a “natureza” amazônica- dos mitos edênicos à reserva de capital natural

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Amazônia

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    A NATUREZA AMAZNICA: DOS MITOS EDNICOS RESERVA DE CAPITAL NATURAL

    IANE MARIA DA SILVA BATISTA1

    1 INTRODUO A Amaznia um espao historicamente (re)construdo, acerca do qual, ao longo do

    tempo, se produziu, e se produz, os mais diversos discursos e representaes. Objeto de polticas pblicas, de aes e intervenes estatais, do mercado e da sociedade civil e tema de estudos e pesquisas no mbito acadmico, a regio notabiliza-se precisamente pela diversidade de atores sociais, pujana dos recursos naturais e multiplicidade de concepes, sentidos, discursos e prticas que constituem e/ou permeiam este espao. Este aspecto plural evidencia, ento, o carter polissmico e a complexidade da Amaznia.

    As diretrizes que nortearam as aes do estado e do mercado na e para a regio incorporaram pr-conceitos acerca da natureza e da sociedade amaznicas, que sobrevivem, mesmo na atualidade, sobretudo no senso comum. As ideias de vazio demogrfico, a indolncia do caboclo, a exuberncia da floresta entre outras, constituem esteretipos construdos historicamente, inspirados inicialmente por crnicas de viajantes e naturalistas que produziram relatos de viagens pela regio ao longo dos sculos XVI, XVII e XVIII, carregados de elementos do imaginrio fantstico coletivo europeu. Como emblemticos desse constructo lendrio, destacam-se a crena na existncia do El Dorado e das mulheres guerreiras Amazonas (GONDIM, 1994). Na procura do El Dorado pas fabuloso e prdigo em tesouros situado em algum ponto do noroeste amaznico se lanaram portugueses, franceses, holandeses e irlandeses (SOUZA, 2009).

    Por seu turno, as lendas, mitos e interdies alimentares existentes na cultura regional, geralmente remetem a elementos que habitam o meio biofsico, como a floresta, as margens e profundezas dos rios e praias, o manguezal etc. Cristina Wolf, em seu estudo sobre as mulheres nos seringais do Acre, relata uma percepo da floresta como despensa, posto que fornecedora dos mais diversificados elementos necessrios a vida cotidiana (WOLFF, 1999).

    1 Historiadora, Msc. em Planejamento do Desenvolvimento e doutoranda em Histria Social da Amaznia pela

    Universidade Federal do Par, onde desenvolve o projeto de pesquisa Homens, rios e manguezais: perspectivas de Histria Ambiental na Curu amaznida (1960-2010).

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    Tal perspectiva foi constatada em campo pela autora deste artigo no municpio paraense de Curu, onde desenvolve atividades de pesquisa. Com efeito, naquele local o mangue considerado como supermercado ou mina, onde os recursos esto disponveis, prontos a ser frudos.

    A natureza amaznica, ento, por intermdio da floresta, do rio ou do manguezal, vislumbrada como provedora de recursos naturais, os mais distintos, conforme se pode notar, no somente nas falas de pescadores artesanais, agricultores familiares, coletores de caranguejo entre outros grupos cuja reproduo socioeconmica depende de tais recursos, como nos discursos oficiais dos agentes estatais e na elaborao de projetos de desenvolvimento para a regio. 2

    Ora, conforme explicitado por Drummond (1991), no existem recursos naturais por si, a cultura que os determina como tal, ao atribuir-lhes uma utilidade. Sob essa perspectiva, o papel da cultura fundamental no uso dos recursos, pois estes s se qualificam como tal quando culturalmente identificados e avaliados. As pastagens naturais, por exemplo, um recurso natural crucial a sobrevivncia de povos pastorialistas irrelevante para um grupo social que no dispe de animais herbvoros.

    A histria da regio amaznica demonstra, portanto, que ao longo do tempo, de acordo com as convenincias de mercado e/ou mo de obra, diversos produtos da fauna e flora regional foram arrolados e apropriados por grupos sociais distintos, constituindo-se, assim, recursos naturais a servio de interesses vrios.

    O potencial de recursos naturais da Amaznia, percebido desde a explorao das drogas do serto no perodo colonial, persiste contemporaneamente, sob o mote de capital natural, refletindo-se especialmente na nfase atribuda biodiversidade amaznica, sua potencial contribuio na mitigao de efeitos deletrios associados problemtica ambiental (aquecimento global) e a sua potencialidade hidroenergtica. Nesse contexto, a regio considerada uma alternativa para o mundo ps-petrleo, atravs da produo de tecnologias

    2 Quem tem a Amaznia no deve temer o futuro. Essa era a epgrafe do I Plano de Desenvolvimento da

    Amaznia da Nova Repblica (1986-1989), assinada pelo ento presidente da repblica Jos Sarney. Tal fala emblemtica da concepo governamental da Amaznia como fonte inesgotvel de recursos, como alis fica explcito ao longo do referido Plano.

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    energticas alternativas baseadas na biomassa. Verifica-se uma tendncia para viabilizar este capital natural da regio, num processo denominado de mercantilizao da natureza. 3

    2 IDEIAS SOBRE A NATUREZA AMAZNICA: PERSPECTIVAS HISTRICAS

    A considerar os processos de ocupao histrica e as atividades econmicas praticadas e/ou incentivadas na regio amaznica desde a extrao das drogas do serto, passando pela explorao da borracha no sculo XIX e dcadas iniciais do XX, a implantao dos grandes projetos mineradores e agropecurios a partir de meados do sculo XX, at o atual debate em torno da biopirataria, da produo de biocombustveis, das Unidades de Conservao, dos servios ambientais mantidos pela floresta etc., evidencia-se que os projetos de colonizao, ocupao,4 integrao e desenvolvimento da Amaznia, em suas diversas fases, se pautaram pela explorao de sua fauna, flora, solo, subsolo, recursos hdricos isto , elementos convencionalmente definidos como recursos naturais.

