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III ENCONTRO DE PESQUISADORES EM COMUNICAÇÃO E MÚSICA POPULAR Negócio da música em tempos de interatividade
30 de agosto a 1º de setembro de 2011 – Faculdade Boa Viagem–Recife-PE
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DAS MARGENS À CANÇÃO: O HIP-HOP COMO MÁQUINA DE GUERRA1
ANDRESSA ZOI NATHANAILIDIS2
Universidade Federal do Espírito Santo/ES Resumo: A partir dos conceitos de “máquina de guerra” e “máquina de rostidade, presentes na obra Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, pretende-se organizar um estudo acerca da presença da Hip- Hop- e da canção rap enquanto seu principal veículo difusor-, nos dias atuais. Que manifestação artística é o Hip-Hop? Ele pode ser considerado uma arte nômade na contemporaneidade? Qual é o seu papel na construção (ou regate) identitaria da alteridade negra? Houve apropriações desta arte? Há embates junto ao Estado hegemônico? Essas são algumas das questões às quais pretende-se, se não responder, pelo menos fomentar possíveis respostas. Palavras-chave: Hip-hop, máquina de guerra, máquina de rostidade, canção ideológica rap e nomadismo.
1- Para compreender as máquinas:
Impossível compreender as manifestações do mundo contemporâneo, sem
promover uma busca por conceitos que auxiliem na identificação dos princípios norteadores
da estrutura sócio-mundial, baseada no capitalismo. Portanto, a fim de tecer breves
apontamentos acerca do papel político-social da canção rap, em sua vertente ideológica, este
trabalho terá início a partir de dois conceitos fundamentais dispostos na obra Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Felix Guattari. São eles: a máquina abstrata
de rostidade e a máquina de guerra.
No platô Ano Zero- Rostidade (vol.3), os autores descrevem a sociedade moderna
como algo estruturado sobre padrões de produção e controle de subjetividades. Atuantes em
âmbitos corpóreos e incorpóreos, tais padrões fazem prevalecer determinados
posicionamentos sobre outros e atuam na formação da ideologia societária hegemônica.
Deleuze e Guattari chamam atenção para a existência oculta e onipresente de uma
grande “máquina abstrata de rostidade” que estabelece relações com o poder estatal. Capaz de
determinar significantes que integram a tradição societária, a máquina abstrata pode ser
compreendida como o grande sistema de agenciamento concreto de poder, capaz de
homogeneizar identidades. Um sistema complexo, responsável por “apagar” faces individuais 1 Trabalho apresentado ao GT (Nº2): Música e processos identitários, do III Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 30 de agosto a 1º de setembro de 2011, na Faculdade Boa Viagem, em Recife-PE. 2 Doutoranda em Letras, pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Centro Universitário Vila Velha (UVV). Área de atuação: Estudos Culturais. Endereço eletrônico: [email protected] Link para Curriculo Lattes http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4208181U7
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e substituí-las por “rostos concretos” que figuram como “pontos de ressonância”
fundamentais na instituição de um processo dúplice (sistema muro branco-buraco negro) e, ao
mesmo tempo, contínuo. Os rostos inscritos pela máquina abstrata se auto-reproduzem em
ideologias e feições, figurando uma realidade baseada na absorção pacifica de modelos
prontos que irão compor a esfera cultural, conduzindo ao sucesso de conteúdos despóticos.
(...) O rosto não é um invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma do significante na linguagem, suas próprias unidades continuariam indeterminadas se o eventual ouvinte não guiasse suas escolhas pelo rosto daquele que fala ("veja, ele parece irritado...", "ele não poderia ter dito isso...", "você vê meu rosto quando eu converso com você...", "olhe bem para mim..."). Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor primário, um policial, não falam uma língua em geral, mas uma língua cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos. Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, consciência ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme a uma realidade dominante. O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo redundância com as redundâncias de significância ou freqüência, e também com as de ressonância ou de subjetividade. O rosto constrói o muro do qual o significante necessita para ricochetear, constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmera, o terceiro olho. (...) Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.29-30)
A “máquina abstrata de rostidade” surge no ano zero junto ao cristianismo,
“catequizando” povos e criando estruturas sócio-culturais. Por meio do sistema buraco branco
– muro negro as individualidades são anuladas em prol de modelos instituídos, que geram
“rostos” aceitáveis (ou não) em uma sociedade. O buraco negro de subjetivação representa,
pois, a tradição contumaz, geradora de pessoas oclusas e que não se voltam às trocas sociais, à
geração de pensamentos. É essa tradição que irá inscrever “nos muros brancos societários”
normatizações conceituais acerca “daquilo que é” e “daquilo que não é”.
