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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA Cleber de Lira Farias A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva da Concepção Humeana de Causalidade Rio de Janeiro 2017

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Page 1: A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva da Concepção Humeana de ... · 2019. 7. 23. · RESUMO O objetivo da dissertação será apresentar e defender os argumentos

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇ Ã O EM LÓGICA E METAFÍSICA

Cleber de Lira Farias

A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva

da Concepção Humeana de Causalidade

Rio de Janeiro

2017

Page 2: A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva da Concepção Humeana de ... · 2019. 7. 23. · RESUMO O objetivo da dissertação será apresentar e defender os argumentos

Cleber de Lira Farias

A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva

da Concepção Humeana de Causalidade

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Alberto Oliva

Rio de Janeiro

2017

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Farias, Cleber de Lira

Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva da Concepção

Humeana de Causalidade / Cleber de Lira Farias. Rio de Janeiro:

UFRJ/IFCS, 2017.

111 f.

Orientador: Alberto Oliva

Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação

em Lógica e Metafísica, 2017.

1. Teoria do Conhecimento. 2. Conhecimento de Deus. 3.

Causalidade. I. Oliva, Alberto. II. Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-

Graduação em Lógica e Metafísica. III. Mestre.

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Cleber de Lira Farias

A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva

da Concepção Humeana de Causalidade

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa

de Pós-Graduação Lógica e Metafísica,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em Lógica e Metafísica. Á rea de

Concentração: Filosofia, Teoria do

Conhecimento, Filosofia da Religião.

Orientador: Prof. Dr. Alberto Oliva

Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 2017.

______________________________________________________________

Alberto Oliva, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

______________________________________________________________

Antonio Frederico Saturnino Braga, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

______________________________________________________________

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira, Doutor, Universidade Católica de Petrópolis (UCP)

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A Deus, família, namorada, amigos e orientador pelo apoio,

força, incentivo, companheirismo e amizade. Sem eles nada disso teria sido possível.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, princípio de sabedoria e bondade.

Aos meus pais, Maria e Cicero, meu infinito agradecimento por sempre acreditaram em minha

capacidade. Obrigado pelo amor incondicional.

Ao meu querido meu irmão, pelo seu companheirismo, amizade, paciência, compreensão e

apoio, este trabalho pôde ser concretizado.

À minha namorada, Carolina Almeida, por sua constante contribuição, apoio e compreensão.

Ao Professor Doutor Alberto Oliva, que acreditou em meu potencial. Por sua inteira

disponibilidade e disposição em me ajudar. Agradeço às suas críticas que me guiaram nesta

dissertação. Levarei seu exemplo de referência profissional e pessoal para meu crescimento.

Ao amigo Saturnino Rodriguez, do Colégio Estadual Dom Walmor, por me apoiar nessa

pesquisa.

Aos meus amigos do mestrado, pelos momentos compartilhados, especialmente nas aulas

obrigatórias de disciplinas obrigatórias do primeiro semestre e nas apresentações do seminário

de pesquisa.

Aos alunos, professores e funcionários do Departamento de Pós-Graduação em Lógica e

Metafísica.

Por fim, agradeço à CAPES pelo apoio financeiro, sem o qual esta pesquisa não se

concretizaria.

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RESUMO

O objetivo da dissertação será apresentar e defender os argumentos de Hume acerca da

possibilidade do conhecimento de Deus a partir da perspectiva causal. Considerando que o

autor visa fundamentar sua filosofia como ciência rigorosa, se baseará em critérios que

possam ser justificados empiricamente. Todas as coisas, portanto, que não estiverem de

acordo com tais critérios serão denominadas de irracionais ou ilusórias. Partindo do rigor

empírico de Hume, o primeiro capítulo será dedicado à análise da questão da causalidade em

sua origem e natureza, pois ela é o pano de fundo das problemáticas que serão desenvolvidas

nos capítulos subsequentes. No segundo capítulo, o objeto de estudo será a problemática do

argumento do desígnio, que defende a posição que a existência de Deus pode ser conhecida de

forma a posteriori, a partir da análise da ordem e funcionalidade do mundo. Esta posição é

duramente criticada por Hume, no entanto, suas críticas são questionáveis, pois são expressas

através de personagens e não assumidas diretamente enquanto autor. No terceiro capítulo,

buscaremos compreender se é possível justificar de forma racional a crença na ocorrência em

fatos miraculosos, levando em consideração que as evidências empíricas não são atendidas.

Nesse contexto, podemos observar que diversas religiões, para satisfazerem suas crenças, se

contrapõem a tais evidências.

PALAVRAS-CHAVE: Causalidade; Religião Natural; Desígnio; Milagres.

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ABSTRACT

The purpose of the dissertation will be to present and defend Hume’s arguments about the

possibility of the knowledge of God from the causal perspective. Considering that the author

attempts to ground philosophy as a rigorous science, it will rely on criteria that can be

empirically justified. All things, therefore, which do not meet these criteria will be called

irrational or illusory. Starting from Hume’s empirical rigor, the first chapter will be devoted to

the analysis of the question of causality in its origin and nature, since it is the background of

the problems that will be developed in the subsequent chapters. In the second chapter, the

object of study will be the problematic of the argument of the design, which defends the

position that the existence of God can be known in a posteirectional way, from the analysis of

the order and functionality of the world. This position is harshly criticized by Hume, however,

his criticisms are questionable because they are expressed through characters and not directly

assumed as the author. In the third chapter, we will try to understand if it is possible to

rationally justify the belief in the occurrence in miraculous facts, taking into consideration

that the empirical evidences are not met. In this context, we can see that various religions to

satisfy their beliefs counteract such evidence.

KEY-WORDS: Causality; Natural Religion; Design; Miracles.

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SIGLAS

T – Tratado da Natureza Humana (T, livro, parte, seção, parágrafos)

EHU – Investigação Acerca do Entendimento Humano (EHU parte, parágrafo)

DNR – Diálogos da Religião Natural (DNR, Parte, página)

CRP – Crítica da Razão Pura (CRP, parte, parágrafo)

Resumo – Resumo do Tratado da Natureza Humana (Resumo, página)

HNR – História da Religião Natural (HNR, seção, página)

Ensaios – Ensaios Acerca do Entendimento Humano (Ensaios, livro, parte, parágrafo)

HE – História da Inglaterra (HE, seção, página)

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SUMÁRIO

INTRODUÇ Ã O .......................................................................................................................... 9

Capítulo I - ANÁ LISE DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE .............................................. 12

1.1 As operações da mente humana ...................................................................................... 14

1.1.1 A origem das ideias .................................................................................................. 14

1.1.2 Princípios associativos das ideias ............................................................................. 18

1.2 Sobre a distinção dos objetos da razão humana .............................................................. 21

1.2.1 Hume’s Fork ............................................................................................................. 23

1.3 Dinâmica do princípio causal ......................................................................................... 28

1.3.1 A ideia de conexão necessária .................................................................................. 29

1.3.2 A inferência causal ................................................................................................... 32

1.3.3 A crença causal......................................................................................................... 37

Capítulo II - A RELIGIÃ O NATURAL E A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO DE

DEUS ........................................................................................................................................ 40

2.1 A religião natural: do politeísmo ao monoteísmo ........................................................... 42

2.1.1 Distinção entre providência particular e providência original ................................. 48

2.2 Análise do argumento do desígnio .................................................................................. 55

2.3 Os personagens dos Diálogos e suas teses ...................................................................... 58

2.3.1 Posição de Demea: fideísmo .................................................................................... 58

2.3.2 Posição de Cleantes: argumento do desígnio ........................................................... 60

2.3.3 Posição de Filo: ceticismo ........................................................................................ 62

2.4 Debate acerca da existência de Deus e sua natureza....................................................... 63

Capítulo III - A POSSIBILIDADE DOS MILAGRES ............................................................ 81

3.1 A questão dos milagres e do uso dos testemunhos ......................................................... 82

3.3 A história de Joana d’Arc ............................................................................................... 92

3.3 Análises de Flew e Fogelin acerca da perspectiva humeana de milagre ........................ 95

3.4 A questão da fé de Hume ................................................................................................ 97

CONCLUSÃ O ........................................................................................................................ 102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁ FICAS ................................................................................... 108

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INTRODUÇ ÃO

Este trabalho tem como objetivo a apresentação dos argumentos de David Hume

acerca da possibilidade do conhecimento de Deus a partir da perspectiva do princípio de

causalidade. Essa problemática pode ser entendida como uma das principais do século XVIII.

Nesse contexto, podemos ressaltar a figura Hume que é considerado um dos grandes filósofos

britânicos1 pela extensão e profundidade de seu pensamento acerca das diversas temáticas

epistemológica, metafísica, moral e, sobretudo, religiosa.

Com relação à temática religiosa, podemos afirmar que Hume demonstrava-se

cauteloso em sua escrita, por receio das consequências junto às autoridades eclesiásticas.

Entretanto, seu esforço não foi suficiente, pois seus escritos não deixaram de serem lançados

no Index Librorum Prohibitorum em 1761. Dentre os intelectuais da época, foi acusado de

cético extremo – fruto de uma linha de interpretação tradicional – e de ateu – por sua postura

diante de alguns posicionamentos religiosos. Hume chegou a ser considerado “inimigo da

religião”, em 1756, pela Igreja da Escócia, mas, posteriormente, essa grave acusação foi-lhe

retirada. Pela postura dos argumentos humeanos destinados à religião, podemos, de acordo

com as palavras de Gaskin, afirmar: “A crítica de Hume à religião e à crença religiosa é, como

um todo sutil, profunda e prejudicial para a religião de uma forma que não tem antecedentes

filosóficos e que teve poucos sucessores” (GASKIN, 2009, p. 480).

Para que possamos cumprir o objetivo deste estudo, devemos, primeiramente,

estabelecer as bases epistemológicas que se assentam os conceitos fundamentais da crítica

humeana à religião natural.

Desse modo, no capítulo primeiro, pretendemos realizar a análise da origem, natureza

e fundamentação do princípio de causalidade, pois, sendo um importante pressuposto,

background assumption, sua compreensão torna-se indispensável para o desenvolvimento das

questões religiosas. Nesses termos, trataremos da distinção feita por Hume entre impressões e

1 “Hume es sin duda una de las figuras más influyentes de la historia de la filosofía. Pero a pesar de ser uno de

los filósofos más importantes, no ha sido siempre de los más conocidos. De hecho, aunque Hume llegó a ser un

autor bastante popular en su época, su filosofia provocó más rechazos que aceptaciones, fruto de unas

posiciones que, fieles a su método, se enfrentaban a las crencias más extendidas en su entorno cultural. Con

posterioridad a la muerte de Hume, su papel en la historia de la filosofía se redujo prácticamente a ser el

despertador del sueno dogmático de Kant y se considero que la mayoría de los problemas propuestos por Hume

se resuelven o superan a través de la filosofia de Kant. Fue a principios del siglo XX cuando la filosofía de

Hume resurgió y se le empezó a considerar como un autor clave en la historia de la filosofía y como pensador

que aún tiene mucho que ensenarnos” (CABEZAS, 2008, p. 7).

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ideias, uma vez que se pressupõe que para toda ideia exista uma impressão correspondente; de

modo contrário, se uma ideia não tem uma gênese na impressão, é vazia. Por conseguinte,

buscaremos compreender como essas ideias se organizam na mente humana investigando o

papel elaborado pelas faculdades da memória e da imaginação.

Hume afirma que todos os conteúdos formulados pelas ideias presente na mente

humana são distinguíveis em relações entre ideias e questões de fato. Dessa forma,

priorizando a análise das questões de fato, observa que as ideias se associam de acordo com

três princípios associativos, a saber: semelhança, contiguidade e causalidade. Ao voltar sua

atenção para o princípio de causalidade, quer-se analisar sua natureza e suas consequências

para a natureza humana. Por intermédio da observação da ordem e regularidade com que a

natureza se apresenta aos sentidos, a mente humana, guiada pela constância sucessiva dos

eventos e influenciada pelo hábito ou costume, sugerirá que entre os eventos haja uma

conexão causal. Por conseguinte, habituados a esperar que a natureza mantenha sua

regularidade haverá um fortalecimento da crença causal. Esta que por sua vez está fundada na

probabilidade. A investigação deste princípio e suas implicações são necessárias, uma vez

que, como já dissemos, servem como pressuposto para as investigações propostas no capítulo

II, estabelecendo ligações diretas entre a perspectiva causal e sua crítica à religião natural.

No capítulo II, almejamos, através da investigação da crítica de Hume à religião

natural, verificar a possibilidade do conhecimento de Deus – sua origem e natureza – a partir

da concepção de causalidade analisada no primeiro capítulo. Nesse contexto, dividiremos

nossa pesquisa em duas partes: a primeira parte abarca a análise histórica feita por Hume,

contida na História natural da religião, que busca compreender se a origem da religião é

predeterminada ou produto da natureza humana. Buscando compreender os efeitos oriundos

da religiosidade na vida e na conduta humana, Hume distinguirá o teísmo supersticioso do

teísmo genuíno, compreendendo o progresso reflexivo humano do entendimento da

divindade. Embora não seja uma obra, de fato, filosófica, podendo ser denominada de

antropologia religiosa, sua análise torna-se necessária, pois questionará o surgimento e o

desenvolvimento do sentimento religioso no homem.

A segunda parte do segundo capítulo será dedicada à investigação do argumento do

desígnio, temática central dos Diálogos sobre a Religião Natural, que defende que a

existência de Deus pode ser comprovada de modo a posteriori. Essa obra foi redigida em

forma de diálogo retratando os argumentos dos personagens Demea, Cleantes e Filo, com o

intuito de velar as verdadeiras posições de Hume referente à temática religiosa. Por isso que a

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leitura e interpretação dos Diálogos de Hume torna-se tarefa de complexidade ímpar em

relação a seus contemporâneos.

O debate do argumento do desígnio entre Cleantes e Filo, que envolve as rodas de

conversa da sociedade britânica como um todo, é a espinha dorsal dos Diálogos. Cleantes

defenderá que a partir da experiência dos fenômenos da natureza podemos identificar certa

ordem e regularidade no universo que são elementos que podem justificar a existência de um

ser de infinita inteligência, justiça, bondade. Por outro lado, Filo usará argumentos que

demonstram a fragilidade contida nesse argumento como, por exemplo, a incompatibilidade

da existência de um Deus e a observação dos males no mundo. Para tanto, buscando

alternativas ao argumento do desígnio, Filo objeta que através da experiência organizacional

do universo, pode-se considerar a possibilidade da própria natureza se auto-organizar. No

final dos Diálogos parece haver, por parte de Filo, uma concordância relativa ao argumento

do desígnio. No entanto, este serve para demonstrar a habilidade de Hume no uso da

linguagem, como um véu de discrição acerca de sua posição na obra. Entretanto, após a

investigação do argumento do desígnio nos restam algumas questões em aberto como, por

exemplo, a questão dos milagres, que será exposta no próximo capítulo.

Após a investigação da crítica humeana ao argumento do desígnio, no terceiro e último

capítulo dessa pesquisa, buscaremos, em primeiro lugar, investigar a possibilidade da

existência de milagres, presente no ensaio Dos milagres, e, por conseguinte, se eles podem ser

justificados a partir de testemunhos. A pressuposição da existência de um milagre

fundamenta-se na descontinuidade da constância da natureza, considerando que as questões

de fato, baseiam-se na aparente conexão causal estabelecida mentalmente pelo hábito,

consequentemente, torna-se inviável a crença em milagres. O testemunho, por conseguinte,

afirmará Hume, além das inúmeras circunstâncias para considerar sua legitimidade (como

caráter, número) só é digno de crença se a sua negação for de natureza mais miraculosa que o

fato testemunhado.

Para o desenvolvimento desta dissertação, utilizaremos principalmente as seguintes

obras de Hume: Tratado na natureza humana (Trad. Déborah Danowski), Investigação

acerca do entendimento humano, Resumo do tratado da natureza humana, História natural

da religião (Trad. Jaimir Conte) e Diálogos acerca da religião natural. Além das obras

humeanas, também contribuíram para essa pesquisa os comentários de Gaskin, Flew, Fogelin,

Monteiro, Noxon, Beebe dentre outros pesquisadores reconhecidos por interpretar de modo

profícuo a filosofia de David Hume.

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Capítulo I - ANÁLISE DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE

Esta parte da dissertação tem como escopo apresentar os principais argumentos de

Hume acerca da possibilidade do conhecimento de Deus a partir da perspectiva causal.

Considerando que Hume tenta fundamentar a filosofia como uma ciência rigorosa segundo

critérios passíveis de ser justificados empiricamente, as teses que não passarem por

determinados crivos eram consideradas irracionais ou ilusórias. Isto posto, entendemos que,

primeiramente, devemos nos debruçar sobre o estudo de um importante pressuposto, ou

background assumption, que é o princípio da causalidade avaliado em termos de sua origem,

natureza e fundamentação. A compreensão deste princípio é a chave de reconstrução dos

argumentos humeanos referentes à sua filosofia em geral e às questões religiosas em especial.

As questões que são objeto do presente estudo só conseguirão ser efetivamente enfrentadas

através da discussão preliminar relativa a como Hume encara a problemática da causalidade.

Partindo do rigor empírico que Hume pretende aplicar na construção de sua filosofia,

este primeiro capítulo se dedica à análise da problemática da causalidade, em seus

fundamentos, já que é o substrato epistemológico essencial das questões substantivas que

serão tratadas nos capítulos subsequentes. Em consonância com programa epistemológico

humeano, impõe-se considerar que toda ideia presente na mente humana tem uma impressão

correspondente. Esta visão introduzida por Hume parte da divisão das percepções humanas

entre impressões e ideias, ou melhor, entre sentir e pensar. Sempre que houver alguma dúvida

acerca da origem de determinada ideia, devemos nos reportar à impressão que lhe

corresponde. É assim que Hume formula o célebre método do desafio na Investigação sobre o

Entendimento Humano: “Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo

empregado sem nenhum significado ou idéia — o que é muito freqüente — devemos apenas

perguntar: de que impressão deriva esta suposta ideia?” (EHU II, 17). Este é o método2

utilizado por Hume para designar que todos os objetos presentes na mente humana têm uma

impressão que lhe corresponda. A indagação “de que impressão deriva esta suposta ideia?” é

proposta por Hume como uma exigência empírica capaz de evitar as construções abstrusas e

sem referentes que inundam a filosofia especulativa. O “método do desafio” cobra que cada

2 A questão – “de que impressão deriva esta suposta ideia?” – levantada por Hume pode ser entendida como o

“método do desafio”, que consiste em desafiar qualquer pessoa, que não esteja seguro que para toda ideia existe

uma impressão correspondente, a demonstrar uma ideia que não tenha como premissa uma impressão.

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pessoa indique a cadeia experimental e conceitual que levou à formação de determinada ideia.

O pressuposto é o de que para toda ideia exista uma impressão correspondente, próxima ou

distante, de tal modo que se uma ideia não tem uma gênese na impressão é vazia.

Seguindo o itinerário filosófico proposto por Hume, buscaremos analisar como as

ideias se organizam na mente e como as faculdades da memória e imaginação exercem seus

papéis na elaboração delas. Com o intuito de salvaguardar a inteireza do pensamento

humeano, presente tanto na Investigação como no Tratado, partiremos da análise das ideias,

exporemos a distinção que Hume estabelece entre os dois tipos de conhecimento: relações de

ideias (relations of ideas) e questões de fato (matters of facts). As primeiras têm caráter

universal e necessário, pois estão vinculadas ao raciocínio demonstrativo da matemática

(Geometria, Aritmética, etc) estribado no princípio da não-contradição. As segundas, por se

reportarem a conteúdos empíricos são verdades, na melhor das hipóteses, contingentes. A

estas será prioritariamente dedicada a atenção de Hume. E no conjunto das matters of facts,

Hume priorizará a temática da causalidade3.

Por último, nossa atenção se voltará especialmente para a análise da natureza do

princípio causal e suas consequências para o entendimento do que vem a ser a natureza

humana. Primeiramente, trata-se de compreender como as ideias presentes na mente humana

são importantes para o processo causal e como a partir delas surge a ideia de conexão

necessária. Outro ponto importante a ser investigado é o hábito ou costume e qual é o seu

papel no entendimento da questão causal. Por fim, impõe-se saber o que é a crença e como ela

exerce influência sobre o conhecimento humano. Esses tópicos são importantes para uma

efetiva compreensão da questão da causalidade e seu impacto sobre os pontos relacionados

com a questão religiosa.

3 Tendo em vista esquema teórico de Hume, podemos observar que ele divide os objetos da mente em relações

de ideias e questões de fato. Após essa divisão, voltando-se para as questões de fato, as quais ele julga como as

mais importantes para o estudo da natureza humana. Ainda sobre as questões de fato, Hume destaca os princípios

associativos de semelhança, contiguidade e causalidade, sendo que sobre essas últimas é que ele devota sua

investigação.

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1.1 As operações da mente humana

A problemática epistemológica da causalidade pode ser considerada o eixo central da

filosofia humeana, pois ela é a chave de interpretação para diversas questões substantivas

presentes em seus escritos. Nesse contexto, em que se entende a centralidade desse tema para

análise que nos propomos a realizar, devemos, a partir da distinção entre impressões e ideias,

nos colocar, como Hume, a seguinte questão: de que impressão deriva esta suposta ideia?”

(EHU II, 17). Essa questão direciona nossa pesquisa para o entendimento da problemática

acerca das origens das ideias e como que elas funcionam como elementos-chave para a

compreensão da noção de causalidade. Sendo assim, na abordagem desse item, trataremos da

origem das ideias e, por conseguinte, de quais são os princípios que fazem com que elas se

associem na mente humana.

1.1.1 A origem das ideias

Como podemos constatar seguindo os argumentos de Hume, tanto no Tratado como

nas Investigações, todos os conteúdos da mente humana são derivados da experiência. Dessa

forma, Hume se utiliza do termo percepção4 para designar os conteúdos geral da mente

humana. A percepção se divide entre impressões e ideias (Cf. T 1. 1. 1. 1); estas se distinguem

“... pelos seus diferentes graus de força e vivacidade” (EHU II, 12). As impressões são, de

acordo com as palavras de Hume, “... todas as nossas percepções mais vivazes, quando

ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos” (EHU II, 12). Sendo

que, na concepção filosófica de Hume, “todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são

cópias de nossas impressões, ou percepções mais vivas” (EHU II, 13).

Em síntese, uma vez que podemos distinguir nossas percepções, saberemos com

alguma evidência que a experiência imediata de alguma sensação é o que chamamos de

impressão; e, posteriormente, o pensamento que teremos sobre a sensação que não estamos

4 “Locke classifica todas as percepções, incluindo as sensações, pensamentos e paixões, sob o termo “ideias”,

enquanto que Hume usa o termo “percepção” para definir o conteúdo geral da mente, dividindo as percepções

em impressões e ideias” (COVENTRY, 2011, p. 55).

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mais experimentando é o que chamamos de ideia (Cf. COVENTRY, 2011, p. 55). Essa

distinção é reforçada por Hume no Resumo do Tratado na Natureza humana com as seguintes

palavras: “Essa distinção é evidente; tão evidente como a distinção entre sentir e pensar”

(Resumo, p. 47) 5

.

Segundo Hume, há duas espécies de ideias, as simples e as complexas. Para as ideias

simples existem impressões simples que a elas correspondem, porém nem todas as ideias

complexas encontram sua correspondente nas impressões. Nesse caso, as impressões simples

e suas ideias derivadas são aquelas que não admitem separação ou distinção, pois representam

uma unidade. Por isso não podem ser analisadas em suas minúcias. Por outro lado, as

impressões complexas são compostas por um encadeamento de impressões simples, visto que

a partir de um único objeto pode ser extraída mais de uma impressão.

O pensamento humano, que à primeira vista parece ilimitado, se revela, após

analisarmos esta questão, submetido a limites preestabelecidos pela experiência. Desse modo,

o estudo da divisão entre ideias simples e complexas nos faz enxergar esses limites, uma vez

que, por meio da observação, perceberemos que existem algumas ideias complexas que não

têm correspondência com qualquer impressão. A respeito desse “enigma”, Hume salienta:

Mas, embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade

ilimitada, examinando o assunto mais de perto vemos que em

realidade ele se acha encerrado dentro de limites muito estreitos e que

todo o poder criador da mente se reduz à simples faculdade de

combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos

pelos sentidos e pela experiência (EHU II, 13).

A explicação de Hume acerca dos limites da mente humana pretende mostrar que se

por um lado, os objetos da mente dependem estritamente da experiência, percebemos que, por

outro lado, não existem, ao contrário do pensamento racionalista, ideias inatas na mente do

homem (Cf. EHU II, 17).

Através do entendimento do princípio da cópia, que consideramos que as ideias, em

sua gênese, dependem dos elementos fornecidos pela experiência, conseguiremos esclarecer o

enigma acerca da liberdade do pensamento humano. Nesse sentido, a ligação desse princípio

com as relações entre impressões e as ideias pode assegurar que as ideias simples

originalmente dependem das impressões simples. Por isso, Hume afirma que: “todas as nossas

5 “This distinction is evident; as evident as that betwixt feeling and thinking”.

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ideias simples, em suas primeiras manifestações, são derivadas de impressões simples, que

são correspondentes a elas, as quais representam de maneira exata” (T 1. 1. 1. 7). No entanto,

nas ideias complexas não conseguimos encontrar, em sua totalidade, uma correspondência

direta com sua impressão, como ocorre entre as ideias e impressões simples, pois a

imaginação, ao atuar sobre as ideias, as transpõe e através de uma nova combinação podendo

aumentar ou diminuir determinada ideia. Entretanto, à primeira vista, as ideias complexas não

parecem ter nenhuma ligação com qualquer impressão, mas por meio de uma minuciosa

análise, percebemos que suas composições derivam de ideias simples e a partir dessas ideias

podemos verificar a correspondência com a impressão6. Analisando os argumentos de Hume

diante daqueles que rejeitam tal posição, Vergez afirma: “Hume convida-os então a procurar

as ‘impressões’ autênticas. Não se trata de reduzir tudo ao plano do sensorial. Antes se trata

duma crítica à linguagem, de um convite para reencontrar o pensamento vívido, actual”

(VERGEZ, 1984, p. 19)7.

Nesse sentido, mesmo aquelas ideias que a princípio carecem de uma impressão

correspondente precisam ser analisadas detalhadamente a fim constatar sua ligação com

alguma percepção originária, isto é, de que impressão determinada ideia deriva. Esse crivo

epistemológico humeano, de compreender de que impressão deriva determinada ideia, é o

método que devemos aplicar acerca da ideia que o homem tem de Deus, como um ser de

suprema sabedoria, inteligência e bondade, que, de acordo com as palavras de Hume, “...

surge das reflexões que fazemos sobre as operações de nossa mente, aumentando num grau

ilimitado essas qualidades de sabedoria e bondade” (EHU II, 14). Ao demonstrar que as ideias

presentes na mente dos homens são cópias das impressões (princípio da cópia), o objetivo de

Hume é exaurir “... esse jargão que por tanto tempo dominou os nossos raciocínios

metafísicos e os tornou inaceitáveis” (EHU II, 17), e os que desejam negar esta proposição

devem apenas “... apresentarem uma ideia que, na sua opinião, não derive desta fonte” (EHU

II, 14).

6 Acerca da origem das impressões, André Vergez esclarece que: “ na realidade, Hume não se interroga sobre a

origem das impressões. Para ele as impressões são dados originários, para além dos quais não se pode remontar”.

Podemos, contudo, nos perguntar se Hume, por não se interrogar acerca da origem da impressão, poderia

defender um certo inatismo em relação à impressão, porém, continua Vergez, “‘Se se entender inato o que é

primitivo, o que não é cópia de nenhuma impressão anterior, então podemos afirmar que todas as nossas

impressões são inatas que as nossas ideias o não são’” (VERGEZ, 1984, p. 18). 7 Vergez afirma também, em paralelo com a posição com Laporte, acerca dessa postura humeana de procurar

pela impressão fonte, que salienta-se não o preconceito com o sensualismo, mas ao contrário, há uma aversão ao

verbalismo. (Cf. VERGEZ, 1984, p. 19).

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17

Com relação à questão da origem das ideias, Hume afirma que as percepções

originárias, ao atingirem a mente humana, dividem-se entre aquelas que são produzidas pela

memória e as que o são pela imaginação. A faculdade da memória é a que mantém a

vivacidade da impressão e a tenuidade da ideia, isto é, a que preserva a forma original da

percepção (Cf. T 1. 1. 3. 1), assim como a ordem e a posição com que foi percebida. A

faculdade da imaginação, ao contrário da memória, não consegue manter a vividez da

impressão original. Desse modo, surgem ideias lânguidas que não preservam a forma a ponto

de, por conseguinte, haver a possibilidade de transpor e mudar as ideias a bel-prazer (Cf. T 1.

1. 4. 3).

Levando em consideração a liberdade8 que contém a faculdade da imaginação –

transpor, recortar, transformar e combinar (Cf. EHU II, 13) – é possível que ela quebre as

ideias em partes e as ordene formando outras novas. Desse modo, acrescenta Coventry: “...

Hume acha que qualquer coisa que a imaginação acha distinguível é capaz de existir

separadamente, ou qualquer coisa capaz de existir separadamente é distinguível pela

imaginação” (COVENTRY, 2011, p. 66.). Assim, as ideias complexas que são capazes de

existir separadamente são distinguíveis uma das outras, o que pode ser chamado de princípio

da separabilidade9. Por intermédio dele, podemos entender o surgimento de novas ideias na

mente sem que haja uma ligação direta com sua impressão correspondente.

Na perspectiva em que é proposto o conceito de princípio da separabilidade, verifica-

se que ele é formulado para salientar a habilidade da imaginação de distinguir as ideias

complexas das ideias simples e, consequentemente, tornam-se, através da imaginação,

possíveis de uma recombinação10

. Sendo assim, ao verificar que as ideias simples, em si

mesmas, não admitem nenhuma distinção por serem entendidas como “limite” da atividade de

separação e distinção, de outro modo, as ideias complexas são distintas em suas partes (em

8 Ao salientarmos a liberdade contida na faculdade da imaginação, esta que, de acordo com Hume, “... pareça

possuir essa liberdade ilimitada” (EHU II, 13), no entanto, ela caminha dentro dos limites impostos pelas

impressões simples. Essa liberdade da imaginação é o que exige a postulação de certos princípios, uma vez que,

a permanência da união daquilo que não é inseparável exige princípios associativos que expliquem essa

permanência. 9 Vale lembrar do artigo do Carlos Alberto Ribeiro de Moura (2001, p. 111-132) sobre a crítica humeana da

razão onde o princípio empirista é tributário do princípio atomista (ou princípio de separabilidade, modo pelo

qual o autor se refere a tal princípio). De acordo com esse autor o princípio atomista possui grande importância

para a filosofia humeana, podemos citar como exemplo, usado pelo autor em seu ensaio, a questão referente à

ideia de conexão necessária em que a ideia de efeito pode ser separada da ideia de causa. Daí se conclui que a

relação causal não pode ser objeto da razão pura. 10

Leonardo Porto Sartori, ao comentar sobre o princípio de separabilidade, introduz um novo conceito, a saber:

atomismo mental. Este conceito em sua natureza manifesta o mesmo modo do conceito de separabilidade, uma

vez que, de acordo com as palavras de Porto, “Impressões e ideias simples são aquelas que não admitem

nenhuma ‘distinção ou separação’, ou seja, são átomos mentais” (PORTO, 2006, p. 27).

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18

ideias simples), uma vez que, como sugere Hume, “... que não existem duas impressões que

sejam perfeitamente inseparáveis” (T 1. 1. 3. 4).

Com base no entendimento do princípio de cópia e do princípio de separabilidade,

podemos destacar as relações existentes entre impressões e ideias. Nesse sentido, com relação

às ideias simples percebemos com mais facilidade sua derivação de impressões simples, que

nos assegura afirmar que, mantendo sua integralidade, não dependem de qualquer ligação ou

construção da mente. No que tange às ideias complexas, percebemos que elas nem sempre

derivam de impressões complexas, mas que necessitam dos pressupostos da experiência para

que sejam compostas como, por exemplo, a ideia do Centauro, Minotauro e outras figuras da

mitologia, que surgem da combinação de diversas ideias e formando outras que não tem

qualquer relação direta com a experiência. Por isso, quando surgir qualquer dúvida com

relação à origem de determinada ideia, devemos recorrer às percepções simples que as

originam.

Caso se entenda, a natureza da imaginação na ordenação das ideias, mesmo que por

sua vontade, segue alguns limites impostos pela experiência, pode-se verificar a necessidade

de alguns mecanismos associativos para a composição das ideias.

1.1.2 Princípios associativos das ideias

Apesar de certa liberdade da imaginação, é evidente, descreve Hume, “... que existe

um princípio de conexão entre os diversos pensamentos ou ideias do intelecto e que, no se

apresentarem à memória ou à imaginação, são introduzidos uns pelos outros com certo grau

de método e regularidade” (EHU III, 18). No que tange à relação de ideias, Hume as discute

de forma mais ampla no Tratado, enquanto que nas Investigações são analisadas de forma

sintética, no entanto, preserva a mesma visão do trabalho anterior11

.