    A execuo de projetos e a construo de discursos em torno da natureza amaznica evidentemente refletem concepes distintas de natureza. Segundo Carvalho, a definio do natural produto de convenes socialmente estabelecidas, engendradas ao longo do tempo e que diferem de acordo com as caractersticas de cada sociedade no tempo e no espao.

    evidente que a definio ou conceituao do que seja natureza depende da percepo que temos dela e de ns prprios e, portanto, da finalidade que daremos para ela, isto depende das formas e objetivos de nossa convivncia social. [...] Se para um empresrio de minerao natureza fonte de matrias-primas de onde extrai a mercadoria com a qual obter lucros, para o campons natureza meio de sobrevivncia, ou, de outro lado, se para o especulador de terras natureza investimento imobilirio, para os ndios um espao de vida que no se vende nem se compra (CARVALHO, 2003:13).

    Desse modo, no existiria uma natureza por si mesma, mas sim diferentes e divergentes concepes de natureza, que variam de acordo com as necessidades, objetivos e convenincias dos seres humanos.

    3 A esse respeito ver BECKER, Bertha. Amaznia Geopoltica na virada do III milnio. So Paulo: Garamond,

    2006. 4 A prpria ideia de ocupao da Amaznia, subjacente aos projetos estatais implantados na regio, incorpora o

    mito do vazio demogrfico, desconsiderando a diversidade de grupos sociais que secularmente habitavam a regio.

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    Conforme infere Raymond Williams, as ideias sobre a natureza nada mais so do que projees das ideias e atividades dos homens. Desse modo, [...] quando a natureza separada das atividades humanas, ela deixa mesmo de ser natureza, em qualquer sentido pleno e efetivo (WILLIAMS, 2011:109). A natureza tem adquirido historicamente, portanto, conotaes diversas. Isto particularmente significativo no contexto da Amaznia, cuja constituio socioeconmica e cultural foi condicionada pela influncia do meio natural, principalmente dos rios e da floresta.

    Nesse processo a natureza amaznica inspirou a criao de representaes diversas, engendrando mitos que nortearam os mais variados empreendimentos executados na regio, e em certa medida, ainda persistem, influenciando projetos e polticas pblicas no locus regional.

    Desde la llegada de los conquistadores la Amazona ha sido el objeto de una interpretacin mitolgica que se ha alimentado del desconocimiento y del miedo, de verdades a medias y de generalizaciones o extrapolaciones falsas. Esos mitos han sido, con demasiada frecuencia, los principales motivadores de las concepciones para la ocupacin y desarrollo de la Amazona. Su influencia negativa en el pensamiento y la accin, especialmente en el campo poltico, contina en la actualidad. Uno de los primeros mitos fue el de El Dorado, nacido en pocas de la conquista y que no merece el comentario de este documento. Sin embargo subsisten otros mitos muy influyentes. Entre estos destacan: (I) La homogeneidad de la Amazona; (ii) El mito del vaco o de la virginidad amaznica; (iii) El mito de la riqueza y, a la par, el mito de la pobreza amaznica (iv) El de la Amazona "pulmn de la Tierra"; (v) El mito del indgena "freno para el desarrollo"; (v) El mito de la Amazona como solucin o panacea para los problemas nacionales y por ltimo, (vi) El mito de la internacionalizacin de la Amazona (TCA/PNUD/BIRD, 1993:15).

    Alis, numa perspectiva institucional, a considerar o trecho do documento supra citado, a existncia de tais mitos alimenta vises falseadas e distorcidas da regio, sendo necessrio, portanto, a sua desmitificao para que se possa compreender melhor a complexa e heterognea realidade amaznica.

    O delineamento da Amaznia como um espao de representaes idealizadas visvel na literatura, desde as percepes dos cronistas viajantes e depois, dos cientistas, notadamente os botnicos, que passaram pela regio no perodo da colonizao, passando pelo desenvolvimentismo na primeira metade do sculo XX, pelo iderio conservacionista e o discurso do desenvolvimento sustentvel, que embasaram a criao de Unidades de Conservao na regio no ltimo quartel do novecentos, at os discursos contemporneos

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    acerca dos servios ambientais mantidos pela floresta em p, como por exemplo, a manuteno dos estoques de carbono e a responsabilizao atribuda ao Brasil na gerao de gases de efeito estufa provocados pelos altos nveis de desmatamento na Amaznia.

    2.1 A inveno da Amaznia: um olhar atravs dos cronistas

    No contexto amaznico, as observaes empricas acerca da vegetao, hidrografia, relevo, clima, alimentao etc., bem como das consequncias da ao humana sobre os ambientes e a potencialidade dos recursos naturais estiveram presentes nos relatos de viajantes, naturalistas e missionrios que percorreram a regio em diversos momentos do perodo colonial. 5

    Na obra A inveno da Amaznia, Neide Gondim (1994) demonstra, com muita propriedade, como o conceito de Amaznia vai sendo inventado, a partir das percepes dos cronistas e depois dos cientistas, notadamente os botnicos sobre a fauna, a flora e a hidrografia amaznicas. Em anlise das crnicas da viagem de Orellana, escritas por Carvajal em meados do sculo XVI e a de Pedro Teixeira, na subida do rio Amazonas, produzidas por Rojas e Acua, na primeira metade do sculo XVII, a autora aponta os aspectos ednicos da natureza tropical salientados nas crnicas. Carvajal enfatizava a terra primaveril, rica em caa, pesca e frutos, frtil e rica em minrios, habitados por ndios belicosos, mas passveis de conquista, graas superioridade blica dos europeus.

