a provÍncia de goiÁs no contexto da guerra do paraguai ... (133).pdf · resumo: a proposta de ......

16
1 A PROVÍNCIA DE GOIÁS NO CONTEXTO DA GUERRA DO PARAGUAI, 1865-1870: NARRATIVAS CONSTRUÍDAS EM HISTÓRIA E LITERATURA, DESAFIOS À VISTA. José Atanásio de Souza Filho 1 RESUMO: A proposta de investigação em história sobre a participação da Província de Goiás na Guerra do Paraguai, 1865-1870 tem como desafio compreender o cotidiano da sociedade goiana no contexto da preparação e organização de um efetivo militar da província a fim de compor as forças expedicionárias do Império Brasileiro, depois da invasão do exército paraguaio à Província do Mato Grosso. Diante disso, faz-se necessário um olhar perscrutador sobre como melhor interpretar essa história. Nessa perspectiva surge o caminho do diálogo entre história e literatura para fins de melhor interpretação desse passado em Goiás. A possibilidade aqui de interagir com a literatura ficcional ou poética é assaz plausível, justamente, pela possibilidade de ampliar a capacidade interpretativa e analítica em discurso histórico numa interlocução direta com a forma estética e imaginativa de um poema, um romance, conto ou crônica. Conjugando essa proposta entre possíveis convergências e divergências no âmbito do que já se escreveu sobre a história da participação de Goiás na Guerra do Paraguai, pretende-se aqui encontrar formas de melhor interpretar esse passado a partir de um diálogo direto entre investigação histórica de Goiás com a produção literária regional goiana, ou que trate de aspecto da memória da participação de Goiás no conflito, por exemplo, a contribuição de Rosarita Fleury, com o romance “Sombras e Marcha: na vivência da fuga” e a narrativa de Visconde de Taunay sobre “A Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai”, textos que retratam informações históricas sobre a participação de Goiás na Guerra do Paraguai. PALAVRAS-CHAVE: Brasil Império. História de Goiás. Guerra do Paraguai. Literatura Goiana. Representação. Introdução A presente pesquisa diz respeito ao estudo da participação de Goiás na Guerra do Paraguai e neste artigo a ideia é estreitar um debate entre história e literatura como forma de melhor interpretar o universo das representações daquele passado conflituoso da história do Brasil no II Império e nesse rumo perceber como esse acontecimento se manifestou na sociedade goiana, e como essas “marcas do passadoestão “acomodadas” nos estudos de história de Goiás e ou representada na literatura goiana. O ponto de encontro nesse debate é a história como conhecimento da humanidade e como conhecimento da humanidade, a História tem um discurso, se quer representar como um saber que diz sempre algo sobre o passado. Literatura também. Literatura como um saber da humanidade é também um discurso da 1 Doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História UFG - Goiânia GO - Bolsista CNPQ/CAPES. e-mail: [email protected].

Upload: lycong

Post on 05-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

A PROVÍNCIA DE GOIÁS NO CONTEXTO DA GUERRA DO PARAGUAI,

1865-1870: NARRATIVAS CONSTRUÍDAS EM HISTÓRIA E LITERATURA,

DESAFIOS À VISTA.

José Atanásio de Souza Filho1

RESUMO:

A proposta de investigação em história sobre a participação da Província de Goiás na Guerra

do Paraguai, 1865-1870 tem como desafio compreender o cotidiano da sociedade goiana no

contexto da preparação e organização de um efetivo militar da província a fim de compor as

forças expedicionárias do Império Brasileiro, depois da invasão do exército paraguaio à

Província do Mato Grosso. Diante disso, faz-se necessário um olhar perscrutador sobre como

melhor interpretar essa história. Nessa perspectiva surge o caminho do diálogo entre história e

literatura para fins de melhor interpretação desse passado em Goiás. A possibilidade aqui de

interagir com a literatura ficcional ou poética é assaz plausível, justamente, pela possibilidade

de ampliar a capacidade interpretativa e analítica em discurso histórico numa interlocução

direta com a forma estética e imaginativa de um poema, um romance, conto ou crônica.

Conjugando essa proposta entre possíveis convergências e divergências no âmbito do que já

se escreveu sobre a história da participação de Goiás na Guerra do Paraguai, pretende-se aqui

encontrar formas de melhor interpretar esse passado a partir de um diálogo direto entre

investigação histórica de Goiás com a produção literária regional goiana, ou que trate de

aspecto da memória da participação de Goiás no conflito, por exemplo, a contribuição de

Rosarita Fleury, com o romance “Sombras e Marcha: na vivência da fuga” e a narrativa de

Visconde de Taunay sobre “A Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai”, textos

que retratam informações históricas sobre a participação de Goiás na Guerra do Paraguai.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil Império. História de Goiás. Guerra do Paraguai. Literatura

Goiana. Representação.

Introdução

A presente pesquisa diz respeito ao estudo da participação de Goiás na Guerra do

Paraguai e neste artigo a ideia é estreitar um debate entre história e literatura como forma de

melhor interpretar o universo das representações daquele passado conflituoso da história do

Brasil no II Império e nesse rumo perceber como esse acontecimento se manifestou na

sociedade goiana, e como essas “marcas do passado” estão “acomodadas” nos estudos de

história de Goiás e ou representada na literatura goiana. O ponto de encontro nesse debate é a

história como conhecimento da humanidade e como conhecimento da humanidade, a História

tem um discurso, se quer representar como um saber que diz sempre algo sobre o passado.

Literatura também. Literatura como um saber da humanidade é também um discurso da

1 Doutorando em História pelo Programa de Pós – Graduação em História – UFG - Goiânia – GO - Bolsista

CNPQ/CAPES. e-mail: [email protected].

