os contratos dos músicos com a gravadora de Nilo Sérgio, a Musidisc, os quais foram cedidos pelo atual proprietário da empresa, Nilo Sérgio Filho. Para mais detalhes, ver: http://jorgecarvalhodemello.blogspot.com/2009/04/desvendando-o-misterio-trio-surdina.html.

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reduzidas; ao mesmo tempo, eram amiúde “refinados”, “sofisticados” e “caros”. Em síntese,

pode-se dizer que o referencial estético perseguido pelo programa não deixa de revelar

algumas estratégias de distinção social (Bourdieu, 2008), em conexão com a busca pela

inserção e consagração num determinado segmento do campo radiofônico.

Campo este que, diga-se de passagem, encontrava-se em vias de segmentação

desde os anos 1940. É nessa fase que se configura de forma mais nítida uma cisão no plano

simbólico entre a produção denominada por vezes pejorativamente como comercial ou

“massiva”, voltada para o grande público, e outra mais intelectualizada, que atendia as

expectativas das classes médias. A primeira era representada, no âmbito radiofônico, pelos

programas de auditório, radionovelas e audições humorísticas, atrações que alcançavam os

maiores índices de audiência. Aliás, os auditórios chegaram a permitir a participação

ostensiva do público, composto predominantemente pela população de baixa renda, fato que

provocou, de acordo com José Ramos Tinhorão (1981: 83-84), uma espécie de “reação

elitista”, como mostra uma crônica do jornalista Anselmo Domingos publicada em 1947:

Há duas espécies de ouvintes. Os que acompanham as transmissões de casa e os que

vão aos auditórios ver de perto os programas. Ouvinte verdadeiro é aquele que capta no receptor as ondas das estações. Os outros também são ouvintes, mas apreciam o rádio por outro prisma. Ao cavalheiro que ouve programas de casa, não interessa saber se Carlos Frias é magro ou gordo, se Araci de Almeida é feia ou bonita. (...) No princípio o povo que corria aos auditórios o fazia pela curiosidade natural de conhecer os astros e estrelas. (...) Daí se conclui que os auditórios estão viciados. E isso é um grande mal que precisa ser debelado o quanto antes (Idem).

Essas críticas ressoam conflitos sociais mais amplos, bem como indícios da configuração de

uma hierarquia de legitimidades e gostos no incipiente campo de produção da música popular

(Goldfeder, 1980). A partir dessas considerações, é possível afirmar que o programa Música

em Surdina, voltado para um público mais restrito e de classe média, também constitui uma

espécie de “reação” num período em que os grupos intelectualizados assistiam ao

estreitamento do espaço dedicado às suas preferências na grade radiofônica. É dessa época a

criação de programas que buscavam dar um tratamento mais “digno” e “elegante” 23 à música

popular como, por exemplo, Quando os maestros se encontram, que contava com os

principais maestros da Rádio Nacional - Radamés Gnattali, Léo Peracchi, Lyrio Panicalli,

23 Esses termos foram empregados pelo ex-redator e crítico de rádio Pedro Anísio, ao discorrer acerca da atuação do maestro Radamés Gnattali à frente de diversas orquestras de música popular da Rádio Nacional. Ver: ANÍSIO, Pedro. Samba de casaca. Rádio Nacional, boletim informativo dos serviços de transmissão, ano I, nº 2 (Barbosa & Devos, 1984: 54).

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Alceu Bocchino, etc. -, e Ritmos do Copacabana, transmitido às 23:30 horas a partir do

luxuoso hotel “Copacabana Palace”.

Mas, se para determinados grupos esse período era de “crise”, para a classe média

emergente o momento também era de modernização.24 Os hábitos, comportamentos e os

produtos da cultura francesa, predominantes desde a segunda metade do século XIX e que

ganharam novo fôlego na belle époque carioca, articulavam-se com a produção cultural norte-

americana, mais recente e que se impunha de modo incisivo desde 1941 com a instituição da

Política da Boa Vizinhança (Ortiz, 1994: 88), constituindo juntas modelos e referenciais

estéticos a serem perseguidos pelas elites locais. Os revitalizados bairros da zona sul,

sobretudo Copacabana, com seus novos edifícios, hotéis, praias e boates freqüentadas cada

vez mais por turistas estrangeiros, tornava-se o espaço privilegiado das novas relações

socioculturais dos grupos intelectualizados, onde eram ditados, em suma, os novos padrões de

civilização e “bom gosto”. O texto de contracapa do disco Jantar no Rio: Fafá Lemos e sua

orquestra (RCA Victor), de 1954, ilustra um pouco o glamour desses ambientes, ao mesmo

tempo em que promove a referida produção:

Na Praia Vermelha, bem à beira-mar, encontra-se o Casablanca, de bom gosto e

discreto. Em qualquer boite do Rio goza o turista de um cortês e atencioso tratamento, podendo calmamente saborear a sua refeição e apreciar a paisagem e a música. (...) A música, naturalmente, precisa ser suave, dansável (sic) e cativante aos ouvidos. E cremos ser a música proporcionada por Fafá Lemos e pelo conjunto que ele dirige uma das mais deliciosas. Fafá Lemos, um violinista notavelmente suave, combina o seu instrumento com clarinete, violão e instrumentos de ritmo para produzir a sua delicada música. Seu repertório inclui consagradas melodias norte-americanas e francesas, além de novos e antigos sucessos brasileiros - alguns dos quais de autoria do próprio Lemos. (Grifos meus).

2. O Hi-Fi enquanto signo de modernidade

Havia na época uma série de signos de modernidade em evidência: as canções

francesa e norte-americana divulgadas pela indústria fonográfica e cinema; as produções

literárias e o próprio emprego, no cotidiano, dos idiomas oriundos desses países; os estilos de

vida e a moda divulgados pelo cinema hollywoodiano (o american way of life), revistas

especializadas; a arte e a arquitetura inspiradas no concretismo europeu, etc. No campo da

música popular em específico, a novidade, ou melhor, o signo de modernidade em voga era

24 Vale destacar que, a partir de 1950, principalmente, a industrialização do país também ganha novo fôlego, processo este que corroboraria para a modernização da economia segundo os padrões de produção e consumo dos países desenvolvidos (MELLO & NOVAIS, 1998: 560-564).

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representado também pela nova tecnologia de produção de discos: o Hi-Fi - abreviação de

High Fidelity -, que trouxe avanços significativos no que diz respeito ao formato, processo de

produção e qualidade sonora dos discos. É o início da era dos long-playings (LPs) de 33

rotações, bem como dos compactos de 45 rotações, ambos fabricados com o unbreakable

(inquebrável) vinil, que possuíam qualidade e capacidade superiores de gravação se

comparados aos frágeis e limitados discos de 78 rotações.

Aproveitando-se do potencial “mercadológico” que certos produtos associados ao

termo Hi-Fi adquiriram enquanto signo de modernidade e distinção, o até então crooner e

compositor Nilo Sérgio funda, em março de 1953, a Musidisc - uma das primeiras gravadoras

do país especializada em long-playings -, trazendo em seu catálogo inicial o disco de estréia

do Trio Surdina. O proprietário da empresa havia estabelecido contato com os integrantes do

conjunto meses antes, possivelmente nas Lojas Murray - loja que comercializava discos

importados e que se tornou uma espécie de reduto dos aficionados por jazz (Castro, 1990: 55,

245-246) -, quando esses assumiram uma formação fixa em razão do considerável

reconhecimento dos ouvintes do programa Música em Surdina. Entretanto, para levá-los ao

disco, Nilo Sérgio se deparou com um verdadeiro “imbróglio”: os músicos pertenciam a

gravadoras diferentes e bastante consolidadas no mercado, e não se sentiam seguros em

romper seus contratos e migrar para a estreante Musidisc. A solução encontrada, então, foi

omitir os nomes dos integrantes do trio nos créditos dos LPs. Além disso, o nome Trio