    Alm disso a terra to boa, to frtil e to ao natural como a de nossa Espanha [...] terra temperada, onde se dar muito trigo e se daro todas as rvores frutferas. Alm disso est aparelhada para criar todo o gado, porque h nelas muitas ervas como em nossa Espanha, tais como o orgo e cardos pintados e rajados e outras ervas muito boas [...] e h caa de toda espcie (CARVAJAL, 1941 apud GONDIM, 1994: 84)).

    Por seu turno, Rojas, alm dos dados tcnicos sobre o rio, como largura, profundidade e comprimento, informa uma diversidade lingstica, alimentar e de habitaes, evidenciando uma preocupao mercantilista, refletida na sugesto de instalao de fortalezas para a

    5 A esse respeito ver COELHO, Geraldo Mrtires. O espelho da natureza: poder, escrita e imaginao na

    revelao do Brasil. Belm: Paka-Tatu, 2009 e GONDIM, Neide. A inveno da Amaznia. So Paulo: Marco Zero, 1994.

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    custdia material de to extensas reas, sobretudo no que tange s possibilidades comerciais e o lucro potencial a ser obtido com a explorao das madeiras de lei (GONDIM, 1994:87).

    Acua, por sua vez, tambm enleva-se com a produtividade da terra, aludindo diversidade de animais, aves, plantas medicinais, minrios e homens, que circundavam o grande rio. Este cronista aponta no somente a prodigalidade dos recursos, como tambm a possibilidade de cultivo de determinados produtos, como cacau, tabaco e cana de acar, assentada na disponibilidade de mo de obra abundante. Entremeada de relatos fantsticos, a leitura extica da regio delineada em tais crnicas, projetava o imaginrio dos seus autores, os quais manifestavam assombro diante do colosso natural que se apresentava aos seus olhos.

    Gonalves (2008) salienta que, no contexto da expanso colonial mercantilista, a Amaznia inscreveu-se na mentalidade dos colonizadores como uma regio de enorme potencial em recursos naturais que, no entanto, no se apresentava como imediatamente disponvel para a explorao mercantil-colonial. Envolvida num intrincado jogo poltico internacional de definio de limites das colnias alm-mar entre Portugal e Espanha, a Amaznia serviu assim como um importante trunfo do jogo diplomtico entre potncias colonizadoras.

    Segundo a perspectiva analtica do autor, incapazes de efetivar por si mesmos a colonizao da rea, os colonizadores maximizariam o potencial de explorao das terras amaznicas, apresentando a regio como uma reserva de recursos, estigma que permeou praticamente a totalidade das aes direcionadas Amaznia e que ainda permanece e que a manteve como um peso poltico marginal nos blocos de poder nacional, uma regio perifrica de pases perifricos.

    De acordo com Carvalho esta viso da regio como uma reserva de recursos remete aos relatos do encontro com um continente que era pura natureza, transmitidos pelas vises paradisacas dos cronistas quinhentistas, bem como as impresses registradas pelos viajantes dos sculos seguintes. Tais impresses, segundo a autora, engendraram na Amrica do Sul, em geral, e no Brasil, em particular, uma marca de origem que lhes atribui o papel de lugar natural por excelncia, [...] trao que se reatualiza no imaginrio ecolgico contemporneo

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    sobre estes territrios, vistos como reservatrio de biodiversidade do planeta (CARVALHO, 2003:154).

    O ingresso das primeiras expedies cientficas no vale amaznico, a partir de Condamine, na primeira metade do sculo XVIII e posteriormente Wallace e Bates no sculo XIX, manteve a leitura fantstica sobre a regio, reafirmando em alguns aspectos as crnicas produzidas nos sculos precedentes. Em que pese o empenho na catalogao da fauna e flora autctones e a nfase atribuda s potencialidades da regio em termos de aproveitamento econmico, dada a prodigalidade da natureza, a populao nativa vista pelos botnicos como um entrave, posto que marcada pela indolncia.

    O viajante sentia-se agraciado pela natureza com a possibilidade de repetir o ato genesaco de nomear e descobrir seres e plantas e insetos e rios novssimos. No geral o homem nativo era um estorvo. O olhar etnocntrico do europeu coincidia com a idealizao que se encontrava impressa nos dirios de viagem dos que o antecederam, normalmente lidos, frequentemente endossados e citados como fontes fidedignas (GONDIM, 1994:130).

    Naquele contexto, e incapazes de apreender o autctone em sua alteridade, os cientistas suscitavam a necessidade de dominao da populao nativa para fomentar o desenvolvimento da regio:

    Nos trechos por onde passamos, poder-se-ia cultivar cana-de-acar, algodo, caf e arroz da melhor qualidade e em quaisquer quantidades [...] toda a regio entrecortada por rios e igaraps que podem fornecer gua para qualquer fazenda que a se estabelea. Mas a indolente disposio do povo e a escassez de mo-de-obra entravam o desenvolvimento das potencialidades dessa excelente terra, pelo menos at que a se estabeleam colnias de europeus ou de norte americanos. (WALLACE, 1979 apud GONDIM, 1994: 135) (grifos nossos).

    Refletindo as concepes do darwinismo social, a crnica de Wallace explicita a ideia de que a populao autctone no teria capacidade para desenvolver a regio; apenas um povo biologicamente mais apto o europeu seria capaz de faz-lo.