2

história da humanidade. A história como um saber que “pretende dar uma representação

adequada da realidade que foi e já não o é” (CHARTIER, 2010, p.24), dialoga com um saber

que ‘informa’ do real passado, mas não se ‘abona’ nele. Nesse caso, o ponto de encontro se dá

na busca de qual caminho melhor para se chegar até Clio, deusa da memória. Nesse caminho,

a contribuição do Historiador Marcos Antônio de Menezes, no seu livro “Baudelaire: o poeta

da vida moderna” em fazer estreitar esse percurso de diálogo entre história e literatura se

mostre, realmente, em ver história como criação e arte de narrar sobre o passado evocando

sempre Mnemósine, todas às vezes que, nesse percurso, o diálogo se mostre aguado.

“Baudelaire não deseja apenas proteger a vida da sanha avassaladora do

progresso...Desesperadamente, invoca a deusa Mnemósine e pede que as musas, filhas destas

não deixem as artes perderem a relação de culto que tinham com o passado.” (MENEZES,

2014, p.58).

1 - A história da Participação de Goiás na Guerra do Paraguai.

A História da participação de Goiás na Guerra do Paraguai não é desconhecida e sobre

esse assunto existem informações que resultam de investigação científica, como o trabalho de

Zildete Inácio de Oliveira2, de 1983; está também romantizado como literatura histórica

regional de Goiás, romance de Rosarita Fleury3, ou se encontra acondicionado em parte dos

volumes de Memória Goiana4, como fontes memorialísticas. Também sobre a participação

das forças goianas na Guerra do Paraguai, o livro de Alfredo D’Escrangolle Taunay5. Diante

dessas informações supracitadas se encontra o tema Guerra do Paraguai como acontecimento

2 Dissertação de Mestrado em História. ICHL-UFG/Convênio com A Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas

e Letras da Universidade de São Paulo: Goiânia: Editora UFG, 1983. Como diz a autora na introdução: Este

trabalho tem como objetivo primordial o estudo da ação administrativa em Goiás. 3 Sombras em Marcha: na vivência da fuga. Romance. Goiânia, Indugraf, 1983. Este romance, considerado pela

historiadora Maria Augusta Sant’Anna Moraes, como romance que se evidencia como uma literatura

sociológica, psicológica e antropológica e histórica, pois descreve a historiadora: “me fizeram mergulhar no

contexto sócio cultural do Brasil do século XIX, em especial, Goiás, do qual eu não queria mais sair” In Bilhete

a D Rosarita, publicado na orelha da edição de 1983. 4 As mensagens obrigatórias dos presidentes de Goiás apresentadas nas sessões ordinárias da Assembleia

Legislativa que tratam do tema Guerra do Paraguai e Goiás estão publicadas em Relatórios dos governos da

Província de Goiás de 1864-1870. Sociedade Goiana de Cultura. IPEHBC, Centro de Cultura Goiana - Goiânia:

Ed. UCG, 1998. 5 A retirada da Laguna. Episódio da Guerra do Paraguay. Edição Melhoramentos, 1963. A parte do livro que

mais faz referência histórica a Goiás se encontra no capítulo 10, quando descreve sobre alguns feitos importantes

da participação do 20º Batalhão de Infantaria de Goiás num dos momentos mais cruciais da fuga forçada do

território paraguaio da força expedicionária comandada pelo Coronel Calos Moraes Camisão, que invadira o

Paraguai no primeiro semestre de 1867.

3

do conflito beligerante entre O Império do Brasil6 (1º de maio de 1865, Tratado da Tríplice

Aliança entre Argentina, Brasil e Uruguai) com a República Paraguaia numa relação direta

com a Província de Goiás. Para fins de um debate sobre História e Literatura, tomar-se-á

como base de um diálogo entre os textos de Rosarita Fleury e Visconde de Taunay.

Considerando o sentido da Guerra do Paraguai como acontecimento histórico, tomo

aqui a ideia de Michel de Certeau, quando analisando sobre “Uma Escrita”, no aspecto de

como ela se desdobra, isto é, o discurso é construído sobre uma realidade acontecida, sobre

um tema delimitado e recortado pelo historiador, por exemplo. Nesse aspecto desdobrado da

construção do discurso está a relação entre o acontecimento e o fato. Do ponto de vista da

construção da escrita:

O acontecimento é aquele que recorta para que haja inteligibilidade; o fato histórico

é aquele que preenche para que haja enunciados de sentidos. O primeiro condiciona

a organização do discurso; o segundo fornece os significantes, destinados a formar,

de maneira narrativa, uma série de elementos significativos. Em suma, o primeiro

articula, e o segundo soletra. (CERTEAU, 2008, p. 103).

Também, seguindo essa mesma preocupação como exercício de história, a capacidade

de se propor, conscientemente, ao desafio de se fazer história debatendo com a literatura no

mesmo sentido do que postula Roger Chartier quando analisa o lugar da verdade na ficção,

por exemplo, o romance de Rosarita Fleury é postulado, também, pela historiadora Maria

Augusta de Sant’Anna Moraes, como um texto de história social do Brasil do século XIX. “A

senhora escreve bem, e isto não nenhuma novidade. Real nos fatos, rica nas expressões, sem

deixar de ser simples”7. Roger Chatier endossa a preocupação de Michel de Certeau e dá a

6 O Estudo usado como referência analítica sobre a história da Guerra do Paraguai para este artigo é

DORATIOTO, Francisco Fernando de Monteoliva. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. – São

Paulo: Companhia das Letras, 2002. “Um decreto do governo imperial, de 21 de janeiro de 1865, convocou 15

mil guardas nacionais, divididos em cotas distribuídas entre as províncias, para fortalecerem o Exército no Sul

do Brasil”. (DORATIOTO, 2002, p. 112). Esta obra, junto com o estudo de SQUINELO, Ana Paula. A Guerra

do Paraguai, essa desconhecida. Ensino, Memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB,

2002. Nesse trabalho de pesquisa resultado de (dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal do

Mato Grosso – Campus Dourado, 1999-2000) compõem a base de entendimento das circunstâncias da História

da Guerra do Paraguai e como esta história tem se manifestado nas pesquisas desde o fim da guerra até nossos

dias. Nesse caso, o trabalho da historiadora Ana Paula Squinelo que se propôs a um questionamento sobre como a história da Guerra do Paraguai foi contada e recontada, por exemplos nos livros didáticos, serve de alerta para nós de como certas formas de discurso em história com vieses ideológicos deve ser evitado e questionado como fonte de informação historiográfica, por exemplo, “Trata-se de um assunto cujo ensino tem sido feito no

Brasil de maneira deficitária... Pois o manuais didáticos limitaram-se, até o presente, a divulgar diferentes visões

do conflito, visões estas alimentadas quase exclusivamente pelas preferências ideológicas de seus autores”.

