a literatura infantil na escola

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Page 1: A Literatura Infantil Na Escola

. I 5f;:lÍl

A LITERÃTURÃ

INfÃÌ{TIL til*i,,Ìqnrr1 .. 1{l

_ L:';. : ,: i.Ì\íà ESCOLA

Re5çína ZíLber'rnan

1 14 Edição rerrista, orualí...l..,rr-plí"d.

rr.,,"rr1 1f;1

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Page 2: A Literatura Infantil Na Escola

-,. * --JlÍ t:r,t çà o, Rr tl si,1, A i t i^ r,r zÀ DÁ t. / nÍ r\,L1 DÁ

tJNrir[:;jÍr I t" nrnutl,çsÀo. 2ooi

i ,A CAIúPUS GiJ,,\Rt-lLliC:i I Dirct"t' t:ttit'lt,iat

I Jrtooosox L. eLvns

'.( ,ll -".-.f . -.*-*- -* ,1 - | Gerctttt, tle prodttç.àoI Flnvro Sntruel

)t i7 ; ( ''Lr' . -.i CourtletraçàotleRtuisrìo

@ Regina Zllberman, 2003

-""-'-"^.-,:t..-*.*'.^'-ïï.* I EDNA LUNA

CapaEDUARDo OriuNo

E d i t o r.t çà o El e t rôn.i c aAN.roNÍo S[vro LopEs

Dados lnlernacionais de Catalogação na publicação (Clp)(Câmara BÍasileira do Livro, SB Brasil)

Zjlberman, ReginaA literatura inÍantil na escola / Reqjna Zilberman. -'11. ed. rev., atual. e ampl. - São paulo: clobat,2003.

BibliooraÍia.rsBN 85-260-0332-1

1. Literatura infanto-juvenil - Êstudo e ensino 2. Ljte-Íatura infanto,juvenil História e crítica 3. Crianças -Livros e leiìura L Tílulo.

03-1 940 CDD-372 64

lndices para catálogo sistemático:

1. LiìeÍatura inÍantil na escola : Ensino fundamental 372.64

Direitos Reseraaclos

O GLosAt Eorrona E

t.5 DtsrnmurooRA LrDA.Rua Pirapitingüi, 111 - LiberclacleCEP 01508-020 - São Par-rlo - SP

Tel.: (1I) 3277-7999 - Fax: (1I) 3277-8147E-mail : global@ globaleclitora. corÌ1. b1'

Colabore conr a produção cientílica e cultÌ-ì1'2Ì1.l)r'oibicla :r reploclução total ou parcizrl clesta obra

senì :Ì iÌutorrzttção clo editor.

A LITERATURA

INFANTIL

NA ESCOLA

,"^il}'"*r""^"p"..".tsR

\<--^.?

Na r)E cATÁLoGo: 1257

Page 3: A Literatura Infantil Na Escola

SUMÃRIO

INTRODUÇÃO

A CRIANÇA, O LIVRO E A ESCOLA

Literatura Infantil e EscolaA Formação do Leitor

O ESTATUTO DA LITERATURA INFANTIL

Literatura Infantil e Tradição pedagógica

História da Família Função da Literatura infantilDa Produção à LeituraA Literatura Infantil e o

71

rc25

Leitor Burguês

34

35

43

57

56

A

A

A LITERATURA iNFANTIL ENTRE O ADULTO E A CRIANCA

Traiçào ao Leitor 63

70

72

73

B3

94

9

Perspectiva do LeitorA representação da criança

O mágico de Oz, de Frank BaumPeter Pan, de Monteiro LobatoAs auenturas do auião uermelho,de Érico Veríssimo

Page 4: A Literatura Infantil Na Escola

lr.rrr:;lrrisslro clc normas e n-lptltra ..... IO2,l i/ltrr 1rcrclida, de MariaJosé Dupré .............. 104t,itrtlcr bcm,tba, de Lygia Bojunga Nunes........ 112

l,itt.r.:rtrrra infantil: fantasia e exemplariclacle ....... 126lr.ur:;itoriccl:rclc do Leitor e do Gênero ....................... 732

O LIVRO PARA CRIANÇAS NO BRASIL

i\lorrtcir.<t Lobato e a Aventura clo hnaginílrioA ntarcação clo território chavc entre os limites do real

l,ilt'l'lrtrrra Infantil: Texto e Renovação ...............O irnperialismo do texto .........l.iteratura infantil entre normativiclacle e rLÌpnlrx ...O exemplo da literatura brasileiraLiteratum infantil e outros meios de comunicação ..

() Vcrisrno e a Fantasia das Crianças ............Literatura infantil e realismoColeção do Pinto - O programa realistaAs narrativas infantis produzida.s

A lìepresentação da FamíliaO rnodelo eufóricoO rnodelo críticoO modelo emancipatório .............

A lìevitalização da Memória Nacional

IÏ\TTRODUçÃO

A literatura infantil apresenta, no Brasil, um campo cletrabalho tão extenso e desconheciclo, que ocorre com oinvestigador o que se pâssoll com Cristóvão Colombo:pensa-se ter descoberto o caminho para as Ínclias quanclo,de faÌo, mal se tangenciou um continente inexploraáo, cuyoperfil ainda está por ser definiclo. À vasticlão dã empresa Áesomam os equívocos que cercam o objeto em pallta. Ainclaaqui uma comparação coln Colombo é elucidativa, porqrÌea literatura infantil, como o Novo Mundo no século iV, estaenvolvida por uma capa protetora cle enganos e precon_ceitos que, ao mesmo tempo, a diminuem intelectuãlmentee reprimem uma averiguação que ponl-ra em eviclência suavalidacle estética ou suas fraquezas icleológicas.

Os esrr:dos a seguir proclÌram ocupar esse território tor-nado vago talvez pela negligência, clescaso ou comprometi_mento com estes prejuízos por parte cla Teoria Literâria. Tencloprocedência diversificada, eles não objetivam atingir a globa-lidade do terreno que se oferece, talvez por não pro.úre-colonizá-lo definitivamente. poÍ isso, nas primeiras pafies, tra-tam de questões gerais; mas, quanclo se volhm à análise indivi-dual de obras, dizem respeito principalmente a naffativas,tendo ficado ausente a produção em verso. Da mesma ma_neira' provindo a reflexão da óptica literâria, foram delxadosde lado os problemas relativos à ilustração, embora se cliscutaa razão da primazia atribuída ao texto. Enfim, esperou-se atin-gir determinadas metas, balizadas por algumas teses cliretoms:

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IìI]IìERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......... 228

A autora %3

I011

Page 5: A Literatura Infantil Na Escola

.r) A lilcrrtLrra infantil é um campo a ser privilegiado;rt.l;r 'l't.oli:r Ì,itcr/rria, devido à rica contribuição que pro-lrrrrr iorì;l :r <1r-ralquer indagação bem intencionada sobre a! t.tl I il(.2:t ilO literário.

lr) Aclr,rcle gênero pode ser questionado por tal ciên-( i:r, l)()l'(lr.lc é da qualidade estética das obras produzidast;rrt' r.c'tir:r sua importância e valor.

r') IÌ o enfoque estético que preside a abordagem dolivrrr lrrrra crianças, porque somente a realização literaria-nr('rìtc viúida rompe os compromissos (que estão na gêneselri.sl<ilica da produção infantil) com a pedagogia e, sobre-Irrrkr, corn a doutrinação.

cl) O fato de a literatura infantil não ser subsidiária clar'.scola e do ensino não quer dizer que, como medida delrrccar-rção, ela deva ser afastada da sala de aula. ComoiÌ.qcr-ìtc de conhecimento porqLÌe propicia o questionamen-to clos valores em circulação na sociedade, sell empregocrrr anla oLÌ em qualquer outro cenário desencadeia o alar-ÍÌrÌrìrento dos horizontes cognitivos do leitor, o qlle justificac clcmanda sell consLllno escolar.

c) Porque este tipo de arte com a palavra, clivicle-secntre Luna aptidão poética e um apelo externo clo adulto àckrutrinação da criança, patenteia-se sua inscrição social,r1r-rc não dei:xa de ser também a de tocla a literatura. Nessarncclida, valida-se a reflexão crítica sobre sua natureza, poisrcpresenta, de um lado, a interrogação sobre os vínculosiclcológicos da manifestação artística (no que colabora comru 'I'eoria Literária) e, de outro, o desvelamento de um dosprocessos - espelhando, portanto, os demais - de clomi-naçiro da infância (no que colabora com sua emancipação).

O desdobramento dessas questões unifica os ensaios,rprc visam encetar um diálogo com uma modalidade depr-oclurção artística por muito tempo votacla ao silêncio, devi-clo lì mordaça que a sociedade, regida pela norma aclulta,f.rsoLr para abafar a voz da criança e de todos objetos cul-trrrais relativos ao seu mundo e às suas formas de expressão.

l2

à CRL4'"IVçÃ, O LIYROE A, ESCOLÃ

Bcrita é 6tt,tto-estrctnbarnento. Sua superaçiío,a leituLra do texto, é, pois, a mais alta

tarefa de compreensão.

Hans-Georg Gadamer

Page 6: A Literatura Infantil Na Escola

os primeiros livros para crianças foram Ot"dY::d.ïiÍ'inal clo século XVII e durante o século XVIII' A":::^:Ì,"^:'não se escrevia para elas, porque não existia "

"íit:tltÏ^I-Ioje, a afìrmação pode suipreËnder; toclavia, "

toll"-lj"ttlclc uma faixa etâria diferenciada, com interesses Pt:lll1t^.:necessitando cle uma formação específica, tO

"""'^llÏcm meio à Idade Moderna. A mudança se'devet' ^a^"^Y:acontecimento da êpoca: a emergência de uma "$trï:c1efamília,centradanãomaisemamplaSreleçt/'-rentesco, rìas nlrm nútcleo unicelulaq preocuped" "::1:"ter sua privacidade (impedinclo a intervenç': d":#r" ;ì;em seus negócios internos) e estimular o ateto (iL'+-" "---"

membros.Antes da constituição desse modelo famüiÚ ?-ï:t.t|e,j'

inexistia uma consideráçao especial para corn ' t^1':,::1

Essa faixa etâria não erã p.r.óbidu .ãrno "* '"1ïï;Ï:.rente, nem o mundo da criança como um esDaço "-'Pequenos e grandes compartilhavam dos -ãtá"t,;;"rXt1porém nenhum laço amoroso especial os ap1'{l:"i;,.,.,iti"r.

nova valorização da infância gerou maiorJfltau.--"-'mas igualmente meios de controle do a"t"nuol]^l1"^11intelectual da criança e manipulação de suas elie,]e.s-

Literatura infantil e escola, inventada a primeira e '-::l'i'-da a segunda, são convocadas para c.,mp,i' essíl ínlssao'.^

A aproximação entre a instituição e o gênero ltt^e*tto

não êfortuita. sintoma disso é que os primeïros textos para

I5

Page 7: A Literatura Infantil Na Escola

' il.ilt(.:ts .stì() c.scritos por pedagogos e professoras, comnr,r(;uì{c ilrtlritct educativo. E, atê hoje, a literatura infantill)('r rììrrìccc colno uma colônia cIa pedagogia, o que lhe(,ilt..;lÌ gl'iÌlldes prejuízos: não é aceita colÌìo arte, por tefrrrrr:r l'inlLliclade pragmática; e a presença clo objetivo didáti-t tt l't7. com que ela participe de uma atividacle compro-rrrt'(iclu com a dominação c1a criança.

I,lsscs fatos tornam problemáticas as relações entre alitcr';rtur:r e o ensino.'De um lado, o vínculo de ordern prá-ticrr prcjudica a recepção clas obras; o jovem pode não que-r'('r' .scr instruído por meio da arte literária; e a crítica des-plc.stigia globalmente a produção destinada aos pequenos,rrrrtccipando a intenção pedagógica, sem avaliar os casoscspccíficos. De outro, a sala de aula é um espaço privile-ÍÌiaclo para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assimcolno um campo impoftante para o intercâmbio da culturalitcrírria, não podendo ser ignorada, muito menos desmen-ticlzr sua utilidacle. Revela-se imprescindível e vital um redi-rucnsionamento de tais relaçôes, de modo que eventual-rììcnte transforme a literatura infantil no ponto de partidapera um novo e saudável diálogo entre o livro e seu desti-natírrio mirim.

LITERATURÃ INFÃNTIL E ES COI,A.

Foram as modificaçÕes acontecidas na Idade Modernac solidificadas no século XWII que propiciaram a ascensãoclc rnodalidades culturais como a escola com sua organi-zu.ção atual e o gênero literário dirigido ao jovem. Com aclecadência do feudalismo, desagregam-se os laços de pa-rcntesco que respaldavam este sistema, baseado na cen-tralização de um grupo de indivíduos ligados por elos de.slrnglre, favores, dívidas ou compadrio, sob a êgide de um.scnhor cle terras de origem aristocrática. Da dissolução destaIricrarquia nasceu e difundiu-se um conceito de estrutura

l(i

unifamiliar privacla, desvinculada de complolttis:,o:, rrr,ll',

estreitos com o gftlpo social e dedicada à presct'vltç=;lr t t lt r:,

filhos e do afeto interno, bem como de sua itttitttirl,trk'Estimulada ideologicamente pelo Estado absolutistrr, clt'1,,,1r,

pelo liberalismo burguês, que encontraram neste núclt'o osuporte necessário para centralizar o poder político c c()lì

trabalançar a rívalidade da nobreza feudal, ela recebctt <r

aval político para irradiar seus principais valores: a primazi:tda vida doméstica, fundada no casamento e na educaçã<r

dos herdeiros; a impoftância c1o afeto e da solidarieclade cle

seus membros; a privacidade e o intimismo como condi-

ções de uma identidade familiar. A ficção do século XVIIIestá impregnada pela propagação desta visão de mundo:ao mesmo tempo que diagnostica a decadência da aristo-

cracia tradicional (Choderlos de Laclos, Beaumarchais), qua-

lifica positivamente aspectos relativos à vida burguesa ascen-

dente (Henry Fielding, Diderot).Edward Shorter descreve este fenômeno como "um

surto de sentimento em três diferentes áreas (que) ajuda-

ram a desaloiar a familia tradicional", quais sejam:

Namoro. O amor romântico em vez das considerações

materialistas na aproximação do casal. Propriedade e linhagem

deram lugar à felicidade pessoal e ao autodesenvolvimento indi-vidual, como critérios para a escolha do parceiro matrimonial.

O relacionamento mãe-filbo. Embora um afeto residual

entre mãe e filho - produto de uma ligação biológica - sempre

tenha existido, houve uma mudança na propriedade que oinfante veio a ocupar na híerarquia racional de valores da mãe.

Enquanto, na sociedade tradicional, a mãe era preparada para

colocar muitas consideraçôes - a maioria delas relacionadas à

luta desesperada pela existência - acima do bem-estar da criança,

na sociedade moderna, o infante tornoLÌ-se o mais itnportante; oamor maternal providencia parâ que seu bem-estar esteja acima

de qualquer outra coisa.

A linba fronteiriça entre a família e ct comunidade cir-cundante. [...] Os laços com o mundo exterior foram enfra-quecidos, e os laços unindo membros da família entre si foram

reforçados. Um escudo de privacidade foi erigido para Proteger

77

Page 8: A Literatura Infantil Na Escola

.t ittÍitttirl:ttlt' tkt .lúer da intrr.rsâo estranha. Ì.1 :r Íìunília nucleâfrn,r, lt'rr:l rìlrsccLl no abrigo da domesticiclaclc. I

r\ r,:rl,r'ização da infância enqLlzìnto faixa etária clife_r('r( i:l(l:l c Lnn clos baluartes deste rnodelo clornéstico. parti-, ul,uiz;t ^sc, primeiramente, a criança como um tipo de indi_r,r,lu. <yrrc merece consideraçâo especial, convertenclo_a nocr\() (()rìì base no qual se organiza a família, cuja responsa_lrilitl;rrlc ÍÌleior é permitir que os fiihos atinjam a iclacle adul-t,r rlt' rnuneira saudável (evitando-se sua morte precoce) errr:rrlrrlrr (providenciando-se sua formação intelectual). tné-tlir:rs ra época, tais iniciativas acabaram por se transformarrrrr r'<rticliano da classe média, razão do convívio harmônico('rìtrc pais e filhos e, enfim, fator indispensável par- a manu_It'rr('ìo de um estilo doméstico de vida;

lln segundo lugar, a infância como uma cefia etapa.tÍr'ie imobilizada nllm conceito demarcado veio a ser iclea-liz.:tcl,a. Tratados de pedagogia foram escritos para assegurar.stur .singularidade, e o recurso à fragilidade biológica do in_Ílrrrtc o fundamento da diferença eln relação ao períoclo:rclulto. Assim, um fator de ordem fisiológica e transitóriaclctcnnina uma teoria sobre a dependência da criança, o quelcgitirna o estreito vínculo dessa aos mais velhos. EnquaÀtoisto, sua falta de experiência existencial converte-se no sin_tolna de uma inocência natural que tanto se deve preservariclcllmente, sobretudo em ensaios teóricos de cunho cientí-Í'ico, como destruir aos poucos, por meio da ação pedagó-gica predatória, que justifica a necessidade cle preparar ospcquenos para os duros embates com a realidade.

A infância corporifica, a partir de então, clois sonhosclo aclulto. Primeiramente, encarna o ideal da permanênciacfo primitivo,-pois a criança é o bom selvagem, cuja natu_rrrliclade é preciso conservar enquanto o ser humano atra_

1 SuOntnR, Eclward. Tbe making of tbe modernfamity. Glasgow:lÌ rrrtana-Collins, 1979. p. 74-75.

Itì

vessa o período infantil. A conseqüência é sult rììitrl{in;rlir;i

ção em relação ao setor da produção, porquc cx('r'1 (' llrn,ratividade inúrtil do ponto de vista econômico (nrìo lr;tz tllnheiro para dentro de casa) e, até mesmo, contraproclrrt't'rrlt'(apenas consome). Em segundo lugaE possibilita 2t cxl)lulsão do desejo de superioridade por pafie do adulto, tlttt'mantém sobre os pequenos um jugo inquestionável, que crcs'ce à medida que esses são isolados do processo de pro-dução. Enfim, esse afastamento se legítima pela alegação a

noções previamente estabelecidas, relativas à índole frágile dependente da criança, desmentindo-se o fato de que esta

foi tornada incapacitada para a ação devido às circunstân-cias ideológicas com que a infância é manipulada.

O círculo se fecha: postula-se a fragilidade natural dacriança de acordo com sua situação biológica em formação;em razão disto, é distanciacla dos meios produtivos, o quedetermina sua clependência, acentuada pelo fato de que nãovem a ser dotada de um conhecimento pragmático que a

ajude a transmlÌtar em trabalho suas habilidades. E esse isola-mento é coroado por uma total marginalização, no momentoem que se torna condição de permanência da naturalidadeinfantil e de sua inocência original a ignorância dos fatoresque poderiam tornála socialmente produtiva e, portanto,emancipada.

É, pois, a natureza o âmbito preferencial da criança; nãoapenas seu hábitat mais adequado, como aquele que abrigao modo mesmo como a infância é concebida. O Emile, de

Jean-Jacques Rosseâu, sintetiza este funcionamento, porque,para preservaÍ a pureza infantil, o autor sugere que seu edu-cando seja afastado da sociedade pelo maior tempo possível.Nessa medida, tal faixa etária corporifica o não-contaminadoda natureza, com o qual se identificai e, par conservar esta

ingenuidade primeira, ou, pelo menos, fazê-la mais dura-doura, é necessário intensificar sua improdutividade social.

Nada mais contraditório que essa concepção de intân-cia, que o adulto elaborou depois de abandonar tal perío-

rg

Page 9: A Literatura Infantil Na Escola

,1, ' I )(.1)rr;r(l;r 1rt,r.

.Lr,tìr.icleaÌismo que ignora as circunstân_', r., l,r{.:;(.rìt(.\ <l:r vida infantil, se'ceráter utópico Ài.r"ir"_Jl, ',r(l() t. tliíiutcliclo pelos poetas romandcos, que a conce_1,,'r.rrr (.()lìì() o perícclo pà. a"aaierrcia cla vicla, visto que,l', .1; r r r rr'.sÍì Ì tt razão, pnr"rrr"".o_ ;;;;" " impossibìliclacle clett't rr't'r.:i-l:r, cÌuanto a irreversibilictacìe clo temno 2 F.^,,.rr r iss,, c()'o a criança vercracreirz ;'tì;;;;'ffi* ïlïliï_rl:r ;rllrci:r aos rneios á" pr;uç;;e cornprtmicla pelos maisvt.llros, clue assir

r ì, i, r, r, o ra cr; ;,J, ::ï5ïi: :1ïr:;:,: i,ï-#,..:;ili:i ?r 1

r r : r I iÍìcução dos pequenos e reprocÌ Jziramicleologicamentesr:r cli.rinuiçâo social, " _.r,ori,tnãe, a fragilidade física errì.r:rl, a irnaturiclacle intelecrud ;;i;"". Éõ;;;*"rrì..ino, que vivencia diariamerrt" n irrf".io.ia"ã",

"';;;.strltlantar esta fase, e toclo aclulto a aÌmejar sua reclÌpera_r.'ì<r, :rpós fazê_la passar pelo filtro cJa id.ealização. Concomi_lrÌrìternente, como clescre"" g";.ã õirrtor, a criança é con_duzicla ;r iclentificar_se com essa im::rcl.lto: rvrrr r:òsi1 lmáÌgeln projetada pelo

Se a imagem cla criança é contracÌitória, é precisamenteporqtlc o a<_lulto u r snrip.t.,t- ^^r. ,suasaspiraçõ":: j.i.:,,,""ïïïï jrH,ïi1;ï;:,::::f ï::rcflex, do quc o ecrurio . ,' ,o.r".r,,Jïn"nr.,,r rre si mesrnos. M:rseste reflexo nìo é iltrsào: ,"n.Ì., ,,o-Jontririo. e tornrr-sc rerli_drcle. Conr efe..

r ren s rornra -se ;ï,.:': ïïi: t::, t.:ill,::, ;::: ;,ritÍ:

3Jï::...":::texigências ,"

"a"i,, " n -ro.t".r".r",

em funçâo cte

cre cerra Ãoi",":::ï':iì*;'" :Í: l,: j^1, ::.:"9 " .",pà, a" Jreclrsam-nas

" ;, ;:;.:l:"'^'.::Ì "o'ottzarn-nas, aceitam-nas,

imagemo",,_J,ï,llï";::'ri::ï,;ïÌlJï:":;ïïïr*,rlídefine-se assim, eta p.op.à, .;;;"f;;.ìa ao que o aclutro e a

)r.\ poesla rontintica brasileira ressente_se clesta temática, qlle,fi.ïÏil;ii,.'Jr:mplo, nos conheci<los r,".ro, J" casimiro cte Abreu, cle

)n

Iil

llilili'il

sociedecle esperam dela. (...) A criança é, assirr, () r.t.llr.r, r ,1,, ,Ir,o aclulto c a sociedade queren qr-re ela seje e tcr.rrcrrr (lu( r l.r .,

torne, isto é, do que o adulto e a socieclacle (lur.t(.n), ,.1,.próprios, ser e tenern tornar-se.3

As instituições encarregadas do atenclimento 1Ì()s i( )

vens projetarn e propagam esta imagem <la intância. Aescola tem, neste processo, uma atuação preponclerantc,que cabe especificar. Como assume um cluplo papel _ o clcintrocluzir a criança na vida adulta, mas, ao [Ìesmo tempo,o de protegêla contra as agressões clo munclo exterior -, elzrse identifica corì as contradições antes expostas, refletinclo-as de moclo visível. Em primeiro lugar, acent'a a clivisãoentre o indivích-ro e a sociedade, ao retirar o aluno cla famí.lia e da coletividade, enceffando-o num:r sala cle aula emque tuclo contraria a experiência que até então tivera. Emvez de uma hierarquia social, vive uma comuniclacle em qlletodos são igualados na impotência: pera.nte a autoriclade clomestre e, mais adiante, da própria instituição eclucacional,todos estão despojados de qualquer pocler. Em vez de umconvívio social múrltiplo, com pessoas de variacla proceclên-cia, reúne um gmpo homogeneizado porque compartilha amesma idade; e irnpede que se organize uma vi<ia comuni-tiria, jâ que todos são obrigados a ficar cle costas Ltns paraos outros, de frente apenas para um alvo investicl0 cleautoridacle - o professor.

O sistema de clausura coroa o processo: a escola fechasuas poÍtas par? o mundo exterior e, se o regime cle interna_tos entrou em franca decadência, isto não significa qlle sellmodo de pensar a realidade tenha siclo suplantaclo. O pré_dio do colégio permanece como um espaço separado cla

3 CUenfOf, Bernarcl. A mistificação peclagógicaZahx, 1979. p. 108-109.

Rio de Janeiro:

r

27

Page 10: A Literatura Infantil Na Escola

rt

,,,l,.rrr itl.rtlt' t', tÌtLlitas vezes, fechado ou adverso zÌ seuslírlr'l(",'r("j.'l

r\r; r'cllrções da escola com a vicla são, portanto, cle, rìrrl:rit'rllrclc: ela nega o social, para introcllÌzir, em sellliir':rr', . r.ì()rrnativo. Inverte o processo verclacleiro com qlle,, irrrlivícluct vivencia o mundo, cle modo que não sao ãis-t rrÍitkrs, nem questionados, os conflitos qLÌe persistem noI'l.rrro coletivo; por sua vez, o espaço que se abre é ocu_1,;rrkr 1>elas normas e pelos valores cla classe clominante,tr:rrrs'riticlos ao estudante. Em outras palavras, é por omitir, s.ciul qLle a escola pode-se converter nurn clos veículosrrr:ris lrerl-sucedidos cla educação burguesa; pois, quanclor lc'^s(u ocorrência, torna-se possível a manifestação cloi icieais(luc rcgem a concluta da camada no pocler, evitanclo_se oc'vcnttral questionamento que revelaria sua face rnais autên-ticlr. Nesse momento, a educação perde sua inocência, e at'scola, sua neutraliclade, compoftando-se como uma clasin.stitr"rições encarregaclas da conquista de todo jovem para:r icleologia que a slÌstenta, por ser a que sllpofta o funcio_lìiÌlÌlcnto do Estado e cla socieclade.

Não por acaso foi a burguesia ascenclente clos séculosXVIII e XIX a patrocinaclora da expansão e aperfeiçoamen_l. clo sistema escolar. Tanto é responsável por slÌa estftltu-nrçiro claustraÌ, como pela elaboraçâro do conjunto cle icléiasr;rre jtrstifica a validade da edr-rcação e sr-ras principais con-ccpções e atividades - a pedagogia. Com isso, soliclifica oI)rocesso desencadeado pela valorização cia infância eclil.são de seu conceito moderno, assim como acentlla ocarátcr diferenciado dela, em sua depenclência e fragili<lacle,o qlle asseguÍa a posterior necessidade de proteÇão. Enfim,

soneganclo o clireito cle expressão aos menorcs, ( .rlì.r( rr.r .,

a transmissão do conhecimento e sells mcios (lt' rrr:rrul, ,

tação segunclo a óptica adulta. Por isso, pode pc,rstLrliu ,,,rrr',irnprescindível a posse cle um tipo de saber que iÌ r'ri.ur,.,rnão tent, o que, mais urna vez, gÃrantelhe a razão c ( ) l)( )

cler. Desarmacla, a criança não reage; e sua impassibilicl:r<1,'é tomada colno sinal cle aceitação da engrenagem.

Por todos estes aspectos, a escola participa clo proces-so cle manipulação cla criança, conduzinclo-a 2ìo respeito cla

norma vigente, que é também a cla classe dorninante, a bur-guesia, cuja ernergência, como se viu, desencadeou os fatosaté aqui clescritos. A literatura infantil, por sua vez, é outrodos instrumentos que têm servido à rnultiplicação da norlnaem vigor. Transmitinclo, em geral, um ensinurmento confor-me a visão aclulta cle mundo, ela se compromete com pa-drões que estão em clesacordo com os interesses do jovem.Contuclo, pode substituir o adulto, até com maior eficiên-cia, quando o leitor não está em aula oLÌ rnantém-se desa-tento às ordens dos mais velhos. Ocupa, pois, a lacunasurgida nas ocasiões em que os meiores não estão âutoriza-dos a interferir, o que acontece no momento em que osmeninos apelam à fantasia e ao lazer.

Nessa medida, também a obra literária pode reproduziro mundo adulto: seja pela atuação de um narrador que blo-queia ou censura a ação de suas personagens infantis; sejapela veiculação de conceitos e padrões comportamentaisque estejam em consonância com os valores sociais predi-letos; seja pela utilização de uma norma lingüística ainda nãoatingida por seu leitor, devido à falta cle experiência maiscomplexa na manipulação com a linguagem. Assim, os fato-res estrutllrais de um texto de ficção - narrador, visão demundo, linguagem - podem-se converter no meio por inter-médio do qual o adulto intervém na realidade imaginária,usando-a para incutir sua ideologia.

Essa situação bastante comum, se examina<la a produ-ção especialmente destinada aos garotos, comprova a falta

" Cf. ^

propósito cla história cla escola as seguinres obras: AIìIÉS,I'lrilippe. Historin. social da criança e cla fantília. Rio cle Janeiro, zah,oi:,1978. crlARlol Bernard. A mistificaçôío pedagógica. Rio cle Janeiro:z.htrr, 7979- cosrA, Jurandir Freire. orclent métlica e norma familiar.lÌi<r cÌc Janeiro: Gra,al, 1,979.

2223

Page 11: A Literatura Infantil Na Escola

.lt' rrrot i'rrc'irr clo gênero. Muitas vezes procurando incorpo-r,rr :r irrtcrìuicl:rde atribuída às crianças, na verdade o dis-l:rrt't' s<i intensifica o compromisso com uma concepção,'rlrrivoclcl:r e degradante de infância. A máscara cai quan-t k r .sc percebe a intenção moralizante; e o texto se revelaurìì lììunual de instruções, tomando o lugar da emissão:rrlultu, rnas não ocultando o sentido pedagógico.

O problema pode-se agÍavaÍ quando o livro é introdu-ziclo na escola. Porque, nesse caso, as forças se conjugamrro projeto de doutrinar os meninos ou então seduzilos('()Íìì :Ì imagem que a sociedade quer que assumam - a descrcs enfraquecidos e dependentes, cuja alternativa encon-tr1ì-se na adoção dos valores vigentes, todos solidários ao:rcltrlto. Isso é, a saida acaba sendo o reforço da dependên-cia, porque aceitar as normas impostas significa corroboraro modelo dentro do qual a criança é manipulada.

A oposição a esse estado pode-se revelar igualmenteproblemática. Propor a abolição da literatura na escola otrlr-Ìeslno a abolição da escola representa tão-somente aban-clonar a criança à sua própria sorte, após têJa feito adotara imagem de sua impotência e incapacidade. Em outraspalavras, trata-se de doarlhe um poder sem instrumenta-lizâ-la para seu uso; e, com isso, reforçar o conceito de seudcspreparo e inabilitação. Além disso, enquanto instituições,a escola e a literatura podem provar sua utilidade quandose tornarem o espaço para a criança refletir sobre sua con-dição pessoal. Pois, de um modo oll outro, escola e litera-tura infantil têm sido o que restolr para a infância, após oêxito do processo de ilhamento antes descrito. E, se suadominação procede do gesto soberano do adulto, os fato-re.s de sua emancipação podem derivar de uma nova alian-Ça entre estes dois sujeitos. Gesto de rebeldia que inclui oprofessor, sua validade provirá do fato de que incorre igual-lnente na liberação do adulto, comprometido com umprocesso de dominação que o coloca como ser também

21t

passivo, porque jogado num sistema sobre o c1t-rtl n:ì( ) ('\.'tce o controle dos aparelhos vinculados ao podcr.

A FORMAçÃO DO LEITOR

Preselar as relações entre a literatura e a escola, oLl ()

uso do livro em sala de aula, decorre de ambas comparti-lharem um aspecto em comLÌm: a natureza formativa. Defato, tanto a obra de ficção como a instituição do ensinoestão voltaclas à formação do indivíduo ao qual se dirigem.Embora se trate de produções oriundas de necessidadessociais que explicam e legitimam setÌ funcionamento, suaatuação sobre o recebedor é sempre ativa e dinâmica, demodo que este não permanece indiferente a seus efeitos.

Que essa é a meta da educação é fartamente conheciclo,enfatizando-se em tal caso sua finalidade conformadora apadrões de existência e pensamento em vigor.

Como procede a literatura? Ela sintetiza, por meio dosrecursos da ficção, uma realidade, que tem amplos pontosde contato com o que o leitor vive cotidianamente. Assim,por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou maisdistanciadas e diferentes as circunstâncias cle espaço e tem-po dentro das quais uma obra foi concebicla, o sintoma desua sobrevivência é o fato de que ela continua a se comuni-car com seu destinatário atual, porque ainda fala de seumundo, com suas dificuldades e soluções, ajudando-o, pois,a conhecê-lo melhor.

Também a escola tem uma finalidade sintetizadora,transformando a realidade viva nas distintas disciplinas ouâreas de conhecimento apresentadas ao estudante. O pecu-liar, neste caso, é que, duÍante o processo de síntese, ocor-rem inversões que maculam seu objetivo cognitivo. Assim,inteÍïompem-se ou atenllam-se os vínculos com a vida atuale é intensificado o enclausuramento da criança, porque,convertida em aluno, ela se isola ainda mais da sociedade

25

Page 12: A Literatura Infantil Na Escola

e se intro(ltrz rrrrrrr rrrt'io sobre o quâl igualmente nâoexefce ncnlìÌilÌì |)()tk^r.. I)cs.slt lnaneira, einbora compafti-lhem trmu Í'urr(:r,r, litt'r':rtrrr.lr c escola não se iclentificam, se

bem qr.rc t'stt'lt rrlr:r sitlo () pretexto para justificaro Llso daobra clc lrlt'lir'r'iorr:rl crìì sala de aula com intuito LÌnice-mcntc Pt'rl:rr',,)f i( (); :Ìl)r'()xirna, porém, oS dois Setores. E, se

isso j:i r('l)r(':;('rìlorr :r sujeição da arte âo ensino, pode-seirrvt'sti1i;rl rr:; po:,siliiliclucles que oferece o oposto deste mo-<lt'lo, rro ,lrr:rl ;r rlirllitica se submete zìs virtualidacles cogni-tiv:rs rlo tt'xto lilr^r'lirio. Noutra formulação, é o último que

llorlt'r:i r()rììl)('l':t.s lrerreiras entre a escola e a coletividacle,lt'irrtlotlrrzirrrl<l () cstuclante no presente e fazenclo que elecx('r'(:r urÌÌ l)irl)cl rÌtivo no processo de transferência.

'l':rl tlt'c'islro por LÌma muclança de rumos implica algu-rrr:rs o1x'ircs lx)r parte do professor, clelimitaclas estas, derrrrr l:rrkr, pcl:r cscolha do texto e, de outro, pela adequação<lcstc' últirno ao leitor. Dessa maneira, as fronteiras se esten-tlcrrr clrr vtrlorização da obra literária à relevância dada aoprrrccclimento cla leitura.

A .seleção dos textos advém da aplicação c1e critériosclc cliscriminação. O professor que se vale do livro p^r^

^vcicr-rlação de regras gramaticais ou normas de obediênciac bom comportamento oscilará da obra escrita de acordocorrì urn padfão culto, mas adulto, àquela criação que temínclole edificante. Todavia, é necessário que o valor por exce-lência a guiar esta seleção se relacione à qualidade estética.Porque a literatura infantil atinge o estatuto de arte literáriae se distancia de sua origem comprometida com a peda-gogia, quando apresenta textos de valor artístico a selÌspequenos leitores; e não é porque estes aincla não alcan-

çaram o stcttus de adultos que merecem uma produçãoliterária menor.

Assim, os critérios que permitem o discernimento entreo bom e o mau texto para crianças não destoam daquelesque distinguem a qualicladc de qualquer outra modalidadecle criação literária. Seu aspecto inovador merece destaque,

26

na medicla em que é o ponto de partida p^ra a revclrt(:1,r

cle uma visão original cla realiclade, atraindo seu bencli-

ciário para o munclo com o qual convivia diariamente' mas

q.," clËsconhecia. Nesse sentido, o índice cle renovação de

Jma obra ficcional está na razão diteÍa de sua oferta de

conhecimento cle uma circunstância da qual, de algum mo-

do, o leitor faz Parte.Da coinciclência entre o mundo representado no texto

e o contexto clo qual participa seu destinatário emerge a

relação entre a obia e o leitor' Pois, quanto mais este de-

mancla uma consciência clo real e um posicionamento pe-

rante ele, tanto maior é o subsídio que o livro de ficção tem

a llre oferecer, se fot capaz de sintetizar, de modo virtual' o

toclo da sociedacle. A criança é um indivíduo que se res-

sente clessa abertura cle horizontes, conseqüência da situ-

ação claustral a que foi lançada'

Em vista clisso, a grande carência dela é o conheci-

mento cle si mesma e clo ambiente no qual vive, que é pri-

morclialmente o da família, depois o espaço circundanle e'

por fim, a história e a vida social' O que a ficção lhe ou-

iorga é uma visão cle mundo que ocupa as lacunas resul-

tantes c1e sua restrita experiência existencial, por meio dc

sua linguagem simbólica. Logo, não se trata de privilegiar

um gênero ou uma espécie em detrimento de outras' Lìma

.r", -q.ta os problemas peculiares necessitam ser examinzr-

clos à luz clos resultaclos alcançaclos por escritor; e sim de

admitir que, seja pelo conto de fadas, pela reapropriaçã-o

cle mitoi fábulas e lendas folclóricas, ou pelo relato clc

aventuras, o leitor reconhece o contorno no qual está inse-

riclo e com o qual compartilha lucros e perdas'

O convívio com o i"*to, o que implica ahrgrmento tle

horizontes, se o último preencher o requisito relativo r'r

qualidacle litetâria, climensiona sua adequação ao leitor"

Portanto, não se trata cle dar relevância a obras que justi-

fiquem a condição cla criança em sua marginalidade clrr

cotnpensem sua inferioridacle social pela elevação moral otr

'zf

Page 13: A Literatura Infantil Na Escola

IIfì

!.u,tt('l (^x(,IÌìl)lltr clo herói mirim. Pois aquelas, se se afas-t.rrrr tlo rrroclclo edificante que dá prioridacle à emissão.r, lr rlt:r, igtr:rlmente se integram a um protótipo pedagógico,urÌr;r vcz (pre, cle algum moclo, uma lição é dirigida a seutlt'stirlrtárict. Com efeito, a adequação se situa num nívelr;rr1rt'r'ior': cliz respeito ao grzÌLÌ de abertura pÃÍa a realidzrdevivcrrcirtcla pelo recebedor do texto, seizÌ ela de n turezalrrtirrur ou social.

Sr-rpondo esse processo rÌm intercârnbio cognitivo en-tr('() texto e o leitor, verifica-se que está implicado aí oÍt'nômeno cla leitura enquanto tal. Esta nào representa x:rlrsorçirct de uma certa mensegem, mas antes uma convi-vôncia particular com o mundo criado pelo imaginário. Aolrra clc arte literária não se reduz a cleterminado conteúclolciÍ'icado, mas depende da assimilação individual da reali-clucle que recria. Sem ser compreenclida na sua totalidade,clu não é autenticamente lida, do que advêrn algumas con-secliiências:

- o professor que se utiliza clo livro em sala de aula nãoJrocle ser igualmente um redutor, transformando o sentido dotcxto nlÌm número limitado de observações tidas como cor-retas (proceclimento que encontrx seu lirniar nas fichas clelcitnra, cujas respostas clevem ser uniforrnizaclas, a fim de(lLre possam passar pelo crivo clo certo e do errado);

- ao professor cabe o desencadear das mÍrltiplas visõesclue cada criação literária slÌgere, enfatizando as variadasintcrpretações pessoais, porque decorrem da compreensãoque o leitor alcançou do objeto afiístico, em razão cle su:rpercepção singular do universo representado.

A atividade com a literatura infantil - e, por extensão,com todo o tipo de obra de arte ficcional - desemboca numcxercício de hermenêutica, LÌma vez que é mister clarrelevância ao processo de compreensão, complementar àreccpção, na medida em que nào epenas evidencia a cap-taçào clc um senticlo, mas as relações que existem entrecssa significação e a situação atual e histórica do leitor.

.-(ì

Portanto, não é atribuição clo professor lrl)ctì;t..; (,nr,nr.rr .l

criança a ler corretamente; se está a seu alc:rnt.t. .t (.,Ílcretização e expansão da alfabetização, isto é, () (h rrrrrrr,,dos códigos que permitem a mecânica da leitunr, (. ;un(l,rtarefa slla o emergir do deciframento e comprecn.slìo tl,,texto, pelo estímulo à verbalização da leitura proccclitl;r,auxiliando o aluno na percepçâo dos temas e seres hrrrrlrnos que afloram em meio à trama ficcional.

É a partir claí que se pocle falar cle leitor crítico. Aclenominação, quanclo aplicacla à criança, parece exorbi-tante. Priva-se a criança de uma interação cotn o meio social;e, posteriormente, ela é considerada incapaz de assumir urn:rpostlÌr:Ì inquiridora. Todavia, se o livro fornece concliçõespara essa compreensão - de seu munclo interior, nurn pri_meiro momento, como propõe Bmno Bettelheim;5 do realcircunclante, transcendendo o âmbito famiiiar -, ele tambérnproporciona a seu destinatário um lastro com base no qualse funda utna concepção autônoma e, pofianto, crítica clavicla exterior.

A literatura infantil, nessa meclicla, ê levacla a realizarsua função fonnadora, que não se confuncle com uma rnis-são pedagógica. Com efeito, ela ciá conta cle uma tarefa aque está voltada toda a cultura - a de ,,conhecimento

clomundo e do ser", como sugere Antônio Cândic1o,6 o querepresentrÌ Llm acesso à circunstância individual por inter_méclio da realidade criacla pela fantasia do escritor. E vaimais além - propicia os elementos para ulna emancipaçãopessoal, o que é a finalidacle irnplícita do próprio saber.TIntegrando-se a esse projeto Ìiberador, a escola rotnpe sLtas

) cf. net.IgtHElM, Bruno . A psicanarise cros co,tos cre fcrcras. Riode Jrneiro: l'rz c 'l ernt, 1978.

ó Cf. CÂNOIOO, Antônio. A lireratura e a formação clo homem.Ciência e Ctrltu.ra, São PauÌo, vol. 24, n. 9, p. g06, set. 7972.

7 So[-r.. a f'nção emancipaclora clo .saúer e cla literatrrra, cf. JAUSS,Hans-iìobert. La literatura corno prouocación. BarceÌona: península, 1976.

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7C)

Page 14: A Literatura Infantil Na Escola

lirrritrrq'ocs, inerentes à situação com a qual se comprome-

t('u ('rìì sua gênese. É essa possibilidade de superação de um

r.sllt,itlrnrcnìo c1e origem o que a literatura infantil oferta à

t'tltrcrrçitcr. Aproveitaãa na sala de aula em sua natuteza fic-

t'iorrrl, quc aponta a um conhecimento de mundo, e não co-

nro súclitzr do ensino bem compoftado, ela se apresenta

('()rììo o elemento propulsor que levará a escola à ruptura

c()rÌì 1Ì eclucação contraditória e tradicional'A ir-rstifiòativa que legitima o uso do livro na escola

rìrÌsce, pois, de um lado, da relação que e'stabelece com seu

lcitor, conveftendo-o nuflÌ ser crítico perante sua circuns-

târ-rcia; e, cle outro, do papel transformador que pode

cxcrcer dentro do ensino, trazendo-o p^ra a realidade do

cstuclante e não submetendo este último a um ambiente

rarefeito do qual foi suprimida toda a referência concretâ'

O ESTÃTUTO DÃLITE RÃTUR,A, ITíFÃ,ÌVTIL

Se nã.o aceitamos presunçosamente a literatura infantil como,

antes de tudo, um artificio seguro, saudãuel e anti-sépticopara a preseruação cla pueriliclade, é porque seus apelos mais

fundamentais são os .tpelos de toda a efetiua literatura -ela explora nosso anseio de nouidade, assim como nossa

insistência da realidade bumana.