Surdina se tornou também uma “propriedade” de Nilo Sérgio pois, uma vez que Garoto, Fafá

e Chiquinho não podiam se tornar seus “funcionários” e o formato do grupo, em

contrapartida, era amiúde interessante em níveis de mercado, o conjunto deveria, no seu modo

de ver, seguir adiante. Daí as diversas formações que o mesmo acumulou ao longo de

aproximadamente dez anos de existência.25

Durante a existência do conjunto, a Musidisc procurou sempre evidenciar o signo

Hi-Fi nas capas e contracapas dos discos. Este é o caso, por exemplo, do LP Boleros em

Surdina (1958), que traz uma descrição considerável dos equipamentos usados no novo

processo de gravação, acompanhada de um gráfico que ilustra a freqüência correta a ser

ajustada nos aparelhos reprodutores dos “modernos” discos:

25 Além da formação inicial, que contava com Garoto, Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeon, o Trio Surdina foi integrado por músicos como Irany Pinto, Nestor Campos, Waltel Branco, Gaúcho (Auro P. Thomaz) Al Quincas (Joaquim Gonçalves Oliveira Filho), Patané, entre outros. Ver: http://jorgecarvalhodemello.blogspot.com/2009/04/desvendando-o-misterio-trio-surdina.html.

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Os discos “Hi-Fi Masterpiece” e “Hi-Fi Musidisc” são gravados com o melhor equipamento existente no momento e, dentro dos preceitos mais avançados de técnica moderna. São usados microfones de condensador - Telefunken e Altec - e microfones de fita, dinâmicos e cardióides - R.C.A. e Western Electric. Cada um deles é escolhido para esse ou aquele fim, de acordo com as suas características e depois de intensivos testes. Toda gravação original, tanto monoaural quanto estereofônica, é feita em máquinas “Ampex” - modelos 300-C, 350-C e 350-P. A transcrição para o “acetato” - Master - é feita em máquina “Scully” equipada com “Feed-Back Cutter Head” e “Hot Styllus”, de acordo com a curva universalmente adotada da R.I.A.A. (...) Aconselhamos aos amantes da “Alta Fidelidade” a ajustarem seus fonógrafos para a curva de reprodução da R.I.A.A. que é complemento da curva mostrada (onde se lê + na tabela, leia-se - e vice-versa) dentro de + ou - 1 DB entre, no mínimo, 100 c/s e 8000 c/s.

Jorge Coutinho (Sound Engineer)

Segue o gráfico ilustrativo:

Fig. 1: Detalhe da contracapa do LP Boleros em Surdina, que traz informações técnicas acerca da ajustagem dos novos equipamentos de gravação da era da “alta fidelidade”.

Essas breves informações acerca do Trio Surdina e da gravadora Musidisc apenas

evidenciam a necessidade de se considerar a indissociabilidade entre a sonoridade do conjunto

e os suportes técnicos através dos quais sua produção foi registrada. Como afirma Roger

Chartier (1991: 178), a “forma material” assumida por uma obra exerce um papel tão

importante para a geração de “significações múltiplas e móveis” no seu entorno quanto sua

própria estrutura interna. Em outras palavras, tanto os aspectos musicais intrínsecos aos

fonogramas - como a instrumentação, arranjos e estilos interpretativos - quanto os novos

métodos de gravação, a qualidade sonora e o novo formato de discos são determinantes para a

constituição dos fonogramas, bem como para a geração de sentidos e significados acerca da

produção musical do Trio Surdina nos anos 1950. Nessa direção, é importante tomar os LPs

enquanto produtos em que se inscrevem, ao mesmo tempo, “projetos” estéticos específicos.

Dito de outra maneira, não se deve negligenciar as estratégias de promoção e inserção no

mercado de música popular, nem tampouco a intenção que essas produções revelam no

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sentido de comunicar uma estética musical específica, buscando se distinguir qualitativamente

no seu próprio contexto. As palavras de Sebastião Fonseca, o autor da resenha presente na

contracapa do LP Boleros em Surdina, sintetizam de modo sui generis essa inter-relação:

(...) a eletrônica avançou a passos de gigante a caminho de uma técnica cada vez mais aprimorada, até que o prodígio da alta fidelidade surgiu e, como um DDT de fulminante poder, aniquilou de uma vez por todas a mosca do chiado. Pode, portanto, agora, o Trio Surdina, (...) reeditando as magníficas performances que tanto renome lhe deram, fazê-lo dentro de um clima técnico absolutamente propício ao seu estilo. Sim, porque a música desse esplêndido conjunto - como o seu nome está sugerindo - é a música-suavidade, a música-meiguice, a música que brota do disco como uma carícia sonora, como um quase silêncio a afagar o nosso ouvido.

3. O LP enquanto produto e “projeto” estético

O repertório do LP de estréia do conjunto, intitulado Trio Surdina (M-007, 1953),

é pautado por uma variedade considerável de gêneros musicais: os sambas-canções “Duas

Contas” (Garoto) e “Ninguém me Ama” (Antonio Maria e Fernando Lobo); o samba “Na

Madrugada” (Nilo Sérgio); o choro “O Relógio da vovó” (Garoto, Fafá e Chiquinho); o baião

“Nós Três” (Garoto, Fafá e Chiquinho); os beguines “Felicidade” (Garoto e Haroldo Barbosa)

e “Malagueña” (Ernesto Lecuona); e, finalmente, o fox-trot “Ternamente” - do original norte-

americano “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) -, que fora interpretado pelo trio como

um samba-canção. Essa variedade não deixa de ser um índice do tipo de racionalidade, em

plena formação, operante na produção e circulação de discos em um mercado em vias de

segmentação, visando atender a uma gama relativamente ampla de gostos musicais. Há uma

série de discos de conjuntos instrumentais e vocais contemporâneos do Trio Surdina que

apresentam essa característica: Uma noite no Plaza (Radio, 1955)26, trio formado por Luiz

Eça (piano), Ed Lincoln (contrabaixo) e Paulo Ney (guitarra); Norberto Baldauf, Ritmos da

Madrugada (Odeon, 1955)27, quinteto formado por Norberto Baldauf (piano), Raul Lima

(guitarra), Victor Canella (acordeon), Leo Velloso (contrabaixo) e Wilson Baraldo (bateria);

26 Integram este LP composições como “O Relógio da Vovó” (Garoto, Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeon), “Three coins in the fountain” (Jule Styne e Summy Cahn), “Na baixa do sapateiro” (Ary Barroso), “Stranger in paradise” (Robert Wright e George Forrest) e “Estatutos de gafieira” (Billy Blanco). 27 Lado A: pot-pourri de “Feitiço da vila” (Noel Rosa - Vadico), “No rancho fundo” (Ary Barroso - Lamartine Babo), “Sinceridad” (Gaston Perez), “Peguei um ita no norte” (Dorival Caymmi), “Felicidade” (Lupicinio Rodrigues), “Canção da volta” (Ismael Netto - Antonio Maria) e “Fita amarela” (Noel Rosa); “Baião na Espanha” (Victor Canella), “Copacabana” (João de Barro - Alberto Ribeiro), “Mano a mano” (Carlos Gardel - J. Razzano - E.C.Flores), “Duas rotações” (Victor Canella).

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Erwin Wiener, piano com ritmo (Odeon, 1957)28, disco que traz o pianista Erwin Wiener e seu

“conjunto melódico” não identificado, composto por contrabaixo, violão, acordeon, violino e

percussão; e, por fim, vale citar o disco Para Ouvir Amando... Waldir Calmon, piano e ritmo

(Copacabana, 1955), que traz apenas fox-trots, boleros e sambas-canções tocados em

andamentos lentos.29

Como observa Joana Saraiva (2007: 26-29), um aspecto marcante de muitos

conjuntos que atuaram no cenário da zona sul do Rio de Janeiro nessa fase é o seu caráter

dançante, compatível com o ambiente das pequenas boates, fato que explica também a

diversidade de “ritmos” do repertório assim como a recorrência de pot-pourris ou de

seqüências praticamente ininterruptas de músicas no decorrer dos LPs. Além disso, a presença

maciça de composições estrangeiras de autores como Peres Prado, Xavier Cugat, Cole Porter,

Julie Styne e Sammy Cahn, por exemplo, atribui-se em partes à ampla repercussão que suas

obras tiveram no Brasil entre os anos 1940 e 1950 (Severiano & Mello: 245-336).