(SQUINELO, 2002, p. 26). 7 Bilhete à Rosarita Fleury. In texto de orelha do livro: Sombras em Marcha: na vivência da Fuga, op. cit, 1983.

4

essa realidade uma ideia para o historiador ter sempre em mente quando se propor ao estudo

de história e literatura de ficção, quando trata da relação entre práticas de pesquisa em história

e representação e postula seus esclarecimentos a partir de interrogações que se

acondicionariam na numa pergunta sobre a modalidade de verdade em discurso histórico.

Essa questão parte da premissa de que existe “uma verdade” em texto de ficção, justamente,

por considerar que a literatura de ficção tem um lugar de respeito a sua validade como

discurso e narrativa sobre o mundo social. “O ponto de partida de tal interrogação reside na

tomada de consciência pelos historiadores de que as formas legítimas de produção

historiográfica, entendida como conhecimento histórico, são ligadas à escrita e, pois, a

produção de uma textualidade e de um discurso”. (CHARTIER, 2011, p 217).

No caso nossa pesquisa, o recorte histórico implica o acontecimento guerra naquele

contexto da História do Brasil Império, que se delimitaria na questão do início da guerra e sua

repercussão na vida social de Goiás, de fins de 1864 e início de 1865, considerando o tema

gerador desse recorte, não todo o acontecimento da guerra, mas da invasão do Mato Grosso, o

ataque à diplomacia do Império do Brasil pelo governo da República do Paraguai. Isso

porque, a partir desse acontecido novos fatos surgiram como realidade de guerra no país e isso

vai incorrer por todo o seu território em novos fatos que acabaram por implicar novas formas

de acontecimentos históricos relacionados à guerra. No caso de Goiás, o primeiro indício

histórico que liga Goiás à Guerra do Paraguai está no decreto imperial que estabeleceu as

novas ordens para fins de defesa armada do Império do Brasil. Com o Decreto 3.383 de 21 de

janeiro de 1865, o governo imperial estipulava uma cota de alistamento de Voluntários da

Pátria, aplicando a normatização do último Decreto 3371, de 7 de janeiro de 1865, que

obrigava todas as 16 províncias do império a proceder um programa de alistamento militar em

condições extraordinárias de guerra. Do total de 14.796 guardas nacionais, uma cota de 490

guardas nacionais foi designada para a Província de Goiás. Esse foi acontecimento geral da

história do Império Brasileiro naquele contexto. No caso de Goiás, as informações que tratam

das particularidades da província, como ficaram registrados na história documental os fatos

que resultaram desse acontecimento: Goiás e sua contribuição na Guerra do Paraguai têm seus

primeiros registros nas participações públicas do Desembargador João Bonifácio Gomes de

Siqueira, na condição de vice-presidente provincial, quando da vacância do cargo de

presidente no período que vai de novembro de 1864 a abril de 1865; justamente o período em

que ocorre a invasão da Província do Mato Grosso pelas forças paraguaias. Ao entregar o

governo provincial ao novo presidente Augusto Ferreira França, está indicado no relatório

5

como a sociedade goiana deveria corresponder às determinações do governo imperial. Nos

termos apresentados pelo predecessor do presidente Augusto França se encontra elementos

factuais que denotam as circunstâncias de como o “tempo de guerra” passou a sombrear o

território goiano.

Em virtude do decreto nº 3371 de 7 de janeiro do corrente anno, e das ordens do

Governo Imperial, dirigi uma proclamação aos habitantes desta província, e expedi

ordens aos comandantes da guarda nacional para alistarem e remeterem para esta

capital todos os que se oferecessem e estivessem em circunstâncias de poder prestar

serviço em tempo de guerra. (MEMÓRIAS GOIANAS, 1998, p. 59).

A proposta neste artigo é buscar entender como foi que a sociedade goiana reagiu aos

desígnios impostos pela eclosão da guerra e como esta reação incorreu no tempo posterior

aqueles fatos e se tornou memória histórica, isto é, se arrastou e vem se arrastando no tempo

como marcas de um passado, mesmo que pouco conhecido.

Nesse prisma, elencamos duas realidades que se imperam no exercício da investigação

histórica quando se pretende uma interlocução entre história e literatura. A primeira está em

entender o exercício da história como um discurso sobre o passado fundamentado na

capacidade criativa da investigação em manusear dados referenciais de acontecimentos de

outrora, suscitando sobre eles questões que se pautam na plausibilidade e verossimilhança das

circunstâncias contextuais que o justificam. Antecedendo essa síntese se encontra o

fundamento das palavras de Roger Chartier quando trata do saber histórico controlado; esse

saber diz respeito ao domínio do conhecimento que “justifica totalmente a reflexão

epistemológica em torno de critério de validade aplicáveis à operação historiográfica em seus

diferentes momentos” (CHARTIER, 2010, p.30), isto quer dizer, o historiador não deve se

prender sobre a ideia de que a crítica deve ser pela razão de negar uma obra sobre sua

capacidade ser verdadeira ou não como discurso e representação, mas utilizar da crítica sobre

as “construções interpretativas” validando-as ou negando-as. “A capacidade Crítica da