O emparedamento nesses “muros brancos” culmina na necessidade de se ter um
só rosto: o rosto do Cristo, de estereótipo europeizado. Diante de tal imposição, decorrente da
visão centralizadora eurocêntrica, portanto, surgem também os primeiros indícios de
preconceito e segregação sócio-espacial: negros, orientais, indígenas... Os que fogem às
condições pré-estabelecidas arcam com a culpa da diferença, sendo distribuídos e ocultados
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nos grandes “buracos negros” de subjetivação e ocultação da consciência, estigmatizados a
não-aceitação macro-contextual e condenados à sobrevivência em guetos de isolamento.
A máquina abstrata não se parece com os “rostos” que cria e, justamente por isso,
torna-se inviável a pretensão de capturá-la: invisível, ela está em toda a parte, produzindo
códigos e atuando por meio de diferentes formas de segmentaridade como, por exemplo, a
circularidade que divide o espaço social (ruas, bairros, cidades, estados, etc.), a binarização
que delimita os “personagens” que o compõem (homem-mulher, criança-idoso, latino-
europeu, branco-negro, e assim por diante) e, inclusive, a atuação de diversos mecanismos
midiáticos que, sob o controle (ainda que camuflado) estatal, detém caráter “pedagógico-
colonialista”, capaz de influenciar a determinação de identidades.
Mas, ao contrário do que se possa pensar, é possível também atribuir
características positivas a esta máquina. Se, presa aos estratos, a máquina abstrata assegura
desterritorializações negativas, pode também sofrer uma espécie de mutação (ou ruptura) e
propiciar o ambiente adequado para o surgimento de linhas de fuga criativas, que escampam
às significações instituídas.
Ora a máquina abstrata, por ser de rostidade, irá rebater os fluxos sobre significâncias e subjetivações, sobre nós de arborescência e buracos de abolição; ora, ao contrário, por operar uma verdadeira "desrostificação", libera de algum modo cabeças pesquisadoras que desfazem em sua passagem os estratos,que atravessam os muros de significância e iluminam buracos de subjetividade, abatem as árvores em prol de verdadeiros rizomas, e conduzem os fluxos em linhas de desterritorialização positiva ou de fuga criadora. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.56)
É a partir destas linhas de ruptura ou fuga, que irá surgir outra máquina: a
“máquina de guerra”, da qual fazem parte as minorias e cujo conceito tentaremos esclarecer a
partir de agora.
Atribuída aos nômades pecuaristas, a máquina de guerra recebe as características
do estilo de vida daquele povo: itinerante, dedicado à exploração de espaços desconhecidos,
ao livre circular pelos territórios e à agregação de forças a partir da velocidade.
A designação “guerra” nasce, justamente, da forma impetuosa como os nômades
encaravam a própria existência. Como maneira de externar o descontentamento em relação ao
poder central, às atitudes de líderes tribais ou sacerdotes, os nômades assumiam uma espécie
de postura agressiva, exterior às determinações dos grandes impérios e favorável à
multiplicação de ideais.
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Ao pretender ocupar novas terras e seguir fluxos que lhes pareciam vitais como,
por exemplo, o fluxo dos alces ou os rastros de metais na terra, os nômades partiam de
tentativas de arrebatamento, mas não de destruição ou dominação. Uma vez que adentravam
em determinado espaço, jamais destruíam o povoamento local; apenas juntavam-se a ele. Em
relação aos animais, os nômades seguiam em direção a rebanhos, objetivando a agregação dos
mesmos, também a partir da velocidade. Ao contrário da caça, que tinha por objetivo impedir
a movimentação animal, a pecuária nômade baseava-se em um “espírito de guerra” que
buscava não a violência, mas o acompanhamento, a sequência e transformação do movimento
humano nesta própria velocidade animal.