Mas a variedade do repertório não permanece circunscrita a trabalhos específicos.

A produção fonográfica da Musidisc durante os anos 1950 revela, de um modo geral, um

“ecletismo” acentuado que, diga-se de passagem, não era estranho às outras gravadoras,

principalmente as de grande porte, como a Odeon, RCA Victor e Continental, por exemplo.

Diante de um mercado de música popular razoavelmente consolidado e segmentado, era

imperativo conquistar diferentes faixas do público consumidor. Muitos LPs da Musidisc

promoviam, em suas contracapas, o catálogo “eclético” da gravadora, que não se restringia

aos gêneros de música popular sobre os quais os pesquisadores costumam tratar quando

comentam esse período histórico, a saber, o samba-canção, o baião, o tango e o bolero.

Contemplava-se também a música infantil; as canções de datas comemorativas; músicas

folclóricas - presentes no disco Ouvindo Trio Surdina vol. 1; músicas “típicas” de países

como Itália, Portugal e França, bem como um segmento que parecia emergir naqueles anos: a

“música de fundo”, sem dúvida uma produção difícil de ser classificada, mas cuja proposta é

criar uma espécie de “trilha sonora” para determinadas ocasiões - como, por exemplo, o LP

28 Neste LP podem ser ouvidos “sucessos” como “Ninguém me ama” (Antonio Maria e Fernando Lobo), “Baião das velhas cantigas” (Jair Amorim), “Não tem solução” (Dorival Caymmi e Carlos Guinle) e “Lullaby of Birdland” (George Shearing e B. Y. Forster), quase todos interpretados como fox-trots. 29 As duas faces deste LP apresentam pot-pourris, em que os diferentes gêneros se intercalam: no lado A, ouve-se, por exemplo, “Ruby” (Heinz Roemheld e Mitchell Parish), “If I give my heart to you” (J. Crane, A. Jacobs e J. Brewster), “Contigo en la distancia” (C. Portillo de La Luz), “Este amor selvagem” (Miguel Angel Valladares) e “Quase” (Mirabeau e Jorge Gonçalves); no lado B, “There goes my heart” (A. Silver e B. Davis), “Sinceridad” (Rafael Gaston Perez), “Ocultei” (Ary Barroso) e “Brigas de amor” (Antônio Almeida).

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Música de Champagne, apropriado para os jantares românticos - ou mesmo cumprir funções

específicas no cotidiano, como sugere o disco Música para Adormecer. Tudo indica que este

tipo de produção conquistou uma faixa do público consumidor na época. Prova disso é uma

propaganda da loja de eletrodomésticos “Glória”, anunciando suas últimas “novidades em

discos” numa das páginas da quinta edição da Revista da Música Popular (2006: 265):

Música para Repousar: “Berceuse de Jocelyn”, “Autumn Leaves”, “While we’re

Young”, “Stardust”, “Portrait of a lady”, “Valse Bluette”, “Sleepy Largoon”, “La Golondrina”, “Serenata (Braga)” e “Moonlight Serenade”; Música para Leitura: “Clair de Lune”, “Greensleeves”, “Festival”, “Dream of Olwen”, “Song of my love”, “Mattinata”, “Amoureuse”, “Valsa em dó sustenido menor (Chopin)”, “Serenata (Drigo)” e “Flirtation”; Música para Jantar: “Diane”, “Too Young”, “September Song”, “Clopin Clopant”, “Concerto de Varsóvia”, “Dominó”, “Charmaine”, “Faithfully Yours” e “Ternamente”.

Esses discos foram produzidos pelo arranjador inglês George Melachrino e Sua Orquestra,

cujas orquestrações exploravam consideravelmente a família das cordas, empregadas de modo

a obter um caráter “suave” e “romântico”.

Em síntese, a “música de fundo” ou, como sugere Umberto Eco (1998: 295) de

maneira mais crítica, a “música gastronômica”, talvez seja mesmo um produto que não “mira

a nenhuma uma intenção de arte”, mas tão-somente a satisfação de demandas específicas do

mercado. Todavia, são necessárias análises empíricas para a comprovação dessa afirmativa.

Retomando o caso do Trio Surdina, sobretudo em sua formação inicial, o caráter

dançante não se mostra tão evidente em seus fonogramas quanto nas diversas produções

citadas anteriormente. Isso em razão do abandono de conduções rítmico-harmônicas regulares

no acompanhamento; da ausência, em alguns momentos, da própria percussão; e das

freqüentes intervenções “virtuosísticas” dos instrumentistas, reveladas, por exemplo, em

algumas Introduções de seus arranjos (cf. ex. 1). Por sua relevância, estes casos merecem uma

atenção especial.

As Introduções do Trio Surdina são momentos em que se podem constatar mais

facilmente estruturas “combinadas”, relativamente “fixas”, as quais remetem à execução de

arranjos escritos. É isso o que se verifica no exemplo a seguir, extraído de uma reinterpretação

do samba “Inquietação”, de Ary Barroso, presente no disco Trio Surdina e Orquestra Léo

Peracchi (M-008, 1953), LP dedicado exclusivamente à obra do célebre compositor de

“Aquarela do Brasil”. Embora o título sugira a parceria entre o conjunto e a orquestra do

arranjador Léo Peracchi, suas atuações se encontram divididas: no lado A, ouve-se apenas o

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Trio Surdina; no outro, a Orquestra Léo Peracchi. Não foi possível saber, até o momento, a

razão dessa separação. Como os discos foram lançados meses após as gravações, é provável

que Nilo Sérgio tenha tomado tal iniciativa ao constatar que os quatro fonogramas, cuja

unidade era garantida pelas composições de Ary Barroso, poderiam integrar um único

trabalho, sendo, no entanto, insuficiente para um LP. Daí a inclusão, na outra face, da

orquestra de Léo Peracchi.30

Exemplo 1: Introdução de “Inquietação” (Ary Barroso).

30 Essas “mesclas”, que podem soar um tanto “forçadas” para os ouvintes mais exigentes, não eram tão incomuns nos anos 1950. Graças ao novo processo de produção de disco, que introduziu a gravação em fita magnética, era possível até mesmo acrescentar a posteriori outros fragmentos a um único fonograma. Isso foi realizado, por exemplo, no LP Garoto Revive em Alta Fidelidade (Odeon, 1957), lançado dois anos após a morte do multinstrumentista Garoto. Na ocasião, foram encontradas fitas que o músico havia gravado como simples testes na gravadora Odeon em meados de 1955, meses antes de seu falecimento. Uma vez encontradas por Aloísio de Oliveira, em 1957, decidiu-se por seu lançamento. Como a duração das faixas era amiúde reduzida, foi inserido um acompanhamento orquestral, então realizado pelo mesmo Léo Peracchi, estendendo consideravelmente a duração dos fonogramas (Cabral, 1993: 366).

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Conforme mostra o exemplo, entre os compassos 1 e 4, atuam apenas o violão e o acordeon

em uníssono, somando-se a eles o contrabaixo logo em seguida. O andamento deste trecho

não é fixo - ou seja, trata-se do tempo rubato. A primeira intervenção que se verifica consiste,

basicamente, numa progressão de acordes do tipo dominante, sem a fundamental e com as

extensões de nona maior e décima primeira aumentada (V7(9)(#11)), que caminham em sentido

predominantemente descendente por meio de intervalos de tons inteiros. Nesse ponto, parece

evidente que os músicos lançaram mão da escala de tons inteiros - ou hexafônica - para

compor a Introdução, haja vista a distância intervalar entre os acordes, bem como suas

estruturas, formadas por algumas das notas que compõem essa escala. Por se tratar de um

recurso raramente empregado na música popular brasileira da época e inexistente em outras

versões deste samba,31 vale tecer alguns comentários acerca de suas prováveis procedências.