11

Podemos observar que no Tratado, obra com menor atenção do público geral, Hume procurou formular de

forma mais extensa e rigorosa a referida tese. Hume inicia, já na primeira parte do livro 1, parte 1, seção 5,

enumerando de forma exaustiva sete tipos de “relações filosóficas”. Esta temática é retomada na terceira parte

desse livro, que inicia justamente com a subdivisão das sete relações em dois grupos (Cf. T 1. 1. 5. 1): Primeiro,

as que “dependem unicamente das idéias que comparamos”: semelhança, proporção em quantidade ou número,

graus em qualquer qualidade, e contrariedade; segundo, as que “podem ser mudadas sem nenhuma mudança nas

idéias” relacionadas: identidade, relações de tempo e lugar, e causação. Somente as relações do primeiro tipo

“podem ser objeto de conhecimento e certeza”; elas são o “fundamento da ciência” (Cf. T 1. 1. 5. 1-10). Dentre

as quatro primeiras, três “podem ser descobertas à primeira vista”, ou seja, de modo intuitivo: semelhança, graus

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19

Ao se pensar sobre a liberdade com que a imaginação age relacionando as ideias, com

real destaque para a formação de ideias complexas, verifica-se que existem princípios ou

qualidades associativas como a semelhança, a contiguidade – no espaço e no tempo – e a

causa e efeito (Cf. EHU III, 19), que atuam na mente do homem que, como afirma Coventry,

“... não deveria ser considerado como uma ‘conexão inseparável’ entre as ideias, mas sim

como uma ‘força gentil’ conectando nossas ideias” (COVENTRY, 2011, p. 67). Desse modo,

quando há entre as ideias uma associação12

– de semelhança, de contiguidade ou de causa e

efeito –, na visão humeana, elas conectam-se em nossa mente, fazendo com que sejam

naturalmente introduzidas13

, sem que percebamos, como se fossem princípios secretos14

.

Dessa forma, podemos perceber que as ideias são conectadas umas às outras de acordo com

os princípios elencados, associando (a) as ideias simples separadas formando ideias

complexas e (b) associando as ideias independentes segundo à experiência passada.

De acordo com o Tratado, Hume nega que possamos conhecer as causas pelas quais

associamos as ideias (Cf. T 1. 1. 4. 6), em virtude de rejeitar qualquer hipótese que possa ser

em qualquer qualidade e contrariedade. Deste modo, somente podem requerer alguma demonstração as relações

de proporção em quantidade ou número. Das relações supracitadas as que interessa a Hume são as relações do

segundo grupo, a saber: identidade, relações de tempo e lugar, e, especialmente, causação. Hume começa seu

estudo esclarecendo a noção de raciocínio. “Todos os tipos de raciocínio consiste apenas em uma comparação, e

de uma descoberta das relações [...] entre dois ou mais objetos” (Cf. T 1. 1. 4. 4). Percebendo a abrangência de

tal questão, Hume imediatamente acrescenta “... que quando os dois objetos estão presentes aos sentidos,

juntamente com a relação, chamamos a isso antes de percepção que de raciocínio – pois neste caso não há,

propriamente falando, um exercício do pensamento, e tampouco uma ação, mas uma mera admissão passiva das

impressões pelos órgãos da sensação. De acordo com esse modo de pensar, não deveríamos considerar como

raciocínio nenhuma das observações que se podem fazer respeito da identidade e relações de tempo e espaço.

Em nenhuma delas, a mente é capaz de ir além daquilo que está imediatamente presente aos sentidos, para

descobrir seja a existência real, seja as relações dos objetos. Apenas a causalidade produz uma conexão capaz de

nos proporcionar uma convicção sobre a existência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra

existência ou ação” (Cf. T 1. 1. 5. 1-10). Este ponto a que Hume chega é o mesmo ponto ao que chegou na

Investigação e o citamos anteriormente, contudo, através de um processo de enumeração e exclusão. 12

Em relação a tais princípios associativos, Hume afirma, no Resumo do tratado da natureza humana, que sua

filosofia não nutre grandes pretensões, “... mas se qualquer coisa pode conferir ao autor um título tão glorioso

como o de inventor, é o uso que ele faz do princípio da associação de idéias, que perpassa a maior parte de sua

filosofia”; “... but if any thing can intitle the author to so glorious a name as that of an inventor, 'tis the use he

makes of the principie of the association of ideas, which enters into most of his phiiosophy” (Resumo, p. 118-

121). 13

Acerca desta força gentil pela qual as ideias são associadas umas às outras pela imaginação, Coventry afirma:

“A força gentil é compatível à força da atração gravitacional. Assim como a lei universal da gravidade de

Newton é responsável pelo movimento e subsequente posição de todas as partículas físicas no universo, também

os Princípios de Associação de Ideias são responsáveis por todos os fenômenos psicológicos, explicando como e

por que as várias percepções acontecem na mente. Uma outra possível influência em Hume é a de Hobbes, que

dedicou um capítulo inteiro na sua obra Leviatã àquilo que chamou de ‘Consequência ou Trem das

Imaginações’, que é a ‘sucessão de um pensamento após o outro’” (COVENTRY, 2011, p. 67). 14

“As hipóteses de Hume dizem respeito aos princípios da natureza humana, e é perfeitamente claro que, se a

sua ciência aspira à descoberta de princípios secretos, seria absurdo supor que ela se interesse primacialmente

por causas observáveis. Se esses princípios são secretos, só pode ser porque são causas escondidas; se essas

molas são ocultas, só pode ser porque são mecanismos inobserváveis” (MONTEIRO, 1984, p. 43).

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20

concebida além da experiência. Sendo assim, Hume estabelece que a associação de ideias é

determinada pelos princípios gerais de associação, de modo que, não devemos nos prender a

especulações infrutíferas dos porquês da existência deles (Cf. COVENTRY, 2011, p. 68.).

Para reforçar o modo pelo qual as ideias são conectadas pela imaginação e reguladas

através de princípios associativos, Hume buscará, na Investigação, por meio de exemplos,

ilustrar como a mente humana é movida por tais princípios.

Primeiramente, por uma tendência natural da mente humana, as ideias são associadas

por semelhança. A imaginação exercitada por meio da semelhança entre os diversos tipos de

ideias, como, por exemplo, ao se observar uma pintura ou uma fotografia, a mente humana,

por sua natureza, tende a buscar ao original (Cf. EHU III, 19; Cf. Resumo, p. 123).

Já o segundo tipo de associação, a contiguidade no espaço e no tempo, tende a ligar as

ideias que decorrem de uma proximidade no espaço e no tempo, de tal modo que ao fazermos

menção a um apartamento em determinado prédio, naturalmente, passamos a nos perguntar

sobre os outros apartamentos (Cf. EHU III, 19; Cf. Resumo, p. 123).

O terceiro princípio, denominado de causa e efeito15

é o que, segundo o pensamento

humeano, contém maior extensão e produz uma conexão mais forte (Cf. T 1. 1. 4. 2). Na

Investigação, Hume se serve do exemplo do ferimento: ao pensarmos nele, sucessivamente

pensamos na dor que dele sucede (Cf. EHU III, 19). Desse modo, devemos considerar que

dois objetos sucessivos que estão presentes na experiência nos levam a pensar que um produz

o outro, isto é, estabelecemos esta conexão ao dizer que um deles é causa do outro, o qual, por

sua vez, se pode chamar de efeito16

. Para reforçar essa análise da causalidade, evocamos mais

um exemplo dado por Hume no Resumo, sobre o princípio associativo de causa e efeito “...

quando pensamos no filho, estamos aptos a transferir nossa atenção para o pai” (Resumo, p.

122-123)17

. Por essa mesma óptica, podemos concluir a respeito dos princípios associativos

de ideias na mente humana: “Será fácil conceber de quão vastas conseqüências devem ser

esses princípios na ciência da natureza humana, se considerarmos que, no que diz respeito à

15

Segundo Anthony Quinton, a explicação que sobre a relação de causa e efeito é, sem dúvidas, a parte da

filosofia de David Hume mais conhecida (Cf. QUINTON, 1999, p. 21). Sobre este princípio associativo, Quinton

diz: “Hume trata a causação como uma relação entre objetos antes de expor suas desconcertantes opiniões

céticas sobre o nosso conhecimento dos objetos, mas isso é porque ele considera que todas as nossas crenças

sobre questões de fato (...) são produtos de inferências causais” (QUINTON, 1999, p. 21). 16

Ao observamos uma causalidade entre os objetos podemos ser levados a pensar que eles, igualmente, contêm

em todas as suas formas certa semelhança e contiguidade. Contudo, Quinton alerta sobre este tipo de pensamento

ao dizer: “Nem a contiguidade, nem a sucessão são, de fato, essenciais a causação (...) Não é importante porque

contiguidade e sucessão são empiricamente não problemáticas; temos impressões de ambas” (QUINTON, 1999,

p. 22). 17

“... when we think of the son, we are apt to carry our attention to the father”.

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21

mente, são esses os únicos elos que atam entre si as partes do universo, ou que nos ligam com

qualquer pessoa ou objeto exterior a nós” (Resumo, p. 122-123)18

.

1.2 Sobre a distinção dos objetos da razão humana

Na literatura filosófica humeana, dentre inúmeros aspectos importantes a serem

investigados, destacamos uma importante distinção em sua teoria do conhecimento. Trata-se

da contraposição entre os dois objetos da mente humana:

Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-

se naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de idéias e questões

de fatos. Ao primeiro pertencem as ciências da geometria, da álgebra e

da aritmética e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou

demonstrativamente certa. (...) Os fatos, que são os segundos objetos

da razão humana, não são determinados da mesma maneira, nem

nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza

igual à precedente (EHU IV, 20).

De acordo com os argumentos de Hume, podemos, com certa evidência, distinguir, por

um lado, as relações entre ideias (relations of ideias) e, por outro, as questões de fato (matters

of facts) (Cf. EHU IV, 20). Sendo assim, essas modalidades marcam os limites da mente

humana, uma vez que, todos os seus objetos estão englobados dentre essas duas categorias.

Ainda sobre a distinção formulada por Hume, cabe observar que alguns dos seus

comentadores se utilizam de uma conhecida expressão para se referirem a ela: Hume's Fork19

.

Essa expressão é cunhada para designar propriamente a divisão dos dois objetos da mente

humana introduzidas por Hume e, que, em sequência, serão analisadas mais detalhadamente.

18

“Twill be easy to conceive of what vast consequence these principies must be in the science of human nature, if

we consider, that so far as regards the mind, these are the only links that bind the parts of the universe together,

or connect us with any person or object exterior to ourseives”. 19

O que pode designar por Hume’s Fork encontra-se localizado na obra Investigação acerca do entendimento

humana na seção IV, parte I, parágrafos 20-21. Devemos ter em vista que este conceito não é formulado por

Hume, mas foi sendo cunhado e introduzido por seus comentadores com o propósito de caracterizar este

fundamental ponto da filosofia humeana. Hume's Fork, contudo, é uma expressão empregada para designar o

modo com que Hume apresenta sua filosofia acerca dos objetos da razão humana.

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22

Levando em consideração as concepções epistemológicas de Hume, as questões

tratadas no Hume’s Fork20

são o objeto desse estudo, sobretudo, no que diz respeito às

questões de fato, visto que estas se voltam, prioritariamente, para a problemática causal.

Diante deste quadro, a partir das questões que ganham destaque nos escritos humeanos – tanto

no Tratado e na Investigação – buscaremos compreender os argumentos de Hume

direcionados à causalidade que, servindo como pano de fundo, nos ajudará a entender, em

termos racionais, os pontos cruciais da religião natural, sobretudo, no que diz respeito à

possibilidade do conhecimento da existência de Deus e seus atributos.

Para que possamos compreender melhor a distinção estabelecida por meio do conceito

Hume’s Fork podemos introduzir uma modificação nos termos empregados por Hume de

modo a torná-los mais contemporâneos ou mais familiares. Nesse caso, se pode propor

substituir relações entre ideias e questões de fato, por, respectivamente, verdades necessárias e

contingentes (ou analíticas e sintéticas)21

.

Vistas por esse prisma contemporâneo, as proposições que envolvem as relações entre

ideias – proposições da geometria, álgebra e aritmética, por exemplo, 3x5=15 – podem ser

consideradas universal e necessariamente verdadeiras, já que estão imunes às cambiantes

contingências dos fatos; já as proposições que envolvem as questões de fato – “a fruteira está

ao lado do computador” ou “a dor em meu dedo do pé foi causado por esbarrar em meu

armário” – se forem verdadeiras, deverão sê-lo de modo contingente. Dessa maneira, como

forma de esclarecimento, os termos contemporâneos, necessidade e contingência, delineiam

muito bem a proposta de Hume. Portanto, enquanto que as primeiras se referem às verdades

necessárias, proposições verdadeiras em todos os mundos possíveis, as últimas, em

contraposição, se referem às proposições de conteúdo veritativo contingente (Cf. VERGEZ,

1984, p. 20).

Desse modo, a partir da análise do entendimento da expressão Hume's Fork,

primeiramente, nas Investigações queremos relacioná-la com os elementos presentes no

Tratado. Por conseguinte, após a investigação do termo supracitado, queremos vislumbrar a

consequência do mesmo para o problema da causalidade.

20

Precisamos ter clareza sobre exatamente o que Hume pretende aqui, pois a compreensão de sua concepção

sobre semelhanças e diferenças entre as questões de fato e as relações entre ideias é crucial para entender suas

discussões do raciocínio causal e a origem da ideia de conexão necessária. Hume faz três distinções: a distinção

entre relações de classe A e as relações de classe B; a distinção entre o que pode e não pode ser demonstrado; e,

por último, a distinção entre o que pode e o que não pode ser conhecido com certeza. (Cf. BEEBE, 2006, p. 19). 21

Essa modificação empregada sobre os termos humeanos está, em certo modo, associada aos dois tipos de

inferências: dedutiva e indutiva (Cf. BEEBE, 2006 p. 19).

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23

1.2.1 Hume’s Fork

Os primeiros objetos da razão humana – relações entre ideias – são representadas por

proposições cuja verdade pode ser conhecida, simplesmente, pela inspeção das ideias. Basta

averiguar a veracidade de suas relações22

. Tais relações podem corresponder a verdades

apenas com base no significado dos relata. Tudo que está em questão são as relações lógicas

entre as ideias ou significado as palavras que compõem as sentenças. Assim, elas são

verdadeiras ou falsas a priori23

.

Para alargar o nosso conhecimento acerca das relações entre ideias, Hume recorre ao

princípio da demonstração presente na matemática, tornando-o uma espécie de fundamento

das relações entre ideias. Na Investigação, recorre ao modo típico de raciocínio matemático,

uma vez que só na ciência da Geometria, Álgebra e Aritmética se pode falar em “... afirmação

que seja intuitivamente ou demonstrativamente certa” (EHU IV, 20). Sendo assim, para

comprovar a veracidade das proposições que se fundam nas relações entre ideias, tomando a

matemática como modelo, cumpre ter presente que para serem verdadeiras não podemos

conceber que seu oposto seja acolhido, uma vez que, isso implicaria gerar contradição (Cf.

COVENTRY, 2011, p. 106).

A fim de esclarecer o emprego que Hume faz do emprego do método matemático

aplicado às relações de ideias, evocamos alguns exemplos dados por Hume a fim de que

possamos elucidar a referida relação: ao afirmarmos que 1+1=2 entendemos, por uma simples

operação do pensamento, essa relação entre ideias, mas se afirmamos, contraditoriamente, a

mesma soma com um resultado diferente saberemos rapidamente que há algum equívoco.

Desse modo, através do tipo de conhecimento provido pela matemática pode-se conhecer a

veracidade de uma proposição (ou de outra com ela incompatível) por meio de uma simples

inspeção das ideias e de suas relações. Se, por ventura, há algum equívoco em relacionar

determinadas ideias, detectaremos isso sem muito esforço (Cf. EHU IV, 20).

No que respeita à relação entre ideias, devemos considerar que, havendo verdade, será

de tipo necessário, já que podem ser intuitivas ou demonstrativamente certas, pois formam

22

Podemos dizer, como Coventry, que são relações lógicas pelas quais as ideias são relacionadas com certa

segurança e, de fato, não podem ser concebidas de modo falso (COVENTRY, 2011, p. 106). 23

O termo a priori não é utilizado por Hume em suas obras, porém seus comentadores por entender que as

relações de ideias podem ser conhecidas por uma simples inspeção de ideias, este termo a priori designa o modo

de conhecimento as ideias pela mente do homem, isto é, não dependem da experiência, de um conhecimento a

posteriori.

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24

proposições descobertas, segundo Hume, por uma “... simples operação do pensamento, sem

dependerem do que possa existir em qualquer parte do universo” (EHU IV, 20). Podemos

recorrer a outro exemplo dado por Hume a fim de que não reste dúvidas sobre as proposições

que representam relações entre ideias: “Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do

quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre estas figuras. Que

três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre estes números” (EHU

IV, 20). Nas palavras de Hume, não dependem de uma relação com alguma coisa existente no

universo, de tal modo que se nunca tivéssemos observado um círculo na natureza, as verdades

demonstradas por Euclides serviriam para manter a certeza e evidência da compreensão do

que seja um círculo24

.

Em suma, relações de ideias são sentenças que nada mais fazem que estabelecer

vínculos entre ideias; são por isso sentenças provedoras de um tipo de conhecimento

necessário e estabelecido de modo a priori. Em termos kantianos, são os juízos chamados de

analíticos25

. Visto que relações entre ideias são construídas e validadas por raciocínio lógico,

disto se segue que não nos fornecem nenhuma informação sobre as questões de fato, nem

sobre o que são e, muito menos, como se comportam.

No que respeita à relation of ideas, Hume concorda com a posição dos racionalistas

em defesa da existência de verdades demonstráveis. Contudo, em seus escritos, nota-se que há

uma diferença entre eles no que tange à importância dessas relações para a compreensão da

natureza do homem. Nesse sentido, a importância das relações entre ideias varia em função da

importância que se atribui a elas para a produção do conhecimento em geral. O aspecto de

serem vazias, desprovidas de informações sobre questões de fato e de existência26

, reduz em

muito a importância delas para quem é empirista.

24

Da mesma forma, quando sabemos que por intuição que azul marinho é mais escuro do que azul turquesa,

apenas inspecionando as nossas ideias, e o conhecimento assim adquirido não é conhecimento de algo que seja

externo a mente do homem, isto é, as ideias presentes em sua mente. (Cf. BEEBE, 2006, p. 32). Essa questão dos

diversos tipos de matizes iremos tratar de forma mais efetiva quando tratarmos dos Diálogos da Religião Natural

no próximo capítulo. 25

De acordo com as palavras de Kant, podemos entender essas relações de ideias propostas por Hume por meio

das proposições e juízos analíticos presentes na seção IV da Crítica da razão pura, ao afirmar: “Porque seria

absurdo fundar um juízo analítico na experiência, pois para formá-lo não preciso sair do meu conceito e por

conseguinte não me é necessário o testemunho da experiência” (CRP, «Introdução», IV). 26

A partir dessa informação, podemos citar alguns pontos conclusivos que Coventry ressalta acerca das relações

de ideias, são eles:

“∙ incluem tudo o que é intuitivamente ou demonstrativamente certo;

∙ negá-las envolve contradição;

∙ podem ser descobertas só pelo pensamento, sem evidencia alguma de algo existente;

∙ incluem pura matemática (geometria, álgebra e aritmética)” (COVENTRY, 2011, p. 107).

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25

As questões de fato, entendidas por Hume como o segundo objeto da razão humana,

são consideradas as mais importantes para a compreensão do conhecimento humano.

Destarte, as proposições acerca das questões de fato são verdadeiras por sua correspondência

direta com os dados provenientes da experiência27

. Em contraste com as relações entre ideias,

Hume, de modo sintético assim as caracteriza, “... não são verificadas da mesma forma; e,

tampouco a evidência de sua verdade, por maior que seja, tem a mesma natureza que a

antecedente” (EHU IV, 21). Dada a natureza das proposições acerca das questões de fato, sua

verdade só pode ser contingente. Sua negação é concebível distintamente e representa uma

possibilidade em relação ao modo com que a realidade se apresenta em determinado momento

(Cf. EHU IV, 21). Com base nessa visão, Hume passa a destacar um tipo de matters of fact:

“... todos os raciocínios sobre questões de fato parecem fundar-se nas relações de causa e

efeito” (EHU IV, 22). Além da relação de causa e efeito, priorizada entre as questões de fato,

há outras relações como semelhança e contiguidade, estas que serão analisadas mais adiante.

No que tange às proposições acerca das questões de fato, podemos entender que, de

acordo com Hume, se referem à realidade e, sem incorrer em contradição, abrem a

possibilidade de seu oposto, tendo em vista que, para ser verificada a sua verdade, suas

proposições dependem de condições e circunstâncias marcadas pela contingência. Sobre essa

problemática, Hume elabora o seguinte argumento-exemplo: “Que o sol não nascerá amanhã

não é uma proposição menos inteligível e não implica mais contradição do que a assertiva

contrária, de que o sol nascerá” (EHU IV, 21). Ao analisar essa proposição, Coventry

pondera o seguinte: “‘De que o sol vai surgir amanhã’ é uma declaração de uma certeza das

coisas em geral que aprendemos através da experiência. Faz perfeito sentido dizermos que o

sol não vai surgir amanhã, pois é possível conceber algo dessa situação” (COVENTRY, 2011,

p. 108.) Essa demonstração, implicada no exemplo dado por Hume, não pode gerar, por se

tratar de uma questão de fato, especificamente causal, conhecimento seguro que possa ser

justificado racionalmente. Mesmo porque, reiteramos, a negação de qualquer questão de fato é

sempre concebível (Cf. BEEBE, 2006, p. 32).

Como podemos observar sobre questões de fato, sobretudo, as causais, ao contrário

das relações de ideias, não podemos determinar se essas afirmações são verdadeiras

simplesmente inspecionando o significado das proposições. Por não se aplicar, nesse caso, o

27

Coventry corrobora com as afirmações de Hume, acerca da correspondência das proposições das questões de

fato com a experiência, afirma: “Isso é uma certeza das coisas em geral que aprendemos através da experiência”

(COVENTRY, 2011, p. 108).

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26

método matemático, tais questões estão atreladas à dimensão empírica, isto é, ao exame das

proposições concernentes às questões de fato, o que depende dos variados estados de coisas

encontráveis na experiência. No que tange às questões de fato, portanto, devemos considerar

que elas são verdadeiras ou falsas a posteriori, pois a sua verificação ocorre a partir dos dados

sensoriais que o homem experimenta de forma contínua, por isso não podemos emitir juízo

sem que antes se tenha observado uma determinada sucessão de eventos28

.

Por se tratar de questões de fato e por se ter de admitir sempre a possibilidade de seu

contrário, a mente do homem adapta-se facilmente à nova realidade, pois sabendo da natureza

contingente dos fenômenos, a concepção do seu oposto não implica em falsidade. Dessa

forma, as proposições podem ser verdadeiras apenas de modo contingente, uma vez que, sua

falsidade jamais poderá ser concebida como necessária (Cf. EHU IV, 22). Por conseguinte,

não há nenhuma contradição em se negar uma proposição sobre questões de fato e conceber o

seu oposto; algo que manifestamente não ocorre com as relações de ideias. Portanto, as

afirmações que fazemos sobre as questões de fato são proposições acerca dos fenômenos

componentes de uma natureza sujeita a variações abruptas e inesperadas. Só podem por isso

ser sintéticas, contingentes e cognoscíveis a posteriori29

.

Desse modo, ao definirmos o significado do Hume's Fork, faz-se mister estabelecer

um contraponto com Descartes antes de adentrarmos no problema da origem da ideia de

causalidade propriamente dito.

O modo com que Hume põe em destaque a experiência para construir sua filosofia é

diferente, situando-se nos antípodas do que propõe Descartes. Podemos considerar,

primeiramente, mesmo que brevemente, as teses que cartesianas30

formuladas nas Meditações

28

Coventry ao observar a natureza das questões de fato chega à conclusão de que as relações entre coisas

(objetos da natureza) estão baseadas na relação de causa e efeito e que estas, por sua vez, estão baseadas na

experiência (Cf. COVENTRY, 2011, p. 108). 29

A partir das informações concernentes a esse tipo de questão, podemos citar alguns pontos conclusivos que

Coventry ressalta acerca das relações de ideias, são eles:

“∙ não intuitivamente certas;

∙ negativa envolve não contradição;

∙ envolve existência ou não existência de algo;

∙ intui tudo abaixo da certeza da demonstração” (COVENTRY, 2011, p. 108). 30

“Há três aspectos cruciais do método de Descartes que são nitidamente opostos para Hume. Em primeiro

lugar, o interesse de Descartes é abertamente epistemológico em vez de genético: Descartes está interessado na

justificação de crenças empíricas, e não na forma como ou por que passamos a tê-los. Em segundo lugar, ele não

sustenta que o método de destruição e reconstrução da crença desenvolvido nas Meditações é um meio pelo qual

nós, de fato, viemos a ter crenças empíricas; nem que ele está recomendando que nós devemos seguir esse

método, a fim de adquirir essas crenças. Nós não precisamos passar pelo processo de dúvida cética radical e

reconstrução posterior de nossas crenças, a fim de acabar com crenças justificadas sobre o mundo; pelo

contrário, o fato de que poderíamos seguir esse método - que existe o método, e que por lendo as meditações

queremos entender como e por que ela funciona - mostra que pelo menos algumas de nossas crenças atuais são

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27

concernentes à primeira filosofia. Descartes inicia percurso argumentativo introduzindo o

método da dúvida (metódica), mostrando que todas as crenças baseadas em experiências

sensoriais são dubitáveis, isto é, são passíveis de serem postas em dúvidas, pois não oferecem

um conhecimento seguro (Cf. Meditações I, 2). Em seguida, na meditação segunda e na

terceira, Descartes pretende através do “ego sum, ego existo” (Meditações II, 4) 31

demonstrar

a validade dos raciocínios a priori acerca da realidade, que se inicia pelo eu. Nesse contexto,

para sustentar a validade dos argumentos a priori, Descartes recorre aos argumentos que

afirmam a necessidade da existência de Deus: “Por isso, do que foi dito deve-se concluir que

Deus existe necessariamente” (Meditações III, 24). E esse Deus não é enganador, e dada a sua

benevolência, não somos radicalmente enganados sobre a natureza do mundo. Desse modo,

seguindo o argumento cartesiano observa-se que o modo com que o homem enxerga o mundo,

isto é, a capacidade de julgar, é recebida de Deus. Uma vez que a natureza do homem está

encerrada em certos limites, os erros tratam da escolha errônea, pelo livre-arbítrio; por isso o

homem deve suspender o juízo caso haja qualquer dúvida. No entanto, devemos, nas palavras

de Descartes, buscar com maior zelo a verdade (Meditações IV, 17). Em suma, ele tenta

estabelecer todos os conteúdos presentes na mente humana devem ser justificadas por

intermédio de proposições claras e evidentes que podem ser supostamente conhecíveis a

priori.

Nesse sentido, de acordo com as concepções filosóficas de Descartes e Hume,

podemos destacar que, por um lado, Descartes, em seu programa privilegia o aspecto

epistemológico, o que faz com que a dúvida cética radical se faça presente já no início das

Meditações. Enquanto Hume, por outro lado, em sua Investigação afirma que o ceticismo é

necessário para que se desfaçam todas as crenças metafísicas que solapam a mente humana.

Nesse sentido, segundo Beebe, o ceticismo humeano deve ser empregado de modo atenuado,

de forma que não ameace afetar nossa capacidade de formar crenças, mas apenas a sua

justificação (Cf. BEEBE, 2006, p. 33).

O ceticismo de Hume, como entendido por ele, é mitigado. Nesse sentido, ao mesmo

tempo, que serve para curar o dogmatismo entranhado na mente do homem, quer verificar e

analisar os limites da razão. Por isso, podemos observar que a maioria dos homens sequer esta

consciente dos problemas céticos que podem emergir em seu cotidiano. E mesmo aqueles que

justificados. Hume, pelo contrário, como já disse, seu principal interesse reside na questão genética: como é que

vamos chegar a ter nossas crenças empíricas em primeiro lugar?” (BEEBE, 2006, p. 33). 31

“Eu sou, eu existo”

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se tornam conscientes da existência deles, não conseguem refutá-los e, se por acaso, logram

refutá-los os deixam rapidamente de lado e voltam às suas crenças mais primitivas. Nesse

contexto, Hume, ao propor um ceticismo mitigado, almeja, como diz Coventry, que “... um

grau de dúvida, cuidado e modéstia deveria sempre acompanhar uma pessoa razoável”

(COVENTRY, 2011, p. 211). Desse modo, devemos entender que o ceticismo proposto por

Hume tencionar conscientizar os homens dos perigos da metafísica tradicional.

A partir dos argumentos humeanos, podemos afirmar que os juízos científicos são

impossíveis de serem demonstrados a priori, pois como eles estão relacionados com as

questões de fato, o conhecimento humano necessita indispensavelmente dos dados que são

coletados pela experiência. Nesses termos, queremos ressaltar que a natureza das relações de

causalidade se sobrepõem às demais relações referentes a questões de fato. Portanto, se faz

necessário, após a investigação de sua natureza, considerarmos o argumento humeano acerca

de sua origem e, posteriormente, delinear alguns pontos fundamentais sobre suas

consequências.

1.3 Dinâmica do princípio causal

Após a pesquisa passar pelos itens que tratam da origem das ideias e suas associações,

neste terceiro item temos como objetivo a análise sistemática da ideia de causalidade

oferecida por Hume. Não podemos, no entanto, perder de vista a consideração que o intuito

do filósofo escocês é alertar o homem sobre os perigos que o dogmatismo pode causar.

Evocaremos, assim, duas perguntas feitas por Hume no Tratado para que, suas

respostas nos sirvam de fio condutor para o estudo proposto neste item:

Em primeiro lugar, porque razão afirmamos ser necessário que tudo

aquilo cuja existência tem um começo deva ter também uma causa?

Em segundo lugar, por que concluímos que tais causas particulares

devem necessariamente ter tais efeitos particulares; e qual a natureza

da inferência que fazemos daqueles a estes, bem como da crença que

depositamos nessa inferência (T 1. 3. 2. 14-15).

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29

1.3.1 A ideia de conexão necessária

O dogmatismo leva à afirmação da proposição de que ‘todas as coisas têm uma causa

para a sua existência é intuitivamente ou demonstrativamente correta’, pode ser considerada

uma crença generalizada (Cf. COVENTRY, 2011, p. 110).

Essa proposição pode ser verificada pelo fato de estarmos tão acostumados com as

sucessões de fatos que, arbitrariamente, esperamos que se comportem como anteriormente

fora observado. Por conseguinte, essas sucessões podem nos levar a pensar que, na sucessão,

o fato precedente é, necessariamente, causa do que lhe sucede. Nesse sentido, a partir da

observação de um fato diremos, com base em experiências passadas, qual lhe sucederá. O

sentido que comporta essa sucessão é a relação de causa e efeito32

.

Vale ressaltar que a crítica de Hume, estribada em seu ceticismo, quer questionar a

afirmação de que tudo que existe tem uma causa e que esta é, de modo estrito, intuitiva e

demonstrativamente certa (Cf. COVENTRY, 2011, p. 111). Hume na Investigação, não nega

o princípio causal, uma vez que, “... é universalmente permitido que nada exista sem uma

causa de sua existência” (EHU VIII, 25). O próprio Hume, esclarece, acerca dessa afirmação,

sua posição numa carta a John Stewart, “...eu nunca considerei uma proposta tão absurda

como a de que qualquer coisa pode surgir sem uma causa. Eu somente mantive que nossa

certeza da falsidade desta proposta não procedia da intuição e nem da demonstração, mas sim

de outra fonte” (Apud. COVENTRY, 2011, p. 111). A fonte a que Hume se refere é a

experiência, como ele mesmo indica: “Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e

conclusões a respeito dessa relação?, poderemos responder com uma simples palavra: a

Experiência” (EHU IV, 28). Por isso, que ele mesmo sustenta no Tratado: “É apenas pela

EXPERIÊNCIA, portanto, que podemos inferir a existência de um objeto da existência de

outro” (T 1. 3. 6. 2).

A experiência irá nos mostrar através dos frequentes exemplos acerca da existência

dos objetos de certa espécie são sempre acompanhados por uma ordem regular de

contiguidade e sucessão em relação a eles (Cf. T 1. 3. 6. 2). Nesse sentido, pela experiência

que temos por intermédio da regularidade e da sucessão, não temos elementos suficientes para

32

“Em resumo, isso significa que quando A causa B, se A ocorre, então B deve ocorrer: B deve, de forma

absoluta, resultar da ocorrência de A. Para o A ser a causa de B, então, não somente devem o A e B serem

espaciais e temporariamente contíguos, e não somente o A preceder B; mas A e o B também devem ser

necessariamente conectados” (Coventry, p. 109).

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30

uma justificativa racional acerca de uma conexão causal necessária. Não obstante isso, Hume

apresenta um terceiro elemento: “Em todos os casos com base nos quais constatamos a

conjunção entre causas e efeitos foram percebidos pelos sentidos, e são recordados [...] Tal

relação é a CONJUNÇÃO CONSTANTE” (T 1. 3. 6. 3). Tão logo tenhamos tido a

experiência dessa conjunção constante ou regular passamos a inferir efeitos de causas33

.

Sendo assim, diante dos argumentos de Hume, podemos dizer que não temos como saber

sobre a extensão de tal correspondência entre quaisquer eventos, uma vez que as conexões

que formamos são baseadas em uma causalidade sobre a sucessão de eventos observados no

mundo. Portanto, mesmo que acreditemos na relação necessária de causalidade existente entre

a sucessão dos fatos, devemos considerar que não conseguiremos justificá-la empírica e

racionalmente determinada conexão34

. Não podendo considerar essa relação causal, somente

pela experiência de sua união constante denotamos o primeiro evento como sendo causa e o

segundo, por conseguinte, efeito (Cf. VERGEZ, 1984, p. 21).