(...) só o nômade tem um movimento absoluto, isto é, uma velocidade; o movimento turbilhonar ou giratório pertence essencialmente à sua máquina de guerra. (...) o nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha. (...) Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.44) (...) a guerra não aparece de modo algum quando o homem aplica ao homem a relação de caçador que tinha com o animal, mas, ao contrário, quando capta a força do animal caçado para entrar com o homem numa relação inteiramente diferente, que é a da guerra (inimigo e não mais presa). Não surpreende, pois, que a máquina de guerra seja a invenção dos nômades pecuaristas: a pecuária e o adestramento não se confundem nem com a caça primitiva, nem com a domesticação sedentária, mas são precisamente a descoberta de um sistema projetor e projétil. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.63-64)
O pesquisador Fernando Hiromi Yonesawa3, no artigo “Algo se move: um elogio
filosófico-ético à prática do combate como arte e educação”, oferece um esclarecimento
acerca da natureza desta “guerra”:
Ela seria um conjunto de ações com o objetivo de expressar o espírito de guerra, sem que este espírito estivesse já relacionado à batalha e à violência, que reconhecemos na vontade de aniquilamento do outro, presente na guerra entre países. As máquinas de guerra eram constituídas, portanto, por tudo o que permitisse aos nômades ocupar, espalhar-se, seguir seus fluxos vitais e expressar seus modos culturais.
Yonesawa relembra que a fundamentação expressiva da máquina de guerra
concentra-se nos afectos, designação que remete à emoção deslocada, móvel e veloz. Uma
emoção oriunda de determinado período histórico e cultural, cuja atuação poderia ser
equiparada às potencialidades bélicas. 3 YONESAWA, Fernando. Algo se move: um elogio filosófico-ético à prática do combate como arte e educação. Disponível em http://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/motriz/article/viewFile/1980-6574.2010v16n2p348/2969. Acesso em 10/02/2011.
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As armas, neste contexto cultural, eram formas de expressão e uso destes afectos, que recolhiam do mundo e utilizavam em prol da conquista de territórios. Modo de vida que, sim, carregava uma violência,característica do espírito de guerra, da vontade de afirmação de uma vida. Uma violência sanguínea, porém, não sanguinária: agressiva, mas não aniquiladora4.
Os nômades registraram os sentimentos integrantes desta “emoção deslocada” (a
intolerância, o descontentamento, a liberdade, a itinerância, etc.) em produções culturais
expressivas: criaram símbolos que não integravam a linguagem formal e, além disso,
dedicaram-se a trabalhos manuais diversos, como a metalurgia, a tapeçaria e a criação de
jóias. Baseada nas hecceidades, “composições intensivas, de afectos, velocidades”, a
dinâmica nômade compunha o que Deleuze e Guattari chamavam de plano de consistência:
um plano de captação do mundo e respeito às singularidades, composto por movimentações
de linhas rizomáticas e transformadoras.
Entretanto, por permanecerem em condição de “devir”, não exercendo domínio
sobre territórios e populações que alcançavam, os nômades, abriram uma possibilidade
última, que seria a da apropriação de suas máquinas de guerra pelos grandes impérios
despóticos. Ao juntarem-se a eles, sem impor novas forças de dominação, recusando-se a
instituir regras, os nômades tornaram-se vulneráveis às sobrecodificações por parte dos
estados imperiais, tendo suas máquinas de guerras transformadas em elementos de outra
natureza, militarizadas e violentas.
Assim, a partir da apropriação da máquina de guerra, a “idéia de guerra nômade”
é convertida, de maneira que ocorre uma apropriação dos próprios nômades, no sentido de
integrá-los às finalidades políticas estatais. A “máquina de guerra nômade” é então
recodificada e volta-se contra os próprios nômades, que passam a utilizar a “violência”
propriamente dita, contra si mesmos.
(...) quando a máquina de guerra é assim apropriada pelo Estado, é que ela tende a tomar a guerra por objeto direto e primeiro, por objeto "analítico" (e que a guerra tende a tomar a batalha por objeto). Em suma, é ao mesmo tempo que o aparelho de Estado se apropria de uma máquina de guerra, que a máquina de guerra toma a guerra por objeto e que a guerra fica subordinada aos fins do Estado. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.89-90)
Levando-se em conta tal risco de “apropriação” por parte do estado e associando
os dois conceitos vistos até aqui às idéias defendidas por Deleuze e Guattari, de que ambas as
4 Idem 1
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máquinas coexistem no ambiente capitalista e de que a máquina de guerra nômade é um
elemento que abarca inúmeras possibilidades, dentre elas o movimento artístico, movimentos
artístico, científico e ideológico (...) (DELEZE & GUATTARI, 1997 a, p. 95), passaremos à
tentativa de promover um debate acerca da canção rap, em sua vertente ideológica.
