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Anais do X Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Arte e Inclusão – 01, 02 e 03 de Dezembro de 2014 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-1566 53 A PROPOSTA TRIANGULAR DO ENSINO DA ARTE E O CIBERESPAÇO: INDÍCIOS DA MANUTENÇÃO DE UM DESENCONTRO Barbara Mariah Retzlaff Bublitz UDESC i RESUMO: O presente texto tem por objetivo, a partir de conceitos acerca da cibercultura e da relação da tecnologia com o ensino da Arte, questionar como ocorre a articulação da proposta triangular de Ana Mae Barbosa com a realidade das produções de arte do ciberespaço no contexto escolar. Para tanto, problematiza-se as transformações nas relações de sensibilidade e produção artística da contemporaneidade. Palavras-chave: cibercultura, ensino da arte, proposta triangular ABSTRACT: This text aims question the triangular proposal developed by Ana Mae Barbosa from concepts about cyberculture and the relationship of technology to teaching art with the reality of cyberspace art and production about the school context. Therefore, discusses to the changes in the sensitivity relations and artistic production of contemporaneity. Keywords: cyberculture, art education, triangular proposal 1. Introdução Este texto não objetiva apresentar respostas, mas problematizar e compartilhar questionamentos oriundos dos conflitos cotidianos no contexto da educação básica. A partir das reflexões acerca das transformações no modo de percepção e comunicação da sociedade contemporânea, midiatizada e virtualizada, anseia-se por identificar modos de articulação dessas mutações com os postulados de Ana Mae Barbosa a respeito da proposta triangular de ensino da Arte. Observa-se que a organização do currículo escolar interliga as três dimensões da proposta de Barbosa: a fruição estética, a contextualização e a produção artística. Ou seja, prevê potencializar a expressividade e considerar a dimensão do sentido das produções artísticas e a ação na vida daqueles que a observam, a fim de decodificar a gramática visual e avaliar o que é visto em relação ao seu contexto proveniente. Os documentos que norteiam as práticas dos professores de Arte em âmbito nacional são fundamentados pela proposta triangular de Barbosa, desenvolvida durante a década de 1980, aproximadamente uma década antes da popularização

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A PROPOSTA TRIANGULAR DO ENSINO DA ARTE E O CIBERESPAÇO: INDÍCIOS DA MANUTENÇÃO DE UM DESENCONTRO

Barbara Mariah Retzlaff Bublitz – UDESCi RESUMO: O presente texto tem por objetivo, a partir de conceitos acerca da cibercultura e da relação da tecnologia com o ensino da Arte, questionar como ocorre a articulação da proposta triangular de Ana Mae Barbosa com a realidade das produções de arte do ciberespaço no contexto escolar. Para tanto, problematiza-se as transformações nas relações de sensibilidade e produção artística da contemporaneidade. Palavras-chave: cibercultura, ensino da arte, proposta triangular ABSTRACT: This text aims question the triangular proposal developed by Ana Mae Barbosa from concepts about cyberculture and the relationship of technology to teaching art with the reality of cyberspace art and production about the school context. Therefore, discusses to the changes in the sensitivity relations and artistic production of contemporaneity. Keywords: cyberculture, art education, triangular proposal

1. Introdução

Este texto não objetiva apresentar respostas, mas problematizar e

compartilhar questionamentos oriundos dos conflitos cotidianos no contexto da

educação básica. A partir das reflexões acerca das transformações no modo de

percepção e comunicação da sociedade contemporânea, midiatizada e virtualizada,

anseia-se por identificar modos de articulação dessas mutações com os postulados

de Ana Mae Barbosa a respeito da proposta triangular de ensino da Arte.

Observa-se que a organização do currículo escolar interliga as três

dimensões da proposta de Barbosa: a fruição estética, a contextualização e a

produção artística. Ou seja, prevê potencializar a expressividade e considerar a

dimensão do sentido das produções artísticas e a ação na vida daqueles que a

observam, a fim de decodificar a gramática visual e avaliar o que é visto em relação

ao seu contexto proveniente.