É sabido que a escala de tons inteiros foi sensivelmente explorada pelo

compositor francês Claude Debussy. Garoto a utiliza em diversas obras de violão solo, como

nas composições “Debussyana” (Bellinati, 1991: 26-27) e “Jorge do Fusa” (Ibid.: 30-31), por

exemplo. Essa referência pode estar relacionada a sua convivência quase diária com Radamés

Gnattali durante os anos em que atuaram juntos na Rádio Nacional, pois, segundo os

depoimentos do maestro, a música de Debussy, assim como a de Maurice Ravel, figurava

dentre as obras que ele mais admirava no que se refere aos domínios da composição e

orquestração (Barbosa & Devos, 1984: 15 e ss.). Existe ainda a possibilidade de que essa

referência esteja relacionada a um provável contato que Garoto obteve com a produção do

guitarrista franco-belga Django Reinhardt (1910-1953). Internacionalmente conhecido no

cenário jazzístico entre os anos 1930 e 1950, inclusive por sua atuação ao lado do violinista

francês Stéphane Grappelli (1908-1997) no Quintette du Hot Club de France (Delaunay,

1982) - cuja sonoridade foi por vezes identificada com a do Trio Surdina (Cazes, 2005: 94) -,

Django Reinhardt emprega em diversas obras a escala de tons inteiros ou acordes formados

com as notas que a estruturam. Outro procedimento recorrente nos fonogramas desse

guitarrista é a execução de escalas cromáticas, ascendentes ou descendentes, por meio de

figuras rítmicas de mínima duração (fusas e semifusas), revelando o virtuosismo do seu estilo

interpretativo.32 Aliás, na partitura anterior, verifica-se que Garoto lança mão do mesmo

31 Para esta análise, consultaram-se as gravações de Silvio Caldas (Odeon, 1935) e Orlando Silva (Copacabana, 1953). Ambas podem ser ouvidas no acervo musical do Instituto Moreira Salles: http://ims.uol.com.br/. 32 Todos esses recursos (as escalas cromática e de tons inteiros) são empregados, por exemplo, na composição “Improvisation nº 1” (Django Reinhardt): http://www.youtube.com/watch?v=abTCjBo8elE.

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procedimento logo após a progressão inicial. Assim como seu contemporâneo, o violonista

brasileiro faz um uso extensivo das escalas cromáticas “virtuosísticas”, enfatizando seu

“apuro técnico”.

Em meio à busca pela inserção e consagração no mercado de música popular,

tanto as obras em seus aspectos intrínsecos como os LPs do Trio Surdina enquanto produtos

demonstram alguns indícios de que havia a um só tempo a intenção de distinguir sua

produção em termos qualitativos via associação com o “apuro técnico” - em níveis musicais e

de qualidade sonora dos discos -, “originalidade” e “modernidade”. Este último sentido pode

ser notado também nas capas dos discos do conjunto:

Fig. 2: Capa do primeiro LP do Trio Surdina (1953). Vale destacar a tentativa de reprodução do ambiente noturno, ao fundo.

Fig. 3: Capa do disco Ouvindo Trio Surdina Vol. 2 (1956), um dos lançamentos posteriores à formação inicial.33

33 O repertório deste LP é composto pelas seguintes composições: “Jealousie” (Jacob Gade), “Comigo É Assim” (Luiz Bittencourt e José Menezes), “Charmaine” (E. Rapee, L. Pollack), “Linda Flor” (Henrique Vogeler), “Maria-lá-ô” (Ernesto Lecuona), “Iracema na Escócia” (Pernambuco), “Moonlight Serenade” (M. Parish, G. Miller) e “Você Não Gosta” (Al Quincas).

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É significativo constatar que, recentemente, a primeira imagem (Fig. 2) foi reproduzida na

coletânea Bossa Nova e Outras Bossas, a arte e o design das capas dos LPs (Gavin &

Rodrigues, 2005), como um dos exemplos da “modernização” do design gráfico supostamente

iniciada nos anos 1950, e que se cristalizaria de forma mais clara na produção do

selo/gravadora Elenco na década seguinte.

Mas é no LP Dançando Suavemente, Nilo Sérgio e sua Orquestra (1959) que o

proprietário da Musidisc melhor evidencia sua afinidade pelo o que se entendia por arte

“moderna” naquele contexto:

Fig. 4: Capa do disco instrumental Dançando Suavemente, Nilo Sérgio e sua Orquestra. Os arranjos e a condução da orquestra ficaram a cargo do Maestro Carioca (Ivan Paulo da Silva).

O desenho em questão é da autoria de Aldemir Martins (1922 - 2006), um dos artistas

plásticos brasileiros mais premiados no Brasil e no exterior na segunda metade do século XX.

Na década de 1950, compôs uma série de obras retratando a figura do cangaceiro e de animais

como galos, gatos, pássaros e peixes - o desenho acima é uma amostra dessa fase.34 A

contracapa deste LP traz uma breve resenha sobre a atuação de Aldemir Martins:

(...) cearense de Ingazeiras, nascido em 1922, é um pintor que não precisa de cores.

Sabe usá-las, naturalmente, e com mão de mestre, mas o campo ideal que escolheu para a manifestação de seu vigoroso talento criador foi o preto-e-branco, foi a difícil simplicidade da linha. Cada um de seus desenhos, se comparado a um outro anterior, representa um avanço, um passo à frente, um novo degrau na subida para a perfeição. Artista moderno, sem dúvida, mas sem as extravagâncias charadísticas com que o soi disant [suposto] modernismo vai criando escolas e semeando interrogações nos olhos de quem lhe vê os trabalhos. A escola a que pertence, criou-a ele mesmo, realizando-se cada vez mais a cada novo desenho, tirando do casulo da linha os fios de seda com que vai tecendo verdadeiras maravilhas, tanto pelo lado técnico como pelo sentido estético. (Grifos meus).

34 Essas informações foram obtidas no site do artista: http://www.estudioaldemirmartins.com/home/aldemir-martins.html.

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A articulação entre a técnica e a estética compunha o “moderno” e ao mesmo tempo o

“simples”, segundo o autor. É impossível não lembrar, a partir desses exemplos, das inúmeras

associações que estudiosos e críticos fizeram e ainda fazem entre a estética musical da Bossa

Nova e as linhas “modernas” e “simples” da arquitetura de Brasília (Campos, 2008). De fato,

parece haver uma “sintonia” entre as expectativas e preferências de uma parcela da classe

média inserida no contexto de transformações dos anos 1950, seja em níveis estruturais -

modernização da indústria, comércio, urbanização, etc. - ou simbólicos - superação do

“atraso” brasileiro e conseqüente alinhamento com os estilos de vida das nações civilizadas.

A despeito dos discursos e das representações de “simplicidade” que a parte

textual e gráfica desses LPs evidenciam, o conteúdo musical propriamente dito parece às

vezes atuar no sentido oposto. O disco de Nilo Sérgio, comentado anteriormente, afasta-se

consideravelmente da idéia de “simplicidade”, ao menos em termos de instrumentação: 4

trompetes, 4 trombones, 4 saxofones, clarinete, flauta, guitarra elétrica, contrabaixo, bateria,

bongô, piano, cravo e órgão elétrico. O contraste se torna ainda mais nítido confrontando-se a

música com o texto de contracapa do referido disco:

A idéia de lançar um disco como este deve ter vivido anos no espírito e no coração

de Nilo Sergio (...), quando ele, muito jovem ainda, cantava, com a orquestra do Maestro Carioca, aquelas músicas suaves e românticas que lhe deram imensa popularidade. (...) Mas uma idéia assim, por tanto tempo acalentada, não poderia ser posta em prática sem mais nem menos. (...) Era preciso que a orquestra que interpretasse as músicas selecionadas tivesse uma sonoridade diferente, capaz de empolgar o ouvido do mais apurado bom-gosto. (Grifos meus).