A conexão necessária entre os fenômenos da natureza surge, através da experiência, da

observação de numerosos exemplos semelhantes e, por conseguinte, a imaginação levada por

essa constância dos fenômenos leve a mente estabelecer uma ideia conexão necessária entre

eles (Cf. MONTEIRO, 1984 p. 20).

Essa noção de necessidade entre os fenômenos da natureza é um dos pontos mais

discutidos pela filosofia de Hume para a explicação do princípio de causalidade. A ideia de

necessidade caracteriza mesmo a vontade humana35

, que não pode ser tida como livre,

aleatória ou arbitrária, pois, para que possamos chegar a conclusões acerca dos fenômenos, a

vontade humana tem como base a experiência da união constante de ações semelhantes em

circunstâncias semelhantes. Por isso, a noção de necessidade tem lugar apenas no espírito do

observador, uma vez que, a ação que é dita como necessária depende do ponto de vista de

quem a observa, dando a esta sucessão uma intenção causal. De acordo com os argumentos de

Hume presentes na Investigação, percebemos que a relação de causalidade é subjetiva, pois

33

De acordo com o pensamento de Marconi Pequeno sobre a experiência constante, afirma: “... a causalidade faz

com que a conjunção constante de um enigma se transformem uma chave para a sua solução. O problema, diz

ele, é que a conjunção constante entre os fenômenos nada revela acerca de sua conexão necessária” (PEQUENO,

2012, p. 40). 34

Acerca dessa temática Vergez acrescenta: “Ora, a constante conjunção dos objectos, dissemo-lo, não tem

qualquer influência sobre os próprios objectos” (VERGEZ, 1984, p. 23). 35

“Quer consideremos a influência da vontade no movimento do nosso corpo, ou no controle do nosso

pensamento, pode-se afirmar com segurança que jamais conseguimos predizer o efeito, pela mera consideração

da causa, sem a experiência”; “Whether we consider the influence of the will in moving our body, or in governing

our thought, it may safely be affirmed, that we could never foretel the effect, merely from the consideration of the

cause, without experience” (Resumo, p. 88-89).

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31

concerne à perspectiva do observador, e não existe senão como ideia imaginária fundada

exclusivamente na observação constante e uniforme do fluxo contínuo dos fenômenos da

natureza. Por isso, podemos afirmar que a causalidade não é uma relação objetiva entre as

coisas, mas uma operação do entendimento influenciado pela inferência humana que decorre

da experiência da conjunção constante dos fenômenos da natureza, sob cuja imagem eles se

oferecem à percepção (Cf. EHU VII, 32). Nesses termos, de acordo com as palavras de

Vergez: “A ideia de conexão necessária não pode, pois, provir, de uma impressão de

sensação” (VERGEZ, 1984, p. 21).

Poder-se-ia dizer que a ideia de causalidade não é mais que um caso de probabilística,

de percepção de padrões ou modelos que se reproduzem no curso ordinário da experiência. A

conexão necessária decorre da percepção, repetidas vezes, de uma sucessiva conjunção, como

generalizações a partir do observável (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 19). Nesse diapasão,

compreendemos que o homem, ultrapassando os dados fornecidos pela experiência, acredita,

por uma projeção fundada no hábito, que a qualidade produtiva36

dos fenômenos está contida

necessariamente no objeto. Hume contrariando a tese cartesiana de que uma causa é sempre

necessária, segundo a qual ‘tudo o que existe tem causa de existir’, evidencia, também, a

problemática acerca da existência de Deus. Pois, de acordo com termos empíricos, os

fenômenos tomados isoladamente são desprovidos de qualquer qualidade ou poder que

pudesse sugerir qualquer ideia de movimento ou causalidade. Desse modo, a ideia de Deus,

ser divino que contém em sua natureza toda excelência e perfeição, insurge como necessária

para pôr as coisas em movimento, como primeiro motor do universo, que cria todas as coisas

e os efeitos dessa criação são evidentes aos nossos sentidos (Cf. T 1. 3. 14. 9). Seguindo essa

linha pensamento, Hume afirma:

Pois se toda ideia é, derivada de uma impressão, a ideia de Deus

procede da mesma origem; e se nenhuma impressão, de sensação ou

reflexão, implica uma força ou eficácia, é igualmente impossível

descobrir ou sequer imaginar um tal princípio ativo em Deus. Como

esses filósofos, portanto, concluíram que a matéria não pode ser

dotada de nenhum princípio eficiente, porque é impossível descobrir

36

Podemos citar aqui a investigação que o próprio Hume faz sobre as questões concernentes ao poder e a

eficácia, quando afirma: “Começo observando que os termos eficácia, ação, poder, força, energia, necessidade,

conexão, qualidade produtiva são quase sinônimos; e, por isso, é absurdo empregar qualquer um deles para

definir o resto. Com essa observação rejeitamos, de uma só vez, todas as definições comuns que os filósofos dão

para poder e eficácia. Em vez de procurar a ideias nessas definições, devemos procurá-las nas impressões de que

originalmente deriva. Se for uma ideia composta, deverá resultar de impressões compostas. Se for simples, de

impressões simples” (T 1. 3. 14. 4).

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32

nela tal princípio, o mesmo raciocínio deveria determinar que o

excluíssem do ser supremo. Ou, se consideram tal opinião absurda e

ímpia, como realmente o é, direi que podem evitá-la: concluindo,

desde o início, que não possuem uma ideia adequada de poder ou

eficácia em nenhum objeto – pois nem o corpo nem o espírito, nem

nas naturezas superiores nem nas inferiores, serão capazes de

descobrir um só exemplo desse poder (T 1, 3, 14, 10).

Hume contesta essa proposição evocando do princípio de separabilidade: como todas

as ideias distintas são separáveis entre si, e como as ideias de causa e efeito são distintas,

pode-se perfeitamente entender, pela experiência, que um objeto não exista neste momento e

se apresente, em seguida, como existente, sem que essa mudança envolva um princípio

produtivo, isto é, sem que se possa deduzir uma causa de existir a partir da percepção de um

objeto existente37

. Segundo os argumentos humeanos, podemos entender que a ideia de causa

não está implicada na de efeito, pois ao verificarmos as qualidades intrínsecas de um objeto a

que a imaginação outorga o papel de “efeito” de uma relação causal, igualmente, ao

verificarmos o objeto precedente, nada há que indique que tal objeto foi causador de outro

para lhe atribuir a condição de causa38

. Desse modo, sendo que nem a função de efeito nem a

função de causa são intrínsecas aos objetos, a relação de causalidade, portanto, é subjetiva,

dependendo da perspectiva do observador; gera-se a inferência causal, que não existe senão,

como ideia imaginária.

1.3.2 A inferência causal

O homem familiariza-se com a sucessão dos fenômenos da natureza, tendo em vista

que os experimenta constantemente. Entretanto, as qualidades presentes nos fenômenos não

nos fornecem qualquer noção de força que possam conectar eventos diferentes. Nesse sentido,

37

Podemos lembrar aqui do emblemático raciocínio das falácias causais, a post hoc (post hoc ergo propter hoc,

ou “depois disso, donde devido a isso” — ou seja, sustentar que como B sucede a A, A é a causa de B). A falácia

post hoc está por trás do raciocínio que leva a concluir que, uma vez que todo banqueiro usa gravata, se usarmos

gravata seremos todos ricos. O engano aqui reside em que ser rico é causado pelo uso da gravata. Pode ocorrer

que as pessoas ricas usem gravatas porém não é uma condição sine qua non. Ambos ocorrem, mas um não é a

causa do outro (Cf. ZILLES, 2009, p. 56). 38

“Em suma, a necessidade é algo que existe na mente, e não nos objetos. E jamais poderemos formar a menor

ideia dela se a considerarmos uma qualidade dos corpos” (T 1. 3. 14. 22).

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33

Hume afirma que a única coisa que a experiência nos oferece é a conjunção constante e que

por meio dela não conseguimos justificar qualquer noção de causalidade. Sublinha que: “... a

energia da causa é tão ininteligível como nos mais insólitos, e que só aprendemos pela

experiência a conjunção freqüente dos objetos, sem mais podermos perceber qualquer coisa

que se pareça com a conexão entre eles” (EHU VII, 54). Por maior que seja nosso esforço em

encontrar essa força ou poder39

que conecte distintos objetos ou eventos, não podemos

concluir através deles como se pode desenhar qualquer inferência indutiva40

. Desse modo,

Hume, persuadido que o entendimento não participa desta operação, segue o raciocínio de que

há outro princípio que faça com que a mente humana seja induzida a conceber uma conexão

necessária entre eventos distintos. Segundo Hume: “Este princípio é o costume ou hábito.

Com efeito, sempre que a repetição de algum ato ou operação particular produz uma

propensão a renovar o mesmo ato ou operação sem que sejamos impelidos por qualquer

raciocínio ou processo do entendimento, dizemos que essa propensão é um efeito do

hábito”41

.

Hume entende, portanto, que a inferência causal se fundamenta na semelhança entre o

passado e o futuro. Este processo é fruto do princípio do hábito, que faz com que a mente

humana suponha a conformidade entre o passado e o futuro42

. Sendo assim, a inferência

causal não pode ser justificada racionalmente, pois tanto o raciocínio demonstrativo como o

provável não conseguem dar uma resposta embasada à questão na natureza conexão. No

Resumo do tratado da natureza humana, Hume emite o seguinte juízo sobre este princípio,

afirma: “E mesmo depois de termos a experiência desses efeitos, é o hábito apenas, não a

39

O termo “poder” é usado aqui em para designar o sentido pelo qual o homem pode a partir de eventos distintos

conceber uma conexão ou um poder que os conecte (Cf. EHU VII, 52); Acerca deste termo também podemos

compreendê-lo pelas palavras de Hume no Resumo: “But, beside these circumstances, this commonly supposed,

that there is a necessary connexion between the cause and effect, and that the cause possesses something, which

we call a power, or force, or energy” (Resumo, p. 90). 40

De acordo com Coventry, existem três estágios numa inferência de causa e efeito: 1) existe uma impressão

original; 2) existe uma transição a uma ideia da causa e efeito conectados; 3) existe uma qualidade especial

agregada à ideia inferida, isto é, crença ou aquiescência” (Cf. COVENTRY, 2011, p. 113). 41

EHU V, 36. Acerca deste termo, Monteiro, afirma: “O hábito ou costume de Hume pode ser correctamente

considerado uma ‘propensão’, mas é uma propensão postulada, ou pressuposta pela teoria humeana, não uma

propensão descoberta no inteiro de um contexto observacional – e este facto em nada será modificado se

chamarmos a essa propensão de ‘disposição’” (MONTEIRO, 1984, p. 47-48). 42

A proposta humeana de que as inferências causais não podem ser justificadas racionalmente através do

entendimento, ou seja, por meio da parte cogitativa humana, deixa aberta a investigação por parte da imaginação,

esta que, naturalmente, favoreceu uma interpretação puramente cética de sua teoria, agora abre margem para

uma interpretação naturalista. De fato, podemos dizer que há duas formas de interpretação: uma que predominou

nas duas centenas de anos que se seguiram ao aparecimento das obras de Hume, que chamamos de interpretação

clássica. E a nova interpretação que pergunta, que credenciais epistêmicas tem a faculdade da imaginação,

faculdade usualmente associada à ficção, sobre a base de meros hábitos, de tal modo a poder assegurar um

conhecimento legítimo?

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34

razão, que nos determina a fazer deles o padrão de nossos futuros julgamentos. Quando a

causa está presente, a mente, pelo hábito, passa imediatamente à concepção e crença no efeito

costumeiro”43

.

Hume, na Investigação, não está introduzindo um mecanismo mental completamente

novo com a introdução dos termos “costume ou hábito” como princípios associativos da

mente. No entanto, utiliza-se desses termos como uma forma de explicar a inferência das

causas aos efeitos. Hume, de algum modo, deixa evidente na discussão sobre raciocínio causal

no Tratado sua posição acerca da natureza destes raciocínios:

A razão nunca pode nos mostrar a conexão entre dois objetos, mesmo

com a ajuda da experiência e da observação de sua conjunção

constante em todos os casos passados. Portanto, quando a mente passa

da ideia ou impressão de um objeto à ideia de outro objeto, ou seja, à

crença neste, ela não está sendo determinada pela razão, mas por

certos princípios que associam as ideias desses objetos, produzindo

sua união na imaginação. Se as ideias não fossem mais unidas na

fantasia que os objetos parecem ter no entendimento, nunca

poderíamos realizar uma inferência das causas aos efeitos, nem

depositar nossa crença em qualquer questão de fato. A inferência,

portanto, depende unicamente da união de ideias (T 1. 3. 6. 12).

Podemos observar que os objetos se associam na imaginação em consequência da

observação de sua conjunção constante, que não implica relação causal. Desta forma, o

homem por uma tendência de sua natureza (from my feeling), isto é, pelo hábito adquirido

pela observação constante de determinada sucessão, poderá conceber uma conexão entre as

ideias. Nesse sentido, a mente do homem operando embasada pelos ditames do hábito,

inferirá a existência causal a partir da aparição do outro (Cf. T 1. 3. 8. 12). Desse modo, a

razão jamais conseguiria nos convencer a respeito de uma relação causal entre os distintos

objetos, uma vez que, não logra encontrar qualquer processo de argumentação ou raciocínio

que possa justificá-lo (Cf. T 1. 3. 7. 6).

Dentre os argumentos formulados tanto na Investigação como no Tratado, acerca da

inferência causal, podemos salientar alguns aspectos que se mostram importantes para

qualquer inferência. O primeiro deles versa sobre as experiências passadas obtidas pelo

homem, das quais dependem os juízos concernentes às questões de causa e efeito, pois atuam

43

“And even after we have experience of these effects, this custom alone, not reason, which determines us to

make it the standard of our future judgments. When the cause is presented, the mind, from habit, immediately

passes to the conception and belief of the usual effect” (Resumo, p. 88-89).

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35

na mente de forma despercebida. Como afirma Vergez: “É a transição, o fácil deslizar da

imaginação de um objecto para outro, que lhe é habitualmente concomitante, que fornece a

única impressão donde deriva a ideia de ligação necessária” (VERGEZ, 1984 p. 23). O

segundo ponto a ser salientado diz respeito à impressão presente, da qual todos os nossos

raciocínios são originados. Para que possamos inferir qualquer relação causal são

imprescindíveis dois componentes: experiências passadas e uma impressão presente. Dessa

forma, as experiências de sucessão entre os objetos contida na mente a influencia na fixação

da ideia de causalidade, uma vez que, ao observarmos o primeiro objeto de determinada

sucessão, isto é, por meio da impressão presente, extrapolamos os dados dos sentidos e

esperamos que ocorra conforme ocorrera anteriormente. Por isso, Hume afirma: “O costume

age antes que tenhamos tempo de refletir” (T 1. 3. 8. 13).

De acordo com esse contexto, compreendemos recorrendo às palavras de Hume no

Resumo, compreendemos que: “Não podemos apresentar razão alguma para estender ao

futuro nossa experiência do passado; mas somos inteiramente determinados pelo costume

quando concebemos um efeito seguindo-se a sua causa habitual”44

. Desse modo, podemos

afirmar que o costume ou o hábito é o grande guia da natureza humana, sem o qual não

saberíamos como ajustar os meios com aos fins (Cf. COVENTRY, 2011, p. 116). Portanto, o

modo de agir do homem se baseia nos fatos procedentes da experiência em outras palavras, no

que se pode estabelecer por meio da relação de causa e efeito45

.

Considerando que a mente humana está habituada com a constante sucessão de fatos, a

partir da observação do evento que denominamos causa rapidamente inferimos o efeito. Nessa

perspectiva, acerca dessa inferência, como Hume avalia, “... já não temos escrúpulo de

predizer uma ao aparecimento da outra e de que empregar o único tipo de raciocínio que nos

pode garantir qualquer questão de fato ou de existência. Chamamos então causa a um objeto e

efeito ao outro” (EHU VII, 59). Assim, o princípio que leva a mente humana associar eventos

distintos ultrapassando os limites impostos pela experiência é a presença real do objeto

conjugado com a costumeira transição dos fenômenos46

. A satisfação dessa concepção causal

44

“Nothing can be known to be the cause of another but by experience. We can give no reason for extending to

the future our experience in the past; but are entirely determined by custom, when we conceive an effect to

follow from its usual cause” (Resumo, p. 80-81). 45

“Por conseguinte, a existência de qualquer ser só pode ser provada mediante argumentos derivados de sua

causa ou de seu efeito; e esses argumentos baseiam-se inteiramente na experiência. Se raciocinamos a priori,

qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer outra” (EHU XII, 132). 46

“Esta transição do pensamento, partindo da causa para o efeito, não procede razão. Tira sua origem

exclusivamente do hábito e da experiência. E, como nasce de um objeto presente aos sentidos, torna mais viva e

forte a ideia ou concepção da chama do que qualquer devaneio solto e desconexo da imaginação. Esta idéia surge

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36

garante força e solidez à relação causal presente na mente humana, contudo, dentre as

qualidades que podemos extrair dos objetos não conseguimos verificar qualquer justificativa

que sugira causalidade, por isso que Hume no Tratado afirma: “O fundamento de nossa

inferência é a transição resultante da união habitual” (T 1. 3. 14. 21).

Hume admite que o hábito gera no homem uma inclinação, ou melhor, propensão a

esperar os mesmos efeitos, renovados a partir de uma determinada impressão. O hábito,

contudo, deve ser entendido como um princípio da natureza humana que nenhum raciocínio

pode produzir ou evitar. No entanto, através desse princípio o homem por intermédio da

superação da experiência imediata pressupõe pela inferência que a sucessão anteriormente

observada se renove. De acordo com Hume, é devido ao princípio do hábito que a experiência

humana é útil e que leva o homem a esperar, no futuro, um conjunto de acontecimentos

semelhantes aos acontecimentos passados. A esse respeito são apropriadas as considerações

de Conte acerca das ações do hábito na mente humana:

É nesse sentido que se pode dizer que a causalidade é uma forma

nossa de perceber o real, uma ideia derivada da reflexão sobre as

operações de nossa própria mente que tem como origem a ação do

hábito sobre a imaginação por ocasião de experiências repetidas e não

uma conexão necessária entre causa e efeito, uma característica do

mudo natural (CONTE, 2010, p. 222).

O maior efeito que podemos conceber por meio do hábito ou costume é uma falsa

comparação entre ideias, uma vez que, Hume afirma, “dificilmente os homens irão se

convencer um dia de que os efeitos de tal consequência podem emanar de princípios em

aparência tão insignificantes” (T 1. 3. 10. 1), simplesmente, por nos habituarmos com a

sucessão dos objetos. Essa transição entre as ideias ocorre de modo fácil, imperceptível, e se

instala na mente do homem comunicando-lhe uma maior força e vivacidade. Esse modo de

sentir, forte e vívido, nos é dado através da crença. É a crença, portanto, que dá ao homem a

impressão de estar diante de uma conexão necessária e é ela que leva o homem a crer que

entre os distintos objetos há uma relação de causalidade no sentido de que de uma causa,

deve-se seguir um efeito – o que se aplica inversamente.

imediatamente. O pensamento move-se ato contínuo para ela e lhe comunica toda aquela força de concepção que

recebe da impressão presente aos sentidos” (EHU V, 44).

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37

1.3.3 A crença causal

Após a análise da ideia de conexão necessária e inferência causal, Hume volta-se para

o estudo da última parte da segunda questão, que foi introduzida no início deste item pela

pergunta: qual é a natureza da inferência que realizamos entre fenômenos desassociados

sugerindo uma causalidade? Qual o papel da crença para a concepção da relação causal?

A uniformidade das conjunções e sua reiteração na experiência reforçam na mente a

suposição de sua ocorrência futura, isto é, da crença causal. Através da costumeira da

observação sucessória que se repete na natureza, surge no homem a ideia de crença, que,

segundo Hume, parece ser, até os dias de hoje, um dos maiores mistérios da filosofia (Cf. T 1.

3. 7. 6). Tendo em vista que a razão não pode justificar que a existência de um objeto implica

causalmente a de outro, podemos observar que a ideia de causalidade não é uma relação

objetiva entre as coisas. Como vimos no item anterior, uma inferência causal é decorrente da

experiência de sua conjunção constante. Desse modo, uma impressão presente tem o poder de

corroborar com as experiências passadas, de tal modo que a mente, a partir de repetição que

fora habituado, reavive e fortifique a crença causal. Este é modo pelo qual nasce no homem a

crença (belief), que segundo Hume, “... não faz senão variar a maneira como concebemos um

objeto, ela só pode conceder a nossas ideias uma força e vividez adicionais” (T 1. 3. 7. 5).

Portanto, “É uma maneira particular de formar uma ideia” (T 1. 3. 7. 6).

A crença, contudo, não altera em nada a natureza ou as ordens de nossas ideias, mas

versa sobre a maneira com que a concebemos e como as sentimos na mente. “A crença dá a

essas ideias mais força e influência; faz que pareçam mais importantes, fixa-as na mente; e as

torna princípios reguladores de nossas ações” (T 1. 3. 7. 7). Essa visão é elaborada pelo

próprio autor quando no Resumo afirma: “A crença, portanto, em todas as questões de fato,

brota apenas do costume, e é uma idéia concebida de um modo peculiar” (Resumo, p. 80-81)

47.

De acordo com o argumento humeano, Coventry, explica o modo como é concebida a

crença na mente do homem: “Ele rejeita essa possibilidade [acréscimo de alguma nova ideia

naquela já concebida], insistindo que a crença não acrescenta nada de novo àquilo que já foi

concebido” (COVENTRY, 2011, p. 119. Acréscimo nosso). O argumento humeano de que

47

“Belief, therefore, in all matters of fact arises only from custom, and is an idea conceived in a peculiar

manner”

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38

não existe ideia separada está ligada às questões de existência, uma vez que nossas ideias

estão associadas as suas impressões. Por isso, ao concebermos algo na mente é o mesmo que

considerá-lo como existente, pois ao analisarmos a origem de nossas ideia chegaremos a uma

impressão original. Sendo assim, a ideia de Deus e a sua existência são concebidas de forma

equivalente, como Hume afirma: “Assim, quando afirmamos que Deus existe, simplesmente

formamos a ideia desse ser, tal como nos é representado; (...) Quando penso em Deus, quando

penso nele como existente, e quando creio que ele existe, minha ideia dele não aumenta nem

diminui” (T 1. 3. 7. 3).

Nesses termos, podemos admitir que a crença é a maneira diferente de sentir a ideia

(this different feeling) que deriva da experiência repetida, que de modo diferente, não tão

filosóficos, como descreve Hume, pode ser denominada como uma força, vividez, solidez,

firmeza, ou estabilidade superior (Cf. T 1. 3. 7. 7). A crença, então, decorre estritamente do

hábito, pois, de forma semelhante, surge imediatamente sem qualquer operação do

entendimento, e ela nos faz passar, costumeiramente, dos objetos procedentes de experiências

passadas a outros de forma causal, sem que haja qualquer raciocínio (Cf. COVENTRY, 2011,

p. 120-121).

A união, na mente, de casos repetidos de conjunção constante produz outra impressão:

a impressão da repetição, isto é, “o sol nascerá amanhã porque todos os dias até hoje nasceu”,

a conjunção porque não se reporta a nenhuma impressão: o que produz a ideia de que a

posteridade liga-se à anterioridade na experiência e leve a mente a vagar de um objeto a outro,

projetando o passado sobre o porvir, é apenas a crença na previsibilidade. A imaginação opera

pela crença quando, determinada pela experiência reflexiva, transita da impressão presente de

um objeto à ideia de outro, ausente. A imputação de causalidade aos casos de conjunção

constante constitui o hábito, sob cuja influência a imaginação tende a prever o futuro de

acordo com o passado.

Se crer é inferir com base na experiência, quando a mente humana guiada pelo hábito

e, por conseguinte, pela crença, conserva-se nos limites do entendimento e se apresenta, na

imaginação, como ato de conhecimento. A regularidade da experiência permite-nos tirar

conclusões que excedem as percepções presentes; pela crença nascida do hábito

progressivamente constituído, convertemos a mera repetição de casos de conjunção constante

em uma produção de inferências de probabilidade48

. A passagem do hábito — que abrange, na

48

“Há, sem dúvidas, uma probabilidade que resulta de um maior número de acasos favoráveis; e, à medida que

aumenta essa superioridade numérica, ultrapassando os acasos contrários, a probabilidade aumenta em proporção

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39

mente, a união dos casos de conjunção constante na experiência — à crença — ato próprio de

conhecimento — é comparável à transição da quantidade à qualidade, pela qual simples

acréscimos quantitativos se transformam em diferenças qualitativas: outro modo de sentir a

ideia de crença. Produzida por certo número de impressões acerca de conjunções passadas, a

crença não acrescenta nada à ideia, mas altera o modo pelo qual a mente a concebe, dotando-a

de maior força e vividez.

A ideia de causalidade sob a qual a mente relaciona os objetos é imaginária, subjetiva,

e não corresponde a qualquer conexão natural discernível pela experiência: é a experiência

passada que nos informa dos padrões de conjunção causal constantemente observados e nos

habitua a supor ou inferir os termos de uma conjunção a partir da percepção de um deles.

A crença na causalidade, por meio de uma leitura naturalista, pode ser considerada

como o critério de verdade da ciência da natureza humana, refletindo na impossibilidade da

adopção do ceticismo absoluto. A questão da crença causal abordada neste item, visa cumprir

a missão de investigarmos a possibilidade de conhecer a ideia de Deus a partir dos

pressupostos causais presentes nos argumentos humeanos. Sendo assim, podemos afirmar que

esse pressuposto será a coluna vertebral dos argumentos de Hume dirigidos a problemática

religiosa.

No transcorrer desta pesquisa, veremos como o entendimento do pressuposto causal é

fundamental para o estudo dos capítulos seguintes. Desse modo, a leitura e a compreensão49

do presente capítulo se tornará indispensável ao leitor, pois na medida em que os argumentos

de Hume forem compreendidos e aprofundados, veremos que o entendimento desse

importante pressuposto nos auxiliará na compreensão da sua posição em relação às questões

religiosas.

e engendra em grau superior de crença ou assentimento a essa hipótese em que descobrimos a superioridade. [...]

Talvez esse processo mental ou raciocinativo pareça trivial e óbvio, mas para quem o considera mais a fundo ele

pode dar margem a interessantes especulações” (EHU VI, 46). 49

De acordo com Monteiro: “A filosofia não é um domínio reservado, uma região onde o discurso se veja

condenado a uma chã e sem brechas literalidade. Veja-se o exemplo de David Hume: os seus textos estão

permeados de ironia, de exemplos de ocultação do significado real por detrás de um véu de ambigüidade. E nos

textos deste filósofo, [...], a interpretação só se pode fazer através da clara identificação do contexto de cada

argumento, ou de cada proposta” (MONTEIRO, 1984, p. 50).

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Capítulo II - A RELIGIÃO NATURAL E A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO

DE DEUS50

Partindo dos conceitos epistemológicos basilares de Hume, com atenção especial ao

princípio de causalidade, apresentados de modo sucinto, no capítulo anterior. Pretendemos,

nesse momento, debruçar-nos sobre os argumentos desenvolvidos nas análises das obras

História natural da religião (1757) e Diálogos sobre a religião natural (1779). Faremos isso

com o objetivo de investigar a possibilidade do conhecimento de Deus à luz dos princípios

epistemológicos formulados por Hume.

Desse modo, iniciaremos essa parte da pesquisa devotando-nos em especial à obra

História natural da religião, cujo título nos sugere, por intermédio de uma narrativa histórico-

filosófica, que a existência da divindade não é uma concepção predeterminada, mas

decorrente de uma perspectiva que afirma que a crença deve ser entendida como produto da

natureza humana. Com base nesse entendimento, Hume busca as origens e as causas do

fenômeno religioso, seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas, compreendidas nas

variações cíclicas entre o politeísmo e o monoteísmo. Nesse caso, desvendar os princípios que

levam o ser humano a procurar e adotar das crenças religiosas vinculando-os aos contextos

sociais em que se inserem torna-se primordial importância nessa investigação. O fato é que a

partir dos argumentos elaborados por Hume na História abrem-se duas perspectivas de

investigação da problemática religiosa: (a) a sua origem na natureza humana; e, (b) se existe

um fundamento racional para a religião.

Na segunda parte deste capítulo, almejamos analisar a principal temática dos Diálogos

sobre a religião natural: o argumento do desígnio. No decorrer dessa obra, Hume pretende

demonstrar, através da agudeza de suas estratégias argumentativas (ou literárias), a fragilidade

das analogias que servem de suporte ao referido argumento. Mesmo porque a forma mais a

abrangente desse argumento a ser adotada é a formulada por intermédio da uma analogia entre

a ordem presente no universo e a existência de um criador, inteligente, forte, sábio,

benevolente e justo.

Os argumentos presentes nos Diálogos ocupam-se, quase exclusivamente, das mais

acuradas críticas de Hume à religião natural, da minuciosa análise do argumento do desígnio

50

“Natural religion (the phrase usually does duty in the eighteenth century for the now more common term

natural theology) is the system of conclusions about God’s (or the god’s) existence and nature supposedly

attainable from evidence and by reasoning accessible to any intelligent person irrespective of any special

information conveyed in the Bible, Koran, or other revelatory source” (GASKIN, 1993, p. 314).

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41

que, na verdade, é o mais bem aceito e difundido argumento a favor da existência de Deus.

Tal argumento, no século XVIII, se voltava para uma questão popular, amplamente debatida

entre intelectuais e religiosos. E até os dias de hoje suscita amplos e acalorados debates (Cf.

MONTEIRO, 1984, p. 142). O argumento do desígnio quer demonstrar, através da

observação dos fenômenos da natureza, que a identificação da ordem, complexidade e

estrutura no cosmos permite inferir que são elementos que fornecem sustentação à crença na

existência de uma inteligência criadora. Desse modo, dentre as objeções pertinentes a serem

apresentadas está a de se por meio da experiência que revela uma organização no universo

podemos encontrar uma justificativa para o argumento do desígnio. O fato de a própria

natureza se mostrar auto organizada seria a evidencia da existência de um designer

inteligente.

A crítica humeana à religião elaborada, sobretudo, na História e nos Diálogos, se

articula com os pressupostos epistemológicos básicos de sua teoria da causalidade,

investigados no primeiro capítulo. No fundo, está tudo relacionado com a investigação da

natureza humana51

. Desse modo, a análise humeana se volta para as religiões reveladas, a

existência de milagres e as crenças religiosas de um modo que favorece um frutuoso debate,

em torno de diversos pontos, entre teísmo (monoteísmo e politeísmo), deísmo, ateísmo,

ceticismo, fideísmo, superstição e fanatismo. Enfim, essa temática reúne um número

considerável de questões relevantes presentes tanto no século XVIII como nas discussões

atuais.

Devemos ressaltar que, na História, Hume preocupa-se claramente em fugir dos

ditames eclesiásticos para que não pudesse ser acusado de blasfêmia ou ateu. Por isso que a

distinção dos tipos de teísmo presentes no início da supracitada obra, sugere que a existência

de Deus possa ser provada de maneira racional52

, bem como, afirma ser o cristianismo a

verdadeira religião. Nesse contexto, devemos entender que a posição assumida por Hume é

tão somente uma estratégia com o intuito de evitar problemas decorrentes de sua verdadeira

posição acerca das crenças religiosas, que será melhor explanada nos Diálogos sobre a

religião natural, que foi publicada postumamente.

51

“Hume’s critique of religion and religious belief is, as a whole, subtle, profound, and damaging to religion in

ways that have no philosophical antecedents and few successors” (GASKIN, 1993, p. 313). 52

Neste sentido temos João Paulo Monteiro, afirmando que é justamente na obra religiosa de Hume que “(...) o

estilo irônico mais vezes lhe serviu como um véu de obscuridade, destinado a ocultar do vulgo, ao qual pertencia

notadamente o censor, suas opiniões mais heterodoxas, revelando-as apenas a um reduzido círculo de leitores

mais esclarecidos” (MONTEIRO, 1984, p. 19). “Um dos exemplos mais intrigantes da estratégia de Hume é sua

aparente aceitação, na História natural da religião, do argumento do desígnio tão drasticamente demolido por ele

mesmo nos Diálogos” (MONTEIRO, 1984, p. 129).

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42

Seguindo o itinerário filosófico de Hume, a partir do convite de formar os juízos com

base na experiência, intencionamos discutir, na sua dimensão filosófica, a questão da

possibilidade do conhecimento de Deus. Para tanto, nesse capítulo nos concentraremos nos

argumentos elaborados por Hume acerca da religião natural, sobretudo, na História e nos

Diálogos.

2.1 A religião natural: do politeísmo ao monoteísmo

Seguindo a ordem cronológica de publicação das obras humeanas sobre a religião,

dirigimos nossa atenção ao estudo da História natural da religião53

(1757), na qual Hume

investiga a origem do sentimento religioso no homem a partir da distinção feita entre o

teísmo54

supersticioso e o teísmo genuíno. A partir dessa perspectiva, recorrendo aos

argumentos presentes na obra supracitada, pretendemos lidar com a questão fundamental de

se a filosofia da religião proposta por Hume acena para um teísmo ou um ateísmo. Nesse

diapasão, a compreensão da abordagem argumentativa presente na História deve nos conduzir

à pesquisa sobre a origem do sentimento religioso – baseada na fé da revelação ou, de outro

modo, erigida com base na experiência natural – e, por conseguinte, sobre os efeitos que esse

sentimento pode ocasionar na sociedade55

.