Os documentos que norteiam as práticas dos professores de Arte em âmbito

nacional são fundamentados pela proposta triangular de Barbosa, desenvolvida

durante a década de 1980, aproximadamente uma década antes da popularização

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do computador portátil. Transforma-se em problema a discrepância temporal entre a

origem da proposta com o início das relações da sociedade com as tecnologias, de

certo modo, populares.

Desse modo, a arguição está aberta àqueles dispostos ao desprendimento

de práticas sustentadas pelo tempo e objetiva desestabilizar um campo de aparência

estável e inquestionável. A proposta triangular de Ana Mae Barbosa ampara as

novas formas de sensibilidade, produção e alcança delinear características para o

contexto múltiplo e veloz?

2. Da bula à sugestão: o movimento da proposta triangular do ensino da arte

A necessidade de pensar politicamente as questões do ensino da arte uniu

durante a década de 1980 uma quantidade significativa de professores no Brasil. O

anseio coletivo conduziu o campo da Arte/Educação nacional a relevantes

transformações. Neste contexto, a partir das ideias de antropofagia cultural, a

professora Ana Mae Barbosa buscou em referências estrangeiras, propostas

potencialmente renovadoras de ensino da arte, as quais postulavam a ideia de que a

construção de conhecimento acontece com o atravessamento da experiência e da

informação.

Para tanto, os conhecidos referenciais dessa autora foram o movimento

inglês “Critical Studies”ii, surgido na década de 1970, que considerou a história da

arte, a sociologia, a filosofia e a psicologia elementos importantes nos programas de

ensino de arte. A proposta estadunidense “Discipline-Based Art Education”iii

desenvolvida na década de 1980 e balizada na hipótese de que uma abordagem

mais abrangente para o ensino de arte deva incluir a estética, a produção artística, a

crítica e a história da arte. A influência latino-americana é representada pelas

“Escuelas al Aire Libre”iv do México que, após a Revolução Mexicana, objetivou

recuperar padrões de criação locais e de expressão individual, num viés

multicultural.

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Com estes referenciais, Barbosa estrutura a “metodologia triangular”, que

surgiu no âmbito do ensino da arte no Brasil em 1983. A posteriori o termo

“metodologia” foi revisado pela autora (BARBOSA, 2010), que afirma ser a

metodologia uma prática atribuída aos professores em seus processos cotidianos de

ensino e que, deste modo, não pode ser aplicada como um modelo a ser seguido.

Para tanto, substitui o termo para “proposta” ou “abordagem triangular”. Uma

“proposta” substitui a “bula metodológica” por modos possíveis com os quais se

pode aprender. Deste modo, a proposta triangular tem por objetivo inter-relacionar a

leitura de imagem (e a fruição estética), o fazer artístico e a contextualização (a

história da arte).

Estendendo-se às décadas seguintes, pode-se observar a proposta

triangular como referência na construção de documentos fundamentais para a

disciplina Arte a educação formal brasileira, como os Parâmetros Curriculares

Nacionais que, por sua vez, sustentam as Propostas Curriculares regionais e, deste

modo, a proposta se mantém orientando o trabalho dos professores de Arte. O

pressuposto filosófico e metodológico da Proposta Curricular do Ensino da Arte em

Santa Catarina, por exemplo, menciona que:

“[...] tem no seu encaminhamento metodológico a visão de que um ensino da arte significativo compreende o objeto artístico a partir de três áreas do conhecimento: a produção, a fruição e a contextualização (das linguagens visual, musical e cênica). A sequência das vertentes será determinada pelos objetivos traçados no planejamento do professor; no entanto, é importante que ele tenha clareza dos modos como se aprende arte na escola e trace o seu próprio caminho” (Proposta Curricular de Santa Catarina – Arte, 1998).

Observa-se neste fragmento das Propostas Curriculares do Ensino da Arte

em Santa Catarina influência da proposta triangular de Ana Mae Barbosa, com a

inclusão da liberdade de estruturação do método de ensino por cada Professor, o

que reafirma a ressonância dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) nas

propostas locais e regionais. Estas documentações legitimam práticas docentes

cotidianas nos diferentes ciclos da educação básica e considerar historicamente os

desdobramentos de sua construção se torna tarefa fundamental para compreender

este processo.