Edward \7. Rosenheim, Jr.

30

Page 15: A Literatura Infantil Na Escola

Entre os gêneros literários existentes, um dos maisr.ccentes é constituído pela literatura infantil, que aparecellch-rrante o século XVIII, época ern que as mudanças nacstftitura da sociedade provocaram efeitos no âmbito artís-tico, mudanças que vigoram até os dias atuais. Entraram emclecadência os gêneros clássicos, como a tragêclia e a epo-péia, substituídos pelo drama, o meloclrama e o romance,fbrmas voltadas à manifestação dos eventos da vida burgue-sa e cotidiana, qlÌe tomaram o lugar dos assuntos mitológi-cos e das personagens aristocráticas. Além disso, o progressoclas técnicas de industrializ.tção chegou à arte literâria, faci-litando a produção em série cle obras e cle materiais de fácilclistribuição e conslÌmo, fenômeno posteriormente designa-c1o como cultura de massa. Assinalada pela banalidade dostemas, a fixação dos estereótipos humanos e a veiculaçãode comportamentos exemplares, a literatura trivial revelacomo cÍitério de elaboração a retomada dos mesmos artifí-cios composicionais até sua exaustão.

Nesse contexto, aparece a literatura infentil; ser,r nesci-mento, porém, tem características próprias, pois decorre daascensão da familia burguesa, clo novo stnttLts conceclido àinfância na sociedade e da reorganização da escola. Conse-qüentemente, vincula-se zÌ aspectos particulares da estr'ì-l-

tura social urbana de classe média, não requerendo neces-sariamente que o processo de indusffialização tenha-secompletado. Por sua vez, o aparecimento e a expansão da

t)

Page 16: A Literatura Infantil Na Escola

literatura infìrntil clcvcrarn-se antes de tudo à sua associação

com a peclltgogirt, jíL clue aquela foi acionad^ par^ conver-

ter-se clìì itìsl l'ttlììcllto clesta. Por tal razão, o novo gênero

careccu tlt' ilttttcliato cle estatuto artístico, sendo-lhe negaclo

:r paltir rlt' r'rttlìo um reconhecimento de valor estético, vale

cli)cr, rr <rporltrnidacle c1e fazet parte do reduto seleto cla

litcrt(r lr';r.

 rlcgraclação de origem motivoLÌ a identificação apres-

slclrr cllr liter;rtura infantil com a cultura cle massa, com a

<1rrrl c'otnpartilha a exclusão do muncio das artes' TÔclavia'

r.rnr rcclitnensionamento clo problema se faz necessário,

tcncl() como meta a verificação das propriedades do gênero,

strponclo-se, por um lado, o exame de suas relações com a

pcclagogia, a quem deve seu nascimento; e, por outro, a

clefìúaã de suã dimensão estética, o que o aproxima cla lite-

nÌtLlra e da afie.

LrTERÃTURÃ. INFÃ.NTLL E TR 4D rçÃoPEDÃGÓGICÃ.

Para conceituar-se a literatura infantil, é preciso pro-

cecler a Llma consideração de ordem histórica, uma vez que

não apenas o gênero tem Llma origem determinável crono-

logicamente, como também setl aparecimento decorreu de

exìgências próprias cla época. Assim, há um vínculo estrei-

to entre seu nascimento e LÌm processo social que marca

inclelevelmente a civilização européia moderna e' por exten-

são, ocidental. Trata-se da emergência da familia burguesa,

a que se associam, em decorrência, a formulação do con-

ceito atual de infância, modificando o status da criança nzt

socieclacle e no âmbito cloméstico, e o estabelecimento de

aparelhos ideológicos que visarão preseffar a unidade do

lár e, especialmente, o lugar c1o jovem no meio social' As

ascensõós respectivas de uma instituição como a escola, cle

práticas políticas, como a obrigatoriedacle do ensino e a

34

lrl;rrtlnrpia, e de novos campos epistemológicos, ( ()urrì ;l

1'r'tl;rq<rgi:r e a psicologia, não apenas inter-rcllrc'iorr;trl.r,,nr.rs urìì1Ì conseqtiência do novo posto que a fanrílilr, r.,rr':,lrct tivrrrììeflte a criança, adquire na sociedade. É nc, irrlt'r'ror,1,'r.s;r rnolchÌra que eclode a literatura infantil.

, I I,S'I()RIÃ DA FAI{-.ÍLIA

A c.strLÌtura designada como familia moderna é um,r, , rrrtt't'itìlento do Século das Luzes. Diferentes historiado-r, .l t',rirrcidem naafirmação de que foi ao redor de 7750

lr,':r(':rssistiu ao término de um processo iniciado no final,l,r lr l:rrle Média, com a decadência das linhagens e a desva-l, 'rrz.r('iro clos laços de parentesco, e culminou com a con-1,,rr11,1r"i,, cle uma modalidade familiar unicelular, amante,l.r ;,riv:rr:iclade e voltada à preseruação das ligações afeti-r r', r'rrtrc ltais e filhos.

( ) ..ii.stema de linhagens e clientela predominolì naI rlri )l ).r <lrrrante aldade Média, vinculado ao modelo feudal.r , rrtr.rliz:r(lr) na presetvação de amplas relações de paren-tr .r ,, vl1,ivf lt sempre que se tem como meta a manutenção

'lr ;'1,;rlicclad€ e a transmissão da herança. SupÕe, pois, ar 11

'1r .11111i'i11 cle uma classe aristocrática, proprietária de terras,

,t, r, .rnrPli:r sr,ra dominação pela expansão dos vínculos fami

I licl:rriv:rrnente à história da família moderna e seus antececlentes,I ,, , ,, 1,uirllcs elttores: ARIÈS, Philippe. História social da criança e da

",,'ilt,t l(irr tlc Jançir6 Zahar, 1979; DONZELOI Jacques. Tbe policing: i,ttt lltr': Ncw York: Pantheon Books, 1979; POSTER, Mark. Teoria;;t1,,1 ,1,1 /ìrrrtília. Rio de Janeiro: Zahar,7979; RICHTER, Dieter. Til

I,ii, rr.1,1, 1r'f cler asoziale Held und die Erzieher. Kindermedien.t '!',ítl' trtrtl Kontmu.nikation. Berlin: Auk Verlag, n.27, abr. 1977;t r' 'rr rr li, litlr.vercl. Tbe making of tbe modern family. Glasgow:

I ',r ,r ! r rrllirì:i, 1979; STONE, Lawrence. Tbefamily, sex and marriage,., Ì tt, l,rtrrl l5(X)-IBOO. London: Pelican Books, 1979.

35

Page 17: A Literatura Infantil Na Escola

li:rrt's. () casarnento é um de seus principais instrumentos, derrroclo c1-re dele se excluem os laços afetivos, devendo aten-tlcr, antes de tudo, às prerrogativas do gn-rpo.2 Por isso, ine-xistc rÌ noção de privacidade ou vontade indiviclual, já que oclrcf'e da familia cenÍraliz^ o todo e defende seus interesses,rrssirn como está ausente uma solidariedade especial entre oscônjuges ou as geraçôes.

Stone descreve a situação das crianças nessa épocat nãorccebiam qualquer atenção pafticular, nem gozavam de umstóttLrs diferenciado, verificando-se ainda altas taxas de mor-talidade infantil, quando do parto ou em tenra idade. Partici-pírvam de modo igualitário da vida adulta, conforme assinalaDieter Richter:

Na sociedade antiga, não havia a "infância": nenhumespaço separado do "mundo adulto". As crianças trabalhavam e

viviam junto com os adultos, testemunhavam os processos nâtu-rais da existência (nascimento, doença, morte), participavamjunto deles da vida pública (política), nas festas, guerras, audiên-cias, execuções, etc., tendo assim seu lugar assegurado nastradições culturais comuns: na narração de histórias, nos cantos,nos iogos.3

Estavam, porém, excluídas do processo decisório,tanto quanto os demais membros do clã. A respeito da exis-tência cotidiana em tal período, complementa Stone:

As crianças eram freqtientemente negligenciadas, tratadasbrutâlmente e até mortas; muitos adultos tratavam-se mutua-mente com suspeita e hostilidade; o afeto era baixo e raro. [...] Afalta de uma única figura materna nos primeiros dois anos devida, a perda constante de parentes próximos, irmãos, pais, amase amigos devido a moftes prematuras, o aprisionamento físico doinfante em fraldas apertadas nos primeiros meses e a deliberadaquebra da vontade infantil, tudo contribuiu para um "entorpeci-

2 cf. stoNr, Lawrence. op. cit., p.69-16.3 rucrtlen, Dieter. op. cit., p. 36.

rlento psíquico", que criou muitos adr,rltos, cuj:ts tt':'Pr|il.t" ,t,,,outros eram, no melhor dos casos, de incliferença cltlcul;trl,r ,', tt,

'pior, uma mistura de suspeita e hostilidade, tirania c sttllri:,:,,1,r,alienaçâo e violência.4

No século XVII acontecem mudanÇas sensíveis. A cctttnlização do pocler em torno de um governo absolutista vini;Ì('olnpanhada do enfraquecimento dos grupos de paren-l('sco, vinculados às grandes propriedades e à aristocracialìrncliária. O Estado moderno, no processo de abolição clo

pocler feudal, encontra na família nllclear seu sustentáculonurior, cabendo-lhe então reforçar e favorecer sua sitllação(' estrutllra,5 assim como sua Llniversalidade. Vê-se, pois,(lue a mudança âponta para a aliança entre o poder políti-ccr centralizador e a camada burguesa e capitalista, que se

llnça à expansão de sua ideologia familista, fundada noinclividualismo, na privacidade e na promoção do afeto:clltre esposos, estimulando a instituição do casamento; e

cntre pais e filhos, por estar interessada na harmonia inte-rior do núrcleo familiar.

Stone identifica, no processo, dois momentos diferen-ciados: no século XVII, a organização é fortemente patriar-cal e recebe grande influência e estímulo dos protestantes,jír que os pastores entendiam a criança como um indivíduoa ser domado pela educação religiosa rigïda, cabendo aos

pais alcançar a sujeição da vontade infantil; no século XVI[,os pequenos e as mulheres gozam de maior liberdade, demodo que a familia exibe a imagem de uma parceria inter-na, dominada pelo liberalismo e calor afetivo, e não pelopoder paterno e a obediência hierárquica. E, se no século)ilru iá se verifica um interesse especial pela criança, pro-vocando a edição dos primeiros tratados de pedagogia,escritos pelos protestantes ingleses e franceses, o século

4 StONn, Lawrence. Op. cit., p. 80.> A propósito, v. também DONZELOT, Jacques. Op. cit., p. 50.

36 37

Page 18: A Literatura Infantil Na Escola

y V I I I r s.siste à passagem completa da infãncia ao centro das

..,11.sicler:rções. Descrevendo os traços que caracterizam a

Írrrtrílirt nesse período, comenta Stone:

Um quarto sinal era a identificaçâo das crianças coulo Llmgrupo de stcttlts especi^I, distinto dos adultos, com suâs institui-ções especiais próprias, como as escolas, e seus próprios circui-tos de informação, dos quais os adultos tentaram excluir, dernodo crescente, o conhecimento sobre o sexo e a morte.6

Jacques Donzelot verifica na França fenômeno similar,voltxdo à preseruação das crianças. O movimento temctr-rpla finalidade: de um lado, valofiza a familia burguesa;de outro, dirige-se às crianças pobres, cuja sobrevivência é

.gpsiderada importante, ao significar a garantia de mão-de-ob1â flÌtura. Por isso, o processo toma características pró-prias nas diferentes camadas sociais. No âmbito da familiaburguesa, trata-se de diminuir a importância concedida às

x6as-deJeite, responsáveis pela manutenção alimentar e

educação dos infantes nos primeiros anos e causa do gran-6[s número de mortes precoces.T Desse modo, reforça-se optpel da esposa dentro do núcleo familiar, a fim de fazê-larssumir sua funçào materna. Resulta daí a ascensão da mu-her no ambiente doméstico, o que lhe permite assegurar o6epffole do universo caseiro e adquirir um novo lugar so-ciaI, alsrandvndo o patriarcalismo do século anterior e avan-

çando ideologicamente, na medida em que o Estado nãopoderâ mais prescindir de sua colaboração para a estabili-dade e funcionamento da engrenagem social.

6 sroNn, Lawrence. op. cit., p. 149-150.7 Cf. a propósito DONZELOT,;acques. Op. cit., p. 16: ,,preservar

as crianças passoll a significar, por um lado, dar um fim nos malfeitosd65 servos domésticos, criar novas condiçôes de educaçâo capazes dess1 a corìtrapartida dos efeitos penosos sofridos pelas crianças conliadasa eles, e, poÍ outro, atrair à educação de seus filhos todos aqueles indi-yi6[1ros Que tendiam a abandoná-los aos cuidados do Estaclo ou ao negó-61s homicida das amas."

Entre as camadas inferiores, a evoluçâo i' rrr;tir; h,rrt,r,urììír vez que se tratava de incorporar o traballlrtkrr' ;i { r,nt r'1rÇrio de familia. Habituados a abandonar as cri:urç',r,. ,rr,,,t rricledos de instituições de caridade mantidas pclo 1ro. l,,r

1rírlrlico ou religioso, o casamento não lhes parecirr ('()nl()urÌì1r necessidacle, menos ainda a educação dos filhos, t,rrr

ricrlrl ilegítimos. A adoção dessas crianças aumenta o cust():;ocial da pobreza; além disso, as altas taxas de mortalicluclc'irrÍìrntil, por falta de atenção e cuidados na época convc-rricnte, privam as inclústrias nascentes de mão-de-obra ba-riìtrr e disponível. Dai a modificação: cabia estimular orrlrtrimônio e a manutenção das crianças. Mais umâ vez('ssa meta foi atingida por meio da aliança com as mLÌ-llrcres, ao se valorizar a circunstância de, nlÌma famíliaorcleira e ascendente, ainda que de proceclência proletária,l esposa não deveria trabalhar, e sim voltar-se às suas fun-cr)cs, agora promovidas como natllrais, quais sejam, os encar-gos domésticos e o cuidado das crianças.

Stone igualmente salienta a ascensão do modelo familiarorientado para os filhos, o que acontece sobretudo na bur-.qLresia, ocasionando LÌma nova qualificação da figura lnater-ne enquanto personagem dominante da estnÌtLl1? doméstica:

Não há clúviclas de que, entre 1660 e 1800, aconrecerammucÌanças significativas na prática de criação das crianças, parti-cularmente entre a alta br-rrguesia e os profissionais liberais. Oscueiros apertados deram h-rgar a roupas soltas, amas-deleitepagas à amamentação materna, a dominaçâo da vontade pelaforça à permissividade, a distância formal à empatia, assim que a

mãe se tornou a figura dominante na vida das crianças.8

Todavia, no redlÌto da classe proletâria, o processonão se dá com a mesma uniformidade. Donzelot assinala oscliferentes esforços, ao longo do século XIX, não apenaspara consoliclar a vida doméstica do operariado, com base

39

B stoNn, Lawrence. op. cit., p.284.

Page 19: A Literatura Infantil Na Escola

rì() rnesmo centro, a mulher, como para garantir a eclucaçãocl:rs crianças. Entretanto, não apenas estas continlÌaram a.scr abandonadas precocemente, quanto, no caso de suaconse.ação na família, obrigadas a trabalhar ceclo, tratadascom violência ou então negligenciacras.g Nessa meclida,embora o modelo familiar burguês pretendesse se univer_sa,lizar pof sells tfaços característicos - a saber: a valoriza-ção da unidade interna e dos raços de afet{ elevanclo-se aimportância da mulher e da criança; o estímulo à privaci-clade, diminuindo tanto a ingerência cros criaclos na vicrafÌrmiliar, quanto a influência clos parentes _, ele não impecleíÌ manutenção da clivisão social e a permanência clé umtratâmento diferenciado dos cidadãos, cle acorclo com ointeresse do Estado moderno.

O êxito no processo de privatização cla família _ maiorna camacla burguesa, menor entre os operários _ gerouIrrna lacuna, referente à socializaçâo cla criança. Se a con_figuração da familia burguesa leva à varorização clos firhose :ì diferenciaçâo cla intância enquanto faixa etâria e estra-tct social, há, concomitantemente, e por callsa disto, um iso-larÌento da criança, separando-a do mundo aclulto e da rea-lidacle exterior. Nesta medicla, a escola aclquirirá nova sig-nificação, ao tornar-se o traço de união entre os meninos eo rnunclo' restabelecendo a unidade perclicra. philippe Arièsassocia a esse fenômeno a ascensão cla pedagogia e clocnsino modernos, baseados nas classes Oe iaide, homo_gôneas e encadeadas, visando inserir progressivamente ospequenos no mundo.10 Contudo, também a instituição es_

,, rl:rr rr1)rcsentou respostas particularizadas nas clil'cl'crttcs, ,ilìlilclus, o que correspondeu, no plano da educação, lì

grr.rticlr social no plano comunitário. Desse moclo, caltc,rvt'r'istrar as circunstâncias peculiares do meio ambientc c

vivi'r'rcin clos jovens de proveniência, respectivamente, btu-1lr rL'slÌ e proletária.

A criança burguesa encontra-se plenamente integra-r lrr rì() contexto familiar, solidificado para resguarciá-la. O

,uÌL'r.Ìte dessa proteção é a personagem materna, o que dír

rrrrr cmbasamento histórico e social ao complexo do Édipo,,'onfbrrne Stone e Poster.ll A mulher alÌmenta sua parti-cil>eção na organização doméstica, embora, como no caso

r l:r criança, o acréscimo de importância no círculo privado da

l:rniília corresponda à exclusão da esfera púrblica, acessívelrì toclos durante o período de predomínio da estnttura de

linhzrgens e clientela. Mulher e criança, mãe e filhos, cres-('cnÌ em suas ftrnçÕes internas, Llma vez que se isolam doinrbito exterior, e também este retraimento dá novas dimen-sires ao trauma edipiano num meio burguês.

A situação entre os proletários não é idêntica. A pre-scrvação da criança visa à formação e mânutenção de umcontingente obreiro disponível; e lega-se essa tarefa à familizr, dentro da qual a responsabilidade maior cabe às mães.

Contudo, devido à necessidade premente de aumento da

renda familiar, os menores são jogados pelos pais no mundocom muito maior rapidez e violência. Por sua vez, os adul-tos não cumprem seu papel integralmente, o qìie justifica a

reação dos poderes público e privado, intensificando sua

11 cf. postnR, Mark. Op. cit., p. 42: "o segreclo do Éclipo está aquilocalizado; nâo nos belos mitos da Grécia antiga, mas no prosaico larburguês"; e STONE, Lawrence. Op. cit., p. 115: "Atualmente estír bast?nte

claro que quatro dos principais traumas (oral, anal, genital e edipiano)que Freud pesquisou entre sells pacientes e que supôs como universais,dependem de experiências peculiares à sociedade de classe rnédia doperíodo europeu vitoriano, de onde vinham seus pacientes."

9 Cf. a propósito STONE, Lawrence. Op. cit., p.294:*Entre a rnassarl.s r.'uito pobres, os testem.nhos clisponíveis slrgererr que o compor-(rÌrÌrcnto comll'' de r-''itos pais em relação a seus filhos era freqüàte_rììcntc' inìprevisível e, muitas vezes, indiferente ou cruel.,,

Cf. a propósiro ARIÈS, philippe. Op. cir., p.232:,,Como se alìrlríli;r ur.dcrna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escora, ou, aorìÌcrì()s, <1uc o híbito geral de educar as crianças na escola.,,

4o47

Page 20: A Literatura Infantil Na Escola

irrlt'r'ÍcrC'ncia no quadro doméstico operário. Assim, apare-( ('rìì :Ì^s organizações filantrópicas que, dirigidas zìs camadaspolrrrlrrres, procuram sanar as dificuldades internas cla farní-lirt (rnenos as de ordem financeira), interuindo n2Ì slÌa intirni-rlrrclc. !. a freqüência à escola recebe novo estímulo, o quet()r'na esta instituição acessível e aberta a toclos os compo-rìcrìtes cto corpo social.

Se a escola tem essa procedência liberal, procurandouniversalizar o conhecimento, a ênfase na freqtiência clorulr-rno às aulas, no entanto, terá um papel icleológico bas-tunte compreensível, relacionado à sua furnção de instru-nÌcnto saneador dos contrastes sociais. Seu funcionâmentocttrtcÍeriza-se por invefter simetricamente a atividade ma-terna, na medida em que lhe cabe reintroduzir a criança narealiclacle externa. Contudo, mesmo âssim, exerce uma tarefafetninina, uma vez que atua como mediadora entre o mlÌn-clo interior do pequeno e a sociedade. Por sua vez, estaúltima só aparece ao estudante de modo indireto, via livrosclicláticos, laboratórios, conferências, mapas, clando-se aindaa convivência social apenas entre os garotos, e não com osaclultos. É, pois, outra modaliclacle c1e clausura, que tam-bém reforça o estado pueril e retira a criança do con;'untocla sociedade.

Mais uma vez cabe distinguir o que diz respeito à cri-ança proletâria. Ela tem maior vivência mundana, de mo-do que a escola não pode pretender concorrer com oaprendizado qlle vem das ruas. Ainda assim, a educaçãoformal é imprescindível, uma vez que possibilita a separa-ção entre o jovem e o adulto, tarefa que a familia, e sobre-tudo a mulher, preenche de modo imperfeito. E é quandoa escola quer dissolver os laços que prendem os meninosà vida social, como no caso dos trabalhadores, que semostram claramente seus objetivos isolacionistas. Pois foipor causa dos alunos oriundos da classe operâria que oensino tornou-se obrigatório na Europa, a partir do séculoXIX. Assim, foi retirado do meio proletário um contingente

1+2

significativo de mão-de-obra, com o fito de protegcr lt irllrttt

ciá e evitar o aviltamento dos salários. Ao mesmo tclìÌl)()'

porém, essa providência provocou a diminuição da rcncllt

iamiliar, o que repercutiu necessariamente no aumento cllt

produtividade do adulto.Donzelot descreve o fenômeno' com base no fato sa-

bido cle que, no século XIX, eram as crianças que recebiam

melhores oportunidacles de emprego' Mão-de-obra mais

baraÍa, gerâvâm LÌm lucro imecliato; porém' menos habilita-

dos, apresentavam produtividade menor' Além disso' empre-

gnndo os filhos, os adultos passavam o dia em bares' parti-

ãiparrdo de movimentos políticos olr provocando violência'

Hãvia urgência em ocupá-los exaustivamente' assim como

em capacitar os operários do futuro' Fazenclo obrigatório o

ensinó, as crianças eram retiradas do mercado; porém' era

preciso estimular os pais a colocarem os filhos no colégio'

bi, o pro."dimento adotado pelo Estado:

Somente a eclucação gratuita não era a solução' Dever-se-ia

entãoclecretarurlsistemasimplesdeedtrcaçãocomptrlsória?Não,taÌ proposta chocava seriamente com a lógica liberal' Então por

que não invefter ^ l^trcú Valemo-nos da isenção de pagamento

)n ^ ^t ^í, famílias que estavam imbricadas em blocos de depen-

àêncla e cla obrigatorieciacle contra aqueles que viviam marginaÌ-

mentenosdúbiosvestígiosdasantigasreclesdesolidariedade.lz

É nessa medicla que se desvelam o sentido enclausu-

rador clo ensino e as condições em que se dá a formação

cla criança no meio familiar atual, seja rico ott pobre'

A FUNçÃO Dà LITERATURA INFANTIL

A psicologia infantil responsabiliza-se pela teoria da

formaçáo cla criança; sua aplicação no campo didático rela-

12 ooNzilo! Jacques. op. cit', p' 76-77'

43

Page 21: A Literatura Infantil Na Escola

( i()lrr .s(ì Ì pcclagogia. E repercute ainda no terÍeno artísti-r',r, rJtrrrìclo clo aparecimento da Ìiteratura infantil. Assim, at'r.t'rgôncia deste gênero explica-se historicamente, na me-tlirLr cr'que acontecelÌ em estreita ligação com Llm contexto.s,r:irrl clelimitado pela presença cla família nuclear domés-ri<'rr c particlìlarização da condição puerir enquanto faixac'tÍria e estaclo existencial. Todavia, tornou-se um clos ins-t.rÌrÌlentos pelo qual a peclagogia armejou atingir seus obje-tiv.s'13 A. c. Baumgãftner clenuncia a prioricÌacre das moti-veçÕes eclucativas sobre as literárias, quando cla gênese,clurante o século XVIII, cla proclução cle textos jovens:

\O que chamamos de literatura infantil ,,específica,,, isto é,os textos escritos exclusivamente para criençls, tem sua origemprimariamente nâo em motivos literários, r.nas peclagógicos.la;

Em decorrência disto, afirma aincla o autor que ,,a lite_ratura infantil é primeiramente um problema peclagógico, enão literário".15 por tal razão, se clecorre de uma-siiuaçãoI'ristórica particular, vinculada à origem cla família burguàsae cla infância como "classe" especial, participa ciesta cir-cunstância não apenas porque provê textos a esta novafàixa, mas porque colabora em sua dominação, ao aliar_seao ensino e transformar-se em seu instrumento.

73 V. ^

propósito a relação estabelecicla por IìAACKE, Dieter. Derjunge Leser in sozialisationsprozess. Zur Konstituition von Realitât. In:Modern realistic stories for cbildren ancl 1o,ng people. l6th IBBy-Congress. Germany: Arbeitskreis fürrJugenclliteratÌrr e. V., 7978. p. 49:,,Aexistência de um mercado próprio do livro infantil e juvenil é umainvençâo da pedagogia (cujo primeiro ponto alto deu_se clurante aIlustmçào), e a pedagogia é uma invençâo cla sociedade burguesa.,,r+ BaUMGÀRTNER, Arfrecr Clemens. Realistische Literatuifür Kinder.Moglichkeiten und Grenze. rn: Modern realistic stories for cbildren anclyoung poaple. 16th lrlBy-congress. Germany: Arbeitskreis fiir JugenclJite-ratur e. V., I9lS. p. 127.

15 r.l. tb., p. r24.

44

Cabe, todavia, colocar a questão não apcnus (lc :lt'ortkr corn uma sociologia da iniância, mas tomar c<;rno lr:r.s('

rr vivência que esta tem no mundo, em nível propriaurcrrtr-,t'ristencial. K. W. Peukert, estabelecendo um fundarncnttr;uìtropológico para o livro infantil, o que pocle se clar .so-

rrrcnte se estiver centrado na criança, caracteriza o ntuncl<;irrtcrior desta como um "espaço vazio"; e explica: "'o espzr-

ç<r vazio'não ê vazio porqlle as crianças aincla não vive-rirrÌ-ì, mas porque não poclem orclenar as vivências".16 Assim,sc a criança - devido não só à sua circunstância social, mastrrnrbém por razões existenciais - se vê privada ainda derrnt meio interior para a experimentação do mundo, elattccessitará de um suporte fora de si que lhe sirva de auxi-liur. É esse lugar que a literatura infantil preenche cle moclolxtrticular, porque, ao contrário da pedagogia ou dos ensi-rìlÌrnentos escolares, ela lida com dois elementos adequa-rlos para a conquista da compreensão do real:

- uma história, qlÌe apresenta, de maneira sistemática,ls relações presentes na realidade, qlÌe a criança não podeperceber por conta própria:

A criança entende a l-ristória sefiì estes pressupostos [doadultol. Sua compreensão da realidade, existência e vida nâo -ainda nâo - se baseia em pÍocessos lingtiísticos de comunicaçâo,mas nas relações sociais primárias e nas próprias atividades. Ashistórias infantis desempenham, pois, uma primeira forma cle

comunicação sistemática das relações da realidacle, que aparecenìà criança numa objetividade corrente. Ou, por oLltra: as históriasinfantis sâo uma espécie de teoria especulativa além da atividadeimediata social e individual da criança.17

- a linguagem, que é o mediador entre a criança e omundo, de modo que, propiciando, pela leitura, um alarga-

16 erUfnnf, Kurt \iüerner. Zr.rr Anthropologie <les Kinclerbuches.In: HAAS, Gerhard (ed). Kinder- undJtrgendliteratur. Ztr Typologie undFtrnktion einer literarischen Gattung. StÌrttgart: Reklam, 1976. p. 95.

77 rcL. ttt., p. az.

45

Page 22: A Literatura Infantil Na Escola

rì('llt() ckr clomínio lingüístico, a literatura preencherá umaIurrç':ìo cle conhecimento: "o ler relaciona-se com o desen-v<rlvirrrento lingtiístico da criança, com a formação cla com-plc'cn.são do fictício, com a função específica cla fantasiainlìrntil, com a credulidade na história e a aquisição deslr lrer".1B

Em vista dessas peculiaridades estruturais, a literaturainfrrntil contraria o carâter pedagógico antes referido, com-lrreensível com o exame da perspecliva da criança e o sig-rrificado que o gênero pode ter para ela. Sua atuação dá-seclentro de uma faixa de conhecimento, não porque trans-mite informações e ensinamentos morais, lnas porque pocleoutorgar ao leitor a possibilidade de desclobramento clesuas capacidades intelectuais. O saber adquirido dá-se, assim,pelo domínio da realidade empírica, isto é, aquela que lheé negada em sua atividade escolar ou doméstica, desenca-cleando um "alargamento da dimensão de compreensão,,19e a aquisição de linguagem, produto da recepção da his-tória enquanto audição ou leitura e de sua decodificação.

Em razão disso, explicita-se a duplicidade própria danatureza da literatura infantil: de um laclo, percebld" d"írptica do adulto, desvela-se sua participação no processocle dominação do jovem, assumindo um caráter pedagó-gico, por transmitir normas e envolver-se com sua formaçãomoral; de outro, quando se compromete com o interesse clacriança, transforma-se nlÌm meio de acesso ao real, na me-clicla em que facilita a ordenação de experiências existen-ciais, pelo conhecimento de histórias, e a expansão de setrclomínio lingüístico. Essa duplicidade assinala sua limitação,gerando o desprestígio perante o pírbÌico adulto, já que estenão admite o legado doutrinário que lhe transfere.

lB t.t. ib., rr. 79.19 r.l. ib., p. s4.

Vinculado o descrédito ao compromiss() c()tìì () (,nr,ln() c com o processo de dominação da intâncie, zr litcr.:rtrrr:r inÍÌrntil, ainda assim, tem o que oferecer à criançtr, clc.sclt,,1rrc cxaminacla em relação à sua constmção proprianrcrrtt.lit.r'írria. É quando se verificam os benefício, q.,,"-, histíri:r(^ () clisclÌrso trazem para o leitor. Tal construção pocle scr.t'rrtcnclicla aincla de acordo com olltra peculiariclacle artísti-t:r clo gênero: é o fato, assinalado por peukefi, de não co-rrlrccer fronteiras. com efeito, o livro infantil clesconheceurìì tema específico, não é determinado por uma forma(scja verso oll prosa, novela ou conto) e, ainda, escorregalivrcmente da realidade para o maravilhoso. Além clisso, incor-l)ora ao texto a ilustração e aclmite modaliclades próprias,('oulo o conto de fadas ou a história com animais.

Essa amplidão, simétrica e contrâria à limitação antesrncncionada, decorre da relação particular que estabelececolÌÌ o leitor. Carecendo a criança de horizonte qualquer,(llre, no adulto, provém de sua vivência acumulacla notcrnpo, ela é permeâvel a tudo; daí a maleabiliclade clas ba-Iizas oferecidas aos textos ditos infantis. Tal fato fornece acstes últimos LÌma grande margem de criativiclacle, que po-cleria ser capitalizada. Todavia, não é o que acontece, Llmavez qlÌe, de modo geral, eles apenas se apropriam, doponto cle vista técnico e temático, dos resultaclos alcança_clos pela literatura para os adultos. Nessa medicla, portanto,embora a literatura infantil tenha originaclo algumas espéciesexclusivamente suas, como a história de animais, ou entãoadotado olÌtras de modo irremediável, como o conto defadas, ela não apresenta urna trajetória que faça frente àliteratura, propondo técnicas e recLÌrsos próprios cle expres-são, preferindo acompanhar cie longe o progresso di artepoética.

Com base no.s aspectos apontados, examinam_se os pro_blemas relativos ao realismo e à verossirnilhança. O fato deoferecer um campo ilimitado de ação no ârnbito narrativoparece privar a literatura infantil de verismo. Assim, a exi_

464/

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rla'lì('i;r (lc rm realismo pode ser contraposta à inevitávell)r'('scrìçlr cla fantasia, incorporada às histórias para a infãnciat lc'sclc suas origens.

A parceria com o fantástico remonta aos começos daPr,clrrção orientada ao público infantil, quanto os primeirosc:scritores, como Charles perrault, no século XWI, e osirntâos Grimm, no início do século XIX, adonaram_se closc()ntos de fadas. Esses relatos fundam-se preferencialmenter-ìLrrìa ação de procedência mágica, resultante da presençaclc um auxiliar com propriedades extraordinárias que sepÕc a serviço do herói: uma fada, um duende, um animalcncantado. Essa colaboração voluntária possibilita a supe_ração, por parte da personagem central, do conflito quecleflagrara o evento ficcional; e sua ajucla é imprescinclívelclevido à condição sempre precária oLÌ carente cla figuraprincipal.

Explicando a discrepância entre o estaclo de penúriaeconômica, afetiva ou intelectual do agente cja narrativa _r,rm soldado pobre, uma enteada rejeitada pela família, umfill-ro mais moço e pouco inteligente - e a onipotência cloauxiliar mágico, Dieter Richter e Johannes Merkel aludem àorigem sociológica destes contos. Esses provinham das clas_ses mais pobres e inferiorizadas da pirâmide social da Euro-pa centfal: os camponeses e os artesãos urbanos, que sedefrontavam com uma estratificação rígicla e imutável, <lemodo que, embora revoltados, não podiam transformá-la.20Somente pela intervenção de uma força sobrenatural a si_tllação poderia ser revertida - assim, o soldaclo destrona orei, e a pobre enteada revela-se a preferida do príncipe.Contudo, esses heróis nada fízeram poÍ seus próprios meios,tão-somente aceitando de bom agrado a contribuição closentes superiores.

20 ueRrrt, Johannes; RICHTER, Dieter. Mcircben, pbantasie unclsoziales Lernen. Berlin: Basis yerlag, 1974.

48

A fantasia tem um nítido sentido cornpcn.s:rtírlio, lt'1iitirrto, segundo Richter e Merkel, caso se pense cltrc ck'r'olrr.,lc urì-ìa situação de absoluta depauperação e imltos.silrili,l:rclc cle mudar o sistema. Por essa mesma tazão, os c()tìt().s,lt' f:rdas revelaram-se bastante adequados ao novo púl;lic'ot'rrrcrgente. Em primeiro lugar, porque não se pode csc:r-rÌì()tear a circunstância de que'a fantasia é um importxntc:;rrlrsíclio para a compreensão de mundo por pafte da cri-:uìç'a: ela ocupa as lacunas que o indivíduo necessaria-rììcnte tem durante a infância, devido ao selÌ desconheci-rÌìcnto do real; e ajuda-o a ordenar sllas novas experiênci:rs,Íì'cqtientemente fornecidas pelos próprios livros.21 No entan-to, a fantasia pocle tomar a con-figuração clo sonho, enquantotrrrr desejo insatisfeito que se realiza apenas de modo repa-r-rttório. É essa significação que o ente maravilhoso, pre-scnte no conto de fadas, pode corporificar: representará o;rclulto onipotente, aliado e bom, que soluciona o proble-rnu maior do herói, de modo que este se sujeita à domina-c-ìo do olÌtro, sem questionar de onde provém seu poder()Lr quem o delegou a ele. Na passagem do relato folclóri-co à literatura infantil, perdeu-se o conteúdo de rebeldia;rìlas permaneceu o elemento de natureza fantástica, com umconteúdo escapista e uma representação do estado de im-l)otência do protagonista central e, por extensão, da criança.

Contudo, pelas razões assinaladas, a fantasia é com-ponente indispensável do texto dirigido à intância; devido1r este fato, somado ao seu comprometimento com o inte-resse adulto, ela parece banir dos livros o realismo. E esteresultado pode ser mais uma comprovação do desprestígioda literatura infantil.

27 v. a propósito PERKERT, Kurt \Merner. Op. cit., p. 85: "Quantomenos as palavras sâo conhecidas, tanto mais fortemente a fantasia épressionada a produzir, conceitualmente e de modo substitutivo, asrelações de significaçâo." Cf. igualmente BETTELHEIM, Bruno. A psi-canálise dos contos defadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

49

Page 24: A Literatura Infantil Na Escola

A. (). Iì:rumgâftner coloca o problema em olÌttos ter-nr(),.i: l'ct()lÌlando uma tradição aristotélica, vincula-o pri-rrr,rltlirrlnrente às exigências de verossimilhança, fundadasrrrurr clcsernpenho possível do ser humano, traduzido pela;rç,'rì<> cla personagem.22 Ser realista é, portanto, correspon-tlcr', no plano artístico, àquilo que é próprio ao humano nopl:rr-rct existencial. Nessa medida, uma história cle aventuras()u Lrm conto maravilhoso são válidos quando apresentamcocrência interna (leis cle possibilidacle e necessiclade) ecoinciclência com um conceito de humanidade (lei da veros-sirnilhança externa).23

Todavia, essa exigência pode ser desobedecida, nãoclcvido à presença da fantasia, mas ao cumprimento dasprcrrogativas pedagógicas. Por callsa delas, os Ìivros sirolevados a embelezar o real e oferecer modelos perfeitos decornportamento, assim como a falsificar certas circunstân-cias ou obscurecer outras. A deforrnação repercutirá nacoerência interna da narrativiÌ, mas não provirá da ocor-rência de elementos de tipo maravilhoso, o que revela aíndole pseudodicotômica da contraposição verismo X fan-tasia. Nessa medida, mesmo a clenúncia da realidade, a quevisa cefto tipo de livro para jovens, pode ser tão fâlsa quan-to o texto farto de intenções moralizantes, porque em am-bos repousa a mesma meta pedagógica.24

22 Cf. sauÀ4cÃRtNnn, Allrecl Clemens. op. cit., p. 118.23 v. a propôsito ARISTÓTELES. poética. Porro Alegre: Globo, 1966.

A respeito das leis de construçâo artística, cf. KITTO, H. D. F. poiesis.

Structure and thought. Berkeley and Los Angeles: Universiry of CaliforniaPress, 1966; FUHRMANN, Manfred. Einfiibrung in die antike Dicbtun-gstbeoríe. Darmstadt: 'l7issenschaftlicl.re Buchgesellschaft, 7973; LIMA, LttizCosll. EstnLturalismo e teorict da literutura. Petrópolis: Yozes, 7977.

24 Cf . ^

respeito as observações cle John Rowe Townsencl: ,'Está

extinto atllalmente o espírito didático dos livros para crianças? Tendemosa faÌar e escrever.cotno se estivesse. Ele é o contrário à nossa visão clerclaçõcs felizes, relaxadas e mais ou menos igualitárias entre gerações, o(3le encaramos atualmente como ideais. Todavia, a tendência a instruir

50

EO dilema realismo X fantasia só pode scr rcsolvirLr r.r,

lx)sto em outros termos. Diz respeito antes âo cho<1Ut.t.rrtrr.r>s condicionamentos de que padece a literatura inÍìrnlil ;rortrilhar o caminho do didatismo e as possibilidacle.s ilirrritrrrlrr.s de criação, resultantes da natureza ainda molcl:lvcl <l<r

lcitor, o que pode repercutir em experimentalismo inovl-clor ou expansão das técnicas literárias e das vias narrativtÌs.

Deste modo, o conflito vivido pela literatura infantil ó,crn outras palavras, entre ser ou não ser literatura, o qllenÌo significa necessariamente uma diluição na generalicladerla arte literâria, devido à constituição específica de seur-ccebedor.

Í),{ PRODUÇÃO Ã LETTURÃ

A descrição do conteúdo da literatura infantil mostra(lue seu dilema decorre da necessidade de preenchimentoclc uma missão não propriamente literâria em sua origem eílrncionamento, de que resultam questionamentos reÌativosìr oposição entre fantasia e realismo ou à inexistência cleuÍna preocupação experimental. Todavia, cabe assinalar(lue a compreensão do gênero, em geral, não se faz porcste caminho. Pelo contrário, ela se vê classificada em ana-logia à tipificação das relações entre o adulto e a criança,

<r jovem está profunclamente inserida na natvÍeza humana. E se alguén-rol>servar a 'qualidade' dos livros infantis de hoje, e ainda mais o quecstá escrito sobre eles, é difícil evitar a conclusão de que o cliclatismo está:rinda muito vivo e que, envolvendo as fraquezas intelectuais, estanìoslptos a rejeitar o conceito ao aceitar a realidade. [...] Anos atrás, loga-rnos o velho didatismo (o moralismo desajeitado) pela janela; ele voltoulrela porta, vestindo roupas modernas (valores inteligentes) e nâo conse-guimos nem mesmo reconhecê-1o." (TO\íNSEND, John Rowe. Didac-ticism in modern dress. In: EGOF4 Sheila; STUBBS, G. T.; ASHtEy, L.1.. Only connect. Readings on children,s literature. Toronto and NewYork: Oxford Universiry Press, 1969, p.33-34.)

51

Page 25: A Literatura Infantil Na Escola

r'('lì(l()-llìc intputadas, por conseguinte, as qualidades atri-lruíclrr.s lì infância em geral, quais sejam: a menoriclade, airrÍi^rioriclacle e o estágio de "ainda não" literatura.

'l'al qualificação deriva do desconhecimento dos fato-rc.s cle produção, vinculados todos ao adulto, responsávell)()r rÌm circuito que se estende da criação das histórias àcclição, distribuição e circulação, culminando coln o consu-lÌìo, controlado sobretudo por pais e professores. Em vistaclisso, a criança participa apenâs colateralmente nesta se-clriência, o que assinala a assimetria congênita aos livros acla destinados.25 É o recurso à aclaptação que indicará osrrreios de relativizar este fato; o autor adulto identifica aperspectiva de seu pequeno leitor e solidariza-se com ela:

A particularidade mais geral e fundamental deste proces-so de comunicação é a desigualdade entre os comunicadores,estando de r.rn'r Ìado o autor adulto e de outro o leitor infantil. Eladiz respeito zì situaçâo lingtiística, cognitiva, ao s/atassocial, paramencionar os pressllpostos mais importantes da desigr.raldade. Oemissor deve desejar conscientemente a demoliçâo da distânciapreexistente, para avançar na direção do recebedor. Todos osmeios empregados pelo autor para estabelecer uma comunicaçãocom o leitor infantil podern ser resumidos sob a denorninaçâo deadaptação.26

Entretanto, é preciso reconhecer que permanece a trni-Ìateralidade do processo, tanto quanto a superioridade epresença maciça do adulto. Assim, se os fatores de menori-

25 A propósito cla assimetria, cf. Lypp, Maria. Asymetrische Kom-munikation als Problem moderner Kinderliteratur. In: KAES, Anton; ZIM-MERMANN, Bernhard (ed). Iiteraturfür Viele I. GÕttingen: Vandenhoecktund Ruprecht, 1975.

2Ó LYP| Maria. Op. cit., p. 165. Gote Klinberg caracïeriza a adap-tação descrevendo-a segundo quatÍo modelos: adaptaçâo do assunto, daforma, do estilo e do meio. Cf. KLINBERG , Gote. Kinder- unclJugendlite-raturforccbung. Eine Einführung. Koln-Vie n-Graz: Bóhlaus Wissenscha-ftliche Bibliothek, 1973.