    As crnicas dos primeiros viajantes, no sculo XVI, e os relatos posteriores, dos botnicos iluministas demonstram que o momento inicial de contato foi importante para todo o processo posterior de conquista da regio. Conforme visto, alguns documentos j mencionavam a possibilidade de explorao do extrativismo vegetal, articulado com o mercado internacional. No por acaso, a atividade extrativa tornou-se basilar na economia

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    local, com a coleta das drogas do serto, desde o incio da colonizao. Estava lanada, portanto, a ideia de Amaznia como um celeiro de recursos naturais.

    2.2 Os recursos naturais e a ocupao do espao amaznico: padro rio-vrzea-floresta X padro estrada-terra firme-subsolo

    De acordo com os ensinamentos de Drummond, a utilidade atribuda a um determinado produto que o qualifica como um recurso. Com a descoberta do processo de vulcanizao, em 1839, a borracha deixou de ser um produto marginal, se inserindo nos processos tcnicos da Revoluo Industrial 6, constituindo-se como um recurso intensamente explorado com vistas a atender as demandas da indstria automobilstica, causando um enorme impacto na Amaznia. A emergncia do ciclo da borracha no teve somente reflexos econmicos e sociais, propiciou tambm uma reorganizao do territrio (MACHADO, 1989). no contexto de explorao deste produto que se definem as fronteiras atuais da regio, atravs de delimitaes estabelecidas em tratados assinados a partir do incio do sculo XX, aps um perodo de instabilidade poltica no sculo XIX, provocado precisamente pela indefinio das fronteiras.

    O processo de distribuio de mercadorias para os seringais refletiu-se no surgimento de novos ncleos e na dinamizao de antigos, com origem na colonizao portuguesa, que comeavam a se articular politicamente para adquirir o status de municpio e as benesses decorrentes desta condio. Ento, a economia gomfera, de certa forma, teria proporcionado uma integrao espacial da economia da regio 7, ainda que de modo precrio e limitado, com base na cadeia de aviamento e no sistema fluvial de transporte que lhe sustentava (MACHADO, 1989).

    A forma de ocupao da regio e as atividades econmicas desenvolvidas at ento, organizadas em torno dos rios, configuraram um modelo de organizao do espao definido por Gonalves (2008) como padro rio-vrzea-floresta. Este padro vai ser gradativamente modificado a partir da segunda metade do sculo XX, quando surgem novas formas de uso da

    6 Por volta de 1930, a Amaznia j exportava sapatos e tecidos emborrachados, que eram exportados

    principalmente para os Estados. A respeito ver Gonalves (2008). 7 a partir do advento da explorao da borracha que se comea a fazer referncia regio amaznica, at

    ento referenciada como vale amaznico ou Gro-Par, cf. Machado (1989).

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    natureza amaznica, centradas na abertura de estradas e na explorao dos minrios depositados no subsolo.

    Portanto, se at aproximadamente a dcada de 1960, a organizao da vida das populaes amaznicas esteve vinculada aos rios, a partir da esse quadro comeou a ser alterado

    A partir de ento, e por decises tomadas fora da regio, os interesses se deslocam para o subsolo, para suas riquezas minerais, por uma deciso poltica de integrar o espao amaznico ao resto do pas, protagonizado pelos gestores territoriais civis e militares. O regime ditatorial se encarregou de criar as condies para atrair os grandes capitais para essa misso geopoltica. Desenvolve-se, deste modo, um novo fluxo de matria e energia na regio, comandado agora pelos grandes capitais do centro-sul do pas e internacionais, sob a tutela do Estado. [...] Assim, a Amaznia v transformada sua forma de organizao socioespacial (GONALVES, 2008:79-80).

    As mudanas na forma de organizao socioespacial refletiam uma efetivao do planejamento regional da Amaznia, efetuado, segundo Berta Becker (2006) entre 1966 e 1985. Nesse contexto, o Estado engendra, nas palavras da autora, um novo e ordenado ciclo de devassamento amaznico, num projeto geopoltico para a modernizao acelerada da sociedade e do territrio nacionais.

    De acordo com Pdua (2000), a ocupao do territrio amaznico neste perodo vista como vlvula de escape para as tenses sociais do Nordeste provocadas pela expulso dos pequenos agricultores pela modernizao agrcola. Ento, buscava-se desmobilizar a luta pela reforma agrria naquela regio e atravs da colonizao oficial, preencher o vazio demogrfico da Amaznia. Aventava-se, ainda, a possibilidade da ecloso de movimentos guerrilheiros nas fronteiras panamaznicas. Alis, o primeiro Plano de Valorizao Econmica da Amaznia, pensado para o quinqunio 1955-1959 j havia definido os rumos da estratgia do governo, considerando este binmio: colonizao e segurana, assentado nas premissas do desenvolvimentismo.

    O interesse pela explorao dos recursos minerais e florestais aguado e incentivado pelo Estado. Para tal, se fazia necessrio atrair capital, o que demandava investimentos em infraestrutura de comunicaes, transporte e energia. Projetam-se e implementam-se, ento,

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    ao longo das dcadas seguintes vrios planos, projetos, programas8 para e na regio. Instituies so criadas com o objetivo de fomentar a economia regional, a exemplo da SUDAM9, que substituiu a SPVEA10 e o BASA11.

    Com financiamento de instituies multilaterais, o governo oferece amplos subsdios, atravs de polticas de incentivos fiscais, instalao de grandes empresas na Amaznia, e promove, ainda, uma campanha em larga escala buscando atrair mo de obra para ocupar o territrio e atuar nas grandes obras de infraestrutura, principalmente na construo de estradas, como a Transamaznica, Cuiab-Santarm etc.