História não se limita, efetivamente, à negação das falsificações ou das imposturas; ela pode e

deve submeter as construções interpretativas a critérios objetivos de validação ou de negação”

(CHARTIER, 2010, p. 30). A segunda, como deve a História entender a ficção histórica como

uma representação do passado e sobre esse entendimento poder usar dessa modalidade de

saber sobre o passado como fonte de informação dos acontecimentos de outrora, se, dentro

daquilo a qual reporta novamente Roger Chartier, uma obra de ficção histórica “é um

‘discurso’ que informa do real, mas não pretende representá-lo, nem abonar-se nele”

6

(CHARTIER, 2010, p. 24). Esse abonar-se nele é justamente o que se baseia a capacidade

verídica da fonte histórica, e se é possível utilizar uma obra de ficção histórica como fonte

histórica, esta deve ocorrer pelo entendimento desta obra como um testemunho da memória.

Como testemunho de memória o texto literário se torna evidência histórica e como tal pode

compor, junto a tantas outras, o universo das possíveis fontes históricas sobre a mesa do

historiador. A possibilidade do historiador de interagir com a literatura ficcional ou poética se

manifesta na sua capacidade interpretativa com o sentido de ampliar a capacidade analítica em

discurso histórico. “A obra literária deve ser encarada como evidência histórica. Atentar para

a especificidade de cada testemunho...” (ARAÚJO, 2011, p. 2). A especificidade de cada

testemunho quer dizer o mesmo que descreve Roger Chartier quando analisa o sentido de

história e memória como saberes da humanidade. Ao introduzir sua análise sobre isso o

historiador francês dar esse crédito a obra de ficção e diz que junto com a memória tornam-se

marcas importantes do passado, “às vezes ou amiúde mais poderosa do que estabelecem os

livros de história” (CHARTIER, 2010, 21).

Aqui está o ponto de encontro do debate que se propõe este estudo: a utilização de

fontes de informação oriundas de um relato histórico surgido da forma de um diário de guerra,

por exemplo, o texto de Alfredo de D’Escragnolle Taunay, o clássico A Retirada da Laguna,

publicado em 1871, e o romance de Rosarita Fleury, Sombras em Marcha: na vivência da

fuga, publicada em 1983. O que reflete nosso interesse imediato nessas duas obras circula

pela forma mais tangencial da história: a presença de Goiás na guerra. No bojo dessas

circunstâncias surge o debate mais amplo sobre a forma de se ver os acontecimentos

relacionados à Guerra do Paraguai. Aqui, pois, surge a proposta teórica, a necessidade de se

fazer um exercício de interpretação de fatos históricos relacionados à participação da

sociedade goiana na Guerra do Paraguai em algumas passagens relatadas por Taunay da

mesma forma ver na narrativa literária de Fleury o sentido de representação de Goiás na

Guerra do Paraguai.

A perspectiva de um diálogo entre história e literatura ficcional é possível

considerando a previsibilidade teórica do historiador em considerar tal feição no processo

investigativo. Sobre a participação da sociedade goiana na Guerra do Paraguai o ponto de

partida é a questão sobre como aprimorar nossa interpretação sobre aqueles acontecimentos

indagando questões referentes ao arcabouço historiográfico, às sínteses históricas que compõe

a literatura sobre a Guerra do Paraguai e sobre a sociedade goiana no século XIX.

7

2- A fim de chegar até Clio, todas as fontes são uma mão na roda.

É na trilha dos fatos, do ocorrido que o exercício da história vai procurando firmar

sempre um novo discurso. Nesse caso, aqui se pretende fazer o mesmo quando se trata de

investigar sobre o impacto da guerra na sociedade goiana e como esta realidade se mostra

marcada na narrativa de Alfredo Taunay e Rosarita Fleury. O ponto de reflexão está no uso

dessas fontes como ferramenta ilustrativa para o exercício de investigação histórica, no caso

já descrito acima como um testemunho da memória daqueles acontecimentos. E a partir de

algumas passagens ilustrativas poder fazer o exercício da interpretação do passado. Talvez

seja esse o maior mérito para todo o esforço que exige essa arte de narrar, a exemplo do que

fez Alfredo de Taunay quando expressa no prólogo suas justificativas para o trabalho de

memória, não só sua, mas dedicada ao que ele chamou de irmãos que padeceram junto com

ele aquela guerra: “Devo esta narrativa a todos os meus irmãos de sofrimento, aos mortos

ainda mais que os vivos”. (TAUNAY, 1963, p. 6). Nesse sentido, aqui se toma a referência

dessa narrativa como memória, quer dizer, como obra ela carrega o sentido não de explicar a

história da guerra, mas de descrevê-la como parte da campanha militar brasileira que deve

ficar registrada como memória histórica. Do mesmo modo, o romance escrito por Rosarita

Fleury tem aqui o sentido de um objeto de representação da guerra do Paraguai e sua interface

com a vida social em Goiás do século XIX. A trama do romance está em torno guerra como

uma realidade monstruosa e destruidora da vida. Igual a Taunay, o sentido da retirada é a

questão emblemática da narrativa de Sombras em Marcha, e a guerra é o elemento

desestabilizador da vida e no centro da trama está a família do Coronel Leopoldo, igual a

todas as famílias afetadas pela guerra, torna-se o símbolo de resistência fugindo da cidade de

Corumbá sitiada pelo inimigo e procura refúgio na capital da província de Goiás, terra

distante e desconhecida, porém, um lugar protegido da guerra. Em Fleury, Goiás é o lugar de

acolhida e apoio ao povo mato-grossense afetado pela guerra. Da fuga de Corumbá destruída

à despedida da tropa do 20º Batalhão de Infantaria de Goiás, no dia 15 de maio de 1865, toda

a trama se dá sobre a incerteza do que pode a guerra provocar. A guerra é a maior

representada tanto na narrativa memorial de Taunay quanto na narrativa imaginária de

Rosarita Fleury; em Taunay, sua forma de linguagem sempre carregada da responsabilidade

real faz transparecer o absurdo da guerra, dos soldados maltrapilhos e abandonados à morte

em campo de batalha, representando uma epopeia às avessas, nas palavras do moribundo

8

coronel Carlos Camisão, quando antes de padecer, o faz acreditando que sua maior glória foi

ter evitado a total destruição de seus comandados naquela fatídica retirada da Laguna. Assim

se expressa a nossa preocupação como exercício de interpretação histórica, ao procurar seguir

o viés de entendimento do que descreve Roger Chartier sobre o conceito de representância

em Ricouer e como deve o historiador fazer uso dessa modalidade interpretativa ao entender

ele que há oposição entre a forma de reconhecer o passado e a capacidade de representar o

passado.