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clucle e inferioridade com que o gênero é a<pril:rl:rrl(, rr;l(rsrìo ocasionados pelos consumidores nÌirins, a tclltlttiv;t (l(.rcproduzir a condição destes por parte do escritor, rr liln rlt.sllperal a assimetria mencionada, converte o texto rrrrrrr:rilÌìpostrlra, que repercute no enfraquecimento cla Íìrlltr:r;rrtística, justifica a acusação de simulacro oLÌ pseuclolitcr:rtura e legitima o descrédito.

A desigualdade entre o emissor e o leitor interferc,pr>is, no processo cle escrita, restringindo o campo de cria-ç'io da obra. Mais LLma vez transparece o dualismo da litera-ttrra infantil, evidenciado agora com base no exame de suzr

yrlodução; visto o fenômeno do ângulo de sua recepção,rìovas características podem ser acrescidas a ele.

Que a literatura infantil não pode prescindir de umrccebedor determinado, foi indicaclo anteriormente: não1Ìl)enas a emergência da infância enquanto público diferen-ciaclo, carecendo de (inXormação, motivou o aparecimen-to do gênero em dada época, colno este sempre pôde lhelÌrrnecer um subsídio existencial e cognitivo inalcançávelpcla educação domésticzr ou escolar. Essas duas qualifi-cações têm, por slla vez, carâter contraditório, refletindorrspirações diversas, a do emissor adulto e a do beneficiáriocriança, reforçando a assimetria mencionada, gerando arrclaptação e configurando, de novo, uma dualidade. Dernodo que, da perspectiva do destinatârio, o que a literaturainfantil tem a lhe proporcionar deve provir necessariamenteclc sua inclinação dual, a fim de não desmentir ou falsificarslra natureza.

Nessa medida, oscilando o texto entre a ajucla intelec-tual, produto de sua elaboração Iiterâria (história e discur-so), e a formação pedagógica e moral - o que pode muitolrem acontecer no interior de uma mesma narrativa -, elecxibe ao leitor a imagem de uma realidade concomitan-tcmente solidária e inimiga, como é o próprio mundo adul-to e suas instituições (escola, assistência médica etc.). Esselrspecto, por sua vez, pode ser configurador de insegu-

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l;ut(':t, lì1Ì tncdida em que ao recebedor caberá Llma toma-tl;r tlc clccisão diante de um objeto que não apresenta con-t( )r'rì()s clefinidos, nem objetivos explícitos.

Além disso, o texto tornar-se-á tanto mais inquietante,

lx)r(pÌe pode penetrar impunemente na privacidade e norrrr.rnclo íntimo do leitor - setores que a escola, por exem-plo, não atinge, ao se opor, até geograficamente, ao lar e,

cspecialmente, ao refúgio último da criança, seu dormitórioQtursery), espaço da leitura. Assim, é por intermédio dalcitura, hábito vivido na solidão, que zì subjetividade da cri-ança é virtualmente invadida. Esse resultaclo pode ser igual-lÌìente obtido pelo brinquedo (produto cujo aparecimentose deu no século XVIII, decorrendo também da ascensãocla infância) ou jogo, mas com uma diferença: estes últimossão ações oriundas da inventividade dos próprios partici-pantes, o que nunca se passa com o livro, recebido prontoe acabado. Desse modo, se a obra literária, por um lado,pode oferecer um horizonte de criatividade e fantasia en-quanto ficção, solidarizando-se com o mundo infantil, em-bora reforce a sua diferença, por outro, ela reproduz, porseu funcionamento, os confrontos entre a criança e a reali-clade adulta. E pode fazê-lo de maneira mais eficiente,porque atinge o âmago do universo infantil, alcançandouma intimidade nem sempre obtida pelos mais velhos; e

vem a converter-se em hábito, o de leitura, uma das metasprioritárias do ensino e da arte literária, qr.re precisa estim-ular intermitentemente seu próprio consumo.

O resultado derradeiro dessa operação cle intercâmbioentre o texto e seu destinatârio ê a integração deste à cul-tura burguesa. Ter nascido contemporaneamente à famíliamoderna de classe média; incentivar a especificidade cla

infância como faixa etâria e condição humana; assumir umcarâter pedagógico, ao transmitir valores e normas da socie-dade que a gerou - todos estes aspectos, já mencionados,comprovam essa inserção. Contudo, há mais um fator caÍac-teristicamente burguês que merece menção - a literatura

51+

rrrl:rntil vincula seu aparecimento à emergêncilt (lc ttltt ttot',,lr:rlrito, o de leitura, e existe para propagá-lo. I., rt le'ilttt:t,( ()rìì() pr/atica difundicla em diferentes camaclas soc'i:tis t'l:rirrrs etírrias, isto é, enquanto um procedimento clc olltcttr;r() clc informações cotidiano e acessível a todos, c ttlttrr.rlo crudito, é uma conquista cla sociedacle burguesa tltr:,,'t'trlo XVIII. A expansão do mercado editorial, a ascensittr, k r jornai como meio de comunicação, a ampliação cla reclc,'r.t'r>lar, o crescimento das camadas alfabetizadas - toclos,':'tcs são fenômenos que se passam durante o Iluminismo,:,('lìclo esta filosofia a sistematização e culminância teóricil,lrre justifica a práxis social, voltada à aceleração do proces-:;o c:ivilizatório. O ler transformoll-se em instntmento deilrrstração e sin:rl de civiliclade. É o que destaca Dieterl|urcke: "a leitura representa originariamente â arte bur-rÌucslÌ, que é um elemento da cultura burguesa", descreven-r k r u seguir os sinais característicos desta atitude:

Na representação da vida burguesa, a leitura desempenha

desde entâo um papel central, pois possui o iá clescrito momentocivilizatório: distanciamento da açâo, expansão do espaço inte-

lectual, aprolunclamento da sensibilidade, interiorização de opi-niões e princípios morais. Nenhuma dúvida: há uma estreita

relação entre o mundo social da vida burguesa e as formas da reali-

dade descritas nos livros, assim como a pretensâo colocada nestes

últimos. Esta reÌação tornou-se historicamente estnttural, comomostrou Norbert EÌias, e até hoje não foi suplantacla. "Cultura", domodo como ela se impôs na Europa em todos os câsos, é cultura

burguesa; livros são primariamente comoção burguesa, e a leiturados livros é primariamente expressão do nível cultural burguês.27

Por isso, cabia ser diftrndido o hábito de ler, o qLÌe, se

1;ocle ser compreendido como industrialização da cultura,:;isnificou igualmente socialização do conhecimento. Aoilìtclwir diretamente no contexto infantil, tornando-se umIuibito, o livro participa deste processo, trazendo seu bene-

27 gAAcrs, Dieter. op. cit., p. 44

<q

Page 27: A Literatura Infantil Na Escola

írci;rrir) l)lrr:r x reaÌidade que o produziu _ a dos adultos,(()lìì .scus valores de consumo. De modo que a leitura,.leritr cla convivência com a leitura infantil cla óptica dotk'.stinutírrio, incorpora a duplicidade que caracteriza este13i'ncro; como propiciadora de conhecimento, compreensãotlrr rcaliclade empírica e até mesmo meio de experimen-trrç-rìo desta úrltima; é igualmente um recurso para a inte-grlção do leitor mirim à existência burguesa, marcada pelaclicotomia entre o uso e a especulação, o setor clo trabãhoc a privacidade, a atividade comercial e olazer, reforçando<r individualismo e o isolamento, processos que a criançapxssa a vivenciar clesde cedo.

à LITERÃTURà INFÃNTII E O LEITOR BURGUÉS

Uma reflexão que procure abarcar a natureza peculiarda literatura infantil não pode evitar a verificação dos pris-mas diferentes e contraditórios que o gênero apresenta.Esse é um dos traços de sua relevância, não apenas porquese trata de uma espécie artística singular, enquanto talmerecendo reconhecimento teórico, mas também porqueinvoca a necessidade de uma ponderação sobre as relaçõesque estabelece, de ordem social, com o meio de ondeprovém, e estética, com a definição de literatura.

Ao se particularizar sell conceito, mostra-se imprescin-,dível o recurso à sua história, üma yez que as concliçõesque decretaram seu nascimento se imprimem nos própriostextos, aparecendo por meio do didatismo, da presença deinformações moralizantes e cla veiculação de normas de per-cepção estética. Assim, acaba por legar um horizonte deexpectativas - ético e/ou estético - a quem não o tinha. Éeste o limite externo do livro para jovens, que não se li-berta de uma índole teleológica, originada no caráter prag-mático e finalista da ideologia burguesa que patrocinou seuaparecimento. Assume então traços educacionais, fazendo-

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sc útil à formação da criança e capturando-a clctiv:lrìrcnr(,,;r. transformar o gosto pela leittrra nllrna disposiçâo l):lt.it (,('()nsllmo e para a aquisição de normas.

Contudo, na mesma proporção em qlle se auto-inr1t<-rcrrrrr alvo, a literatura infantil invoca um recebedor cletcrrrri:rrrrclo, cabendo-lhe atender a seus interesses. Esses são, pri-nrordialmente, os de posicionamento diante do real, que sc<Li a ele de modo fragmentário e descontínuo. É decisiv<rl)iÌra a sobrevivência do gênero que responda a essas soli_t'it'ções por intermédio de suas singularidades literárias: é:r linguagem narrativa que acaba por organizar a percepçãoirríìtntil do mundo, às vezes negado à criança pela escolat rrr pela familia. Por isso, o texto precisa ser coerente evcrossímil, sem o que não coincidirá com as expectativasrlo leitor. CabeJhe, pois, ser literatura, e não mais peda-riogia. Nessa medida, pode-se dizer que o sucesso cio livrorlcpenderá de sua orientaçâo paÍa o recebedor, clescle que('tìì termos literários e artísticos, jamais educativos, compro-r,:rnclo a correspondência simétrica nos dois movimentosrltrc conduzem à justificativa da existência do livro para airrlância: da produção pan a recepção, cla pedagogia para:r literatura. Desse modo, define-se umer metoclologia cle tra_lxrlho: .somente uma centralização no destinatário criança,,yuendo da compreensão da natureza do sujeito cla recep_r,rìo e de sua relação com a literatura ou quando do exame(l()s textos, legitima uma abordagem cla literatura infantil.

A questão da autonomia de tal moclalidade literária<lccorre dessa conclusão, já que sua especificidacle vincula-sc uo relacionamento peculiar mantido com o leitor, que nãopocle ser produzido nem por outra atividade, nem pela arterl:r palavra em outras faixas etárias. Entretanto, igualmentet'ssc fato restabelece sua unidade com a literatura, matriz deoncle se destacam os livros infantis, Llma vez que a qualida_rlc cle ordem literâria não somente é uma necessidacle intrín_.s(ìce, enquanto auto-afirmação do gênero, como também at onclição de enfraquecimento da inclinação peclagógica.

Page 28: A Literatura Infantil Na Escola

Como aqucll s()rÌlrrìl(' llrovilri cle uma realização miméticae verossímil, ck';rcorrlo c'<)lìì o postulado cla teoria da lite-ratura, torrìlr-s(' t'virlt'rrlt' cltrc tais criações apenas podem ser

consiclcnrcllrs lro:rs, st' vcrclacleiras em sua representação.A corrtliq':ro tlt' vclclztcle mais Llma vez permite a reto-

mecll rlo tlitl:rlisrrro. Scgt-tndo Baumgâftner, a inclinaçãopcrl:rg<i1iir':r rrrol iv:r () rÌìescaramento da verdacle; a teoria docnsirro, r'orrÍirrrrristl porque visa adequar o sujeito a LÌma

socit'tl:rtlt' rlut' <lcvc permanecer imutável, não pode ques-tiorr:rr's('u ('()rìt()rno social. Transferida ao texto infantil, elairrr;rctk' <1tr:rl<1ucr representâção verossímil, exagerando osIr':r<,,'os tk' positividade do statL$ quo oLt os sinais de nega-tivirl:rrlt' clos espectos marginais que possam desestabilizar olo<lo circrrnclante. Logo, não é o verismo da representaçãotlrrt' l.roclc suplantar esta dificuldade, se nele subsistir a inten-<-;ìo cliclíttica, mesmo que tenha em vista a denúrncia social;<rrr sc.ia, se nele vigorar a primazia da palavra adulta sobre ointcrcsse c1o leitor. Por essa r^zão, a plena realização literáriasigr-rifica a superação do dilema realismo X fantasia, assimcolÌìo da assimetria, proveniente da supremacia da pro-ch-rção adulta sobre a recepção infantil. O escritor precisaconsiderar a peculiariclade da criança e recorrer à adaptação;esta, porém, não pocle gerar ingenuidade ou impostura, poisos valores exigidos dela são idênticos àqueles que contampara

^ avaliação do universo literário destinaclo aos adultos.

Todavia, no debate realismo X fantasia, uma outra acll-sação sempre pesa: a de que inexiste a representação dosproblemas sociais e, sobretudo, das classes populares.2S A

28 Cf. po. exemplo IEESON, Robert. Cbilclren's books ancl class soci-

eIy. P^st and present. London: \{/riters and Readers Publishing Cooperative,1976. p. 12:_"Milhões de crianças da classe trabalhadora sabem, a partir daexperiência pessoal, o que tal vida pode envolver. Mas, para os propósitosdos livros infantis, elas positivamente não existem." Ou: "A classe trabalha-dora vista de dentro, a fim de dar às personagens a dignidade de uma exis-tência integral, é uma das maiores raridades em livros infantis" (id. ib., p. 38).

5B

vrrliclade desta incriminação revela mais uma vcz lÌ (.ir.t.rrrr.rr riçrìo ideológica da literatura infantil, decorrente clo tr.rrt:r-nì('nto diversificado que a sociedade proporciona às crianç'rrs.( l( )lìì() se descreveu antes, embora o conceito de infânci:rIt'rrlrr uma aspiração totalitâria por ser uma conseqüência,tlrrr-lnte o século XVIII, da tomada do poder pela burgue-:'i:r e, portanto, por sua cultura e ideologia cenÍralizada nalrrrrrília, de fato há uma cisão profunda no que se refere aotr':rturnento dos jovens provenientes de classes diferentes. Ar'r.irrnça burguesa deve ser preparada para assumir sualunÇão dirigente, a criança pobre precisa ser amparada parar'orrverter-se em mão-de-obra. Em ambos os casos, a fina-lirllcle social é única, porém o treino recebido é personali-'/lt(lo paÍa lideraq o ser humano demanda unidade interiorr' .srrúde mental, enquanto do proletário, para cumprir suarrrissão, são exigidas confiança na classe dominante e saúdelísicur. Portanto, o recebedor que solicita o tipo de suporte(luc o livro pode oferecer provém da burguesia, o que ex-r lrri o interesse e a necessidade de representação dos malessoc^iais. Circunscreve-se o último limite de literatura infantil,ricluclo, como os outros, por sua condição histórica e funçãosocial, fatores que, se estão na raiz de seu nascimento, for-rrram igualmente as barreiras de que se deve liï>ertar, para:rtingir a plena realização artistica e a autonomia.

Reproduz, assim, de certo modo, a situação de seu lei-(or, não por incorporar as qualificações de menoridade ouiníèrioridade, mas porque, para ambos, urge o rompimen-lo do círculo de giz da dominaçâo burguesa que, por inter-rnédio da ideologia da superioridade adulta, decreta suasubmissão e manipula seu descrêdito. Desvenda-se a uto-pia do gênero, que assinala, por outras vias, seu ftrndamen-Io lrumanista e a eventualidade de uma índole progressista,voltada à abertura de novos horizontes, dentro dos quaiscla pode mesmo desaparecer, assim como a condição depLrerilidade atribuída a seu recebedor.

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Page 29: A Literatura Infantil Na Escola

A LITERÃTURÃ IÌVFÃÏ{TILET{TRE O ÃDULTO

E A CRrÃNçÃ

Page 30: A Literatura Infantil Na Escola

,'t 'r'|ìAIÇAO ÃO LEITOR

tJrna reflexão sobre ^

natuïeza da literatura infantil não

1 ,r

'r lt' vir separada da considcração sobre o estatuto de sua

r..rir. A configuração desta última em livros científicos datarlr't''lX)Ca recente, mas, se se tomar em conta sobretudo orrr,rl() como o texto infantil é recebido no lar e nas escolas,r',trr ó', uma cefia prâtica, podemos estabelecer seus princi-1 ,.ris critérios. Nessa medida, verifica-se que a concepção que

(,'r(:ì 1r literatura infantil é, como sugere a expressão deNl.rlil Lypp, "adultocêntrica".1 Em outras palavras, embora',t j:r consumida por crianças, a reflexão sobre o produto, 'lcleciclo a elas provém do adulto, que a analisa, em pri-nrt'ir.() lugar, de acordo com seus interesses e que, além,li:;to, a descreve em comparação com o tipo de arte posta,r tlisposição dele, qual seja, a literatura propriamente dita,:,t'rrr adjetivos.

Conseqüentemente, embora o proclutor do livro infan-Iil scja o próprio adulto, o objeto produzido é visto, anali-:;:rrlo e classificado em analogia a seu consumidor, o leitorrnil'irn. Conforme Maria Lypp adverte, temos que "a menori-,l:rclc clo recebedor é transferida ao procluto literário".2

1 LYI'R Maria. Einleitung. In: L\?P, Maria (org.). LiteraturftirKinder.{ ;()ttingen: Vandenhoeck und Ruprecht,7977. p.8.

2 Icl., p. a.

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-E

'll:rrrsÍì)nÌÌ.rcla num gênero menor, ela absorve aindt o carâ-It'r' prrrvis(rrio da própria infância, tornanclo-se uma espécier lr' ":rinclzr não literatura" .3

A natureza ideológica dessa tomada de posição evi-<lencia-se de imediato, pois privilegia uma modalidade delitcratura em detrimento da criação para crianças, mimeti-zrtnclo a primazia atribuída à iclade adulta em comparaçãocoln o período infantil. Todavia, se a literatura correspon-(lcnte a essa faixa etâría tem sua importância estética dimi-nuída, é-11-re atribuída uma função social qlÌe a torna im-prescindível e que até mesmo decretou seu aparecimento:c:rbe-ll-re um papel preparatóÍio, isto é, tem uma missãoformadora que pode ser examinada em dois sentidos:

a) incute na criança certos valores, sejam eles de natu-reza social ou ética (ou ainda, ambas), não cabendo nestemomento investigar se estes valores são convenientes à so-ciedade (vale dizer, conformativos) ou ao desenvolvimen-to intelectual e psíquico do leitor (isto é, se colaboram naemergência de uma visão de munclo autônoma e inqui-ridora);

b) propicia a acloção de hábitos, que podem ser declois

- c1e consumo, incluindo-se aqui a freqüência ao textoliterário, ao estimular a aquisição de livros com certa cons-tância e a leitura permanente;

- de comportamentos socialmente preferidos, vistoque igualmente neste caso estes modelos atuacionais cor-respondem a variadas possibilidades, que se estendem cles-

de a adoção de boas maneiras até o estímulo a uma ativi-clade de questionamento das bases de organização cla

sociedade.Em todos esses casos, atribui-se uma tarefa eclucativa

à literatura infantil, complementar à atividade pedagógica

t'xcrcicizt no lar e/ou na escola, o que garantc .suir n(.(.(,:,:,1

rl:rclc e importância no seio cla vida social. Por cs.s:r tìrc;nr.tr;tt.:\o, o não-preenchimento de algumas dessas lirr'ìç.,.rt.s,,rr,lt'todas elas - seja porque a criança não lê, prcíi'rirrrltrlrlinc;ìr, ver televisão etc., seja porque certos text<ts s:rrr, , rrrsiclerados nefastos - pode desencadear a polêmiclr c rr

l,rrsca cle uma correção de rlÌmos, visando à reintroclrrç:lì<r,1, r Irítbito da leitura, pesquisando-se novâs linguagcrr^s,r('.rvlÌlianclo-se o poder de alcance do gênero artístico. l)c,;rr:rl<1uer moclo, nesta segllnda acepção cla literatura infun-til, srrlienta-se a contrapartidzì da proposição anteriormentcIrvrrlrÌ: apesar c1e ter carâter provisório e ser uÌn tipo clc

l,rorlrrçiro menor, espeihando a condição de seu leitor el,t nr'í'iciário, o texto para criançes pode atuar sobre ela,r, llt'tinclo neste caso a perspectiva do adulto, mesÍìo quan-,1,r t.stc tern em mente o interesse (atual e/ou ftrturo) clor, ,,'lrcclor. Nesse sentido, senclo "adultocêntrica", a teoria,l.r lilet'lÌtLlra infantil evidencia a contradição que esta situa-, ,r,, llrc transmite: visanclo manter os privilégios do adulto,r I'rotlrrção para crianças tem seu valor diminuído; porém,l','r t'sl1Ì fÌesma razão, tudo o qlle se espera dela é o qlÌe,'.r(lult() ali deposita, isto é, seus valores e hábitos sociais.i lr",:,.r lÌlcclicla, ela manifesta antes de tudo os interesses dosrr,,u'; vcll'ìos, e não os do universo infantil, de modo que,

' ir.r :rlsLrma analogia a estabelecer, ela está entre o gênerolrr, r.rrio clirigido à intância e a organização cla sociedade, rr ',u;t totalidade, conforme os maiores a concebem.

l'ol tudo isso, a produção de uma teoria da literaturarrrl,rrrtil clcve evitar a circunscrição à óptica adulta, na qualr,,'l.r :r ;tnntazia lhe é concedida, pois é o sujeito da pro-,irr,.Ìrr, tlo consumo (uma vez que são principalmente ost. il. ,llt(' c()mpram os livros, os professores que recomen-,lu,ì ,rì lcituras etc.) e da recepção de seus próprios textos., ',r nrr'llror-, cabe o exercício de uma reflexão que verifique., ' l.rlos cle tal pafiicipação e mostre a posição ocupacla1,, lr , ri.rrr(,'lr dentro deste processo particular de circulação

- -'6í"*'-"-,i ::,'ii,"l*lìs tÍ-;; &illrjl *i"iii:,i ï*j]ii

3 t.1., p. s

Page 32: A Literatura Infantil Na Escola

rlt'irlt'ologir.Ìs, porque é ela que dá o nome de que êtão-..;ornt'ntc o beneficiário e objeto de manipulação.

tÌccebendo tal designação de seu destinatârio, a litera-tru'rr inÍhntil debate-se de imediato com dr-ras dificuldades:rr primeira delas diz respeito à transitoriedade do leitor.Alrrangendo tudo o que é produzido para pessoas de até

rrrais ou menos 12 anos, a literatura infantil deve ir se modi-Íicanclo à medida que evolui a criança, até perdê-la porcompleto, fenômeno paralelamente vivenciado pelo pró-prio leitor, que vai aos pollcos se afastando do produto a

cle oferecido. Essa índole passageira do gênero determinasuzì temporalidade, o que se relaciona, de um lado, com a

condição de seu recebedor e, de outro, com a própria natu-reza histórica da faixa eÍâria a qlle se destina. A compreen-são cla infância como um período existencial diferenciado e

passível de uma abordagem pela pedagogia provém de

èpo.n recente, mais precisamente da Idacle Moderna.4 Essa

temporalidade particulariza-se do seguinte modo:

a) a literatura infantil apresenta um tipo de evoluçãohistórica determinada pelas modificações que sofreram as

concepções, respectivamente, da infância e do tratamento(peclagógico) desta faixa da existência;

b) outro tipo de modificações decorre das transforma-

ções vividas pela literatura e que repercutem nas obrasinfantis, em termos de novas técnicas, temas e meios mate-riais originais de transmissão artística;

c) o que lhe é mais particular diz respeito à evoluçãointerna que o gênero sofre, na medida em que deve acom-panhar as mutações etárias por que passa seu recebedor.

4 Cf . o propósito FIASS, Gerharcl. Einleitr,rng. In: HASS, Gerhard.(org.) Kinder-und JugendlitercttLr. Zur Typologie und Fr"rnktion einerLiterariscl-ren Gattung. Stuttgart: Reklam, 7976. e RICHTER, Dieter. TilEulenspiegel - der asoziale Held und die Erzieher. Kindermedien.Ásthettik uncl Komunikation. Berlin: Ãsthetik und KornmunikationVerlag, n. 27, abril de 1977.

66

Em razão de tais fatores, a condição pzrssugcir':r rkr lr,il<rr é absorvida pela literatura, que se torna in.stírvcl, tìr.t r,r;

r;itu adequar-se aos interesses diferenciados de proclrrr';i<r(luc a cercam e, ainda, deve estar conforme as lnucllrrr('lrstle toda a aÍte arte literâria.

A segunda dificuldade advém de sua unidireci<>nlli-rl:rcle, uma vez que é produzida apenas do adulto pztre lt'r'itrnça, e não o contrário.

Em virtude disto, Meria Lippi assinala que há uma assi-nrctria entre o emissor e o recebedor na origem dessa mo-.l:rliclade de obra, o que somente pode ser superado pelairìtrodução do conceito de adaptação. Nessa medida, como:rlilma Gote Klinbetg,6 a adaptação não cliz respeito uniczr-rrrcnte aos textos clássicos que foram reelaborados para ascriunças sobretudo no século XVIII, mas pertence à índoler l:r.s criaçôes a elas destinadas. Por sua vez, esse fator un!tlirccional é o que determina a preocupação com a trans-nris.sho de normas, eue tanto podem ser de tipo social,( ( )rÌro as anteriormente descritas, qllanto estéticas. Portanto,(' rìcsse momento da leitura que se assiste à gênese clo "hori-zr >nte de expectativas"T do leitor, de modo que se explica,r clrrpla inquietação que assola os educadores que lidamt orn arte literâria para crianças: de um lado, com a for-rn:rç-iro dos hábitos de leitura; de outro, com o consumo det('\tos de reconhecido valor estético, esperando construir,t ()rtt cstes recursos, um dique de proteção contra as histórias, rrr cluadrinhos ou outros produtos da indústria cultural.

5 Cf. fVfq Maria. Asymetrische Kommunikation als Problem mo-, k rrcr Kinderliteratur. In. KAES, Anton; ZIMMERMANN, Bernhard (org.).I ttt'tirljtrrt'ir Wcle 1. Gottingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1975.

o C. XtINBenG, Gote. Kinder- uncl Jugendliteraturforccbung. EineI rrrÍiìlrrung. Koln-\7ien-Graz: Bôhlaus'üíisseschaftliche Bibliotl-rek, 1973.

7 O termo é empregaclo no senticlo que lhe clá Hans-Robert Jauss.Cf.: JAUSS, Hans-Robert. La historia de Ìa literatura coilìo provo-

,.rr'irln de la ciencia literaria. In: _. Ia literatura como prouocación.IÌ,rt t:l<>na: Península, 1976.

o/

Page 33: A Literatura Infantil Na Escola

l'.nÍ'irn, cste caráter unidirecional reproduz, no planot't;rlio, um conflito de tipo social: a oposição adulto X cri-rrì(':r correspondente aos modelos opressor X oprimido e

l)rl)clLrtor X consumidor, cabendo à criança o papel passi-vo, .situação qlÌe somente abandona na adolescência, quan-cl<r não mais absole literatura infantil. Este fato dâ a talclicotomia uma natureza de certo modo estática e, por estarìÌcslÌìa causa, contínua e permanente. E a necessidade deluclárptâção que pode levar o adulto a sLlperar tal posição desr-rperioridade, porém igualmente essa é uma decisão uni-latcral, do que resultam, outra vez, os dois aspectos ressal-tados anteriormente:

a) a literatura infantil orbita na esfera do adulto, como,antes de rnais nada, se encarada do ângulo da pro<lução,um problema dele, e não da criança;

b) esta, a rigor a principal interessada, localiza-se forade tal processo decisório, o que reforça a situação poucoatllante que previamente ocupa em olÌtros setores da vidasocial (familia, escola etc.).

É desse fato que advém a questão mais problemáticaenvolvendo a modalidade literária aqui discutida: é que,provindo de uma tomada de decisão da qual a criança nãoparticipa, mas cujos efeitos percebe, a literatura infantil po-de ser considerada uma espécie de traição, uma vez quelida com as emoções e o prazer dos leitores, par^ dirigi-losâ Lrma realidade que, por melhor e mais adequada que seja,eles em princípio não escolheram. Nessa medida, a litera-tura infantil somente poderâ alcançar sua verdadeiradimensão artística e estétice pela superação dos fatores queintervieram em sua geração.

Se a propalacla universalidade da arte provém dessacircunstância, to que aponta a hermenêutica dos fenô-menos literários,B ao ver no simbólico aquilo que pertence

B Cf. a propósito cla hermêutica clo texto GADAMER, Hans-Georg.Verdarl y método. Salamanca: Sígueme, 7977. E RICOEUR, Paul. Inter-prelação e icíeologias. I{io de Janeiro: Francisco Alves, 7977.

6B

,r,r lìumano, e não à singularidade individulÌI, rì:r litt.r:rtrrr,rrnlìrntil, esta inclinação ao universal se torna a corrcliq.;ro tL,:,u;r .sobrevivência e autonomia. Por isso, o val<;r litt.r.;rrr,,l,r()-.somente emergirá da renúncia ao normativo, o cprc ilrr;rlit'rr abandono do ponto de vista adulto, ampliaçlto clo lrr r

!rr()rìte temático de representação e incorporação clc rrrrr:rlrru3tragem renovadora, atenta ao discurso da vangu:rr-cl:r, :rsrrrocluliclades da paródia, enfim, acompanhando a evoluç-rìotl:r rrlte Iiterâria, que se dá sempre colno ruptura e nào c()rìì(), ,l rcrliência.

Se a literatura infantil revive os mesmos problernas clcl,rorlr-rção que envolvem toda criação poética, encarir-llr{ | )nìo LÌma área menor da teoria e da prâtica artística signifì-, ,r irnorar seus reais problemas em favor de um propósito, litiste, qlre tem como meta garantir a primazia da condiçã<r,r,lrrltu. E significa ignorar tarnbém os reais problemas cla

lrroyrlirÌ teoria literârie, na medida em que a literatura infan-rrl oÍcrece um campo de trabalho igualmente vâlido, aor,'pnrcluzir, nas obras transmitidas às crianças, as particula-rrtl;r<lcs da criação artística, que visa à interpretação da exis-r, rrt'irÌ que conduza o ser humano a uma compreensãorrr.ris rrrnpla e eficaz de seu universo, qualquer que seja suar,l.rtlc ou situação intelectual, emotiva e social. Assim, é',r rrlì('r'ìte quando a meta se torna o exercício com a palavra,rlu(' () texto para a infância atinge seu sentido autêntico,,1r;rl scjzt, como escreve Kurt Werner peukert, ,,a expansão,l.r t lirncnsão de entendimento da criança,,9 e, por extensão,,1,' toclo e qualquer indivíduo.

') l,liUKERT, Kurt rüíerner. Zur Anthropologie cles Kindersbucl-res.irr ttÂÂS, Gerhard (Org.). Kinder- undJugendliteratLff. Zvr Typologie, rr r, I tir nrl<tion einer literarischen Gattung. Stuttgart: Reklarn, 1976.

69

Page 34: A Literatura Infantil Na Escola

A PERSPECTIVÃ DO LETTOR

Afurtção social da literatura só se faz maniíesta na sLtcl

genuína possibilidade ali onde a experiênciít literaria doleitor entra no borizonte de expectatiuas da prática cle vm uida,

pré-forma sua compreensão cle munclo e com isto repercutetantbém em stLas forntas de comportamento social.

Hans Robert Jauss

Raramente algum tipo de arte se define pela modali-clade de consumo que recebe. No âmbito da literatura, oelemento de ordem diferencial é atribuído à linguagem(poesia X prosa), aos rnodos de representação (narração Xcliálogo) ou ainda ao assunto: relato policial, romance detese, tragêdia. A originalidade dos textos para criançasadvém do fato de que é a espécie de leitor que eles espe-ram atingir o que determina sua inclusão no gênero desig-nado como literatura infantil. Assim, ela se originou doaparecimento deste público, vinculando sua história e trans-formações às mudanças por que passaram o tratamento e acompreensão da infância nos últirnos 250 anos.

O crescimento e a diferenciação dos públicos leitoresassociam-se ao pÍocesso de industríalização da cultura queacontece a partir do século XVIII. Com o desenvolvimentodos meios de reprodução mecânica, o aumento dos gruposalfabetizados e a necessidade de estímulo ao consumo, as

criações artísticas passíveis de rnultiplicação foram colo-

70

,,r,l;rs 1ro alcance da ascendente popuÌação urltunlt. l)isso,l.r'trÍr'clr uma democratização do saber, mas iguullrre'rrlt'rrrrr:r <'i.siro no interior das produções estéticas: de unr l:r<lo,.r,.,rllllrs qlÌe conservam os atributos de arte, sem se clllrc'-ri,f r('rìì lì sedução do consumo fâcll; de outro, a churnlrcl:r'', rrllrrrÌ cle massa", destinada às muÌtidões, ao responclcr ir.s

',rr.rs rlcrÌlandas c1e estímulo à emoção e abandono cla prco-, rrlr.11.'i1; com a noviclade formal ou o questionamento cl:t, '.i:,ri'nci:r. À primeira vista, a elevação quantitativa clo pú-l,lrr r r niro determinou a melhora da qualidade, uma vez qLtei ì rrl('r'c.sse em motivar a aquisição permanente ocasiona :r

l '( ,rr( :Ì clurabiliclade do objeto; dai a transitoriedacle atribuí-

,l.r ,r <'rrltura massificada, de modo quc os extremos Íepre-',, rrr:rrl()s por grande número cle obras e pequeno valor aca-l,,rr,rrrr por se tocar, causa do desprestígio dessas produções.

A literatura infantil integra-se a este movimento, narn,,litl:r cm que foi a qualificação de determinado tipo de, ',nr.rlÌìiclor que justificou sell aparecimento. Contudo, ar',rrr 1;1'limita a aproximação, uma vez que o objetivo pri-rrr.rrlill clo gênero não é estimular o consumo, nem sr'lar,,r t'11.,;iis decorreu do processo de industrialização qr-Ìe alrrr.1:xr sofreu ao longo do século XIX.10 Além disto, ao' ,,rìÍrlirio cla literatura trivial, qlle se dirige a qualquer públi-, r, r' rììo impõe restrições desta natureza, os textos para cri-rrr,. :rs clesignam antecipadamente seus recebedores, nãorr,, r'ssit.Ìndo lançar-se à caça de mercado, nem lhes caben-

l0 A. literatura infantil originou-se da valorizaçâo que recebeu arrrl,rrrr'i:Ì a partir do século XVIII e da necessidade de educála, o que,tì,,r r,u;ì vez, decorreu da centralizaçâo da sociedade em torno da família1,rrr1,111'511. Este processo, conforme expõe Lawrence Stone (Tbefamily,, t ruÌ(l tnctriageinEngland 150O-180O. London: Pelican Books, 1979),

rr r, r Íoi trrn:r conseqüência tão-somente da ascensão do capitalismo e darrr,lrr,,tli:rlização. Da mesma maneira, não é unicamente o recurso ao,,,'rrirrrrico que explica a origem do gênero para crianças.

Page 35: A Literatura Infantil Na Escola

, h r r'orrrpctir colÌf outros prodlltos que se valem igualmente,l.r p:rl:rvla. 'fendo de antemão assegurado seu leitor e,lt'vt'nclo-lhe slÌa existência, as histórias infantis obrigamrì('('cs.siÌriáÌrnente à consicleração teórica cle sua relação como clcstinatário.

Se à literatura infantil não cabe disputar uma fatia dorrcrcaclo cultural (embora atualmente sofra a concorrênciarlc outros meios de comunicação e informação), ela aindajrrstific:r sua existência por ocupar uma função determinacla

na vicla infantil: orientar sua formação. Assim, o mais im-portante não é estimular a aquisição de textos e impul-sionar a inclírstria do livro (apesar de este fator estar igual-lÌrcnte presente), e sim propiciar à criança um conjunto de

normas cle comportamento e meios de decodificação do

lÌrlÌnclo circundante, integrando e adequando o leitor :r ele.

Há, pois, um dirigismo patente na obra, que também cabe

lcvar ern conta, quando da abordagem da relação do textocorÌ selÌ leitor. Legitima-se a opção metodológica voltada à

investigação dos processos de recepção do texto infantil,na suposição ainda de que poderá favorecer uma reflexão

sobre o carâter ideológico da literatura par^ crianças en-

quanto introdutora cle normas do mundo adulto no âmbito

cla infância, revelando o lugar social do gênero.

A Represent ação ãa Críança

A utilização de personagens crianças na literatura

infantil não tem a mesma idade do gênero. Os primeiros

livros escritos para a infância continham contos de fadas,

aclaptações de obras destinadas a adultos, como Robinson

Crutsoe e Viagens de Gulliuer, ou ainda narrativas moralizan-

tes, como as de Madame Leprince lleaumont (mais conhe-

cicla por um conto que escape a esta classificação: 'A bela

e a fera'). A modificação ocorre na segunda metacle do

século XIX, quando as histórias passam a ser protagoni-

r.rtllts por meninos colno Tom Sawyer, meninlts t'olttt I r\ltt r',

,rrr l>onccos humanizaclos, imitando criançâs, c()lìì(t l'ilto,;rrio. Cresce o número cle obras, sendo Alice no fxrrs tlrtttttttrutuilbas, As auenturas cle Huck, Os nenês d'ítgttrt, ,l:nt('tÌiLr.AS exemplares, O magico de Oz, Peter Pan :tlstttt';

r('l)r'cscntAntes mais conhecidos dessa categorir.A centralização da história na criança provocolÌ oLrtrlts

rrrrrtl:rnÇas: a ação tornoll-se contemporânea, isto é, datacle,

,' ,,.'rr clcsclobramento apresenta o confronto entre o mttncl<r

,1,, lrcr-(ri e o clos adultos. Desse modo, o leitor encontra Llm

, 1,, visível com o texto, vendo-se representado no âmbitolr, , ir rnnl. A nova orientação foi bastante fértil, iâ que a tra-

;, t.rir posterior da literatura infantil demonstra a inclinaçãot, ) :rl)r()veitamento do universo da criança ou de heróis que'.rrnlroliz:.tm esta condição (animais, preferenternente). O

r,lrrllo não se viu banido do texto, pois os livros de aven-

rrrr.r:; cr)ntinuam a atrair o leitor juvenil; porém, teve sua

rrrr;,ollância restringida no conjunto do gênero, fato que

r',.rrr:rll a ascensão do adjetivo infantil como próprio à

r r.rrr n('z:r desta modalidade literária.I)ccorre clesse fato uma indicação de ordem metodo-

l,,r,rt :r: ó preciso que se examine em que medida são os inte-

r{ . .('rì clas personagens que saem valorizados no transcor-

r, r ,l,s cventos narrativos, averiguando se os livros falam a

lrruirr:rr1cr.tt de seus leitores, oferecendo â eles um ponto de

' 'rt' nl:l('ato e entendimento diante de sua realidade existen-

' rrl ,' tlo zrmbiente dominado pela norma adulta.

t I 11r.i,(it'o de Oz, de Frank Baurn

t I livro de L. Frank Baum apareceu em 1900, e selt,r, { ,:'() l)rovocou a continuação dos episódios, dando se-

,t,,{ n( i:r lì trajetória de algumas personagens (o Homem de

I rr r, pol ex€fiìplo) ou à utilização do mesmo cenário - a

r, '.r (lc Oz, a Cidade das Esmeraldas - para novas aven-

73

Page 36: A Literatura Infantil Na Escola

Iur;rs. lÌ.scritos os quatro primeiros entre 1900 e 1!10,11li;rrrrrr tcntolt encerrar a série neste ano; mas foi impedidol)()r'sclrs leitores, o que o levou a prossegui-la, atê a starìì()t1c, em 1919.

A personagem central da narrativa não é o mágico,rr:rs Dorothy, LÌma menina qlle mora em Kansas, com sellslios, e vem a ser transportada por um ciclone ao Reino de()2. Ao chegar lá, descobre que o mágico, que governa aCiclacle das Esmeralclas, pode ajudâ-la a voltar para casa,.scu principal objetivo. Durante a viagem, encontra três ami-Ilos, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde, quecsperam também que Oz possa resolver slÌâs respectivasclificuldades. As aventuras por que passam podem ser divi-clidas em três seqtiências:

- a viagem atê a Cidade das Esmeraldas, após a destrui-ção da Bruxa Má do Leste e a libertação dos anões, quan-clo Dorothy, acornpanhada cle seu câo, encontra os amigos;

- a viagem até a Bruxa Má do Oeste, a fim de destruí-la, por ordem do mágico, e a volta à Cidade das Esmeral-das, com a concessão das recompensas ao Leão, ao Lenha-dor e ao Espantalho;

- a viagem até a Brr.rxa Boa do Sul, Glinda, que indi-ca o caminho de casa a Dorothy e distribui seus compa-nheiros pelos diferentes reinos de Oz.

A seqüência de viagens, própria à nanativa de aven-turas, é motivada por uma busca por parte cle cada perso-nagem: Dorothy almeja a volta à casa, tendo perdido osmeios para isto; o Leão, o Lenhador e o Espantalho queremganhar respectivamente coragem, coração e cérebro, cujaconquista lhes permite alcançar um lugar político no mun-do de Oz: o primeiro acha seu reino entre os animais, o

71 Thn wonderful uizarcl of Oz ê. de 1900; em 7904, Baum publi-ct Tbe land of Oz: em 1907, Ozma of Oz e, em 1910, The Esmerald Cityof Oz.

/4

:,c^14rrnclo passa a governar os Pisca-PiscáÌs c o rrltilrro, ,r

t,itlucle das Esmeraldas. O retorno cle Dorotl'ry sul)()(' unr,rlr:rnclono de Oz; por isso, é o mais complexo. No crrl;rnt( ), scgllndo ainda a tradição da história de aventurÌ.s, rììirrt('nÌ-se como motivação para o prosseguimento clx ir('i(),rluc somente se encerra quando o autor explora os ([ulrtr'()(.uìtorì de Oz e todos os seus diferentes povos.

O desdobramento do relato está fundamentaclo rx),1,'slocamento no espaço; contudo, o problema dos her(rist :,t:i clentro deles. Com efeito, todos eles possuem clescle ornrt'io as qualidades que almejam: não apenas os amigos clc|)()totlÌy são corajosos, inteligentes e generosos, como ela

1'rr'rlrrizr recebe, assim que apofta emOz, os sapatos mági-r { )ri (ple lhe permitirão retornar a Kansas. Portanto, a tra-

;r'tr.rlirr deles por toda a nação de Oz visa não apenas,1,':;t'nvolver um modelo de narrativa de aventuras, mas

;,, ,:;silrilitar o desdobramento das virtudes que as persona-ri,'rrs previamente têm, mas não sabem e não as vêem reco-rrlrt'r'icles pelo gmpo. À medida que a ação evolui, dá-se o.r',:,rrrrìir dessas qualidades interiores, como se pode ver.rl r,rix<l:

viagem de Kansas à Cidade

clas Esmeraldas

viagem ao Oeste e à Cidade

das Esmeraldas

olltra vez

superaçâo da carên-cia por parte do Leão,

do Lenhaclor e doEspantalho

viagem da Cidade das

Esrneraldas para o Sul:

volta de Dorothy para casa

superação da carênciapor Dorothy. Todosencontram seu lugar

social

Page 37: A Literatura Infantil Na Escola

cláÌ

Ela

() n'útgico de Oz narra, pois, o encontro de cada um<'on.sigo mesmo e o reconhecimento do grupo. Cabe veri-Ii<:ur, pois, como estas duas descobertas são tratadas pelonurrzrclor tanto no desdobramento da açào quanto na uti-liztrção dos recursos do relato.

A carência vivida pelos agentes diz respeito à ausên-de uma qualidade que cada um julga imprescindível.pode ser expressa pelas personagens:

- Estamos a caminho da Cidade das Esmeraldas, para falarcom o Grande Oz - respondeu Dorothy. - Paramos em suacabrne para descansar.

- E o que desejam de Oz?

- Eu, voltar para Kansas; ele, um cérebro.

- Será que Oz pode me dar um coraçâo?