    A construo de hidreltricas, a implantao dos grandes projetos pecurios e mineradores e madeireiros, a abertura de estradas, constituem o novo padro de ocupao regional: o padro estrada-terra firme-subsolo (GONALVES, 2008). Se no perodo da explorao de borracha os migrantes se concentravam ao longo dos rios, agora eles se concentram margem das estradas 12. Ao lado das cidades planejadas, principalmente company towns,13 caracterizadas como enclaves posto que completamente dissociadas da realidade do entorno, surgem ncleos de ocupao espontnea, expresso da segmentao entre a fora de trabalho qualificada e no qualificada.

    Os impactos deste novo padro de ocupao do territrio sobre a dinmica socioambiental da regio foram imensos. Inmeros exemplos poderiam ser citados a este respeito. Toma-se como caso emblemtico a construo da hidreltrica de Tucuru, obra fundamental para a produo de energia. A formao do lago desestruturou vrias comunidades tradicionais, vilas e povoados indgenas, repercutindo na qualidade da gua montante e a jusante, provocando alteraes na produo de peixe e provocando a migrao

    8 Entre estes, destacam-se o PIN Programa de Integrao Nacional; PND Plano Nacional de

    Desenvolvimento; POLAMAZNIA Programa de Polos Agropecurios e minerais da Amaznia etc. 9 Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia.

    10 Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

    11 Banco da Amaznia Sociedade Annima.

    12 O projeto oficial de colonizao e reforma agrria previa o estabelecimento dos colonos ao longo da faixa de

    100 Km de cada lado das rodovias federais na Amaznia. 13

    Exemplarmente Carajs, Vila dos Cabanos, Porto Trombetas etc.

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    da populao autctone para a sede das cidades prximas. Parte desta populao, ainda hoje, luta na esfera judicial para receber do Estado indenizaes a que tem direito 14.

    As estratgias territoriais de apropriao fsica e controle do territrio caracterizadas pelas redes de circulao rodoviria, de telecomunicaes, polticas de subsdios fiscais e induo de fluxos migratrios, no perodo em questo, compuseram uma malha tecno-poltica de controle social do territrio15, configurando a Amaznia como a grande fronteira de expanso territorial demogrfica e econmica nacional. Este panorama comeou a refluir a partir da dcada de 1980, com base em dois processos distintos: o esgotamento do modelo nacional desenvolvimentista, provocado pelas crises do petrleo e a arrancada das taxas de juros no mercado internacional, e o surgimento de um movimento de resistncia das populaes locais expropriao da terra, efetuada, sobretudo por madeireiros e pecuaristas, iniciado em 1985 com a criao do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS).

    A crise no modelo de financiamento estatal do desenvolvimento e desequilbrio das contas pblicas nacionais, entre outras variveis, evidenciou uma necessidade de reformulao do papel do Estado. A prpria concepo de desenvolvimento, historicamente associado ao crescimento econmico, comea a ser redefinida, incorporando o iderio da sustentabilidade. Gera-se ento, conforme a perspectiva analtica de Becker um vetor tecnoecolgico na dinmica regional, predominando entre 1985 e 1996. Configura-se, ento, na Amaznia uma fronteira socioambiental resultante da coalizo de mltiplos projetos. A emergncia da discusso ambiental gerou conflitos de concepes quanto ao desenvolvimento regional entre as perspectivas desenvolvimentista e conservacionista, configurando um processo de politizao da natureza (BECKER, 2006). Neste contexto, destaca-se a criao de unidades de conservao, ancoradas no paradigma do desenvolvimento sustentvel.

    2.3 Unidades de Conservao na Amaznia: uma perspectiva nova de relao com a natureza?

    14 Os diversos grupos atingidos direta ou indiretamente pela construo da Hidreltrica de Tucuru, organizaram-

    se na defesa de seus direitos atravs do MAB Movimento dos Atingidos pela Barragem. 15

    A expresso, cunhada por Berta Becker, baseada conceitualmente na concepo de produo do espao, de Lefebvre, segundo a qual aps a construo do territrio, fundamento concreto do Estado, este passa a produzir um espao poltico, o seu prprio espao, para exercer o controle social, espao constitudo de normas, leis, hierarquias (BECKER, 2006, p. 26).

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    Na Amaznia as polticas estatais e aes privadas de interveno, especialmente as produzidas sob o mote do desenvolvimentismo e da integrao regional a partir da segunda metade do sculo XX, caracterizaram-se, de forma sistemtica pela imposio vertical. A histria do planejamento do desenvolvimento na regio marcada pela tnica da falta de articulao com os atores locais e pela desconsiderao das especificidades ambientais, culturais e socioeconmicas regionais. A percepo da inadequao de tais polticas para a regio e a necessidade de mudanas na concepo de desenvolvimento, aguaram a percepo da importncia da participao da sociedade civil nos processos decisrios que lhes afeta direta e/ou indiretamente.

    Este processo engendrou modelos outros de desenvolvimento, em contraposio ao paradigma tradicional, baseado no crescimento econmico e intensificao das atividades produtivas, num padro de produo e consumo, ancorado na queima de combustveis fsseis. A percepo dos limites deste modelo, disseminada sobretudo no campo cientfico, colocou a problemtica ambiental no centro das discusses acerca do desenvolvimento, levantando a necessidade de reorientao dos processos produtivos.