53

O título dessa obra, provavelmente, foi inspirado na Histoire Naturelle (1744), de Bufon, que tem a intenção

de estudar cientificamente os fenômenos humanos em paralelo aos estudos dos fenômenos naturais. No entanto,

como destaca Robert Brow, em The world’s religions (1982), que a História Natural da Religião deve

compreendida, por suas conclusões, como uma sociologia da religião, uma vez que, não sendo incluída no rol

das obras filosóficas, sua proposta é discutir os efeitos sociais causados pelo sentimento religioso (Cf. BROW,

1982, p. 33). 54

“Este termo, usado desde o séc. XVII para indicar genericamente a crença em Deus, em oposição a ateísmo

(assim também em Voltaire, Dictionnaire philosophique, a. Théiste), foi definido por Kant, no seu significado

específico, em oposição a deísmo (v.). Kant diz: "Quem só admite uma teologia transcendental é chamado de

deísta; quem admite também uma teologia natural é chamado de teísta. O primeiro admite que com a razão

apenas podemos conhecer um Ser originário do qual só temos um conceito transcendental, de Ser que tem

realidade mas que não pode ter nenhuma determinação a mais. O segundo afirma que a razão tem condições de

dar mais determinações do objeto segundo a analogia com a natureza, ou seja, pode determiná-lo como Ser que,

por intelecto e liberdade, contenha em si o princípio originário de todas as outras coisas” (ABBAGNANO, 1998.

p. 943). 55

Para Cabezas, a História da religião natural se destaca entre as obras acerca da filosofia da religião, uma vez

que é nela “(...) onde faz uma investigação quase antropológica das origens do fenômeno” – “(...) donde hace

una investigación casi antropológica de los orígenes del fenômeno” (CABEZAS, 2008, p. 37).

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43

Na História, Hume pretende investigar a origem do sentimento religioso no homem.

Nesse sentido, os elementos de ordem histórica que essa obra expõe podem ser considerados

anteriores no que tange ao objeto principal dessa pesquisa. No entanto, não podem ser

considerados como menos importantes. Para essa discussão, cabe destacar a posição de Brow,

em The world’s religions (1982), para quem a História Natural da Religião deve ser

compreendida, pelas conclusões a que chega, como uma sociologia da religião, uma vez que,

não sendo incluída no rol das obras filosóficas, sua proposta é discutir os efeitos sociais

gerados pelo sentimento religioso (Cf. BROW, 1982, p. 33).

A confecção da História sugere uma preocupação atrelada às autoridades religiosas, o

que fez com que Hume revisasse algumas partes e as alterasse para que não fosse acusado de

blasfêmia. Desse modo, na História, logo nas primeiras páginas, podemos observar que

Hume, por contraposição com as posições incrédulas ou céticas, faz uma distinção entre o

teísmo puro ou genuíno e o teísmo supersticioso. É importante destacar que essa posição é,

certamente, elaborada com o receio de retaliações, e suas reais intenções são nebulosas. Por

isso, algumas posições se apresentam de maneira velada (subentendidas), a fim de evitar

certos tipos de problema. De forma equivalente, ocorre com alguns elementos que serão

retomados nos Diálogos sobre a religião natural, obra publicada postumamente a ser

analisada na próxima seção.

Por teísmo supersticioso, Hume compreende a crença do politeísmo idólatra, que se

destaca pelo antropomorfismo, pela submissão a paixões e apetites. Como Hume afirma:

“Quanto mais remontamos à Antiguidade, mais encontramos a humanidade no politeísmo”

(HNR, p. 23). Ainda em relação a esse tipo de teísmo, Hume afirma que ele concebe também

a crença do monoteísmo em uma divindade sob a forma de puro espírito, com poderes

perfeitos de onipotência e onipresença e com atributos morais (Cf. HNR, p. 25). No caso

desse teísmo, percebemos que há apenas uma elevação gradual do espírito humano, isto é, por

abstração, pela qual distinguirá as partes mais nobres daquelas grosseiras concepções, de tal

modo a formar uma divindade mais elevada e pura.

Nesse contexto, Hume afirma, acerca das crenças supersticiosas: “parece impossível

que o monoteísmo possa ter sido, a partir do raciocínio, a primeira religião da raça humana, e

tenha dado nascimento em seguida, por conta da corrupção, ao politeísmo e a todas as

diversas formas de superstições do mundo pagão” (HNR, p. 28). Nesse sentido, a gênese da

religião reside na natureza humana, uma vez que, por seus medos e esperanças, dá origem à

crença em deuses com poderes passíveis de regular a ordem cósmica como, de modo

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44

semelhante, o fazem as fadas e os gnomos (Cf. HNR, p. 44). O teísmo genuíno revela um

abismo existente entre ele e o teísmo supersticioso que conseguimos transpô-lo como, por

exemplo, em um salto, por meio de argumentos racionais, fazendo com que se reconheça a

ordem e o plano do universo (Cf. HNR, p. 25).

À luz do teísmo genuíno podemos afirmar que todas as coisas presentes no universo

demonstram certa uniformidade, isto é, as coisas estão associadas, ajustadas umas às outras. A

uniformidade pode levar ao reconhecimento da existência de um só autor, uma vez que,

segundo Hume, a concepção de vários autores só serviria para tornar a imaginação complexa

não traria nenhuma satisfação ao entendimento. Nesse sentido, a estrutura com que a natureza

se apresenta aponta para a existência de um autor inteligente e criador da ordem cósmica, em

que todas as coisas existentes são por ele articuladas em um plano que envolve a totalidade

das coisas (Cf. HNR, p. 30). Essa concepção, pelo fato de ser tão evidente e natural a ponto de

podermos atribuir, através da experiência, um desígnio ao mundo, torna necessária uma

investigação a fim de justificar racionalmente as estruturas da natureza. Desse modo, pelo uso

da razão, o homem é conduzido à crença em um Ser Supremo e não à crença no politeísmo,

visto que, segundo Hume, “... nenhum investigador racional pode, após uma séria reflexão,

suspender por um instante sua crença em relação aos primeiros princípios do puro

monoteísmo e da pura religião” (HNR, p. 21).

A distinção dos tipos de teísmos, elaborada por Hume logo no início da obra História

Natural da Religião, parece sugerir que seu posicionamento não nega a essencial verdade

religiosa acerca da existência de Deus. Entretanto, a recusa de alguns elementos primordiais

das teses teístas como, por exemplo, as referências aos atributos morais e, sobretudo, da

ressurreição como prefiguração de um estado futuro e eterno, por não satisfazerem os critérios

estritos da razão, apontam para algumas posições ateístas.

A respeito dessa questão, sublinharemos que, na Investigação acerca do entendimento

humano, a ideia que o homem tem de Deus, como um Ser infinitamente inteligente e bondoso,

decorre da reflexão sobre as operações da própria mente humana que eleva de modo ilimitado

suas qualidades de bondade e de sabedoria (Cf. EHU II, 14). Nessa perspectiva, o que se

considera um Ser possuidor de suprema sabedoria, inteligência e bondade, causa imediata dos

acontecimentos e fenômenos naturais, carece de elementos que justifique sua existência

racionalmente, uma vez que não se logra encontrar uma impressão correspondente a essa

ideia. Entretanto, na História, a preocupação de Hume não está voltada para a afirmação ou

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45

negação de uma divindade, visto que através do teísmo genuíno abre-se a possibilidade da

existência de um Ser supremo como causa última e original de todas as coisas.

Para que possamos compreender mais a fundo a gênese da ideia que o homem tem de

Deus, diz Hume, “devemos voltar nosso pensamento para o politeísmo, a religião primitiva

dos homens incultos” (HNR, p. 29) que foi, sem dúvida, a primeira religião da humanidade.

Nesse sentido, ao recorrermos ao testemunho histórico observaremos que, desde à

Antiguidade, a humanidade encontrava-se imersa no politeísmo (Cf. HNR, p. 23), uma vez

que a concepção monoteísta, em qualquer uma de suas formas, não se revelou acessível a

muitos povos primitivos.

De acordo com os argumentos humeanos acerca da origem do sentimento religioso no

homem, podemos afirmar que ela se entrelaça estreitamente com suas preocupações

cotidianas:

Podemos concluir, portanto, em todas as nações que abraçaram o

politeísmo, as primeiras ideias de religião não nasceram de uma

contemplação das obras da natureza, mas de uma preocupação em

relação aos acontecimentos da vida, e da incessante esperança e medo

que influenciam o espírito humano (HNR, p. 31).

Podemos afirmar, então, que as divindades são concebidas e buscadas não pelo

estabelecimento da verdade constatada, mas pelas paixões humanas. A existência delas é

postulada em associação com a preocupação acerca da felicidade e com o temor de futuras

calamidades, entre outras coisas. Por essa visão, a boa ou a má fortuna no desenrolar da vida

humana resulta da boa ou má celebração dos sacrifícios, ritos e cerimônias (Cf. HNR, p. 32).

Assim, agitados pelas paixões, os homens suplicam o apoio e o amparo das divindades por

sua “ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de

vingança, a fome e outras necessidades” (HNR, p. 32).

Por desconhecer as verdadeiras causas que regem o mundo, os homens são levados por

uma ansiosa expectativa dos acontecimentos futuros, e orientados pela imaginação, a

atribuírem às divindades poderes invisíveis que regem o curso da natureza da qual são

totalmente dependentes (Cf. EHU IV, 19). Nesse sentido, a gênese das divindades por parte

dos homens está enraizada no desconhecimento das causas que conferem regularidade à

natureza. Por isso, quanto mais o homem vive sua existência guiada pelo acaso, mais ele é

supersticioso (Cf. HNR, p. 37).

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Hume admite que, por uma tendência geral, o homem concebe as divindades segundo

a sua própria imagem, transferindo para as divindades aquelas qualidades que são

classificadas como as mais elevadas56

. O que pode justificar o emprego de prosopopeias nas

poesias e mitos da Antiguidade ocorrem de modo frequente (Cf. HNR, p. 36-38), elaborando

uma figura divina que se iguala às paixões humanas tanto na aparência quanto nos desejos.

Nesse contexto, por desconhecerem as causas do mundo, os homens confiam quase que

cegamente no poder dos deuses e com trêmula curiosidade quantos aos eventos futuros,

entregam a eles a responsabilidade pelos poderes da natureza. Por conseguinte, a preocupação

em relação aos acontecimentos da vida, influenciados por suas esperanças e medos, fazem

com que os homens se voltem aos deuses para que lhes sejam favoráveis aos seus desejos, por

isso é necessário realizar sacrifícios, como exercícios litúrgicos, a fim de obter dos deuses os

efeitos esperados (Cf. HNR, p. 31).

Uma das alternativas encontradas pelos homens para contornar os efeitos arbitrários da

natureza é recorrer aos deuses, como observa Hume: “Não é surpreendente, então, que o

homem, absolutamente ignorante das causas, e ao mesmo tempo tomado por tamanha

ansiedade quanto ao seu futuro destino, reconheça imediatamente que depende de poderes

invisíveis, dotados de sentimentos e inteligência” (HNR, p. 37). Nota-se aqui que o homem

não procura as divindades para que respondam aos anseios mais profundos de sua existência

ou a questões abstratas, mas, pelo contrário, para buscar soluções para as suas variadas

necessidades. Hume advoga que, justamente, em razão dos sentimentos humanos de

esperança e medo surgem as primeiras divindades, as quais são invocadas pelos homens, que

tentam agradá-las (uma forma de adulação), com o intuito de obter delas proteção para seu

destino (Cf. HNR, p. 37).

Pela própria estrutura, o politeísmo, por meio de sua diversidade de sistemas, se

mostra capaz de responder às necessidades do homem, uma vez que as divindades nascem de

acordo com os seus anseios. Todavia, sendo prisioneiros da incerteza, os homens se entregam

aos erros mais grosseiros e evidentes, e imbuídos de um espírito supersticioso se satisfazem

com respostas superficiais e, por vezes, inescrupulosas. Hume, em sua interpretação desse

sistema religioso, salienta que: “Os homens comuns provavelmente nunca foram levados tão

longe em suas pesquisas, nem derivaram da razão seus sistemas religiosos, embora filólogos e

56

A tese de Hume de conceber um deus Arquiteto como semelhante ao homem, sendo dotado de poderes

infinitos, vai de encontro aos fundamentos judaicos, cristãos ou islâmicos, em que se concebe um único Deus do

qual, como se pode verificar, criou o homem à sua imagem e semelhança (Cf. HNR, p. 36).

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mitólogos, como vimos, jamais manifestaram tanta penetração” (HNR, p. 51). Justamente por

não se questionarem de maneira profunda, sobretudo, sobre sua existência, mas buscando

respostas para suas necessidades, os homens se satisfazem com as respostas das divindades e

entregam-se aos seus cultos para obterem a garantia de uma vida segura e próspera graças aos

poderes ocultos e inteligentes.

O culto politeísta, conforme a interpretação apresentada por Hume, está estreitamente

vinculado às necessidades do homem. Disso segue que a concepção que os homens tem dos

deuses, excetuando os poderes divinos, são concebidas atrelados às características humanas,

uma vez que conservam suas paixões e apetites. Sendo assim, como sublinha Hume, em sua

maior parte, “... foram outrora homens, e que sua divinização deve-se a admiração e ao afeto

do povo” (HNR, p. 56)57

. Por isso, em decorrência da incapacidade humana de se questionar,

o que predomina principalmente entre os homens incultos, com certa facilidade, são levados

pelos seus sentimentos, de modo que imaginam que cada evento ocorra por uma decisão

divina58

.

Seguindo o fio condutor dos argumentos humeanos acerca do monoteísmo, podemos

afirmar: “A doutrina de um deus supremo e único, autor da natureza, é muito antiga e

propagou-se entre nações importantes e populosas, onde os homens de todas as classes e de

todas posições sociais a abraçaram” (HNR, p. 59). A crença monoteísta, que se origina no

politeísmo e na consequente supremacia de um deus dentre os demais, conserva alguns

elementos supersticiosos de sua origem como, por exemplo, os cultos idólatras de adulação.

Por isso, podemos observar, como salienta Hume, que muitos homens deixam-se levar por

recônditas crenças de cunho idólatra, pois à medida que o temor e a misérias se fazem mais

fortes, inventam novas formas de adulação, a fim de agradar a divindade (Cf. HNR, p. 61-62).

Ademais, pela existência de um ente supremo, de acordo com as formas mais perfeitas de

monoteísmo, e pela demasiada distância dos homens se faz necessário alguma espécie de

intermediários responsáveis por essa ligação entre Deus e os homens. Rememorando a figura

dos semideuses presentes nas crenças politeístas, no monoteísmo os santos são os que

exercem essa função. Contudo, por estarem mais próximos dos homens e se assemelharem a

57

Devemos sublinhar que, de acordo com Hume, as divindades são tão pouco superiores aos homens, uma vez

que estes podem ser convertidos em deuses ao ganharem a gratidão dos homens por algum benefício concedido. 58

Podemos observar que o homem, por seu modo grosseiro e vulgar de considerar o mundo, legitimará a

existência de seres divinos cujos eventos são deles derivados. Por isso, ao retratar o deus da guerra será

naturalmente representado através de uma figura violenta, cruel e furiosa. Assim como o deus da poesia,

representado por sua distinção, educação e amabilidade. Por fim, o deus do comercio poderá ser desenhado como

desonesto e impostor. Por notar que através desses exemplos os homens são levados a unir o poder invisível a

algum objeto de natureza visível (Cf. HNR, p. 53).

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eles acabam se transformando no grande objeto de devoção em detrimento a divindade, que é

deixada em segundo plano. Nesse contexto, podemos afirmar que há uma verdadeira volta do

politeísmo, camuflada pretensamente na crença monoteísta.

Em suma, podemos perceber primeiramente que, através da análise histórica descrita

por Hume, o teísmo supersticioso na forma politeísta é a primeira forma de religiosidade do

homem e, por conseguinte, a forma monoteísta originada da evolução do politeísmo e,

consequentemente, da supremacia de um deus sobre os demais (Cf. HNR, p. 61). Nesse

contexto, podemos, atentando para as palavras de Hume, concluir que: “Eis aqui a origem da

religião e, consequentemente, da idolatria ou do politeísmo” (Cf. HNR, p. 72). Nesse sentido,

em segundo lugar, podemos perceber mais claramente a distinção realizada por Hume entre

teísmo supersticioso, que delineamos até aqui, e teísmo genuíno, que será delineado a partir

da investigação entre distinção entre providência particular e providência original, proposta

no item abaixo.

2.1.1 Distinção entre providência particular e providência original

Com a pretensão de compreender as formas de teísmo supersticioso e de teísmo

genuíno, Hume explicitará na História natural da religião que a distinção entre a providência

particular e a providência original é uma maneira de abarcar a distinção entre os tipos de

teísmo apresentados no início da supracitada obra. A providência particular, delineada até

aqui pelas crenças do politeísmo e do monoteísmo, se refere aos acontecimentos da natureza

como efeitos imediatos e arbitrários das volições particulares da divindade suprema, que é por

Hume rejeitada. Já a providência original, se refere à regularidade e uniformidade que

vislumbramos na natureza possibilita a afirmação da existência de uma mente organizadora

que formula leis gerais e imutáveis que percebemos através dos sentidos. No entanto, essa

perspectiva mesmo quando defende a existência de um ser supremo, não deixará de ressaltar

que ele se limita a dar o impulso originário.

Como já dissemos, a distinção entre os tipos de providência, representa também os

tipos de teísmos apresentados, permeando toda extensão da História natural da religião.

Nessa linha de pensamento, podemos admitir que o itinerário das crenças humanas nasce e se

desenvolve através dos preconceitos religiosos presentes nas formas de politeísmo e

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monoteísmo que declinam a partir da descoberta dos erros grosseiros e de concepções

vulgares (Cf. HNR, p. 73). Como Hume afirma, por admitir que, a partir de uma pequena

reflexão, podemos vislumbrar na natureza uma certa regularidade e uniformidade, afirmamos

haja a possibilidade da existência de uma mente organizadora:

Pois o homem, tendo aprendido através de preconceitos

supersticiosos a dar importância a algo falso, quando isso lhe falta e

ele descobre, ao refletir um pouco, que o curso da natureza é

regular e uniforme, toda sua fé cambaleia e desmorona. Mas

quando chega a aprender, por meio de uma reflexão mais profunda,

que precisamente tal regularidade e uniformidade constitui a prova

mais clara da existência de um desígnio e de uma inteligência

suprema, volta àquela crença que tinha abandonado e pode, agora,

estabelecê-la sobre fundamento mais firmes e duráveis (HNR, p.

60-61).

Recorrendo à história da humanidade e à Antiguidade clássica, berço da filosofia,

vemos que os primeiros filósofos por meio de suas elucubrações não tencionavam incluir em

seus sistemas uma divindade como causa criadora. Com o objetivo de alcançar uma

explicação racional que justifique as causas primeiras, até então desconhecidas ou explicadas

de maneira alegórica, buscavam, por um lado, se afastar concepções míticas do pensamento e,

por outro, procuravam, de modo racional, a causa de todas as coisas. Nesse contexto,

podemos citar Tales de Mileto que, no século VI a.C., afirmou ser a água o elemento

formador do universo. A importância dessa afirmação não consiste propriamente na escolha

do elemento água como arché, mas no tipo de justificativa que apresentá-lo como origem

primordial de tudo. Tudo defendido como fruto da reflexão racional acerca das causas

primeiras de tudo que existe. Por essa óptica, através da reflexão racional ocorre,

paulatinamente, um afastamento da postulação da existência de divindades humanizadas, mas

com poderes superiores ou extraordinários. Essa a razão pela qual os primeiros filósofos, ao

se perguntarem a respeito da causa primeira de todas as coisas, serão acusados de ateísmo. Por

deixarem de lado os cultos supersticiosos, por não reconhecerem os poderes divinos, são

acusados de blasfêmia (Cf. HNR, p. 50).

Apesar das crenças monoteístas rejeitarem algumas crenças politeístas, serão

conservados alguns princípios dessas crenças, pois é possível verificar que alguns traços,

irracionais e supersticiosos estão presentes em ambas formas de crença. Sendo assim, ao

compararmos as religiões politeístas com as monoteístas, notamos que a primeira forma de

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culto assenta-se sobre as mais inescrupulosas tradições a ponto de conceber práticas ou

opiniões bárbaras de acordo com a credulidade dos homens. Em contraposição, o

monoteísmo, em sua forma mais elevada, supõe que exista uma única divindade, que encarna

a perfeição da razão e da bondade, de tal modo que rejeitará, por conseguinte, os cultos

considerados frívolos, irracionais e desumanos. Todos os cultos, portanto, que enveredarem

para alguma forma de idolatria supersticiosa, advertem os monoteístas, devem ser banidos,

uma vez que não oferecem aos homens os princípios mais basilares de justiça e benevolência.

As palavras de Hume, acerca dos demais cultos religiosos para além das crenças monoteístas,

são enfáticas: “Quando se admite um único objeto de devoção, a adoração de outras

divindades é considerada absurda e ímpia” (HNR, p. 76).

O culto monoteísta, por sua vez, nos apresenta um Deus que é a representação fiel da

bondade e da moral. Sendo assim, todos os atos realizados pelos homens, devem estar

pautados, para que sejam considerados bons, nos mandamentos divinos. Por outro lado, os

homens que fogem dessas prescrições serão punidos, sendo assim, a contestação da

autoridade divina é considerada falta grave e que pode acarretar reações duras59

. Perante essas

questões, Norton afirma:

A partir desta conclusão Hume continua a argumentar que o

monoteísmo, aparentemente a posição mais sofisticada, é na

verdade moralmente retrógrada, pois, uma vez tendo se

estabelecido, o monoteísmo tende naturalmente para o status quo e

a intolerância, estimulando degradantes “virtudes monásticas”,

sendo mesmo um perigo para a sociedade, pois demonstra ser uma

causa de atos violentos e imorais contra aqueles que não

conseguem agir de acordo com seus princípios. Em contraste, o

politeísmo é tolerante com a diversidade e incentiva virtudes

naturais que melhoram a condição humana, sendo, portanto, de um

ponto de vista moral, superior ao monoteísmo60

59

Hume, acerca dessa questão afirma: “Quanto aos partidos eclesiásticos, podemos observar que, em todas as

épocas do mundo, o clero tem sido inimigo da liberdade; e certamente essa sua conduta constante deve ter se

baseado em razões permanentes de interesse e ambição. A liberdade de pensamento, e de expressão dos

pensamentos, é sempre fatal ao poder clerical, bem como às piedosas fraudes em que geralmente assenta (...)”

(HUME, 2004, 168-169). 60

“From this conclusion Hume goes on to argue that monotheism, seemingly the more sophisticated position, is

in fact morally retrograde, for, once having established itself, monotheism tends naturally toward zeal and

intolerance, encourages debasing, “monkish virtues”, and is itself a danger to society because it proves to be a

cause of violent and immoral acts directed against those who fail to act in accord with its tenets. In contrast,

polytheism is tolerant of diversity and encourages those genuine virtues that improve the circumstances of

humankind, and thus from a moral point of view is superior to monotheism” (NORTON, 1993, p. 20-21).

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De acordo com os argumentos humeanos, existe uma máxima proverbial que é

postulada na confirmação de uma experiência geral a respeito do caminhar da humanidade

dentre as crenças teístas supersticiosas, de politeísmo e monoteísmo, que espera piamente no

poder transcendente de uma divindade (Cf. GASKIN, 1993, p. 486). Por isso, defende que: “A

ignorância é a mãe da devoção” (HNR, p. 126). Nesse contexto, percebemos que a

superstição e ignorância, que imperam nas religiões reveladas, guiam o homem enveredando-

o por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em

opiniões misteriosas e absurdas61

. Sobre essa questão, Quinton destaca que a crença

monoteísta: “(...) é menos tolerante que seu predecessor selvagem. Outra deficiência moral do

monoteísmo é sua preferência por ‘virtudes monásticas’ tais como a humildade em oposição à

coragem e à autoconfiança de nossos ancestrais” (QUINTON, 2009, p. 56).

Seguindo os argumentos de Hume, podemos compreender que a passagem do teísmo

supersticioso para o teísmo genuíno ocorre mediante uma simples reflexão que, certamente,

consegue entrever a ordem do universo. De modo análogo, ocorre, paulatinamente, na

passagem da providência particular para a providência original: primeiramente, o homem

imbuído por suas crenças supersticiosas, busca na intervenção divina a satisfação de suas

necessidades e, posteriormente, desvinculando-se dessas práticas supersticiosas, por meio de

reflexões sobre o fluxo da natureza, poderá admitir uma providência original da mente

suprema. Nesse sentido, esse último tipo de providência compreende a existência de Deus

como sendo um ser que planeja a ordem observada na natureza. No entanto, mesmo

conservando o caráter imutável e eterno presente em muitas religiões reveladas, exclui a

possibilidade de qualquer intervenção divina, seja ela por meio de milagre, revelação e

escatologia, tal como é apresentada pelo carácter redentor com que se apresentam algumas

religiões (Cf. HNR, p. 98-101).

De acordo com os argumentos humeanos apresentandos, podemos concordar com a

interpretação de Gaskin que a análise dos argumentos descritos na História parecem

direcionar para a pergunta: “Por que será que alguém acredita em Deus ou em deuses?”62

.

Responderíamos, assegura Gaskin, que os argumentos da religião natural não comprovam a

existência de qualquer divindade que justifique alguma crença religiosa, mas, por uma

61

Como assegura Norton: “The important point here, however, is that all religious belief derive from fear and

ignorance, and, moreover, to foster the continued development of these undesirable characteristics” (NORTON,

1993, p. 21). 62

“Why does anyone believe in God or gods?” (GASKIN, 1993, p. 486).

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tendência natural (assim como ocorrem nas crenças causais), os homens, por superstição ou

ignorância, são levados a acreditar em um poder superior.

Diante das conclusões extraídas da História, recorreremos a Gaskin que faz uma

hermenêutica embasada da obra de Hume. De acordo com esse comentador, qualquer

rotulagem acerca da posição religiosa de Hume pode ser enganosa, uma vez que a distinção

elaborada por Hume entre teísmo supersticioso e teísmo genuíno perfazem uma estratégia

irônica de sua concepção religiosa frente as autoridades eclesiásticas (Cf. GASKIN, 1993, p.

317).

De acordo com a interpretação de Gaskin, os argumentos humeanos acerca das crenças

religiosas não tencionam afirmar a inexistência de Deus, mas através da forma mais perfeita

de teísmo, designada na forma de teísmo genuíno, podemos mediante a observação da ordem

e regularidade com que a natureza se apresenta podemos identificar a possibilidade de um

agente ordenador. Por isso, afirma Gaskin, na História podemos afirmar que a posição

humeana, pelas circunstâncias históricas, pode ser caracterizada pela expressão “deísmo

atenuado” (Cf. GASKIN, 1993, p. 322)63

. Tal expressão pode ser entendida como uma

posição filosófica naturalista de Hume que acredita a natureza é fruto de uma inteligência

superior, que é compreendida através da razão, contrário aos elementos teístas como, por

exemplo, a revelação64

.

A posição de Monteiro, descrita na introdução da História, concordando com a

perspectiva apresentada por Gaskin, reafirma que o termo deísmo atenuado expressa a posição

de Hume em favor da existência de um Ser supremo criador do mundo. No entanto, nega sua

intervenção sobrenatural como uma providência particular. Essa posição, certamente, é

permeada por elementos irônicos, por motivos anteriormente mencionados, e dão margem a

diferentes tipos de reconstrução argumentativa acerca da posição de Hume sobre a religião

(Cf. HNR, «Introdução», p. XVI).

63

Como afirma Abbagnano acerca dessa expressão: “O deísmo do séc. XVIII, assim como o seu precedente histórico, a

doutrina da religião natural dos sécs. XVI e XVII (Thomas Morus, Herbert de Cherbury, Locke), contrapõe à revelação

histórica a revelação natural, que ocorre através da razão, chegando a ver no Evangelho (como Matteo Tindall) apenas "uma

republicação da lei da natureza" (O cristianismo antigo como criação, 1730)” (ABBAGNANO, 1998, p. 260). 64

“Doutrina de uma religião natural ou racional não fundada na revelação histórica, mas na manifestação natural

da divindade à razão do homem. O Deísmo é um aspecto do Iluminismo (v.), de que faz parte integrante. (...) As

teses fundamentais do Deísmo podem ser recapituladas assim: 1ª a religião não contém e não pode conter nada

de irracional (tomando por critério de racionalidade a razão lockiana e não a cartesiana); 2a a verdade da religião

revela-se, portanto, à própria razão, e a revelação histórica é supérflua; 3a as crenças da religião natural são

poucas e simples: existência de Deus, criação e governo divino do mundo, retribuição do mal e do bem em vida

futura” (ABBAGNANO, 1998, p. 238).

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Mesmo que Hume aceite a existência de um Ser supremo como criador e ordenador

universal, isso não implica que possamos atribuir a Ele quaisquer qualidades ou conhecer a

sua natureza. Nessa perspectiva, os graus de poder, inteligência e benevolência que são

atribuídos à divindade através da analogia com a natureza humana, então, ao atribuirmos,

supondo certas qualidades, recaímos ao campo da hipótese criada pela analogia (Cf. EHU XI,

106). Por isso, com base na experiência causal não conseguimos justificar a existência de

Deus bem como apontar a partir ordem visível da natureza atributos divinos.

Podemos entender que o termo “deísmo atenuado” que é sugerido como a posição de

Hume em relação as crenças religiosas partem de uma analogia com uma máquina perfeita,

que permite supor a existência de um designer inteligente através da percepção de uma

organização com leis fixas e imutáveis apresentes na observação da ordem e harmonia

presentes na natureza, na qual todas as coisas subsistem dando vida e movimento a tudo (Cf.

DNR VI, p. 57). Contudo, inexiste ulterior intervenção, seja milagrosa ou não, que muitas

religiões supõem como sendo efeito dos inúmeros atributos de Deus.

Em todas as religiões, portanto, por mais benéficas que possam ser ou parecer, seus

seguidores se dedicam a fim de alcançar os favores divinos enveredam-se, como sublinha

Hume, “(...) por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença

em opiniões misteriosas e absurdas” (HNR, p. 115).

Em suma, o medo e o desconhecimento das causas primeiras impulsionam o homem

para a crença em poderes divinos. Essa questão ocorre principalmente nas religiões reveladas,

nas quais a ignorância e a superstição se sobrepõem à razão. Não é o que ocorre na religião

natural, pois através da racionalidade se rechaçam os perigos dos atos devocionais baseados

na ignorância. Sobre essa problemática Hume escreve:

É tudo uma incógnita, um enigma, um mistério inexplicável. O

único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre

esse assunto parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo.

Mas tal é a fraqueza da razão humana e tal é o irresistível contágio

da opinião que dificilmente poderíamos manter essa dúvida

deliberada, se não ampliássemos nossa visão e, opondo uma

espécie de superstição à outra, as colocássemos em disputa,

enquanto de nossa parte, durante essa fúria e controvérsia,

felizmente escapássemos para as regiões calmas, ainda que

obscuras, da filosofia (HNR, p. 126).

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Desse modo, com base nos argumentos humeanos, podemos afirmar que o politeísmo

é a religião original de todos os homens, uma vez que, levados por suas superstições, os

homens buscam nos poderes ocultos das divindades elementos que satisfaçam suas

vicissitudes beneficiando-os ou, pelo menos, os afastando dos possíveis males. Não há outra

explicação para o momento crucial da história da religião a não ser a da satisfação das

necessidades humanas. Desse modo, são explicadas as concepções de divindades com traços

antropomórficos, que nascem das projeções que ultrapassam os limites do próprio homem.

Ademais, em um processo análogo ao desenvolvimento social, os homens elegem uma

divindade como sendo a principal, pois através dela muitos benefícios são considerados

recebidos e, progressivamente, dentre as inúmeras divindades passa-se a ter a predominância

de uma divindade que sobrepuja as demais. No entanto, as adulações dos ritos anteriores são

mantidos, com a diferença que são canalizados, por influenciarem, direta ou indiretamente, a

vida da sociedade. Esse percurso leva-nos a indagar de que modo, através de nosso estudo,

podemos compreender a concepção de um desígnio ao qual toda a natureza e a vida humana

estão ajustados. Embora a História esteja permeada pela problemática do desígnio, somente

nos Diálogos sobre a religião natural – que analisaremos no próximo item – sua investigação

efetivamente se realiza.

Destarte, influenciado pela racionalidade iluminista, Hume buscará compreender a

causa ordenadora de todas as coisas através dos conceitos basilares da epistemologia

empirista. Sua obra suscita inúmeros questionamentos, até mesmo pelo número limitado de

fontes históricas. Contudo, podemos afirmar que a publicação de suas obras de cunho

religioso gerou um clima de insegurança por dois aspectos: abandono definitivo da religião ou

nova fundamentação da filosofia da religião. Nesse sentido, como Mounce ressalta, a hipótese

que Hume formulou na História, e que buscará desenvolvê-la nos Diálogos sobre a religião

natural, não se confunde com um posicionamento antiteológico. Isso, faz com que suas obras

devotadas à problemática do fato religioso possam ser consideradas, no mínimo,

interessantes65

.