Quanto ao aspecto “moderno”, a associação talvez se justifique em virtude do repertório

formado predominantemente por composições norte-americanas, ou ainda, devido à presença

de instrumentos como a guitarra elétrica e o órgão elétrico, ambos recém-chegados ao Brasil.

4. Considerações finais

Essa amostra da produção fonográfica do Trio Surdina e da Musidisc durante a

década de 1950 apenas reforça a necessidade de se investigar, na mesma proporção, os

supostos “projetos” estéticos ao lado das estratégias de promoção inscritos nos LPs, visto que

ambos os níveis se inter-relacionam permanentemente nas composições textual, gráfica e

musical. Num contexto de segmentação crescente do mercado de música popular; da

internacionalização da economia e da cultura; e da modernização dos processos de produção

de bens materiais e simbólicos, verifica-se ao mesmo tempo práticas e representações sociais

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de uma classe média específica que evidenciam a configuração de estratégias de distinção

social, haja vista a busca pela legitimação e a auto-identificação com o “apuro técnico”, o

“moderno”, o “diferente” e o “bom gosto”. Parafraseando Bourdieu (1996: 353), pode-se

dizer que o “olho e o ouvido social” dos anos 1950 encerram “o sistema dos esquemas de

percepção e de apreciação, de julgamento e de fruição” de um estrato social, de uma época e

de um contexto sociocultural específicos. Constituídos, interiorizados e manifestos na

“experiência social”, nas “práticas da vida cotidiana”, esses “esquemas” acabam por orientar

“toda a existência ordinária”, assim como a produção e percepção das obras de arte. Em

última análise, esse processo não deixa de revelar que “a arte e o consumo artísticos estão

predispostos a desempenhar, independentemente de nossa vontade e de nosso saber, uma

função social de legitimação das diferenças sociais” (Bourdieu, 2008: 14).

Referências bibliográficas ANTONIO, Irati. & PEREIRA, Regina. Garoto, sinal dos tempos. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982. BARBOSA, Valdinha & DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali: o eterno experimentador. Rio de Janeiro, Funarte, 1984. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento de gosto. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008. ________________. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BELLINATI, Paulo. The Guitar Works of Garoto, vols. 1 and 2. San Francisco-CA: GSP, 1991. CABRAL, Sérgio. No Tempo de Ari Barroso. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1993. CAMPOS, Augusto de (org.). Balanço da bossa e outras bossas. In: Debates, nº 3, 4ª edição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2008. CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 3ª Edição, 2005. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, janeiro/abril 1991.

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Coleção Revista da Música Popular. Rio de Janeiro: FUNARTE: Bem-Te-Vi Produções Literárias, 2006. DELAUNAY, Charles. Django Reinhardt. New York, N.Y.: Da Capo, 1982. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1998. GAVIN, Charles & RODRIGUES, Caetano (Org.). Bossa Nova e Outras Bossas: a arte e o design das capas dos LPs. Rio de Janeiro: Ed. Viva Rio/Petrobrás, 2005. GOLDFEDER, Miriam. Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. MELLO, Jorge. Trio Surdina: desvendando o mistério. In: http://jorgecarvalhodemello.blogspot.com/2009/04/desvendando-o-misterio-trio-surdina.html. Consultado em 6 de julho de 2010. MELLO, João Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio e Sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.) História da vida privada do Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Editora Brasiliense, 5ª edição, 1994. SARAIVA, Joana Martins. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, PUC-RIO, 2007. SAROLDI, Luiz Carlos & MOREIRA, Sônia Virginia. Rádio Nacional, O Brasil em Sintonia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1984. SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. A Canção no Tempo vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 5ª edição, 2002. TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.

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- III - VENDE-SE UM SAMBISTA “AUTÊNTICO” EM 16 CANAIS:35

os primeiros LPs de Martinho da Vila e a construção de sua imagem no mercado da música popular.

Adelcio Camilo Machado36 Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP Resumo: Esse trabalho pretende discutir as relações entre os cinco primeiros LPs de Martinho da Vila, lançados entre 1969 e 1973, e a construção de sua imagem de sambista. A partir das escolhas de repertório, dos instrumentos, dos arranjos e de textos contidos nesses próprios discos, verifica-se uma busca por associar Martinho da Vila a um samba “tradicional”, “autêntico”, ligado à espontaneidade de espaços como as rodas de samba e de partido-alto. Contudo, a produção de Martinho acontece em uma época na qual a indústria brasileira do disco passava por um salto qualitativo através da incorporação do sistema de gravação em 16 canais, fato também destacado na contracapa de seu LP de 1973. Assim, essa comunicação tem o intuito de explorar, nessa produção de Martinho, a contradição entre a busca pela “autenticidade” do samba e o crescente perfeccionismo técnico da indústria fonográfica.

Palavras-chave: Samba, anos 1970, indústria fonográfica.

Fidelidade e manipulação na gravação sonora

Ao contrário do ator de teatro, o intérprete de um filme não representa diante de um público qualquer a cena a ser reproduzida, e sim diante de um grêmio de especialistas – produtor, diretor, operador, engenheiro de som ou da iluminação etc. – que a todo momento tem o direito de intervir. (BENJAMIN, 1994, p.178)

Como se sabe, a adoção do sistema de gravação através das fitas magnéticas

trouxe significativas modificações no modo de produção da indústria fonográfica. Durante a

vigência dos sistemas mecânico e elétrico, que precederam o magnético, a gravação consistia

basicamente no registro, mais ou menos fiel, de uma performance. Os músicos eram

colocados em torno de uma única fonte de captação sonora, variando sua distância de acordo

com a intensidade de sua voz ou de seu instrumento, e executavam a música diversas vezes,

até que fosse realizada uma versão considerada ideal. Tal procedimento, por sua vez, não

35 Trabalho apresentado como parte da Mesa Coordenada Nº 5: Os LPs como meios de comunicação de projetos estético-ideológicos: os casos do Trio Surdina, Jacob do Bandolim e Martinho da Vila, do IV Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2012, na Escola de Comunicação e Artes da USP, São Paulo/SP. 36 Doutorando em Música pela Universidade Estadual de Campinas, com financiamento da FAPESP, e membro do Grupo de Pesquisa Música popular: história, produção e linguagem. Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/4163948825825308. E-mail: [email protected]

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possibilitava nem a correção de eventuais erros e tampouco a manipulação posterior do

material gravado (VICENTE, 1996, p.18-9).

Já o emprego dos gravadores magnéticos possibilitou um cuidado mais

individualizado com cada voz ou cada instrumento. Inicialmente isso se deu através de

gravadores de dois canais, tecnologia que foi empregada, dentre outros, no célebre disco

Chega de saudade, de João Gilberto. Sobre essa gravação, Castro (1990, p.181) conta que

João Gilberto pediu para que os técnicos montassem dois microfones, um para sua voz e outro

para seu violão, objetivando um tratamento mais cuidadoso com ambos. Por certo, seria um

exagero afirmar que a gravação em dois canais determinou o estilo bossanovista; porém, é

válido perceber que essa tecnologia ajudou a compor a base técnica que possibilitou a

realização em disco do projeto entoativo de João Gilberto e sua geração. De qualquer modo,

esse método de gravação já expressa uma diferença qualitativa importante em relação ao

procedimento anterior, onde todos os sinais sonoros convergiam para um único mecanismo de

registro.

Através de desenvolvimentos posteriores desse sistema, notam-se consideráveis

transformações na maneira de gravar um fonograma. Através de cortes e emendas das fitas,

por exemplo, era possível selecionar os melhores momentos de uma performance e montá-los

para a versão final. Além disso, outros instrumentos poderiam ser gravados e acrescentados

ao fonograma através da sobreposição de duas ou mais fitas (VICENTE, 1996, p.21-2). Com

isso, alterava-se toda a dinâmica do processo de gravação. Sempre que fosse possível, cada

um dos músicos recebia um microfone para que a captação de seu som fosse a mais

individualizada. Assim, os participantes da gravação passaram a ficar isolados uns dos outros,

a fim de que o som de cada instrumento não fosse captado por microfones destinados aos

demais.