- Acho que sim - disse Dorothy. - Deve ser fácil para ele.72

ou reforçada pelo narrador:

Quando se aproximavam dum buraco, Totó o transpunhanum salto, Dorothy o contornava, mâs o Espantalho, sem cére-bro para raciocinar, seguia em frente, tropeçava e caía (p. 30).

Todavia, acaba por ser desmentida pela ação dos heróis:

- Tive uma idéia: se eu for com você até a Cidade das

Esmeraldas, será que o Grande Oz me dará um cérebro para pen-sar? (p. 28)

Quando o lenhador conseguiu movimentar-se livremente,não se cansava de agradecerlhes. Parecia muito bem educado, e

depois de finalmente esgotada sua incomum capacidade de gra.tidão declarou. (p. 37)

O texto desautoriza a palavra do narrador, porque estepode reforçar a noção qÌle as personagens fazem de si ou des-

12 BAUM, L. Franck. Tbe uonderful tuizard of Oz. London: Denr,1975. A citação provém, assim como as seguintes, da edição brasileira:BAUM, L. Frank. O má.gico cle Oz.'[ra.d. de Paulo Mendes Campos. Riode Janeiro: Tecnoprint, 1969. p. 23.

rÌlenti-las, sem revelar o que está fazendo, corìì() sc ;xrrlt' v|riÍicar:

Certa ocasião, porém, o Homem de Lata esrììug()r.l r'r'ur(prerer um besouro, e ficor-r mr-rito infeliz, derrantanclo rlrr':rrrtt'elgum tempo lágrimas de tristeza, tantas que acabaram lhc t:nÍì'rrtrjando as dobradiças do queko. (p. 45)

tÌelativizada a palavra das personagens por sua açã() cpcllrs inclicações do narrador, o texto cria um universo clt:

:,u11cstÕes que demandam a interpretação do leitor. EstcIt'r;i cle reconhecer, antes de todos, que as personagens

1,ossuíam de antemão o que buscavam, faltandolhes ape-rr:rs u autoconfiança adquirida após o segundo encontro(()rìì o mágico. De modo que a ação do leitor passa a per-l('n('er ao relato, já que a necessidade de reconhecimentor'r rc irrl é tematizada no livro. Além disso, na medida em que:,(' l)ropicia a identificaçào entre a criança e os heróis, uma\,('z (lLre estes simbolizam as dificuldades pessoais dela, olivrrr confere ao narratâtio um importante espaço em seuirrlt'ri<rr; e

^inda lhe oferece meios de reflexão sobre sua

, orrclição, enquanto ser carente de autoconfiança e naI'rrsclr do reconhecimento pelo grupo.

A formulação de uma auto-imagem encontra reper-r rrsslì<) no leitor, de modo que a ele caberá uma tomada de

1rr rsiç'rìo diante dos agentes e de si mesmo. E a narrativa:,urì('rc ainda que recursos cada um tem para refletif sobre:;r rÌìcsrno e o outro: diz respeito à obserwação da ação. São,u; :rtitudes dos heróis que revelam que nada lhes falta,Iliiliruando-lhes a concessão de um alto posto na comuni-,l.rrlt'. Portanto, o narrador se submete à decisão de todos,rvil:rnclo interpretar antecipadamente o que acontecelr com',t'rrs heróis.

Sito as personagens Leão, Homem de Lata e Espan-t:rllro que encaÍnam a busca de identidade, encenando o, orrÍ'lito que se passa na intimidade; sua configuração sim-I'r,lic'l legitima a forma não humana deles, possibilitando( lu('scja avaliada como projeção da interioridade de Dorothy

Page 38: A Literatura Infantil Na Escola

( )u (l() lcitor. Por sua vez, ê a menina que representzÌ o1i('rìcr() humano, acompanhada do Grande Oz, o que oscorìvclte, diante do número cle personagens não humanasclo livro (fadas, bruxas, anòes, animais), num subgrupo à

l)1Ìrtc. Essa caracterização se complementa por outros dados:nito são originários cle Oz, e sim dos Estados Unidos; e per-tcncem a um tempo (fins do século XIX, época de expe-riências com balÕes) e espaço reais (Kansas e Omaha),tendo uma condição familiar e faixa etária determinada(criança e velho). Os clemais vivem em Oz e estão total-mente integrados a esta nação, oncle não se percebe a

ação do tempo e a estrutura monárquica lembra a do mun-do dos contos de fadas, justificando o aparecimento dasenticlades sobrenaturais, os deslocamentos fantásticos noespaço e zr convivência harmônica entre o reino animal eo humanizado.

Sendo a única personagem com atributos contemporâ-neos e verídicos, Dorothy é o ponto cle entrada e vivênciado texto. Seus companheiros comportam conotação simbó-lica que personifica os conflitos interiores do destinatário;mas a menina ocupa o lugar do herói, conteto fundamen-tal entre a realidade e a magia, entre o leitor e o livro. Con-tudo, não solrÌente sua condição humana assegura-lhe esteprivilégio; é que a focalização do texto provém dela, e onarrador incorpora em quase todos os momentos do relatoseu ponto de vista, completando o esforço de relativizaçãocle seu papel narrativo.

Nessa medida, cabe verificar a trajetôria da menina.Expelida cle casa por um ciclone, suas aventuras visam aoretorno à fazenda, onde vivia com seus tios Henry e Em,"num longínquo recanto duma das grandes planícies deKansas, no meio dos Estados Unidos" (p. 11). A residênciacom os tios, numa pequena casa bastante afastada da civi-Iização, devia-se ao fato de ter ficado órfã; sua vida era bas-tante solitária e, conforme descreve o narrador, ela "só nãodesaprendeu a rir e não ficou cinzenta graças ao Totó, um

78

,.r,zinh<> pleto, cle pêlo comprido e sedoso, ()llìos t':;t rrr,,,,, trìiri(l()s qr-re piscavam alegremente, corn o qual l):ts.s:lv,l,l t( nìlx) brincando" (p. 12).

I'.rrrbora essa vida não seja muito emocionul'rtt', t'rÌì{':,ilì() e áÌlneace de tOrná-la CinZenta e Calada coÍÌl() ()s

rrrr,,, ('tì'ì nenhum morTìento a menin:r cogita em ficar crrri ).' l)t'scle que chega, quer voltar para LL fazenda, diriginckrr,,, l.r:, rrs suas ações para este alvo. Sen perclÌrso diviclc-sc

'.r', \,i:rlclls antes mencionaclas, coinciclinclo, cacla uma delas,

'rìr :r clcstruição de uma entidade mágica:

:r ) primeira viagem -> destruição da llruxa Mír do Lestelr) scguncla viagem -à destruição da Bruxa Mír do Oeste, ) (crceira viagem -+ destruição clo Mírgico de Ozlrrnlrctra o írltimo vilão não seja caracterizado como um

nrrrr t'lc'rÌlento, sua vigarice coloca-o ao lado das Bruxas,,tr'., :r (lllclrÌ teme. Essa qualidade explica seu alinhamen-r., ( ( )ÍÌl lrs feiticeiras, eliminadas pela ação voluntária ourr i,, rlt' I)orothy. Por sua vez, evidencia-se por que a meni-,,ì ,,r uptr o lugar de herói no relato: nâo rpenas sujeita a

, ,' , ,,rrìlutdo a atividade dos companheiros, como também,1, .r rrrri rlo poder as figuras malignas e colabora decisiva-ilr' !ìr('l)lrr1Ì a instauração de uma ordem positiva ern Oz. É,rrr,Lr rlrrcm orienta a ação em direção ao munclo adulto,, r,lu.uìt() os demais buscam uma auto-imagem no âmbito1,, , ,, ,.r1, c ô capaz de instituir sua lei em meio dele. Enfirn,.,,' .rrlt:rrl<t cle seu empreendimento não se esgota na rein-r,,,, lrrr.:ro (llÌ ordem de Oz; produz também uma dessacra-li.r,,r,r tlo meio, ou melhor, exorciza as entidades malé-' ,,1 r . l)('ssc modo, embora menos poderosa que as Fadasl,' ii,rr('c clo Sul, é ela quem destrói as Bruxas do Leste e

It i'scu cão que clesmascara o mágico, revelando suairrrlr...trrr.:r. Ao final, é responsável pelo cleslocamento dor,,', 1,,, (luc vem a ser exercido por pessoas boas, como oi, rrlr.r,Lrr c o Espantalho, sucedendo-se, por isso, a substi-!,,ì, i,,,1:r lrÇão sobrenatural pela humana e natLlral. Dorothyr ,i, 't ',, r.r :r rcgulagem do ambiente em justiça e inteligência,

79

Page 39: A Literatura Infantil Na Escola

:,rl):itiluirìcl() o absolutismo mágico pelo liberalisrno huma-rro t' lrl:rstll-se de Oz, na suposição de que, posta em mar-clr:r u cngrenagem, ela funcionará regularmente.

Sr-ra relação com o munclo adulto não impecle a con-tinrriclade de sua ação liberadora, na companhia de amigos.N() cntanto, o exercício dessa liberclade tem raízes pessoaislrcrn definidas: é órfã, nâo sofrendo a Ìimitação da familiac ainda é expelida para fora de casa; seus adversários são mu-lheres (as bmxas), enqlÌanto os companheiros são mascuii-nos. Aincla assim, é ela quem comanda o grLÌpo, vacilandoxpenas quando se depara com um adulto poderoso: ornirgico. A desmitificação deste é sua ação mais importante,porque significa o desmascaramento de um igual, prove-niente de lugar similar ao selÌ.

O mágico corporifica de modo cabal o âmbito aduitona narrativa: não apenas porque provém da mesma comu-nidade que a menina, mas porque personifica o falso poder.Em seu primeiro encontro com as personagens, quandoatende um a um (e a divisão do grupo faz sua fraqueza),aparece em todo seu esplendor, assllstando os assistentes efazendo falsas promessas. Na ocasiâo seguinte, revela-se suaimpostura, mas os heróis ainda esperam dele uma solução.Embora tenham conseguido a chave para z resolução deser"rs problemas, precisam de confirmaçâo externa. O mágicoprocede a isto ainda de modo ambíguo: finge uma soluçãopara os três, mas falha (e foge) quando se trata de Dorothy.Seu poder aparece ainda vinculado ao engano, pois o nar-rador desvela o pensamento dele após o terceiro encontrocom o Leão, o Lenhador e o Espantalho, o que não julgaranecessário em outros pontos da narrativa:

Ao ver-se sozinho, o mágico sorriu, pensando: ,,Como

posso deixar de ser um farsante se essa gente me obriga a fazercoisas que todos sabem ser impossíveis? E no entanto foi tão fácildar felicidade ao Espantalho, ao Leão e ao Homem de Lata. porquê? Porque eles acreditavam que eu fosse capaz de qualquerpÍoeza" (p. 107).

l'lrìtretento, o vigarista mostra-se ineficaz, r;Ìr:rnrkr :,r'

tr.rl,r <lc solucionar a crise mais séria, a da cri:rnç1t lx)r'cx(('l, n, i:r: Dorothy. Configura-se, assim, a duplicidacle cl<l lrclrrl

trr ('rìì relação à infância enquânto uma oposiçaÌo clìlr'('rl,:u.i'rìcirÌ de poder e fragilidade na solução dos problcmlrs;

1,, )r sulÌ vez, necessidade de desmascaramento X clepcn-,l, rrcilr nssinala a orientação contrária, do menor para ()rìr.u()r. A fuga do mágico poderia indiciar qlÌe o process(),l, tlcsmascaramento foi total, mas não é assim: Dorothyrrr.rrtórìl decisão de voltar para casa, e precisa de alguémrrr,ris vclho que lhe revele os meios.

(,omo acontece com seus colegas, ela Íraz esse poder, ( )nsiso: provém de seus sapatos de prata, que recebe logo.r,, i lrcgar em Oz e cujo poder cle deslocamento espacial é.rrrrrnciado por Glinda na última parte. É, pois, a fada que,r:'r.rrrrìirá, ao final, o papel doador do adulto, fechando o

' r( ul(). Distribui as regências aos heróis masculinos e asse-lur':r () retorno à garota. Essa configuração maternall3 ainda',(' ('()rnpleta pela l>eIeza eterna e a bondade natural, quellrt' siro atribuídas. Dessa maneira, configr,rrando o herói ati-\'( ), cLÌja determinação leva à conquista de autoconfiança e( r('sciffÌento interior, uma vez que as viagens significarãoirirnlrnente uma iniciação à existência, o texto assinala sua, orrtrapartida, devido à manutenção de um laço de depen-r li'nci:r e afeto em relação ao mundo adulto. Entretanto, narrrt'clicla em que a ação das personagens ruma para a desti-tui('rro do poder dos mais velhos (importando para isto ar:rrrcterização física do Grande Oz, que aparece gigantes-r o, c é pequeno e enrugado), percebe-se qlÌe esta depen-

73 cf . o propósito igualmente a interpretaçào cle Jorclam Brotman:''t;linda não tem um regulamento meramente temporal; ela é a granderrrire, a senhora do amor em Oz". (BROTMAN, Jordan. A late wandererrn ()2. In: EGOFF, Sheila; STUBBS, G. T.; AHLEY, L. F. (Ed). Only con-r/{'cl. Reading on children's literature. Toronto and New York: Oxlordt lniversiry Press, 1969.)

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dência decorrc <llr silrur('lìo cle carência existencial e nãoimplica dominrr('rro. l)orrrthy alcança seu lugar, mas rejeitaa solidão, clc rrrorlo rlrrc:r ação de Glinda é recompensar,mas não irnlrol rì()r'rììiÌ.s.

O cxcrc'íc'io rLr lil>crclacle pela criança coincide com oicleário lilrt'rrrl rlo lt'xto. Este diz respeito à destituição dosttt:ttrs cl<l 1ro<lt'r'tlo lÌstaclo e ao desmascaramento dos char-lutircs; c os vikrr's sìo, ao mesmo tempo, adultos e tifanos,crnlr<l:r :r t'oncltrsâo não seja generalizada, nen-Ì mesmo.srrlrt'r'irl:r, rrrlì vez qlÌe é Glinda quem assegura o plenorc'sl:rlx'lt'<'irììcr)t() cLr ordem ao final. Fica clara, porém, ac'<1triv:rlC'rrcil cntre harmonia no nível político, interpessoal(lrclrrltos c cri:rnças) e intrapessoal (busca e aceitação derrnlr irlcnticlaclc). Nesse mundo perfeito, que é Oz, trans-

l)lìr'('cc o icleal da democracia americana, tanto pela pro-rrrr>('rìo clo liberalismo, como pela valorização do contextos<iciul clus personagens.

O mundo de Oz contém muito do conto de fadas: élrel>itaclo por fadas, bmxas e anões. Se faltam os príncipes,sol;ram os elementos mágicos próprios ao gênero fantástico.Contuclo, os heróis principais, exceto o Leão, são membroscla primitiva sociedade norte-âmericana: os fazendeiros,representados por Dorothy, sua família e o Espantalho, e oslenhadores.14 Figurações que remontam à primitiva mitolo-gia da colonização, estes seres apontam para um ideal dedemocracia rural que, segundo Jordam Brotman, marca opensamento não apenas do livro, mas de seu autor, qlleproclÌrou, numâ Los Angeles ainda não contaminada pelaindústria cinematográfica, construir uma espécie de paraísoterrestre, Ozcot.

Recusando a civilização e o progresso industrial, quese anunciavam em seu tempo, Baum cria um universo ima-

14 o lenhaclor é personagem funclacla num mito firmementeirnplantado na cultura norte-lmericenr, como se pode ver na promoçãoda juventude de Abraham Lincoln, quando era lenhador.

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rirrr:rlio cle plena harmonia entre os inclivícluo.s, ('()lt(ltti:-l.l,l,r por' .suas ações meritórias e clesinteressaclas; c.st:t t'ec tt:;;1,

Í lilr' .sUpÕe um deslocamento espacial semelhante 1t<l clt' stt:t

lr,'roírì1r, clo Leste para o Oeste e clo Norte para o Sr-rl,:tssi

rr.rl.r rr índole utópica de seu sonho que, se se configr-rrlt t'ltr

' ( rr()s moclelos políticos, indicia tambérn o desconíìrt1<r

',,rr :r atualidade e a aspiração de ruptura e mudança. IÌ, sc

,, 111,11; alcança sua grandeza ao tomar partido clas crianÇltsr' proCur'âr reprocluzir artisticamente seus desejos e bltscrt,l, irlcntidade, ele revela ainda um sonho do adulto, o clc

r, rlr:rl iÌo passado e recllperar a infância ingênua de .sue

1'ro;lr.ia nação.

Iì rt'r- I)an, ãeMonteiroLobato

Sc O mágico de Oz não deixa de apresentar, sob ol,ri:,rììrr político, um sonho infantil de retorno à pureza

l,rrrritiv:Ì, ainda que mediada pelo modelo democrático.rrrrt'r'ic;Ìno, em mutação em seu tempo,75 Pete, Pan tem, { )nì() ponto de partida o desejo por excelência do adulto:, , t lr' r-ìão ter crescido.

O livro de James M. Barrie teve LÌma história particu-l.rr. IÌr-n 7902, o autor, clramaturgo em evidência na época,( :,( rcvclÌ Llm conto infantil - "The little white bird" - que,,'nt I)04, transformou em uma peça para adultos, com or(.veleclor título de Peter Pan, tbe boy tbat wouldn't grourr7r. O sucesso do texto levott-o à produção de dois novosr('liÌtos: o conto "Peter Pan in Kesington Gardens", de 1906,

,. o livro para crianças, Peter Pan and Wendy, de 1911. A

1', rptrlirridade da comédia estencleu-se à novela que, no

15 A afirmação cliz respeito à ascensâo cle uma política imperia-lr.,r;r, (lLre caracteriza a administraçâo Roosevelt, no final do século XIX,,' trrnsparece nas intervenções militares, que se estendem de 1B9B

(lrilil)inas e Cuba) até a primeira gllerra, na Ettropa.

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lÌr:rsil, rrlóm de ser traduzido, foi reelaborado por Monteirol.ol xtt<1.

l-obato manteve os principais episódios do relato delì:trric:

- Peter Pan vem espiar a Senhora Darling contar his-

t<irias para seus filhos: uma noite, acal:a perdendo a cabeça

clc sua sombra, dependendo de wendy pan recuperáJa;clo cliálogo dos dois nasce a idêia. de levá-la à Tena doNnnca, a fim de naÍÍaÍ histórias para os Meninos Perdidos;

- ao chegar àTerra do Nunca, a jovem asslÌme a fun-

ção maternal: cuida da casa, dos garotos e conta histórias;

- nlÌm passeio à Lagoa das Sereias, Peter Pan, acotn-panhado por \7endy, salva a india Pântera Branca; ajuda

ainda no salvamento de \7endy e consegue escapar dos

piratas com a ajuda de um pássaro;

- os pequenos Darling sentem saudades de casa;

quando abandonam a casa, são apanhados pelos piratas

chefiados peÌo Capitão Gancho, mas Peter salva-os ainda

uma vez mais;

- as crianças voltam, e os seis meninos perdidos são

adotados pelos Darling; Peter Pan prefere fìcar na Terra doNunca, porque não quer crescer. Ainda visita Wendy umano depois, porém, mais tarde, aparece apenas para suas

descendentes, levando-as a aventuras similares.Na história original, Barrie lida basicamente com dois

temas,16 de um lado, o confronto entre a civilização e a natll-ïeza, representada a primeira pela família Dading, a segun-

da pelo herói; de outro, a divisão etária que separa infância

e idade adulta, pan a qual marcham todos, menos o meni-no que não quis crescer. O autor dá unidade à sua temáti-ca, porque Peter Pan sintetiza os dois aspectos: ele é uma

16 cf. geRRtE, James M. Percr Pan and rYendy. Lonclon: Dent,

79i4. V. igualmente a edição nacional: BARRIE, James M. Peter Pan.

Trad. de Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1!72.

l,rç'rr natural - um pássaro, devido à capaciclaclc tlt: vo:tr; ;r

l,ris:r, invisível e rebelde; o próprio deus Pan, sínrlrolo rl;r

vrrl:r selvagem e do instinto. Ao mesmo tempo, o tttt:rrirrrr,)l)tr por não crescer, cabendo-lhe sintetizar a infâncilr.

No entanto, conforme observa John Rowe Town.scncl,l /

rr,rtr-se cla infância na concepção do adulto, o que explic'lr.r :rssociação procedida pelo relato entre juventude e esp()rì-t.rrrciclade, ausência de História e primitivismo. Resulta clcrrrn:r visão mítica da infância, porque se funda numa idea-lrz:rç'iro de suas condições: vivência de uma absoluta liber-rl:rtlc e aliança com a natureza. Seu mundo carece de nor-rrr:rs, não constituindo ainda uma sociedade. Íl o mundo dol', rrrr selvagem na concepção idealizada do adulto, mas não,' ;r infância.

O fato de a ação situar-se na Terra do Nunca é igual-nrcrìtc significativo. Trata-se de uma fantasia que se con-luirrra previamente como impossibilidade de realização, em! l('('()rrência não da inoperância dos heróis, mas de uml.rt()r qlre não dominami a inexorabilidade do tempo. Emr.rzrio disso, \flendy, seus irmãos e os Meninos Perdidos{ r('sccm e não são mais reconhecidos por Peter. Integram-',,' ì civilização e não interessam mais ao selvagenÌ; masclt's ainda se lembram do outro e reconhecem-no, quandor('.sslrrge para os mais novos; a nostalgia permanece, mas ot.nìpo é irreversível. A infância é também um "nunca" a,lrrc não se tem acesso, desde que o indivíduo se torne.rtlrrlto. Por isso, predomina a perspectiva desse em todo or lcc r.trso da história.

A criança tem, todavia, LÌma conduta no texto.que con-tr:rr.irr est€ fato, o que caracteriza a inserção de sua óptica,.rirrrll que de modo colateral. É que \lendy, assim que, lrt'sur à ilha, assume o lugar da mãe de que todos sentiaml.rltrr; zr familia lhes é necessária, mesmo para Peter Pan que

17 cf. towrvsEND, John Rowe.t',.rr{trin, 1977.

lvritÍen for cbildren. London:

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Page 42: A Literatura Infantil Na Escola

()r;l sc c()locâ como pai dos Meninos e esposo de'Vendy,( )rr c()rno seu filho e irmão dos outros. É, por sua. vez, a

slrr.rclacle qlle motiva o regresso e a reintegração ao tempo,() (luc se completa ao final. Contudo, esse retorno, ao con-trirrio do de Dorothy, não é acompanhado de uma apren-clizagem; representa, antes, uma opção pelo tempo e pela

ciclade, abandonando a ldade de Ouro da infância, rele-gada ao sonho e al:afada como desejo.

Monteiro Lobato conservolt a seqüência original; optou,no entanto, pela introdução do mundo ficcional que criara,

o Sítio do Pica-pau Amarelo, no universo de Barrie, proce-

dimento que gerou modificações fundamentais em sua estrLl-

tllra e concepção, assim como na solução do problema doleitor. Fazendo com que Dona Benta conte a seus netos as

aventuras de Peter Pan, o autor reproduz dentro cle sua

história o modelo comunicacional da narração:

Emissor-> Mensagem -+ RecebedorIç-II

Dona Benta Peter Pan moradores do sítio

Os ouvintes do relato de Dona Benta são: as crianças,

Pedrinho e Narizinho, os bonecos, Emília e o Visconde, e

um adulto, Tia Nastácia. Dona Benta ê a nanadora adultaque, após a leitura do livro, refaz à sua moda os principaisepisódios do original. Desse modo, reproduzem-se por duas

vezes o sistema de leitura e a situação do leitor: peloÍesumo da avô, explicitando o procedimento do adulto para

ler um livro infantil; e pela inserção dos leitores crianças,

que ouvem e paÍticipam na elaboração da narrativa final.

O lugar do leitor ê mimetizado pelo próprio relato e,

ao mesmo tempo, multiplicado em posições distintas, oque motiva as diferentes reações de Pedrinho, Emília e os

outros. Estas podem dar-se de vários modos: por meio dos

comentários sobre as ações, das exigências de explicaçãopare-

^s situações desconhecidas, do desejo de continuação

86

,'tr'. l)cclrinho e Emília são os ouvintes ativos, c lt st'11tttttl:t

,rirrrlrr passa do domínio da ficção à realidade (1lrrt':t t'l;t),,1rr:urclo, fuftivamente, rouba pedaços da sombra clc 'l'i:r

t.l.r:;tlicizr. Narizinho não tem uma atuação tão exigentc, (' ()

\/i:;r'oncle é solicitado como detetive.O leitor é convidado a participar do mundo ficciorurl

rnt'rliante esse reclÌrso, de modo que sua identificação colììrrrrlr clas personagens coincide necessariamente com o assll-

rrrir. rlc uma posição mais ou menos critica, como fazem a.s

, ri:rnças do livro. Além disso, como essas refletem sobre lt

, ,,rrrposição de uma história infantil, ele é levado a colÌì-

I'r('cr'Ìder sua própria situaçâo enquânto recebedor de umr rr rivcrso imaginário.

A teoria da história infantil é outro aspecto da origi-rrrrliclede do livro. Por intermédio das reflexões de Donali('rìtx e das crianças, emerge uma versão sobre a natufez,l.r literatura moderna para a infância, a motivação do inte-r('ssc do leitor e sua linguagem.

A opção por LÌma criação desligada da tradição doi r rrìto de fadas é o que impulsiona a todos para a leitura del't'!arPa.n; mas isto não se deve à rejeição do gênero, e sim.r rr<rvidade que caracteriza as histórias infantis mais recen-It's, segundo Narizinho:

- Estou notando isso, vovó - disse ela. Nas histórias anti-gas, de Grimm, Andersen, Perrault e outros, a coisa é sempre a

mesma - um rei, uma rainha, urn filho de rei, urna princesa, un't

urso, vira príncipe, uma fada. As histórias modernas variam mais.

Esta promete se. boa.18

Mais adiante, é enfatizada a questão referente à com-

1rosição do texto, fundada necessariamente no mistério, já

,;rrc é o elemento não banal da existência que propicia a

. t vcntlÌra.

18 rogATo, Monteiro. Peter Pan. São Paulo: Brasiliense, 1956. p.

r /.Í. Todas as citações provêm desta edição.

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Page 43: A Literatura Infantil Na Escola

- Não entendo como é que a senhora Darling foi deixar:r janela aberta. Quarto de criança a gente nâo deixa de janela

eberta nunca. Entfx morcego, entfa comja - e entranì até esses

cliabinhos, como o tal Peter Pan.

- Boba! - exclamou Emília. Se ela não deixasse a janela

aberta não podia haver essa história. Se você fosse a mãe dos

meninos deixava a janela fechacla, não é? E o que aconteceria?Cortava a cabeça da história iogo no começo @.774-17).

O mistério é importante não apenas por possibilitar a

seqüência da história; é também o elemento de sedr:ção da

literatura. A opção pela representação verista pode diluiÌoc, mesmo se originando de uma aspiração à rejeição dabanalidade e da repetição, liquida o encanto da ficção. Porisso, Dona Benta adverte Emília, quanto esta quer dessacra-lizar as sereias:

- Hei de fazer utna história dilerente - declarou Emília.

Uma l-ristória onde todas as sereias seiarn agarradas e amarradase trazidas para a cidade dentro cium caminhão.

- Pois você errarlr, Emília, se escrever urna história assim

- disse Dona Benta. Alén'r de ser um:ì judiação arrancar do seu

elemento criaturas tâo Ìindas, essa pesca e essa trazida para acidade em caminhâo viria destruir a beleza e o mistério das

sereias. Sabe o que acontecia? Os jornais davam o retrato delas

impresso em tinta preta (nos livros elas aparecem em lindas pin-turas de cores macias); os sábios de óculos vinham estÌ-rdálas,isto é, abri-las com as suas facas chamadas bisturis para ver oque tinham clentro, e mil outros homores. Nâo, EmíÌia. É melhorque ninguém nuncr pegue uma sereia - nem você tarnpouco.Na sua historinha, agaÍre I sereia, mas faça que ela escape nomomento de entrar para o caminhão. Ficará muito mais poéticaa sua historinha, eu garanto (p. 206-208).

O carâter atraente do texto por meio do universo re-presentado é incorporado pela própria linguagem; é o quea" faz poêtica e justifica os iogos semânticos:

Narizinho estranhou aquela expressão "cor de outono".

- Que história é essa, vovó? O outono é uma das estaçõesdo ano, mas nâo me consta que tenha cor...

l)ona Benta riu-se.

- Minha filha, a língua está cheia de exprcssircs potllir;t"

Siro os poetas que inventam essas coisas tào lirlclirllr:rs p;rr'r

cnfeite da linguagem (P. 224).

O úrltimo elemento referido diz respeito aincla zÌ() .sr.rs

l,( rìsc e à exploração clo conteúclo sedutor do relato. íì rr,lrrt' lcgitima as interrupções, a projeção cle dÍrvidas e inccr-r(.,.irs para o futuro da narrativa, e alimenta o interesse cl()

l,'ilt>r'. Det€rmina a clivisão em capítulos e os adiantamcn-r,,:ì, l)rovocando o comentário de Pedrinho:

- E clePois? - indagou Pedrinho.

- Depois, can-ra. Já são nove horas. Para a carna todos!

Amanhã veremos o que aconteceu.

Pedrinho danou.

- É sempre assim. As histórias sâo sempre interrompidas

nos pontos mais interess:lntes. Chega até a ser juciirçrìo íp' 238)'

A interrupção é o aspecto composicional mais empre-ri,rrl<r em Peter Pan. Determina, de um lado, a divisão em

',ll)ítLÌlos e o tratamento clo tempo da narração, que toma',t'is serões. De outro, o processo de retardamento decorret:rrrto da preocupação em motivar o interesse do leitor na

r ontinuação da história, como da introdução da perspectivarlt'ssc rÌo texto, qlle solicita informações suplementaresl9 e

ilì('orpofa sua realidade ao texto, buscando diminuir as

lronteiras que os separam.

A atuação de Dona Benta, ao longo do relato, indicia

,r l)resença cle uma concepção sobre o papel do narraclor.

:ì(' comenta e explica a ação, isto decorre sempre da soli-, il:tção das crianças, evitando introduzir seus valores no pro-t t'sso cle narração; ao mesmo tempo, não perde o controle:,,rlrre ele, manipulando as emoções dos ouvintes, pelas

19 v. or pecliclos de informação sobre a pigmentação da pele

lrrrrrrana, o outono, lareiras etc., que povoam a seqiìência de Peter Pan.

lii

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rrrlt'r.r'rrpcÕes e cortes no andamento seqliencial. A sualt'c:l:rboração da história original é igualmente significativa,

lx)r(lllc a avó procura concentrar-se no cerne dos aconteci-rììcntos, evitando as digressões do original de Barrie, cujarrção evolui lentamente devido às intromissões contínuasclo narrador, assim como aos comentários à margem doscventos. A valorização da ação e o desprestígio da descri-

ção, o emprego de uma linguagem coloquial destituída desegundos sentidos ou ironias (bastante freqtientes no origi-nal) são os atributos que se salientam numa obra para cri-anças, e é ao que Dona Benta procede em selr contar.

Ao liberalismo do narrador acrescenta-se slÌa condutacomo chefe de familia. Embora mantenha sua autoridadesobre as crianças, não assume um papel punitivo. É o queclemonstra o episódio com a sombra de Tia Nastácia: se,por um lado, este episóclio visa atrair a atenção igualmentepara o mundo das personagens do Sítio e dar-lhe uma vidaautônoma em relação ao primeiro Peter Pctn, assim como acriar um mistério em torno cla ação, inclependentemente doque acontece aos meninos na Terra do Nunca, por outro,ele coloca Emília na posição cle merecer um castigo. Assim,à expectativa sobre a descoberta do criminoso, soma-se a

dúvida quanto ao tipo de punição que a boneca receberá.E o leitor é contrariado: Emília corrige-se a tempo e não épunida. É o que explicita a medida da liberaliclade da histó-ria: porque, como ela é um dos veículos de integração doleitor à obra, sua punição inevitavelmente repercutiria nele.E o autor a evita, omitindo aincla o remorso de Emília; pois,se o objetivo do livro é incentivar a criatividade e a toma-cla de posição, o castigo daquele que assim procede - istoé, do que responde positivamente aos apelos cla ficção -provocaria não apenas uma incoerência com a temáticadesenvolvida, mas o assumir de uma atitude autoritária ecastradora. Conseqüentemente, Dona Benta nada faz, comonarradora e como adulta, limitando-se a advertências vagas.

90

-Ibdavia, ela não deka de transmitir seus valorts' ( ilt:tttt;t

,r :rtcnção de Emília devido às atitudes dessa em l'clltçrtrt:t

l'irr Nzrstácia e enfatiza a necessidade do saber' coln() tllìì

rrrt'io cle cada um se impor no mundo. Se tais valorcs 's:t<r

,lu('sitionáveis, porque não impedem, por outras vias, o rc-

l()rr.<t clo racismo ou uma visão utilitarista do conhecimcrr-

r, r,l0 o livro não se converte em obra moralista ou ped:rgó-

rlit'rr, pois este enllnciado provém de uma narradora, cuja

1,.,l,rvia não é absolutizada, diluindo-se uma situação de

ulrrrlclade com o ouvinte.A este universo ficcional se opÕe a presença de outros

i,('r'cs, quais sejam: um narrador anterior, doador do relato

rorlo, e um ouvinte posterior, leitor implícito. Como o livror('l)rocluz as condições de transmissão da história, as fun-,.,,cs originais de comunicação são também apresentadas,

tlt'sclobrando-se o modelo antes descrito:

l\:rlraclor 1 -> Narrador 2 -+ Mensagem -+ Ouvintes -> Leitor

IIIII:rrrônimo Dona Benta Peter Pan Meninos anônimo

A duplicação das funções narrativa e receptiva possi-

lrilita a reflexão em torno dos atributos do narrador e do

rr:rrratário; ficcionalizados ambos, o exercício de uma ação

20 La*..tturrelmente, a reprimenda de Dona Benta não exclui o

, I rrnponente racista: "mais respeito com os velhos, Emília! - advertiu

t)()rìu Benta. Não quero que trate Nastácia desse modo' Todos aqui

r,:rlrcrn que ela é preta só por fora" (p. 166). E que se perceba a relaçâo

( rìlre conhecimento e objetivo prático: "Neste mundo' Pedrinho, pre-

, isuuros conhecer a linguagem <las gentes simples e também a lin-

rtu:ìÉlem dos pedantes - se não os pedantes nos embrulham' Você iá,,1,r"..1e, o que é cinegético e se em qualqr-rer tempo algun-r sábio da

(;rúcia quiser tapear você com Lrm cinegético elÌì vez de abrir a boca,

(()rìro um bobo, você iá pocle dar uma risadinha cle sabidão" @'227 -t;rifb do Autor).

97

Page 45: A Literatura Infantil Na Escola

l)('l() lxilÌÌeiro se contrapõe à presença dos comentários cola-

tcrri.s, clemonstrando as regras de funcionamento do discur-

.so nzrrrativo. Todavia, este desdobramento relatíviza a posi-

ç-rìo clo primeiro narrador que, como intedocutor do relato,

vai-se apagando em seu transcorrer e cedendo terreno a

t)ona Benta. Esse outro discurso é o que ascende; mas nun-

ca se instaura soberano, porque sofre constantemente o

assédio e o interrogatório dos ouvintes.A relativização do narrador não ê, pois, simétrica à do

recebeclor. Se a duplicação do primeiro o enfraquece' a

multiplicação do segundo fortalece a posição do leitor, que

encontrâ aliados, com os quais se identifica. Por isso, Peter

Pan representa um reforço da posição da criança e o reco-

nhecimento de seu status de leitor que impõe normas' na

medicla em que interfere, interrompe, interroga e julga as

personagens, cle acordo com suas necessidades e con-

cepções.A ascensão da perspectiva da criança ao primeiro

plano inverte o sentido do relato original. Neste, era a nos-

talgia clo adulto que predominava e contradizia o desejo

infantil de imitar o mundo dos pais. Por isso, a história esta-

biliza de imediato a função de Peter Pctn: se este oscilava

entre ser o chefe cla família e o filho de Wendy, no livro de

Monteiro Lobato, ele é um pai consciente e responsável,

assim como um aventlÌreiro irrequieto que não se slÌbmete

ao poder do Capitão Gancho. Este é o lado que encanta as

crianças e com o qual querem se identificar; porém' não

acontece a ruptura completa com o original, uma vez que

também a inexorabiliclacle do tempo e a irreversibilidadeclos acontecimentos são assinaladas. Emília e Pedrinho criti-

cam a atitude dos heróis que voltam para Londres, e Dona

Benta explica, ao final, a simbologia da história, invocando

a transitoriedade da infância:

- Em que momento?

- No momento em que batemos palmas clttlttt<Lr ;tl;1ttt'trt

nos pergunta se existem íadas.

- E que molnento é esse?

- É o momento em que somos do tamanho clclc. M:ts

depois a idade vem e nos faz crescer... e Peter Pan, entâo, t.tttttt ;t

mais nos procura... (p. 262).

É nesse aspecto que Monteiro Lobato não rompe c()rìì.r visão de James M. Barrie, mas desloca-^ para um segLlll-,l, r plano. Além disso, o conteúdo nostálgico é emitido por,rnr udulto, de modo que ele obtém uma coerência entre o,ujcito da enunciação e sell enunciado, o que não existiarr.r obra anterior. O confronto entre dois espaços ficcionaisrr.r história de Monteiro Lobato acrescenta ainda outros,rr;l)cctos à questão temática.

Peter Pan, de James M. Barrie, contrapõe dois campos,,, cle civilização e o da natureza, eqttivalentes respectiva-nr('rìte à realidade e à fantasia das personagens. A trajetóriarlt'strÌs se orientará do real para o imaginário, por meio do:,rrrrlìo e do "faz-de-conta", e de seu contrário: a volta sig-rrilica uma adequação à realidade, a aceitação do mundo,r,lrrlto. O leitor de Monteiro Lobato acompanha esse traje-t(), rÌlas selÌ Íetorno não o leva para Londres, à ciclade mo-rlt'r'r'râ e ao progresso, mas a Llm outro espaço fantástico, o.sitio clo Pica-pctu Amarelo. Uma fantasia é substituída por.rttl'iÌ, mais próxima e nacional, porém oposta ainda à civi-lizlçiro. Cabelhe preseffar, pois, o Sítio, um mundo edênico,' livre, visitado sempre por entes maravilhosos e aven-rurciros configurado como sinônimo da imaginação e do

lú'.17,ef .

Como fazer para asseguÍar este mundo? A integração,r, r Sítio faz-se tão-somente pela leitura, isto é, pela imitação,lo uto de suas personagens. Desse modo, o livro solicita a

:,i rrresmo, e a continuidade do mundo da fantasia ê t per-rrr;rnôncia do ato de narração da história. Tematizando sua

1'rrrclr.rção e relacionamento com o leitor, Peter Pan, de

93c)7

- Significa - disse Dona Benta, que Peter Pan é eterno,

mas só existe num momento da vida de cada criatttra.

Page 46: A Literatura Infantil Na Escola

lVltrrrle:iro Lobato, garante para si e para a literatura umIrrg:rr na vida da criança. Mas o faz enquanto apela para a

Í:rntasia, retardando o ato de adequação à realidade, na

rrrcclicla em que representa uma renúncia à imaginação e à

inÍância, ou seja, uma aceitação da soberania adulta.

O fator de contestação do texto não advém, pois, de

rrnra aspiração a um mundo liberto de normas, ideal por-clue inalcançâveI, mas coincicle em que a preservação da

infância faz-se na medida em que consegue se isolar dos

valores adultos e civilizados, o que apenas pode acontecer

enquanto o livro influenciar sua existência. Rompido esse

laço, a criança clesaparece. Dessa maneira, à literatura atri-bui-se o papel protetor em relação às investidas do mundoaclulto, o que, mais uma vez, refotça o sentido dúbio que ogênero nâo consegue suplantar. Constitttindo o meio que

o leitor infantil tem para posicionar-se perante o real, sett

resultaclo será ott a conversão forçada e o abandono da

ficção ou a insistência nessa e o retardamento da maturi-

dade. Superando o fator nostálgico do livro de Barrie, o Peter

Pan brasileiro não alcança suprimir a cisão entre o mundo

infantil e o adulto, embora opte por aquele e lute pelo reco-

nhecimento de seus valores e autonomia.

Ãs aventura s ão avíã.o vennelho, d. Í)ri.o Yeríssirno

Peter Pan, de Monteiro Lobato, lida com dois temas

férteis da literatura infantil: o papel do livro na vida da cri-

ança e o desejo de voar, conhecer novas teffas e aventurar'

É ã q.,. aparece igualmente no relato de Érico Veríssimo,

As auenturas do auião uermelho. Sua história está centrali-

za<la em Fernando, o menino travesso' que ganha de sett

pai um livro, em troca de seu bom comportamento. O rece-

bimento do livro como recompensa leva-o ao conheci-mento clas aventuras do Capitão Tormenta, com o qual se

iclentifica. Pede então um novo presente, trocando-o outra

94

!r'z l)cla atitude comportada: um avião vert]lcllro. l'}il(,l.l,,h'poi..i, esse avião, saindo em aventuras pelo ttnivcr.so, :tlt'i,rlt:u' para casa, qllando é repreendido pelo pai, <lttt'

, n( ()rìtra o novo brinquedo em pedaços.A narrativa pocle ser dividida em dois níveis:21 o cllt

rrr,,ltltrrlÌ, que compreende o recebimento do livro e cl<r

rvr.ro, sitLrâdo no terreno familiar; e o das aventuras pelxlrr.r t' contioentes, acompanhado de dois bonecos. A sepa-

r.r',.r() clos níveis corresponde a utrìa divisão nos planos, ,1';rc'iul e temporal e à qualificação entre real e onírica,r,':,lrt'ctivâmente, cle um e olltro:

l',1

l('l

SETOR FAMILIAR SETOR MUNDANO

)íÌÇo interno: c:rsa externo: unlvefso

ììpo uma noite cinco dias

rlrito real fantástico (sonho)

l:Ìl() moldura ação (aventura)

IÌxaminando o setor familiar, pode-se verificar a repre-,, rrl:r('ho da criança no plano social e pessoal. Este últimorl,r('scntáÌva-se por meio da carência clesencadeada pelolrvro, cr-rjâ doação deveu-se a LÌm pacto entre pai e filho,, rrr',rlvcndo bom comportamento. Resultando, pois, de umr r{ )lf ìcÍrto de trégua doméstica, o livro vem propiciat a falttnr.u( )r'vivenciada pela personagem: a de lançar-se para fora

'1,, r;rrrdro familiar e reprisar as façanhas do Capitão Tor-rrr.nllr. Isto é, ele ocasiona LÌma nova travessura do garoto:r lrrr',:r cle casa pela imaginação.

il U-o aborclagem clas funções narrativas neste e nos outros livrosrrri rrrtis cle Érico Veríssimo pode ser encontrada en'r FILIPOUSKY, Ana, I r r r z, r ; ZILBERIIAN, Regina. Erico Veríssimo e a literatura infantil. Portorl, r,rt': lr-rstituto Estaciual do Livro; Universidade Federal do Rio Grande

, l' , : ,r rl, 1978.

95

Page 47: A Literatura Infantil Na Escola

Slì<; as imagens presentes no texto que estimulam aÍ:rrrtrrsia de Fernando22 e levam-no ao desejo de ter e diri-sir <r avião; todavia, o menino esbarra numa dificuldadcnutural: ele é muito grande e não pode entrar na máquina,Sc o livro aciona o imaginário e motiva a identificação dclìcrnando com o bravo piloto, o avião, segundo objetorrrágico da narrativa, patenteia as dificuldacles físicas da cri-xnça para efetivar seu sonho.

A questão relativa ao tamanho avulta com a represen-tação concreta dos problemas de toda criança. Fernandosente-se muito grande para comandar o veículo,

- Pois é isso mesmo - refletiu Fernandinho. - Eu nãocaibo no :rvião.23

mas o pai focaliza a questão do ângulo contrário:

- Papai - disse Fernandinho colÌÌ voz tremida - eu tenhotanta vontade de viajar de avião...