65

Mounce avança igualmente uma hipótese interessante. Hume, ao rejeitar o argumento do desígnio, o faria por

razões de conformidade com sua própria epistemologia. A experiência é uma instância insuficiente para fornecer

uma explicação, seja das “conclusões na ciência” seja das conclusões na “teologia natural” (Cf. MOUNCE,

1999, p. 110). No entanto, Mounce trata indistintamente os argumentos da seção XI da Investigação sobre o

Entendimento Humano e os argumentos dos Diálogos. Para ele, quando Hume nega o princípio da ação

permanente da providência, ele estaria igualmente a negar a legitimidade da ciência; como não se pode inferir do

efeito mais do que aquilo que é percebido no próprio efeito (a causa deve ser proporcional ao efeito), então,

como argumenta Mounce, não se poderia inferir da harmonia do mundo a existência da providência, pois seria

atribuir ao efeito propriedades que nele estão ausentes (Cf. MOUNCE, 1999, p.111). Ora, Hume tinha perfeita

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2.2 Análise do argumento do desígnio

Considerando a proposta teórica desta dissertação, a análise da temática do argumento

do desígnio torna-se um ponto fundamental, quiçá central. Com esse intuito, tomaremos como

base os Diálogos sobre a religião natural, escrito por Hume entre 1751 e 1755 e publicado

postumamente em 1779. Embora essa obra seja considerada pelos comentadores como a que

melhor representa a filosofia da religião de Hume66

, sua contribuição relaciona-se também

com a metafísica, teoria do conhecimento e, de modo semelhante, com a filosofia moral que

Hume formulou.

O texto dos Diálogos é considerado um grande clássico filosófico, pois inúmeros

pensadores reconhecem a maestria de Hume em relacionar diversas temáticas filosóficas

numa mesma obra. Entretanto, sua redação em forma de diálogos67

visa a evitar a expressão

explícita de sua real posição sobre a temática religiosa. Essa é a razão pela qual seus

argumentos são elaborados sem comprometimento direto com nenhum deles, através das

posições apresentadas pelos personagens. Desse modo, podemos afirmar que para desvelar o

pensamento do autor acerca da religião, como Monteiro adverte, devemos investigar o que é

sugerido nas entrelinhas (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 47). Tendo isso presente, Monteiro

afirma que autores como Kemp Smith, Flew e Noxon concordam que Hume ao redigir os

noção desta dificuldade e a tratou como convinha através de duas estratégias distintas. Em primeiro lugar, na

seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano, pressupôs a ação da providência e limitou-se a apontar

algumas dificuldades para esta hipótese. Já nos Diálogos, Hume enfrentou a árdua tarefa de justapor uma

alternativa que, pelos seus argumentos, jamais considerou verdadeira, mas apenas (como torna-se claro na parte

VIII dos Diálogos) mais plausível. Da mesma forma, Hume nunca considerou verdadeira sua hipótese do hábito,

mas apenas a hipótese mais plausível. Registre-se que eu considero de extrema importância ressaltar esta leitura

de Mounce, pois ela auxilia-nos a compreender a importância de separar metodologicamente as estratégias

utilizadas por Hume nos dois textos que estão em questão. Se tomamos simplesmente o método empirista de

Hume como um guia para rejeitar as hipóteses teológicas, temos de tomá-lo também como uma boa razão para

suspeitar de qualquer hipótese acerca da harmonia natural (e, como bem argumenta Mounce, de qualquer

hipótese científica). No entanto, desde a formulação da hipótese do hábito (pelo menos), Hume se assume como

um filósofo construtivo, e esta atitude não é abandonada nos Diálogos. Esta atitude, talvez por razões de

estratégia metodológica, foi abandonada na seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano, onde

nenhuma hipótese alternativa foi proposta. Contudo, como a parte VIII dos Diálogos mostra, Hume adianta uma

interessante hipótese rival ao argumento do desígnio. 66

Sobre os Diálogos, Zilles observa que “sem dúvida constituem uma das grandes linhas divisórias nas

discussões filosóficas sobre a religião” (ZILLES, 2009, p. 2). 67

Os Diálogos são escritos em forma de conversação para favorecer a exposição das ideias de Hume, de modo

que não o envolva diretamente em polêmicas. No entanto, sobre esse gênero literário, como o autor afirma: “...

qualquer questão filosófica que seja tão obscura e incerta a ponto de não ser possível à razão humana chegar a

uma conclusão definitiva sobre ela parece levar-nos naturalmente (se é que, afinal, devemos ocupar-nos dela) ao

estilo de diálogo e conversação” (EHU, «Introdução», p. IV).

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56

Diálogos tinha como meta exprimir seu ceticismo em matéria religiosa sem ficar exposto aos

controles da censura (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 42).

Passaram-se vinte anos das primeiras linhas até a publicação póstuma dos Diálogos.

Esse longo tempo é devido à preocupação de Hume de evitar se contrapor a uma sociedade

fortemente religiosa e, consequentemente, se proteger de eventuais retaliações pelas teses

defendidas. Por isso, os Diálogos relatam que Pânfilo contará ao seu amigo Hérmipo um

encontro entre três intelectuais – Cleantes, Demea e Filo – que discutirão a plausibilidade do

argumento do desígnio.

A publicação dos Diálogos insere-se no rol de debates da temática acerca do

argumento do desígnio, pois diversos pensadores, assim como também cientistas e clérigos,

investigam a possibilidade de desígnios presentes na natureza legitimarem a existência de um

Ser supremo criador de todas as coisas. Nesse contexto, por meio de diversos exemplos

poderemos mostrar que a crítica ao argumento do desígnio realizada por Hume é bem

sucedida, como relatam seus comentadores, pois recebeu boa acolhida a ponto de influenciar

muitos pensadores que se devotaram à temática religiosa68

.

Podemos dar o exemplo de Darwin (1809-1882) quando cita a obra Provas do

cristianismo (1794) de Paley (1743-1805), bem como Filosofia moral e política (1785) e

Teologia natural (1803), como obras indispensáveis para o estudo de temáticas que se

desenvolveram a partir da crítica humeana ao argumento do desígnio. A respeito das obras

que Darwin utilizou em suas pesquisas, Darwin afirma que: “O estudo cuidadoso desses

trabalhos, sem tentar aprendê-los de cor, foi a única parte do curso acadêmico que, como

julguei na época e ainda julgo agora, teve alguma utilidade para a minha formação

intelectual” (DARWIN, 1993, p. 59). A aprovação do pensamento de Paley feito por Darwin

aparece também na obra Origem das Espécies na qual elabora os argumentos fundamentais

acerca da seleção natural.

Diante da dificuldade de alcançar objetivamente alguma conclusão acerca das questões

religiosas, principalmente por sua vastidão, presume-se a necessidade de um esforço maior

para sua compreensão. Nesse sentido, o ceticismo servirá como suporte investigativo de

assuntos aos quais Hume devota especial atenção: “somos como forasteiros em uma terra

68

Dentre muitos pensadores podemos destacar: John Ray com A sabedoria de Deus manifestadas nas obras da

criação (1691); Paley com a Teologia natural (1803); William Whewell com a Astronomia e a física geral

consideradas em relação à teologia natural (1833); dentre outros que discordavam do pensamento humeano

acerca da religião como John Bruce, Thomas Brown, Daniel Dewar, Dugald Stewart, John Abercrombie e James

McCosh, e, outros que concordavam, como Robert Blakey, Thomas Belshan, Ernest Albee e Henry Sidgwick.

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57

estranha, aos quais tudo parece suspeito e que permanentemente correm o risco de transgredir

as leis e os costumes das pessoas com as quais convivem e se relacionam”69

. Desse modo, os

limites da razão humana são vislumbrados no desenrolar da obra e na comprovação da

inexistência de uma justificativa racional como fundamento para a religião natural. Portanto,

acerca da faculdade da razão devemos tomar consciência, como Hume afirma, tomar

consciência da sua debilidade, cegueira e estreiteza (Cf. DRN, I, p. 16).

Em conformidade com seu empirismo, Hume nos Diálogos elaborará com

profundidade, e de modo recorrente, sua crítica em relação às crenças religiosas. Dessa forma,

podemos destacar, através das falas de Filo, alguns trechos que contém certa ironia e

sarcasmo, capazes de reiterar o posicionamento cético humeano de escritos anteriores:

Quando nossas especulações se restringem aos negócios, à moral

ou à política, podemos a cada instante apelar para o senso comum e

para a experiência, que fortalecem nossas conclusões filosóficas e

removem (em grande parte, ao menos) a desconfiança que

acertadamente experimentamos frente a todo raciocínio demasiado

sutil e refinado. No caso dos raciocínios teológicos, contudo, não

dispomos dessa vantagem; e, ao mesmo tempo, estamos lidando

com objetos que são sem dúvida excessivamente vastos para que

possamos entendê-los, e que, de todos, são os que mais esforço

exigem para que se tornem familiares à nossa compreensão70

.

Em linhas gerais, podemos sintetizar o estudo da temática religiosa exposta por Hume

nos Diálogos recorrendo a duas vertentes: (a) a busca da análise dos desígnios presentes na

natureza podem justificar a existência de um ser onipotente e criador; e (b) a partir da possível

justificação podemos conhecer a sua natureza.

69

“We are like foreigners in a strange country, to whom every thing must seem suspicious, and who are in

danger every moment of transgressing against the laws and customs of the people with whom they live and

converse” (DRN, I, p. 20) 70

“So long as we confine our speculations to trade, or morals, or politics, or criticism, we make appeals, every

moment, to common sense and experience, which strengthen our philosophical conclusions, and remove, at least

in part, the suspicion which we so justly entertain with regard to every reasoning that is very subtitle and

refined. But, in theological reasonings, we have not this advantage; while, at the same time, we are em‐ ployed

upon objects, which, we must be sensible, are too large for our grasp, and of all others, re‐ quire most to be

familiarized to our apprehension” (DRN I, p. 19-20).

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58

2.3 Os personagens dos Diálogos e suas teses

A forma dialógica por meio da qual os três personagens defendem suas posições serão

consideradas, primeiramente, de forma individual e, em seguida, conjunta a fim de favorecer a

eficácia argumentativa da obra, bem como as respostas a possíveis objeções contra as

posições sustentadas por cada personagem.

2.3.1 Posição de Demea: fideísmo

Demea é descrito por Pâmfilo (narrador) como uma pessoa imbuída de uma “ortodoxia

rígida e inflexível” (DNR «Introdução», p. 12). Este personagem defende um argumento

(considerado a priori) em favor da existência de Deus e da incompreensibilidade dos atributos

divinos por causa da fragilidade da natureza humana e das limitações do entendimento

humano. Nesse sentido, a existência de Deus é entendida como certa e self-evident71

e,

consequentemente, não se abre à discussão. A compreensão do ponto de vista de Demea fica

facilitada quando afirma:

Estou convencido de que ninguém dotado de bom senso jamais

manteve alguma dúvida diante de uma verdade tão certa e

autoevidente. A questão não diz respeito à EXISTÊNCIA, mas à

NATUREZA de DEUS. E esta, eu afirmo, é-nos completamente

incompreensível e desconhecida, dada a fragilidade do

entendimento humano72

.

Com base nos argumentos elaborados por Demea, podemos concluir, de forma

sintética, que sua posição defende que o único elemento suficiente para legitimar a aceitação

da existência de Deus são os argumentos místico-religiosos, pois, segundo ele, a razão, sendo

potente para provar a existência de Deus, não tem poderes intelectuais para afirmar quais são

71

A posição defendida por Cleanthes, corroborando com a posição de Demea, concebe a existência de Deus, no

entanto não é self-evident (Cf. DNR II, 25). 72

“I am persuaded, ever entertained a serious doubt with regard to a truth so certain and self‐evident. The

question is not concerning the BEING, but the NATURE of GOD. This, I affirm, from the infirmities of human

understanding, to be altogether incomprehensible and unknown to us” (DRN II, p. 25).

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os atributos de Deus. De acordo com Demea, a existência de Deus pode ser demonstrada por

uma prova formal, isto é, a priori73

ou, como era denominado, por meio do argumento

cosmológico. Como esse argumento cosmológico é rechaçado por Hume razões ditadas por

sua epistemologia, não entraremos neste mérito74

.

Seguindo o fio condutor da defesa que Demea elabora em favor da compreensão a

priori da existência de Deus, sua posição ressalta que, dada fragilidade do entendimento

humano, não se pode conceber a natureza da mente suprema, seus atributos, seu modo de

existência e a natureza de sua duração. Há, para Demea, uma espessa névoa encobrindo as

infinitas perfeições Divinas, de tal modo que a única alternativa que se coloca para o homem é

adorá-Lo em silêncio, pois tentar penetrar nessa obscuridade sagrada constitui uma

profanação, e a temeridade de perscrutar seus decretos e atributos, sua natureza e essência,

pode ser considerada uma postura ímpia (Cf. DNR II, p. 26-27).

A defesa da posição de Demea acerca da incompreensibilidade da natureza divina

segue tanto de autores da escolástica como Anselmo e Tomás de Aquino, como de autores

modernos, por exemplo, Descartes e Malebranche (que é citado nominalmente na parte II dos

Diálogos). Podemos dar como exemplo Tomás de Aquino que na Summa Teologicae afirma

que não podemos ter completo e pleno conhecimento da natureza de Deus: “A razão não pode

atingir uma forma simples de modo a lhe conhecer a quididade; pode, contudo, conhecer-lhe a

existência” (Suma Teológica I, Questão XII, Art. XII). Na Summa contra os Gentios reafirma

essa posição: “A inteligência humana é incapaz, pelas suas próprias forças, de apreender a

substância ou a essência íntima de Deus. [...] E, todavia, os objetos sensíveis conduzem nossa

inteligência a certo conhecimento de Deus, até ao ponto de conhecermos que Ele existe”

(Súmula Contra os Gentios, cap. III, p. 65).

73

Talvez uma boa maneira de tentar responder a essa questão seja por meio de um exame atento do que seria

exatamente uma prova ontológica e uma prova cosmológica; ou uma prova a priori (ou puramente a priori), e

uma prova a posteriori, uma vez que, ao que tudo indica, há elementos a posteriori e a priori na argumentação

de Demea - o que nos permite dizer, no mínimo, que sua prova não é completamente a priori, mas sim uma

versão híbrida, isto é, uma versão que mistura argumentos e/ou conceitos a priori e a posteriori. Devemos

também reconhecer o esforço realizado por Hume em mostrar que os raciocínios demonstrativos (compreendidos

como a priori) não eram apropriados para tratar das questões relativas à religião natural, pois estas, sendo

questões de fato e existência, deveriam ser pensadas a partir de raciocínios experimentais (a posteriori) (Cf.

CAMPBELL, 1996, p. 160). 74

Nesse sentido, pode-se supor que a prova de Demea seja denominada a priori pois sua crítica visa, sobretudo,

um método baseado na argumentação. A confusão acerca dessa posição surge porque Demea parte de uma

premissa empírica (a posteriori), e o método de raciocínio desenvolvido pretende ser demonstrativo. Em outras

palavras, parte-se da experiência, mas a conclusão não sendo derivada assume princípios apriorísticos.

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60

O’Connor lança a conjectura de que os argumentos empregados por Demea

estabelecem uma hipótese complexa, persuasiva, sofisticada e carrega consigo certo grau de

plausibilidade sobre os limites da mente humana75

.

2.3.2 Posição de Cleantes: argumento do desígnio

Cleantes apresenta-se como defensor do argumento do desígnio – da prova a

posteriori da existência de Deus – e crítico da prova pretensamente a priori apresentada por

Demea:

Pretende-se que a Divindade seja um Ser necessariamente existente, e

intenta-se explicar a necessidade de sua existência pela asserção de

que se conhecêssemos integralmente sua essência ou natureza,

perceberíamos que é tão impossível que ele não exista como que duas

vezes dois não sejam quatro76

.

No pensamento elaborado por Cleantes, encontramos o tema central dos Diálogos –

debate sobre a legitimidade do argumento do desígnio – que sugere que a existência de um

Ser criador sumamente inteligente, justo, poderoso e benevolente pode ser inferida a partir da

ordem e da harmonia observada no mundo.

Cleantes advoga em defesa de que os desígnios presentes na natureza contêm

elementos similares com certas características humanas, o que possibilita a justificação,

através dessa analogia, da existência de Deus. A ordem e regularidade observadas na natureza

permitem compreender, de forma mais acurada, o movimento das marés, do sol, da lua, da

terra e dos planetas, as variações do clima, o tempo de gestação e vida e dos animais etc. A

mente humana é guiada pela constância com que a experiência a afeta e, por conseguinte,

tende a esperar que se repitam os fatos que outrora foram sucessivamente observados. Essa

organização que observamos nos fenômenos da natureza estimula uma comparação com a

75

David O’Connor, sobre Demea, afirma: “Whatever its merits, Demea’s distinction is Hume’s first introduction

in the Dialogues of the idea that there are severe limits to what we can understand and know, and that those

limits are important in our philosophical thinking about religion” – (O’CONNOR, 2001, p. 40). 76

“It is pretended that the Deity is a necessarily existent being; and this necessity of his existence is attempted to

be explained by asserting, that if we knew his whole essence or nature, we should perceive it to be as impossible

for him not to exist, as for twice two not to be four” (DNR IX, p. 74).

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ordem que depende do desígnio humano, como, por exemplo, a construção de casas, navios,

relógios e barcos. Nessa perspectiva, a mente habitua-se a esperar que de causas semelhantes,

de tal maneira que inferimos, por analogia, a existência de um ser inteligente como causa da

ordem natural. A analogia é vivificada a partir da corroboração da constância com que se

apresentam à mente humana, sugerindo, contudo que os fenômenos naturais são planejados

por um designer inteligente. Nesse contexto, Merrill salienta que a defesa do argumento do

desígnio feita por Cleantes é o melhor meio para explicar para certos fenômenos observáveis

na natureza, pois a hipótese de um designer inteligente como causa ou princípio do mundo

contém uma adaptação dos meios aos fins constatados na natureza (Cf. MERRILL, 2008, p.

91).

Desse modo, partindo do pressuposto descrito na Investigação, que tudo que existe

necessariamente tem uma causa (Cf. EHU VIII, 25), podemos concluir que a existência do

mundo (efeito) sugere uma causa criadora. Por isso, Cleantes, dirigindo-se a Demea nos

Diálogos, adverte-o:

Olhem para o mundo ao redor, contemplem o todo e cada uma de

suas partes: verão que ele nada mais é que uma grande máquina,

subdividida em um número infinito de máquinas menores que, por

sua vez, admitem novamente subdivisões em um grau que

ultrapassa o que os sentidos e faculdades humanas podem descobrir

e explicar. Todas essas diversas máquinas, e mesmo suas partes

mais diminutas, ajustam-se umas às outras com uma precisão que

leva ao êxtase todos aqueles que já as contemplaram. A singular

adaptação dos meios aos fins, ao longo de toda a Natureza,

assemelha-se exatamente, embora excedendo-os em muito, aos

produtos do engenho dos seres humanos, de seu desígnio,

pensamento, sabedoria e inteligência. E, como os efeitos são

semelhantes uns aos outros, somos levados a inferir, portanto, em

conformidade com todas as regras da analogia, que também as

causas são semelhantes, e que o Autor da Natureza é de algum

modo similar ao espírito humano, embora possuidor de faculdades

muito mais vastas, proporcionais à grandeza do trabalho que ele

realizou. É por meio deste argumento a posteriori – e apenas por

meio dele – que chegamos a provar, a um só tempo, a existência de

uma Divindade e sua semelhança com a mente e inteligência

humanas77

.

77

“Look round the world: contemplate the whole and every part of it: you will find it to be nothing but one great

machine, subdivided into an infinite number of lesser machines, which again admit of subdivisions to a degree

beyond what human senses and faculties can trace and explain. All these various machines, and even their most

minute parts, are adjusted to each other with an accuracy which ravishes into admiration all men who have ever

contemplated them. The curious adapting of means to ends, throughout all nature, resembles exactly, though it

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A defesa que Cleantes elabora a favor da defesa do argumento do desígnio – prova a

posteriori da existência de Deus, centra-se em três pontos importantes, a saber: (a) defende

um argumento baseado na analogia; (b) a posteriori, isto é, a partir da experiência; e (c) o

comprometimento de defender apenas esse argumento.

2.3.3 Posição de Filo: ceticismo

O que caracteriza Filo é sua postura cética a respeito da existência de Deus a ponto de

buscar refutar tanto as provas de Cleantes quanto as de Demea78

. Filo, aliando-se parcialmente

a Cleantes formula uma crítica ao argumento apresentado por Demea. Entretanto, através da

sequência argumentativa, podemos observar que seu objetivo é desqualificar o argumento do

desígnio defendido por Cleantes. Deste modo, através da crítica ao argumento do desígnio,

Filo estabelece uma pluralidade de hipóteses como alternativas ao argumento do desígnio,

que, em sua perspectiva, são plausíveis quanto à hipótese do desígnio (Cf. DNR VIII, p. 69-

70). Filo é o principal personagem dos Diálogos e tem como seu principal interlocutor

Cleantes.

De acordo com os argumentos de Filo, como os conteúdos das ideias humanas são

fundados na experiência humana, por conseguinte, seria razoável buscar compreender a

possibilidade da existência de Deus, por se tratar de uma questão de fato, uma justificativa

empírica e racional. Dessa forma, Filo afirma:

Do mesmo modo, se um homem habituou-se às considerações

céticas sobre a incerteza e os estreitos limites da razão, ele não as

esquecerá inteiramente quando dirigir sua reflexão para outros

assuntos, ao contrário, em todos os seus princípios e raciocínios

much exceeds, the productions of human contrivance; of human designs, thought, wisdom, and intelligence.

Since, therefore, the effects resemble each other, we are led to infer, by all the rules of analogy, that the causes

also resemble; and that the Author of Nature is somewhat similar to the mind of man, though possessed of much

larger faculties, proportioned to the grandeur of the work which he has executed. By this argument a posteriori,

and by this argument alone, do we prove at once the existence of a Deity, and his similarity to human mind and

intelligence” (DRN II, p. 27). 78

“Cada uno de los personajes representa una posición filosófica con respecto a Díos: Demea es el fideísta,

Cleantes personifica el racionalismo, mientras que, por lo general, la posición de Hume viene expuesta por

Fílon” (CABEZAS, 2008, p. 37).

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filosóficos – embora eu não ouse dizer que também em sua vida

cotidiana – ele se revelará como diferente daqueles que nunca

formaram quaisquer opiniões sobre o assunto, ou que alimentaram

sentimentos mais favoráveis à razão humana79

.

De acordo com a maioria dos estudiosos, a posição apresentada por Filo é a que

melhor representa o pensamento humeano. No entanto, a temática dessa obra – o argumento

do desígnio – nos é apresentada e defendida por Cleantes que afirma que, através da

observação empírica, a criação do mundo, em comparação com as criações provenientes de

ações humanas, é realizada por uma mente inteligente.

Através de um olhar periférico, podemos concluir que as posições defendidas por

Demea, Cleantes e Filo concordam que Deus existe. Entretanto, a discussão destina-se a

elaborar uma alternativa que justifique não a existência de Deus, mas sua natureza. Contudo,

mesmo que a existência de Deus não seja o ponto central da discussão, as críticas tanto ao

argumento de Demea quanto ao argumento do desígnio atingem a legitimidade da suposta

crença na existência de um Deus concebido pela religião natural. Nesse sentido, podemos

dizer que a existência divina é posta em xeque, mesmo sendo entendida como segundo plano,

quando as provas de sua natureza são debatidas nos Diálogos.

2.4 Debate acerca da existência de Deus e sua natureza

Discordando da posição apresentada por Cleantes, Demea alega que é impossível

conhecer a natureza de Deus, uma vez que é “completamente incompreensível e

desconhecida, dada a fragilidade do entendimento humano”80

. Nesse sentido, a partir da clara

finitude das criaturas, é necessário que exista um ser perfeito, mas, considerando os limites

humanos, seus atributos não têm como ser identificados81

. Sendo assim, resta ao homem,

como afirma Demea, “... adorar em silêncio suas infinitas perfeições, que os olhos não podem

79

“In like manner, if a man has accustomed himself to sceptical considerations on the uncertainty and narrow

limits of reason, he will not entirely forget them when he turns his reflection on other subjects; but in all his

philosophical principles and reasoning, I dare not say in his common conduct, he will be found different from

those, who either never formed any opinions in the case, or have entertained sentiments more favourable to

human reason” (DRN I, p. 19). 80

“from the infirmities of human understanding, to be altogether incomprehensible and unknown to us” (DRN,

II, p. 25). 81

“His attributes are perfect, but incomprehensible” (DRN, III, p. 40).

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ver nem os ouvidos escutar e que ao coração humano não é dado conhecer”82

. Contrário a essa

posição defendida por Demea, Filo afirma, como veremos adiante, que a única prova a favor

da existência de Deus digna de consideração baseia-se em raciocínios empíricos e

probabilísticos.

A posição a priori elaborada e defendida por Demea considera os limites humanos

demonstram a impossibilidade de determinar lógica e filosoficamente a natureza de Deus. Por

isso, devido à debilidade humana em compreender, mesmo que minimamente, os mistérios

divinos indicam-nos a existência de um ser infinitamente perfeito e necessário. Mostra-se em

conformidade com o pensamento de Demea o que Hume, no Tratado e na Investigação,

através do exemplo das diferentes tonalidades de cores, admite a possibilidade de o homem

conhecer algo sem que tenha experiência: “... há, porém, um fenômeno contraditório que pode

provar que não é absolutamente impossível o aparecimento de ideias independentemente de

suas correspondentes impressões” (EHU II, 16).

O exemplo dado por Hume fundamenta-se na observação das várias tonalidades de

azul: “Suponhamos, que, uma pessoa que tenha gozado de sua visão durante trinta anos e

tenha se familiarizado com todos os tipos de cores, exceto com uma única tonalidade de azul,

por exemplo, a qual nunca teve a ocasião de encontrar” (T 1, 1, 2, 10). Nesse caso, ao

colocarmos defronte dessa pessoa todos os matizes dessa cor, exceto daquela tonalidade que

ainda não tinha observado, certamente, notará um vazio entre os diferentes matizes. Por isso,

Hume afirma: “Acredito que poucos serão de opinião de que tal não lhe seja possível, o que

pode servir como prova de que as ideias simples nem sempre são, em todos os casos,

derivadas das impressões correspondentes” (EHU II, 16).

Através do exemplo dado por Hume acerca dos diversos matizes de azul, podemos

vislumbrar que as bases para os argumentos de Demea se fazem presentes no Tratado e na

Investigação83

. No entanto, como o próprio Hume afirma, não podemos nos prender a esse

argumento, pois “... embora esse exemplo seja tão singular que quase não vale a pena

examiná-lo, e tampouco merece que, apenas por sua causa, venhamos a alterar nossa tese

geral” (EHU II, 16). Portanto, mesmo que os argumentos apresentados por Demea não sejam

82

“... adore in silence his infinite perfections, which eye hath not seen, ear hath not heard, neither hath it

entered into the heart of man to conceive” (DRN, II, p. 25). 83

Alguns comentadores afirmam que em alguns momentos Demea fala por Hume. Geralmente, diversos

comentadores identificam a posição de Hume coerentemente com Filo, mas há controvérsias de quem se

identifica com quem. Outros comentadores, ainda, se arriscam a afirmar que algumas passagens Cleantes

contenham teses humeanas. Essa questão suscitou bastante polêmica entre os comentadores de Hume sobre qual

dos personagens fala por ele.

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o porta-voz do pensamento de Hume nos Diálogos, no entanto, nos revelará algumas antigas

posições apresentadas pelo autor em outros escritos.

Para ilustrar a impossibilidade da conclusão a priori acerca da existência e natureza

divinas, podemos relembrar a posição de Locke, nos Ensaios, ao considerar que a mente do

homem é tábula rasa: “... suponhamos então que a mente seja um papel em branco (white

paper), vazio de todos os caracteres, sem nenhuma ideia” (Ensaios II, I, §2). Nesse sentido,

todo conhecimento humano deriva exclusivamente da experiência dos sentidos e da reflexão.

Desse modo, com a delimitação da origem e extensão de nosso conhecimento, não podemos

conceber a existência de ideias inatas na mente dos homens, sejam elas práticas ou

especulativas. Levando em conta o princípio da tabula rasa de Locke, a própria ideia de Deus

não pode ser inata, uma vez que todas as ideias da mente do homem derivam da experiência.

Segundo Locke, devemos ponderar se “foram descobertas pelas navegações, em nosso

tempo, nações inteiras, na baía de Soldânia, no Brasil, em Boranday, e nas ilhas do Caribe

etc., entre as quais não se encontrou nenhuma noção de um Deus, nem da religião?” (Ensaios

I, IV, § 8). Por meio desse forte argumento antropológico, Locke não pretende negar a

existência de Deus, já que, assim como Hume, defende que haja um autor da lei da natureza.

No entanto, diferentemente de Descartes, Locke adverte que a existência de uma Divindade

não pode ser provada a priori como uma ideia inata, pois isso envolveria demonstrar a

existência de um assentimento geral entre os homens, sendo “a explicação de uma concepção

que temos em comum de Deus” (CURLEY, 1997, p. 55).

O próprio Hume é que dá o primeiro passo para recusar o argumento a priori, uma vez

que, para provar a existência de Deus, deve-se recorrer à experiência, pois, como afirma, as

provas acerca das questões de fato são derivadas da relação de causa e efeito (Cf. EHU IV,

22). Desse modo, a investigação acerca da existência de Deus, não pode ser considerada uma

disputa verbal que é solucionada com base nas relações entre ideias, pois, no que tange a essa

temática, se faz necessária uma análise empírica, como se observou no capítulo primeiro.

Portanto, mesmo que haja uma justificação a favor da existência de Deus (Cf. DNR VIII, p.

74), essa não pode ser provada de acordo com os argumentos apresentados por Demea.

Pretendendo seguir, na medida do possível, a ordem argumentativa que o próprio

Hume estabeleceu, examinaremos a sequência de argumentos em que os dois principais

adversários (Cleantes e Filo) apresentam nas partes II à VIII dos Diálogos. Devemos ressaltar

que ambos rejeitam veementemente o argumento defendido por Demea, pois questões de fato

não podem ser provadas a priori. Por isso Cleantes objeta que “há um absurdo evidente na

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66

pretensão de demonstrar uma questão de fato ou de prová-la por meio de qualquer argumento

a priori” e que, por isso, “consequentemente, não há nenhum Ser cuja existência seja

demonstrável”84

.

Cabe enfatizar que a temática central dos Diálogos destina-se à investigação do

argumento do desígnio, hipótese que defende, que a partir da observação da ordem e da beleza

presentes no mundo, que podemos inferir a existência um criador inteligente, justo, bondoso.

Nesse sentido, Cleantes entende que esse argumento contém os fundamentos suficientes para

se acreditar numa divindade (como causa primeira de todas as coisas) dotada de suprema

inteligência, atributos e intenções morais. Com base nessa visão, Cleantes afirma: “É por

meio deste argumento a posteriori – e apenas por meio dele – que chegamos a provar, a um só

tempo, a existência de uma Divindade e sua semelhança com a mente e inteligências

humanas”85

. Entretanto, diferentemente da posição assumida por Demea, Filo não rejeita o

argumento do desígnio de imediato, uma vez que sua transigência ocorre quando o que está

em questão são os argumentos que pretendem estabelecer os atributos da divindade. Desse

modo, podemos afirmar que sua pretensão é apontar a fraqueza das analogias que respaldam o

argumento do desígnio formulando alternativas igualmente plausíveis.

A formulação do argumento do desígnio realizada por Cleantes (Cf. DNR II, p. 27)

fundamenta-se nas regras da analogia, que permitem inferir a partir da “curiosa adaptação dos

meios aos fins em toda a natureza exatamente semelhante, embora muito exceda, às

produções da invenção humana”86

. No entanto, essa semelhança que Cleantes reivindica não é

de todo exata, mas elemento suficiente para legitimar a analogia. Por isso, ao supor que todo o

universo se assemelha com a classe de casas, relógios, máquinas que são criados por seres

inteligentes, por conseguinte, o universo inserido nessa classe permite inferir que sua criação

é fruto de um ser inteligente87

. Filo adverte que essa analogia com casas, relógios e máquinas

84

“that there is an evident absurdity in pretending to demonstrate a matter of fact, or to prove it by any

arguments a priori. (…) Consequently there is no being, whose existence is demonstrable” (DNR IX, p. 74). 85

“By this argument a posteriori, and by this argument alone, do we prove at once the existence of a Deity, and

his similarity to human mind and intelligence” (DRN II, p. 27). 86

“curious adapting of means to ends, throughout all nature, resembles exactly, though it much exceeds, the

productions of human contrivance” DNR II, p. 27. 87

“The universe might so naturally have been chaotic, but it is not – it is very orderly. And then there is the

spatial order of the intricate arrangement of parts in human (and animal) bodies. We have limbs, liver, herat,

kidneys, stomach, sense organs, etc. Of such a kind that, givne the regularities of temporal order, our bodies are

suitable vehicles to provide us with an enormous variety of purposes in it [...]. This is similar to the way in which

parts of machines are arranged so as to produce an overall result from the operation of the machine; though –

so far – machines intentionally constructed by humans are far less intricate than human bodies”

(SWINBURNW, 2004, p. 154).

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não apresenta nenhum ponto de semelhança que possamos considerar legítima uma analogia,

a menos que os casos sejam exatamente semelhantes. Por isso Filo objeta:

Se ao vermos uma casa, Cleanthes, concluímos, com a maior certeza,

que ela tinha um arquiteto ou construtor; porque é precisamente essa

espécie de efeito que experimentamos proceder dessa espécie de

causa. Mas certamente você não vai afirmar que o universo tem uma

semelhança com uma casa que podemos com a mesma certeza inferir

uma causa similar, ou que a analogia está aqui inteira e perfeita. A

dissimilitude é tão impressionante, que o máximo que você pode aqui

fingir é uma suposição, uma conjectura, uma presunção sobre uma

causa semelhante; E como essa pretensão será recebida no mundo,

deixo-vos a considerar88

.