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Por essa perspectiva, sinaliza-se o cerne da questão em “como ensinar arte”

e, assim sendo, deve-se considerar que as manifestações artísticas humanas não

são um campo impermeável aos desdobramentos históricos e às transformações

sociais. Criaram-se, ao longo destas três décadas de reflexão a respeito dos modos

possíveis de ensino da arte, novas formas de percepção, de produção artística e

contextos não apenas múltiplos mas mutáveis em tamanha aceleração que a

velocidade beira o inalcançável. Tais transformações são, em intensidade

considerável, estimuladas pelo desenvolvimento do ciberespaço, a rede configurada

pela interconexão mundial dos computadores.

O desenvolvimento do ciberespaço e, por consequência, da cibercultura,

possibilitou à sociedade uma alta dose de autonomia em relação a educação de si

mesma, o que arrisca a importância das instituições e dos profissionais ainda

engessados em princípios de detenção do conhecimento (LÉVY, 1999). A

problemática que busco refletir a respeito circunda, deste modo, como articular as

intensas transformações das artes e da sociedade contemporânea midiatizada e

virtualizada com a proposta triangular de Barbosa. As novas formas de percepção

sustentam os modos convencionais de leitura de imagem? A criação artística, que

surgem deste contexto, cabe no espaço escolar? Finalmente, as práticas docentes

compreendem as transformações tecnológicas que alteraram de modo substancial

as relações dos estudantes com o seu meio?

3. Fruição e leitura da imagem imaterial

Consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais - Arte, em relação à fruição

estética, que ela “refere-se à apreciação significativa de arte e do universo a ela

relacionado. Tal ação contempla a fruição da produção dos alunos e da produção

histórico-social em sua diversidade” (1997, p.41). A apreciação, no contexto escolar,

está relacionada à lida com os significados atribuídos às manifestações artísticas e

criações humanas passíveis de percepção, análise, reflexão e compreensão.

Propor uma leitura contextualizada, deste modo, requer considerar que as

estruturas textuais não são mais as mesmas, a linearidade dos textos existe em

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paralelo à hipertextualidade e suas especificidades, enquanto a imagem

bidimensional das telas e papéis e a materialidade das manifestações corporais e

espaciais dividem a cena com a imaterialidade e com a ramificação da virtualidade.

Neste sentido, Roy Ascott, precursor da net art, evidencia uma nova relação

de percepção: a cibercepção, que pode ser compreendida como as interações de

percepção e cognição definidas artificialmente. Para Ascott (2002) a cibercepção se

trata de um novo modo e corpo de viver a duplicidade existente entre o atual e o

virtual. Enquanto compreende a capacidade de estar aqui e em outro lugar ao

mesmo tempo, amplia o que acreditamos ser nossas capacidades genéticas

naturais. O sentido de individual passa a dar lugar para o sentido de interface e

assim nossa consciência de identidade é modificada e se torna incerta. A partir

desta ideia, compreende-se que o computador nos molda, mas também nos

possibilita.

Se a percepção é estar ciente dos elementos ambientes pelas sensações

físicas, a cibercepção envolve, então, os processos de conectividade e redes

telemáticas, a tecnologia da comunicação, a participação e a colaboração. Nesta

perspectiva, com a cibercepção apreendemos os processos de emergência da

natureza e sua realidade múltipla. O corpo humano se torna local de transformação,

enquanto construímos e habitamos mundos paralelos. As tecnologias transpessoais

de telepresença, as redes globais e o ciberespaço podem reativar uma consciência

obsoleta por uma visão mecanicista de mundo. Um despertar de capacidades

psíquicas latentes, da disposição de estar fora do corpo. A cibercepção nos faz

reavaliar a matriz material e os instrumentos culturais da sociedade que demos por

correta até então. Segundo o autor (2002) a cibercepção equipara para a

consciência global e desenvolve a habilidade para rever, repensar e reconstruir o

nosso mundo.

A concepção de Roy Ascott acerca da virtualidade é evidentemente

entusiástica se comparada às constantes relações pessimistas do desenvolvimento

tecnológico com a sua “ameaça da substituição”. A demonização da tecnologia

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alimenta uma visão rasa das transformações sociais, uma vez que a tecnologia e

sua potencialidade é criada e alimentada pela sociedade que, ao invés de temer,

deve refletir, delinear limites e aprender a lidar com ela. Este processo de reflexão

implica identificar os posicionamentos extremos, sinalizar seus dissensos e pensar o

panorama criticamente.