Espera-se ter sido possível estabelecer a diferenciação entre esses dois “conceitos
de máquina”; tornando viável a compreensão de que são termos distintos, porém de atuação
paralela. Se o primeiro possui um único eixo, a máquina de guerra é rizomática e se reflete na
postura obstinada do povo nômade, que objetivava o agrupamento das forças coletivas,
repugnando, sempre, a prevalência de posturas despóticas e a submissão das massas.
Metamórfica, a máquina de guerra pretende fugir o tempo todo dos fatores ligados à
rostificação, à predeterminação de normas e atitudes centralizadoras. Ela foge às linhas de
subjetividade instituída e a tudo o que é métrico. Não atua de forma disciplinada,
institucionalizada e codificada. A máquina de guerra questiona as disciplinas e
hierarquizações; atua no espaço liso, onde há livre circulação de orientações múltiplas e
intensidades, através de guerreiros que adotam uma postura agressiva de sobrevivência e
renunciam à interiorização de seus próprios territórios, constituindo um tecido imanente,
unívoco, cuja preocupação primeira consta na desterritorialização contínua dos espaços.
Integrar a máquina de guerra é, portanto, viver em condição de velocidade absoluta, no
nomadismo da experimentação, no universo do devir e das possibilidades. É descobrir
singularidades, ocupar vazios e ir de encontro ao espaço gravitacional fixado, que institui e
garante a permanência das formas estatais; permitindo-se à possibilidade de surgir a qualquer
tempo, em qualquer ponto, sem regras ou determinações, mas, correndo, porém, o risco
permanente da recodificação. Visto que tais conceitos são aplicáveis à realidade global
contemporânea, lança-se uma proposta no sentido de avaliar se o movimento Hip-Hop
enquanto possível máquina de guerra, investigar a importância da canção rap dentro desta
máquina e possíveis reapropriações deste movimento por parte do sistema global-capitalista.
1.1- O discurso operante, a máquina de guerra e as apropriações existentes
Por meio aos conceitos apresentados, é possível compreender um pouco da
construção das bases sociais que, historicamente, regem a estrutura mundial, intensificando
sua atuação, ao longo dos anos. Significantes diversos constroem a visão ocidental sob
moldes eurocêntricos, por meio dos quais marginalizam-se as diferenças. Ella Shohat e Robert
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Stam definem, em poucas palavras, como se dá a visão eurocentrista face à existência de
identidades diferenciadas.
O eurocentrismo bifurca o mundo em “Ocidente e o resto” e organiza a linguagem do dia-a-dia em hierarquias binárias que implicitamente favorecem a Europa: nossas nações, as tribos deles; nossas religiões, as superstições deles; nossa cultura, o folclore deles; nossa arte, o artesanato deles; nossas manifestações; os tumultos deles; nossa defesa, o terrorismo deles. (SHOHAT, STAM, 2006,p. 21)
Historicamente colocada às margens de um sistema capitalista, dominante e
global, a “população negra” engloba muitas pessoas que foram socialmente guetizadas,
colocadas em “nichos periféricos,” desprovidos de condições físico-estruturais básicas. Trata-
se de uma população que é constantemente alvejada por atitudes e comentários
preconceituosos, estigmatizada, inclusive, sobre o aspecto moral: ser negro, aos olhos do
sistema, significa “ter o rosto” das “classes perigosas” e “não merecedoras” do livre convívio
e experiência social; significa “não ter o direito” do exercício à cidadania e viver vigiado às
margens de um sistema devorador, na ausência total de meios materiais e morais.
Todas essas características servem, no entanto, de estímulo para a construção de
artes de resistência, que traduzem a evidência de uma vida oprimida sobre diversos aspectos.
Neste artigo, será abordada uma das ramificações relacionadas à arte de resistência: o gênero
ideológico da canção rap que, proveniente das reflexões afro-descendentes, tornou-se uma
manifestação bastante estudada na atualidade.