Papai passou a mão peÌos cabelos clo filho.- Pois sim, meu querido, quando ficares grande poderás

entntr num aviào.

A impotência da ação infantil no plano real fica reve-lada por sua condição biológica e acaba reforçada pelaincompreensão adulta, como se pode verificar pela reaçãocle Fernando às palavras do pai, acima transcritas:

Os olhinhos de Fernando brilharam corno bolitas de vìdro.- Não, papai, eu acho que só posso entrar no aviâo quan-

clo ficar pequeno.Papai nâo compreendeu.

22 S"li..rtn-r" que o narraclor não cliz que o menino leu o texto, esim que viu suas figuras, o que indica sua laixa etária e condiçâo de pré-alfabetizado.

23 lcnÍSSuraO, Érìco. As auenturas do auião uermelbo. portoAlegre: Globo, 7976. As cirações provêm desta eclição, ern que não há anumeração das páginas.

L)b

llrriclttnente o recurso à imaginação resolvcrít o lltrrl,l,'rrr;r rlo herói: usando um instrumento que amplill ()'5

,l r1r'to..;, uma lente, ele obtém o efeito contrário' Ficzt 1lc-

rlr{'n()r sei em aventuras e volta apenas por acaso, sencl()

,'rr, ,,rrtr':Ìclo pelo pai, que mais úma vez não entende o qLle

,,,, l).ilis()Ll com o filho:

- Menino mau! Dei-te este avião onterÌì e iá espatifaste

totl<> o coitadinhol (.'.)Fernanclinho compreendeu tudo' Papai nâo sabia da aven-

tU I1ì.

A incompreensão paternã e a âtitude repressiva confi-

r:ilr,ilÌr <r nível familiar do texto. O menino ê caracÍ"erizado

' 11111 I {çl1vssso ("Fazia o diabo. Era respondão' Gostava de

,ur,rrrlurr a cara da cozinheira e de botar a língua para os

ru,ri:r vclhos") e causador de tristeza para os pais:

O pai e a mãe de Fernando viviam muito tristes' Só ti-

nham aquele filho. Queriam que ele fosse quietinho, obediente,

l.>on-r.

Avulta, pois, a assimetria entre o desejo dos pais e a

,rrrtrrtlc clo garoto. A harmonia só é alcançada, quando Fer-

rr.urrlo vê uma vantagem nisto, tal como receber um pre-,,r.rrrc. o sistema cle trocas vai garantir o equilíbrio familiar,.,,,l rctr.rdo nas relações entre pai e filho, já que a mãe' em-

l,,rr:r l-Ì-Ìencionada, nlrnca aparece. Mas é uma harmonia

1,rt'r'riria, porque o avião, sinal de paz, converte-se em pre-

t('\t() para novas travessuras' assegurando ao pai a manu-

lcrtl-io de seu papel autoritário:

- Fernandinho! - gritou ele. - Que é que estás fazendo de

rnanhã cedinho em cima da mesa do meu escritório?

Fernandinho baixou os olhos, com medo'

É a configuração do plano familiar que diminui o

lr,'r'(ri. Não impede sua ação, mas determina que se passe

97

Page 48: A Literatura Infantil Na Escola

ulÌi(':uììcntc no imaginário e na companhia de bonecos.l;illro único, incompatibilizado com as exigências de bom('()lììportamento, sem arnigos humanos, está confinado aoc'írcr-rlo familiar, de que pode escapâr em âventllrâs que olcvam para toclo lugar, menos para fora de casa. É para essa(lLrc retorna inevitavelmente, porqlre, de fato, nunca a aban-clonou. Por essa razão, a aventurzì não lhe acrescenta nada,a não ser a compreensão da cliferença entre sell tempo e oclos aclultos:

Fernandínho compreendeu tudo. Papai não sabia da

âventura. Eles tinham fugido de c:Ìs:ì ontem. Qr,ranclo a gente é

peqì,reno, do tamanho do dedo mingr,rinho, cada dia dos homensgrandes vale cinco dos nossos.

Em outras palavras, a reflexão cla criança leva-a l acei-tar a divisão e acentuar a desproporção física: qlÌânto menoro tamanho, maior a diferença entre os tempos e a distânciaentre os valores. A harmonia é, pois, utópica, cabendo a

c:rdzr um clos pólos etários - criança e aclulto - guardar seuespaço e tirar o melhor pafiiclo dele: o adulto exercendo ocontrole sobre o real e a familia, a criança tendo acesso àfantasia, qlÌe compensa seu desprestígio cloméstico.

A fantasia posiciona a criança no real, sendo sua fontede informações o livro. Que munclo aparece para Fernan-dinho? Geograficamente, fala-se da lua e da Terra, de céu,e mar ou continentes exóticos como a rtrica e a Ásia; osgrupos humanos são representados por tribos africanas echineses. A vida urbana é configurada pela cidade selenitae a dos tico-ticos. Em outras palavras, Fernandinho encon-tra ambientes totalmente fantásticos ou ultrapassados, comoos antropófagos cla África. Mesmo os animais são extraor-clinários, como o prefeito dos tico-ticos ou o porco que temuma casa, um mato e uma lagoa no estômago. No mundovisitado por Fernando, nada é verossímil, e sim desvincu-lado de um tempo e espaço possíveis. Simultaneamente,

',,,t ,rt'sslÌi o caráter desconexo de todos esses olljct<)s' () (lll('

,lrlr, rrltrt a formulaçào, pelo menino, de uma c()tlcclx';l()

rrrlctir':Ì cla realiclacle, que lhe ofereceria um conhecitttctlltr, 'l 'r t' () universo.

Assitn, se o cerceamento no plano familiar e a diminr'ri-

,= r,, rì() nível pessoal levam-no a refugiar-se na fantasilt,

,1, ',t'rrt'rrcleâcla pela apreensão do livro, os objetos refletickrs

t",r .'la clernonstram a ausência de uma vivência, pelo

rr, ilirì(), clo real ou de um tempo e espâço determinados'.\rr r'orrtríÌrio clo munclo de Oz, onde Dorothy vê simboli-..r,l.r sLra circunstância, o que lhe permite chegar zì auto-

rlrrnnçiÌo, o meio por onde circula Fernando é caótico,

,.r{'rìtc cle referências que permitam situá-lo num âmbito

r, .rl. Nito se trata apenas de uma aprendizagem inexistente,

rrr.r:, (lo fato de que a fantasia de Fernando não está reela-

l.rr.rrìclo seus contatos com o real. Como afarrrilia não lhe

1,r,picilÌ experiências por mantêlo em casa' e o livro ocu-

g'., ,, pólo oposto, oferecendo-lhe imagens desconexas de

rrrn ruìiverso fantástico, o menino não tem o que transpor-

t.rr :r intaginação, logo, nada retirando de seu passeio aêteo'

l)cqueno para enfrentar o mundo, tornado menor para

1,, ,r lt'r ocupar o avião cle brinquedo, isolado de todos na

, ,,rrrpanhiá de bichos de pano, Fernando é um ser frágil

,lr(' nzrcla obtém de suas vivências, porque estas não se

, r rrrVCrtetrÌ em experiências. Contudo, isso não o torna umrrr,livícluo passivo; se não se amotina contfa a repressão

;r,rtcnìâ, permanece indiferente a eIa e ignora as advertên-, i,rs ÀléÀ disso, adotando a postura de leitor desde o rece-

l,inrento do livro, espelha a condição do destinatário em',rr:r inoperãncia, quando sua situação infantil é reforçada

lì( )r um isolacionismo. Nessa medida, se a identificação esta-

l,r'lccicla entre o leitor e a personagem não produz a eman-

, ilxrÇão do primeiro devido à fragilidade da segunda, ela

,,'.1r.,, n umà conclusão oriunda do percurso do caminho

rìvcrso. É que a dificulclade da literatura infantil não está

.rìÌ seu up"io à fantasia, como fazem O magico de Oz ou

99

Page 49: A Literatura Infantil Na Escola

l\'lt'r'l)an, neln em sua cisão com a existência histórica dar ri:rrrça ou da personagem; decorre, também, do fato de(luc carecerâ de consistêncil - e, portanto, de interessertrlístico - quando resultar de uma vivência empobrecida,itlctrpaz de elaborar seus dilemas.

Dessa forma, a fantasia na história infantil sempre espe-lhará, de algum modo, a circunstância histórica e, transitandono âmbito do maravilhoso, a personagem atinge um grau desuperação interior que lhe pennite suplantar os percaÌçoscom a familia e o meio ambiente. Entretanto, quando issonão ocorre, como em ,4s alenturc$ clo auião uermelbo, acleformação não se situa na atitude escapista ou no apelo àimaginação, mas no fato de que esra naò tem concliçães cletraduzir o mundo íntimo da criança, porque o adulto, comoo pai de Fernando, cerceou seu desenvolvimento.

Tal repressão, por vias transversas, reflete igualmentea condição da criança, mas, como no livro de Fernando,não resulta numa aquisição de saber; e converte a aventuranuma soma de eventos sem maior conteúdo. No entanto, ocerceamento pode impedir ainda o próprio desejo da aven-tlÌra, como se verifica em outra obra de Érico Veríssimo, Auicla clo elefante tsasílio.

A história do elefante Basílio apresenta duas seqtiên-cias: na primeira, são narrados o aprisionemento e trans-porte do herói para um circo, e, posteriormente, a compradele por trrnr família rica conro recompensa por uma açàopositiva. As atitudes sempre elogiáveis do animal e os prê-mios que recebe fazem dele a antítese de Fernando; porém,instalado na casa do menino Gilberto, manifesta um desejosurpreendente: quer ser borboleta, isto é, seu contrário:

Uma borboleta passorÌ voando diante dos olhos de Basilio, fez LÌmas piruetas no af e depois pousou numa papoula ver-melha. Era uma borboleta azul, com asas pintadas de ouro verde.Basílio achou-a tão leve, tâo bonita, tão brilhante qìle teve von-tade de chorar. Ficou pensando nela todo o dia. Olhou-se noespelho. Achou-se gordo, pesaclo, sem gÍaça. Aquela sua tromba

cr:r ridícula, toclos riam dela. E a sua barriga, cr.ìt1ì()i/l,or r1rrr.r.r.r<1uc clc não tinl-ra nascido borboleta? Oh! eue l)orrr.sr,t.lr. l,,,,,,,.lxrrboletal24

lì:rsílio sai em busca da satisfação de sua vor-rtlrclt..I rtt('tiu-ìto, quando alcança as desejadas asas, não acontcccr rrrr'tlrrnorfose, e sim o aparecimento cle um ser grotesc(),

' 'l r;r'lo clo desconhecimento e do riso clos outros. Esse ca.s-111',, 1X)rérl, não basta; ao voitar para casa, é alvejado porìrn (iìÇtÌdor, que o confunde com LÌm perdigão. A narrati-!,ì ('t)ccrrzr COm a recuperaçãO do elefante, Sem mencionar,' luturo cle suas asas, dando a entencler que os percalços, rvrtlo.s determinarâm a renúncia a elas.

A aspiração de conversão em borboleta, a antítese derrrrr t,lcfante, denota a insatisfação do protagonista consigonr( :;rÌì(). E a vontade de voar, que o aproxima tanto do para-,lrjlrìì:ì cle Peter Pan, quanto de Fernandinho, quando, norrrr, io clo felato, era o selÌ contrário. Sua sortc é a mesma'1, r rììcnino, pois é impelido de volta à condição original, e

' (,lìÌ utÌì agravante em relação à figura central de _4s auen-trrri r.s rlo auiôío uermelbo: o eÌefante é punido, de modo que',,,llrc resta reprimir o desejo e conformar-se com sua for-rrr.r t' iclentidade. Enquanto que Fernando ainda pode guar-' l,r ( (x'ìsigo, na memória, os frutos (embora parcos) de suas\ r,r)l('rì.s, a excursão de Basílio é, por todos os seus aspec-r r,,, ç11t21511[fica: torna-se um ser híbrido; perde a identi-,1.r, lt', ulÌ'Ìâ vez que não ê reconhecido; provoca risos;,' rrrlo, enfim, punido e retornando à fonna primitiva. O,1, ,t'j<r dc mudança gera deformação, o qlÌe induz ao con-li,lrìislno e à passividade. Se Basílio tem uma lição a tirar. , r;tir, cle modo que a saida para o mundo só produz resul-r r, k rs positivos para o aventureiro, quando lhe são ofereci-,1.r, normas de comportamento, a que se sujeita. portanto,

14 vEnÍsstuo, Érico. A uitía tto elefante Basílio. In: -. Histórias,ttl,uÌtis de Erico Veríssinto. Porto AÌegre: Globo; RBS, 1978. p. 98.

,15639

100 101

Page 50: A Literatura Infantil Na Escola

()l )ta'Íìì-.sc uma aprendizagem por meio da metamorfose,ltì:ìs (llle não implica, como também acontecera com Fer-rxrnclo, urn crescimento humano.

Da representação da criança no livro infantil decorrerá() tratamento artí.stico de sua busca de identidade e lugar.social. Se o resultado ficcional pode apresentar caminhoscomprometidos com o leitor, na medida em que lhe propi-ciam o reconhecimento e a solução para seus dilemas internos,ct contrário também pode ocorrer. Nesse caso, a persona-gem é a primeira prejudicada: seus desejos são contraria-clos, afirma-se a autoridade paterna ou aclulta por meio davalorização cla norma e presencia-se a eusência de um cres-cimento íntimo por meio da aventura no mundo. por suavez, ê a familia que acaba consagrada como lugar socialpleno, uma vez que apenas ela pode traduzir os valores. Oreal não apenas é desconexo ou fantástico, como em ,4sauenturas do auião uermelbo; ele é ainda um cenário cleperigo, onde o herói perde sua liberdade ou acaba avilta-clo pelo outro, o que o traz de volta para o âmbito domés-tico, agora duplamente justificado. É o que revelam os últi-mos textos analisados, evidenciando desta vez o compro-misso ideológico oposto, o que atenta contra a autonomiada criança.

Transnlissão ãe Norrnas e Rupcura

A cenÍalização do evento narrado num herói infantil,nascida do interesse de estabelecer um vínculo profundoentre o leitor e a obra, tem como conseqüência a revelaçãodo dilema inerente à literatura para crianças. Se sua natu-reza foi definida com base em suas relações com a pedago-gia e sua evolução literâria, a verificação das particularidadesestruturais deságua na mesma evidência: a oscilação entrea representação da trajetória da criança, visando à elabora-ção artística de um caminho comprometido com a infãncia,

:o'

r' .t :,u:t rcpressão, apresentando as excursões acl Ittci() t'tlt'n' 'r ( ()rÌì() zÌventufas com finais desastrosos otl incl'tictltrttt'r;'

rl,.ilt()cl() que acaba por reforçaf a estrlltllra famililtt'c':tr, , lrrslì() cla personagem no âmbito doméstico' recant() sc'-

!,ur(), 1Ìo aliance dos pais, que mantêm tranqüilos stlll

,, ,l rt'r'rrni2l. Assim, realçanclo a êgide familiar e condenancltr

, , lrt'r'oi ltttscaclor, o texto assume um papel normativo' incli-

' ,ilr(l() ao leitor comportamentos preferenciais e reprovzÌn-

, I r :r.s postltras interrogadoras.A veiculação de normas pertence, portanto' à natureza

, l.r litcratura infantil, poclenclo aparecer em graus diferentes'

, { luc clepencle cle seu comprometimento icleológico com

,,:, intcresses clo aclulto. O caráter formador do texto é visto

rrr'stc primeiro momento, cla óptica temática; porém' não se

1,,,,lc negligenciar que esta clependerá do emprego de uma

,.'.le cle recursos, imperando sobre todos eles a manipu-

l.r,.,rìo cla linguagem. A soberania clo narrador sobre a dicção

,l.r pcrsonagem, a valorização da correção gramatical e a

tlistância maior oLÌ menor (inclusive etária) entre o emissof

r k r relato e o sujeito da ação são os meios pelos quais se

l;ì7.ctÌt a imposição e a interferência de certos valores no

.rrnltito clo evento narrativo e' por extensão, do leitor' O fato

r lt'(crmina, de um la<lo, a coexistência entre um projeto ideo-

It.rsico e o emprego clos meios literários; e, de outro' o que

,' rnais signifiiativo, a afitmação cle um modelo de leitura'

,1,'. excl.li a decodificação do destinatário' Como a voz do

,r,,rrador ocllpa toclos os espaços, ao leitor é fornecido um

rrrunclo pronto, previamente interpretado e facilmente con-

srrmível. Com isso, um processo cle percepção textual -é

igr-ralmente imposto, cJe moclo que o recebedor é colocado

1r.r".tr" u- prãd.rto acabaclo que' se é opressivo no âmbito

iclcológico, é digerível do aspecto estético'

Fáciliclade de leitura e transmissão de valores fepres-

sivos caminham juntos, numa espécie de comércio em que

se intercambia um relaxamento na decodificação pela con-

lìrrmiclacle com os conteútc1os passados pelo relato' No

103

Page 51: A Literatura Infantil Na Escola

('rìtluìt(), ó uma troca desigual e um negócio enganador, quecokrcu o leitor na trilha dos produtos similares da cultura delÌìr.sslÌ. Portanto, a forma fácil não é tão-somente a atração

l)1Ìrr o cânone adulto cle comportamento: é igr-ralmente oIurbituar aos objetos em série da indúrstria cultural, ao con-sLlmo acumulativo e não crítico, à leitura domesticada.

A literatura infantil vê-se também perante a possibili-clade ou não de adesão à vanguarda. A ruptura com os valo-res adultos é igualmente a negação de uma narração em quepredomina um narrador judicativo, superior às personagenspor seu conhecimento e capaciclade de avaliação de seusclestinos. Resguarda-se, portanto, no nível temático, a homo-logia entre o reforço de uma percepção aguçada e crítica,e sua provocação por meio de um tratamento dos recursosÌiterários postos à disposição do escritor. No exame da repre-sentação da criança foi possível evidenciar essa relação emO mãgico de Oz, por intermédio do uso da sugestão pelonarrador, ou em Peter Pan, pelo desdobramento da situa-

ção comunicacional. Cabe verificar agora como o problemapode ser equacionado de acorclo com o ângulo da trans-missão de normas, tratando-se, neste caso, de um enfoqueclo texto não mais com base na perspectiva infantil, mas cla

adulta, responsável pela narração.

Ã. ílha y.rãiãa, deMartaloséDuyré

A narrativa de Maria José Dupré conta as aventuras deHenrique e Eduardo numa ilha do rio Paraiba. Decidindoexplorá-la contra a vontade de seus tios, em cuja fazenda,no interior de São Paulo, estavam hospedados, os meninosacabam por se perder. Destruído o barco que os trouxera,permanecem alguns dias na ilha. Constroem uma iangada e

vêm a ser resgatados. Durante sua estada, Henrique co-nhece Simão, que vive isolado da espécie humana, na com-panhia dos animais do local. Após o reencontro com os

704

f i",,, ('stcs resolvem, com toda a familia e mais os clois ttt,'

urn,)rj, visitar a ilha. Mas nada acham de especill, ttc'ltl

ll, rrli<1rrc revê o amigo.( ) tcma do livro pertence à tradição de Robinson Cnrsttt',

,1,'l):rnicl Defoe. Isolados dafazenda, desprovidos de toclos

",, nr('i()s, os meninos têm de sobreviver às próprias cllstxs.

f ,,, l.rvi1ì, essa sugestão não é levada às últimas conseqtiên-

' r,r,,, l)()is Henrique encontra Simão e passa a tirat paftidcr

,1,,', lrcnefícios da sociedade implantada por ele. O ver-

,lr,lcir'o Iìobinson é Eduardo, mas o narrador acompanha a

rr,r;r'tr'rria de Henrique, até que os irmãos se encontram nova-

rf rlrrtr'c voltam ao convívio da civilização.A presença de Simão e sua harmonia com os animais

rt.r.,('nì pá;ra o livro a trtopia selvagem doTatzan, como lem-

l,r,r llcnrique. Contudo, Simão, após a revelação do garo-

r'r, lr;rt1r de preservar a peculiaridade de sua vida: ele havia

',l,r.r(l() por fttgir à civilização e viver num mundo à pafte,

rrr, llror e mais justo. A fusão do filão robinsoniano, indi-, r.r{l() l)cla aventura dos meninos, com a temática naturista

,l, liirnão sugere o eixo que estrutura o livro e organiza o

tr,rr.ilììcnto das personagens: é a oposição entre civilização, r itlrr natural. Eduardo e Henrique são habitantes da cidade

,1,r,' <'lrcgam ao extremo oposto: a "ilha perdida"; Simão é

', ll( )lììcm que a escolhe, otganizando aí seu modus uiuen'

,/r.,,rrclc ê feliz.A integração à natureza ê, pois, a volta ao paraíso.

llrurtlo sem conflitos onde o homem é soberano, a ilha,,u,ì('tcriza-se ainda por sua separação e inacessibilidade.,\., l)('ssoas podem chegar lá, porém nem todas conhecem., r ('()ração, apenas Simão, que aí introduz o neófito Hen-

r r, lr r(.. Este, por sua Yez, ^tinge

um saber não transmissível:,1,.v()lta à ilha na companhia dos outros, não mais conse-

,.u{' :rtingir seu âmago. A ilha se fecha ao grupo ou à curio-.,r,l.rtlc incômoda. Por isso, ela só pode ser interiorizada ou

, ,l rt itllt na solidão:

105

Page 52: A Literatura Infantil Na Escola

Antes de deixar a ilha, deram aincia um pequeno passeio1;clos arredores; a mat:Ì estâva muito nrolhacla clerri<.lo à cìruve .escorregavam a todo rnomento.

(...)Colheram algumas flores pera a maclrinha; Henrique clizia

consigo mesmo: ,,Um dia voltarei sozinl-ro.,,25

Advém daí a sugestão do senticlo onírico da experiênciacle Henrique, justificando a increclulicrade clos compànheiros.Seu sonho constrói um tnunclo icleal e mágico, realizanclouma experiência pessoal que não pode ser compafiilhada.Tal "egoísmo" espelha e legitima o isolacionismo clo objetoclesse sonho, Simão, de moclo que a harmonia com a natu_reza é simultânea a um repúdio ao social e à afirmação clainclividr-ralidade. À netLtreza, que se caracteúza com a totali-dade, contrapõe-se LÌm ell unitário, mas clividido em relacãozì comunidade.

A experiência solitária de Henrique parece valorizada.porque seu resultado é um fortalecimento do ego diante denatureza, assim como a promoção de um icleal rousseauni_ano, em que a bondade natural do ser humano é reforça_cla pelo meio selvagem. Toclavia, essa conclusão é clesmen-tida ao se contrapor a outro valor que se sobressai no texto,com maior saliência ideológica: a obecliência.

O fundamento edênico cla concepção de naturezasalienta-se com base nos paracligmas de que a história seapropria,26 o de proveniência Àbinsoniana, assegurancloque o indivíduo tem condições cle sobreviver num meioincivilizado; e o rosseauniano, que atribui a este ambienteuma superioridade em relaçâo à victa urbana, ao progresso

,' ,t lt'c'nologia. Esse pensamento se complelncíìt1r pcl:r t'rt'tr,..r rr:r lutrmonia entre o homem e a naturezâ, e llrÌ lrorrcl;r,1,', r,l,ontânea do primitivo.2T Contudo, a primeinr contr':rrlr

',r{) trÌnsparece quando se verifica que o alvo maiol i' :r

rr\'('rsìo de um dos modelos, aquele que impele à avcr.rtrrr':rr' .r() (lcsconhecido, próprio às proezas de Robinson.

(lorn efeito, se os meninos excursionam à ilha motivlr-r l, r:; 1)clo espírito de aventura, a validacle dessa iniciativa ó'

,1rrt'.stionacla de imediato por meio cle dois fatores: as forçírs,l.r rlrtLrreza castigam Henrique e Eduardo, já que uma cheiar ,rusir iÌ perda do barco, sucedendo-se depois outras des-rir.r(,'1rl;; e emefge forte sentimento cle culpa e arrepencli-r!Ì('rìt(), tão logo aportâm na ilha:

Foi com verdadeira emoção qlle os dois meninos pllserampé em terra; estavam afinal na célebre ilha. Tr"rdo fora tiro fhcil,pensoLl Eduardo, e Henrique era tâo remador, nâo cleviamerrepender-se da mentira pregada aos padrinhos (p. 19).

'fais emoções retornam durante a primeira noite pas-,,:r< llr fbra:

Os dois meninos estavam arrependidos de se teremarriscado nessa aventura: tinham vontade de chorar, mas queriammostrar-se fortes, um para o outro (p. 2B).

Não falavam; cada um pensava com tristeze no erro quehaviam cometido. Nunca deviam ter feito isso às escondidas clopadrinho. Nunca. (...) Que arrependimento! (p. 28)

E permanecem vivas atê a volta ao lar:

Eduardo e Henrique sentiam-se muito envergonhados doque haviam feito; baixaram as cabeças com vontade de chorar. (...)

Eduardo fezcara de choro e Henrique pediu logo desculpas (p. 103).

27 os animais representam essa bondade, organizados numarrrrnunidade sem conflitos, que imita o melhor do ser humano. Exemplarc a cena da morte da veadinha, em que todos se solidarizam com o paicrrlurado (p. 63 e 84).

25 OUpnÉ, Maria José. A ilba perdida. Sâo paulo: Ãtica, 1979.p. 126. As citaçòes sào retiradas desta e<liçâo.zo Hâ únda outro paraclig*n o.ulro, o cla ,,visâo do paraíso,,,descrito por Sérgio Buarque de Holanda (Cf. HOIANDA, Sérgio

-Buarque

de. Visão do paraíso. Sâo paulo: Nacional, 7977) e io._ilud" p"ìo,primeiros viajantes europeus em relaçâo à recém-descoberta Amérìca.

706 t07

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() cspírito cle aventurâ é contrariacro e substituícro pelairrrpo.siçâo do modelo de obecliência e bom.o-po.,r_".,_to' Prevalece a necessidade de submissão :ì orclem pâternar' :rclulta, imperando acima de tuclo as prerrogativas ào gm_P.' Tal fato justifica o carárer oníricô cla Jxperiência"doIrcrói, que o texto sugere ambiguamente, esclarecendo suarlrziro de ser, qual seja, a ânsia cle escapar a LÌma orclemclominadora, possível somente quando se afirmar comoindivíduo isoÌado. Simão é, pois, a projeção do eu ideal cleHenrique, soberano e senhor cle sua vontacre até o momen-to em que se exaure o desejo da soliclão clo jovem. por isso,Simào administra a açào do protagonista, clomina_o e trans_mite-lhe noções de respeito à natureza; também por causaclisto, ele se esconde dos <iemais, desvendaclo apenas aHenrique quando despojado de seu remorso e ansioso porauto-afirmação. Contudo, Simão é um aclulto, o q.,e f"chao círculo e estrangula a recém_conquistacla libeiclacle dogaroto.

Produto de uma projeção do menino, que elabora umeu ideal, Simão assume cle imecliato um papel paterno:veicula lições a ele, controfa seus passos e ctetermina quan_do deve retornar à casa. É o qte-o converte em superegoe justifica sua conduta, aprisionando o jovem. Este, por s.:,avez, foi incapaz de mentalizar um ideal cle liberãade quenão o transformasse em prisioneiro e, simultaneamente, refle_tisse sua condição. Desse modo, ê a criança que confirmaa necessidade do poder adulto, assim como sua icleologia,fundada na obediência e contrariedade ao espírito d" ,rrã.r_tura. Por isso, ao final, o jovem posterga para o futuro suautopia da solidão metaforizada na ilha selvagem, perdicla,e seu sonho de uma vida livre, oposta à que a civilizàçâo lheoferece, na qual imperam o conformismo e a obediência.

A norma adulta sai fortalecida: fugindo do munclodominado pelo padrinho, o filho pródigã volta arrependi_do e humilde. Sonha com uma realicladã icleal, na qual seoferece a possibilidade de expansão plena de seu

".,, -n,

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,rr,rlr:r subjugado a um adulto que, etnbc)l'll ('tì(,lltt.'lllrli,l',rl clc liberdade, autonomia e poder sobre o Ittt'ir), í' ,rlrl,l,r r;rrpcrior e senhor de sua sorte. Composto pclos t'r,lt'tr'lrrpos clo pai, rei e soberano, Simão representa o t'clìrr'ço,l,t,1, ,rrrinução adulta, transferindo o projeto de HenriclLl('l)ill,lrrru lìrturo distante, quando a posse da condição aclttltrt lìrr,, :,,rlvo-conduto para o poder.

A supremacia adulta é ainda realçada pelo narr:rclor,

,lu('('crra fileiras com o grupo dos mais velhos, estrangulan-,l, t'ntão a autonomia da personagem e a liberdade do leitor.

Iì.m A ilba percíícla, o discurso provém de um narradorrrrrpc.ssoal e onisciente. Ele bloqueia não apenas a mani-lr':;trrÇão das personagens, que se comunicam pelo discur-,,, inclireto, como também a interpretação do leitor, pois

r.rkrs os atos são explicados, não deixando margens a

,lrrviclas. A onisciência relaciona-se ainda à permissividader r)rìì qLÌe interfere na intimidade das personagens, fazendo

1ror clas as perguntas e formulando as respostas. O exem-

I'1,, rtl'raixo é ilustrativo:

Cada um tomou utn gole de água e depois iniciaram a

caminhada de regresso. Mas quem diz de encontrar o caminho?

Eduardo dizia que era à direita, Henrique afirmava que era à

esquerda. Ficaram assim discutindo durante uns instantes, depoisresolveram caminhar para a direita; andaram uma meia hora enâo acharam o caminho por onde haviam passado (p.21).

O narrador não se limita a descrever a ação; ele ela-

lrora ainda a pergllnta que indica a indecisão dos heróis.A.ssim, não são eles que se questionam: "Mas quem diz de('rìcontrar o caminho?", e sim o emissor do relato, que inter-

l)rcta e decodifica a incerÍeza das personagens, sem parti-cilrar dela. A distância da qual assiste aos acontecimentos

lrcrmiteìhe, por sua vez, não se comprometer com os even-to.s: por isso, contrasta tlagrantemente a segurança com que('onta os passos perdidos dos meninos com a angústia deles,

t1r.re andam em círculos.

flI

j

l

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 clistância, a impessoalidade e a capacidacÌe cle inva_.srì<r na intimidade dos heróis assinalam a separaçâo rad.icarclltre o âmbito das personagens e o do nairador. por suavez, a absorção da dicção dos dilemas interiores clelas à suavoz não apenas uniformiza o discurso, mas o submete àssllas normas lingüísticas. Como se pocle ver abaixo,

O homem deitor.r-se no leito cle couro e penas e colreçoua ressonar. Henriqrre preprroì.I_se tenrbém para clormir; nessemomento sentiu o coraç:ìo apertar_se de tristeza: oncle estariaEduardo? Que pensaria ele nâo o encontranclo na prainha? E ospaclrinhos? Ë os pais em Sâo paulo sem saber cle nâcla? E aclueleÌromem barbudo que o tinha prisioneiro e quase nâo falava? Oque seria dele ali prisioneiro? Até quando ficaria na caverna? Erapreciso fugir, sir-r'r, fugiria. Na noite seguinte, sairia cla cavernaenquanto estivessem donnindo e acharia o caminho da prainha.Nâo podia ficar sempre na grura. Impossível (p. 56).

o narrador absorve o drama interior de Henrique e expres_sa-o em sua sintaxe: usa do futuro do pretérito, porque ofato atual para o menino é passado para ele; portanto,sujeita a personagem a seu tempo. E o empregò da lin_guagem gramaticalmente perfeita corrobora que aansiedade do garoro ê filtrada pela norma lingüísticá regu-ladora e, por isso mesmo, amenizadora da angfrstia.

Por essa circunstância, o dilema do herói nâo transitapara o leitor. Filtrado sempre pela linguagem correta e cali_brada do narrador e explicado em i.,o, ."r.lrrs e conse_qüências, ele produz a exclusão do recebedor, que se vê,como Henrique, cativo de uma vontade adulta que mani_pula suas reações, mas não consegue mover suas emoções.

O tratamento das lacunas completa esse processo quecaracteriza o imperialismo do narrador no texto e, por exten-são, dos cânones adultos. Como nenhuma motivação édeixada em aberto, a narração ocupa toclos os espaç;s dorelato. No entanto, duas lacunas avultam: a primeira dizrespeito ao que aconteceu a Eduardo enquanto o irmãoesteve ausente; a outra, à origem de Simão. Como, todavia,

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,, r'cluto igualmente sugere qlÌe a experiênci:t tlt' I lrttt l' 1t,=lor lìo-somente LÌm sonho, justificarn-se tanto it íttt.5('tt{ l,t rlr I

1'rirrreiro, quanto a falta de passado do segr-rnclo. l'torlulrr, I r imaginário de Henrique e dependente dele, tocllt :t :tvrtttur':Ì na selva pode ser omitida, restaurando-se a tttticllttlt' ,1, ,

rrrrrnclo narrado. Logo, o narrador não solicita a intervc'n(;to,l,r leitor no mundo criado, e a exclusão acaÏta por tnintt'liz:rl a impotência de Henrique, a necessidade de obecliôrrr i:r lÌos maiores e sujeição às suas leis.

Ressaltando a importância de uma regra de comporta-nìcnto que funda a convivência social e familiar, e assegtt-rrrrclo a supremacia dos que já detêm o poder, A ilba per-tlitla constrói-se literariamente com base n:t qualificação da

lxrlavra do narrador, que se concilia ao projeto de pro-rrroção dos valores adultos. Se revela, por via indireta, oirrconformismo do jovem, acaba por reduzi-lo a uma expe-riôncia momentânea, cujos resultados desastrosos confir-rììrrm a veracidade da razão patriarcal. O inconformismolC'nue se configura na projeção de um eu ideal, Simão, que.'<>ncede proteção e seglìrança, independentemente ao mes-rììo tempo de qualquer lei comunitãria; todavia, ele é um:rclnlto, que pune, aprisiona e ensina, incorporando a tare-lìr do superego. Até em selÌ mundo ideal Henrique é domi-rrado, embora consiga preservar sua individualidade; masnão dispõe de liberdade, uma vez que esta lhe é outorgada.tÌ é preciso que assim seja, a fim de que o projeto atinja seulcsultado positivo, isto é, promover a obediência filial. Mes-rÌìo transposto o desejo de liberdade e aventlÌra parz' ornundo do sonho, a contÍadição não ê evitada. Apenas muda<r plano em que apatece: o universo ideal transforma-se numrulçapão em que cai e é punido Henrique, até incorporar as

regras que o convefierão num homem útil à sociedade. É

para ela que o menino é destinado, assim como o leitor, e otrânsito do sentido das palavras de Simão do âmbito de Hen-rique para o do destinatârio configura, de uma vez por todas,sua intenção doutrinária.

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licccita de vida na concepção do adulto, o texto nãoirrrlrcclc o mascaramento de sua ideologia contrâria ao inte-rc.s.sc da criança, ao se defrontar a cada instante com con_tr:rclições entre a situação da personagem e as expectativascl. narrador. A transferência dessas contradições de um nívelA olrtro, na tentativa de alcançar uma solução final har_rnônica, evidencia que o problema permanece e atinge acomposição literâria. E demonstra o pacto ideológico pos-sível no gênero a que o livro peftence. Este opta pelaaliança com o mundo adulto e a condenação do heróì aopercllrso de uma via-sacra penosa, decorrência de sua ati_tude independente. Como é com este último que convive oleitoç o texto busca finalmente atingir sua obediência, queacompanha passivamente as indicações do narraclor. Veicu_lação de regras e ocultamento do interesse da criança vêmaí acompanhados, revivendo a gênese da literatura infantilcomprometida com a pedagogia e a formação moral.

Corda b atnba, d.e Lygia B ojunga Nunes

Corda bamba, de Lygia Bojunga Nunes, justifica ocontraponto com A ilba perdida, nos aspectos composi_cionais e temáticos. Um resumo de sua ação fornece osdados para a comprovação desta assertiva: Maria, filha deequilibrista de circo, mas neta de uma dama da sociedadecarioca, fica ôrfã e vem morar com a avô. É calada e estáat"rasada nos estudos, o que leva sua tutora a proviclenciarauias particulares para a menina. Não se interessa pelosestudos, mas por descobrir o que se esconde atrás de umajanela que vê de seu quarto. Usando as habilidades deequilibrista, dirige-se para lâ, saltando a distância que a se_para do outro lado. Encontra um corredor com sete poftasfechadas, uma de cada cor. A visita aos quartos permitedescobrir o passado de seus pais até a morte delès, fatobloqueado em sua memória. A recuperação dos aconteci-

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rrrt.rrtos vinculados ao acidente de Márcia e Mltt't't'l() t' ;t

' ur';r cla amnésia possibilitam-lhe visitar quartos vrtzios, po

\'í );r(l()s por suas vivências e a construção de uma cxistôrt

, r:r Í'cliz.O confronto com A ilha perdida pode ser proceclicl<r

rlt' ucordo com os elementos espaciais, sociais e pessoltis'

r ls cenários onde transcorrem as respectivas ações são bctn

t liÍcrentes: o livro de Maria José Dupré passa-se no campo,

,r r'óu abefto, prevalecendo a natúreza e a vida selvagem'

r,'rtrda bamba transcorre no Rio de Janeiro e, especialmen-

Ir., Írurrì apartamento no 9e andar de um edifício em copa-

t :rlrana. Maria vê de sua janela "o quarto fqueì dava pra

rrna área interna, só se via fundo de apartamento"'28 A

r'onclição de clausura é metaforizada pelo espaço de que

cle só se afasta quando tem aulas particulares, sob a guar-

tle de um cão feroz.Se liberclade e prisão diferenciam os dois relatos com

lrase no elemento físico, este configura ainda outro nível de

civrlização e história. Henrique, na fazend4 está junto ànao)Íeza e, de certo modo, ausente da história, uma vez

que não há traços do tempo e da época no ambiente em

clue vive. O mundo rural, pelo contrário, aponta uma situa-

ção retrógrada que não se transforma, porque todos acei-

tam-na como irreversível, visto que o conformismo final

acentua esta tendência. Maria vive o presente do circo

mambembe, inserido na vida urbana; sua ação está regiona-

Iízada no Rio de Janeiro do presente, do qual foi excluída

a naturezal

Era hora de galo cantar, mas era Copacabana: não tem

mais lugar pra quintal nem jarclim, não tem mais lugar pra galo

nenhum @.4I-42).

28 NuNBs, Lygia Bojunga. Corda bamba' Rio de Janeiro: Civili-

zação Brasileira, 1979. P' 39. As citações são retiradas desta edição'

r73

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lj :r csse f:rto que se liga a vicla social e familiar clas per-s()rìírscns' igualmente cristinta, mas nâo tanto. pois amtos,M:rri:r e Henrique, sâo pareni", .1" l

lx)r esta razão, à "rtr.,_rtrr, ;";oãr:;ffiJ:ï;:rÍ]:

ticipam apenas de modo.olntàl dest" ".rgrenagem, clevi_clcr :ro carâter inclireto a" ,.,nr-i"ü!u"r, Maria é neta deIrma mulher rica, e o outro, sobrinho de um proprietárìorural. Dessa maneira,,emU"r" .o_f"rtllhem, por herança econdição social, cla classe ai.ig".rtã, não têm acesso diret<ra ela e ao poder.

heróis, a verificaçã"_ 1: ,J" "d, ;;;r" at acaba por corro-borâ-la. A menina é órfã,.ra., t"_ ii;;;r, e seus únicos ami_gos são Barbuda e Foguinho, afastados cleviclo à, ;"á;;;;,do circo. Henrique^.tem a companhia cla familia, clepoisapenas Eduardo e, finalmenr", fi.n só com seu sonho, cloqual nâo se livra mais. E, ," á ,.q"rãria vivida pelos cloisexpande a diferença entre eles, configuracra inicialmentepela oposiçâo dos espaços, cabe antecipar que um fato osaproxima: a companhia da próprìa solidão.o percurso cle Maria áo tà.rgo ão livro é quase queexclusivamente cle ordem existencïal J'r.rrr_n. Cotejaclas asações sociais da personagem e as introjetaclas, constata_seque estas predominam em larga escala. Á

"rã" à"";;.ì;

Ëï1ü::ï,+,i,:ï"',"::*ff:li:k-t1ï,ï.*Í,:W:ticular; o carâter in.sulaclo cle sua ;;;;;""rparece cÌe anre_mâo por estes fatos, u1a Iez que, tão logo chega ao apaÍta_mento da avó, não sai mais à ;"". A ,;l acontecimentos seopõem as incursões ao corredor do outro laclo, processovivido por seu inconsciente,2g o 0"";:"o" a maior parte

,l,r livr'o. É a ligação de sua janela à outr:1, "jar"rcl:r rlilt'rcrrtr.,l.r' otrtras janelas todas [...] arredonclada em cinr:r, (lu(' lr('rrrrrrr ;u'co" (p.25), que lhe permitirá romper cofiì () clrrrrsl ro,nr,r.\ .sLr.Ì jornada leva t Llme outra interiorização, pallr clt'rrIro 1lg si mesma.

A concentração dos eventos narrativos na rnentc clt'Nl.rrilr clecorre do processo por que passa: vítima clc r.rrrrlr

,rrnrrósia, ê narrada a recuperação paulatina de seu pus.slr-r lo, <ple culmina com a morte de Márcia e Marcelo. As pol-t.r; (llle pouco a pouco abre representam os diferentes lÌìo-nr('rìtos de sua existência que precisa incorporar a selÌ ego,.r lirn de fortalecêlo e ter meios de enfrentar uma realiclaclc,rtulrl adversa. Por isso, as sete portas reproduzem as clifc-r('r'Ìtcs etapas de sua vida, desde o namoro entre o pobrcl)irìLor e a moça rica (primeira porta) até o acidente com ost lr ris (sexta porta); a sétima é a que leva a menina acr('rìc()ntro de si mesmai abre para LÌm quarto vazio, que ela

l)()vozÌ com seus projetos e escolhas.A utilização do espaço, que situava Maria num cenário

urlrano e no tempo presente, tem ainda uma dupla fr-rn-, i<rnalidade: sua estrutura metaforiza a condição solitária deMuria e simboliza sua libertaçâo, que transcorre pela pau-l:rtina conquista do passado. Somente por intermédio dessarcconstituição a menina descobre quem é; a revelação lhepcrmite a autoconfiança e a passagem de uma atitude pas-.siva e ensimesmada a um comportamento exigente e lúci-<lo a respeito de si, das pessoas com que convive e de setrrneio ambiente.

O espaço é o elemento construtivo fundamental dotcxto por apresentar concomitantemente a situação socialcla criança - sua clausura - e sua interioridade, na medidacm que se vale de poftas e janelas, corredores e quartos,para mostrar de modo simbólico a conquista a que procedea heroína e a implosão de sua claustrofobia. A caracteriza-

ção da menina - introvertida, ensimesmada e tímida - com-pleta o processo literário e dá-lhe coerência interna; não

29 Cf . n propósito BORDINI, Marja çl,a Glôria. Corcla bamba; cami-nho para o inconscienr"-de irla.ta. à;;;;à;ruo. porto Alegre,27 deour. 7979. Caderno de Sábaclo.