Nesse contexto, os técnicos do estúdio se tornavam ainda mais responsável pelo

resultado final da gravação, seja durante a sessão de gravação, seja depois dela. Se

anteriormente tais profissionais deveriam, basicamente, posicionar os músicos, conectar os

equipamentos e disparar o mecanismo de gravação, com o advento dos gravadores, eles

tiveram que administrar uma maior diversidade de sinais de áudio provenientes dos diversos

microfones de uma sessão de gravação – Vicente (1996, p.23) afirma que, mesmo em estúdios

que contavam com gravadores de 2 ou 4 canais, os consoles de mixagem permitiam que

fossem colocados até 24 microfones. Sobre esse material gravado, os técnicos ainda procedem

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com a seleção e montagem das melhores partes, além de ter a possibilidade de, por exemplo,

alterar seu volume, sua equalização e adicionar efeitos.

Por certo, essas técnicas de gravação tinham por objetivo que o fonograma

conseguisse reproduzir os objetos sonoros com a maior fidelidade possível. Contudo, vê-se

que, justamente para realizar essa empreitada, a música gravada foi se afastando da

performance “real” e foi se tornando cada vez mais o fruto de um aparato técnico bastante

sofisticado, mediado por uma série de profissionais e por diversos equipamentos.

Martinho da Vila e a montagem de um “autêntico” sambista

Em outras palavras, no estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que o que aparece como realidade “pura”, sem o corpo estranho da máquina, é de fato o resultado de um procedimento puramente técnico por uma câmara disposta num ângulo especial e montada com outras da mesma espécie. (BENJAMIN, 1994, p.186)

No ano de 1972, foi inaugurado em São Paulo o primeiro estúdio com gravação

em dezesseis canais da América Latina, o Estúdio Eldorado. Tal tecnologia se converteu em

um signo de “boa qualidade” no plano da gravação sonora, pois ela superou “a defasagem

tecnológica existente até então entre a indústria fonográfica brasileira e a dos países

desenvolvidos” (ZAN, 2010, p.170). Com isso, após a iniciativa desse estúdio pioneiro, outras

gravadoras trataram de adquirir os equipamentos necessários para realizar gravações em

dezesseis canais.

Esse foi o caso, dentre outros, da RCA Victor. Em 1973, essa gravadora lançava o

LP Origens (Pelo telefone), o quinto álbum do sambista Martinho da Vila (1973, LP), que

trazia, em sua contracapa, a informação de que o mesmo havia sido gravado e mixado em

dezesseis canais no Estúdio da RCA em São Paulo e que sua última faixa, a canção “Fim de

reinado”, havia inaugurado o estúdio da RCA no Rio de Janeiro, também de dezesseis canais

(Ex.1). Até então, os discos do sambista não traziam informações sobre o local das gravações

e tampouco sobre a técnica empregada; já a partir do disco Origens, as contracapas dos LPs

de Martinho passaram a trazer esses dados ao final da ficha técnica (Exs.2 e 3). Vê-se, com

isso, que o disco apresentava a si próprio como um produto “de ponta”, que empregava o que

havia de melhor em termos de recursos de gravação no período.

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Ex.1: informação na contracapa do disco Origens (Pelo telefone) (VILA, 1973, LP)

Ex.2: informação na contracapa do disco Canta canta, minha gente (VILA, 1974, LP)

Ex.3: informação na contracapa do disco Maravilha de cenário (VILA, 1975, LP)

O interessante no caso de Martinho é perceber que esse destaque ao aspecto

tecnológico de seus discos acontecia ao mesmo tempo em que ele buscava se firmar no polo

da “autenticidade” do samba. Isso se percebe, por exemplo, em seu primeiro disco, Martinho

da Vila (VILA, 1969, LP), cuja contracapa traz um texto escrito por Romeo Nunes, seu então

produtor:

Martinho diz que não é cantor. Mas sua força de comunicação, sua divisão originalíssima, sua simpatia, seu ritmo, sua voz selvagem e de timbre personalíssimo, o que são senão atributos de um cantor atual? [...] Na face “A” deste LP procuramos estabelecer uma espécie de ordem cronológica na carreira de Martinho, com as suas primeiras composições (sambas-enredo), seu primeiro sucesso e sua mais recente composição, feita no último dia da gravação deste disco. (NUNES, Romeu in VILA, 1969, contracapa do LP).

Através dessa figura da “voz selvagem” e da menção a uma canção que foi

composta durante a gravação, esse texto envolve a produção do primeiro LP de Martinho em

uma aura de espontaneidade. Recentemente, esse aspecto foi reforçado pelo próprio sambista

no DVD que lançou em 2008. Nele, Martinho faz um breve relato de como se deu a produção

desse seu disco de estreia:

Aí fui para o estúdio, levei um cara do cavaquinho, outro com pandeiro, eu mesmo toquei o tantã e fui gravando. Eu e o técnico só lá, nunca tinha entrado em um estúdio. Aí, logo depois me chamaram lá. Quando eu cheguei, estava todo mundo numa euforia danada [...]. “Olha, nós já temos o disco!” [...] Eu falei: “Mas vocês já escolheram as músicas?” “Já escolhemos! Olha, aquele monte de música que tem lá dá pra fazer dois discos! Já vamos fazer um disco com aquelas tuas músicas lá. Aquele é o disco, já temos, vamos só melhorar um pouquinho umas coisas, fazer uma mixagem, botar mais um trombonezinho, botar um coro, um vocal...” (VILA, 2008, DVD, 16min49s a 17min57s).

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37

De acordo com a narrativa do sambista, a sessão de gravação do LP Martinho da

Vila estava muito próxima de ser o registro da performance de seu grupo, sem grandes

interferências técnicas, indo na contramão dos procedimentos que, como exposto

anteriormente, estavam se tornando usuais na indústria fonográfica. Sem menosprezar o lado

anedótico desse relato37, uma audição desse LP reforça essa busca pela espontaneidade. De

modo geral, os seus arranjos são bastante simples. Nas canções “Quem é do mar não enjoa” e

“Pra que dinhheiro”, não há sequer introdução instrumental: o próprio Martinho inicia

cantando a anacruze da primeira frase sem acompanhamento, para só depois ser seguido pelos

instrumentos da base. Já nas faixas “Quatro séculos de modas e costumes”, “Casa de bamba”,

“Brasil mulato” e “Parei na sua / Nhêm, nhêm, nhêm”, a base apenas “dá o tom”, com os

instrumentos harmônicos tocando o acorde de tônica, informando também o andamento. Por

sua vez, as faixas “O pequeno burguês”, “Tom maior” e “Grande amor” apresentam

introduções um pouco mais elaboradas, com o trombone tocando um trecho da melodia

principal, que é acompanhada pela seção rítmica38.

Esse caráter do disco contrasta bastante com o de seu LP seguinte, Meu laiáraiá

(VILA, 1970, LP). Nele, há um investimento mais incisivo na questão dos arranjos, assinados

por Severino Filho e Ivan Paulo (no primeiro disco, não há menção a nenhum arranjador). Sua

instrumentação também é mais diversificada, pois, além dos instrumentos presentes no LP de

1969, o álbum conta com bateria, contrabaixo acústico, piano, viola caipira, flautas, clarinetes,

trompetes, gaita e um naipe de cordas. Com isso, surgiram introduções mais extensas e

elaboradas, com destaque para a de “Carnaval, madrugada e cinzas”. Sua introdução é

executada por flautas, trompetes (com surdina), violão, violinos, violoncelos e contrabaixo,

apresenta diferentes andamentos e se utiliza de um material temático diverso da melodia

composta por Martinho (Ex.4).