2- O MOVIMENTO E O DISCURSO: PALAVRAS DE UM BREVE HISTÓRICO
PERMEADO POR AÇÕES DIVERSAS
De origem jamaicana, a canção rap surge em meados dos anos 1970, nos Estados
Unidos, a partir de imigrantes colocados em uma situação de descaso. Ao abandonarem seu
país, em função das sérias crises, os jamaicanos se viram inseridos em uma realidade não
exatamente muito melhor. Instalados nos guetos de metrópoles como Nova York e Los
Angeles, dividindo o espaço com outros jovens (de origem latina, descendentes de escravos e
ex-combatentes do Vietnã), os jamaicanos vivenciavam um país em guerra, portador de
amplas características racistas, reminiscentes de um sistema político semelhante ao apartheid,
que vigorara no local até a década de 60. Inspirados na luta pelos direitos civis e nos discursos
de lideranças afro-americanas, como os Panteras Negras, Louis Farrakhan, Malcolm X e
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Martin Luther King, os jamaicanos adaptaram sua tradição musical às sonoridades locais e
fizeram dela um instrumento de protesto.
[...] a insatisfação dos imigrantes e do povo marginalizado era traduzida em manifestações como a de pegar aparelhos de som e colocá-los em frente de suas casas, nos quais gritavam ao microfone palavras de ordem pautadas principalmente nas idéias de Malcom X, Martin Luther King, Panteras Negras, e ao som de bases contíguas de discos como os de James Brown. Surge o RAP, que significa “batida”, em inglês. RAP é a abreviação de ritmo e poesia. O RAP é responsável por dois elementos do hip - hop: o que pega o microfone para rimar - MC (mestre de cerimônia) - e o que cuida do som para garantir a base contínua - o DJ (disk jockey) (C., 2005, p.70)
A canção rap surge, então, como um discurso de protesto contra a Guerra do
Vietnã e às conseqüências do descaso político-estatal evidente, em relação aos negros e
latinos, em sua maioria habitantes dos guetos das grandes metrópoles americanas. Aos
poucos, agregam-se a ela, a dança e o grafite. Todos juntos dão origem ao movimento Hip-
Hop que, mais do que produções artísticas, pretende suscitar discussões e medidas práticas, a
serem adotadas nas periferias.
Enquanto instrumento proliferador dos ideais do movimento Hip-Hop, o rap
ideológico não se limita a elaboração e apreciação de canções que versam sobre a crítica
social. Ao contrário, figura como voz essencial na produção de estímulos, voltados aos jovens
pobres, geralmente apreciadores do movimento Hip-Hop. Trata-se de um discurso que tem
como objetivo auxiliar na construção de uma sociedade mais justa e que, para tanto, denuncia
a centralização do poder e fomenta a união daqueles que foram estrategicamente colocados à
margem do sistema. Caracterizado pela presença de um discurso relacionado à paz nos guetos
e à luta por dias melhores, tornou-se conhecido no mundo a partir do processo de
globalização. Nos anos 80, chegou ao Brasil, absorvendo propostas locais.
No Brasil o breack ganhou a ginga da capoeira; o rap se fundiu com o repente, a embolada e o swuing do samba; o graffit ganhou a experiência das pichações políticas da época da ditadura; o DJ sampleou a MPB, a bossa nova; o MC lançou mão da sarcasticidade, como nas crônicas em primeira pessoa de Machado de Assis. E a poesia, a exemplo de Castro Alves, passou a ser utilizada como instrumento de libertação. O hip-hop, portanto, apropriou-se da herança revolucionária do povo brasileiro [...] (C., 2006, p.70-71)
Apesar da hibridização, as características discursivas relacionadas ao teor de
orientação e denúncia do rap ideológico mantiveram-se. A partir da influência do gênero,
nasceram grupos nacionais, que além de difundir a canção, também permanecem envolvidos
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com atividades sociais, geradoras de renda e instrução àqueles que habitam nas periferias
brasileiras. Existem várias ações sociais, lideradas e inspiradas por rappers, como, por
exemplo, o movimento 1 DA SUL ( criado pelos rappers Mano Brown e Ferréz), a Cooperifa
(Cooperativa Cultural da Periferia, idealizada por Sérgio Vaz) e Favela Toma Conta (cuja
fundação deu-se graças a Alessandro Buzo). Além delas, despertam atenção outras práticas do
movimento Hip-Hop, que assumem como “ponto de partida” todo o discurso proferido pelas
letras de rap: são exemplos disso, a existência das “posses” (centros de discussão e difusão da
cultura negra no país) e dos escritórios do Movimento Hip-Hop Organizado (MH2O),
associação pioneira do Movimento Hip-Hop, com filiais em 21 estados brasileiros.