Sobre as potencialidades da tecnologia em relação à cognição humana, por

exemplo, Nazario (2005) afirma que o aumento do volume de informações e da sua

velocidade fez com que as pessoas não suportassem mais frases muito longas ou

informações lentas, em busca da satisfação imediata. O fato apresentado pode ser

contraposto ao benefício da velocidade nas comunicações, então imediatas, pela

diluição das distâncias geográficas e pelo acesso direto às informações. As posições

dicotômicas se estendem num emaranhado infinito, uma vez que a busca pelo “bem”

e pelo “mal” está aquém da tecnologia, enraizada nas construções maniqueístas das

relações cotidianas.

Pensar a fruição, o exercício de leitura da imagem, proposta por Ana Mae

Barbosa, neste contexto, exige compreender que a popularização dos computadores

portáteis ocorreu aproximadamente uma década após a emergência da

“metodologia triangular”, consequentemente, as diversas manifestações de arte

relacionadas a esta máquina. Questiono, deste modo, se os signos visuais da arte

construída por pixels devem ser lidos com o mesmo escopo das manifestações

materiais de arte, uma vez que não apenas os recursos e os suportes são outros,

mas também as relações de presença foram subvertidas. Trata-se não mais da

preocupação com a aura de uma obra de arte, conforme enunciava Walter Benjamin

(2012), pois a arte no ciberespaço não é reproduzível e sim atualizável. Não existe

matriz a ser copiada e sim uma potência a ser atualizada. O valor de culto da arte

passa a ser, literalmente, passível de desmaterialização e a preocupação do contato

com a obra “verdadeira” não comete mais sentido.

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Estão os professores preparados para orientar essas novas possibilidades

de leitura e fruição da arte? Quais são os signos da simulação que devemos

decifrar?

4. A arte como produto da história

Consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais - Arte, em relação ao

ensino de Arte, que “a reflexão refere-se à construção de conhecimento sobre o

trabalho artístico pessoal, dos colegas e sobre a arte como produto da história e

da multiplicidade das culturas humanas” (p. 41, 1997). Torna-se, neste sentido, de

suma importância desenvolver o pensamento crítico a respeito do contexto

contemporâneo do qual emergem especificamente as manifestações artísticas

virtuais e as relacionadas às novas mídiasv de modo geral, a fim de evitar

construções reducionistas acerca das transformações sociais em torno da

tecnologia.

Para Luiz Nazario (2005), por exemplo, o tempo presente se desdobra

sob a égide da organização científica para a produção e processamento

acelerado de dados. As ferramentas dessa “revolução eletrônica”, a respeito da

qual se refere o autor, são os computadores, telefones celulares, satélites, fibras

óticas, bancos eletrônicos, redes de comunicação eletrônicas, entre outras de

utilização massiva. As combinações desses meios tecnológicos possíveis com

informações constituem um fluxo de navegação nominado pelo autor de “oceano

poluído”. O que referencia outra revolução, a “revolução da informação”. Nessa

perspectiva, a revolução da informação exerce sobre a sociedade um efeito de

controle (o efeito nivelador), uma vez que convence um coletivo pela inserção

dominadora de discursos em seu cotidiano. Já Pierre Lévy (1999), por um viés

otimista das contribuições tecnológicas, afirma que, enquanto a inteligência

coletiva acelera a mutação das tecnologias e resulta num ritmo de difícil

acompanhamento que gera exclusão, seu potencial interativo, pelo caráter

participativo, socializante e emancipador, possibilita remediar este ritmo

excludente.

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A arte postal, historicamente, pode ser considerada a ação originária da

movimentação artística em rede da contemporaneidade. Considera-se que as

mídias de comunicação marginal surgiram na década de 1960 e 1970 em reação

aos meios de comunicação de massa e questionaram suas posturas impositivas,

a promover a interação da arte com a vida social cotidiana. Houve então a crítica

e a resistência ao sistema de arte e seu mercado, o que provocou, segundo

Cristina Freire (2006) ruídos e questionamentos dentro dessa estrutura social. Há,

em ambos os casos, a comunicação direta com o público, sem as instituições

como intermediários privilegiados. Por outro lado, para a autora, a arte postal

favorece a percepção tátil em uma época de digitalização e migração para o

virtual de arquivos e informações.