A crítica de Filo é um ataque direto contra a analogia que fundamenta esse argumento,

não pela perspectiva a posteriori formulada por Cleantes, mas pelo fato de a analogia entre o

universo e uma máquina mostrar-se extremamente tênue e imperfeita (Cf. DNR II, p. 28). Por

isso, uma vez que as semelhanças não são satisfeitas, os elementos dessa analogia legitimam

sua insuficiência para realização de qualquer inferência. Cabe relembrar que a crítica de Filo

ao argumento do desígnio é formulada com base na concepção humeana de causalidade.

Os exemplos dados por Cleantes compara o trabalho do arquiteto na construção de

uma casa com a criação do mundo como efeito do poder criador de uma mente inteligente ou

compara o trabalho de um relojoeiro com o de uma divindade que produz mundos. Segundo

Merril, dentre os referidos exemplos, podemos admitir o conhecimento de um lado dessa

analogia, mas o outro lado nos é praticamente desconhecido (Cf. MERRILL, 2008, p. 92).

Desse modo, podemos nos deparar com consequências aterradoras para os defensores do

teísmo como, por exemplo, pode-se conceber que para construir casas, em geral, necessita-se

de vários trabalhadores, tais como arquitetos, carpinteiros e pedreiros. Por conseguinte,

estaríamos justificados em concluir, por analogia, que o universo foi criado por uma

pluralidade de criadores (ou melhor, divindades).

De acordo com Filo, a dificuldade em conceber essa analogia assenta-se na concepção

do universo como um objeto singular, individual, sem qualquer paralelo ou semelhança com

88

“If we see a house, Cleanthes, we conclude, with the greatest certainty, that it had an architect or builder;

because this is precisely that species of effect which we have experienced to proceed from that species of cause.

But surely you will not affirm, that the universe bears such a resemblance to a house that we can with the same

certainty infer a similar cause, or that the analogy is here entire and perfect. The dissimilitude is so striking, that

the utmost you can here pretend to is a guess, a conjecture, a presumption concerning a similar cause; and how

that pretension will be received in the world, I leave you to consider” (DRN, II, p. 28)

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as demais espécies. Dessa forma, o debate entre Cleantes e Filo envolve saber se a analogia é

suficientemente forte e contém regras que possam legitimá-la, pois, como coloca Cleantes,

“os efeitos se assemelham uns aos outros, somos levados a inferir, por todas as regras de

analogia, que as causas também se assemelham”89

. Quais regras são essas pelas quais

poderíamos legitimar com exatidão essa analogia implicada no argumento do desígnio? Nas

Investigações há uma explanação dessas regras (EHU XI, 30), que serão, por outras palavras,

corroboradas nos Diálogos por Filo ao afirmar:

Quando duas espécies de objetos surgem sempre conjugados, posso

inferir, pelo costume, a existência de um deles onde quer que eu veja a

existência do outro; e a isto chamo um argumento a partir da

experiência. Mas seria difícil explicar como esse argumento pode ser

aplicado a um caso como o que estamos presentemente considerando,

no qual os objetos são singulares, individuais, sem paralelo ou

semelhança específica90

.

Nesse sentido, Filo quer ressaltar que a analogia tem sua gênese e ganha força através

do raciocínio derivado da experiência constante de eventos distintos, mas por sempre

surgirem conjugados, inferimos por guia do hábito uma conexão causal. Desse modo, essa

perspectiva em que se apoiam os argumentos de Filo, reitera a visão de Hume no Tratado em

que apenas a experiência regular, repetida, frequente ou constantemente conjugada é

suficiente produzir um nexo de causalidade entre dois objetos distintos (Cf. T 1. 3. 6. 3).

Com a pretensão de formular uma crítica contundente, Filo procura argumentar no

“terreno do próprio Cleantes” (Cf. DNR II, p. 29). Nesse sentido, partindo dos princípios

epistemológicos que o aproximam de Cleantes como, por exemplo, a impossibilidade de

determinar, como afirmado por Demea, a existência de Deus de forma a priori, uma vez que

“só a experiência pode apontar a verdadeira causa de qualquer fenômeno”91

. Nesse sentido,

Filo defende que:

a ordem, arranjo ou ajustamento das causas finais não constituem por

si sós quaisquer provas de desígnio, mas somente na medida em que já

89

“the effects resemble each other, we are led to infer, by all the rules of analogy, that the causes also resemble”

(DNR II, p. 30). 90

“When two species of objects have always been observed to be conjoined together, I can infer, by custom, the

existence of one wherever I see the existence of the other; and this I call an argument from experience. But how

this argument can have place, where the objects, as in the present case, are single, individual, without parallel,

or specific resemblance” (DNR II, p. 33). 91

“Experience alone can point out to him the true cause of any phenomenon” (DNR II, p. 30).

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se tenha constatado pela experiência que eles procedem daquele

princípio. Por tudo que podemos saber a priori, a matéria pode conter

originalmente em si mesma a fonte ou princípio da ordem, tanto

quanto a mente os contém; e não há mais dificuldade em conceber que

os diversos elementos possam, a partir de uma causa interna

desconhecida, produzir a mais extraordinária organização, do que

conceber que as ideias, no interior da grande mente universal, possam

se organizar da mesma maneira, a partir de uma semelhante causa

interna desconhecida92

.

Essa perícope o afasta de Cleantes e destaca outro ponto importante da crítica

realizada por Filo, em que a ordem na natureza seria inerente à matéria que se autoorganiza

estabelecendo seu próprio curso. Essa possibilidade formulada por Filo favorece uma hipótese

alternativa ao argumento de um designer inteligente, que justifica a ordem que encontramos

na observação dos fenômenos. Esta alternativa dada por Filo quer demonstrar, através de

numerosos exemplos de hipóteses cosmogônicas rivais à hipótese do desígnio, que “uma

suspensão integral do juízo é, aqui, nosso único recurso razoável”93

.

Cleantes buscando alternativas às objeções realizadas pela argumentação de Filo,

estrategicamente, oferece os exemplos da voz articulada proveniente das nuvens (Cf. DNR III,

p. 37) e da biblioteca natural (Cf. DNR III, p. 38), pois tais exemplos corroboram a

sustentação da analogia implicada no argumento do desígnio.

Cleantes pede a Filo, no primeiro exemplo, que considere uma voz articulada

proveniente das nuvens, que se sobrepõe as vozes humanas, e que todas as nações

compreendem independentemente de sua língua ou dialeto e seu conteúdo transmite

recomendações dignas de um Ser poderoso (Cf. DNR III, p. 37-38). De acordo com esse

exemplo dado por Cleantes, a partir dessa voz poderosa, supomos que ela contém um desígnio

ou propósito, pois através da observação da ordem no mundo e da curiosa adaptação dos

meios aos fins chegamos à conclusão de que tais fenômenos são causados por um desígnio. A

construção desse exemplo pretende concluir que podemos manter o grau de analogia a partir

da experiência de efeitos similares, assim, mesmo que não tenhamos nenhum exemplo de uma

92

“that order, arrangement, or the adjustment of final causes, is not of itself any proof of design; but only so far

as it has been experienced to proceed from that principle. For ought we can know a priori, matter may contain

the source or spring of order originally within itself as well as mind does; and there is no more difficulty in

conceiving, that the several elements, from an internal unknown cause, may fall into the most exquisite

arrangement, than to conceive that their ideas, in the great universal mind, from a like internal unknown cause”

(DNR II, p. 30). 93

“A total suspense of judgment is here our only reasonable resource” (DNR VIII, p. 71).

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voz com as características da que provém das nuvens, nem de sua fonte, temos a experiência

da origem dos discursos articulados. No entanto, objeta Filo, esse exemplo não obedece ao

princípio de causa e efeito, pelo qual julgamos os fenômenos da natureza, pois nesse caso não

há experiência da repetição, de uma conjunção constante, isto é, não há um exemplo análogo.

De acordo com a interpretação de Morris, esse exemplo não ilustra situações

concretas, devendo ser visto como construção especulativa da metodologia experimental

admitida por Cleantes. Desse modo, esses exemplos podem ser não apenas irrelevantes, mas

também inconsistentes. No entanto, assegura Morris, esse exemplo torna-se relevante e

apropriado quando acena para uma estratégia elaborada por Hume para legitimar as críticas de

Filo (Cf. MORRIS, 2010, p. 5).

No segundo exemplo, Cleantes solicita a Filo que “suponha a existência de uma

linguagem natural, universal e invariável, comum a todo indivíduo da raça humana; e que

livros são produtos naturais que se perpetuam da mesma maneira que os animais e vegetais,

isto é, por descendência e propagação”94

. Nesse contexto, fica patente a defensa da hipótese

de que “a anatomia de um animal fornece exemplos mais fortes de desígnio”95

, pois através da

observação da anatomia de um animal podemos vislumbrar a organização e ajuste entre suas

partes, bem como uma cuidadosa adaptação dos meios aos fins. Através desse exemplo,

Cleantes pretende reforçar a ideia de que a ordem e os ajustes percebidos na natureza são

realizados em virtude de um Ser inteligente.

Apesar de logicamente irregular, Cleantes recorre ao exemplo persuasivo, que

podemos designar como um critério de força natural a favor do argumento do desígnio96

,

quando afirma:

Considere, analise o olho; examine sua estrutura e seu plano, e diga-

me, a partir de seu próprio sentimento, se a ideia de um planejador não

lhe ocorre imediatamente, com tanta força quanto aquela da sensação.

94

“Suppose that there is a natural, universal, invariable language, common to every individual of human race;

and that books are natural productions, which perpetuate themselves in the same manner with animals and

vegetables, by descent and propagation” (DNR III, p. 38). 95

“The anatomy of an animal affords many stronger instances of design” (DNR III, p. 39). 96

O argumento de Cleanthes que propõe como critério a força natural a favor do argumento do desígnio é um

tópico que inevitavelmente remete às teorias de Hume sobre crenças religiosas (tema central da História Natural

da Religião). Ressaltamos que o propósito da História é examinar somente as origens da religião na natureza

humana, e não seus fundamentos na razão (tema dos Diálogos). Neste contexto, ele nos diz que tal inclinação

pode e deve ser controlada, e não pode ser um legítimo fundamento para aprovação (Cf. DNR, p. 39), pois “a

crença num poder invisível e inteligente não seja tão universal a ponto de não admitir nenhuma exceção” (NHR,

p. 134). Por isso, a inclinação, a propensão da mente em direção ao argumento do desígnio fosse mesmo

irresistível, não haveria tantos céticos, ateus e agnósticos.

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A mais óbvia conclusão seguramente é em favor do desígnio; e se

requer tempo, reflexão e estudo para coletar todas essas frívolas, ainda

que abstrusas objeções que podem dar apoio à descrença97

.

Para Filo, a anatomia dos animais como dos homens certamente nos sugere um forte

exemplo do desígnio, pois é concebível para a subsistência de ambos uma cooperação com a

natureza. Entretanto, dificilmente, poderíamos conceber que os ajustes das partes com o todo

possam servir de evidência para a justificação do desígnio. Assim como no exemplo da voz

articulada proveniente das nuvens e na biblioteca natural, segundo assegura Smith, Hume

prepara o caminho para os contra-argumentos de Filo (Cf. SMITH, 1988, p. 103).

Filo admite, a partir dos próprios argumentos elaborados por Cleantes através de seus

exemplos, que semelhanças presentes na observação entre o princípio dos animais e vegetais

com o princípio do mundo sugere uma boa analogia. Dessa forma, a semelhança entre ambos

os princípios são reveladas por meio de uma ordem, mas, como destaca Filo, esta não é

suficiente para explicar a hipótese de um desígnio ou propósito de um designer,

diferentemente do proposto por Cleantes. Nesse contexto, pode-se afirmar, com base nos

argumentos elaborados por Filo, que o argumento do desígnio não impede de se ter uma causa

material e não inteligente para a ordem observada no mundo.

Diante os argumentos apresentados nos Diálogos, observamos que Filo alvidra uma

hipótese de que a ordem relaciona-se com a corrupção e degeneração da matéria originada de

uma causa desconhecida ou uma causa intrínseca à própria matéria. Essa hipótese surge da

pretensão de se ter uma alternativa ao argumento do desígnio e que ao mesmo tempo seja

justificado epistemologicamente. Por essas questões, Filo passa a observar como outras partes

do mundo se ordenam:

Basta apenas que você olhe ao seu redor para obter a resposta a

essa questão. Uma árvore confere ordem e organização a outra

árvore que dela procede sem ter qualquer conhecimento dessa

ordem. O mesmo ocorre a um animal em relação à sua prole, e a

um pássaro em relação a seu ninho; e casos dessa espécie são até

97

“Consider, anatomize the eye; survey its structure and contrivance; and tell me, from your own feeling, if the

idea of a contriver does not immediately flow in upon you with a force like that of sensation. The most obvious

conclusion, surely, is in favour of design; and it requires time, reflection, and study, to summon up those

frivolous, though abstruse objections, which can support Infidelity” (DNR III, p. 39).

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mais frequentes no mundo do que aqueles em que a ordem surge da

razão e do artifício98

.

Acerca da hipótese formulada por Filo, a análise de Gaskin afirma que ele adota essa

sugestão como a mais plausível entre um grupo de teorias que ele rejeita, a saber, aquelas que

defendem que podemos inferir o todo por intermédio da experiência que temos das partes (Cf.

GASKIN, 1993, p. 48). Essa alternativa, como prevê Filo, tem a possibilidade de ser

facilmente objetada por Cleantes, uma vez que seria “fácil supor que todos os homens e

animais, sendo mais numerosos e menos perfeitos, tenham brotado sem intermediação de uma

origem semelhante”99

. Poderíamos concluir, a partir da consideração dessa hipótese, que

“uma sociedade de numerosas Deidades é tão explicável quanto uma única Deidade universal

que possua em si mesma os poderes e perfeições daquela sociedade como um todo”100

.

Cleantes afirma que os argumentos elaborados por seu adversário não passam do

resultado da liberdade contida na imaginação que “pode nos confundir, mas jamais nos

convencer”. Entretanto, Filo contesta essa posição afirmando que tais argumentos surgem da

própria natureza, uma vez que “centenas de perspectivas contraditórias podem preservar um

tipo de analogia imperfeita e a inventividade tem um amplo campo para se exercer”101

. Desse

modo, dentre os inúmeros tipos de sistemas defendidos e hipoteticamente apresentados,

podemos considerar que a posição de Filo consiga justificar a natureza de um Ser superior.

Com base nas considerações apresentadas, na parte VIII dos Diálogos, Filo

desenvolvendo uma hipótese cosmogônica afirma que podemos pressupor que a matéria a

partir do seu movimento e das suas ininterruptas alterações possa sugerir que ela seja seu

agente motor, dispensando uma intervenção externa (Cf. DNR VIII, p. 86). Essa nova

hipótese cosmogônica defende que os movimentos da natureza podem ter sua gênese na

própria matéria, como percebemos nos fenômenos da elasticidade, gravidade e eletricidade,

uma vez que tais movimentos possam ter sido gerados a partir de um impulso inicial,

afirmamos: “o início do movimento na própria matéria é a priori tão concebível quanto sua

98

“A tree bestows order and organization on that tree which springs from it, without knowing the order; an

animal in the same manner on its offspring; a bird on its nest; and instances of this kind are even more frequent

in the world than those of order, which arise from reason and contrivance” (DNR VII, p. 64). 99

“easy to suppose all men animals, beings more numerous, but less perfect, to have sprung immediately from a

like origin” (DNR VI, p. 59). 100

“a numerous society of deities as explicable as one universal deity, who possesses within himself the powers

and perfections of the whole society” (DNR VI, p. 59). 101

“a hundred contradictory views may preserve a kind of imperfect analogy; and invention has here full scope

to exert itself” (DNR VIII, p. 67).

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comunicação a partir da mente e da inteligência”102

. Por isso, podemos destacar que não é

necessário supor que cada movimento particular da matéria seja ocasionado pela mente e

inteligência de um designer (Cf. DNR VIII, p. 87). Nesse sentido, cabe ressaltar que:

O movimento incessante da matéria deve, portanto, em um número

infinito de transposições, chegar a produzir essa ordem ou

organização; e essa ordem, uma vez estabelecida, deve se

autossustentar, pela sua própria natureza, ao longo de muitas era ou

mesmo da eternidade. Ora, onde quer que a matéria se equilibre,

arranje ou ajuste de modo a preservar, apesar de seu contínuo

movimento, uma constância nas formas sua disposição deverá

necessariamente apresentar a mesma aparência de arte e engenho

que presentemente observamos103

.

Entendemos, com isso, que a movimentação inerente à matéria é de forma contínua e

constante e, por sua vez, não necessita de um ente que a impulsione (Cf. DNR VIII, p. 68).

Sendo assim, o ajuste perfeito e harmonioso da matéria depende estritamente de suas partes.

A ideia elaborada por Filo se contrapõe ao argumento do desígnio, uma vez que transfere para

a matéria a responsabilidade por sua existência, ressaltando a correlação entre os organismos.

Seguindo esse fio condutor, Filo afirma, “uma falha em quaisquer desses aspectos destrói a

forma”104

e, poderíamos supor uma degradação da matéria caso não houvesse movimentação

da mesma, a menos que “... venha a unir-se a alguma outra forma regular”105

. Entretanto,

podemos notar que há um ajuste perfeito e harmonioso tendo em vista “... que as partes do

mundo estão tão bem ajustadas que uma forma regular se apropriaria imediatamente dessa

matéria corrompida”106

.

Diante desse quadro, devemos nos perguntar se a hipótese apresentada por Filo seria

capaz de atribuir um caráter completamente distinto das alternativas apresentadas nos

Diálogos, como, por exemplo, o argumento do desígnio apresentado por Cleantes. Nesse

sentido, levando em conta que essa hipótese não seja considerada como absurda e nem

102

“The beginning of motion in matter itself is as conceivable a priori as its communication from mind and

intelligence” (DNR VIII, p. 68). 103

“The continual motion of matter, therefore, in less than infinite transpositions, must produce this economy or

order; and by its very nature, that order, when once established, supports itself, for many ages, if not to eternity.

But wherever matter is so poised, arranged, and adjusted, as to continue in perpetual motion, and yet preserve a

constancy in the forms its situation must, of necessity, have all the same appearance of art and contrivance

which we observe at presente” (DNR VIII, p. 68). 104

“A defect in any of these particulars destroys the form” (DNR VIII, p. 68). 105

“... till it unite itself to some other regular form” (DNR VIII, p. 68). 106

“... that the parts of the world are so well adjusted, that some regular form immediately lays claim to this

corrupted matter” (DNR VIII, p. 70).

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improvável (Cf. DNR III, p. 38), como afirma Filo a respeito de sua alternativa, no entanto

necessariamente deve ser analisada com cautela. Cabe relembrar que o intuito de Filo é

desestabilizar o argumento do desígnio apresentado por Cleantes, pois acredita que ele não

contém elementos razoáveis que justifiquem a existência de uma Divindade. Por isso, de

acordo com Filo, a atitude mais prudente e recomendável frente às alternativas seria o

ceticismo, pois “todos eles, em conjunto, preparam um triunfo completo para o cético, que

lhes diz que nenhum sistema deve jamais ser abraçado em relação a este assunto: por esta

simples razão que nenhum absurdo deveria jamais ser admitido em relação a qualquer

assunto”107

.

Essa hipótese quer sugerir que não devemos buscar explicações transcendentes para

justificar a experiência de causalidade entre os fenômenos da natureza, uma vez que ela é

fruto do hábito108

. Contudo, assegura Filo, mesmo que abandonássemos por completo a

perspectiva de Cleantes, deveríamos, ao menos, admitir um princípio originário

impulsionador da matéria. De acordo com essa perspectiva, Oppy (Cf. OPPY, 1996, p. 521) e

Dennett109

ressaltam que o objetivo de Hume, através da hipótese apresentada Filo, é de

desestabilizar o argumento do desígnio de Cleantes, adiantando, ainda que de modo sumário,

um caminho para o princípio da seleção natural de Darwin. Portanto, devemos analisar

cuidadosamente essa hipótese que não pode ser, de acordo com Filo, caracterizada como

absurda ou improvável (Cf. DRN III, p. 43).

A partir da hipótese levantada por Filo, devemos considerar, em primeiro lugar, que o

mundo não está entregue ao caos, uma vez que através da observação podemos observar certa

regularidade na natureza. Em segundo lugar, em consonância com a anterior, podemos admitir

que a ordem observada entre os fenômenos da natureza prescinde de um princípio regulador,

107

“But all of them, on the whole, prepare a compleat triumph for the Sceptic; who tells them, that no system

ought ever to be embraced with regard to such subjects: for this plain reason, that no absurdity ought ever to be

assented to with regard to any subject” (DNR VIII, p. 71). 108

Filo afirma que “em todos os casos que presenciamos o pensamento não tem influência sobre a matéria, salvo

naqueles em que a matéria está de tal modo conjugada ao pensamento, a ponto de exercer igualmente uma

influência recíproca sobre ele” (DNR VIII, p. 71). 109

De acordo com a perspectiva apresentada por Dennett, Hume, através de Filo, como forma de desestabilizar o

argumento do desígnio, adiantaria algumas ideias de Darwin. Na parte XII dos Diálogos, argumenta Dennett,

Filo admite que ainda que abandonássemos a hipótese de Cleantes teríamos que nos contentar com a ideia de um

princípio regulador originário. No entanto, é exatamente esta noção, assegura Dennett, que deve ser abandonada.

Mas Hume não irá abandonar esta ideia, uma vez que não dispõe de alternativa e pela complexidade em torno

deste argumento, sustenta Dennett, é razoável que tenha deixado a questão em aberto, que ulteriormente seria

respondida por Darwin. (Cf. DENNETT, 1995, p. 26-27).

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gerador de harmonia. Nesse contexto, encaixa-se a afirmação de Filo acerca dessa hipótese:

“O acaso não pode ter lugar em qualquer hipótese, cética ou religiosa”110

.

Tanto Gaskin111

como Sessions112

admitem que não há dúvidas de que as hipóteses

elaboradas por Filo tenham a pretensão de desqualificar o argumento do desígnio. Dessa

forma, através da experiência de ordem no mundo podemos cogitar da possibilidade da

existência de um ordenador dos fenômenos naturais, distintamente das crenças teístas que

privilegiam a noção de um ordenador intervencionista. A preocupação com essa hipótese,

assegura Zilles, não reside na existência ou não de um princípio ordenador, mas sobre na

precariedade dos elementos que possam justificar sua natureza113

. Nesse sentido, Zilles assim

comenta essa questão:

Na verdade, não se consegue mostrar pela razão nem pela

experiência que existe uma causa espiritual da ordem no Universo

ou que este necessita de tal. Segundo Filo, desconhecemos tanto a

natureza quanto a essência do mundo. Por isso não se pode

fundamentar uma explicação do mundo a partir do conceito de

Deus, nem a partir do próprio mundo. Nem pela razão nem pela

experiência se pode mostrar que uma causa espiritual da ordem no

universo por sua vez não necessite de outra causa (ZILLES, 2009,

p. 02).

A visão apresentada por Zilles corrobora os argumentos de Filo segundo os quais nem

a razão nem a experiência conseguem justificar a causa da origem do universo a partir da

observação da ordem e harmonia em que, de modo curioso, as partes de adaptam ao todo.

Desse modo, a aparência da relação causal presente na ordem do mundo não legitimam as

inferências sobre sua causa primeira e original. Poderíamos, assim, supor uma causa

originária para todos os elementos da natureza, mas pelas razões expostas nos argumentos de

Filo, não podemos inferir que elas são causadas por um Deus que possui qualidades e

intenções morais.

O último e decisivo recurso elaborado por Filo para demonstrar a fragilidade dos

exemplos expostos por Cleantes expõe que o argumento do desígnio não oferece bases sólidas

que justifiquem a existência de um Deus como ser de infinito poder, justiça e bondade diante

110

“Chance has no place, on any hypothesis, sceptical or religious” (DNR VI, p. 76). 111

Cf. GASKIN, 1993, p. 36-39. 112

Cf. SESSIONS, 1993, p. 131. 113

Cf. DNR XI, p. 124.

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da existência do mal amplamente observado no mundo114

. Sem dúvida, a problemática da

conciliação entre a experiência do mal ou sofrimento constatado no mundo e sua

incompatibilidade com a existência de Deus torna-se um tópico decisivo para Filo contestar o

argumento do desígnio.

Os argumentos de Filo que tratam do problema do mal são elaborados nos Diálogos

através das “velhas questões de Epicuro”. Essa expressão é utilizada por Filo na apresentação

do dilema entre a existência de um Deus bondoso e a presença de males no mundo:

As velhas questões de Epicuro permanecem ainda sem resposta. A

Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então, ela é

impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então, ela é malévola.

Ela é capaz de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde então provém o

mal?115

O problema formulado por Filo parte de uma inconsistência lógica gerada pela

existência concomitante de Deus, apresentado como onipotente e absolutamente bom, e a

presença dos males no mundo. Nesse caso, de imediato, admoesta Mackie, surge uma

contradição lógica, pois a verdade de uma declara a falsidade da outra (MACKIE, 1955, p.

202). Para tentar solucionar essa questão abrem-se diversas alternativas como a restrição da

onipotência divina, do mal como ilusão (privação de bem), do mal como uma desordem não

compreendida e outros ainda aventam a hipótese de que Deus permite a existência do mal

como necessário para a liberdade humana.

Filo sustenta que a concepção da hipótese do mundo como algo planejado e criado por

Deus de suma bondade, sabedoria e poder, só é concebível por total desconhecimento dos

males naturais e morais. Em outras palavras, ao supor que um homem esteja convencido da

“existência de uma inteligência suprema, benevolente e poderosa, mas é deixado a adquirir tal

crença a partir da aparência das coisas (...), ele jamais encontrará qualquer razão que dê apoio

a tal conclusão”116

. Pode-se aventar a hipótese de que Hume, através dos argumentos descritos

114

Storig sublinha que essa alternativa exposta por Filo relaciona-se estreitamente com as questões religiosas

suscitadas pelas religiões do contexto histórico em que Hume está inserido. Por isso afirma: “As terríveis

desordens das guerras religiosas que a Inglaterra tinha influenciaram estas ideias de Hume” (STORIG, 2008, p.

309). 115

“Epicurus’s old questions are yet unanswered. Is he willing to prevent evil, but not able? then is he impotent.

Is he able, but not willing? then is he malevolent. Is he both able and willing? whence then is evil?” (DNR X, p.

84). 116

“convinced of a supreme intelligence, benevolent and powerful, but is left to gather such a belief from the

appearances of things; this entirely alters the case, nor will he ever find any reason for such a conclusion”

(DNR XI, p. 90).

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por Filo, queira refutar a existência de Deus. No entanto, não nos parece que a intenção de

Filo com essa hipótese seja provar a inexistência de Deus, mas demonstrar a fragilidade do

argumento do desígnio mostrando a insuficiência, nesse caso, entre a experiência dos males

no mundo com os atributos de poder e bondade da divindade. Em suma, a proposta de Filo

não conclui que a benevolência não seja um atributo da divindade em razão da

impossibilidade de inferirmos a existência de um ser benevolente e, concomitantemente,

conceber a existência do mal no mundo117

. Essa perspectiva é corroborada pela Investigação

quando Hume afirma:

Que a divindade pode ser dotada de atributos que nunca vimos

exercerem-se; que talvez seja governada por princípios de ação

inacessíveis à nossa pesquisa – tudo isso será prontamente admitido.

Não impede, porém, que se trate aqui de uma simples possibilidade ou

hipótese. Jamais teremos motivos para inferir quaisquer atributos ou

princípios de ação nela, a não ser na medida em que saibamos terem

sido exercidos e satisfeitos (EHU XI, 113).

Essa perícope ressalta a posição de Filo que não temos razões que justifiquem inferir a

existência de um Ser bondoso a partir dos males do universo. Nesse sentido, a partir da

objeção de Cleantes sugerindo que possamos admitir uma finitude dos poderes divinos, uma

vez que poderia ao menos através de sua força e poder remediá-los, mesmo assim o

sofrimento humano torna-se um obstáculo à concepção de um Deus benevolente (Cf. DNR

XI, p. 97). Por isso, o argumento do desígnio partindo da observação da ordem no mundo

pode nos indicar a existência de um Ser inteligente como sendo necessário (Cf. EHU VIII,

78), mas, por outro lado, seus elementos são insuficientes para apontar sua natureza bem

como qualquer caráter moral118

, como diz Filo, não chegamos a nada, exceto à ideia de uma

natureza cega (Cf. DNR XI, p. 97).

De acordo com essa linha de raciocínio, podemos observar que nos Diálogos a questão

do mal resulta numa hipótese oferecida por Filo que sugere uma indiferença moral daquele

117

Essa proposta expressa por Filo nos Diálogos é uma retomada da crítica de Hume nas Investigações ao tratar

da temática da liberdade, necessidade e responsabilidade moral: “Há muitos filósofos que, após um exame

rigoroso de todos os fenômenos da natureza, concluem que o TODO, considerado como um sistema só, é, em

todos os períodos da sua existência, ordenado com perfeita benevolência; e que para todos os seres criados

resultará finalmente a maior felicidade possível, sem nenhuma mistura de mal ou de infortúnio positivo ou

absoluto” (EHU VIII, 79). 118

Para as crenças teístas, a experiência de ordem suscita uma teleologia moral no ajuste e na composição do

universo, no entanto, objeta Cruz: “A refutação dos atributos morais da divindade seria a pá de cal definitiva no

teísmo. O argumento de Philo é, grosso modo, o de que a ideia da finalidade moral não resiste à evidência do

mal, a menos que estejamos predispostos a conceber os atributos morais da divindade” (CRUZ, 2001, p. 58-59).

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que é tido como causa primeira e original de todas as coisas. Desse modo, dada a observação

do mal presente no mundo e, concomitantemente, a crença teísta de um Deus benevolente e

justo como causa de todas as coisas somos levados a concluir que esse Ser é moralmente

indiferente aos acontecimentos que ocorrem no mundo, por isso “não tem o bem em maior

estima que o mal, assim como não lhe importa o calor sobre o frio, a aridez sobre a umidade

ou a leveza sobre o peso”119

.

Essa alternativa elaborada por Filo, sublinha Pike, corrobora com a postura cética de

Hume, uma vez que tem como finalidade reforçar a tese de que a observação do mal e do

sofrimento no mundo obstrui a possibilidade de conhecermos a Deus através do argumento do

desígnio defendido por Cleantes.

Entretanto, após inúmeros debates dos principais personagens dos Diálogos,

estranhamente, por meio de uma linguagem imprecisa, indefinida e vaga, Filo parece

reconhecer a tese de Cleantes ao afirmar:

se o todo da teologia natural se resolve (...) numa simples, embora de

algum modo ambígua ou ao menos indefinida proposição de que a

causa ou as causas da ordem no universo provavelmente mantêm

alguma remota analogia com a inteligência humana; se esta

proposição não é capaz de extensão, variação, ou uma explicação mais

particular; se ela não fornece nenhuma inferência que afeta a vida

humana, nem pode ser a fonte de qualquer ação ou abstenção; e se a

analogia, imperfeita como ela é, não pode ser conduzida para além da

inteligência humana, nem pode ser transferida com qualquer aparência

de probabilidade às outras qualidades da mente; se este é realmente o

caso120

Devemos ressaltar a presença dos termos “provavelmente” e “remota” querem apontar

para mais uma hipótese formulada por Filo. Aliás, toda essa perícope pode ser caracterizada

como hipotética e pretende gerar, ironicamente, uma aparente conversão de Filo às teses

teístas. Entretanto, para que se possa compreender a verdadeira posição de Hume necessita-se

atenção às entrelinhas das quais pode emergir. Nesse sentido, O’Connor sublinha que

119

“no more regard to good above ill, than to heat above cold, or to drought above moisture, or to light above

heavy” (DNR XI, p. 97) 120

“If the whole of Natural Theology, as some people seem to maintain, resolves itself into one simple, though

somewhat ambiguous, at least undefined proposition, That the cause or causes of order in the universe probably

bear some remote analogy to human intelligence: if this proposition be not capable of extension, variation, or

more particular explication: if it affords no inference that affects human life, or can be the source of any action

or forbearance: and if the analogy, imperfect as it is, can be carried no further than to the human intelligence,

and cannot be transferred, with any appearance of probability, to the qualities of the mind; if this really be the

case” (DNR XII, p. 113)

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devemos desconfiar desse aparente recuo de Hume, pois através de uma fina ironia objetiva

afigurar-se um inimigo das crenças teístas de menor proporção do que de fato é (Cf.

O’CONNOR, 2001, p. 195).

Devido à grandeza e obscuridade proposta por essa temática, o homem inseguro em

virtude da carência de uma resposta satisfatória sobre a sua origem e das demais coisas pode

sofrer certa angústia uma vez “que não pode dar uma solução mais satisfatória com relação a

uma questão tão extraordinária e magnificente”. Nessas circunstâncias, Filo afirma que:

(...) o sentimento mais natural que um espírito bem-disposto

experimentará nessas ocasiões, é o de um ardente desejo e expectativa

de que o Céu se digne a dissipar ou, ao menos, aliviar, essa profunda

ignorância, fornecendo alguma revelação mais específica à

humanidade, proporcionando, assim, descobertas da natureza,

atributos e operações do divino objeto de nossa Fé121

.

Cabe ressaltar, através dos argumentos de Filo, os claros limites do entendimento

humano como elemento para se compreender uma sentença colocada na primeira parte dos

Diálogos: “somos como forasteiros numa terra estranha, na qual tudo parece suspeito”122

.

Diante desses limites, muitos homens deixam-se guiar pelas mais frívolas crenças religiosas

que asseguram de forma pia que o céu lhe revele esse Deus no qual ele deposita sua crença

bem como todos os seus atributos tradicionais. Nesse sentido, assinala Tilley: “quando um

homem é deixado na frustrante posição de ser incapaz de resolver o problema da natureza dos

deuses, é ‘natural’ que ele deseje ardentemente uma revelação” (TILLEY, 1988, p. 718).