Há que se lembrar, também, da fundação de um partido político, em 2000, por
integrantes do Movimento Hip-Hop: trata-se do Partido Popular Para a Maioria (PPOMAR),
que teve entre os fundadores, o rapper MVBILL. Segundo o pesquisador Célio Roberto
Pereira de Oliveira, embora ainda não tenha concorrido a nenhum cargo político, o partido
representa um grande passo da cultura Hip-Hop, pois acredita que “através da organização da
sociedade civil, das associações de moradores, das posses, o Hip-Hop possa colocar em
prática todo o discurso que faz parte das letras”5.
Em paralelo às ações relativas ao partido, contudo, as intervenções decorrentes
dos ideais rappers já são notadas em algumas cidades. Um exemplo é Campinas onde,
conforme informa o pesquisador Christian Carlos Rodrigues Ribeiro, ativistas do movimento
Hip-Hop, interferem nos processos de atendimento às demandas da população pobre,
atuando, por exemplo, no Orçamento Participativo e no Congresso da Cidade6 :
[...] O discurso e a prática do movimento é desenvolvido de forma que acaba por evidenciar a sua busca em inserir nos processos políticos locais, a discussão de temáticas que sejam de seus interesses, e que incorpore às políticas publicas, desenvolvidas a partir destas, as suas especificidades (étnicas/raciais e juvenis) como elemento constituinte da cidade em que se encontram inseridos. [...] o hip-hop passa a cobrar dos municípios melhorias concretas para as suas comunidades, passa a fazer parte dos processos de discussão de gestão urbana das cidades [...] agindo como parceiro dos municípios em processo de requalificação urbana, de atividades culturais através das Casas de Hip-Hop, além de passarem a apoiar candidatos em eleições para cargos no legislativo e executivo, comprometidos com os ideais do movimento (RIBEIRO apud APÓSTOLO NETTO, 2003)
5 Citação retirada do artigo A presença do discurso socialista na poesia rap. Disponível em http://apps.unibrasil.com.br/revista/index.php/educacaoehumanidades/article/view/55/48. Acesso em 01/02/2010. 6 Citação retirada do artigo A cidade para o movimento hip-hop: jovens afro-descendentes como sujeitos políticos. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/2/download/leitor/hiphop.pdf. Acesso em 10 Nov. 2008.
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Estudiosos como Richard Schustermann, autor da obra “Vivendo a arte: o
pensamento pragmatista e a estética popular”,aproximam o rap ideológico à filosofia
pragmatista, considerando que este (rap) emerge de uma necessidade humana em
correlacionar a linguagem artística às urgências da vida real. Para Schustermann, o rap
representa um desafio às consequências do projeto de racionalização implantado à época do
modernismo, por meio do qual segmenta-se a visão universal em três esferas: ciência, arte e
moral. Assim, a arte, que antes era mantida em certo isolamento, passa agora a assumir um
caráter de participação social. Sobre o “rap ideológico” Schustermann afirma:
O gênero hip hop do “rap-ideológico”- em inglês knowledge rap- constitui uma violação dessa concepção compartimentada e trivializada da arte e da estética. Esses rappers repetem constantemente que seu papel enquanto artistas e poetas é inseparável de seu papel enquanto investigadores atentos da realidade e professores da verdade, especialmente daqueles aspectos da realidade e da verdade negligenciados ou distorcidos pelos livros de história oficial e pela cobertura contemporânea da mídia (...) Pois o rap ideológico não insiste apenas na união do estético e do cognitivo; ele igualmente salienta o fato de a funcionalidade prática poder fazer parte da significação e do valor artísticos. Muitas canções são explicitamente consagradas a desenvolver a consciência política, a honra e os impulsos revolucionários dos negros; algumas defendem a idéia de que os julgamentos estéticos ( e especialmente a questão de saber o que pode ser definido como arte) envolvem questões políticas de legitimação e luta social. O rap engaja-se nesta luta através da práxis progressista que desenvolve pela afirmação de sua própria dimensão artística. (...) Alguns raps desafiam as afirmações unívocas da história branca e da educação, sugerindo narrações históricas alternativas- desde a história bíblica até a história do próprio Hip-Hop. (...) Por fim, devemos notar que o rap tem servido muitas vezes para ensinar a ler e escrever, ou ainda para ensinar a história negra nas escolas dos guetos (SCHUSTERMANN, 1998, P.160-161)
No Brasil, um dos maiores representantes do gênero rap ideológico é o grupo paulista
Racionais MCS, composto por afrodescendentes, habitantes da periferia de São Paulo.