As breves exposições desenvolvidas no decorrer do texto quanto à

diversidade de abordagens acerca dos sintomas da ramificação da tecnologia nas

práticas cotidianas da sociedade contemporânea, remete-nos à consideração de

Pierre Lévy (1999) sobre o valor potencial da tecnologia em detrimento do que

compreendemos como determinações. Neste sentido, a tecnologia, criação

humana, possibilita uma série de condições, mas não as determina a priori, uma

vez que como ferramentas, são recursos para as ações humanas e que elas, por

sua vez, afetam diretamente o tempo e o espaço no qual estamos inseridos.

Para elucidar o contexto - elemento constitutivo da proposta triangular de

ensino da arte - no qual está inserido as manifestações artísticas desenvolvidas

com as tecnologias contemporâneas, torna-se fundamental clarificar o que das

ações docentes cotidianas se trata de apego aos modos de fazer do passado e o

que se trata de resistência em relação à mutação acelerada das relações e

sensibilidades humanas. O diálogo com o tempo presente, no espaço escolar,

demanda cogitarmos que somos os vilões do nosso próprio horror.

5. A produção simbólica no ciberespaço e a educação formal: relações

possíveis

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Observa-se na estrutura das criações digitais e virtuaisvi que, embora

sejam de caráter libertário, exigem do propositor o domínio de códigos

específicos. A artista Cornelia Sollfrank, por exemplo, desenvolveu em conjunto

com uma empresa especialista em consultoria e soluções tecnológicas um

gerador de arte, o net.art generatorvii, que possibilita aos navegantes da internet a

criação de trabalhos de arte digitais a partir do material encontrado em sites de

busca populares.

Figura 1 – Projeto de Cornelia Sollfrank, Net.art generator, (1997/2997)viii

O projeto de Sollfrank funciona a partir de palavras-chave, escolhidas pelo

navegante na internet, que devem ser inseridas no campo title. A partir delas, o

gerador busca automaticamente imagens na internet com o objetivo de compor

um trabalho de arte que sobreponha as imagens encontradas. Neste processo,

são disponibilizadas algumas opções básicas de configuração para definir a

composição final, como a quantidade de imagens utilizadas pelo gerador, o

campo Compose, que varia de 2 a 8 imagens, a resolução e a extensão da

imagem e a identidade do artista, no campo Artist. Esta etapa do projeto

possibilita ao navegante criar nomes irreais ou publicar o trabalho criado

anonimamente, o que intensifica o caráter livre das manifestações artísticas no

ciberespaço e a diluição da figura do artista genial.

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Figura 2 – Imagem criada pelo Net.art generator de Cornelia Sollfrank a partir das palavras woman e warix

Figura 3 - Imagem criada pelo Net.art generator de Cornelia Sollfrank a partir das palavras woman e resistancex

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Net.art generator segue as direções conceituais de prática artística, uma

vez que o domínio técnico da materialidade é ignorado. Por outro lado, para que

os trabalhos emergentes do ciberespaço e da tecnologia sejam desenvolvidos, é

preciso que haja o domínio de determinados códigos específicos ou de uma

língua estrangeira, o que nos possibilita pensar que embora a arte

contemporânea seja híbrida e, especificamente no ciberespaço, potencialize a

criação em contextos sociais periféricos e possibilite a disseminação de ideias, é

uma manifestação humana desenvolvida para sujeitos familiarizados com seus

modos de ser, seus discursos e suas organizações institucionais.

A partir das problemáticas apresentadas, torna-se necessário refletir a

respeito da inserção das práticas contemporâneas de arte do ciberespaço no

contexto escolar. Neste sentido, sabe-se que a geração de estudantes atendidas

nas escolas está mais preparada biologicamente para compreender os idiomas da

tecnologia (Oliveira, 2005). Ainda assim, se a produção “refere-se ao fazer artístico e

ao conjunto de questões a ele relacionadas, no âmbito do fazer do aluno e dos

produtores sociais de arte” (Propostas Curriculares do Estado de Santa Catarina

para o ensino da Arte), torna-se pertinente questionar se esses estudantes estão

preparados para reconhecer as transformações no objeto, no sujeito e no espaço

da arte ao longo da história e, ainda, se apresentam condições de criar com os

códigos contemporâneos da tecnologia.