Portanto, podemos afirmar que os perigos das religiões, referindo-se as crenças teístas

defendida através do argumento do desígnio, são os saltos dados pelas inferências que se

baseiam na regularidade causal observada no mundo. Sendo assim, as provas a posteriori nas

quais que baseiam o argumento defendido por Cleantes ferindo a lógica das regras do

conhecimento humano, fundamentadas na experiência, não conseguem justificar a crença da

existência de Deus e seus atributos.

Ademais, a partir das investigações deste capítulo, chama-nos a atenção a preocupação

de Hume com as religiões reveladas, pois, em sua maioria, em nada se relacionam com as

crenças naturais dos homens obtidas pela constante observação da regularidade que os

121

“the most natural sentiment which a well‐disposed mind will feel on this occasion, is a longing desire and

expectation that Heaven would be pleased to dissipate, at least alleviate, this profound ignorance, by affording

some particular revelation to mankind, and making discoveries of the nature, attributes, and operations of the

Divine object of our faith” (DNR XII, p. 113). 122

“We are like foreigners in a strange country, to whom everything must seem suspicious” (DNR I, p. 20).

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fenômenos da natureza se apresentam. Nesse sentido, diversas religiões, para fortalecerem

seus dogmas e responderem aos anseios mais profundos dos homens quanto à sua existência,

servem-se das mais fortes formas de caráter sobrenatural como as crenças em milagres. Desse

modo, a questão dos milagres insere-se, como nota Tasset, na dificuldade de conciliar os

relatos acerca da existência de milagres e com a plausibilidade das justificativas racionais (Cf.

TASSET, 2005, p. 33). A busca da solução dessa problemática, inserida no quadro das

crenças teístas, será a temática investigada no capítulo subsequente.

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Capítulo III - A POSSIBILIDADE DOS MILAGRES

Neste capítulo, temos como escopo a investigação da seção X, da Investigação sobre o

entendimento humano, intitulada “Dos Milagres”, de David Hume. Nesta primeira seção, nos

dedicaremos à investigação da problemática acerca dos milagres. Será abordada a partir de

dois problemas centrais bem destacados por Hume: (a) é possível averiguar a ocorrência de

um milagre; e (b) podemos justificá-lo a partir do testemunho de seres humanos no que

afirmam ser manifestações de milagres.

Nesse contexto, para podermos analisar a primeira problemática, buscaremos mostrar

como Hume desenvolve, por meio da perspectiva causal, a discussão a respeito de se é ou não

possível a ocorrência de milagres e a crença neles, uma vez que são definidos pelo autor como

“violação das leis da natureza”. Levando em consideração a natureza empirista da filosofia

humeana, podemos afirmar que os milagres são consequência de uma descontinuidade causal

criada pela metafísica, instaurada na mente humana pelo hábito de uma conexão necessária

entre os fenômenos.

Por conseguinte, na abordagem da segunda problemática, a análise perpassa pelo

testemunho dos homens, que ocupa posição central neste ensaio. Acerca do testemunho,

afirma Hume, devemos levar em consideração várias circunstâncias que levaram o homem a

julgar esse fenômeno como um milagre, bem como o caráter, a quantidade e o modo como os

testemunhos são apresentados. Nesse sentido, conclui Hume acerca do testemunho que “...

nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que (...) a falsidade

desse testemunho seja mais milagrosa que o fato que se pretende estabelecer”. Sendo assim,

pretendemos, com um breve relato da história de Joana D’Arc, ilustrar o posicionamento de

Hume acerca da questão dos testemunhos e sua finalidade.

Para engrandecer essa discussão levaremos em conta os comentários de renomados

estudiosos, como Folegin e Flew, sobre a questão humeana dos milagres. E, por fim, a partir

dos argumentos elaborados por Hume na seção X, buscaremos compreender se Hume

professa alguma crença religiosa em virtude de entendermos que alguns parágrafos parecem

abrir espaço para questões de fé e de revelação.

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3.1 A questão dos milagres e do uso dos testemunhos

Considerando que os acontecimentos denominados miraculosos são atribuídos a Deus,

inúmeras doutrinas religiosas fundamentam-se neles para a explicação da existência Divina e

para justificarem suas doutrinas (Cf. EHU X, 86). Nesse caso, os argumentos humeanos

apresentados na seção X da Investigação, analisados à luz da perspectiva causal, sugerem o

questionamento sobre a possibilidade dos eventos considerados miraculosos poderem

legitimar a crença na existência de Deus.

Para que possamos investigar a possibilidade do conhecimento da existência de Deus

por intermédio dos milagres, devemos, primeiramente, considerar o que Hume entende por

milagre e quais as condições de sua existência. Nesse sentido, são elucidativas as palavras de

Hume:

Um milagre é uma violação das leis da natureza; e, como essas leis

foram estabelecidas por uma experiência firme e inalterável, a prova

contra um milagre, pela própria característica do fato, é tão completa

quanto o pode ser qualquer argumento extraído da experiência. (...)

Nenhuma coisa que tenha ocorrido alguma vez no curso ordinário da

natureza é jamais considerada como um milagre. (...). Deve, portanto,

haver uma experiência uniforme contra todo fato milagroso, de outra

forma ele não merecia tal designação. E, como uma experiência

uniforme equivale a uma prova, temos aqui uma prova direta e cabal,

baseada na própria natureza do fato, contra a existência de qualquer

milagre; e uma tal prova não pode ser destruída, nem o milagre tornar-

se digno de crédito, senão por uma evidência contrária e que lhe seja

superior (EHU X, 90).

Considerando a perícope extraída da Investigação, podemos ressaltar dois pontos que

caracterizam o entendimento de Hume acerca dos milagres. No primeiro ponto, parte-se do

pressuposto de que os milagres são caracterizados como eventos que violam as leis da

natureza. No entanto, a segunda parte, por considerar as premissas causais como leis da

natureza, a ponto de a crença na existência de milagres resultar numa eventual prova direta e

cabal, uma vez que habituada a uma conexão causal, a mente humana espera que todos os

efeitos sigam necessariamente sua suposta causa.

Outra questão que está intimamente relacionada com os milagres são os relatos de

testemunhas para justificar a existência de um fato miraculoso. Nesse sentido, Hume pensa

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que se deve esperar com a devida cautela a reunião das evidências empíricas, pois, mesmo

não sendo infalíveis, são o guia exclusivo dos raciocínios sobre as questões de fato. A crença

regulada pela evidência fará com que o homem proceda com indispensável preocupação, pois,

como pondera Hume, “pesa os experimentos contrários; examina qual das alternativas se

apoia em maior número de experimentos; e para esse lado que se inclina, com dúvida e

hesitação; e quando finalmente fixa o seu juízo, a evidência não ultrapassa o que propriamente

chamamos de probabilidade” (EHU X, 87). Portanto, por nossos raciocínios se assentarem

sobre a probabilidade, devemos pressupor que exista na possibilidade oposta aos

experimentos outrora observados.

O testemunho de uma ou mais pessoas fundado na experiência passada de um

acontecimento extraordinário em relação ao curso normal da natureza, reivindica ser uma

prova cabal da violação das leis que regem a natureza. No entanto, trata-se da problemática

que se situa entre uma espécie particular de um relato e a constância da natureza. Nessas

circunstâncias, o homem deve proceder com cautela. Nesse sentido, Hume afirma que, “pesar

os experimentos opostos, quando são tais, e deduzir o número do maior para conhecer a força

exata da evidência superior” (EHU X, 87). Com isso, a confiança que depositamos no

testemunho das pessoas pode variar em relação aos fatos que são costumeiramente

observados, pois quando corroboram a percepção outrora experimentada servem de prova, de

outro modo, quando são dissociados recebem a classificação de milagres. Nesse contexto,

entendemos as palavras de Hume no Tratado quando afirma:

Não há fraqueza mais universal e manifesta na natureza humana que

aquilo que comumente chamamos de CREDULIDADE, ou seja, uma

fé demasiadamente fácil no testemunho alheio. Essa fraqueza também

se explica, de modo muito natural, pela influência da semelhança.

Quando admitimos uma questão de fato, baseados no testemunho dos

homens, nossa fé tem exatamente a mesma origem que nossas

inferências de causas a efeitos e de efeitos a causas. Somente nossa

experiência dos princípios que governam a natureza humana pode nos

assegurar da veracidade dos homens (T 1, 3, 9, 12).

Todo o conhecimento histórico e filosófico adquirido pelo homem resulta dos relatos

de testemunhas, que, por sua vez, estão assentados no acúmulo e crivo da evidência empírica

(Cf. T 1, 3, 13, 6). Estando o homem habituado com a sucessão dos acontecimentos, o milagre

deve ser visto como um fato único, irrepetível na história da humanidade e, em certo sentido,

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não contém justificativa racional ou psicológica que explique sua existência ou do testemunho

a seu favor.

Se a memória não mostrasse um certo grau de tenacidade; se os

homens não se inclinassem comumente pela verdade e por um

princípio de probidade; se não fossem sensíveis à vergonha quando

surpreendidos a mentir – se a experiência, digo eu, não mostrasse que

essas são qualidades inerentes à natureza humana, jamais

depositaríamos a menor confiança no testemunho de nosso próximo.

Um homem presa de delírio, ou conhecido pela mendacidade e pela

baixeza de caráter, não tem autoridade alguma junto de nós (EHU X,

88).

Podemos verificar a partir das experiências passadas, quando nos deparamos com

circunstâncias contrárias que nos causam embaraço, que o padrão que servirá de guia do juízo

será acompanhado pela constância da experiência. Por isso, Hume afirma que “... quando

descobrimos uma superioridade de um dos lados, inclinamo-nos para ele, mas sempre com

um decréscimo de segurança, proporcionalmente à força do seu antagonista” (EHU X, 88). A

regularidade provocada pela constante observação do curso da natureza dispõe o espírito

humano a inclinar-se para as circunstâncias mais prováveis, pois o critério mais prudente é

aquele que se assemelha à frequência que temos observado os fatos.

Em conformidade com a natureza humana, que tende a esperar que a regularidade dos

eventos observados mantenha sua constância, de maneira paralela ocorre com os relatos

empreendidos pelos testemunhos, nosso assentimento a eles depende da evidência em que se

amparam. Nessa perspectiva, Hume relembrando os escritos do Dr. Tillotson contra as

verdades da religião cristã que, baseadas no testemunho dos apóstolos, observa que tendem a

diminuir gradativamente pelo distanciamento com a presença real comunicada pelos sentidos

(Cf. EHU X, 86). Assim se pronuncia o teólogo e arcebispo de Canterbury:

Todo homem tem a evidência de que a transubstanciação é falsa como

tem de que a religião cristã seja verdadeira. Suponha, então, que a

transubstanciação faça parte da doutrina cristã, então ela deve ter a

mesma confirmação como o todo, e isso são milagres: mas, de toda a

doutrina no mundo, é peculiarmente incapaz de ser provada por um

milagre, pois um milagre ou a prova dele carrega a mesma certeza que

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qualquer homem tem da verdade do milagre, ele tem da falsidade da

doutrina; e essa é a clara evidência de seus sentidos123

.

O argumento de Tillotson, que Hume considera “tão conciso, elegante e vigoroso”

(EHU X, 86), é direcionado ao catolicismo, pois observa que “a autoridade, não só das

escrituras como da tradição, se funda exclusivamente no depoimento dos apóstolos, que foram

testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador” (EHU X, 86). Considerando a

importância do conceito de evidência, podemos verificar que os relatos miraculosos que o

catolicismo reivindica como sendo verdadeiros não nos oferecem evidência maior do que

supridos por nossos próprios sentidos. Desse modo, segundo Hume, “nada mais útil do que

um argumento decisivo dessa espécie, que deve pelo menos silenciar o mais arrogante

fanatismo e superstição e nos livrar de suas impertinentes solicitações” (EHU X, 86). Por isso,

todo tipo de conhecimento obtido através da experiência direta dos sentidos assegura certa

confiabilidade em detrimento de uma percepção indireta. Essa a razão por que hesitamos,

nesses casos, em acreditar no testemunho dos outros.

Hume apresenta o argumento elaborado por Tillotson para demonstrar que as

evidências para serem plausíveis devem estar escoradas na credibilidade da experiência direta

em detrimento dos relatos de testemunhas, como ocorre com as crenças do catolicismo. Cabe

ressaltar que o objetivo de Hume não é tecer uma crítica ao catolicismo, mas silenciar

qualquer tipo de superstição e fanatismo presente em toda história da humanidade através dos

relatos de milagres e prodígios. Nesse sentido, ampliando essa crítica pretende estendê-la a

qualquer tipo de testemunho que pretenda justificar a existência de milagres.

Os motivos que Hume elenca para desqualificar a confiabilidade dos relatos de

terceiros provêm de diversas causas, a saber: “... da oposição de depoimentos contrários; do

caráter ou do número das testemunhas; da maneira pela qual formulam o seu depoimento; ou

da união de todas essas circunstâncias” (EHU X, 89). Além dos motivos elencados, há outros

tipos de particularidades que podem diminuir ou aumentar a relevância contida nos

argumentos relatados pela testemunha. Nesse sentido, quanto mais elementos fantasiosos e

123

“Every man hath as great evidence that transubstantiation is false as he hath that be Christian religion is

true. Suppose then transubstantiation to be part of the Christian doctrine, it must then have the same

confirmation with the whole, and that is miracles: but, of the all the doctrine in the world, it is peculiarly

incapable of being proved by a miracle. For a miracle were wrought or the proof of it, the very same assurance

which any man hath of the truth of the miracle, he hath of the falsehood of the doctrine; that is, the clear

evidence of his senses” (LEVINE, 1989, p. 134).

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pouco prováveis são contados, resultando, além na descrença da testemunha, menor também

será nossa confiança na veracidade dos fatos relatados e, consequentemente, tornará nossa

crença numa conexão necessária entre os eventos mais vivaz. Dessa forma, o grau de

confiança que podemos creditar a alguma testemunha sobre um fato tido como milagroso leva

Hume a observar que:

Esse mesmo princípio da experiência, que nos dá um certo grau de

confiança no depoimento de testemunhas, nos comunicam também,

neste caso, um outro grau de prevenção contra o fato que elas se

esforçam por estabelecer; dessa contradição surge necessariamente um

contrapeso e uma mútua destruição de crença e autoridade (EHU X,

89).

Dados os argumentos humeanos referentes à confiabilidade do testemunho, podemos

destacar um provérbio romano, citado por Hume nas Investigações a fim de ilustrar nossa

análise: “Eu não acreditaria em tal história nem que ma contasse o próprio Catão era um dito

provérbio em Roma, mesmo durante a vida desse patriota-filósofo” (EHU X, 89). Dada a

figura de Catão, com o respaldo de inúmeras pessoas quanto ao seu caráter exemplar de

virtuosidade, poderíamos depositar nossa confiança em seus relatos. Entretanto, a

incredibilidade de um fato pode ser um fator que invalide os argumentos assentados na

autoridade. Em suma, Hume quer ressaltar que a confiabilidade da autoridade é diminuída

quando há recurso a argumentos insólitos, pois a natureza humana guiada pela perspectiva

firmada em raciocínios probabilísticos inclina-se para eventos que se assemelham com os que

são constantemente evidenciados.

Por meio desse raciocínio, em última análise, busca-se uma resolução de uma questão

de probabilidade, em que confrontamos a veracidade do relato de testemunhas acerca dos

eventos miraculosos com as leis da natureza que adquirimos por hábito. No que tange a esse

paradoxo, pondera Hume: “Toda probabilidade, pois, supõe uma oposição de experimentos e

observações em que uma das alternativas supera a outra e produz um grau de evidência

proporcional a essa superioridade” (EHU X, 87). Com o intuito de conceder credibilidade a

algum fato considerado como miraculoso, inúmeras religiões recorrem à autoridade que

provém de Deus como a causa da ocorrência desses eventos. Nesse sentido, a configuração do

milagre, e sua violação das leis que regem a natureza, serve como elemento capaz de justificar

as crenças causais estabelecidas na mente humana através do hábito. No entanto, por outro

prisma, considerando o pressuposto em que se assenta o milagre, isto é, as leis da natureza,

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87

podemos concluir que não seria contraditório conceber o seu oposto, uma vez que se tratando

de questões de fato é necessário pensar que se trata de algo contingente. Portanto, para que se

resolva esse impasse, podemos conceder veracidade aos relatos dos testemunhos e,

consequentemente, reavivamos nossas crenças causais; ou, por outro lado, ponderando, entre

os depoimentos e as experiências passadas do homem, prevalecerá a crença que supera a sua

oposta de acordo com seu grau de evidência.

A experiência que o homem adquire através das percepções do mundo permite

verificar que existem alguns fenômenos que são inteiramente uniformes e constantes, mas,

por outro lado, existem outros que se apresentam alguma irregularidade gerando incerteza.

Nesse sentido, de acordo com os argumentos humeanos, mesmo que as crenças sejam

reguladas pela probabilidade adquirida pela experiência constante de determinado fenômeno,

devemos estar conscientes da contingência das questões de fato, pois no que “... tange à

probabilidade das causas, dá-se exatamente o mesmo que com as do acaso” (EHU VI, 47).

Desse modo, quando uma testemunha reivindica a existência dos milagres, por si mesmo,

torna-se uma prova da contingência dos fenômenos da natureza e, portanto, da inexistência

dos milagres.

Como todos os raciocínios humanos estão fundados numa probabilidade causal, afirma

Hume: “A única utilidade imediata de todas as ciências é ensinar-nos a maneira de controlar e

regular os acontecimentos futuros por meio de suas causas” (EHU VII, 60). Considerando que

o homem prudente é aquele que regula sua crença pela evidência (Cf. EHU X, 87),

cautelosamente, ponderará seus juízos e formulará raciocínios preferindo, dentre as

alternativas que se apoiam no maior número de experiências, aquela mais provável. Assim, o

poder que o hábito exerce na mente humana é o que “... leva a esperar de uma causa qualquer

as mesmas consequências que vimos resultar de causas semelhantes” (EHU IX, 82). A

propensão produzida por este princípio é acompanhada pela probabilidade com que a mente

humana é atingida pelas repetições constantes dos fenômenos, resultando na identificação de

“leis da natureza”. No Tratado, Hume considerando essas questões:

Nenhuma probabilidade é tão grande que não permita uma

possibilidade contrária; porque, de outro modo, deixaria de ser uma

probabilidade e tornar-se-ia uma certeza (...) Uma experiência no

passado demonstra [proves] sempre ao menos uma possibilidade para

o futuro (T 1, 3, 12, 8).

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88

A contingência dos fenômenos da natureza exerce menor força na mente humana em

relação àqueles eventos arraigados na mente humana pelo hábito. Desse modo, de acordo com

a probabilidade dos acontecimentos, haverá um favorecimento das denominadas “leis da

natureza” (EHU X, 89). Entretanto, alega Hume, há uma possibilidade de considerarmos a

existência de um evento miraculoso, quando consideramos que sua negação implicaria na

aceitação de um fato com índole milagrosa maior que o próprio fato negado (Cf. EHU X, 91).

Como Hume atesta no final da parte I da seção X:

Nenhum testemunho basta para estabelecer um milagre, a não ser que

seja de tal índole, que sua falsidade seria mais milagrosa do que o

próprio fato que procura estabelecer; e, mesmo assim, há nesse caso

uma destruição mútua dos argumentos, e o argumento que superior só

nos dá a certeza proporcional ao grau de força que lhe resta após

deduzir-se o inferior (EHU X, 91).

Nessa perícope, através das palavras de Hume, podemos ressaltar que a prova da

admissibilidade de um milagre é, em certo sentido, o atestado da contingência fenomênica.

Contudo, mesmo que se admita a possibilidade de eventos dissociados da regularidade, o

estatuto epistemológico fundamenta-se na constância da natureza e, diante de alternativas

possíveis e contrárias, nos inclinamos àquelas mais prováveis.

Desse modo, o testemunho acerca de um fato dissociado das “leis da natureza”, pode

ser considerado digno de crença pela credibilidade depositada na pessoa que o relata, mas, de

modo contrário, por conter elementos fantasiosos e insólitos, divergentes do curso da

natureza, implica incredibilidade e desconfiança (Cf. EHU X, 92). Nesse contexto, Hume,

relembra o exemplo dado por Locke nos Ensaios acerca de um príncipe indiano que se

recusou a acreditar que a água congela em climas frios. Dada a situação completamente

desconhecida, podemos afirmar que esse príncipe raciocinou corretamente, pois

desconhecendo empiricamente este fato, não conseguiria prever a não ser por um relato de

uma testemunha. Entretanto, por mais fidedigno que seja o relato descrito pela testemunha,

esse elemento pode atenuar a crença causal, pois recaindo a atenção sobre as questões de

probabilidade, consideraria esse fato apenas como extraordinário124

.

Ao considerar a contingência presente nas questões de fato, se faz necessário explicar

que a concessão da contrariedade pode gerar dois tipos de eventos, a saber: extraordinários ou

124

Locke utiliza exatamente este exemplo para comentar a questão da probabilidade que deve ser atribuída aos

testemunhos. (Cf. Ensaios IV, XVI, 5).

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milagrosos. Com o intuito de esclarecer esta distinção, Hume, nas Investigações, dará dois

exemplos (Cf. EHU X, 99). O primeiro relato, por exemplo, supõe que todos os autores em

diversas partes do mundo, concordem em afirmar que a partir do dia 1º de janeiro do ano de

1600 houve um período de oito dias de total escuridão na Terra. Esse relato, descreve Hume,

continua vivo na lembrança dos povos, podemos considerá-lo extraordinário e “... deveriam

aceitá-lo como certo e investigar as suas possíveis causas” (EHU X, 99).

O segundo relato, parte da suposição do testemunho unânime de diversos historiadores

que narram a morte da Rainha Elizabeth da Inglaterra no dia 1º de janeiro de 1600. Este fato

foi acompanhado de diversas testemunhas e não resta incredulidade quanto a esse evento. No

entanto, ao passar um mês após ter sido sepultada, reaparece. Podemos confessar que este

evento nos surpreende pela desassociação com as circunstâncias regularmente observadas, “...

mas não me inclinaria em absoluto a acreditar num acontecimento tão milagroso” (EHU X,

99). Embora esse caso seja incluído no rol de um sistema religioso, não é o suficiente para lhe

creditarmos veracidade, pois, durante os séculos, muitos homens foram embalados por

histórias ridículas desse mesmo tipo e, por isso, rejeitam qualquer exame ligados ao plano

religioso (Cf. EHU X, 99). Neste caso, mesmo que atribuamos o “milagre” a Deus, não o

tornará mais forte ou mais provável, uma vez que a mente será guiada pela experiência do

curso usual da natureza. “Como sempre, isso nos reduz à observação do passado e nos obriga

a comparar os exemplos de violação da verdade nos testemunhos humanos com os da

violação das leis da natureza por milagres, a fim de julgar qual é a mais provável e

verossímil” (EHU X, 99). Como observa Mossner, podemos perceber uma estreita relação

entre os milagres e seus testemunhos com o aspecto religioso, pois, para torná-los

justificáveis, admitem que o milagre é um sinal de uma vontade anterior e externa ao curso da

natureza, justificando, por conseguinte, a existência e a singularidade que cabe somente à

divindade. No entanto, conclui Mossner, essa concepção apresentada por diversas religiões é

incompatível com qualquer grau de crença fundamentado na experiência (Cf. MOSSNER,

1954, p. 95).

Com relação ao uso de testemunhos, utilizados para dar credibilidade aos eventos que

fogem à perspectiva humana decorrente do hábito, podemos perceber que a ligeira diferença

entre os fatos excepcionais e os milagrosos está relacionada com relatos que se contrapõem

com a experiência humana. Desse modo, os fatos chamados de extraordinários estão

relacionados com a contingência da natureza e são facilmente concebidos pela mente humana.

Entretanto, por outro lado, os relatos que pretendem testemunhar algum milagre pressupõem a

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necessidade da natureza ser uniforme, pois querem situá-lo fora ou, até mesmo, acima da

natureza.

Em suma, ao considerar a prova mais consistente que justifique a veracidade do

testemunho de um relato miraculoso, devemos levar em conta dois pontos: (a) sua pretensão

de singularidade; (b) e, por sua própria definição, deve ser uma prova incomparavelmente

mais forte que viole as leis da natureza. Considerando o fluxo da experiência da mente

humana, podemos, através de uma análise da probabilidade, afirmar que a crença daí derivada

será apenas insensivelmente tocada pela imagem do milagre, a não ser, como diz Hume, que a

negação de um milagre leve a estabelecer algo mais milagroso que o próprio milagre (Cf.

EHU X, 91). Dado o reconhecido caráter irônico de alguns trechos das obras humeanas,

sobretudo aquelas relacionadas às questões religiosas, sobretudo na seção XII dos Diálogos.

Contudo, a posição humeana acerca do uso de testemunho é tratada como algo inútil e

insignificante diante de um evento excepcional que tem a pretensão de ser aceito como uma

prova cabal de um milagre (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 67).

Além das questões supracitadas referentes ao uso de testemunhas para certificar a

existência de determinado milagre, cabe ressaltar a apresentação feita por Hume, na parte II

da seção X das Investigações, de quatro problemas relativos à credibilidade desses

testemunhos, a saber: 1) os fundamentos empíricos não são satisfeitos (Cf. EHU X, 92); 2)

muitos homens se deleitam com o extraordinário e deixam-se guiar pelas paixões, fazendo

com que se dê mais crédito ao milagre que às leis da natureza – o que não tem fundamento

científico para Hume (Cf. EHU X, 93); 3) os milagres só acontecem entre os bárbaros e não

entre os sábios, fazendo com que sejam menos confiáveis (Cf. EHU X, 94); e 4) há várias

contradições entre milagres de várias religiões, o que desacredita ainda mais poder ter havido

um fato milagroso (Cf. EHU X, 95).

Hume, para ilustrar sua compreensão acerca relatos miraculosos, dará o exemplo dos

milagres narrados por Tácito, em que conta que Vespasiano teria curado um cego em

Alexandria com sua saliva, e, supreendentemente, fez como que um homem manco

restabelecesse a normalidade com o toque de seus pés. Sobre esses relatos, Hume avalia que

“... não se pode supor evidência mais forte para uma falsidade tão grosseira e palpável” (EHU

X, 96).

Outros relatos considerados miraculosos são atribuídos à tumba do Abade de Paris,

investigado pelo próprio Hume em sua estadia na capital francesa entre 1734 e 1737,

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enumerado dentre os mais expressivos testemunhos125

. Nesse sentido, devemos considerar a

questão feita por Hume: “Onde encontraremos tão grande número de circunstâncias a

concorrer para a ratificação de um fato? E que podemos nós opor a essa nuvem de

testemunhas, a não ser a impossibilidade absoluta ou o caráter miraculoso dos acontecimentos

que elas relatam?” (EHU X, 96). Em certos casos, como os exemplificados, Hume dirá: “Não

preciso dizer quanto é difícil desmascarar a falsidade de qualquer caso privado ou mesmo

público, no lugar onde se diz que aconteceu; quanto mais quando nos separa da cena alguma

distância, embora pequena!” (EHU X, 97). A tentativa de rebater tais argumentos será uma

tarefa vã, pois os relatos milagrosos estão entranhados na mente dos homens com tamanha

força e complexidade, movidos implicitamente por interesses diversos, por ignorância, ou até

mesmo pela vileza da tendência natural dos homens à credulidade e à superstição. Portanto, a

respeito da complexidade de argumentos acerca dos milagres, Hume conclui: “tudo isso me

poderia assombrar, mas continuaria respondendo que a velhacaria e a loucura dos homens são

fenômenos tão comuns que preferia tomá-las como origem desses supostos acontecimentos

extraordinários a admitir tão insigne violação das leis da natureza” (EHU X, 99).

Podemos considerar também a referência que Hume faz ao Cardeal de Retz que ao

relatar sua fuga para Espanha, passando por Saragoça, encontrou um homem que era o

porteiro da catedral há sete anos e que lhe contou que tinha apenas uma perna e que, ao passar

um óleo sagrado, houve a recuperação do membro que faltava. Ao presenciar a consistência e

o número das testemunhas que relatam os milagres, Hume afirma que “... o milagre, de

natureza singular que mal poderia admitir uma contrafação, as testemunhas numerosíssimas e

todas elas, de certo modo, espectadoras do fato que afirmavam” (EHU X, 96). Nesse contexto,

observamos que este relato não é digno de crédito ou, pelo contrário, motivo de riso, pois,

como o cardeal de Retz afirma, “... como raciocinador correto, que tais depoimentos eram

implicitamente falsos e que um milagre apoiado em testemunhos humanos era mais

propriamente matéria para riso do que para argumentação” (EHU X, 96).

125

Sobre esta questão, Hume afirma: “Em suma, a cura sobrenatural era tão incontestável que, durante algum

tempo, salvou aquele famoso monastério [jansenista] da ruína com que os Jesuítas o ameaçavam. Se fosse uma

trapaça, teria sido detectada por antagonistas tão sagazes e poderosos, e teria apressado a ruína dos que a

forjaram” (EHU X, 96).

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3.3 A história de Joana d’Arc

Hume, na História da Inglaterra, pretendendo distinguir os fatos maravilhosos dos

miraculosos apresentará o exemplo da história de uma jovem chamada Joana d’Arc, que

nasceu em 1412 na aldeia de Domremy-la-Pucelle. Essa história ocorre durante a guerra entre

Ingleses e Franceses, que posteriormente foi denominada Guerra dos Cem anos. Devemos

destacar que, com ironia, para não dizer escárnio, Hume retrata os inúmeros casos prodigiosos

e milagrosos que são apresentados na História da Inglaterra (Cf. HE XX, p. 398-400). Hume

quer ressaltar que o poder das manifestações supersticiosas quando atreladas às paixões

humanas podem servir como mecanismo político-religioso. Nesse sentido, o filósofo escocês

quer propor algumas alternativas com o intuito de explicar os eventos considerados

miraculosos.

O próprio Hume admite a singularidade do caso ao descrever a vida da jovem da

pequena cidade francesa de Domremy, preocupada com o domínio inglês e, por conseguinte,

com o destino do povo francês. Com 12 anos afirmou escutar as vozes de anjos vindas do céu

que lhes admoestavam para salvar a França do domínio inglês e ajudar a reestabelecer a

coroa:

Joana, inflamada pelo sentimento geral, foi tomada de um desejo feroz

de trazer alívio a seu soberano em suas dificuldades presentes. Seu

espírito inexperiente, trabalhando dia e noite sobre este objeto único,

confundiu os impulsos da paixão com inspirações celestes; e ela

imaginou ter visões e ouvir vozes, que a exortavam a restabelecer o

trono da França e a expulsar os invasores estrangeiros (HE XX, p.

397).

Exemplo transmitido por Joana d’Arc de segurança e convicção, é a carta escrita ao rei

Carlos VII, que relata uma visão divina; serviu de inspiração às tropas francesas que, estando

sob seu comando, avançaram no cerco de Orleans contra os adversários ingleses, alertando-

os: “A vós, ingleses, que não tendes nenhum direito neste Reino de França, o Rei dos Céus

vos ordena, e manda, por mim, Joana, a Donzela, que deixeis vossas fortalezas e retorneis ao

vosso país, caso contrário farei grande barulho” (GARÇON, 2001, p. 64). Aos poucos as

tropas francesas conseguem êxito em seus combates, transformam as convicções inglesas em

medo e incerteza, pois desconhecendo a causa de sua derrocada atribuem a uma vingança

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divina. Por fim, empreendendo importantes vitórias conseguem expulsar totalmente os

ingleses dos territórios franceses, sobretudo no do norte da França.

Após a expulsão dos britânicos e cumprimento da missão dada por Deus para ajudar

seu povo, suas vitorias suscitaram a inveja de outros líderes militares que, com o apoio do

temeroso governo de Carlos VII de uma aliança entre Joana e população, decidem entregá-la

aos ingleses. A traição dos franceses custou a Joana D’Arc a prisão e, posteriormente, acusada

de feitiçaria, em função de suas visões, e condenada à morte em fogueira na praça pública (Cf.

HE XX, p. 398-402).

Hume em sua narrativa sobre a História da Inglaterra, sobretudo no caso da jovem de

Domreny, pretende demonstrar que na dinâmica político-estratégica presente nessa obra

perpassa uma leitura supersticiosa que envolve os fatos reais. A história de Joana D’Arc é o

exemplo da superação do exército francês que por sua bravura expulsou os britânicos de suas

terras, sobre essa questão Hume acrescenta: “Uma coisa é certa: todas estas estórias

miraculosas foram espalhadas a fim de cativar o vulgo. Quanto mais o rei e seus ministros

estavam determinados a aquiescer à ilusão, mais escrúpulos fingiam ter” (HE XX, p. 399).

Diante das conotações supersticiosas que diversos relatos históricos contemplam, mesmo que

sejam histórias reais, eles servem para aperfeiçoamento como, por exemplo, da história de

Joana D’Arc:

Sua ocupação anterior foi até negada: Ela não era mais serviçal de

uma estalagem. Foi convertida em pastora, um emprego bem mais

agradável à imaginação. Para torná-la ainda mais interessante,

subtraíram-se dez anos de sua idade; e todos os sentimentos do amor e

da cavalaria se uniram aos do entusiasmo, a fim de inflamar a tola

fantasia do povo com predisposições a seu favor (HE XX, p. 399).