Conhecido por criar canções contundentes, que retratam o cotidiano das camadas mais pobres
da população, o grupo é polêmico nas denuncias às atitudes arbitrárias acobertadas ou
produzidas por parte do poder estatal e aclamado, sobretudo, pelo público ouvinte, para o
qual representa um agente difusor de orientações e esperanças . A natureza deste discurso é
evidente em canções como Tempos difíceis e Vivão Vivendo, cujos trechos apresentamos aqui.
O domínio está na mão de poderosos mentirosos [...] Extra publicam, publicam extra jornais Corrupção e violência aumentam mais e mais [...] E o futuro eu pergunto, confuso “Como será”? (RACIONAIS MC’S, 1990)
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[...] Tenha fé, porque até no lixão nasce flor; Ore por nós pastor [...] Eu sou guerreiro do RAP E sempre em alta voltagem pro mundo [...] Um por um, Deus por nós, to aqui de passagem, (RACIONAIS MC’S, 2002)
Uma das principais características do grupo são os CDS desprovidos de transcrições
contendo as letras da obra em questão. Tudo é transmitido e apre(e)ndido oralmente, à
semelhança de um livro elaborado pala analfabetos ou pessoas de pouco estudo. Outra
característica do grupo é a postura rígida em relação aos veículos de comunicação.
Dificilmente, os integrantes cedem entrevistas, sobretudo à rede Globo, cuja programação
“faz com que o povo fique cada vez mais burro” (KL Jay em entrevista ao Jornal da Tarde).
No entanto, apesar da postura de resistência e da falta de propaganda nos meios de
comunicação, o grupo é conhecido por ter um número relevante de fãs que, mesmo com quase
ou nenhum estudo, demonstram saber todo discurso das canções, tomando-o como verdade,
capaz de auxiliar na construção de melhores dias. Esta capacidade dos grupos de rap em
agregar adeptos a partir da palavra, vem despertando o interesse entre intelectuais de todas as
ordens. As opiniões são distintas e representadas abaixo por meio das falas de Marcelo
Mirisola e Chico Buarque (o último, inclusive, acredita que o rap é uma manifestação
passível de ser considerada um “fenômeno” da canção no século XXI” .
Se serviu ou serve não é literatura. Pode ser capoeira, rap, ou qualquer meleca do gênero que trate de bumbos, cama elástica, axés e afoxés e, no final das contas sirva como pretexto para distrair o miserável da realidade em que vive. O nome disso pode ser má-fé ou, para os inocentes e voluntários, assistência social, nada a ver com literatura [...] Desde quando - é a pergunta que me faço- a literatura serviu para melhorar a vida e/ ou tirar alguém da marginalidade?(MIRISOLA apud C., 2006, p.160-161) Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. [...] acho esse fenômeno do rap muito interessante. Não só o rap em si, mas o significado da periferia se manifestando [...]. Esse pessoal junta multidão. Tem algo aí. (HOLANDA, 2004)
As opiniões acima são demonstrações do vasto ambiente de debates em torno da
arte- rap, enquanto material sonoramente híbrido (já que mescla colagens de sons, sobre as
quais pairam palavras agressivas que narram a realidade das periferias de grandes metrópoles)
que figura como voz representativa do Movimento Hip-Hop, no qual agregam-se à música,
dança e pintura, numa união de artes que protestam o esquecimento e a não aceitação social.
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Mas, seria o Rap a manifestação discursiva de uma máquina de guerra denominada Hip-Hop?
Estaria o Hip-Hop sujeito à reapropriações por parte da máquina abstrata estatal?
3- Considerações Finais:
Apesar de ter se tornado conhecido por meio de processos globais, conseqüências
evidentes das dinâmicas capitalistas, o Hip-Hop se espalhou pelo mundo, com um propósito
inovador: levar a arte de protesto às pessoas que, como os jamaicanos do Bronx,
encontravam-se estigmatizadas e esquecidas por parte dos regentes do sistema. Escapando aos
agenciamentos de poder estabelecidos, o movimento traz uma finalidade maior que é a de, a
partir da palavra, agregar cada vez mais e mais adeptos, não só passivos ouvintes, mas
também ativos rappers que, figurariam como o que Gramsci denominou de “intelectuais
orgânicos”, esclarecendo suas comunidades, divulgando demandas e articulando uma estética
não mais estagnada junto ao campo de apreciação, como a das artes ditas “maiores”, mas de
movimento e práxis social ativa. Gramsci, que era ex-redator do periódico socialista Ordine
Nuovo, sustentava a existência de uma capacidade intelectual em todo o ser humano, de
maneira que, independente do ofício ou da classe social, deveria haver a valorização do saber
popular e a socialização do conhecimento.