A função de ‘representância’ da história (definida como ‘a capacidade do discurso

histórico para representar o passado’) é constantemente questionada, suspeitada pela

distância necessariamente introduzida entre o passado e as formas discursivas

necessárias para sua representação. (CHARTIER, 2010, p.23).

Nesse ponto está a questão nevrálgica da tentativa de interpretar o tema guerra a partir

da ideia de representação. O sentido de representar o passado significa: criar sobre o passado

a partir de um processo de significação, isto é, sobre tramas históricas passadas se constroem

novas histórias.

Através das relações estabelecidas entre fatos ou da elevação de alguns dentre eles

ao valor de sintomas para uma época inteira, ou da ‘lição’ (moral ou política) que

organiza o discurso inteiro, existe em cada história um processo de significação que

visa sempre ‘preencher o sentido da História’”. (CERTEAU, 2008, p. 52)

Está na capacidade interpretativa do historiador o estabelecimento dos limites do que

pode ser considerado um corpo de entendimento plausível em investigação histórica quando

este se depara com a necessidade de um debate interdisciplinar entre história e literatura.

Entretanto, em qualquer outra situação, há um ponto da questão de que não se deve prescindir:

a construção do discurso. Em torno da construção do discurso, num diálogo direto com a

semiologia; A língua pode representar qualquer coisa, inclusiva o passado – nesse caso se faz

necessário navegar na seara das teses de Ferdinand Saussure e Roland Barthes, principalmente

este último, pois nas transformações do método de investigação em história, segundo a leitura

de Roger Chartier em seu ensaio: A história ou a leitura do Tempo, um dos olhares

transformadores no método histórico na década de 1970, foi a publicação de Escrita da

História de Michel de Certeau, 1975, e quando ele explana seu saber sobre “fazer história

como discurso”, isto é, propor-se a dizer algo sobre o acontecido, nesse caso, as teses de

Roland Barthes lhes permite esse suporte interdisciplinar.

9

Evocando ‘o prestígio do aconteceu’ a propósito da história, R. Barthes o relaciona

com o desenvolvimento atual do romance realista, do diário íntimo, das crônicas,

dos museus, da fotografia, dos documentários, etç. Efetivamente, todos estes

discursos se articulam sobre o real perdido (passado); reintroduzem como relíquia,

no interior do texto fechado, a realidade que se exilou da linguagem”. (CERTEAU,

2008, p. 52).

3- A A invasão das Forças Paraguaias nos textos de Taunay e Fleury, um exercício de

interpretação em História.

3.1 – Uma leitura histórica.

Em torno da ideia de valorizar o passado surge a capacidade de organizar um caminho

para assim justificar o exercício da investigação e assim caminhou a humanidade forçando a

criatividade em todos os sentidos para se fazer presente no tempo e assim constituir um

conhecimento sobre um outro tempo, o tempo acontecido. Mais uma vez poderíamos aqui

voltar às justificativas e trazer de volta os teóricos supracitados para assim proceder nesse

caminho, nem sempre farto e muitas vezes fastioso, que é interpretar o passado.

A Guerra do Paraguai pode ter ainda muita coisa para se escrever em história, não

resta dúvida, todavia, no universo do que se conhece sobre esse acontecimento, com certeza

há de se dizer que é um dos temas da história mais bem aprimorados enquanto debate

historiográfico e sobre ele incorre uma vasta bibliografia nacional e internacional. Entretanto,

a história da Guerra do Paraguai no âmbito da historiografia goiana, ou mais apropriadamente

sobre eventos daquele acontecimento que trate de um estudo específico sobre a relação de

Goiás com a guerra, só o estudo de Zildete Inácio Martins. Ao nível de um referencial

bibliográfico mais denso, por exemplo, o livro de Francisco Doratioto “Maldita Guerra”, é

insignificante a presença do nome Goiás, senão em duas ou mais passagem, considerando

todo o conjunto da obra, fonte e notas explicativas. Por uma curiosidade histórica, a única,

senão a última passagem que o autor de Maldita Guerra faz à história da participação de

Goiás, o faz exemplificando a contribuição da província de Goiás junto com a província da

Bahia, dando a entender um certo diferencial na mobilização militar, quer dizer, nesse sentido,

aqui surge um certo Por quê? Em quais condições reais isso veio a ser confirmado pelo

historiador Francisco Doratioto; quer dizer, Goiás e Bahia, as únicas províncias que prestaram

as devidas respostas aos decretos 3371 e 3383 do governo imperial.

A Paraíba, em 1866, também não completara sua cota de guardas nacionais, e o

mesmo ocorreu, em 1867, no Rio de Janeiro, onde o presidente relatava ‘sérios

10

esforços’ para completar o efetivo desses milicianos destinados a lutar no

Paraguai. Idênticas dificuldades foram relatadas pelos governos de Minas Gerais e

do Rio Grande do Norte. Foi uma raridade a boa disposição dos membros da

Guarda Nacional da Bahia e de Goiás para cumprirem com sua obrigações

militares. (DORATIOTO, 2002, p. 113).