774115

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lx)clcnclo irrorctìrzÌ slras ,orrPa.

no munclo 1á fore,, é cle dentr.<.r <1.c clru ma p alavra jilã;ii"ïïi:t:"':: a *";"-

" .,,Ï,"i,.ì" " u.,

versa com pedro. xpressa ao final, na con-O processo artístico promo\dois tipos .t" ....r..r.,1",;;",ï::]:-""' interpenetraçìo

crcmeiro, r"tn.ior,.u.JJ, :".,i"r,ff

óÌico ; ou rro "â.Jr".= ô p., -

-!a. inlorRoraçâo ctos "or;r":;Paço'

expande-se aÍavésrrara de àtu. à, o""1."7].::^.:ï que lida Maria. Como seno inconscr"rr,

oot'ut de sua vida

dente, irrtro.r.,z,"' cuja exp1s"â;;

por meio da circulaçâo

poder.r" uniao]T-T l" "r''" àúrcË'ff$:Í;::Ï iï:g :ï,"i" i'] *#r,ï{{iiff ;i.:::iïa :ï**f rsimboriza;,;'',;ï:#:1ïffi:'frïÍ:"o..'""L,;;,ï.,.nina

.aos pãir. -D.rr"

-;iJ, ; ï;i:"*t que prende a me-

uma Liberaçâo drante cro senr ime"r. t":"^

I:ssado significado pela perda a, r^^),iíil.'il";Ï;de abandono.

'nttiur-confiançi actvém .r. u-oìf;::i ltalavras, essa auro-o assumir cra identicra.r" d";;;:;,;""rï,ï;1" dos pais. e

Se a corda ésuprimido ," o;; i:"ïïi:j",lg,rr" q,i" u..n

" "*,substituiçâo pelo barco. urrà"roì'o 'r-compenhado por sra

Y^:i:::'"#::ï";:::ï'o'"oã;üÏT""'1x:i::'ïï:viagem de férias u=ïïffii"

que vai a menina, "r;;.t;;

E clepois de tudo ela botou, lá be borou uma ponre incro até " ú;;;. ;;:ilo.

fr,:oo, um barco.depois ela ficou n".."*;-^::""' uma ponte tâo finìnha. a,,ocoraa. No orr.o .llnrun<Ìo se era o",rì"*

ponte tìo fininha, qu-;

tinha um,-'"',.- :;;.r::t'," ou se nào er" a

nclo ela. Ela foi (p. 124).

1"1,:ï,:i:ï;'#Hf j:.i'ffi.ï:.;,:ï,:-,.noin,eriorda

instrumenro qr" lh.;.;;"": :':..Ifu. d" Maria: o arco,significandã ;LìË"t

permite o equilíbrir u m ereme,;J ;;ï":Ji ;::.ï,ï:,,ï

776

r,'z;r <'i|crrlutr, representa a condição de a menina rì.ìrÌrìt(,r. .s(,,,r,1 )l(,sclls próprios pés, conforme transparece nos clrl>ítrr1"" irriciuis da obra. Enfim, a importância cro arco e s'a virr-' rl:rq.rì. à liberação ainda aparece na clescrição cla janclrr,1rrt. lrtftÌi Maria, encimada por um arco.

Arco e barco são, pois, os meios c1a mobiliclacle clulrt'r.í.a e conclição de seu equilíbrio interior, unificancro osrrrorrrcntos de sua vida. Vinculados ao mar, com o qual el:r,,( )rìlìiÌ, seu sentido liberaclor se amplia, o que lustfica a.r:rlriração de viajar ao encontro dos pescadores cia familia,lt' llarbuda. Contuclo, os recursos simbólicos não se esgo_t.rrrr aí, já que o signo MAR está contido na clenomirrnçao,l:r.s personagens: MARia, MÁRcia, MARcelo. Outra vez,trtttÌ-se de uma viagem ao encontro cle si mesma e closprri.s, cadeia interminável dentro da qual orbita a jovem.

Sua mobilidade é então visivelmente circular, como.scLt arco, num processo que se estende do conhecimentotlc si ao avanço sobre o real, evitando um rompimentocrìtre estes pólos, a fim de garantir seu equilíbrio. iodavia,c.sse conhecimento que, num primeiro momento, levou_a àl'uptura com o passado, trocando os qllartos ocupados porrrmbientes vazios que preenche a gosto, acaba deìenhanclorrrna circunferência perfeita, em que o ponto cle chegadacoincide com o começo; e Maria retorna ao mar, princípiogerador de seu eu, desencadeador da vida em comum^deseus pais e gênese de todas as coisas.

Privilegiando a consolidação do eu, a trajetôria de Mariaculmina numa comunidade ideal, representada pela familiaprimordial, desvinculada do tempo e do espaço. Fortaleci_mento do ego e confiança no passado familiar caminhamjuntos, portanto, e são a condição da integração ao mundoadulto. Este vê-se cindido em dois campos: o dos aclultosbons, papel preenchido por seus pais e, posteriormente,por Barbuda e Foguinho, todos oriundos da vida circense;e dos adultos maus, desempenhaclo pela avó, Dona MariaCecília Mendonça de Melo, e pela professora, Dona Eunice.

I17

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Arrrlr:r.s configuram a autoridade ("dona") por excelência.M:rrirr Cecília separa a neta do universo circense, onde eraÍcliz; reprime, pois, a menina, ao romper o úrltimo vínculo(llre a prendia ao passado. Em vista disso, a recuperação a

<1r-rc procede a menina significa também desobeclecer a avô:não apenas porque o faz por meio de sua habilidade cir-cense, como porque torna a unificar sua vida presente à

clos pais perdidos. O caráter clominador da avô é desdo-brado ao longo da história e refere-se igualmente à sua vidapessoal, já que tentoll controlar os maridos e a filha. Oparadoxal é que Maria Cecília é uma tirana malsucedida: oúrnico marido que conserva é Pedro, em quem não manda;Márcia foge de casa, voltando depois por meio de Maria,que também escapa a seu domínio.

Esses fatos relativizam a critica à autoridade pretendidapor meio dessa personagem; sua inoperância ê sinal defalência, exigindo um reforço que vem a ser ocupado pelaprofessora particular. A índole dominadora do mundo adul-to (e do ensino, em especial) ar,ulta na construção desta figu-ra ficcional: acompanhada de um cachorro assustador paraMaria, incapaz de se comunicar com a aluna, transmite-lheum saber abstrato (suas lições versam sobre matemática egeometria) e incompatível com a situação da ouvinte, sem-pre desatenta.

A presença do cão de guarda, metonímia da mestra,corporifica o papel autoritário do ensino. Ameaçando a

cada instante a menina, que tem desviada sua concentraçãoentre não se deixar morder e agradar à professora, o quetanto pode se dar mediante uma resposta correta como umcomportamento conveniente. A divisão interior da garotatraduz-se pela construção do diálogo, desdobrado na pers-pectiva interna e externa de Maria:

- Mas, olha, Maria, eu quero que você use o MMC.

- MMC? (Ai, como â perna tava esquisita! Como ia serbom sacudir ela bem.)

- Menor múltiplo colrìum. Ou será qr're vocô ili t':;t;ttt't t'ttl

-Não esqueci, não. (Mas de que ieito? Se sacttcli:t :l lx'rrl;1,

ela batia no cachorro')

-EoMDC?- MDC? (E se a perna batia... e o cachorro, nlto Illcxi;ri')

-É- Qtte que ten-r? (Ilom, se ele nâo rnexia...)

- Você está bem lernbrada clo MDC?

- Tô, sim senhora. (... é porque tinha mesmo tnorricl<r

baixinho.)

- Então vamos ver: faça aí as operações (p- 54-55).

O adulto autoritário é alvo da ironia da narrativa. De ttnll.rrlo, a superficialidade de Maria Cecília, preocttpada antes

( ( )rÌr slÌa aparência e o exercício de seu poder, estéril em

,rlcto e dividindo o mundo entre dominantes, onde pensa se

incluir, e dominados, onde se encontra, pelos aspectos acima

r ituclos; e cle outro, a professora, guardiã de um saber desu-

rnlnizaclo. Ambas esperam de Maria a obediência e obtêm,lc:la o me<lo. Do contraste entre tais atitudes, o relato alcan-

(:r Lrm efeito paródico do adulto, que o de.sautoriza ao reve-

l:rr sua prepotência.A comiciclade de algumas cenas - e principalmente do

crrpítulo referente à aula particular - tem como meta a crí-

rica clas personagens envolvidas. E é obtida pelos recursos

rurrrativos, apesar de a focalização proceder de Maria.

A utilização de um foco narrativo identificado à pers-

lrcctiva de Maria decorre das exigências do próprio relato.(.arecendo a menina de uma ação pública e vivendo um

l)rocesso exclusivamente mental, emerge como necessária

rr coincidência entre o fluxo do pensamento (ou sonho,

como se verá) e o da narrativa. Todavia, há cenas em que

.sc abre uma alternativa devido à introdução de novas per-

sonagens: ou a manutenção da visão ou a troca. Nos dois

cliálogos telefônicos com Barbuda, ocorre a mudança; noprimeiro, o relato acompanha o ponto de vista da moça

clue vive os percalços de um telefone público. Além de

118 r1.g

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('()lìtfapor o movimento externo da rua ao encafcerament()rlc Maria, o narrador pode-se omitir de examinar as reaçòescl:rquela às palavras de Barbuda, acentuando as clificulda_clcs de comunicação. Maria não consegue expor seus pro_blemas, e a outra não alcança uma ionfissão .o-pio",porque cai a ligação. É dada, pois, ao leitor a oportuniJaààde esboçar uma imagem dos clilemas viviclos plla heroína,cada vez mais só com o afastamento do circo.

o segundo diálogo telefônico omite um narrador. Esteoculta-se totalmente atrâs çJa fala das personagens, mas con_tinua manipulando a confissão cle Maiia, cal:ã a essa formu-lar a recuperação da memória, o que acontece ao final daconversa, sem que Rarbuda consiga entender do que setrata. Portanto, ê. ao leitor que a revelaçâo é feita, de modoque, embora o narrador nâo intervenha nem por meio closverbos dicendi, assiste-se à sua operação clelicada, moven_do o relato na direção clas palavrã.s finais de Maria.

Assim, se a focalização obeclece ao comanclo de Maria,acompanhando sua trajetôria, percebe_se que a visão nãocoincide com a dicção do texto. O narrador mantém suaautonomia em relação à personagem e ainda constrói, paraalém dela, um leitor a quem determina um papel u,iro. Éeste quem reconstrói o perclÌrso existenciaÌ àa menina,organiza a cadeia temporal e antecipa sua liberação, confir-mada depois pela confissão a Barbuda. Nessa _.ái.ln, uoleitor cabe a reprodução da aventura de Maria, mas não aidentificação, uma vez que seu diálogo implícito fur_r. .oÀo narrador, e não com a personagem, conforma mostra acena ao telefone.

Por isso, o relato pode ainda obter efeitos cômicos, in_compatíveis com o texto se este fosse narraclo numa falsaprimeira pessoa, isto é, se focalização e narração coincidis_sem integralmente. Na cena da aula particular, o fato é visível. O nanador identifica sua visão ão- u de Maria: é estaquem se sente atraída pelos detalhes que desviam sua aten-ção, temendo ao mesmo tempo o avanço do cachorro:

120

O olho de Maria foi procurar o número dlt 1>:igittrr ttt;rr

('rlcontrou a mão da Dona Er"rnice no caminho' Dedo cltcrio tlt'

:rrtcl. E cada unha grancle assim, pintada de vennelho cscllr() ^rrnhl clo cleclo qr,te aponta ficava puxanclo uma pelezinlt:t <1trt'

linltzr clo lado cla unha do polegar. Puxava, puxavâ' lìs vezcs clr>i:l

e Dona Eunice gemia balrinho, distraícla, ui (p. 51).

'ltrlavia, ao olhar de Maria se sobrepõe um outro olhar,

,1rr,'ol)serva a menina a distância, de fora, mas que, conco-

rrìrt;uìtcmente, interfere em sua intimidade:

O canário na gaioÌa cantou; Maria olhou. A gaiola estava

pencluracla na janela, batia sol no canário, ele parou de cantar e

começolÌ a pular pra um lado e pra outro, será que ele queria

sair? Mas a porta estava fechada, uma gaiola de nada, como é que

prendiam ele assim apertado com tanto lugar pra voar? Esclttott

:r voz da Done Eunice:

- Mas antes você me diz se esses números são divisíveis

por três, por dez e por mil.Antes? Antes por quê? O que é que ela tinha falado pri-

meiro? Será que ela tinha explicado muita coisa? (p. 52)'

O trecho é ilustrativo para a descrição do processo naÌra-

tivo, uma vez que a cena é vista simultaneamente de fora e de

r lt'ntro. O interior é dado pela visão que Maria tem da profes-

r,or'.Ì: é ela quem escuta Dona Eunice, e a denominação da

rÌìcstra, antecedida pelo "Dona", provém igualmente da meni-

rr:r. No entanto, o exterior está presente e indica a presença de

urÌì olltro, que vê Maria olhando para o canário (ainda qlle este

r;cja outro símbolo de sua própria condição), fato não obser-

vuclo pela professom cuja intimidade mantém-se inacessível.

O dentro, por sua vez, provém da interferência do dis-('LÌrso de Maria na fala do narrador. Invertendo o modeloclo relato onisciente, que se apropria do pensamento das

l)crsonagens por meio àos "verbos de processos internos",3o

30 A clenominação é cle Kâte Hamburger e designa os verbos sentir,

pcnsar, refletir e outros, que denotam a penetração pelo narrador na inte-

rioriclade cla personagem, fato somente possível na ficção narrativa. Cf' }IAM-

IìIJRGER, Kâte. ,4 tógica da ciação lüeraria. São Paulo: Perspectiva, 1975'

1.21

Page 60: A Literatura Infantil Na Escola

'";r( ) ;l's l)clgtlntas cle Maria gue se introduzem na mensagemr,r rr:rrnrclor, redtrzindo " ãrlã".à,'ïn,,rao evirancÌo n ,èpn_r';rç.;ìo enrre estes dois .".., ii.ã-iã*ir.

Por essa razão, trata_se a" "_n cena a qlle o narraclor;r'ssiste' mas cuio privilégio e

","Àurìo pela inrerferência clocliscurso de Maria,. É .:;; ;;;;ïr.la sue propria cìesa_tençâo; suas atirudes desastro; ã conhecidas, na maio_ria das vezes, neta;-.niravras ãil ;;" se descreve, renrancÌoescapar a uma oïiç3" maior. Opt".rao, pois, por alternara descrÌçâo da situaçâo cle Maria lorn ,um reaçòes interio_res, o narrador oÌlém um balanço àrrrr" ,.,n presença e aautonomia da personagem. Simuìtaneamente, concecle umespaço à interpretação clo leitor, ãË'-oao que o discursorevela-se aberto à 'participaf;;' j"" criança, represenraclapela heroínn o., p.io ,..;Àã;;r."ioaurrin se rais sujeitosestâo em igualclade com o ãrr"aïr, não cleìxam cle sepatentear dois níveis distintos: o

-ã...r", de que tomamparte Maria, Eunice e o cachorro; e o cÌa assistência, presen_tes o narrador e o leitor. O a.rà.n".n_"rrro dos emissoresnão impede a clife

:rT:"il.ã;üüïi".:ïïï1,;.'i:ïJ.ï:,3::":"*m-tos, identifica-se com "i.. _.-;:_;^'"1'. Focatiz,r." .'ï"ilïi;#ã::"#:;l:::J J,tri,?;:iïbasilares do rex1o. p* _;ì;;;;;;jr", o narradorobtéma manìfestaçào da oerspectiva da ieroína dentro da narração.Identifica-se com àlr, .o_ ,ìil;.;rao o. mundo e, so_brerudo, sua vìsào cto aaulto. a iì"ìríìrrr" de normas con_Il.lï.r^. "1r-, tTf"r_ribiÌidade, ; il; reforçado pelo fatooe que a consolidaçâo de

"_á ia*,lande por Mariaresul_ra numa rejeição clos cânoner;;;;;; a ela e na busca deuma vida autônoma.Por sua vez, é da presença clo cômico que se formulao lugar do leitor. Este retira ,_ ,"rrrrdo do texto de acordocom a linha de açâo. de M"ri;; ;;"rïïo pnrnaoxat se esratrajetôria fosse oferecia", .t. -o-ã"uÀ' .n-irrrro necessário.se a afirmaçâo pessoar ,"-.oÃo".""ï.ouu"cia a manifes-

722

t.r(.;r() da individualidade, a expectativa de utlrr iclc.rrliÍir.;r

'.,r() cnfiaqlÌeceria este obietivo, convertendo a hcroíntr lrrrrrrrrrrclclo. Por isso, cabe ao leitor conservar um c.sl)1r(.() .\()',r'u clentro do texto, análogo ao quafio vazio cl.t gltr()tit,r\rsirn, o narrador manipula os eventos, a fim de qrrc sr,jrr, r leitor quem, compartilhando como espectador da sor1r.r l;r rnenina, alcance uma interpretação dos acontecirnentosr rrìicamente sua, sem comentários explicitadores.

Tal seria o efeito emancipatório do texto, coinciclincl<r( ()rn a liberação por que passa a equilibrista. Temáticl c,

r('cLlrsos literários coincidiriam, alcançando Llma unidade n:rruptura com um padrão vigente, tanto no comportament()tl:r criança, que não se configura em exemplo a ser segtri-tlo, como no tratamento do narrador, que deixa uma sérictlc lacunas para o preenchimento do destinatário. Estc,('orÌìo Maria, percorre uma trajetória do desconhecimento:ro saber, recompondo o passado e o futuro da protago-rrista. Todavia, cabe salientar que o passo final da narrativa('ontradiz o projeto inteiro: nos derradeiros parágrafos d<>

texto, o narrador se apropria da dicção do relato, fazendorrrna projeção do futuro e colocando nele a atitude funda-rnental conquistada pela menina:

O tempo foi passando, mais portas vâo aparecendo, eMariavai abrindo elas todas, e vai arrumando cada quarto, e cadadia arruma melhor, nâo deixa nenhum cantinho pra lá. Numquarto ela bota o circo onde ela vai trabalhar; no outro ela botao homem que ela vai gostar; no outro os amigos que ela vai ter.Arruma, prepara: ela sabe que vai chegar o dia de poder esco-lher (p. 125).

O último parâgrafo indica a grande vitória: a obtençãode um poder, o de escolha, assim como a interferência nopróprio destino. Contudo, como é enunciado? Não pela vozde Maria, mas pelo discurso do narrador que, neste mo-mento decisivo, impede a emissão pela heroína de seu pro-jeto existencial, convertendo-o, pois, em objeto de seu

723

Page 61: A Literatura Infantil Na Escola

;ul)ítri(). Iì o que relativiza sua intenção libertária, caçando:r lxrlavra do outro, quando este pretende dar conta de seul'trl-uro, e convertendo-o, ainda qlle por um breve instante,crn modelo a ser seguido.

A contraposição com A ilba perdicla, procedida no iní-cio, anunciava as diferenças e as aproximações entre os doistextos. Essas se configuram inicialmente por meio dos pro-tagonistas centrais, que vivem uma situação semelhante: per-tencem aos estratos superiores da sociedade e passam poruma experiência decisiva, da qual retiram regras de condu-ta par^ a vida futura. A diferença está em que, em Corclabamba, o carâter exemplar não passa para o leitor, Llma vezque explora a separaÇão entre a personagem e o recebedor.Além disso, a conseqtiência da aventura de Henrique ê aaceitação dos padrões adultos, o conformismo e a obediên-cia, enquanto Maria adquire autonomia, autoconfiança eruma à construção de seu mundo pessoal, livre da interfe-rência alheia, quando esta representa dominação e autori-tarismo. Assim, da transmissão de modelos oriundos daórbita adulta e patriarcal passa-se à construção de normaspessoais, provenientes da experiência, o que se oferececomo um deciframento para o leitor e não enquanto obje-to de identificação.

A obtenção de um lugar ativo no texto pelo leitor nãodepende apenas do deciframento; a ele cabe aceitar ou não acrítica ao mundo adulto e compreender as dificuldades deMaria. Tal leque de alternativas (feita a ressalva ao final)não existe em A ilha perdída, o qlÌe assinala o aspecto reno-vador de Corda bamba. Contudo, hâ ainda um índice deaproximação entre os dois relatos, que oferece outros daclosà oscilação entre normatividade e ruptlÌra vivida pela lite-ratura infantil.

Embora Henrique e Maria vivam espaços radicalmentediversos, sua aventura tem um lado em comum: transcorrena fantasia. Em A ilba perdida, o caráter onírico é ambíguo,podendo ser interpretado igualmente como verídico, sem

r24

;rrc'jr-rízos para a verossimilhança do relato. C'onltt lnttttlutr';rlc-se da mesma ambigüidade, porém de modo lttrtis tit'o,urìì1Ì vez que é no sonho de Quico, seu primo, qr-rc Mltliltr ( )rììeça a andar na corda:

Todo o mundo estava dormindo, era um sonho cltticto,

muito quieto.

Quico viu Maria sair da ianela e pegar o arco da flor. Iìl<>r

cle tanta cor. Viu Maria olhando pro arco; depois ela voltou pr:r

janela e ficou espiando pra baixo. Por que Maria ia e vinha' assim

de lista e pé no chão, olhando tudo tanto? Maria botou o arco nx

cacleira, foi pra balro da cama, saiu colll o rolo de corda.

Desenrolou.(...)

Quico viu. Viu direitinho a corda laçando uma antena de

televisão de un-r edifício bem em frente.Maria puxou a corda com força pra ver se estava benÌ

presa. Esticou ela bem. Se debruçou na janela; parecia que esta-

va amarrando a corda @. 42).

A ambigtiidade cresce na conclusão do capítulo:

A corda cedeu. Quico viu Maria ir ficando mais baixa. E

aí não quis mais olhar: enfiou a cara no travesseiro pra não ver

mais sonho nenhum, pra acordar de uma vez.

Ficou de cara enfiada no travesseiro e logo depois dormiu.Acordou. Sonhou. Acordou. Dormiu.Maria foi seguindo na corda com as andorinhas atrás

(p.43-4Õ.

Alternando os sonhos (de Maria para Quico e deste

l):ìra a menina) e as situações de dormir e acordar, o narra-r lor permite uma leitura tanto fantástica quando verídica dol('xto, sem prejudicar sua estrutura global. Além clisso, intro-,luzindo o relato de Barbuda, que conta como Maria dor-rrrirr vários dias após a morte dos pais, advindo daí sua

.rrrrnésia, fica antecipada a circunstância de que a equili-lrr ista precisarâ refazer este ato para superar seu efeito.Assim, o esquecimento será substituído pela recordaçãopor intermédio do mesmo remédio: o sono.

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llr1l

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725

Page 62: A Literatura Infantil Na Escola

(,<rrrro em A ilba perdida, a fantasia tem LÌm efeitort'plrnrclor: no universo fantástico, a personagem passa porurÌìa transformação individual que a ptepaïa para o con_Irrrr-rt' com a realidade e o mundo aclulto. E é igr-ralmentecs.se o lugar da formulação do ideal: o universo utópico,harmônico, que the permite sintetizar experiência, . à"r._jos, alcançando tranqtiilidade interior.

O último quafio mobilado por Maria tem este significa_clo: advém de uma vitória sobre si mesma, estando isento cleuma concessão adulta. por isso, tem pleno domínio sobreele, que está livre de qualquer conteírclo repressor. É o quea distingue de Henrique, que, na ilha, viu-se cativo cle um euideal, atê desejar ser expelido dela; e que converteu a expe-riência vivenciada num paraíso perclido, acessível apenas naimaginação, mas não mais comutável em realiclade.

A reabiÌitação e confiança na fantasia infantil é a princi_pal vitôria de Maria e de Corcía bamba. Torna-se um redutode onde a menina retira forças para enfrentar o mundo adul-to e onde não habitam a autoridade e a repressão. A garotanão se vê punida em seu universo fantástico, ao contrário deHenrique, nem precisa se desfazer dele, para aceitar o mun_do adulto. Endossanclo o mundo da criança e valorizando assituações em que ela se libera da punição adulta, introjetaclano caso de Henrique, reprimicla no caso de Maria, quandoinicia a narrativa, Corda bamba isenta-se de um conteúdonormativo, abrindo o relato às interpretações do leitor. E, pormeio deste e de sua participação, a fantasia recebe um novoestímulo, não para o encerramento no contorno do livro,mas para o confronto pessoal com a realidade.

Líreraxura InfantíI: Fanrasia e E xernpLaríd ade

A abordagem da literatura infantil do ângulo de seurelacionamento com o leitor supõe .,-u ,r".ifiaação emduas etapas:

r26

a) cla constittrição de um universo ficciorlltl, t't'ttlt;trlotì1Ì personagem;

b) da projeç:to procluzida pelo narrador de r.ttn llrtpt'l

l)ere o destinatário.

Tais atividacles transcorrem simultaneamente, porclLlc,

cleviclo à circunstância partictllar do gênero, o herói zttttrt

como indicador da condição de seu recebedor. Assim, a

rtveriguação leva em conta, cle um lado, as relações entre o

ltrotagonista e o mundo (adulto), e, cle outro, como este

ÍlÌto mimetiza os confrontos cla criança com a realidacle, a

etr-ração clo narrador que conveÍe o narratário num papel

clesenhado pelo relato. Dessa forma, o discurso desse não

pode ser negligenciado, cabendo o exame de sua conces-

são ou não de um lugar para o processo cle deciframento

clo leitor.Esses dois aspectos - referentes à representação social

cla infância e à diligência menos ou mais liberal do narrador

- podem ser verificados nas obras analisaclas. Todas se ca-

racterizam pela apresentação de uma certa vivência comum

clo herói: a passagem da realidade à fantasia e posterior

retorno3l por uma viagem (Dorothy; os Darling; Fernando)

ou uma saícla de casa (Henrique; Maria; Basílio). Todos, de

alguma maneira, fogem do lar, a maioria deles de modo vo-

luntário (a exceção é Dorothy, conduzida por um ciclone).

Os habitantes do Sítio do Pica-pau Amarelo vivem de ante-

mão fora de casa, pois Pedrinho e Narizinho estão lá em

férias; mesmo assim, a natração da história por Dona Benta

tem efeito idêntico, levando-os a terras longínquas.

A saíc1a, como, às vezes, uma fuga, porque provém de

uma transgressão à ordem (Henrique; Eduarclo; Maria), não

31 B.u.ro Benelheirn atribui ao conto de fadas esta seqiìência, o

clue clemonstra em qlle medicla a literatt-rra infantil é a legítima stlcesso-

ra daquela forma narrativll.

lI

1

I

I27

Page 63: A Literatura Infantil Na Escola

-t

(' ('.sc:rpista, pois desencadeia a consolidação da personali-cl:rclc. Esse fato supõe uma atividacle biclirecionàI, de umlrrcl<>, rumo à auto-afirmação, enquanto confiança em si mes_rììo e reconhecimento do grupo; é o que se passa com Do_rothy, Maria e, de modo mais tênue em peter pan, com ascrianças do Sítio. E, de outro, rumo à aceitação das regrasdo mundo adulto, de obediência, reclusão no âmbito dafamilia e conformismo com sua condição existencial; sãoos casos paradigmâticos de FernancÌo, Basílio, Henrique,Eduardo, os Darling e os Meninos perdidos.

O relacionamento com o mundo adulto liga_se estrei_tamente à confirmação da ideologia familista. por isso, évâlida a averiguação do estado pessoal das personagens,que se dividem em órfãs (ou cujos pais não são menciona_dos) e crianças que vivem com os genitores, conforme oquadro abaixo:

Examinando o destino dos heróis agrut1-llttkr; tt;t ( *ltinu da direita, verifica-se que todos eles voltattt l);u;t (,1ì,! É'

t aprendizagem que retiram de sua excursão Íìtnlltstit.! r' ;l

c'onformação à vicla familiar. Em PeterPai?, na vct'sil() otlFlnal, isso significa igualmente a aceitação da temp()l'ltlitl;t,1,'como envelhecimento e perda do estado paradisíact>; (', ('nr

A uida do elefante Basílio, a satisfação com a forma Íísit:timperfeita, devido ao insucesso da revolta.

Os agentes reunidos na coluna central não apresentluììrcspostas idênticas, matizando a tipologia, qlle pode scr'

rlividida em três subgrupos, com base nas reações doslreróis diante do confronto com o mundo aduÌto:

a) Dorothy representa a personagem ativa, cuja liber-clade, decorrente da orfanclade e separação do lar, leva-a aclefrontar-se com LÌma ordem adulta, reciclando-a e impon-clo valores igualitários;

b) os moradores do Sítio, Peter Pan, Henrique e Mariaconfiguram o segundo tipo, manifestando sua insatisfaçãocom a vida presente - infantil - por meio da fantasia, masrealizando suas aspirações tão-somente neste plano; advémclaí uma separação entre o sonho e a realidade, no qual a

criança não tem oportunidade de atuar. Justifica-se a revol-tlÌ, mas não ê oferecida ao rebelde a chance de uma atua-ção real. Maria é a úrnica personagem que transporta slÌasvivências oníricas pan o campo familiaq provocando modi-fìcações, embora estas sejam relativas exclusivamente à suasituação pessoal;

c) Henrique compartilha com todo o grupo a liberdadeoriginária da ausência dos pais; porém, como acontece comos Darling e Basílio, compreende que os adultos sempre têmrazão e que, portanto, deve adaptar-se a seus valores e

expectativas. Seu castigo diante da transgressão e o senti-lÌlento de culpa colocam-no no paradigma dos conformistas.

As personagens tematizam nos livros a condição dacriança, determinando o lugar que a fantasia desempenha

ORFAOS OU SEPARADOSDOS PAIS

FILHOS QUE VI\TMCOM OS PAIS

O mâgíco de Oz Dorothy

PedrinhoNarizinhoEmíliaViscondePeter PanMeninos Perdidos

HenriqueEduardo

\ü7endy

NapoleãoMiguel

Fernando

BasíÌio

Peter Pan

As auenturas doauião uermelbo

A uida doelefante BasílidA ilba perdicla

Corda bamba Maria

* Na seqüência analisada.

128 729

Page 64: A Literatura Infantil Na Escola

('rìì .su:l vicla e representando o relacionamento com os adul-lo.s, .scjam pais, professores ou governantes.

A fantasia é o setor privilegiado pela vivência do livroinÍ:rntil. De um lado, porque aciona o imaginário do leitor;c, cle outro, porque é o cenário no qual o herói resolve seusclilemas pessoais ou sociais. Conseqüentemente não é a saí-cla que coloca o herói perante o mundo, mas sua volta; oprimeiro movimento leva o protagonista ao encontro de simesmo - esta é sua grande aventura, a qual lhe permitiráenfrentar o contexto circundante, confiando em si ou con-fbrmado com sua falta de poder. Em razão disso, a fantasiaconfigura a condição de funcionamento do gênero, poiseste impõe um modelo narrativo que se desenvolve à medi-da que o protagonista abandona o setor familiar e ingressaem horizontes sobrenaturais, voltando depois à posiçãoprimeira, agora mais experiente ou sábio. Além disso, desen-cadeia o modelo de leitura da obra, pois tão-somente pelaativação do universo imaginário da criança dá-se sua aceita-ção e deciframento. Em virtude de tal fato, mesmo lidandocom eventos extraordinários, o relato precisa ter algo a dizerao leitoq fundado na coerência da história e na validadedos conflitos que apresenta, fatores indispensáveis para suacomunicabilidade.

A apresentação do relacionamento com os adultos vin-cula-se à natureza ideológica da obra. Da oscilação entre atransmissão de normas - que denunciam a ingerência dasconcepções adultas na feitura do relato - e a discussão davalidade das mesmas provém o carâter doutrinário ou nãodo texto. A veiculação de normas ou modelos de compor-tamento significa o compromisso com um grupo pedagógi-co e limita, de um lado, a contribuição da criança no texto;de outro, restringe seu valor artístico. Tal fato tem aindauma repercussão no leitor: na medida em que impõe igual-mente modelos para leitura e interpretação dos eventos,bloqueia a participação do destinatário, convertendo-o emobjeto passivo da exemplaridade da história.

130

Se se verifica unidade entre o estreitamcnto cll irtlt'tVcrrção do leitor e a conversão do herói aos valorcs lttlttll():;,

l)('r'cebe-se a homologia na obru literâtia entre os nívcis rt:tt

r:r(ivo e ideológico. O primeiro é representado pela collstrr.r

(:t() clo narrador que, enquanto ente ficcional, pode exct't't't'

urìì fiìaior ou menor poder sobre a atuação da personagcttt

,' clas disposiçÕes do leitor. O recurso aos comentário.s otr

:rÍluência cle lacunas são os pólos entre os quais o narraclol'

o.scila, e a quantidade de Llm ou outro indicia o tipo clc:

r lornínio que exerce sobre o deciframento da história do prrl-

trrgonista e, por extensão, do narratário. Esse fato revela o

rr'ânsito do âmbito ficcional ao social - c1a personagern ao

lcitor que, embora uma projeção do texto, é um lugar que

vern a ser preenchido por um indivíduo real. Portanto, cla

rrrenipulação do leitor implícito passa-se ao controle sobre

ÌrrÌì ser humano - uma criança' Desse acontecimento que

rlccorre do nível ideológico do texto, desvelando o carâter

cvcntualmente dominador da literatura. Por sua vez, tal ocor-

r'.^ncia simultânea legitima a divisão metodológica procedida,

opon<lo a representação infantil à veiculação de normas

rrclultas enquanto interesses antitéticos que são filtrados pela

<>lrra de arle, cabendo examinálos num livro.O narrador consiste na figura-chave deste processo'

lrois exerce a atividade desencadeadora da narrativa. Con-

tnclo, o ato primário invoca o leitor necessariamente, dan-

clo-se a comunicação somente quando avultam os dois

sujeitos. Evidencia-se a unidade concomitantemente com-

lrosicional e dialó,gica do fenômeno literário, que circula do

plano ficcional ao ideológico com base em sua estrutura,

inclependentemente da sociedade que a produz ou que a

reflete. E patenteia-se ainda, quando se trata de literatura

infantil, a condição comprometida do gênero que, mais que

qualquer outra forma narrativa, conhece seu destinatário e

sabe como e onde atingi-lo.Decorre daí o último item referente à direcionalidade

rumo ao leitor: a literatura infantil converte-se num dos res-

r37

Page 65: A Literatura Infantil Na Escola

l)()rì.s:ivcis diretos pela configuração de um horizonte de('xl)cctativas na criança. Ao contrário das outras modalicla-tlcs urtísticas, que se defrontam com um horizonte soliclifi-c'rrclo, a literatura infantil possui um tipo de leitor quecurece de uma perspectiva histórica e temporal que lhe per_ltrita pôr em questão o universo representado. por isso, elaó necessariamente formadora, mas não eclucativa no senti-clo escolar do termo; e cabelhe uma formação especiaÌ que,íÌntes de tudo, interrogue a circunstância sociaÌ cle ondeprovém o destinatário e seu lugar clentro clela. Nessa medi-da, o gênero pode exercer o propósito cle ruptura e reno-vação característico da afte literária, evitando que a opera_ção de leitura transforme seu beneficiário num observadorpassivo dos produtos triviais da indúrstria cultural. Em ou-tras palavras, pode impedir qlle sell leitor se torne um dissi-dente da literatura e a1Íe de seu tempo e LÌm mero con_sumidor de uma cultura despersonalizada.

TRÃNSITORIEDÃDE DO TETTOR E DO GENERO

Confundida freqüentemente com o livro diclático, oconto de fadas ou a história em quadrinhos, a literatura in-fantil necessita, inicialmente, para sua definição, cle umademarcação de seu alcance e uma fixação cre seus limites.Como um dos produtos culturais que a sociedade contem_porânea oferece à criança, ela se vê imiscuída ou àquiloque não pertence integralmente ao mundo infantil (hisióriaem quadrinhos, por exempÌo) ou, dando_se o contrário,parece abarcar o que não diz respeito, com legitimidade, àliteratura; é quando se converte em sinônimo de teatroinfantil ou transforma-se em instrumento de ensino, diver-sões públicas ou jogos. Enfim, devido à sua produção ma_ciça em nossos dias, quando praticamente inexistia antesdo século x\1IÌ, tem seu eventual valor estético contesta-do, relegada ao setor da literatura trivial e da cultura de

1.32

rìÌrÌssa. Por todos esses fatos, uma conceitttltÇlìo tl;r lilt'r':rtLrra infantil significa concomitantemente Llmlt lìì1ll'('ilçil( I

rlc fronteiras e o desenho de um campo de trabalho, clivc'tr,o,

r lc nm lado, das formas não literárias e, de outro, claclttilo It:tt I

t'specificamente dedicado ao leitor infantil. Uma veriÍ'icltr,'rttr

rro âmbito histórico e no conteúdo do termo composto litcrrt-

trrra infantil fornece os indícios para slÌa caracterizaçào.

Gênero incompreensível sem a presença de seu clcst i-

rurtário, a literatura infantil não pôde surgir antes da inÍân-<'ie. A configuração diferenciada dessa fase etâtia data clc

i'1roca recente. Como escreve Dieter Richter, para o homenrrrnterior à Idade Moderna, que repartia com velhos e jovens

ls tarefas na lavoura e manufaturas, as divisões hoje conhe-ciclas como infância ou adolescência inexistiam:

Na sociedade antiga, não l-ravia a "infância": nenhum

espaço separado do "n-rundo adulto". As crianças traball-ravam e

viviam junto com os adultos, testemunhavam os processos natu-

rais da existência (nascimento, doença, morte), participavarnjunto cleles da vida pública (poÌítica), nas festas, guerras, audiên-

cias, execuções, etc., tendo assim seu lugar assegurado nas tradi-

ções culturais colÌÌuns: na narração de histórias, nos cantos, nos

jogos. Somente quando a "infância" aparece enquanto instituiçào

econômica e social, surge também a "infância" no âmbito peda-

gógico-cultural, evitando-se "exigências" que anteriormente eram

parte integrante cla vida social e, poftanto, obviedades'32

A ascensão da ideologia burguesa a partir do século

XWII modifica esta situação: promovendo a distinção entre o

setor privado e a vida pública, entre o mundo dos negócios e

t fan-úlia, provoca uma compartimentação na existência do in-clMduo, tãnto no âmbito horizontal, opondo casa e trabalho,33

32 Rrcutrn, Dieter. Til Eulenspiegel - der asoziale Held und die

Erzieher. Kindermedien. Astbetik und Kommunikation. Berlim: Asthetik

und Kommunikation Verlag, n. 27, abril de 7977.33 v.

^ propósito BENJAMIN, rwalter. Paris, capital do sécuÌo XIX'

In: LIMA, Luiz Costa. Teorta cJa literatrta em suasfontes. Rio de Janeiro:F'rancisco Alves, 1975.

r33

Page 66: A Literatura Infantil Na Escola

ïn'II

ri

i

( ( )lrì() .o verticaÌ, sepafando a infância da idade adulta e rele-rlrrrrclo aquela à condição de etapa prepaïatôria aos compro_rttisso.s Íirturos. Fomentando a necessidacle <Ia formaçao pes_scral de tipo profissionalizante, cognitivo e ético, a pedagàgiacncontra um lugar destacado no contexto da configuraçao etransmissão da ideologia burguesa.

A literatura infantil emerge dentro desse pano rama,contriblÌindo para a preparação cla elite cultural, pela reuti_lização do material literário oriuncro cle cluas fonìes ciistin-tas e contrapostas: a adaptação dos clássicos e dos conto.sde fadas de proveniência folclórica.

Conto de fadas e literatura infantil são freqüentementeconfundidos e tornados sinônimos. E a maioria dos estu_diosos, ao lidar com o primeiro, considera aprioristicamen_te a criança como seu público natural, uma vez que, comodescreve Dieter Richter e Johannes Merkel, .,a deilniçao c1econtos de fadas (Mcircben) não é dada nem pela formalìterária, nem pela relação sócio-histórica em que aparecemestas narrativas, mas depende afinal de ser ele apropriacloou não para as finalidades da eclucação infantil burg.re_sa".34 No entanto, advefiem os autores, a situação nem sem_pre aconteceu assim:

.Primitivamente, os contos folcÌóricos colecionados pelosInnâos Grimm e ouros não eram ,,fabulosos,,, nem restritos a umacerta idade. "O conto, em princípio, era contaclo por e para aclultos (na Alemanha, tanto por homens, como por mulheres). Osnarradores faziam parte, via cle regra, clas classes mais pobres:eram empregados, pequenos arrendatários, marinheiros, diaristas,lavradores, artífices, pastores, pescadores e também mendigos.,,3iSão as classes mais baixas que escutam e narram o, aoartor.:6

34 ntcHtrR, Dieter; MERKEL, Johannes. Mcircben, pbantasie undsoziales-Iernen. Berlin: Basis Vedag, 1974. p. 4l-42.

35 HrruIcu, vilhelm. Die eizâhlende volks - und Kunsdichtungin der-Sçhule_._Apud RICHTER, Dieter; MERKEL, Johannes. Op. cit., p. 4i.ru RICHTER, Dieter; MERKEL, Johannes. Op. cit., p. 44.

r34

Dessemodo,nemoscontosdefaclascrltltlllltt.;tt.ti.ur('rrs, nem fazia;m parte da educação.burgttesa: "<l t'olìltr

,1,' lìrclas folclórico sempre se liga de alguma 11xngi1'11 lottt

.r (.rìtÌìecla inferior e extrelnamente explorada, de [Ìocl() (ltl('

,,('rx)cle Derceber a conexão com a situação social e a ct>rltli'

,.,,,, ,"-iÌ".37 É nesse sentido que, vinculado à sua orig'clÌl'

,'1.., po,l" manifestar a re,eição do camponês submeticlo rttr

,,,',,Ào. feuclal de suas condições de trabalho, embora cx-

l)r'csse igualmente a impossibilidade de transformá-las' iír

,1rrc todimelhoria vivicla pelo herói só-decorre do empregcr

.i" magin e dos auxiliares fantásticos (fadas, cavalos alados'

:rnões) a quem ele se subordina'Aclapiados pelos lrmãos Grimm, os Mcirche?x sofrem

rrincla uma mudãnça de função: por um lado, transrnitern

velores burgueses <le tipo êtico e religioso e conformatn o

iovem a um certo pnp"l social; -por

olÌtro, é mantido o ele-

,r"r".rro maravilhoso è.tq,-,uttto fator constitutivo da fábula

narrativa, úma vez q.t" ,"- ele inexiste o conto de fadas;38

todavia, esn permânência vincula-se à necessidade de que

,Lio orr"g.t."ão o valor compensatório do conto de fadas'

oásse -ã.1o, é o maravilhoso que endossa, de modo subs-

titutivo, a pequena participação da criança no meio adulto'

Pormeio-da-magia,elafogeàspressõesfamiliareserea-liza-seno sonho; porém, ao contrário do relato original' em

que o fantástico revelava a vitória do camponôs e a inevita-

UiUaua" de seus laços servis' nas narrativas dos Irmãos

Grimm, ele propicia escapismo e a conformação:

O conto de fadas, como é apresentado à infãncia' faz a'

criança acos[lmar-se, ou pelo menos deve acostumâ-la' a reagir

"à fir*" conformada tle sonbos, quando desenuolue impulsos

qu'e estão em desacordo com a sociedacie39

37 6., p. 44.38 v. i propósito igualmente LÜTHI, Max' -ãs war einmal' Yom

W.esen<iesVol.ksmârchen.Góttingen:VandenhoeckundReprecht,l9TT.--- 39 RICHTER, Dieter; MERKEL, Johannes' op' cit', p' 65 (Grifo dos

Autores).