Em suma, Hume quer propor um cuidadoso exame do relato dos fatos, pois, segundo

ele, cabe ao historiador separar os fatos verdadeiros daqueles criados pela fantasia,

superstição ou, até mesmo, pelos interesses dos homens que se servem de fatos reais para

satisfazer suas paixões e “dar crédito a cada exagero” (HE XX, p. 405). Nesse sentido, ao

observamos a história de Joana D’Arc por inúmeros historiadores, seriam mínimas as

condições de uma camponesa combater ao lado de uma tropa, além do mais dirigi-las e liderar

as estratégias que uma guerra requer, pois tais atividades necessitam “mais gênio e capacidade

que qualquer outra cena ativa da vida” (HE XX, p. 405).

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Após a longa narrativa feita da história de Joana D’Arc, Hume admite que a história

que reveste dessa personagem levanta dúvidas quanto à sua veracidade, pois, tratando-se de

uma jovem, já seria digno de elogio o discernimento entre as pessoas capazes e as confiáveis

na tropa que comandava. Entretanto, mesmo que o feito realizado por essa jovem seja

considerado de caráter admirável, como de uma heroína (Cf. HE XX, p. 410), dificilmente

uma pessoa de bom senso, admite Hume, aceitaria a possibilidade de seus atos serem

realizados por intermédio de inspiração divina (Cf. HE XX, p. 403-404).

Portanto, a difícil tarefa que a história impõe, de acordo com Hume, é a diferenciação

entre os fatos miraculosos e os fantásticos. Com relação aos primeiros, assegura Hume,

devem ser rejeitados de todas as narrativas humanas e profanas, pois não há elementos que

justifiquem racionalmente sua existência. Já com relação aos segundos fatos, devemos

assumir uma postura cética e pôr em dúvida a veracidade do relato. Entretanto, quando os

testemunhos forem inquestionáveis, devemos admitir a possibilidade do fato, mesmo que

extraordinário, mas aceitar aquilo que corrobore com as circunstâncias conhecidas (Cf. HE

XX, p. 398).

Com relação à diferenciação dos fatos milagrosos e extraordinários realizada por

Hume, Beyssade a interpreta como a distinção entre milagres religiosos e não-religiosos (Cf.

BEYSSADE, 1987, p. 65-67). Segundo Beyssade, o que denomina de “milagre não-religioso”

é o que Hume considera como sendo um “acontecimento extraordinário”, pois vislumbra a

possibilidade de encontrar a causa que o explica. De modo diverso, o que caracteriza um

acontecimento milagroso é a atribuição de uma causação a Deus, que serve de apoio para os

diversos tipos de sistemas religiosos. Portanto, podemos afirmar que quando atribuímos um

milagre a uma causa sobrenatural, ele será religioso; se natural, não será um milagre.

A diferenciação dos relatos milagrosos e extraordinários, segundo Hume, é uma tarefa

histórica e interminável, pois a natureza do homem, que é guiada pela experiência e pela

probabilidade de chances de ocorrer, muitas vezes, inclina-se, de modo paradoxal, aos

caminhos inteiramente obscuros, “isso diminui em muito a autoridade de tais testemunhos e

nos leva a tomar a resolução geral de nunca lhes dar atenção, por mais especiosas as vestes

com que se apresentam” (EHU X, 99). Todos os relatos que envolvam milagres e outras

espécies de produções fantasiosas servem de alimento às paixões humanas que se inclinam a

essas histórias com surpresa e admiração. Nesse sentido, algumas pessoas mesmo que não

acreditem em acontecimentos milagrosos ou construções metafísicas, experimentam o prazer

de fazer despertar a admiração dos outros pela maneira como são contados os fatos.

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3.3 Análises de Flew e Fogelin acerca da perspectiva humeana de milagre

Diante da impossibilidade de conceber as crenças relativas à existência de milagres na

filosofia humeana, Folegin destaca que, nesse contexto, podemos vislumbrar duas

preocupações: epistemológica e metafísica (Cf. FOGELIN, 1990, p. 85-86). Respectivamente,

no que tange a primeira esfera, analisa-se a legitimidade do testemunho que atesta um evento

miraculoso. Na segunda esfera, pretende-se investigar o comportamento da natureza frente

uma intervenção de volição divina.

Nesse sentido, Fogelin, relembrando os argumentos de Dorothy Coleman, dirá que as

preocupações, mencionadas anteriormente, podem ser apresentadas através de dois modos

(Cf. FOGELIN, 1990, p. 82-83). Relacionado com o aspecto epistemológico, pretendemos

investigar se Hume tem um argumento a priori que tente comprovar que os milagres não são

possíveis. Com relação ao aspecto metafísico, pretendemos analisar se Hume tem um

argumento que possa demonstrar que o testemunho não tem força para endossar a existência

de milagres. Em suma, essas duas preocupações destacadas por Fogelin e Flew, podem ser

sintetizadas por intermédio de uma questão: há possibilidade, dentre os argumentos

humeanos, de se conceber a existência de milagres ou, de modo a priori, não há espaço para

tal possibilidade? Essa mesma questão pode ser realizada no âmbito da possibilidade que um

testemunho torne legitima a crença na existência de milagres.

De acordo com uma leitura tradicional dos argumentos humeanos, concorda-se em

afirmar que Hume não tem um argumento a priori contra a existência de milagres. No

entanto, cabe ressaltar que não pode ser dito o mesmo contra o testemunho que pretendem

comprovar a existência de eventos miraculosos. Flew, como representante dessa corrente

interpretativa, acredita que pela análise das passagens de Hume que definem o próprio

milagre não haja uma problemática, mas no conflito das evidências dos fenômenos da

natureza que atingem a mente humana. Nesse sentido, de acordo com a análise de Flew, a

ênfase do argumento humeano envereda por uma via epistêmica.

Por outro lado, Fogelin não acredita que a estrutura do argumento humeano abarque

apenas o caráter epistêmico, mas, de forma equitativa, também um olhar metafisico, que

demostra que a própria definição de milagre dada por Hume indica que não é possível a

existência de milagres. Nos argumentos presentes na Investigação, Fogelin assegura que

Hume afirma que é impossível reconhecer um fato como milagroso, dada a inexistência de

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uma prova à qual não se pode destruir; a não ser que houvesse, como vimos anteriormente,

uma prova a favor dos milagres que fosse superior à prova da uniformidade da experiência.

Com o intuito de demonstrar que dentre os argumentos humeanos existe uma prova a

priori contra a existência de milagres, nos seguintes termos podemos destacar: diante dessa

problemática probabilística, só conceberíamos a existência de um milagre caso sua força

sobrepujasse a perspectiva alcançada pela força da natureza, pois todo conhecimento parte da

experiência; consequentemente, não existe uma prova a favor dos milagres. Desse modo, não

satisfazendo a probabilidade imposta pela constância da experiência, instaura-se, pela própria

crença em milagres, uma prova contra sua existência (Cf. FOGELIN, 1990, p. 82-83).

A interpretação tradicional, assentada na passagem subsequente à definição de milagre

dada por Hume, que sugere a possibilidade de haver um testemunho em prol dos milagres,

pelo fato de sua negação tender para um fato mais miraculoso, assegura Fogelin, que o

filósofo escocês quer demonstrar, com certa ironia, que tal testemunho não pode existir (Cf.

EHU X, 89).

A interpretação de Ellin, referente à questão dos milagres e dos relatos de

testemunhos, entende que Hume tenha elaborado um argumento a priori tanto de caráter

epistemológico quanto ontológico. Essa posição é tomada a partir da interpretação da leitura

que Flew faz de Hume, afirmando que ele não usa um argumento a priori para provar que seja

possível racionalmente acreditar na ocorrência de milagres e, por conseguinte, dar crédito ao

testemunho de eventos miraculosos (Cf. ELLIN, 1993, p. 207-209).

Portanto, por meio dos argumentos elaborados por Ellin, podemos concluir que um

milagre só poderia fornecer uma prova se sua evidência fosse mais forte que a regularidade

obtida pela experiência. No entanto, o milagre, por sua própria definição, não sendo regular e

dada a regularidade que ocorre no mundo, o testemunho de um evento miraculoso, por sua

índole, caráter e número, será somente uma prova da contingência da natureza. Portanto, o

testemunho de um milagre não tem força suficiente para se contrapor ao testemunho de uma

experiência, já que o milagre é algo que não tem força de regularidade.

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3.4 A questão da fé de Hume

Podemos observar que outra dificuldade importante que se sobressai nos parágrafos

finais da seção X da Investigação é a relação entre a fé e filosofia empirista de Hume. Nesse

sentido, a partir da base epistemológica analisada no primeiro capítulo desta dissertação não

conseguimos justificar a referida relação, pois as questões que envolvem a fé e a revelação

não encontram uma plausibilidade racional no desenvolvimento empírico da filosofia

humeana. Seguindo essa perspectiva, na conclusão do ensaio “Dos Milagres”, Hume afirma:

... podemos concluir que a Religião Cristã não só foi inicialmente

acompanhada de milagres, como até hoje não é possível que uma

pessoa razoável lhe dê crédito sem milagre. A simples razão é

insuficiente para nos convencer de sua veracidade, e todo aquele que é

movido pela fé a aceitá-la tem consciência de uma continuação do

milagre na pessoa, subvertendo todos os princípios de seu

entendimento e dando-lhe a determinação de crer no que é mais

contrário ao costume e à experiência (EHU X, 101).

Esse trecho apresentado por Hume no final da seção “Dos Milagres” suscita uma série

de questionamentos, uma vez que desconhecemos se essa perícope retrata efetivamente seu

posicionamento verdadeiro ou seria mais umas de suas frases irônicas. Nesse caso, somos

levamos a questionar se Hume nesse momento confessa uma crença religiosa professada nos

moldes teístas; ou quer demonstrar seu ceticismo ao ser prudente com os limites impostos

pela experiência; ou, ainda, quer meramente se desviar dos ditames impostos pelas

autoridades eclesiásticas. Diversos comentadores dividem-se a favor de cada uma dessas

hipóteses, o que dificulta a elaboração de uma resposta efetiva sobre a verdadeira posição de

Hume. Por isso, não pretendemos formular uma nova hipótese sobre essa questão, mas através

da análise de determinados parágrafos da seção X da Investigação tencionamos analisar a

relação entre a sua filosofia, analisada de modo sucinto no primeiro capítulo, e a defesa velada

de uma crença religiosa por Hume.

No decurso da leitura filosófica de Hume, sobretudo nas obras dedicadas à crítica da

religião natural, podemos vislumbrar que por trás de seu ceticismo, como sua filosofia parece

indicar à primeira vista, o filósofo escocês se releva um homem de fé. Nesse sentido,

percebemos que além da perícope citada acima, podemos observar outras demonstrações que

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parecem revelar a crença religiosa de Hume através dos relatos dos exemplos acerca da

evidência transmitida pela experiência direta de John Tillotson (Cf. EHU X, 86), dos milagres

atribuídos ao Abade de Paris (Cf. EHU X, 96) e, por fim, como Hume relata:

Ainda mais me agrada o método de raciocínio aqui exposto quando

penso que talvez sirva para confundir esses perigosos amigos ou

inimigos disfarçados da Religião Cristã que se propõem defendê-la

pelos princípios da razão humana; e é um meio seguro de traí-la, esse

de submetê-la a uma prova a que ela não pode de nenhum modo fazer

frente. A fim de que isso se torne mais claro, examinemos os milagres

referidos nas escrituras; e para que não percamos nenhum campo

demasiado extenso, limitemo-nos aos que são encontrados no

Pentateuco e encaremo-lo de acordo com os princípios desses

pretensos cristãos, não como a palavra ou o testemunho do próprio

Deus, mas como produções de um mero autor ou historiador humano

(EHU X, 100).

Os argumentos humeanos elaborados na seção X da Investigação querem evidenciar

que a crença em milagres não é impossível, mas não conseguimos justificá-la racionalmente,

assim como a fé e a revelação cristã original não podem ser justificadas. Diante desses fatos,

considerando que as crenças epistemológicas como as religiosas não contêm uma base

empírica e racional que seja suficiente para justificar a crença causal, apenas o hábito e

repetição constante garantem ao homem a ideia de conexão necessária (Cf. EHU XII, 116).

Por estarmos tratando de questões de fato, seguindo a base epistemológica analisada

no primeiro capítulo, podemos entender que a regularidade e a ordem observadas no mundo

são frutos de inferências causais reguladas pelo hábito e pela constância que os fenômenos se

apresentam ao homem. No entanto, para diversas religiões, a harmonia com que os fenômenos

da natureza se apresentam é considerada como uma prova, conforme constatamos nos

Diálogos, da existência de Deus. Entretanto, adverte Hume, as questões que envolvem a fé e a

revelação não são justificadas pela razão, mas são questões que devem ser tratadas

efetivamente pelas religiões (Cf. EHU XII, 116-123). De acordo com Gaskin (Cf. GASKIN,

1993, p. 143-146), Hume pretende romper com as crenças supersticiosas, como analisamos no

capítulo segundo, que ele chamadas de vulgares. Nesse sentido, como ressalta na seção acerca

dos milagres na Investigação, não tenciona analisar quais os tipos de sistema religioso são

obscuros ou supersticiosos, mas quer alertar o homem para que seja sábio e procure

evidências para suas crenças.

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99

De acordo com Tasset: “Este tema preocupava especialmente Hume porque era um

exemplo manifesto de entrecruzamento, confuso, porém, ao final real, de considerações

baseadas na fé e com argumentos pretensiosamente racionais”126

. Dessa forma, diante da

insatisfação com as provas apresentadas pelos argumentos a posteriori e a priori, conforme

observamos nos Diálogos, Hume defende uma posição cética que suspende o juízo sobre

esses assuntos. Nesse sentido, devemos entender que o ceticismo humeano atua para

denunciar a ausência de uma justificativa racional e empírica das crenças religiosas, como,

por exemplo, a legitimidade do testemunho a respeito de um milagre. Pois se não se pode

aceitar esses argumentos como fundamentos da religião, também não se pode demonstrar que

são errôneos por irem além do entendimento humano. Nesse sentido, devemos compreender

que a crítica de Hume à religião natural pretende demonstrar os perigos envolvidos em nossas

crenças. Contudo, no que tange às crenças religiosas, ele admite que ocupam um espaço único

que é de natureza individual e incomunicável desse sentimento; é por isso que a fé deve ser

compreendida como a única base na qual a religião pode se apoiar (Cf. T 1, 3, 1, 9).

Assim como na última parte dos Diálogos sobre a Religião Natural, nas últimas linhas

de seus escritos dedicados à investigação da temática dos milagres, percebemos, como afirma

Monteiro, com certa facilidade que, “estão permeados de ironia, de exemplos de ocultação do

significado real por detrás do véu da ambiguidade” (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 136). Nesse

sentido, considerando o aspecto irônico com que Hume redige algumas partes de suas obras

dedicas à religião, a análise desses elementos torna-se imprescindível, pois através deles abre

a possibilidade de conhecermos a verdadeira posição humeana referente às questões

religiosas.

Saber efetivamente em que Hume realmente acreditava talvez seja uma questão

impossível de ser respondida de modo taxativo, mesmo que não seja a pretensão proposta

como objetivo desta dissertação, mas, sem dúvidas, serviria como guia para fazermos frente à

problemática da possibilidade do conhecimento de Deus. Nesse contexto, por intermédio de

uma entrevista que Hume concedeu a Boswell, nos últimos anos de sua vida, podemos

vislumbrar o porquê de algumas posições presentes na seção direcionada às questões dos

milagres:

126

“Este tema le preocupaba especialmente a Hume porque era un ejemplo manifesto de entrecruzamiento,

confuso, pero al fin real, de consideraciones basadas en la fe y argumentos pretendidamente racionales”

(TASSET, 2005, p. 33).

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100

Ele parecia ser plácido e até mesmo alegre. Ele disse que estava

chegando ao fim. Acho que essas foram as palavras dele. (...) Ele disse

que jamais alimentou qualquer crença na religião desde que ele

começou a ler Locke e Clarke. Perguntei-lhe se ele não era religioso

quando era jovem. Ele disse que era, e costumava ler The Whole Duty

of Man; do qual fez um resumo do catálogo de vícios no final dele, e

examinava a si mesmo por esse resumo, deixando de lado os

assassinatos e roubos e os vícios que ele não tinha nenhuma chance de

cometer, não tendo nenhuma inclinação para cometê-los127

.

Afirmar a existência de Deus, a partir da leitura de diversas obras humeanas, talvez

seja possível com base numa leitura naturalista, apartada de uma fundamentação epistêmica e

com valores subjetivos. Devemos ressaltar que a possibilidade (da existência de Deus) que se

abre através desse viés é diferente das profissões de determinadas religiões, uma vez que

grande parte das religiões, em sua gênese e fundamento, baseiam-se em explicações que

ultrapassam os limites fixados pela razão o que gera grande confusão, crenças esdrúxulas e

corrupção moral. Nesse sentido, por não apoiar nenhuma crença religiosa, e diante da

dificuldade de expor seus verdadeiros pensamentos acerca das questões de fé, recorre à ironia

para implicitamente delinear o problema da fé e da Revelação. Podemos perceber o modo

cauteloso com que Hume expõe seus argumentos contra a doutrina da imortalidade da alma

no ensaio póstumo “Da imortalidade da alma”:

Com que argumentos ou analogias podemos provar um estado de

existência que ninguém jamais viu, e que em nada se assemelha a

qualquer estado que já tenha sido visto? Quem confiará tanto em uma

pretensa filosofia a ponto de admitir, apenas a partir de seu

testemunho, a realidade de uma cena tão fantástica? Para isto seria

necessária alguma nova espécie de lógica; e novas faculdades do

espírito que nos permitissem compreender essa lógica (HUME, 2006,

p. 59).

Nesse mesmo contexto, Hume complementa seu argumento ao afirmar: “Nada poderia

iluminar melhor a infinita dívida dos homens para com a revelação divina; pois vemos que

nenhum outro meio pode nos assegurar desta grande e importante verdade” (HUME, 2006, p.

127

“He seemed to be placid and even cheerful. He said he was just approaching to his end. I think these were his

words. (…) He said he never had entertained any belief in religion since he began to read Locke and Clarke. I

asked him if he was not religious when he was young. He said he was, and he used to read The Whole Duty of

Man; that he made an abstract from the catalogue of vices at the end of it, and examined himself by this, leaving

out murder and theft and such vices as he had no chance of committing, having no inclination to commit them”

(BOSSWELL, 2006, p. 73).

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101

59). Em suma, podemos afirmar que Hume preocupado com as possíveis retaliações

eclesiásticas, se furta a expressar de modo claro e literal seu pensamento, pois suas obras

dedicadas à problemática religiosa estão permeadas de ironia como, por exemplo, na obra

póstuma escrita sob forma de diálogos. No entanto, fica latente que Hume não afirma a

inexistência de Deus, mas que não podemos justificar sua existência e seus atributos

auxiliados pelo crivo da experiência e razão. Nesse sentido, podemos afirmar que, mesmo se

tratando de questões de fato, a problemática que envolve a fé e a revelação são localizados no

interior de cada indivíduo.

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CONCLUSÃO

A título de conclusão, faz-se necessário repropor algumas questões e oferecer

respostas pontuais relativas ao meu objetivo principal nesta dissertação, a fim de tornar sua

defesa mais clara. Como pudemos observar ao longo do texto, o conhecimento de Deus exige,

à luz da perspectiva humeana de causalidade, levar em conta diversas problemáticas.

Seguindo os argumentos de Hume, tanto no Tratado como na Investigação, não

podemos nos afastar da tese de que “todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são

cópias de nossas impressões, ou percepções mais vivas” (EHU II, 13). Nesse sentido,

podemos afirmar que nossas percepções são distinguidas pelo grau de força e de vivacidade.

Por isso, sabemos com alguma evidência que a experiência imediata de alguma sensação é a

chamada impressão; posteriormente, o pensamento que teremos sobre a sensação, que não

estamos mais experimentando, é o que chamamos de ideia, que, por sua vez, se apresenta em

correspondência com as impressões sensíveis (Cf. EHU II, 13). Desse modo, os argumentos

do filósofo escocês se contrapõem à teoria das ideias inatas e, por extensão, também ao

conhecimento de Deus, pois não temos nenhuma impressão que corresponda a essa ideia (Cf.

EHU II, 14).

Segundo Hume, o poder que a imaginação tem de romper os limites da natureza e da

realidade, levando-nos às mais longínquas regiões do universo, está restrito, o que não parece

ocorrer à primeira vista, aos limites preestabelecidos pela experiência, que ensejam

“combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela

experiência” (EHU II, 13). Desse modo, ressalta Hume, podemos, facilmente, perceber a

existência de princípios, não como uma ‘conexão inseparável’ entre as ideias, mas sim como

uma ‘força gentil’ que as conectam e possibilitam a conexão entre diversos pensamentos ou

ideias. De acordo com essa perspectiva, verificamos a existência entre as ideias por meio dos

princípios associativos de semelhança, de contiguidade ou de causa e efeito, que se conectam

em nossa mente, como princípios secretos, fazendo com que sejam naturalmente introduzidas

(Cf. COVENTRY, 2011, p. 67).

Segundo Hume, todos os objetos da mente humana se diferenciam pelas relações entre

ideias e questões de fato. As primeiras, por pertencerem às ciências da geometria, da álgebra e

da aritmética, suas sentenças são intuitivamente ou demonstrativamente certas (Cf. EHU IV,

20). Com relação às questões de fato, podemos afirmar que elas são consideradas por Hume

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as mais importantes para a compreensão do conhecimento humano, pois suas proposições

estão estreitamente relacionadas com os dados provenientes da experiência e são baseadas,

sobretudo, no princípio associativo de causalidade (Cf. EHU IV, 21-22).

Seguindo o fio condutor do pensamento humeano, a principal problemática que

emerge acerca do princípio de causalidade é a seguinte: os diversos eventos em si fornecem

elementos para que se estabeleça uma conexão necessária entre os fatos? Para Hume, a

necessidade é algo que existe no espírito, não nos objetos, uma vez que a experiência não

sugere qualquer tipo de conexão causal. Em outras palavras, não há impressão de causalidade,

unicamente há uma crença causal.

A experiência constante da sucessão dos fenômenos nos leva a atribuir um caráter,

para a mente humana, de continuidade e interdependência entre eles. O resultado do processo

que repetidas vezes observamos é fruto do hábito ou costume. Nesse diapasão, podemos

afirmar que a ideia de causalidade é produzida pela mente humana, que ultrapassa os dados

fornecidos pela experiência acreditando haver um padrão ou modelo que reproduz o curso da

natureza, que contém em si uma conexão necessária. Por isso, podemos afirmar que a

causalidade é uma operação subjetiva da mente, que, por sua vez, é influenciada pelo hábito, o

qual lança o homem para além de seu momento atual, de sua memória e de seus sentidos,

levando-o a fazer inferindo juízos equivocados sobre os dados fornecidos pela experiência a

ponto de se tornar escravo do hábito (Cf. EHU VII, 32).

A propensão criada pelo hábito na mente humana é fruto de uma inferência de tipo

probabilístico, isto é, pela da constância com que observamos os fenômenos gera-se na mente

humana um sentimento de crença, atribuindo mais força e vivacidade à ideia de conexão

causal entre os fenômenos observados constantemente, fixando-os na mente e tornando-os

princípios reguladores das ações humanas (Cf. T 1. 3. 7. 7).

Podemos interpretar a questão da causalidade elaborada por Hume, sobretudo no

Tratado e na Investigação, por uma óptica tradicional em que o filósofo escocês, com o

intuito de combater as crenças metafísicas formadas na mente humana, assume um

posicionamento cético. No entanto, há também uma vertente que tende a encarar Hume como

um naturalista, de tal modo que seu ceticismo passa a ser visto como mitigado, uma vez que

algumas crenças são consideradas necessárias para a vida prática e o senso comum. Isso

indicaria a impossibilidade da adopção do ceticismo absoluto.

Nesse sentido, o ceticismo humeano é necessário para que se desfaçam todas as

crenças metafísicas que tornam dogmática a mente humana. Segundo Beebe, o ceticismo

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humeano deve ser concebido de modo atenuado, de tal forma que não ameace afetar nossa

capacidade de formar crenças, mas apenas a sua justificação (Cf. BEEBE, 2006, p. 33).

Por intermédio do entendimento da problemática causal, buscamos compreender a

possibilidade de se conceber e fundamentar a existência de Deus com base nos princípios e

pressupostos da filosofia humeana. Nortearam este estudo os Diálogos sobre religião natural

(1779) e a História natural da religião (1757), uma vez que ambas obras retratam, mesmo

que nem sempre de modo explícito, os argumentos humeanos acerca dessa problemática.

Podemos observar que Hume aplica, em ambas as obras destinadas ao debate sobre a

natureza do fenômeno religioso, os princípios de seu empirismo radical. Na História, o

filósofo escocês, ao tratar das origens e das causas que produzem o fenômeno da religião,

afirma que os efeitos da religiosidade sobre a vida e a conduta do ser humano são percebidos,

ao longo dos séculos, pelas variações cíclicas entre o politeísmo e o monoteísmo. Dessa

forma, o exame da religião feita por Hume, sem a pressuposição da existência de Deus,

decorre de uma posição que defende uma história natural da religião. E foi esta questão que

deu o título à obra supracitada (Cf. GASKIN, 1993, p. 314), na qual seus argumentos

defendem que as religiões, primeiramente as crenças politeístas depois as monoteístas, se

originam das mais primitivas e básicas paixões humanas, de instintos naturais como o medo e

a esperança (Cf. HNR, p. 32). Nessa perspectiva, Hume rechaça a concepção que defende que

a origem da religião ocorre a partir de uma tentativa de entendimento racional do universo.

Na História, a preocupação de Hume não está voltada para a investigação do

conhecimento de Deus e de sua existência, mas de fatos e questões históricas que envolvem as

a distinção entre o teísmo supersticioso, mas formas de politeísmo e monoteísmo, e o teísmo

genuíno, que Hume acredita ser a mais plausível (Cf. HNR, p. 60-61).

Os Diálogos podem ser considerados a obra essencial de Hume acerca da temática da

religião natural, uma vez que investiga o argumento do desígnio, que engloba a existência de

Deus e os atributos que o acompanham (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 142). A redação desta obra

exprime a maestria de Hume em relacionar as diversas posições que são expressas pelos

personagens de Demea, Cleantes e Filo. Demea propõe uma versão a priori do argumento

cosmológico da existência de Deus diante da limitação humana e da observação da perfeita

harmonia entre os fenômenos da natureza (Cf. DNR II, p. 26-27). Cleantes, por sua vez,

defende que podemos chegar ao conhecimento da existência de Deus por meio de analogias,

pois os fenômenos da natureza servem como desígnios que apontam para o Criador; esta é a

concepção do teísmo tradicional (Cf. DRN II, p. 27). Por fim, Filo, que muitos comentadores

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afirmam ser a voz de Hume, defende que o melhor caminho acerca das questões religiosas é o

ceticismo, uma vez que carecem de fundamentos racionais que embasem as diferentes formas

de enfrentá-las (Cf. DNR VIII, p. 71).

O tema central dos Diálogos, que é o argumento do desígnio, que se debruça sobre a

possibilidade de conhecermos os atributos de Deus e não sobre sua existência. Em outras

palavras, o fio condutor dos argumentos humeanos busca compreender a plausibilidade dos

argumentos apresentados pelos teístas, e defendido por Cleantes, de que a causa do universo é

fruto de um ser sumamente bom, poderoso e sábio. Nesse sentido, Hume, por meio de Filo,

buscará desqualificar os argumentos da teologia teísta que pinta Deus como um ser pessoal,

dotado de sabedoria e conhecimento, uma vez que não há elementos racionais e empíricos que

justifiquem aplicar esses atributos à Deus. Segundo Filo, as nossas ideias não vão além da

nossa experiência e, por conseguinte, não temos experiência dos atributos e dos processos

divinos, pois ao considerar os elementos que justificam (ou não) seus atributos, percebemos

que a descrição que fazemos de Deus está apartada de sua verdadeira natureza.

Hume assevera que os principais argumentos que tencionam justificar a existência de

Deus, iniciando pelo argumento do desígnio, não são provas válidas, que contraria um dos

mais antigos e importantes argumentos acerca da existência de Deus, desde as especulações

filosóficas dos gregos em suas cosmologias. Nesse sentido, podemos perceber que o

argumento do desígnio se baseia na afirmação de que a existência do mundo físico, em

decorrência da observação da ordem e harmonia da natureza, revela a existência de um Deus

que é bom, inteligente e criador.

Segundo Cleantes, a justificação para ordem e harmonia da criação do mundo é sua

teleologia, forjada por Deus, que escolhe os melhores meios para realização das finalidades da

natureza. O mundo, por essa visão, é entendido como obra, como desígnio, que externa a

existência de um Autor inteligente, volitivo e poderoso. Cleantes expressa seu entendimento

acerca do argumento do desígnio através do exemplo de uma grande máquina, que é

subdividida num número infinito de máquinas menores, que, por sua vez, estão perfeitamente

ajustadas umas às outras com extraordinária adaptação dos meios aos fins. Pelo fato de a

mente humana deixar-se guiar com certa facilidade pelas crenças causais, por conseguinte,

naturalmente, haverá a expectativa de que de causas semelhantes tenham-se efeitos

semelhantes. Seguindo essa mesma regra da analogia, afirma que analogamente à mente

humana em suas produções, podemos entrever semelhanças com a mente de Deus em suas

criações, embora seja este dotado de faculdades muito mais vastas, proporcionais à grandeza

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da obra que executou (Cf. DNR II, p. 27-29). Nesse sentido, os pontos que sustentam o

argumento do desígnio são as analogias entre as semelhanças dos artefatos produzidos pelos

seres humanos e os insumos naturais (Cf. MERRILL, 2008, p. 92-94).

Para Filo, tal argumento, que se baseia nas similitudes, aparentemente plausíveis como

assegura Cleantes, entre a inteligência do homem e a mente divina, contém muita fragilidade.

Em contraposição aos argumentos de Cleantes, Filo afirma que as analogias ocorrem pelo fato

de estarmos habituados com a constância dos fenômenos da natureza; por isso, ao

observarmos uma casa já pronta, inferimos imediatamente que ela é obra de um artífice. A

dificuldade de se fundamentar essa analogia decorre de nunca termos visto a criação de um

universo, uma vez que a ideia de causalidade se origina quando constantemente fazemos a

observação de determinada conjunção entre os fenômenos. Por isso que Filo adverte que a

dessemelhança é tão grande que o máximo que se pode aspirar, com relação a esse ponto, é a

uma suposição, uma conjectura, uma presunção a respeito de uma causa similar (Cf. DNR, p.

31). Desse modo, na concepção humeana, a ordem e a harmonia das causas finais não

constituem por si só, sem a mediação da experiência sensível, prova de desígnio divino no

universo.

A causalidade, portanto, não passa de uma crença baseada na ação do hábito sobre a

imaginação. Isto posto, compreendemos que a crítica humeana às provas da existência de

Deus só poderá se sustentar se o princípio de causalidade for mera conexão subjetiva entre

eventos que se sucedem regularmente. Por outro lado, a inspeção e reconstrução dos

argumentos humeanos não permitem a comprovação taxativa da posição de Hume a ponto de

se poder rotulá-lo de ateu ou deísta. Mesmo porque ele se preocupa mais com a questão do

conhecimento dos atributos divinos, que em termos epistemológicos são inacessíveis, do que

com a questão da existência pura e simples. Nesse sentido, podemos entender que, no final

dos Diálogos, ele admite a possibilidade da existência de um designer inteligente que moldou

o mundo (Cf. DNR VIII, p. 87).

Muitas religiões baseiam-se na crença da existência de milagres como sendo efeitos

dos atributos do poder divino, o que, de certa forma, favorece a concepção da existência de

Deus. Entretanto, o milagre entendido como violação das leis da natureza é, segundo Hume,

por sua própria natureza, uma questão que não tem como ser demonstrada (Cf. EHU X, 90).

Em muitos casos, o milagre se baseia no testemunho humano, o que torna seu grau de

fidedignidade e veracidade incerto, uma vez que alguns testemunhos não são dignos de

confiança. Entretanto, podemos admitir que a única chance de que um milagre possa ser

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concebido é quando o curso da natureza, que observamos com regularidade, for mais

milagroso que o próprio milagre.

Um fator importante na crítica humeana aos milagres é que ele sempre se encontra

distante da experiência, isto é, de qualquer evidência sensível. Por isso, qualquer explicação

que se relacione com a experiência, mesmo pela pouca frequência com que ocorra, terá uma

evidência maior do que qualquer milagre. Nessa perspectiva, a experiência sensível é a chave

do conhecimento uma vez que introduz a exigência de se privilegiar a confirmação, a

comprovação do que se alega.

Outro ponto que merece ser salientado é o fato de o milagre estar intrinsecamente

relacionado com o homem, pois ele tem a ver com os anseios dos homens, com o desejo do

maravilhoso, da superação da esfera terrestre e de uma ascese que o leve da realidade atual

para outra sem as limitações desta. Nesse sentido, por intermédio do relato da vida de Joana

D’Arc, podemos perceber que muitos relatos históricos estão permeados de elementos

fantasiosos, próprios dos anseios humanos de se deixar maravilhar pelo extraordinário. O

milagre, portanto, não existe fora da realidade humana, pois ele serve unicamente para

satisfazer os anseios do homem por uma onipotência afetiva (Cf. HE XX, p. 397-399).

Em linhas gerais, podemos afirmar que se não consegue constatar racional e

empiricamente a natureza de Deus, uma vez que esta só pode ser atingida pela fé. A

concepção da fé, segundo Hume, é uma característica subjetiva, fruto que é da tendência

humana de formular crenças sem lastro, como se pode inclusive constatar nas crenças

epistêmicas que ultrapassam os dados fornecidos pelos sentidos (Cf. EHU XII, 116-123).

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