    A associao entre manejo dos recursos naturais e desenvolvimento econmico levou, conforme Becker (2006), politizao da discusso ambiental. Em consequncia, atores novos entram em cena, os quais, segundo Frey (2005) transformam e reestruturam o processo poltico. As polticas ambientais paulatinamente, vo deixando de ser de responsabilidade exclusiva dos governos e passam a incorporar outros setores como as organizaes no governamentais (ONG), os movimentos sociais e associaes civis. Por outro lado, segmentos sociais historicamente excludos e/ou afetados de modo negativo por tais processos como seringueiros, comunidades remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babau, indgenas e ribeirinhos afetados pela construo de usinas hidroeltricas entre outros, (re) organizam-se, inserindo-se no debate, potencializando aes e propondo estratgias de reviso do modelo, baseadas em seus modos de vida e em sua relao com a natureza.

    dimenso econmica incorporou-se outras variveis, inserindo a questo do desenvolvimento numa perspectiva multidimensional. Nessa direo, prope-se e passa a almejar-se um desenvolvimento sustentvel, resultado da combinao de crescimento

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    econmico equitativo, preservao do meio ambiente, conservao dos recursos naturais, aumento da qualidade de vida da populao e respeito diversidade e aos mecanismos endgenos de interao entre seres humanos e natureza (SACHS, 2004). Evidencia-se, desse modo, uma concepo nova de desenvolvimento, considerando dimenses mltiplas, principalmente a socioeconmica, a sociopoltica e a ambiental, superando a ideia reducionista de desenvolvimento como sinnimo de progresso e crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) dos pases.

    A incorporao destas dimenses ao conceito de desenvolvimento refletiu-se na configurao de um modelo novo de utilizao e conservao dos recursos naturais. O mesmo converge para o manejo praticado por grupos humanos, comumente denominados pela literatura de populaes tradicionais e/ou povos da floresta. Adota-se aqui a concepo de populaes tradicionais como aquelas que acumularam saberes e competncias no manejo ambiental, caracterizando um modo de vida adaptativo, com forte insero no espao local, e que interagem no seu cotidiano com processos de transformaes, numa perspectiva diacrnica, servindo-se de recursos e saberes acumulados culturalmente. Parte-se do conhecimento de que as populaes tradicionais da Amaznia, historicamente adaptadas aos recursos naturais, acumulam saberes sobre os ecossistemas, do qual retiram grande parte dos elementos de sua subsistncia, seja para alimentao, seja para a confeco de moradia, instrumentos de pesca etc. 16 A sobrevivncia e reproduo, modo de ocupao do espao e manejo dos recursos naturais de tais grupos determinada, portanto, por especificidades ambientais e socioculturais.

    Dessa maneira, a atividade produtiva dessas comunidades no pode ser dissociada do seu contexto socioambiental. Pois a sua percepo da natureza contempla no apenas o espao fsico, mas sobretudo os aspectos culturais. Portanto, tais grupos tm uma percepo peculiar das caractersticas do seu meio, seja ele rio, lago ou floresta, que pode contribuir eficazmente para a conservao dos recursos naturais.

    16 Para uma leitura mais detalhada acerca da definio de populaes tradicionais ver DINGAO, M. A.,

    SILVEIRA, I. M. (Org.). A Amaznia e a crise da modernizao. Belm: Museu Paraense Emlio Goeldi, 1994; FURTADO, L. G; MELLO, A. F. de; LEITO, W. (Org.). Povos das guas: realidades e perspectivas na Amaznia. Belm: Museu Paraense Emlio Goeldi, 1997.

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    Nesse contexto, a emergncia da organizao social dos seringueiros do Acre, liderados por Chico Mendes, na dcada iniciada em 1980 marca uma fase emblemtica dos processos de organizao da sociedade civil no contexto amaznico. Diante da necessidade de promover a regularizao fundiria dos antigos seringais e o atendimento das demandas dos grupos locais por melhores condies de vida, 17 o movimento social de moradores florestais organizados props a criao de unidades de conservao na regio, visando garantir direitos de posse e de uso sobre reas de floresta ocupadas por seguidas geraes de seringueiros.

    O inciso I do Art. 2 do Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC) conceitua Unidade de Conservao como

    [...] espao territorial e seus recursos ambientais, incluindo as guas jurisdicionais, com caractersticas naturais relevantes, legalmente institudo pelo poder pblico, com objetivos de conservao e limites definidos, sob regime especial de administrao, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteo.

    Baseado nesta conceituao, o SNUC sistematiza dois tipos de Unidades de Conservao (UC): as de Uso Sustentvel, cujos recursos naturais podem ser utilizados pela populao residente, com base em plano de manejo, e as de Proteo Integral, cujos recursos naturais devem ser preservados, sendo admitido seu uso apenas indiretamente, atravs de atividades educacionais, cientficas e recreativas ou de lazer.

    A modalidade de UC adotada na regio, como resultado da luta dos seringueiros pela sua sobrevivncia na floresta foi a de Reservas Extrativistas (RESEX). Estas so reas utilizadas por populaes extrativistas tradicionais, cuja subsistncia baseia-se no extrativismo e, a nvel complementar, na agricultura de subsistncia e na criao de pequenos animais. Os objetivos bsicos de uma RESEX so proteger os meios de vida e a cultura destas populaes e assegurar o uso sustentvel dos recursos naturais da rea. de domnio pblico com seu uso concedido s populaes extrativistas tradicionais (ALLEGRETTI, 1994). Assim, as RESEXs, aliadas a outras modalidades de proteo da natureza como Terras

    17 Ver ALLEGRETTI, M. Reservas extrativistas: parmetros para uma poltica de desenvolvimento sustentvel

    na Amaznia. In: ARNT, R. (Org.). O destino da floresta: reservas extrativistas e desenvolvimento sustentvel na Amaznia. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994a. p. 17-48; ______. Polticas para o uso dos recursos naturais renovveis. In: SACHS, Ignacy; CLUSENER-GODT, Miguel (Org.). Extrativismo na Amaznia brasileira: perspectivas sobre o desenvolvimento regional. Paris: Compndio MAB 18 UNESCO, 1994b. pp. 14-31.