735

Page 67: A Literatura Infantil Na Escola

().s íÌutores ressaltam, todavia, a peculiariclade que ofe_t(.('(ì o conto de fadas, qual seja, a eventualidade de suaf .lrr.r.srnutação em instrumento emancipatório, na meclida emr1r'rc é capaz de sintetizar a organiznçao ao modelo sociarvigente e torná-lo compreensível:

A atração do conto folclórico para a criança resicle, comoafirmamos, alén-r cle outros aspectos, n:r elaboraçâo cle um esboçocompreensível da socieclacle; isto é, " cadn personagem é ã;ã"um papel definido em reÌaçâo às outras, e sua posição é ctesig_nada no contexto geral cla organizaçâo social.40

É da presença do eremento maravilhoso que advémesta faceta do conto de fadas: traclução da fantasia,ele nãoaparece no texto como algo cliferenciaclo, como úm mitn_gre, que pode seÍ assustaclor, na medicla em que .olo., àindivíduo diante do sobre_humano, mas é percebiclo comonatural:

Na saga e na legencla, o maravilhoso fascina, sacocle,assusta ou anima, enquanto qlÌe, no conto de faclas, ele ," ,o..rlnatural. Na saga e na legencle, o milagre, o maraviÌhoso, nosdeixa pasmados, senclo o ponto .".r,J'.1" toda a narrativâ, en-quanto que, no conto de fadas, ele aparece em seqüências maio_res, torna_se episódico e percle, justamente por isso, seu peso.4t

percebido como constitutivo do real, adquirinclo assimnaturalidade, ele possibilita uma ruptura com os constran_gimentos espaÇo-temporais, de moào que as personagenspodem assumir um caráter simbólico:

príncipes e princesas sào personagens cle um simbolismocompreensíver. Eles representam o inclivíàuo erevaclo.4z

19 ,0.. o.101-102.at t'üTHt, Max. op. cit., p. 2).a. LUTHI, Max. So tybey sie nocb beute. Betrachtungen zum Volks-marchen. Gorringen: Vandenhoeck "",1

R";;";; t, D76. p. 7.

No conto de fadas, não é representaclo rculistir.;rrrrt.rrtr.,mas de moclo figurado; assim, as pe[sonagens mís rì;ì() ,\;l(tpercebidas como seres vivos, rnas como símbolos do nral.'lJ

Bruno Bettelheim igualmente salienta o carâter simlt<ilico desse tipo de narÍativa, assinalando ainda que decorreclo fato a adequabilidade do gênero à criança, assim corx)srra índole exemplar dentro da literatura infanti|.44 Por suavez, o autor vincula esta validade à noção de que o relatotraduz, de modo imagético, os conflitos interiores do jo-vem, assim como suas possíveis soluções, de sorte qlle aleitura do texto pode levar ao reconhecimento e à supera-ção do problema. Portanto, para ambos os escritores, é daÍirnção que a literatura pode exercer com a criança queludvém sua justificativa e seu valor.

O mesmo aspecto é destacado por Richter e Merkel,quando vêem no maravilhoso - presente num conto defãdas renovado, livre das imposições ideológicas que atua-ram sobre os Irmãos Grimm - a possibilidade de represen-tação da estrutura da realidade social (e não apenas psiquica, como quer Bettelheim) em entendimento do jovem.Dessa maneira tornar-se-ia acessível ao leitor o reconhe-cimento da organização da sociedade que o cerca, e suacomplexidade poderia ser transposta, na medida em que orecurso ao fantástico oferece meios mais concretos detradução de certos mecanismos sociais e econômicos.

A caracterização da literatura infantil com base em umprisma histórico revela as particularidades do gênero:

1) Sua especificidade decorre diretamente de suadependência a um certo tipo de leitor, a criança. Resultadodisso é sua pafticipação num processo educativo; tanto é

43 tÜTTn, Max. É's war einmal. Vom W'esen des Volksmârchen:Gõttingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1977. p.84.

44 V. u respeito BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos defadas. Rio de Janeiro: paz e Terra, 'J,978.

736

I

l-t

r37

Page 68: A Literatura Infantil Na Escola

asslm, que só ('()tìì('(..()' il cxistir a paftir do momento ernque surgiu u r.rcr.r'ssirl:rclc clc se preparar os pequenos parao mundo, i.slo i., rJu:rnclo se originou Llma preocupaçãocom a criar.rq':r ('r'r(l.lrìt() tal. Desse modo, se o confinamen-to do livr. irrlrrrrlil rr, cliclático não é legítimo porqlre <lescon-siderr . r';rr':irt'r Íic'cional e a submissão à norma estéticapclo lrrirrrcinr, o <1rrc Ìhe clá autonomia e natureza própria,clc tclrr rrrr lìrrrclrr'ento qlle nâo pocle ser negligánciãdo,[)()r1lu(' P*r.eclc cla índole histórica e ideoÌógica da litera-trrllr iníìrrrtil.

2) A c.'.stitr-rição de um acervo de textos infantis fez-sc l)()l'rrrci. cl<; recurso a um mâterial preexistente: os clás_sic'os c ()s crolltos de fadas. Foram estes últimos que se mos-tr:u'ruìì rnuis apropriados à execução da tarefa, por doislrsl)cct().s:

e) eles têm um conteúdo onírico latente, qlÌe coffes_pondc às aspirações frustraclas cle uma certa camada social(lLrc, por suas condições peculiares, está conclenacla à ina-tiviclade, situação semelhante àquela compartilhada pelacriança;

b) abriga a presença do elemento mágico cle um moclonatural, ao contrário da saga e da legencla (em que o fan_tástico é o milagre, signo da fragrlidacle e finitude Èumanas)e do mito (em que o evento sobrenatural revela a presençados entes fundadores da realidacle, os creuses e heróis crivi-nizados, diferentes dos seres humanos). Assim, a magiatorna-se um adjuvante do qual a personagem não dependeexistencialmente, mas que o auxilia a vencer as dificul_dades; além disto, desacre<litanclo as limitações de tempo eespaço, permite uma representação visível, concreta e si-multânea de todas as facetas que constituem o universo dacriança.

3) Se o conto de fadas se revelou o mais apto à for_maçâo de um catálogo de textos destinaclo às crianças, de_vido às qualidades mencionadas antes, isto significà qr. n

138

I il cr-atura infantil somente merece esta dcn<>rr ì i rr: r ç.: r r ) ( | I ti I I I

rLr incorpora as características claquele gênerct. Iìrrrlr,r.;r t.r,t;r, onclusão pafeça redutora, pertencem legitimrrntcrìlc,;t nr(),l;rliclade literária em questão preferencialmente rr<;rrt,lt,sl('xtos que compartilharem as propriedades do cOn(O tl.l;rtlas, quais sejam:

a) a presença do maravilhoso;b) a peculiaridade de apresentar um universo ern rlirri:r

I t t rlr./15

Resulta daí, em primeiro lugar, uma ampla dc.sc<tnÍi,uì(-'A em relação à eventualidade de uma literatura infirrtrilrt'llista; e fica mais claro por que a história em quadrinhost' Íì-eqtientemente consideradâ como produção literária apro-pliacla às crianças, Llma vez qlle, seja por meio do recLlr.s(),ro sr:per-herói, seja pela abstração das condicionante.s clcl('lì'ìpo e espaço, é reproduziclo um universo semelhante a<rtkr relato fantástico.

4)Por essa razão, a história da literatura infantil se con-Íìrnde com a das transformações vividas peÌo conto clcl:rclas: no século XIX, havendo a preocupação em dotar osi( )vcns com textos considerados aclequados à sua educação,t lclr-se a reelaboração do acervo popular elÌropelÌ, desta-t rrndo-se especialmente a atuação dos Irmãos Grimm. euan-,l<r a moderna pedagogia passou a enfatizar a necessiclaclerle uma formação emancipada das crianças, a literaturairrÍìrntil respondeu com textos renovados, que procuramlilrerar a criatividtde infantil, transmitindo ao mesmo tempo.ros leitores uma mensagem progressista.

Pode-se afirmar, Íodavia, que a recíproca é vercladeira,p<tis não apenas ambos os gêneros evoluem juntos, comotrrrnbém não se pode mais pensxr a na.rrativa de fadas foratl<r âmbito exclusivo da literatur^ paÍa crianças.

45 A .*p."rrâo é de Max Lürhi, quando diz ,,clas Mãrchen ist eint lrìiversum im Kleinem". Cf. IÜTHI, Max. Ê's- uar einmal. Vom rX/essen

tlt's Volksmãrchen. Gottingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 7977. p.9.

r39

Page 69: A Literatura Infantil Na Escola

')) (itìÌ últirno aspecto decorre dai: ê que, visanclo àrrrtr,Íìr';r('tì. ao meio burguês o, à srn liberaçâo e criativi_rl;rtk., u literatura infantil erriaenúïrt.:rcÍLrlro pn.n .ã- a criança. Nessa;ffi:,,"ri;ï:"fJ:ilipo cle comunicação assimétri.n,

"À que é endossacla ainflLrência do primeiro sobre n ;;";;n, uma vezque cola_lrora na configuração de seus ""Ë;;, ideológicos.A assimerria mencion ada é revelacla poï úrri" rypp,;rssinalando que a literatura infantil nao pocÌe ser crescrita foraclo modelo da teoria d, comu.rlcaiü

"_" vez qlre é umarnodalidede que se define em .rzàoï" r., ."."bedor, e euto_ra identifica a particulaficlade que nqr"ìn assume, em decor_rência da circunstância cle que o .l.r'tútario é uma criança:

A particr-rlariclade mais geral e fundamental deste proces_so de comunicaçào é a desigialclale enrre os comuniceclores.estando de um laclo o x-.tor ,'cjr-,tto ".

cle outro, o leiror infantil.Ela diz respeito à sìruaçào lingriisticr,'cognitivâ, ao status social,para mencionarcÌacre.o.-,,,o.ï"ïj":,'",:,:"ï:'"i:,:J,:;ï'Ëï:*,ÍËï:idistância preexistente, p^ru'

^u^nç^r-.rn ai."çao clo recebedor.Todos os meios empregacios perà autor para estabelecer umacomunicaçâo com o leitor infántil poclem ser resumidos sob adenominação cJe acJaptação.46

Como se vê, se os livros destinados à infância têm suaorigem histórica na aclaptaçao, .rt.-into decorre de suaprôpria natuÍeza e .mantém_se',nig"nte em qualquer pro_dução infantil. por isso, ela transiar"L ._ toclos os ele_mentos do rexro, conforme^a descriçao de Gote KÀÇ;;,que identifica os seguintes ângulo, .ro áanpru Ção:47

46 typp, Maria. Asymerische Kommunikation als problem mocl_erner Kinderliteratur. In:.KAES, Anton; ZUUnnlaaNN, Bernhard (org.).Literahrr.fiir we\e I. Gõrtinge.r, vurra"nno".ïïìo Ruprecht, 1975.47 v. a propósiro *l*ennc, C;;;.'à;';", unct JugendtiteraturForscbung. Eine Einftihmng. Koln_Wìe"_C*r,-gãhfrus .WissenschaftlicheBibliothek, 1973.

740

1) Adaptação do assunto: consideranclo c;rrc' il ('()tÌlyrrcensão de mundo do recebedor, assim como srrrs vivtìrrcilrs, são limitadas, o escritor obriga-se a uma restli('lìo lrolrrt:Ìmento de certos temas, idéias ou problemas; cl() lÌt(,:ìrno modo, é conclição do sucesso do livro a prescnçrr clc.

run conteúrdo doutrinário que estimule o leitor clo ltorrtorle vista comportamental e conduza-o à aceitação de vlrl<rrcs que colaborem em sua integração ao meio social.

2) Adaptação da forma: sempre visando ao intercs.st'clo leitor, assim como às condições especiais de sua perccl)-ção do real, ê importante que a forma escolhida coinciclrrcom suas expectativas recepcionais. Nesta medida, o enrc-do deve ter um desenvolvimento linear e personagens qrìcmotivem uma identificação; por sua vez, são prescindívei.sos flasb-bacfrs ou as interrupções do andamento para

^introdução de conceitos ou ensinamentos morais. Cabe aoautor ainda manter a atenção, evitando trechos muito lon-gos com descrições e adotando mecanismos de suspensepela intensificação da ação e da aventura.

3) Adaptação do estilo: o vocabulário e a formulaçãosintática não podem exceder o domínio cognitivo do leitor.Por isso, a preferência dos escritores é por um tipo deredação que coincida com as particularidades do estiloinfantil. Numa pesquisa sobre a linguagem da literaturainfantil, Bernhard Engelen constatou as predileções estilís-ticas das crianças, que agem como modelo lingtiístico paraos escritores, comprovando a vigência dessa modalidadede adaptação:

As estnrturas sintáticas utilizadas pela criança sào, comose sabe, relativamente simples e podem ser assim caracterizadas:

Frases reiativamente curtas.Elos frasais relativamente curtos.Poucas frases subordinadas, geralmente de primeiro grau.Utilização mínima da voz passiva.Utilizaçâo muito pequena de atributos mais complexos. (...)

74L

Page 70: A Literatura Infantil Na Escola

Utilização muito pequena de nominalizações mais com-

lrlcxas. (...)Utilizaçâo mínima do discurso indireto.Falta qr.rase total de conlpostos nominais mais complexos.4S

Como se pode constatar, estas estftÌturas sintáticas sãopróprias à expressão oral, verificando-se na literattÌra infantilo predomínio da oralidade sobre a linguagem escrita, soma-clo :ì supremacia da expressividade afetiva sobre conceitual.Em razão disso, o escritor é levado muitas vezes a empregar;t giria ou o jargão popular, ao entender que a valorização da

oralidade não precisa necessariamente estar compreendidapelo padrão lingüístico culto.

Em conseqtiência disto, tal é o estilo predominante naliteratura infantil:

Resultam assim, entre oì.ltras, as seguintes regras: prefe-rência pela voz aÍiv:r, em vez de passiva; pelo discurso direto, emvez do indireto; frases curtas, em vez de longas; oraçâo reÌativa,em vez de atributo complexo; frase subordinada ou algumas

orações principais, em vez de uma nominalizaçâo mais com-

PÌexa'49

Isso não significa que o escritor deva simplesmentetranscrever o discurso infantil ao longo de sua criação, umavez que a leitura pode conduzir à ampliação do domíniolingüístico do jovem, retomando-se no plano da linguagema função pedagógica inerente à literatura destinada às crian-

ças. Engelen descreve como se dá este processo:

Se a criança, no decorrer de seu desenvolvimento lingtiís-tico, encontra muitos exemplos com estruturas sintáticas mais

complexas, que ela, devido ao seu conhecimento de mr,rndo -

48 ENGetnN, Bernhard. Zur Sprache des Kinder-und JugendBuchs. In: LYPP, Maria (Org.). IiteraturfúrKinder. Goningen: Vandenhoeck

und Ruprecht, 1977. p. 798.49 ft., p.z7o-ztr.

742

portanto, a partir clo conteúrdo - pode decoclilicrrr r'()r r('t;urtlrtr',ela aprende ignalmente, no mínimo de modo rcccplivo, ;r ('i,t!lr

tura sintáticl correspondente.50

4) A adaptação do meio: a presença de ilustnr('irc; r'

tipos gráficos graúÌclos, assim como a escolha de clctclrrinado formato e tamanho, enfim o aspecto externo clo livrr,são condições de atração das obras.

O lugar da adaptação na literatura infantil é cle nutrrreza estrutlÌral, na medida em que atinge todos os .seusi

aspectos e determina o tratamento do enredo, estilo, ep:r-rência do livro etc. Assim, ela procura amenizar o olrtr()lado da assimetria de que provém, qual seja, a maciç:rinfluência do adulto, que é o criador, sobre a criança. Nr>

entanto, essa não chega a ser completamente anulada, e aintrodução do conceito de adaptação - uma relativizaçiodo lugar do adulto no livro para

^ infância - somente acen-

tlra este fato. Mediadora entre os pólos da comunicação, ^xclaptação reforça sua existência diferenciada, denuncia o

fator unidirecional da literatura infantil, dando-se exclusi-vamente do adulto païa a crixnça, e revela a condição ideo-lógica do texto, que poderá oscilar entre um papel condi-cionador ou emancipador, mas que não ultrapassará estes

limites imediatos.Neste sentido, a literatura infantil pode agir à revelia

da criança, isto é, trai-la, na medida em que endossa suadependência existencial ao adulto, dando-lhe um papelpassivo, já que os pólos do modelo comunicacional nãopodem ser invertidos, permanecendo o jovem como o eter-no beneficiârio de uma mensagem de que não é, nem podeser, o autor. Daí sua duplicidade de carâter, que se revelade maneira mais flagrante quando pretende, por meio daadaptação, obscurecer a distância que lhe é peculiar, entreo produtor e o intérprete: apropriando-se da criança, que

5o Ia., p. zro-21r.

143

Page 71: A Literatura Infantil Na Escola

rì('lusivc nomeia o gênero de que é apenas o destinatáriounìrÌ vez que a literatura infantil significa uma modalidade

tlc criação artística para crianças, e não das crianças -, querscr Lrma aliada sua. Entretanto, objetivando dirigi-la paralulgum lugar, por meio de noções e procedimentos a seremaclotados, mantém-se exterior a - e contra - ela.

Sendo essa duplicidade própria ao gênero em questão,cabe avaliar a história da literatura infantil nacional desseprisma. As primeiras criações advêm da mesma preocupa-ção que norteou o início da literatura infantil no Ocidente:tratava-se de dotar o jovem com textos condizentes comsuas necessídades de formação. No Brasil, foi um europeuque procedeu a essa tarefa: Carl Jansen, radicado primeira-mente no Rio Grande do Sul e depois no Rio de Janeiro,estimulou o desenvolvimento de uma cultura nacional en-quanto participou do grupo O Guaíba, em Pofio Alegre, e,mais tarde, como ativo educador e mestre do Colégio PedroII. Traduziu e adaptou os clássicos para a juventude, comoAs mil e uma noites, Dom Quixote, Viagens de Gulliuer,Robínson Crusoe, As auenturas do Barão de Münchba.u.sen,entre outros.51

O que não ocorreu entre nós foi o aproveitamento datradição folclórica brasileira paÍa a constituição dos textosjuvenis, de modo que eles careceram de uma temâticanacional. Embora essa fase de formação da literatura infan-til ainda se dê sob a égide do Romantismo, as aspiraçõesnativistas do movimento não atingiram esse tipo de criaçãoaÍtistic . Pelo contrário, ao lado das adaptações escritas porCarl Jansen, houve a utilização do conto de fadas europeu,particularmente o ibérico, que passou a circular em antolo-gias como Contos da Carochinba, de Figueiredo pimentel.A seu lado, acrescente-se o aparecimento de alguns livros

5l v. a respeito CESAR, Guilhermino. Um precursor de Lobato.Comeio do Por,o. Porto Alegre, 3 dez. 1977. Caderno de Sábado.

1.44

de natureza didâtica, produto sobretudo de cchtc:ttl<)t('.s ('

religiosos, nos quais se verifica acima de tudo o irttuilopedagógico, introdutor de valores e normas de conclttt:t."1

O papel exercido por Monteiro Lobato no quaclro cltliteratura infantil nacional tem sido seguidamente reitertclo,e com iustiça. Com esse autor rompe-se (ou melhor: co-meça a ser rornpido) o círculo da dependência aos padrõcsliterários provindos da Europa, principalmente no que dizrespeito ao aproveitamento da tradição folclórica. Yalorizan-do a ambientação local predominante na época, ou seja, apequena propriedade rural, constrói Monteiro Lobato umarealidade ficcional coincidente com a do leitor de seu tem-po, o que ocorre pela invenção do Sítio do Pica-pau Ama-relo. Além disso, não apenas utiliza personagens nacionais,como também cria uma mitologia autônoma que se repeteem quase todas as narrativas; daí a presença constante dePedrinho, Emília, Narizinho, Dona Benta, Tia Nastácia, oVisconde. É igualmente razão de seu êxito literário e estéti-co o emprego de crianças como heróis, o que possibilitauma identificação imediata com o leitor.\,

No plano das personagens, cabe ressaltar ainda outroprocedimento do escritor, que resultou no sucesso de settempreendimento: trata-se do modo como ele resolve oh,rgar do adulto em seus textos. No mundo fictício do Sítiodo Pica-pau Amarelo, microcosmo do qual se desenvolvemos outros contextos ambientais de seus livros num crescen-te avanço rumo aos espaços fantásticos (já que se passa deum cenário de certo modo reconhecível como o mencio-rrado Sítio, parahorizontes cada vez mais fantasiosos, comoo Reino das Águas Claras, a Lua, a Grécia clássica etc.),

52 Sobt" os inícios da literatura infantil no Brasil, consulte-seAÌÌROYO, Leonardo. Litera.tura infantil brasileira. São Paulo: Melho-rxmentos, 1968; e SANDRONI, Laura Constancia. Retrospectiva da lite-r':rtura infantil brasileira. Cadernos da PUURJ. Rio de Janeiro: PontifíciatJniversidade Católica do Rio deJaneiro, n. 33, 1980.

M5

Page 72: A Literatura Infantil Na Escola

('\tsl(,lìì :rpenas dois seres mais velhos, Dona Benta e TiaN;rsl;icia, visto que experiência, maturiclade e responrnfrìfi_rl:rclc, enquanto propriedades específicas a" uá.,fi", ,ãà:rtril>utos exclusivos cla primeira, ã avó.

demais personagens são: as crianças, realistas (pe_clrìnho e Narizinho) ou fantásticas Cnmitia, " t;;;;;,Peninha), os animais mágicos (o Rinoceronte euindim, oÌlurro Falante) e a cozinheira Tia Nastácia, cujoìível irue_lectual e comportamental não ultrapassa o áo, _".ro.ar,sendo, às vezes, trÌesmo inferior. Aisim, unicamente umapersonagem representa o universo do indivíduo aclulto _ ecoln uma singularidade: a de que não clesempenha umafunção paterna. Assim, Monteiro Lobato preserva um lugara um papel fiscalizador e de sustentação financeira, ,.Ã

"conotação problemática que a relação entre pais e filhosnecessariamente contém.53 Nesse sentido, as crianças fic_cionais que vivem no Sítio clo pica_pau Amarelo saã órfas- Pedrinho passa as fêrias lâ, longe cla mãe, e os pais deNarizinho não são mencionaclos, e Emília e o Visconde, ascriaturas mais originais de Lobato, são inventados por brico_lagem,54 isto é, provêm do aproveitamento do materialexistente no próprio meio oncle moram os entes fictícios _o que se torna condição de sua liberdade, pois Dona Bentanão exerce um poder de coerçâo. E, quando insinua oexercício de um procedimento desse tipo, acaba vítima clodesafio dos pequenos protagonistas, sem que tal atitudeimplique desobediência (uma vez que nào se rata derecusa a uma ordem paterna) ou falta de educação.

O terceiro aspecto a destacar nas criaçõcs tlo t'st'ttlul

paulista diz respeito ao aproveitamento da sugcstlto ttl'itttl

cla clo folclore. Conforme foi afirmado anteriorlìì('rìl(" ('

clessa fonte que se alimentou intensamente a litclltltrr':t

infantil em seus primórdios. No Brasil, deu-se por ltttrilrrtempo o transplante da tradição estrangeira, visto (lr-lc :ls

narrativas de cunho oral não receberam atenção sitrlilltl',

mesmo durante a vigência de movimentos literários cle cot'

nacionalista, como o Romantismo, o Regionalismo otl ()

Modernismo. Foi Monteiro Lobato quem procurotl incorpo-

rar esse acervo às suas histórias, pelo aproveitamento clc

cefias personagens, fantásticas, como o Saci Pererê, históri-

cas, como Hans Staden, por exemplo, e dos relatos poptl-

lares; daí a presença do ciclo das lendas relativas à onça ou

ao jabuti, entre outras. Todavia, se a ambiência modernista

do autor transparece em tais procedimentos, cabe a ressal-

va <le que ele emprega igualmente a mitologia clássica

(como em O minotauro ou Os doze trabalbos de Hércules)

e personagens oriundos da literatura européia (Peter Pan,

D. Quixote) ou da religião (S. Jorge, em Viagem ò Lrta),

integrando o universo infantil de suas pessoas imaginárias

e leitores à história nacional e ocidental, assim como ao

mundo cultural que os cerca.

Da obra criativa e, ao mesmo tempo, respeitadora das

peculiaridades do mundo da criança, não se deve omitirigualmente o ângulo pedagógico: Lobato sempre teve em

mente a formação de seu leitor, visando dotá-lo de uma

certa visão do real e da circunstância local, assim como de

uma norma de conduta. Emerge dai a presença de uma

doutrina nacionalista, transparente sobretudo em seu livro

mais polêmico, O poço do Visconde. Preocupado com a

defesa dos interesses internos, investe contra o capital es-

trangeiro que, segundo ele, prejudicaria a autonomia eco-

nômica da nação. Propõe também um certo modelo socio-

econômico, ao partilhar a valorização da livre-iniciativa e

- 53 cf' a propósito igualmente as observações de Tatiana Berinky.In: BELINK! Tatiana. Literatura inlantil é Monteìro Lobato. ln, Sfú,

Joâo carlos Marinho. conuercancro cíe Monteiro Lobato. são paulo:ObeliTo, 1977. p.22.

)4 o termo é usacro no senticro que lhe clá craucle Lévi-strauss. V.tÉvI-srRAUSS, Claucle. o pensamento seruagem. sâo paulo: NacionaÌ,7970.

746 147

Page 73: A Literatura Infantil Na Escola

r l't r t'1;11;1r'rr.Ìdimento privado, increpencientemente cra tute,Irrr L r l,lsl:rclo, como é próprio à icleoiogia da classe méclia.. . :S:,, protótipo social vem clas ãamaclas urbanas: é <rirrrlivícluo empreencleclor, esperto, astucioso, qlÌe nâo co_rrlrccc limites, em contraposição à estagnação clo pequencrl:rvrador. por isso,.seus hãróis precliletos, pe<lrinho e Emília,.sìo em primeiro lugar inclivícjuos desrespeitaclores; repre_scntam um inconformismo qì.Ìe somente se satisfa, q.rnrr,losc pocle traduzir em açâo. São a encarnaçâo cÌo ser humanoprodutivo, imprescinclível clentro cla nova orclem a qlle oautor aspirava: o desenvolvimento inclustrial, o cresciÁentoeconômico, a afirm-ação cla pujança nacional. Dessa forma,o nacionalismo de Monteiro Lobato coincide com as aspira_

ções de sua época, quanclo se assistia à modernizaçaà aopaís pela introdução cle uma inclústria Ìocal, ao crescimen_to urbano e ao foftalecimento cla classe méclia. É nessanova realidade social .que ele quer introcluzir seu leitor;deste modo, sendo o inconfor-ir-o que susten ta a açãode Emília, pedrinho e o Viscond" n .o.ráição a" p.rrf..rl,rn

emancipadora de sua obra, vê_se que o alltor também bus_ca canalizâ-la para um cefto tipo dâ proclutivicla cle, cle cará,_ter burguês, a que a criança, ,eceËedo, sempre p"r;i;;,sujeita-se.

Salienta-se ainda outro aspecto clecorrente do caráterideológico que as narrativas poìrr"*, é que, patrocinancloa imagem do universo urbano e a doutrina burguesa dalivre-iniciativa, Monteiro Lobato acaba condenanclo _ e eleo faz confe.ssadamente, por meio de Jecas Tatus que per_passam sua obra e moram preferenciai_"rrt. no Sítio cle D.penla - o próprio espaço existencial cle oncle provêm seusheróis (o cenário rural) e seu -"io-a" vida (a exploraçãoda pequena propriedade de terra). E ã"rto que, ao proce_der assim, Lobato evidenciava .; ;"; obra um processoque ocorria na sociedade brasileira de seu tempo. No en_tanto, o que surpreende é que ele consegue situar suaspersonagens neste novo contexto tão_somente pela mu_

748

,l:rnça cle sua visho de mundo, sem mocliÍìc1ll' ll.'j ( llr rlll:,

I:rnc:ias originais em qlle elas viviam e sonhavltttt'

É esse o aspecto contraclitório de seus textos: ltottvt' 'tirrcorporação cle ceftas idéias (que proceclem evitlt'rrl,'

rrrcnte cle sua profunda aclmirzrção pelo modo nortc-lllìÌ('li

,.ilno de vicla), sem qlìe ele as tenha conseguiclo trlrcltrzir

(.rìì personagens e ações. Por isso, as narrativas têtlt ttttt

t.onteútdo doutrinário, o que inclubitavelmente perttlrl)lì ()

t,lèito emancipaclor que a caracterização inconformista clc

scus heróis clesejaria alcançar. E tal dificuldacle advém clrr

rìetureza do gênero a que o alltor dedicou grande parte clc

slra existência e o melhor de sua criatividade: é que, para

llcançar o efeito formador e pedagógico, o escritor não

pôcle aprimorar sua mensagem, discutindo slÌas nlÌances c

conseqüências, nem tornar mais complexas as personagens

c ambiência, fazenclo-as viver crises existenciais, pertllr-

baçôes ou mudanças. Por isso, o programâ político de

Monteiro Lobato liquida o mundo de seus heróis, sem qLle

estes, que encarnam aquele, possam se dar conta do fato,

aprová-lo ou contestá-lo. Nesse sentido, as personagens aca-

bam por incorporar a ptôpria, condição do leitor infantil, a

cla aceitação e passividade. Em outras palavras, por terem

si<lo criaclas à imagem e semelhança de seu recebedor, para

motivar a iclentificação e o interesse dele, acabam por ado-

tar seu clestino, o que tem por conseqüência a limitação e

a ameaça de extinção de sua circunstância'

Porque deu ênfase ao ideal da vida urbana e represen-

tou progfamaticamente as transformações socioeconômicas

que vivia a nação em sr-Ìa êpoca, Lobato criou a literatura

nacional num contexto de cenário' personagens e sugestão

folclórica que já não podia ser seguido por nenhum outro

escritor do gênero. Noutra formulação: fazet literatura

infantil após Monteiro Lobato significa começar quase tudo

outÍí- vez, pois a experiência do escritor foi levada por ele

próprio às suas últimas conseqüências' A evolução dessa

r4g

Page 74: A Literatura Infantil Na Escola

('.sl)('(.ic litcr.ril.ilrr.c'tcs.

r n() I3ra.sil rcllctc c.st:rs cliÍjculcl:rclcs clccor_Há escritor

mocleÌos fonrr"ï"]ï :,"^],_,ram áÌ reperir os princip:ris

precisamente o , - Lr'rrroríÌm narrativas em que firltacriçâo .1o .,nirr"rQue

consistill seu srende achacìo: zr circ,ns-cicla pelo r.ito,. ïïtt:::i] Ì '""Iïtlacl" vivícla e,/ou conhe-nxnlemente

^rrt, ., ..uyucra epocÍì. aincla cra preciomi_

fantasia transfor e lnteriorenr. presente nurn texto atual, a

vicla, neglir"".,j;:j:,*"1.^-l"tt'cação a. .,* ,r.'.Ë a"natârio, o q.,. -",t"" ,"ìÌulì:ï:1:-it referênci:t clo cÌesti-incompreensão ch r..-"1ì),

tlslnteresse e representa Llmaformais. __"orLraoe ce renovação e criatividade

Evitando tâoescrirores ,rnrn a"-IË"ïrerepetir Lobaro, outra linhagem cleCabe mencionar -

_o-qr u mero urbano à criação literária.

f oi u nsl N;;,, ;, :'i: ï ;ï:::ï::.J"_T s,rcecü cros' rve i"interioriclade cla criancr. n_l.,llrr.s

LrrDano na perspectiva daque aborcra- "r.:i:::::::i-y1'*

Machaclo ã o"ïnï.nï,cundante; Fernancla r."...---;'lt^os

menlnos e o contexto cir-peculiaridacles fantásr;;" ':: Almelda' que redimensiona asMarigny, q,-," r"*lrì;.:^,:,,tonto. de fadas; carlos crena óptica infantil, ist" é. :;':l:t]:i*:" sociedade com base

A dificuldaá" _rià.*ì^SelÌs proregonisras cenrais.

úrltima inctinaçào -"n.ionlìJ,ïïï;,i:, eue diz respeiro àdo munclo urbano .,.,ao ^ll.l

zru raro cle que a valorizaçâop ersp e c r i va ." - o, :

"": t :ï :",:,l:Ï ï1T "ï: i :ü;:t: :lismo. pois, se u

",

- ì-'' uDjeto tem sido tratedo: a c.lo rea-programa, ,ro ,e.,,iït3,iÌil1t:t" cleveu seu aparecimenro eassunro (decorrenre-,t;;i::' a, introduçìo de um novoconseqüênciasclo6

-- *'rcnvolvlmento industrial e clas

r:,,fl ï::ïïHïfrï...ïËl;,ï:;r;:;hïi;,",:ïfoco realisr, _.rr.il.l;f"1" naruralmente a incorporar oincerro, pois a tit"rntu.,-a1 üj"rt":',ïf,

todavia, tem sicrode que a ane pocte reflet,. ï;;'#.il,1i:,ï*J;J::t:150

i,ulx)c, rllr p;rr'(t' rlo lcitor', um detemrinaclo ltrc-corrlrt'r.irrrcrìto clc.stc rrrcsmr> rnaterial. Esse pressulposto fnlh:r, <1rr:rrr

rlo.sc trttlr clc trm recebedor mirim, o qlÌe intensifica otrtr':rvt'7. Lt necessiclade de adaptação. Conseqtientelìlentc, lì{ )

r':rs<r cla proposição de tipo realista pare ^

literatura irrÍìrrrtil, a ;rclaptação vem a significar simplificação e recluçìo, j:i<;r-re não pode se dar um questionamento sobre as raízc'.s

ckrs problernas examinados, nem sugeridas propostes rk.solução, a não ser qlÌe o escritor descubra alternativ:rs cslru,tlrrais, propiciaclas pelo relato ficcional, para esta espócit'cle dificuldade.

Se, portanto, no primeiro caso mencionaclo a omi.sslìodo mundo vivido pelo leitor dentro do universo textrr:rlconduz e uma criação totalmente desvinculada da rclli,clade, cujo conteúdo venÌ a ter natllrezzr unicamente utírpiclr,no último, a rejeição clo fantástico pelo epego ao parricl<rneonaturalista provoca uma falsificação em tudo contrirrilr lr

intenção qlle norteou a produção artística.Tais são os transtornos coln os quais convive a litcrlr

tura infantil nacional. O exemplo de Monteiro Lobato porlt'ajuclar a compreender e descrever o fenômeno, assim c()rìì( )

a resolvê-lo, se o examinarmos na perspectiva da criu(-:ì< r

de novos textos. Entretanto, ao mesmo tempo, ele sír .sc'rium prestimoso auxiliar, se o resultado for uma literrtrrr':roriginal, não-lobateana, pois, como foi visto, o próprio c's

critor esgotoll os caminhos inventados e trilhados por clt'.E mesmo em seu caso, evidenciam-se os limites do gônclr r

escolhido ou, com outras palavras, as dificuldaclcs cytrr.

vivencia para transpor sllas fronteiras. Que, como dccctrrclnda função ideológica a que a literatura se sujeita, caltc pcr'guntar se a recllsa desse papel não provocará seu clc.srr

parecimento. Oriuncla da constituição de determinaclu Íìrir:retâria, a infância, a partir de um cefto momento cle cv()lução da civilização ocidental, sua transitoriedade é antpli:rtl:rainda pela relação especial que estabelece com seu clcstirr:rtário, uma vez que está constantemente a perclê-lo. I,or'

t5t

Page 75: A Literatura Infantil Na Escola

t;,rt(), lt literatura infantil talvez seja tão_somente uma faseIrislolicr, passageira .:*9 n condiçâo de seus leitores, depen_rlcnclo sua eliminaçâo da _"jid;;ç;; da esffurura social(lLle zÌ gerou. No enhnto, enquanto existir, mantém_se como:'::1!:-"" teórico,

?-orqu": sándo a imagem acabadado quex ltteratura nâo quer ser, isto é, revelan-do que

" ;.;;;ler igualmente ftaição, e não p""",.g*o, passagem, e nãopermanência, farsifìcaçâo, e'"à" ;;;;de, crenuncia esseoutro lado, a primeira, vista inaamirr?J.f, mas verídico, clacriaçâo com a palavra,, o que deflagra a necessicrade cre umareflexâo renovada sobre ; ,";i;;?;;;u ao f"r,o_eno tire_rârio e estético.

O LIVRO PÃRà CRIÃNçÃSI\TO BRÃSII

r52

Page 76: A Literatura Infantil Na Escola

/\IONTEIRO IOBÃTO E A

r\vENTURÃ. Do IMÃGINÁnto

Localizando a ação do presente de seus leitores e des-

tlobrando as peripécias com base no cotidiano das perso-

tìlrgens, Monteiro Lobato teve os meios para romper com iÌ

,',,ãição literâria destinada aos jovens de seu tempo' Essa

,,'r';t caudatâria do folclore europeu' constituído por narrati-

vas de transmissão oral, recolhidas, e conseqüentemente

c'ristalizadas, nas compilações dos irmãos Grimm e de Hans-

(lhristian Andersen. O sucesso que alcançaram ocasionou a

cópia e adaptação delas em diferentes partes da Europa' A

I)cnínsula Ibérica não ficou imune a esses acontecimentos;

c, por este intermediâtio, acabaram por desembarcar nc>

tlraìil as mesmâs histórias, somadas à contribuição aleatíri.r

cle escritores mais antigos, como Chades Perrault' ou mais

lecentes, como Heinrich Hoffmann, acompanhadas de tex-

tos de procedênciavaúadae autoria desconhecida' nos quais

se destacam o conteúdo religioso e a presença de figuras da

mitologia cristã.

Hãrdeiras, talvez espúrias, da ttadição popular euro-

pêia esombras do legítimo Mrircbencoligido pelos Grimm'

esses relatos acabaram por perder - ou, ao menos' ver

enfraquecerem - as peculiaridades que os ligavam ao mei<>

É5

Page 77: A Literatura Infantil Na Escola

.\()ciíì.I no qual surgiram.l Se os compilaclores mencionaclo.sj:i lraviam tratado de amenizar o conteúdo original dos tex_tos - aquele que traduzia a revolta dos segmentos sociaisrnais oprimidos, como os dos camponeses e afiesãos urbâ_nos, que elaboraram as narrativas primitivas _, o processose complementou nas transposições que sucessivamenteforam feitas. Adaptações de adaptações, as histórias come_çaram a falar de um mundo sem qualquer vínculo com zÌpossível experiência do leitor; atenuadas até em seus con_flitos simbólicos, converteram-se em resumos que poucomostravam, seja a propósito da realidade que expressaramum dia, seja a respeito da sociedade em que posteriormen_te se implantaraln, por nada terem assimilaclo do novo solo.

As histórias reunidas por Figueireclo pimentel que odigam: seu Ifistorias da auozinba tem a ver com o livro demesmo nome, elaborado por Travassos Lopes,2 alÌtor por_tttguês, e esse, por sua vez, com algum ancestral mais dis_tante, remontando ao folclore da Europa Central cle que sevaleram os famosos irmãos, ou a Llma origem mais clifusa,como a asiâtica, que se expandira pelos conto s das Mil euma noites. É com esse panorama que Lobato rompe, o quenão significa que o ignore. No entanto, somente o incor_pora quando o submete às regras dos moradores clo Sítiodo Pica-Pau Amarelo; e, sobretudo, quanclo o moderniza,procedimento que o leva a renovar a linguagem dos heróis

tlo passado, assim como suas atitudes, condição cltrc' t'lcgt'p:rra evitar o sepultamento definitivo deles.

Com tal decisão, o escritor revela-se simultancarrrcrrlt'rrrn homem de sua época - porque permeável à influôrrc'irrtlo cinema e dos quadrinhos (veja-se por sua reitcllrcl:r:rclmiração por Disney, para ele, um dos maiores artistus ckr

sóculo) - e um atvalizadot, ffazendo para a mentalidade <k'

.scLÌ momento histórico o que lhe parecia ultrapassado otrcnvelhecido. A literatura infantil, como se afirmou ântes, enr

rÌ que experimentava mais nevralgicamente esta dificuldade.Amarrada à contribuição do passado, nào se renovxva; e,

com isto, impedia o aproveitamento do moderno, da atua-lidade, do tempo, em suma.

É o que muda radicalmente com o desdobramento daobra de Monteiro Lobato. Pode-se supor, por conseguinte,que ela acabasse por refletir a êpoca em que foi produzi-cla. Que, com a incorporação de personagens contemporâ-neos, fosse introduzido na literatura infantil o sistema socialvigente, com seus valores e compoftamentos, organizaçãopolítica e funções. Yale dizer, pode-se esperar dela umarepresentação da realidade que nos faça conhecer, commaior ou menor número de detalhes, a êpoca a que o autorfbi profundamente sensível (e que lhe rendeu uma série deensaios polêmicos e uma vida pública agitada).

Todavia, quando inquirida, os traços de contempo-raneidade e cotidiano da realidade representada parecemescapulir. Pelo contrário, revela-se de imediato que insti-tuições basilares da sociedade brasileira de seu tempo (e dehoje), como a familia (patriarcal), a escola e a religião (oua Igreja) estão completamente ausentes. Se Dona Benta e

seus netos, rodeados de alguns animais incomuns, como osfalantes burro Conselheiro, rinoceronte Quindim e Marquêsde Rabicó, ainda coincidem com uma idéia de família, falta-lhe a orientação patriarcal e autoritâria que perdurava noperíodo, sobretudo no meio rural habitado pelos protago-

1 As relações entre os Màrcben e a sociedacle agrâria cla Europapré-industrial podem ser verificadas em RôHRICH, Lutz. Mcircben und'Mirklicbkeü. \Tiesbaden F-Íanz Steiner yerlag, 7974.2 Cf. u respeito PIMENTEL, Figueiredo. Histórias da auozinba.Livro para crianças. Rio cle Janeiro: euaresma, s.cl. Id. Histórias clacarocbinba. Rio de Janeiro: euaresma, 7954. Id. Histórias do arco-da_uelba. Rio de Janeiro: Quaresma, 1957. E LOPES, José euintino Travas_sos. Os contos da auozinba. Coleçâo ilustrada cle histórias, lenclas, fábu_las e contos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria pereira , 1894_1896. 2 v.

156 757

Page 78: A Literatura Infantil Na Escola

rÌist:rs. Por sua vez, a escola desaparece, já que Pedrinho

c'stri crrr férias permanentes, sendo alvo de uma aprendiza-

Ílcrìì que crê muito mais eficaz, já que recorre à leitura de

livros e comparece diariamente aos serões, abeftos a todos

<rs interessados, de Dona Benta. A organização religiosa

rìLlnca é mencionacla, como se jamais tivesse existido, nem

funcionaclo como um dos principais esteios da sociedade

nacional ao longo de sua história.3

Tais fatores - mais a visão harmônica do relaciona-

mento entre os indivíduos, humanos e animais, que moram

no sítio (o que não impede conflitos internos, mas passa-

geiros, e aventuras, estâs contínuas) - reforçam a noção de

que aquele cenário representa a.corporificação mais nítida

áu r.rtopin concebida por Lobato.4 Se assim é, e a conclusão

parece inquestionável, resulta comprometida a tarefa que

ele se clispôs a. realizat: a de criação de uma obra para cri-

anças fundada ntlm tempo e espaço determinados, o do

Brasil cle sua época, rompendo com um tipo de literatura

até então consumida pela infância.Antes cle confirmar se esse projeto foi viabilizado ou

não, torna-se imprescindível verificar que realidade - ou

que sociedade - a obra Íradtz. Isso significa igualmente

interrogar a metodologia que pode servir de amparo no

caso, a sociologia literâria- Pois, na falta de uma contrapar-

tida real ao mundo construído por Lobato, que metodolo-

gia pode ser útil? Ou, com outra formulação: até que ponto

a sociologia liÍerâria, explicitando as aproximações entre

uma obra e a sociedade que lhe serve de modelo, pode dar

conta cle uma narrativa na qual estes vínculos são rejeita-

dos e até expulsos como indesejados?

3 A .onttutnção dessas ausências na obra de Monteiro Lobato

deve-se a Rose Lee Hayden. cf. HAYDEN, Rose Lee. Tbe cbildren's lite-

rature of José Bento Monteiro Lobato of Brazil: A peclagogy for progress'

Ann Arbor: Universiry Microlilm International, 1974'4 Cf . a propôsito FIAYDEN, Rose Lee' op' cit'

158

A Marcação ão Terrítórío

As caçadas cle Pedrinbo, sendo uma clas pot'tc:t's olrt':ts

cnl que a ação transcorre inteiramente clentro do 'sítio, oÍi'rcce os dados para uma primeira aproximação ao tcllìlt' A

rrarrativa pode ser dividida em duas grandes seqtiênci:ts,

rlecorrência natural das duas fases em que o livro foi cs-

crito.5 A primeira dá conta da caçada da onça, e a seÍltllì-

cla, cla adoção clo rinoceronte, posteriormente batizacl<r

como Quindim pela prole de Dona Benta.