O livro de Ana Paula Squinelo, quando Goiás é citado, no conjunto de sua análise

sobre a história da Guerra do Paraguai, é partir da representação daqueles acontecimentos

expostos escritos nos manuais militares da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN),

por exemplo, o manual História Militar do Brasil, (1979). No item intitulado “Formando

Estratégias”, Goiás é citado como um lugar por onde o exército em marcha, partindo de São

Paulo iria “cortando Minas e Goiás, teria como objetivo deter o avanço paraguaio”

(SQUINELO, 2002, p. 50); outra passagem que Squinelo traz sobre Goiás, no 2º capítulo, 2.1,

intitulado “A retirada Gloriosa” e o sentido do discurso regionalista surgido a partir do texto

“A Retirada da Laguna”, nesse caso, surge o acréscimo da informação sobre Goiás não apenas

ser um lugar por onde as tropas iriam passar, mas que esta província cumpriu um papel na

guerra. Fundamentada em Taunay, Ana Paula Squinelo destaca:

Tauny atuou como protagonista do conflito com o Paraguay no episódio conhecido

por Retirada da Laguna. Em fins de 1864, Solano Lopez ocupou o Sul do Mato

Grosso por duas frentes: uma por água e outra por terra; essa tropa instalou-se nos

territórios litigiosos, por isso o governo imperial organizou uma coluna que saindo

de São Paulo, contou com o apoio de efetivos militares de Minas Gerais e de Goiás.

(SQUINELO, 2002, p. 61).

No caso do estudo de Zildete Martins, aqui o estudo mais elaborado sobre a

participação de Goiás na Guerra do Paraguai, a estrutura da pesquisa se deu sobre o suporte de

fontes oficiais da administração pública provincial e, numa leitura pontual, elenca elementos

de entendimento que indicam como a administração fez para fazer transcorrer dentro da

província, as decisões do governo imperial. Em torno dessa perspectiva de abordagem, surge,

pois a questão do envio da tropa de Goiás para o Mato Grosso. A abordagem mais trabalhada

no estudo de Zildete está na apresentação das condições reais da população goiana em

responder às demandas do governo imperial em tempo de guerra. Associado ao alistamento,

uma preocupação a mais: aumentar a produção de alimento em toda a província para o

fornecimento de víveres para as tropas em marcha para Mato Grosso. Nesse sentido, o ponto

principal da participação de Goiás está em fornecer tropa militar – o 20º de infantaria - e

11

contribuir com a alimentação das forças expedicionárias que marcharam para o teatro de

guerra.

Em 1865, em consequência da atuação das tropas expedicionárias brasileiras no

território mato-grossense, e a seguir, em território paraguaio, onde o governo

provincial de Goiás se empenhava em dar-lhes sustento de víveres, estimulou-se a

produção agro-pastoril da região, como medida destinada a garantir as fontes de

abastecimento de gêneros, que nessa hora crítica passaram a ser julgadas de suprema

importância. (MARTINS, 1983, p. 4).

Diante do exposto, fica aqui nossa preocupação para o estudo da relação entre história

e literatura de ficção. Informações históricas sobre a participação de Goiás na Guerra do

Paraguai existem, fica agora o sentido de entender como a partir dos estudos dessa história

podemos encontrar mais informações de um “mundo social’ que passou e sobre este mundo

estabelecer questões que são pertinentes ao universo do conhecimento histórico, na sua forma

de conceber, interpretar o passado e a literatura, como um saber que tem a sua verdade

fundamentada na capacidade imaginativa de um texto ficcional, com a síntese de Roger

Chartier, nossa preocupação com esse diálogo frutuoso só aumenta:

Numa época em que nossa relação com o passado está ameaçada pela forte tentação

de criar histórias imaginárias, é fundamental e urgente a reflexão sobre as condições

que permitem sustentar um discurso histórico como representação e explicação

adequadas da realidade que foi. Supondo em seu princípio a distância entre saber

crítico e reconhecimento da emancipação da história do longo processo de

emancipação da história com respeito à memória e com respeito à fábula, também

verossímil. (CHARTIER, 2010, p.31).

3.2 – História representada.

Nesse ponto abre-se aqui o viés de interpretação da história via um texto testemunho,

o caso da informação sobre Goiás contida na narrativa de Alfredo de Scrangolle Taunay e na

representação literária de Rosarita Fleury. Dentro de uma ideia de aproximação textual se

toma como parte do acontecimento a guerra na primeira fase, quando da invasão do mato

Grosso entre fins de 1864 e primeiro semestre de 1867. Por uma questão de espaço,

tomaremos exemplos de realidades de um diálogo de informação entre um estudo de

investigação histórica

Partindo agora para o testemunho do criador de A retirada da Laguna o que se pode de

imediato considerar como importância histórica é o fato da leitura que o autor faz da própria

obra, todo o seu significado conclusivo para aquilo que ele mesmo deixa claro em toda a

12

narrativa: a tragédia da guerra e o perigo de seu esquecimento. No caso da história da

participação de Goiás, uma passagem é emblemática e bem provável faça jus ao que

descreveu Francisco Doratioto, quando em sua investigações documentais, fundamentada em

fonte dos relatórios de presidentes de Províncias de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio de

Janeiro entre outras, como deixa em sua nota de referência nº 55, base documental que lhe

permitiu, por exemplo, referir-se sobre a mobilização militar naquele contexto e, justamente,

numa passagem de sua análise, onde se encontra uma rápida referência à forma como foi a

participação de Goiás na guerra. “Foi uma raridade a boa disposição dos membros da Guarda

Nacional da Bahia e de Goiás para cumprirem com suas obrigações militares”

(DORATIOTO, 2002, p.113). Quando se lê a obra de Taunay, por muitos considerado um