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    Indgenas (TI) e reas Protegidas (AP) constituram um modelo endgeno de preservao e uso dos recursos naturais da Amaznia.

    Sob essa perspectiva, e de acordo com Castro;Pintn (1997), valoriza-se o local, o territrio sobre o qual os grupos sociais desenvolvem suas atividades produtivas, utilizando os recursos naturais para sua reproduo socioeconmica e cultural. Ento, o reconhecimento das populaes tradicionais como detentoras de saberes e de prticas de manejo dos recursos naturais reflete-se em mudanas institucionais. Tal reconhecimento implicou num processo gradual de institucionalizao, formulao e implementao de polticas pblicas socioambientais, notadamente unidades de conservao de uso sustentvel (UCUS), sob a gide da participao das populaes usurias.

    Entretanto, apesar dos avanos representados pela criao das Unidades de Conservao no que tange gesto e ao usufruto dos recursos, os resultados concretos da poltica ambiental na regio ainda so pouco expressivos (MELLO, 2006). Estudos de Simonian (2007), respaldados em extensa e intensa atividade de pesquisa de campo, apontam para um manejo negativo dos recursos naturais, em unidades de conservao, resultado tanto do envolvimento do Estado em polticas e aes que validam este manejo, como de aes da prpria populao tradicional assentada nestas reas. Neste sentido, segundo a autora, as tendncias recentes quanto sustentabilidade do desenvolvimento socioeconmico na Amaznia caracterizam-se pelo alcance limitado dos programas e projetos voltados para as reservas. Estas limitaes dizem respeito, entre outros fatores, escassez crescente de recursos financeiros, falta de capacitao tcnica e baixo nvel de escolaridade no interior das unidades de conservao, bem como a gesto corrupta no seio de rgos gestores destas unidades. Todos estes fatores, ento, estariam a ameaar a viabilizao do desenvolvimento sustentvel na regio, particularmente nas unidades de conservao.

    3 CONSIDERAES FINAIS: TENDNCIAS RECENTES NA ABORDAGEM DA NATUREZA AMAZNICA

    A anlise da trajetria histrica da regio demonstra que a natureza amaznica tem sido pensada constantemente a partir dos seus produtos/recursos naturais, no para a sociedade regional, mas para o mercado. Se a literatura colonial engendrou o discurso utilitarista da

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    natureza exuberante e prdiga, desmentido diversas vezes na prtica pelas intempries da floresta, suas premissas ideolgicas se manifestam na atualidade na concepo de Amaznia como reserva natural e uma das ltimas fronteiras de capital natural do planeta. 18 No contexto colonial a apropriao dos recursos privilegiava as drogas do serto, nfase que gradativamente foi sendo substituda ao longo de diversos perodos, pelo ltex, juta, pimenta do reino, minrios etc. medida que determinados produtos vo se projetando como economicamente viveis no mercado nacional/internacional, a exemplo da soja e do dend, sua produo incentivada, mesmo que isto implique, a mdio prazo, em prejuzos ao ecossistema em sua totalidade.

    No campo simblico, a natureza amaznica emblemtica no contexto da contempornea agenda ambiental internacional, fundamentada na biodiversidade e sustentabilidade. A considerar o potencial atribudo aos seus recursos naturais rios, florestas, subsolo, fauna e flora, a natureza amaznica ocupa um lugar central nesse cenrio. A recente expanso do agronegcio, 19 com desdobramentos na produo de biocombustveis e a criao dos servios ambientais, a exemplo do mercado de carbono, pressupem um processo de mercantilizao da natureza. Este processo refere-se, de acordo com Becker, atribuio do carter de mercadoria ao ar, gua e vida, esta expressa na questo da biodiversidade. Em contraponto agricultura familiar de subsistncia, o agronegcio pressupe o domnio da natureza, ao instalar um processo artificial de alta produtividade, seja de caf ou de soja, norteado pelo princpio orientador do lucro.

    O Programa Brasil em Ao, lanado pelo governo federal, em agosto de 1996, na gesto de Fernando Henrique Cardoso, englobando um conjunto de 42 empreendimentos voltados para a promoo do desenvolvimento sustentvel do Pas e estrategicamente escolhidos pela capacidade de induzir novos investimentos produtivos e reduzir desigualdades

    18 Segundo Berta Becker (2006:35) trs grandes eldorados podem ser reconhecidos contemporaneamente: os

    fundos ocenicos ainda no regulamentados, a Antrtida, partilhada entre as potncias, e a Amaznia, nico a pertencer, em sua maior parte, a um s Estado nacional. 19

    O agronegcio pressupe o conjunto das operaes de produo e distribuio de insumos agrcolas, os mecanismos de produo nas unidades agrcolas, o armazenamento, processamento e a distribuio dos produtos agrcolas bem como os itens deles gerados. Cf. CRUVINEL, Paulo E. Instrumentao agropecuria no agronegcio brasileiro do sculo XXI. EMBRAPA, 2004.