37 Diante da crescente expansão da racionalidade instrumental nos campos da produção e circulação de “bens culturais”, claramente perceptível no caso da indústria fonográfica, parece pouco provável que a gravação desse disco seja algo de fato espontâneo, não planejado. Ao contrário, essa própria aparência de espontaneidade deve ter sido buscada como um recurso necessário para a produção desse disco. 38 A presença do trombone na introdução desses fonogramas já contradiz um pouco a versão contada por Martinho. Se esse instrumento aparecesse somente no decorrer das canções, poderia ser argumentado que ele havia sido incluído somente ao final da gravação. Contudo, o fato de executar as melodias na introdução dessas três faixas indica que, no mínimo, a inserção desse instrumento já estava previamente planejada.

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Ex.4: introdução de “Madrugada, carnaval e chuva” (VILA, 1970, lado A, faixa 5)

Ao contrário do tratamento mais “simples” conferido ao início dos fonogramas no

disco anterior, essa introdução expressa um grau maior de “elaboração”. Contudo, vale

perceber o caráter fragmentado e eclético dessa seção que inicia o fonograma. Nos primeiros

oito compassos, por exemplo, são apresentados três pequenos fragmentos melódicos

utilizando a escala pentatônica de ré maior, num andamento um pouco mais acelerado. Dois

deles são executados em quartas ou quintas paralelas, em staccato, primeiramente pelas

flautas (compassos 1 a 5, sustentando o intervalo de 5J que aparece nesse quinto compasso até

o oitavo) e depois pelos trompetes (compassos 7 e 8). O outro fragmento é executado pelos

violinos em uníssono (compassos 5 e 6), também em staccato, sendo iniciado por um

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glissando. Tais materiais e procedimentos remetem a uma sonoridade um tanto “oriental” e

não-tonal.

Por outro lado, no nono compasso, já se inicia algo diferente, em um andamento

bem mais lento. Nesse trecho, aparece o violão executando arpejos de acordes – os quais, até

o momento, não haviam aparecido – que compõem uma progressão harmônica bastante tonal.

Concebida em ré maior, a sequência harmônica se inicia com o acorde de tônica que caminha

para a subdominante, passando antes por sua dominante individual, apresentando ainda um

movimento cromático descendente nos baixos (D | D7/C | G/B); segue-se um novo

procedimento de dominante individual, dessa vez conduzindo à dominante (E7 | A); e, por

fim, ouve-se no baixo a nota fá sustenido, que será a dominante da tonalidade da canção (si

menor), que se iniciará em seguida. O violoncelo reforça os baixos dessa progressão

harmônica, fato que só não acontece no acorde de G/B quando esse instrumento, ao invés de

executar a terça do acorde, toca sua fundamental. Enquanto isso, ouve-se a flauta tocando uma

melodia numa região mais grave do que a explorada anteriormente, em legato.

Finalmente, no décimo sexto compasso, acontece outra transformação. O

andamento volta a acelerar – sem, contudo, atingir a pulsação inicial – e se ouve, no

contrabaixo, a nota fá sustenido tocando a figuração de colcheia pontuada e semicolcheia,

característica do samba. Ao mesmo tempo, os trompetes e flautas executam um fragmento

melódico com notas do acorde de F#7, que vai conduzir, como já exposto, à tonalidade de si

menor39. Esse novo andamento e essa nova tonalidade dão um caráter mais próximo do que

vai ser o restante do fonograma. Com isso, conclui-se que as duas outras partes dessa

introdução (compassos 1 a 8 e compassos 9 a 15) não se relacionam nem entre si e tampouco

com a canção originalmente concebida por Martinho. Portanto, por mais que essa introdução

seja, de fato, uma “elaboração” em relação ao tipo de arranjo do primeiro disco do sambista,

deve-se entendê-la no contexto de uma produção musical mais massiva, onde a preocupação

com coerência e coesão não aparece como determinante ou primordial.

De qualquer modo, se no primeiro disco existia uma ênfase no Martinho

“simples”, “autêntico”, “espontâneo”, no LP Meu Laiáraiá parece haver uma preocupação em

39 Sinalizo aqui a dificuldade em transcrever a rítmica dessa frase executada por trompetes e flautas. Ouvindo, tem se a sensação de que esses instrumentos estão em uma pulsação ligeiramente diferente daquela do contrabaixo. Contudo, pela clareza da divisão deste último, tomei-o como referência e me esforcei em encontrar uma rítmica para o trompete e a flauta que se encaixasse nesse pulso. Não descarto, contudo, a possibilidade de que a partitura lida por esses instrumentistas seja diferente e que tenha ocorrido algum erro de execução na gravação.

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mostrar um outro lado do sambista, supostamente mais “elaborado”. É o que se percebe

também pelo texto da contracapa, novamente escrito pelo produtor Romeo Nunes:

E aqui está de volta MARTINHO. O MARTINHO humilde e tímido, que só os seus íntimos conhecem; o MARTINHO filósofo que afirma que “ninguém conhece ninguém, porque dentro de alguém ninguém mora”; o MARTINHO poeta de “Meu Laiáraiá” (você é meu samba, minha estrela, minha fé, meu cigarro, meu café) e o MARTINHO puro de “Melancolia” (NUNES, Romeo in VILA, 1970, contracapa do LP).

Nunes destacava, assim, algo como as “duas facetas” da produção de Martinho, as

quais eram, de certo modo, ilustradas pelas imagens colocadas na parte da frente e no verso

do LP. A capa do disco apresenta uma série de sobreposições da mesma foto de Martinho, que

se encontra sentado, com as pernas cruzadas, pulseiras nos braços, pés com sandálias,

vestindo shorts e uma camisa aberta, que revela um cordão pendurado no pescoço: essa seria a

figura do Martinho “humilde” e “puro”, que aparece ainda como uma espécie de “eu”

coletivo, uma vez que essa imagem está multiplicada. Já na contracapa, Martinho aparece

numa foto única (portanto, individualizada), em pé, com uma perna dobrada, deixando

aparecer a calça social azul; veste ainda um casaco verde, em cuja parte superior se vê

também uma camisa vermelho-alaranjada; completam a figura do sambista uma pulseira no

braço direito, um relógio no esquerdo e um cigarro na mão esquerda. Essa seria a

representação pictórica do Martinho “filósofo” e “poeta” de que fala Nunes (Ex.5). Cabe

ressaltar a presença do cigarro nessa ilustração, uma vez que tal objeto também era frequente

nas representações de Noel Rosa, o “filósofo do samba” e “poeta da Vila”.

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Ex.5: capa e contracapa do LP Meu laiáraiá.

Mesmo com a apresentação desse Martinho mais “elaborado”, Nunes não deixa de

ressaltar o lado “autêntico” do sambista, que se encontraria, em suas palavras, plenamente

preservado no disco. Completando a descrição do LP, Nunes comenta:

Tem ainda – em estilo do mais puro samba de terreiro – “Samba da Cabrocha Bamba” gravado com coristas da sua querida escola Unidos de Vila Isabel, em que o “centro” de Darcy e Manoel completam o ambiente completamente “escola” da gravação, embora feita em estúdio. [...] Tivemos o cuidado de cercar a voz selvagem de MARTINHO de arranjos leves, simples e funcionais (de Severino Filho e Ivan Paulo), mantendo intacta a base de autenticidade das suas composições. (NUNES, Romeo in VILA, 1970, contracapa do LP)

Vê-se que, no enunciado do produtor, o estúdio e os arranjos aparecem como

ferramentas “neutras”, que em nada afetariam a “autenticidade” de Martinho em sua “voz

selvagem”. Segundo o produtor, “Samba da Cabrocha Bamba” continuaria expressando o

ambiente do terreiro da escola de samba mesmo que seu registro tenha se dado num ambiente

bastante diverso deste, como é o caso do estúdio, cujo funcionamento é totalmente orientado

pela racionalidade da indústria fonográfica.