6. Considerações finais

O objetivo deste texto, contaminado pela desordem do ciberespaço, não é

alcançar respostas deterministas aos questionamentos levantados. Na

contramão, anseia sinalizar os pontos de problema e as suas ligações, ou

conforme o vocabulário das redes, objetiva identificar as léxias entre os linksxi no

que concerne à relação do ensino da arte com o desenvolvimento do ciberespaço.

A fruição estética, neste contexto, passa a lidar com a estrutura dos

bancos de dados, enquanto a aura das manifestações artísticas já não está

acerca da presença e da unicidade mas além dos limites de espaço e do tempo.

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Assistimos e participamos das mutações nos modos de fazer sem sequer sermos

artistas e observamos que poéticas intensamente subjetivas se tornaram

algoritmos processados em alta velocidade. As ferramentas originalmente criadas

para a guerra e para a ciência possibilitaram manifestações de criação,

expressividade e construção de coletividades libertárias, enquanto as

capacidades humanas expandidas pelas potências da tecnologia alteraram

profundamente as forças que movem o interior dos diferentes campos da prática

social, como a arte e a educação.

Acerca desta problematização, torna-se pertinente considerar que mesmo

após 30 anos de seu surgimento, a proposta triangular de Ana Mae Barbosa

continua norteando a prática dos professores de Arte em dimensão nacional,

legitimada pelos documentos oficiais de normatização do ensino da Arte. Deste

modo, se a velocidade do surgimento e renovação dos saberes e as profundas

alterações nas funções cognitivas humanas favorecem novos modos de raciocínio

e conhecimento, questiono com este texto se o contexto escolar acompanhou as

transformações profundas no campo da arte e, ainda, se a “proposta triangular”

sustenta os novos modos de percepção e criação simbólica emergentes.

A multiplicidade e a aceleração características do nosso tempo acerta

tamanha diversidade de possibilidades que se torna improvável encontrar

respostas uníssonas, uma vez que a tecnologia é a ferramenta para a objetivação

dos sujeitos, distintos, em seus contextos específicos, sustentados também pelas

diferenças. A partir construção de um breve panorama a respeito da fruição, da

produção e do contexto do ciberespaço e, ainda, a fim de discutir coletivamente,

questiono como a proposta triangular é articulada com as transformações

decorrentes do desenvolvimento do ciberespaço? A proposta de Barbosa

continua abarcando as condições da produção e percepção estética da

contemporaneidade?

i Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Artes – PROF-Artes da Universidade do Estado de Santa

Catarina.

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ii Estudos Críticos (tradução livre). iii Arte Educação como Disciplina” (BARBOSA, 2010). iv Escolas ao Ar Livre (tradução livre). v Mais sobre o conceito de “novas mídias” em Tribe e Jana (2007). vi Mais acerca das características do digital e do virtual em Lévy (1999). vii http://net.art-generator.com/ viii http://nag.iap.de/ ix Mulher e guerra (tradução livre). x Mulher e resistência (tradução livre) xi Sobre léxias e links, ler Braga (2005).

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Anais do X Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Arte e Inclusão – 01, 02 e 03 de Dezembro de 2014 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-1566

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PROPOSTA CURRICULAR DE SANTA CATARINA. Arte. Disponível em: <http://www.sed.sc.gov.br/educadores/proposta-curricular?start=1>. Acesso em 2 maio, 2013.

Barbara Mariah Retzlaff Bublitz Mestranda do Mestrado Profissional em Artes na Universidade do Estado de Santa Catarina, licenciada em Artes Visuais pela Universidade da Região de Joinville. Foi bolsista de iniciação científica no projeto “Acervo de Gravura na UNIVILLE” (2011) e “Investigação de atividades educativas virtuais em arte: uma análise conceitual e metodológica (2013)”. Atuou como bolsista no Programa Institucional de Extensão Arte na Escola (2012).