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    regionais e sociais 20, embora com nova roupagem, reproduziu, em suas diretrizes, os parmetros dos projetos de desenvolvimento das dcadas anteriores, com nfase em obras de infraestrutura, atravs de investimentos privados. Mais uma vez, fatores como a competitividade dos mercados determinam a explorao e o usufruto dos recursos naturais amaznicos, como se pode observar em trecho do Estudo de Impactos Ambientais da Hidrovia Araguaia-Tocantins:

    Realmente a competio mundial, a capacidade de produo de nossa agricultura, a fertilidade de nossas terras, que praticamente constituem a ltima fronteira agrcola do planeta e a prpria necessidade de produzir cada vez mais, a preos cada vez menores, tm levado tanto os produtores como as instituies governamentais busca de valores de frete cada vez mais baixos e que possam tornar os produtos cada vez mais competitivos (grifos nossos). 21

    Por outro lado, a descoberta de princpios ativos existentes em produtos da flora amaznica, secularmente utilizados na alimentao das populaes autctones, como o aa, maracuj, castanha do Par, andiroba etc., est ampliando a utilizao de tais recursos nas indstrias cosmticas e farmacuticas. Desdobramentos desse processo j se fazem sentir seja no preo dos produtos in natura, seja na regularidade de seus ciclos produtivos. Evidencia-se, portanto, que recursos naturais cujo valor at ento era intangvel, como o ar, a gua e a vida, ou seja, que tinham apenas valor de uso, passam a ter valor de troca, sendo submetidos s leis da oferta e da procura. A captura de carbono pela vegetao, institucionalizada pelo Protocolo de Kioto, gerando a comercializao de crditos de carbono, uma evidncia de que um mercado do ar est se constituindo. 22

    A partir das consideraes tecidas por uma vasta literatura no campo historiogrfico, compreende-se a natureza como parte da sociedade, sobre a qual esta estabelece suas bases materiais e simblicas. 23 Desse modo, e a pressupor que as dimenses cognitivas, mentais e

    20 Ver site oficial do Programa Brasil em Ao: http://www.abrasil.gov.br/anexos/anexos2/fr_ba.htm.

    21 EIA-RIMA da Hidrovia Araguaia-Tocantins, Belm: FADESP, 1999, p. 18.

    22 Para um melhor entendimento acerca do Protocolo de Kioto ver COTA, Raymundo Garcia et al. O mecanismo

    de desenvolvimento limpo como mitigador do aquecimento global e a participao do Brasil. Cadernos do NAEA. Vol. 12, n. 1, jun. 2009. 23

    Sobre as representaes, conceitos e ideias sobre a natureza ao longo de diversas temporalidades e espacialidades ver LENOBLE, Robert. Histria da idia de natureza. Lisboa: Edies 70, 1990; WILLIAMS, Raymond. Ideias sobre a natureza. In: Cultura e Materialismo. So Paulo: Editora UNESP, 2011; SCHAMA, Simon. Paisagem e Memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996; THOMAS Keith. O homem e o mundo natural: mudanas de atitudes em relao s plantas e aos animais (1500-1800). So Paulo: Companhia das

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    culturais do ser humano perpassam pela atribuio de valores e significados natureza, as representaes acerca da natureza amaznica, presentes no campo discursivo, nas polticas pblicas, no imaginrio regional - atravs das lendas, das regras de usufruto dos recursos e das funes atribudas a determinados elementos de sua fauna e flora - adquirem cada vez mais relevo nas discusses historiogrficas contemporneas.

    Est em curso um processo crescente de escassez de recursos naturais essenciais, como a gua doce, de deteriorao das condies climticas, de extino de espcies animais e vegetais etc. Todavia, em que pese a magnitude das perdas dos recursos naturais existentes no continente americano, ao longo de sua histria, o imaginrio da natureza frtil e abundante persiste. de se indagar, portanto, em que medida, as representaes historicamente construdas acerca da natureza condicionaram e condicionam as leituras e interpretaes produzidas sobre ela e como isso se reflete, ainda hoje, na formulao de polticas pblicas e na elaborao de projetos e na produo acadmica, pensados e/ou aplicados na regio.

    Acredita-se que a construo desse processo implica necessariamente considerar uma conjugao de diversos fatores, como os significados historicamente atribudos aos elementos biofsicos da natureza amaznica rio, floresta, vrzea, manguezal etc. pelos grupos humanos que neles realizam sua reproduo socioeconmica e cultural; as normas consuetudinrias de proteo dos recursos e as concepes de natureza que permeiam as vivncias de tais grupos, a investigao das memrias, individuais e coletivas, construdas e reconstrudas acerca da natureza amaznica ao longo do tempo; bem como a avaliao das implicaes da regulamentao do uso dos recursos naturais, sobretudo na esfera das unidades de conservao.

    Se os viajantes europeus que adentraram a regio nos idos coloniais, num terreno estranho e muitas vezes hostil, eram incapazes de estabelecer uma relao de alteridade com a populao nativa e no dispunham do instrumental conceitual pertinente para qualificar aquela experincia em suas crnicas, projetando em suas narrativas os conceitos e representaes oriundos da vivncia europeia, o recente discurso preservacionista encampou categorias discursivas com destaque para a da sustentabilidade do desenvolvimento, que

    Letras, 2010; PDUA, Jos Augusto. As bases tericas da Histria Ambiental. Estudos Avanados, 24, 2010, pp. 81-101.

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    fomentam novas formas de apropriao da natureza financiadas pelo grande capital, em detrimento da diversidade de experincias secularmente praticadas pelos povos da floresta de manejo positivo dos recursos naturais, de modo a garantir a sua reproduo e manuteno. 24

    H que se repensar, portanto, as concepes de natureza amaznica cristalizadas no imaginrio coletivo, de modo a construir/estabelecer uma nova relao sociedade-natureza na regio.

    REFERNCIAS ALLEGRETTI, M. Reservas extrativistas: parmetros para uma poltica de desenvolvimento sustentvel na Amaznia. In: ARNT, R. (Org.). O destino da floresta: reservas extrativistas e desenvolvimento sustentvel na Amaznia. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994a. p. 17-48.

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    24 Ver MORAN, Emlio F. A ecologia humana das populaes da Amaznia. Petrpolis: Vozes, 1990.

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