épico da narrativa memorialística, como já descrita acima por Ana Paula Squinelo (2002), a

parte da narrativa que trata de indícios de informação sobre a presença de Goiás na guerra se

dá num dos momentos mais difíceis daquela expedição comandada pelo Coronel Carlos

Camisão: fugir da morte imediata frente a incapacidade do exército brasileiro em seguir

território adentro do Paraguai, na trama relatada por Taunay, testemunha ocular daquela

realidade, um teor de angústia coletiva se resumia nas decisões frente o pavor de não cumprir

os objetivos daquela expedição e retirar-se numa fuga “épica”8 a fim de evitar o extermínio

total da tropa. Diante de tudo exposto, de todas as provações que as tropas passavam numa

fuga incerta, nas palavras de Visconde de Taunay, de suas “lembranças de campanha” ali

estavam o os soldados goianos em marcha compondo as forças expedicionárias na campanha

militar do sul do Mato Grosso. Num primeiro momento, uma passagem em que se organizava

a entrada do exército brasileiro em território paraguaio.

No dia seguinte, 21 de abril, às 8 horas da manhã, deram os clarins do quartel

general o toque de marcha: nada menos significava do que transpormos a fronteira,

entrar em território paraguaio e atacar Bela Vista, que, deste lado, é a chave de toda

aquela região...

Estava o solo coberto de perigosa gramínea que atinge a altura de um homem, e a

que chamam macega, e cujas hastes duras arestas cortantes tornam, e em muitos

lugares o Paraguai, a marcha tão penosa. Transpusemos o Apa em frente a Bela

Vista; o 20º de Infantaria de Goiás forma a vanguarda, sob o comando do capitão

Ferreira de Paiva. (TAUNAY, 1963, p.59).

8 Ana Paula Squinelo no segundo capítulo do livro Guerra do Paraguai, essa desconhecida...” dá o título “A

Guerra Inacabada” e para introduzir esse debate, entre história e memória, oferecendo pistas de entendimento de

como a obra de Visconde de Taunay influenciou historiadores mato-grossenses, a historiadora intitula o debate

com o termo “A Retirada Gloriosa” e sobre essa gradual conceituação diz: ”O episódio da Retirada da Laguna

foi privilegiado na construção desse discurso. Alfredo D’Escrangolle Taunay (1843-1899), para redigir a obra

intitulada A Retirada da Laguna”, teve como base um diário de campanha e as suas ‘lembranças’, interessado

em justificar a participação brasileira no conflito platino e, principalmente, divulgar as ‘provações’ passadas pela

expedição brasileira no sul de Mato Grosso”. (SQUINELO, 2002, p.60).

13

Numa segunda passagem da narrativa de Taunay, no capítulo 10, quando descreve as

primeira marchas das tropas em retirada, encontra-se a descrição de alguns feitos importantes

do 20 Batalhão de Infantaria de Goiás, os quais, segundo a narrativa, o comando do ‘valente’

Capitão Ferreira de Paiva:

Este combate, que pôs termo ás refregas do dia, não durou menos de uma hora. Não

foram consideráveis as nossas perdas, um morto apenas e alguns feridos. Podíamos,

pois, considerar como vantagem as provas que de sua firmeza, a proteger a bateria,

nos dera o 20.° batalhão. Pareceu-nos o fogo paraguaio melhor dirigido do que até

então, mas nossa gente não arredou pé. Eram, entretanto, simples recrutas

valetudinários, saidos de Goiás, verdade é que comandados por valente oficial, o

capitão Ferreira de Paiva. Ficamos sabendo o que podiamos esperar da coragem e da

abnegação de todos para o resto da retirada. Neste ínterim, os membros da comissão

de engenheiros estabeleciam a ponte. Trabalharam rapidamente, sob as vistas do

comandante. Cumprimentou-os pelo serviço e foi o primeiro a passar. Todo o resto

da coluna o acompanhou sem maior detença e veio acampar à margem direita do

Apa-Mi. Mas já patrulhas de cavalaria paraguaia, que haviam atravessado o rio, a

jusante de nós, estavam a observar-nos. (TAUNAY, 1963, p. 41).

Fazendo agora uma relação de informação entre o estudo de História em Goiás, por

exemplo, o trabalho já citado da historiadora Zildete Inácio Martins e num interlocução com o

conjunto da obra de Rosarita Fleury, o que podemos é encontrar indícios de um universo

social produtivo da província de Goiás naquele período de guerra e postular questões de

interpretação sobre como essas informações, seja de um estudo de investigação histórica,

como a dissertação da historiadora Zildete Martins, ou como perceber na trama narrativa de

Rozarita Fleury, essa mesma dimensão social do mundo produtivo de Goiás, no seu romance

representado. Zildete Martins com base na documentação da administração provincial

descreve sobre a organização da produção agropastoril goiana em tempo de guerra – proposta

de aumentar a produção de víveres para fins de alimentação de seus soldados no teatro de

Guerra em território paraguaio. Assim, o impacto da guerra em Goiás se manifesta pela

intensidade de um programa do governo provincial que foi denominada de “Commissões

Municipaes” e estas tinham por efeito estimular a agricultura e promover o alistamento. O

Império cobrava de Goiás tropas, armas e víveres e o tempo era escasso. A atitude do

presidente Augusto França é estender as obrigações sobre seus ombros para o conjunto das

municipalidades, eram necessários homens para o exército, armas para o combate, víveres

para a tropa. No relatório do presidente da província, a primeira ação do governo, organizar as

commissões municipaes , “estimular a população agrícola e creadora a augmentar a produção

e auxiliar a presidência a obter com facilidade víveres” (MEMÓRIAS GOIANAS, 1988, p.