A partir de seu terceiro disco, Memórias de um sargento de milícias (VILA, 1971,

LP), a produção de Martinho não mais ficou nas mãos de Romeo Nunes, mas na de Rildo

Hora. Conforme entrevista a mim concedida, Hora não gostava dos arranjos do LP de

Martinho de 1970, pois os achava “pesados” (cf. MACHADO, 2011, p.248); com isso, o

produtor voltou a reduzir a instrumentação do disco. Esse tipo de orientação, mais “simples”,

aparece também na capa do disco, que apresenta apenas uma foto do sambista em preto e

branco (Ex.6).

Ex.6: contracapa do LP Memórias de um sargento de milícias

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Além disso, nesse disco, Hora decidiu que Martinho deveria gravar composições

de outros sambistas, já que seus dois primeiros LPs haviam sido exclusivamente autorais.

Desse modo, buscava-se aproximar Martinho da “tradição” do samba. O texto da contracapa,

escrito pelo jornalista e crítico Sérgio Cabral, enfatizava esse aspecto, colocando Martinho

como se fosse um ponto de convergência de toda a “tradição” do samba e das escolas:

Já disse uma vez n’O PASQUIM que ele [Martinho] não é um só, mas todos os sambistas; MARTINHO poderia se chamar PADEIRINHO (Mangueira), ZUZUCA (Salgueiro), MANO DÉCIO (Império Serrano), WALTER ROSA (Portela) ou BAIANINHO (Em Cima da Hora) (CABRAL, Sérgio in VILA, 1971, contracapa de LP)

Sem perder de vista esse vínculo com a “tradição” e a “autenticidade”, no LP

seguinte de Martinho, Batuque na cozinha (VILA, 1972, LP), parece haver um novo

investimento numa espécie de “elaboração” da figura do sambista, mas por outras vias. Em

relação ao disco anterior, aumenta muito a quantidade de músicos envolvidos na gravação. No

LP de 1971, são citados os nomes de dez instrumentistas (três ritmistas, um cavaquinista,

quatro violonistas e dois bateristas). Já em Batuque na cozinha, são mencionados vinte e dois

instrumentistas (desses, dez deles eram ritmistas), sem contar os instrumentistas de cordas

(mencionados como “cordas do Peter”) e os coristas (referidos como “Coral do Joab” e “Coral

do Severino”). Além disso, a partir desse disco, as capas dos discos de Martinho passaram a

ser elaboradas pelo designer gráfico Elifas Andreato, que conferia um trabalho mais artístico à

parte visual; contudo, ele o fazia sem deixar de demonstrar a preocupação com a dimensão

“tradicional” com a qual se buscava recobrir a imagem desse sambista. Foi o que aconteceu

na capa do LP de 1972 apresenta um desenho de Martinho da Vila, nas tonalidades de preto,

branco e vermelho (sugerindo algo mais “moderno”) tocando pandeiro (ligado ao

“tradicional”), que remete à própria ideia do batuque, que aparece no título do disco (Ex.7).

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Ex.7: Capa do disco Batuque na cozinha

Na sequência, era lançado o disco Origens (Pelo telefone) (VILA, 1973, LP), que

foi, como já mencionado, o primeiro gravado em dezesseis canais por Martinho. Em seu título

aparece o nome daquele que foi considerado o primeiro samba gravado. O sambista de Vila

Isabel, logicamente, é ciente desse fato e o explora num breve comentário publicado na

contracapa do disco: “Pelo telefone é o 1º samba gravado no Brasil (1916). A letra aprendi

com o velho Donga. Ouvi o Almirante, também. Tirei as minhas conclusões” (VILA, 1973,

contracapa de LP). Vê-se aqui representada a ideia de Martinho como aquele que está em

contato direto com a “tradição” e que, amparado por ela, faz as suas escolhas individuais.

Curioso perceber que, na capa desse disco, Andreato ressalta aquele lado

“natural” e – para lembrar as palavras já citadas de Romeo Nunes – “selvagem” de Martinho.

Nela, o sambista aparece com o rosto em marrom, vestindo uma camisa florida, tendo como

cenário de fundo uma mata, onde ainda se vê os olhos de um animal parecido com uma coruja

no canto inferior direito e a lua no canto superior direito. Na contracapa do disco, essa mata

volta a aparecer, novamente iluminada pela lua, agora no canto superior esquerdo, e surgem

ainda as mãos de Martinho da Vila segurando o cigarro. Capa e contracapa compõem um todo

único, dando a impressão de que Martinho está conectado com a natureza; mas, por aparecer

num primeiro plano em relação a esta e portando o “filósofo” cigarro, o sambista consegue se

afastar para refletir sobre ela (Ex.8).

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Ex.8: capa e contracapa do LP Origens (Pelo telefone)

Considerações finais

A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos. (BENJAMIN, 1994, p.167)

Em seu ensaio sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”,

Benjamin (1994) sinaliza uma diferença entre, de um lado, o cinema e, de outro, a literatura e

a pintura, expressando-a nos seguintes termos:

Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. (BENJAMIN, 1994, p.172, grifos no original)

Não parece ser diferente o caso da gravação sonora no período aqui abordado.

Especialmente a partir do sistema multicanais, com todas as possibilidades decorrentes (isolar

os músicos e gravá-los separadamente, fazer cortes, edições, mixagens etc.), gravar uma

música estava se tornando algo diferente do que simplesmente registrar uma performance.

Parafraseando o pensador frankfurtiano, parece que as técnicas de gravação estavam se

tornando o próprio fundamento do disco, e não apenas uma condição para sua difusão no

mercado da música.

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Nesse sentido, o caso de Martinho se torna interessante na medida em que se

mobilizam justamente os meios técnicos para recriar uma aura de “autenticidade”,

mascarando, com isso, todo o trabalho realizado na produção do disco e do artista. A limpeza

e a qualidade sonora de seus discos expressam aquele Martinho “simples”, “humilde”,

“autêntico” e de “voz selvagem”; tudo isso aparece como uma espécie de realidade “pura”.

Mas, com Benjamin, somos recordados de que essa aparência de pureza é resultado de um

procedimento puramente técnico (BENJAMIN, 1994, p.186). Martinho e os demais

participantes das gravações de seus discos não só desempenharam seus papeis diante dos

técnicos de estúdio, mas também tiveram suas performances tornadas manipuláveis por um

corpo de especialistas (BENJAMIN, 1994, p.178).

Pode-se pensar ainda que, se não fosse feito todo esse cuidado técnico, aquela

aparência de “pureza” não se sustentaria, pois “a realidade, aparentemente depurada de

qualquer intervenção técnica, acaba se revelando artificial” (BENJAMIN, 1994, p.186).

Portanto, para se ter a aparência de “natural”, era necessário submeter essa “natureza” à

técnica; em contrapartida, para esconder todo esse trabalho, reforçava-se, no caso de

Martinho, sua “espontaneidade” e “autenticidade”.

REFERÊNCIAS

a) Bibliográficas BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.165-96 (Obras escolhidas, v.1). CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MACHADO, Adelcio Camilo. Quem te viu, quem te vê: o samba pede passagem para os anos 1970. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2011. VICENTE, Eduardo. A música popular e as novas tecnologias de produção musical: uma análise do impacto das tecnologias digitais no campo de produção da canção popular de massas. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 1996. ZAN, José Roberto. Jards Macalé: desafinando coros em tempos sombrios. Revista USP, n.87, set/out/nov-2010, p.156-71.

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b) Fonográficas e audiovisuais VILA, Martinho da. Martinho da Vila. RCA Victor, 1969. LP. _______________. Meu laiáraiá. RCA Victor, 1970. LP. _______________. Memórias de um sargento de milícias. RCA Victor, 1971. LP. _______________. Batuque na cozinha. RCA Victor, 1972. LP. _______________. Origens (Pelo telefone). RCA Victor, 1973. LP. _______________. Canta canta minha gente. RCA Victor, 1974. LP. _______________. Maravilha de cenário. RCA Victor, 1975. LP. ______________. O pequeno burguês. MZA Music / Canal Brasil, 2008. DVD.