[...] todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar. (GRAMSCI, 1979, p.7-8)
Integrantes de uma sociedade segregada em guetos de exclusão e guetos
voluntários, onde apenas os “iguais abastados” têm acesso (a exemplo de condomínios
fechados, shopping centers, escritórios, centros educativos, etc.) os rappers guardam o
“espírito de guerra” relativo à sobrevivência em ambientes citadinos permeados por mazelas
diversas. Ao mesmo tempo, exigem o espaço que lhes cabe enquanto cidadãos que são, a
partir da utilização de ambientes ainda não totalmente estratificados pela máquina abstrata
estatal, como a internet, e exploram os vazios das cidades contemporânea- locais onde a troca
social entre “individualidades distintas” fora historicamente impedida e substituída pela
ideologia preconceituosa do medo-, espalhando a arte de protesto por todos os cantos, seja por
meio do grafite, da dança ou mesmo de sua arma maior: a palavra.
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Por seus propósitos e atuações práticas, toma-se por viável a afirmação de que o
Hip- Hop figura como uma grande Máquina de Guerra, que pretende o tempo inteiro fugir às
regras estabelecidas e operacionalizadas pelo Estado. Entretanto, há que se considerar,
também, que tal máquina já está sujeita a processos de apropriação por parte do poder
invisível. Se o Hip-Hop surge como uma organização que desafia padrões “rostificantes”
capitalistas, criando novos significantes e estilos de vida que passam a ser seguidos por parte
das camadas pobres do Brasil, ele é também sutilmente devorado, sobrecodificado e vendido
como elemento “novo”, ainda que permaneçam dentro deles, camadas resistentes que
procuram vencer todas as dificuldades, defendendo pela canção, a construção de dias
melhores; não há como não concordar com Jorge Luiz Viesenteiner7, quando nos fala sobre a
“apropriação” da máquina de guerra Hip-Hop:
É como se o capital dissesse: “Isso mesmo! Eu não valho nada! Critiquem-me pois eu sou um monstro” (...) Cria uma grife, um modismo, confisca a linguagem Hip- Hop e vende sob a forma de um novo modo de vida. Cria uma grife, um modismo, recodifica a linguagem alternativa em mais um objeto vendável, mais uma engrenagem da grande máquina. O inconformismo e a indignação desviantes do jovem do gueto, por.ex, são comprados e sobrecodificados na medida em que o capital vende a ele um estilo de vida, ou seja, dá a ele um rosto (...) Em suma: o capital produz capital mesmo daquilo que pretendia inicialmente desruí-lo; ele rostifica novamente o desviado. E o que é pior: por ser uma máquina abstrata, tudo ocorre como se não estivesse acontecendo (...) nunca fomos tão seqüestrados, controlados e rostificados, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, também falamos muito de liberalização
Não se pretende atingir, por meio deste artigo, conclusões precisas sobre o tema.
A partir da pesquisa, tornou-se evidente que o Hip-Hop tem na canção um instrumento
difusor da ideologia resistente e que, por meio de suas artes, alcança (ainda que poucos)
benefícios concretos para as camadas mais pobres da população. Entretanto, impossível não
admitir que, mesmo e talvez sobretudo, contemporaneamente, as resistências que sustentam
máquinas de guerra como esta, ainda permanecem bastante frágeis, face à máquina abstrata,
operada pelo Estado capitalista. Apesar de ser considerado por muitos intelectuais, um
importante movimento da arte resistente, gerador de conjecturas acerca de uma possível
revolução social, acreditamos ser este fato de extrema dificuldade, já que todo o movimento
parte de jovens pobres, sem estudo e com poucas armas para lutar contra um estado imperial
capitalista, ao qual tudo gira em torno do controle da mais valia.
7 Citação retirada do artigo Resistência e Reinvenção: O Estatuto da ética em Deleuze. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/16661632/O-estatuto-da-etica-em-Deleuze. Acesso em 16/01/2011.
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HOLANDA, Francisco Buarque de. Chico Buarque: A canção, o rap, Tom e
Cuba, segundo Chico. [26 Dez. 2004]. Folha de São Paulo.
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YONESAWA, Fernando. Algo se move: um elogio filosófico-ético à prática
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