14

68) para que se procedesse o “auxílio” que cabia à província goiana de dar socorro às forças

nacionais. Rosarita Fleury dá esse destaque ao universo da organização dos víveres para a

marcha do 20º Batalhão, com certeza não dentro do que foi descrito acima pela historiadora

Zildete Martins, justamente pela dimensão do percurso analítico que ela fez ao percorrer toda

a documentação administrativa da província de Goiás para o assunto o fornecimento de

víveres para a guerra por parte da população goiana. Mas no trecho a seguir de Rosarita

Fleury encontra-se a informação de que esta seria uma das realidades mais prementes do povo

goiano depois que a guerra começou. Na última página de seu romance Sombras em Marchas,

a romancista dá indícios desse mundo social particularizado como uma ‘realidade’

representada em sua construção imaginada nas falas dos seus mais importantes personagens

de toda a trama, o coronel Leopoldo e sua esposa Mercedes:

Com voz embargada, o Coronel lembrou:

- Eles vão andar pouco, Mercêdes. Deixam o Batalhão logo adiante. Suassuna

precisa olhar gado e animais, separar o que pretende vender para cumprir o trato que

fez com o presidente. Depois então...

- Eu sei. Ficou claro. Suassuna e Sabina seguem para Coxim, mas vão a cavalo até

alcançarem a turma. Daí em diante, a pé como os outros (FLEURY, 1983, p. 481)

Em torno do que significaram as mudanças na vida social da província de Goiás

depois da publicação do decreto Imperial Nº 3371, não havia alternativa a não ser preparar-se

para a guerra. É nesta ocasião que se abre uma nova realidade histórica para aquela sociedade

dos sertões do Império. E isso está marcado na memória goiana, por exemplo, como descritas

nas palavras da romancista goiana Rosarita Fleury, quando relata sobre o 20º Batalhão de

Caçadores de Goyaz , do dia em que saiu em marcha a destino de Cuiabá, 15 de maio de

1865.

As cornetas tocavam a despedida final. O comandante Joaquim Mendes Guimarães

deu ordens em voz vibrante. Movimentou-se o 20° Batalhão de Infantaria, seguido

pelos voluntários da Pátria (...) Já o Batalhão subia o largo do chafariz, abençoado

para vencer na luta a ser travada em breve, desfraldada, ardente e linda, a bandeira

rebrilhava seus soldados ao sabor do vento. (FLEURY, 1983, p. 480).

Fazer seguir o Batalhão de Caçadores goiano para o teatro de guerra quando na província

se carecia de tudo. O centro político da província, portanto, mobiliza-se território adentro.

15

- Sabina me contou ontem. Capitão está entusiasmado. Acha que pode fazer um bom

negócio. E o entusiasmo maior, é porque Pitanga vai. Ela e dois negros do Capitão.

O molecote é pagem e um outro que não conheço.

- E o Salu (Salustiano) também. Não lhe falei? Fica por aí uns dias, vai para a

fazenda e parte com eles. Quer voltar. Como vê, eles vão viajar em boas condições...

em melhores condições do que os outros. Agora é fé em Deus e paciência até o fim

desta guerra.

Mercedez tornou a limpar os olhos com seu pequeno lenço branco.

- Veja mercê: quando é que eu ia supor ver minha família ir para a guerra?

Justamente eu, que fugi da guerra, que não gosto de guerra, que tenho medo de

guerra? (FLEURY, 1983, p.482)

À Guisa de Conclusão.

Em torno da necessidade de fazer valer o diálogo entre história e literatura de ficção e

ou narrativa memorialística é que se constituiu o plano dessa nossa investida no estudo da

participação da Província de Goiás na Guerra do Paraguai. Evidentemente que muito se faz

necessário para um aprofundamento desse diálogo, como mesmo descreve Roger Chartier,

historiador aqui “usado” como ferramenta de ajuste teórico entre essas duas formas de

conhecimento da humanidade: história e literatura. O que virá depois? Bom, o melhor é seguir

o conselho do mestre historiador francês e acreditar que será apenas mais uma tentativa da

história em entender a si mesmo, buscando sempre o diálogo com outras formas de

representar a história da humanidade em qualquer tempo, em qualquer lugar, para isso, faz-se

necessário aprimorar a capacidade de análise das práticas de representação.

De forma que a única via que podemos seguir consiste em estabelecer uma análise

das práticas da representação e, assim, construir as razões, os códigos, as

convenções, as intenções que governam as práticas de representação. É somente

decifrando a lógica que governa as práticas de representação, que nunca são neutras,

que sempre são tomadas nos lances, nas estratégias e conflitos específicos, que se

pode ter acesso de certa maneira às práticas representadas e conduzir uma análise

difícil e instável. (CHARTIER, 2011, p. 216)

Referências Bibliográficas.

16

Fontes.

FLEURY, Rosarita. Sombras em marcha: na vivência da fuga. Romance. Goiânia, Indusgraf,

1983.

Relatório dos governos da Província de Goyaz de 1864-1870. Vol 10. Sociedade Goiana de

Cultura, Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central. Centro de Cultura

Goiana- Goiânia: Ed. UCG, 1998.

TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle. A retirada da Laguna. Episódio da Guerra do Paraguai,

s/cidade: edição Melhoramentos, 1963.

Bibliografia.

ARAÚJO, Tiago Gomes de. Três literatos e um conflito: a Guerra do Paraguai (1865-1870),

sob os olhares de Machado de Assis, Visconde de Taunay e Pereira da Silva. Anais do XXVI

Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011.

CHARTIER, Roger. A verdade entre ficção e história. In SERPA, Élio Catalício et all (orgs).

Narrativas da Modernidade: história, memória e literatura. Uberlândia: EDUFU, 2011.

__________ A história ou a leitura do tempo. 2ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora,

2010.

DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. 2ª Ed. –Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2008.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita Guerra: nova história da Guerra do

Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MARTINS, Zildete Inácio de Oliveira. A participação de Goiás na Guerra do Paraguai (1864-

1870). Goiânia. Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1983.

MENEZES, Marcos Antonio de. O poeta da vida moderna: história e literatura em Baudelaire.

Curitiba, PR: CRV, 2013.

SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e

história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002.