A primeira seqtiência, por sua vez, reparte-se em clois

rnovimentos: no primeiro, os meninos, acompanhados por

lÌmília, Visconde e Rabicó, dirigem-se à mata, na procllráÌ

cla onça, cuja presença o último havia detectado antes' Ten-

clo-se sagrado vencedores, após um ataque simultâneo ao

inimigo, eles se vêem acossados pelos animais, que querem

vingar o crime. De agressores, as crianças se convertem em

rrgrecliclos, porém não perdem o carâÍer heróico, já que é

cleles a simpatia do escritor. Por isso, são os animais os

ruutênticos selvagens, embora esta conotação negativa fique

rumenizada pela justificativa oferecida por um dos bichos à

r-recessidacle de vingança: eles vinham sendo paulatina-

rnente desalojaclos de seu hábitat original, devendo então

reagir, para conselvar uma parte c1e suas áreas primitivas'

Tendo razão e agindo democraticamente (os animais

cliscutem o problema em assemblêia, e a decisão é fruto do

consenso geral), nem por isso eles deixam de ser aniquila-

clos, outra vez em decorrência da ação coletiva das cri-

rÌnças, lideradas pela esperteza de Emília. Não evitam, pois,

a expulsão que temiam, produto da ocupação, pelo ser

humano, cle seu território. Assim, o sítio, por intermédio de

5 Originalmente constituíclo pela história da caçada da onça, pu-

lrlicacla em 7924, o livro tomou a forma que detém atualmente em 1933,

com o acréscimo da seqüência relativa à busca do rinoceronte'

r59

Page 79: A Literatura Infantil Na Escola

:,('u.s lìabitantes, expande seu espaço físico, civilizando,1r<>clc-se dizer, a n tureza primitiva que o rodeia. Ao mesmotcrÌìpo, delimita uma zona de relação com o mundo nãolrr-rrnano, em que isola - ou submete - o selvagem que existenele.

A segunda seqüência também se inicia por uma caça-cla. Ou melhor, abre por um projeto de caçada - a do rino-ceronte, encontrado na própria fazenda por Emília. Ado-nando-se do animal, que fugira de um circo, ela o vende aPedrinho. O fato - pacífico, o que o torna simetricamenteoposto à caçada anterior - tem, por sua vez, uma conse-qüência similar: dá-se a invasão dos funcionários do go-verno, em busca da pretensa fera, e, embora não almejemverdadeiramente concluir a tarefa, ocasionam transtornosequivalentes nas terras de Dona Benta. O resultado de suasações, somado ao carâter indesejável de todos eles, coloca-os no eixo dos animais bravios que, na seqüência anterior,queriam destmir o sítio.

A rejeição dos funcionários provenientes do Rio de Ja-neiro transparece ainda em outros níveis. Não se aventuran-do a uma incompreensão por parte do leitor, o narrador tratade expressar com veemência a ineficâcia e mâ-fê do grupo:

Fazia meses que o governo se preocupava seriamente como caso do rinoceronte fugido, havendo organizado o belo Depar-tamento Nacional de Caça ao Rinoceronte, com um importantechefe geral do serviço, que ganhava três contos por mês e maisdoze auxiliares com um conto e seiscentos cada um, afora grandenúmero de datilógrafas e 'encostados'. Essa gente perderia oemprego se o animal fosse encontrado, de modo que o telegramade Dona Benta os aborreceu bastante. Em todo caso, comooutros telegramas recebidos de outros pontos do país haviamdado pistas falsas, tinham esperança de que o mesmo acontecessecom o telegrama de Dona Benta. Por isso vieram. Se tivessem acerÍeza de que o rinoceronte estavâ mesmo lá, nâo vinham!6

6 fOgATO, Monteiro. As caçadas de ped.rtnho. São paulo: Brasi-liense, 1956. p. 84. As demais citações provêm clessa edição.

160

Além disso, as crianças também percebcnì :t ilìt'oltl

lletência dos homens que, ainda por cima, perscgLlclìì tllllscr que jâ conta com a simpatia dos heróis:

Peclrinho estava assombrado da esperteza daquelcs lro'

mens. Iam construir uma Ìinha de cabos só para levar ao tcrrci|rr

um canhãozinho e uma metralhador:r!"' Muitos rinocerontcs jÍhaviam siclo caçaclos desde que o mr,rnclo é mundo, mas nenhtttlt

seria caçaclo tão caro e com tanta ciência como aquele' Apeslrr

cle nunca saíclos claqui, Ìais homens bem que podiam mudar-sc

para a África, a fim de ensinar âos negros do Uganda como é que

se caçam feras... (p. 96-97).

Todavia, é a circunstância de colocá-los' no desdobrar

clo texto, na mesma posição ocupada antes pelos animais

selvagens, que traduz de maneira mais palpável a aversão

aos vilões. Por isso, eles não contam com nenhum atenlÌ-

Irnte: pelo contrário, são ridicularizados e, para tanto, o es-

critor arrisc a-se a exageraf cm seus comentários sobre as

personagens, já que a proporção desses é visivelmente

maior que em qualquer outro momento do livro'Também a ferocidade humana é punida, e seus porta-

dores expulsos do local de um modo irreversível' o que

ainda ocorre ao advogado e ao proprietário do circo em

que vivia o rinoceronte. Esse, por sua vez, Íem uma sorte

clistinta, se comparado à onça, a quem se assemelhava por

força c1a estrutura espelhada do texto. E adotado pela famiIia, ainda que gradualmente: Emília é a primeira a reconhe-

cer sua mansidão e, a seguir, todos os demais membros'

desde Pedrinho e Narizinho até Dona Benta e Tia Nastácia'

acabam por conviver tranqüilamente com ele'

Dessa maneira, o rinoceronte não apenas inverte opapel da onça; ele representa igualmente o avesso da

iunçao desempenhada pelos demais agressores - as feras

animais e as humanas -, demonstrando que o sítio está

aberto tão-somente paÍ^ um tipo de indivíduo: aquele que

compartilha de algum dos valores enfatizados por alguma

761.

Page 80: A Literatura Infantil Na Escola

(l:rs l)cr.sonagens. Nesse caso, o carâter sereno, cuja contra-

lrrrrt.icla humana é protagonizada por Dona Benta; maislulcle, a sabedoria e a inclinação docente, igualmente atri-lrr.rtos da av6, aliviando a missão pedagógica que eÌa vinhzrocupando até então.

Na medida em qlre os heróis do sítio esclarecem as

regras par^ a admissão de novos parceiros, fica evidenteque este território recebe um segundo limite. Na seqüênciainicial, esse se caracterizara por urna rejeição do natural ec1o selvagem, configurando um âmbito civllizado qlÌe avançasobre as regiões que se opõem a ele. Contudo, a civilizaçãocorporificada pelo sítio procede a um novo tipo de expul-são: a do mundo urbano, cujo grau de desenvolvimentogerara uma organização institucional difícil de tolerar. Emconseqüência, ao laclo do rechaço da estrutura administra-tiva, segue-se a negação de qualquer tipo de instituição - a

familiar, a escolar, a religiosa e a governamental. O pan-doxal é que elas se confi:ndem com o mundo civllizado,aquele que submete a natureza circunvizinha e desenca-deia a transformação do ambiente original.

Corn isso, Monteiro Lobato procede à crítica à socieda-de brasileira de seu tempo, ainda que a alusão ao estamen-to burocrático revele que ele apenas a apalpava epidermica-mente. Mais decisivo é que acaba por criar üm zona nelÌtra,que somente se consolida por oposições: ao mundo danatLreza, por não admitir um retorno à sociedade primitiva;ao mundo da civllização, por não concordar com a forma deevolução que tomaram os acontecimentos históricos.

Que essa zona neutra veio a confundir-se com o ima-ginário, comprova-o o paulatino afastamento do contempo-râneo em sua obra, ou seja, a sonegação dos fatos sociaisde que deveria consistir a realidade recriada. É o que trans-parece em O pica-pau amarelo, também transcorrido intei-ramente no sítio. Que todavia o real cobrou sua dívida,impondo uma fronteira à ação ilimitada dos heróis, verifica-se em A cbaue do tamanbo, texto em que o presente é tão

r62

vrv(), que incorpora o evento mais paÌpitantc clo 1tt.r'urthrí'nì cÌLle foi escrito - a guerra européia.

/l Chaue erlÍre os Lírnítes do Real

O píca-pau amarelo (193D pode ser descrito, nurrrlrlirneiro momento, como a história que reflete, pelo avc.s-',r r, cr sentido global de ,4s caçadas de Pedrínbo. A ação se

;r.rssa outra vez integralmente no sítio, embora Dona Bentertt'rrha de ampliar suas fronteiras, a fim de abrigar todas as

Ir('r.sonagens do Mundo da Fábula, que se deslocam paral,r. Contudo, em vez de acolher apenas alguns eleitos (co-rno Cléu e o rinoceronte na narrativa anterior, a meninat('rì(lo atuâção passageira no conjunto da obra), a Velhalìr'nhora hospeda a todos indiscriminadamente, incluindo-',r' :tí os malvados, como o Capitão Gancho, Barba Azul e

' ):; rì-ìonstros que interrompem a festa de casamento de

lirrr.lca de Neve. A condição de acesso justifica a diferença:,:, rìovos moradores originam-se todos, bons ou maus, em{'\r'rcício ou aposentados, do universo fabuloso da literatu-r.r, cr-rja localização é contígua às terras de Dona Benta.

Em razão desse fato, O pica-pau amarelo parece pro-, r'tlcr a uma opção por uma das realidades entre as quais,,r,< il:Ìva, dirigindo-se à região da fantasia atemporal. Congre-1i,utclo, num único espaço, escolhido para este fim, seres der',rriuclas procedências, pode abolir as fronteiras históricasr;rrr.r os prendiam a determinada circunstância e, conseqüen-tr'rrìcflte, alterar as fronteiras da representação. Entretanto,Alortteiro Lobato não elege essa via, preferindo permanecer\] 7.ona neutfa antes mencionada, reiterando-se a cons-l,rl:rÇão de que o livro desempenha função similar a ,4st (t(zdas de Pedrinbo. Apresentando resultado semelhante,,, t'scritor recorre a teses diferentes, fazendo com que as, ,l rlls espelhem uma à outra, refletindo simultanearnente anl('srÌìa imagem.

163

Page 81: A Literatura Infantil Na Escola

A noção de que o sítio encarna uma zona especial,rìlas neutra, porque alternativa tanto à sociedade real, comoao mundo da fantasia, é expressa pelo narrador na abertu-ra do relato, ao qualificar o local como "fabuloso tanto nomundo de verdade como no chamado mundo de mentira".TCiente da precariedade do último conceito, o narradorprocura esclarecer sua natureza: "O Mundo-da-Fábula nãoé realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existena imaginação de milhões e milhões de crianças é tão realcomo as páginas deste livro" (p. 3). No entanto, a expli-cação apenas reforça o caráter impreciso e inconsistente doconceito: a veracidade deste mundo decorre de sua pro-cedência imaginária, o que apenas transfere para um outronível a necessidade de resolução da ambivalência.

Além disso, a nova população fantástica não se instalapropriamente no sítio. Dona Benta compra fazendas limí-trofes, denominando-as de Terras Novas, e doa-as aos inte-ressados. Trata de construir depois Llma cerca com porteirapara separar as duas âreas e confia ao Visconde a chaveafirmando: "Ficamos nós aqui e eles nas Terras Novas."S

TLOSATO, Monteiro. Opica-paLt amarelo. São pauÌo: Brasiliense,1956. p.3. V. também o subtítulo deste texto: O sítio de Dona Benta,um mundo de verdade e de mentira. As den-rais citações provêm dessaediçâo.

B A itto se seguem algumas ações cliscriminatórias: "Nesse mesmodia Pedrinho tratoll da construção duma grande cerca de seis fios dearame farpado, que dividisse as teffas do Pica-pau Amarelo das novasterras adquiridas. No meio da cerca, bem defronte do terreiro, tinha deficar uma boa porteira de peroba, com cadeado" (p. 1B). Além disso, ocódigo de posturas é rígido: "Havia cláusulas. Que viessem todos -todos, todos, até o Barba AzuÌ - mas com a condiçâo de não invadiremo sítio, de não pularem a cerca. Eles ficavam paralâ da cerca e ela e osnetos licavam para ci da cerca, nas velhas terras do sítio. Qr,rando algumquisesse visitálo, tinha de tocar a campainha e esperar que Viscondeabrisse. l'jroibido pular. Quem o fizesse, correria o risco de espetar-se nopontudo chifre de Quindim - o guarda,' (p. 18).

164

Restauraclas a separação e a diferença, dá-sc ittíc'io ltrr

transplante clos seres dafâbvla. E esses, ocupando () lì()v(t

territàrio, proceclem a uma alteração profunda do ccttlitirr

original, como observam as crianças, sintomaticamentc itttt

to à cerca fronteiriça:

Os personagens vinham vindo sem interrupção coltt lt

enormíssima bagagem dos castelos e palácios maravilhosos,

Aquelas terras ordinaríssimas, onde só havia saúrva e sapé, colltt'-

çarem a transformar-se como por encanto @' 2D'

Pedrinho estava maravilhado corn a transformação tllts

terras novas. Um puro milagre, aquilo! Tudo mr'rdado (p' 2)'

Tais alterações não atingem o sítio de modo essencial'

É certo que algllns, como o Pequeno Polegar, D' Qttixotcou Belerofonte perturbam o sossego da casa' sem mocli-

ficar, todavia, a natureza dessa. Por sua vez, o preiuíz<>

maior decorre do seqüestro da tia Nastácia' assunto qlÌc'

por obrigar os meninos a abandonarem o lugar em busca

cla cozinheira, converte-se em matêtía para outra aventufe,

narrada em O minota'uro.Outros acontecimentos confirmam que o sítio resiste

ao assédio da fantasia, como resistira antes ao aÍaqÚe feroz

de homens e animais. Um deles mostra o aparecimento dx

Quimera, agora domesticada e caduca' A esclerose do

Àorrrt.o denuncia a desconfiança de Lobato em relação a

uma imersão completa no universo fantástico. Prefere con-

servar seus lâços com o cotidiano, pelo qual lutam sobre-

tudo as velhas, Dona Benta e Tia Nastácia, tentando res-

guardar o ordinário de suas vidas em meio à nova invasão.

Outro recurso empregado para ^fiançar

a fidelidade ao

projeto original ê a nanação do episódio em que crianças

brasileiras visitam o sítio. Como os heróis da fábula, tomam

conhecimento do local por intermédio dos livros; e, como

no caso anterior, aquele cenário ê, para elas, tão real quan-

to o objeto livro que lhes dá vida' Por isso, podem-se acer-

car dele com segufança. o autor alcança assim dois resul-

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tlrrlos: preselva seus laços com a realidade nacional, na<;rr:rl semeara e colhera seus protagonistas; e consegue con-tr:rbalançar a ocupação estrangeira (jâ que é patente arusência do folclore brasileiro) com a presença de criançasvercladeiras, batizadas e contemporâneas à época de pro-clução da história.9

Assim, ressalvam-se os limites, que isolam o sítio pordois lados - tanto do universo fantástico atemporal e des_nacionalizado, quanto da reprodução Ìiteral da socieciadecle seu tempo, evitanclo a imersâo de sua obra em situaçõesque, por excesso oll por falta, esterilizariam a criatividadecle seus heróis.

Ao redor desta zona privilegiada, aparece uma cerca,cujo portão é aberto por uma chave, em posse clo Vis_conde. A existência da chave impede o enclausuramento;mas determina simultaneamente a seleção a respeito dosque podem entrar ou não. Ela converte-se, pois, em con_dição de sobrevivência clo sítio, permitindo a manutençãode suas peculiaridades e não se deixando absorver pormundos que provocariam seu desaparecimento.

Outra chave, correspondente à utilizada em O pica_paLramarelo, vem a ser manipulada, agora por Emília. E, se aação da boneca foi motivada por mais uma invasão da vidacontemporãnea na paz do sítio, a recíproca determinou o

9 É i.rt"r"rru.rte obseruar a preocupação em oferecer clados quetornassem as crianças reconhecíveis aos leitores de sua época: ,,euempode, por exemplo, com a Maria de Lurdes? ou com a Marina piza, oua Maria Luíza, on a Bjornberg de Coqueiros, ou o Raimundinho deAraújo, ou o Hélio Sarmento, ou a Sarinha Viegas, ou a Joyce Campos,ou a Edite Canto, ou o Gilbert Hime, ou a Ayrton, ou o Flávio Morfetes,ou a Lucília carvalho, ou o Gilson, ou a Leda Maciel ou a Maria vitória,ou Nice Viegas, ou os três Borgesinhos (Estila, Mário e Marila), ou o DaviAppleby, ou o Joaquim Alfredo, ou a Hilda Vilela, ou o RoclriguinhoLobato e tantos outros? Essa criançada achou meios de descobrii ondeera o sítio de Dona Benta; e comandados pela Maria de Lurdes, ou aRâzinha, lá foram ter" (Id. ibid., p. 155).

crrtaclismo que acaboll por alterar a naÍurcz.r cllt ltttttt:lrriclacle e o funcionamento cla vidasocial. É o que o plri;lr.it r

rìirrr:Ìdor declara na abertura do livro:

A vicla no Ì)ica-pau Amarelo é um interminável sr'tcctlcl'tlt'

reinaçôes maraviÌhosas, nenhutna clas qr-rais equivale eur ot i13i'

nalida<Ìe e imprevistas conseqüências para o mundo :ì clesclit:t

nesta obra. En-rília excedeu-se, con'ìo disse o Visconde - e por tltlìtriz não determinou no gênero humano a mais radical <lrrs

mudanças.1o

Passando-se os eventos à época da guerra, qlÌancl()

Londres era bombardeada e a Rússia invadida, respectivl-rnente pela aviação e exército nazistas, A cbaue do tama'nbo parece ser um dos livros, ao lado de O poço do Vis-

conde, em que Lobato foi mais sensível às ocorrências con-temporâneas a que assistia. Emília toma as dores do mundoe decide dar fim ao morticínio; ocasiona outro, que conso-me até alguns vizinhos do sítio, mas de sllas conseqüênciaspoderia nascer uma nova humanidade.

Pelo menos, esta é a crença do livro: a de que, redu-zindo-se o tamanho dos seres humanos (e tão-somentedeles), adviriam novas condições de relacionamento com omeio ambiente e com os semelhantes, mais soiidárias e sere-

nas. Partidário de Darwin, acredita qlle a seleção naluralrecrutaria os melhores - e estes seriam os mais sábios,

como o professor americano, Dr. Barnes, que coordena os

trabalhos na cidade planeiada por ele, e os mais espertos'

como Emília, que se safa de uma série de perigos recorren-do à inteligência.

O remédio é suprimir completamente a força física,

dekando lugar apenas pan o saber. Como observa Emília,

ela diminuiu de tatnanho, mas não de inteligência: "Apesar

de eu ter agora tamanho de uma saúva, possuo a mesm:l

10 rogATo, Monteiro. A cbaue do tamanbo. São Paulo: Brasi-

liense, 1956. p. 1-2. As demais citações provêm dessa edição.

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Page 83: A Literatura Infantil Na Escola

inteligência de anres" çp.2D. É o que viabiliza a desejaclaOrdem Nova, que chega a entrever, acompanhada peloVisconde, em sua visita a Pail City, na Califórnia.

Contudo, a nova organização não vem a se concretizar.Não contando com unanimidade da população do sítiopara o andamento do projeto, é obrigada a submeter-se aum plebiscito, que julgaria qual o melhor caminho a tomar.No escrutínio, fica decidido o retorno ao sistema antigo, eEmília precisa dobrar-se à vontade rnajoritária, sob pena deempanar a imagem liberal que deseja difundir.

Mais uma vez o Visconde aparece senhor da chave. Deum lado, porque é seu voto que desempata a eleição, rebe-lando-se contra a boneca, ao contrário clo que ocorrera emoutras ocasiões, e desmentindo o narrador, que afirmara aoinício: "(Emília) praticamente é quem governa o sítio deDona Benta - e sempre exerceu uma completa ascenclên-cia sobre o Visconde" (p. 1). De outro, porque é ele oúnico que tem força suficiente para mover o mecanismo.

Entretanto, dessa vez a chave tem um significadodiverso. Se, no livro anterior, fora a salvaguarcla contra osassédios dos excessos a fantasia ou realismo, agora ê ela acondição da verossimilhança do texto. yale cJizer, Lobato,como Emília, esta mais uma vez seu alter ego ficcional, pre-cisa aceitar que os homens não mudaram seu tamanho eque a gueffa - ou a rivalidade entre as grandes potências _continuava cada vez mais aguda. portanto, não podia tra-pacear com a realidade, que era sua e do leitor. De modoque, mesmo sonegando-a ou tentando modificá-la, nãopôde evitar uma cobrança ulterior. E esta veio sob a formade uma estética - a do realismo, a que mesmo o gêneropara crianças precisa sujeitar-se, sob a pena de pôr a perdersua validade literâria. Configura-se nesses termos o perí-metro do círculo dentro do qual se desenvolve a criação deLobato, abrigando dentro dele não apenas um modelo demundo imaginário, mas também a opção estética que per-mite traduzi-lo.

168

Constituindo o sítio como Lrma zofla intermccliír'irt, tt:t

r1r-ral se aloja o imaginário com plenos poderes, Mol.ttcitrr

Lobato teve meios de transformálo na utopia qlle sc ol)tl'nha, de acordo cotn sua formulação, à estrutura da socic-

clzrde brasileira. Vendo a esta úlltima como cristalização cllr

incompetência e do autoritarismo, fatores que percebc'

rnais tarde, para além da nação, mas sempre em regimes

tirânicos, como o n zista, em A cbaue do tamanbo, reivin-clica, em sua obra, um espaço para a liberação da criativi-

clade e da inteligência. Aloja-as na propriedade de Dona

Benta; e, com isto, expulsa segmentos importantes da vida

nacional, embora evite compartilhar da estética escapista cla

literatura infantil que o precedeu. Essa é igualmente posta

cle lado e ultrapassada, o que o remete de volta para o rea-

lismo, fundado na mimese e na verossimilhança, desta vez

sem poder fugir a ele.

Por conseglÌinte, é nessa estreita faka de terreno - o

imaginário, constituído entre o real e a fábula escapista; o

realismo decorrente do verossímil, entre a reprodução da

sociedade e sua abolição completa - que circula sua obra

Iiterâria dirigida à infância. Com tal recurso, Lobato delimita

o método que pode abordá-lo, o qual, se for fundado num

procedimento sociológico estrito, se deparará com uma

ausência, quando esta é tão significativa quanto LÌma pre-

sença, sem se tornar omissa ou onírica. É também neste

limite que transita sua estética, cuja chave êtrazida por seus

heróis, os quais, para serem decifrados, exigem a supera-

ção do mero âmbito do confronto com o mundo histórico,

para o mergulho no imaginário que congrega algumas das

aspirações da humanidade.

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LITERÃTURà INFÃNTIL:TEXTO E RENOVÃçÃO

O Itnperíalisrno do Texro

O contato com a literatura infantil se faz inicialmentepor seu ângulo sonoro: a criança ouve histórias narradaspor adultos, podendo eventualmente acompanhálas comos olhos na ilustração. Essa introduz a epiderme gráfica dolivro, de modo que a palavra escrita apresenta-se em geralcomo o derradeiro elo de uma cadeia que une o indivíduoà obra literâria. Contudo, tão Ìogo ela se instala no domíniocognitivo de um ser humano, converte-o num leitor, isto é,modifica sua condição. Poftanto, ê a posse dos códigos deleitura que muda o status da criança e integra-a num uni-verso maior de signos, o que nem a simples audição, nemo deciframento das imagens visuais permitiam.

O crescimento da criança se faz por essa imersão nouniverso da palavra escrita, e seu desenvolvimento intelec-tual pode ser medido por meio de sua habilidade de ver-balização dos conteúdos assimilados durante a eclucaçãoformal. Expressão escrita e domínio de hábitos de leituradistinguem o indMduo superior, submetendo a essas ativi-dades os outros meios de apropriação da realidade: o aucli-tivo e o visual.

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É o que clccreta em nossos dias o impcriltli.srtlo thr

texto e a noçâo cle ser ele superior aos outros t.tlcios tlt'comunicação, sobretudo quando estes prescinclenr clos

recursos ligados ao verbo. Tal situação pode ser collll)l'()-vada não apenas por esta inclinação ao estabelecimento clc:

uma hierarquia dos objetos culturais, na qual o livro ocllplto prirneiro lugar, reinando soberano; mas também pelaênfase no domínio da linguagem escrita como objetivo últi-mo tanto do ensino, como da habilidade de ler. No entan-

to, ela ainda pode ser confirmada, se se examina a questão

historicamente.A posse de um alfabeto, isto ê, a utilização de um

código qlre se transmite por intermédio de signos gráficos,

tem sido um critério para a distinção entre os povos e as

civilizações, assim como pata ^ segmentação da História.

Os grupos humanos mais primitivos, como os chamadospovos selvagens, e as épocas mais bárbaras têm sido assimclassificadas em vista da presença ou não de meios de fixa-

ção e documentação de seu patrimônio cultural. O atribu-to de civilidade vem associado ao domínio da expressão

escrita, pois os proprietários desta deixam gravados para as

futuras gerações seus produtos - seia uma mitologia, uma

religião, filosofia ou literatura. Todavia, a expansão do có-digo escrito no Ocidente data de época relativamenterecente, impulsionado durante a Renascença, graças à inven-

ção da imprensa por Gutemberg. O século XViiI assistiu à

sua ampla divulgação, verificável tanto pelo aumento dopúblico leitor, como pela ampliação da rede escolar e pro-liferação das empresas ligadas aos meios de comunicaçãopor escrito.

A ascensão da expressão escrita e, por extensão, anova ênfase na leitura, está profundamente relacionada aos

novos fenômenos sociais do século, sintetizados na emer-gência da classe burguesa. Oriunda da dissolução dos laços

feudais e associada à valorização da vida urbana, a novacamada ascendente trouxe consigo um conjunto de valores,

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Page 85: A Literatura Infantil Na Escola

('r() ;ll:f'st.ufiìento ainda se presencia na atuaÌidade. carac-I.r'iz:r-'sc por um ideário coroacro pela noçâo de libercracle::r política, já que visa promover Llm regime cle governoirclcpcndente da influência da aristocracia ou cras redes del)llrentesco; :r social, pois quer encontrar uma vaga na hie_rrrrquia cla sociedade; a econômica, porque valorizaa livre_iniciativa e o jogo autônomo clas variáveis financeiras. Eprivilegia a educação pessoal, qualificanclo o inclivíduo nãopor seLÌ passado ilustre, mas por seus dons intelectuais queincrementa ao longo cle sua

"iao. É o que determina

" p;;_moção da cultura e do ensino.

- A conquista do poder pela burguesia, durante os sécu_los XVIII e XIX, veio acompanhadã da dir,ulgação desresvalores liberais. A rejeição da primazia atribuida antes àtradição sintetiza a todos: o que iem clo berço e cla familia,isto é, a herança cle títulos e patrimônios, nada mais justifi-ca' o indivícruo é o que ele faz cre si mesmo durante suaexistência, e somente a história pessoal explica ^

nn urlràde cada um. por isso, as aftes se moclificam, favorecenclo astrbstituição da epopéia (forma que clá vazão literária a umpassado consagrado pela tradiçãà) p"to romance ou o apa_recimento de gêneros ligados à formação do ser humano:os tratados de pedagogia e a lireratura infantil. E torna_senorma dominante a valorização da cultura como cabedal deinformações que permitem tanto o acúmulo cle saber en_quanto tal, como o questionamento cla realidad" N.;;;medida, os prestígios respectivos cla ciência e da leituraaparecem concomitantemente e, com ele, o a"tt" no tirraà,o aumento do número de bibliotecas e escolas, a classe dosintelectuais e o magistério. O Iluminismo, distinguinclo aRazão e a Filosofia, ê a síntese teórica d"ste mJri;;",cujos efeitos ainda se presenciam. Advém daí o respeito Ípalavra escrita e o imperialismo do texto que, como docu_mento, jamais se converte em tradição. O jivro ."irr" fnruser questionado ou para deflagrar a perquirição científica,

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1-xtssando a ter força de lei apenas quando J'iltrrrtlo 1rt'locrivo da critica.

Por sua vez, quando se examina o universo cla clilrrrç'rr,vcrifica-se que o contato original dela com o mundo sc Íìrzpor intermédio cla audição e da recepção de ir-n:rgcrrs

visuais. O texto escrito lhe é imposto tão-somente apírs rr

interferência e intermediação da escola. A partir de então,cla tem acesso às mesmas modalidades de cultura, podcn-d,o fazê.-lo de modo autônomo, liberando-se paulatina-rnente do adulto, senhor da voz que até então lhe transmi-tia o conhecimento.

Entretanto, por tomar o lugar do adulto, pode ocorrerqlÌe a história infantil se transforme no representante dornundo dos mais velhos, convertendo-se em veículo de auto-ridade e instrumento para a transmissão de normas, sejaméticas, compoftamentais ou lingtiísticas. Todavia, como pro-duto de uma ideologia que patrocina o questionamento datradição, o livro pode significar seu contrário, atuando comopropulsor de uma nova postura inquiridora e inconformadaem face dos padrões instituídos. Investigar como a literaturainfantil se posiciona perante esses aspectos e onde eles se

localizam no interior de um texto de ficção é ao que cabeproceder agora.

Lit eractrra InfantíI eÍrÍr e No rmat nrr d aã e e Rupcura

Determinar o lugar da literatura infantil não pode pres-cindir de uma formulação sobre seu caráter artístico e seusvínculos com a literatura inteira.

Procurando determinar a natureza do literário, a mo-derna filosofia da literatura, independentemente de suasdivergências, tem insistido em alguns tópicos comuns. Oprimeiro deles diz respeito à primazia do texto, isto é, à suaautonomia. O fenômeno literário deve ser examinado, antesde tudo, em função de sua estrutura, verificando as rela-

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(()cs clÌtre seus eÌementos, com base nos quais sc 1r.<lt,ríc.sltoçar sells contatos, seja com a tracliçãã literárìlr, r;t.i,rcorn zÌ história social. Nesse sentido, a maior pafie clas lirrlr;r.,1tcóricas são estmturalistas, termo empregiclo tanto pt,l;rsociologia de Lucien Golclmann e Antônio Cândiclo, c<'rrrr,,pelo formalismo, que, originaclo na Rússia pré-revolrrr.ionária, estende-se até nossos clias com reflexós na Se'rirrtica, Semiologia e Estilística.

 prioriclade clo texto e de sua hermenêutica, cr)lrìrrcritério de análise literária, reprocluz a centralização, arrrr,smencionada, na escrit:r, conceito que recebeu alguntlrsapologias especiais em ensaios produzidos pelo estÃturrrlismo francês, que se valeu clele para repudiàr toda e qualquer investigação no nível cle representação cla realiáaclt,na obra literária.l1

Entretanto, mesmo recusanclo a inclinação miméticlrcla literatura, também o formalismo mais exacerbaclo coin-cide com outra noção tornacla comum nas cliversas constc_lações teóricas: a de que a obra Ìiterária rompe com áÌsexpectativas de seu leitor e existe para isto. Em óutras pala_vras, a criação artística é uma mensagem que se orientanecessariamente para seu recebeclor, reproduzin<io, nesteaspecto, o processo usual de comunicação. Mas ela se par_ticulariza na medida em que provocâ um estranhu_"rrto;poftanto, precisa apfesentar_se enquanto uma mensagemoriginal, criação no amplo sentido clo vocábulo, o q.,Jlh.assegura o carâter permanentemente renovaclor.

Essa ruptura com ceftas expectativas pode ser verifica_cla sob dois ângulos: de um lado, significa um rompimentocom as modalidades ordinárias de expressão; dã outro,com os clichês ou a ideologia de uma certa época. Assim,um texto autenticamente criativo explora formas inusitaclas

11 Sinto-áti.o é o ensaio cle Rolancl Barthes, Grclu zero cla escri_ta, publicado na década de 1960.

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,1,' linguzrgem; porém, como a ideologia - istcl ó" ll's lìtlç"''r', ilnìr-ll-ÌS em cirCulaçãO num determinado momcllt(> Iti.';ltr

il( () - se inscreve na língua, torna-se evidente qltc lt tllll;tlrtt'r'l-rria pocie romper também com os padrÕes vigetl(cs tlt'

vrsìo cia realiclacle. Nesse sentido, a literatura pode-sc c'orts

trluir em objeto cle conhecimento, arnpliando e renovlttr<l<r

,r lrorizonte de percepção de seu leitor. E, se ela não rcÍlctt'

1r;rssivamente uma socieclade ou uma época, é porcltrt'('x[)Õe suas contradições, tornando petente suas fissr'trlts,

,rs.sim como as tentativas, por parte da classe dominantc, clc

:rc'obefiá-las.O exame dos cliferentes processos cle que se vale a litc-

t.lÌtLÌra para atingir esse fim permite que se dimensione se sc

trata ou não c1e uma criação cle vanguarda''É', pois, c<;ttr

lrase em seus índices de ruptura, qual seja, de seu maior otr

rìÌenor comprometimento com a vanguarda, que toclo <r

tcxto é anaiisaclo e valorizado. Tal fator cletermina a ínclolc

cminenternente histórica da literatura, pois ela está em cons-

tante transformação, ao reagir de maneira ativa às circuns-

tâncias sociais de onde Procede.Aclvém dai a relação da obra com as normrs em cir-

cr,rlação. Visando à ruptura com o convencional, a criaçãcl

literária só pode introduzir a norma em seu interior para

revelar sua ínclole aglutinadora; clesse modo, ao incorporar

os moclelos estéticos, sociais, lingüísticos, éticos ou reli-

giosos, o texto revela-os, enqllanto convenções destinadzrs

a manter LÌm certo tipo de dominação no meio social, con-

tribuinclo, pois, para seu conhecimento e transformação'

Em tal medida, o texto se converte em instrumento de inves-

tigação da realidade, questionando-a sem abdicar de sua

natLtrezaliterârta, pois transforma todos os elementos exter-

nos em componentes de sllâ estrutura' A relação com as

normas e os paclrões estabelecidos de uma dada época e

sociedade vem participar do universo artístico, garantindo

a autonomia deste, mas, ao mesmo tempo, reativando ser-r

contato com a vida social.

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Page 87: A Literatura Infantil Na Escola

(lrrrro se comporÍa a literat.ra infantir diante dessce'syrcctro? Conforme toda a criação com a linguagem, czr_llcri uma opção entre o assumir clesta natureza eminente_rììcnte renovadora ou a conformação com os modelos esté_ticos e sociais vigentes, transmlìtanclo-se em porta_voz <ienoções previamente estabelecidas.

com efeito, a caÍacterização cla obra rìterâria eviclenciao dilema da literatura infantil. Se esta quer ser riteratura,precisa integrar-se ao projeto desafiador próprio a toclo ofenôrneno artístico. Assim, creverá ser interrogàd,oro cras nor-mas em circulação, impulsionando seu leitor a uma pos-tura crítica perante a realidade e dando margem à efeiiva_ção dos propósitos da leitura como habiliclacle humana.Caso contrário, transformar-se-á em objeto pedagógico, trans_mitindo a seu recebedor convenções instituídai, ém vez deestimulálo a conhecer a circunstância humana que adototrtais padrões. Debatendo-se entre ser arte ou ser veículo dedoutrinação, a literatura infantil reveÌa sua natureza; e suaevolução e seu progresso decorrem c1e sua inclinação àafie, absolendo, ainda que lentamente, as contrib.iiçO",da vanguarda, como se pode constatar no exâme cla pro_dução brasileira mais recente.

O E xeznplo da Líteratura BrasíIeíra

Como a literatura infantil é uma modaliclacle de expres_são que não conhece limites definidos, torna-se bastantedifícil estabelecer suas principais linhas cre ação. Ela pocleenglobar histórias veristas ou fantásticas, miscigenar gentee animais antropomorfizados, simbolizar ou simplificu, iit,rn_ções humanas existenciais, misturanclo até todas estas pos_sibilidades num único texto; deste modo, incorre-se r"Ápr"no risco de separar o que está coeso ou aproximr o q.,"é distinto. Mesmo assim, pode-se identificar algumas orièn_tações comuns na produçã o literâria nacional dirigida às

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tliunças. A mais freqüentemente citada diz t-c.spcito ;lr'

rrrcr.rrsões no verismo naturalista; a essa podc-.sc :tlittlt;ttr;ulto a preocupzrção com a renovação do conto clc Íltcl:rs,

rlrnnto o esforço rumo à simbolização dos estados cxistt'ttt'irris infantis, qual seja, a investigação do mundo interior clrt

r'r.iunça. Ao lado dessas, permanecem atrÌantes outrzÌs vct'-t('ntes literárias, como a histÓria ou de aventuras, que p()-

rlcrn se passar no campo (com os heróis em férias, nr.tttt

:,ítio ideal) ou na cidade grande, as narrativas com personlt-ricns animais (porém, freqtientemente humanizados) e <r

:rproveitamento de episódios da história do Brasil.Cabe verificar, nllm primeiro momento, o que se passa

( oln o conto de fadas, gênero que remonta às origens cla

litcratura infantil, pois foi de seu aproveitamento por Charlesl'crrault e pelos Irmãos Grimm que viveu ela seu primeirosrrrto produtivo eficaz. Assim, da análise das criações maislccentes poder-se-á verificar o engal'amento com uma artercnovadora, retirando daí seu valor, ou a inclinação a umrliclatismo transmissor de valores estabelecidos e desfa-v<>r/rvel à óptica infantil.

História meío ao contrarío, de Ana Maria Machado,

lrr.rblicada em 1979, protagoniza, com seu título, a inversãoclo modelo do conto de fadas, de modo que, de seu exame,ó possível dimensionar-se a questão posta acima.

A convenção do conto de fadas supõe uma seqüênciannrrativa tipica e um elenco de personagens. A evolução dorelato se apóia em três momentos básicos, no mínimo: umconflito ou a situação de dano ou carência, usando a ter-rninologia da morfologia do conto;12 uma ação saneadora,por meio de um herói que recebe a colaboração de umacntidade mâgica; e o sucesso da empresa, que culmina numrnatrimônio. Os figurantes se dividem em dois grupos:htrmanos e mágicos, e cada um desses biparte-se em bons

12 nnOnn,'$Tlaclimir. Morpbologie du conte. Paris: Seuil, 1970.

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(.rÌr;ru.s - lr:i r.rrn herói, que representa o positivo, e o vilão,r;irr;rl ckr negativo; e existem fadas ou vel-hos bondosos, emr'ontlult<tsição a bruxas, duendes, anões oll gigantes maus.A rcaliclade é dicotômica, mas marcha inevitavãlmente para:r ir'posição do bem sobre o mal, instauranclo .rrrru o.à.-rlue tende a permanecer imutável.

História meio ao contrario tematiza sua condiçãodesde o início:

- inverte a seqtiência narrativa, ao aluclir, no título,qlre as ações se darão ,,meio ao contrário,,;

- sendo ,,meio ao contrário,,, mesmo o conceito deinversâo ê relativizado, pois não se trata do negativo de umpositivo, evitando a divisão maniqueísta;

- verbaliza que o processo será diferente neste relato:"tem muita história que acabou assim, mas este é o começoda nossa".13

- e sintetiza em poucas linhas o desclobramento usualdo conto de fadas, a fim cle tornar evidente que o clesenro_lar da história será outro:

Mas vamos começar cle novo pelo começo.Ou pelo fim, que esta história é mesmo ao contrário.... E então eles se casaram, tiveram uma fiÌha lincla como

um raio de sol e viveram felizes para sempre.Eles eram um rei e uma rainha de um reino muito dis_

tante e encantado. para casar com ela, ele tinha enfrentado milperigos, derrotado monstros, siclo ajudaclo por uma fada, tucloaquilo que a genre conhece das históiias antigas que as avós con_tavam e que os livros trazem cheios cle figús bonitas e colori_das. Depois, viveram felizes para sempre (p. 5_6).

Em razão disso, as páginas iniciais do texto têm emvista não o deslanchar da ação, mas o patentear de que umcerto modelo está sendo contrariado, à medida que o nar_

. . 13,wIACfUOO, Ana Maria. História meio ao contrárío.São paulo:

Atica, 7979. p. 4. Todas as cirações provêm desta edição.

178

-lã

rador se apropria dele. Por isso, o desenvolvir.Ìì(,nl() (l.lfábula narrativa é sempre contraposto a um paclrio l'ix;rtltrpela tradição, embora o narrador evite, a partir cluí, rlt.ix;rrmuito nítido o procedimento empÍegado, pois panr trrrrloinvestira o início da narração.

O segundo fator de desequilíbrio é dado pelas 1rc,r.sonagens. Contando com o elenco tradicional do gôncr<rPríncipe, Princesa, Rei, Rainha, Gigante, Dragão e primcir.o-ministro - a caracterização deles subverte a convençãct, rlrmedida em que

- são abolidas as distinções sociais: o príncipe scenamora da pastora, desinteressando-se da princesa;

- a princesa opta ao final por escolher seu própriocaminho, afirmando que "minha história quem faz sou eu"(p. 3B);

- são introduzidas figuras oriundas das camadas infe_riores, como artesãos (a Tecelã, o Carpinteiro, o Ferreiro) etrabalhadores do campo, como a pastora, o Vaqueiro e oCamponês;

- as personagens que constituem o povo configuramo âmbito do coletivo, isto é, formam uma multidão, que,por seu catâter numérico, impressiona o Rei:

Do alto de uma escada, o Rei olhou e viu aquela multi_dão reunida lá em baixo. Ficou assombrado:

- Tudo isso é o povo?

- Isso e muito mais, explicou o primeiro-ministro. Todasas pessoas que trabalham no campo, na aldeia, nas casas do vale,tudo isso é o povo (p. 1B).

As modificações mais importantes dizem respeito aosprotagonistas encarregados de representar concomitante-mente o bem e o mal, o humano e o sobrenatural: ou seja,o Rei, que sintetiza a ordem humana, e o dragão e o gigante,que simbolizam a desordem, senhora de atributos mágicos.

O Rei é a figura mais saliente na primeira parte dahistória (também este fato representa uma contrariedade, jâ

17g

Page 89: A Literatura Infantil Na Escola

-u

( lu(' clc selnpre se destaca nas últimas seqüências): viven-tlo rnrrito feliz, porque isolado de qualquer problema,lcpcntinamente se vê perante uma dificuldade que deman-cl:r urna solução - assistiu ao roubo do dia. O Rei presen-ciou um evento natural, o qlte o deixou perturbado, atéqLle se viu diante de outro acontecimento LÌslÌal: o trans-curso da noite e o aparecimento da lua.

Como se percebe, o Rei, por suas atitudes pueris, con-fìgr-rra o protótipo da conclição infantil:

- foi isolado do mundo exterior, a fim de que não serompesse sua ilusão de felicidade, como lhe explica oPrimeiro-ministro: "Vossa Majestade é um homem feliz parasempre e ninguém quis incomodá-lo com essas coisas"(p. 15). Mais adiante, complementa: "Ninguém quis abor-recer nem preocupar Vossa Majestade, só isso. Se nós fôsse-mos trazer a vossos reais ouviclos todos os problemas dopovo, como é que Vossa Majestade ia poder continuar a serfeliz para sempre? Aqui dentro é protegido, claro, tranqüi-1o..." (p. 16);

- e tem atitudes de garoto mimado, como o fato dequerer mudar o ciclo da natureza.

Vivendo numa redoma que o afasÍa da sociedade(ignora, como se viu, a existência do povo) e a natureza(desconhece o ciclo normal do dia e da noite), o Rei repre-senta ao mesmo tempo a puerilidade e o autoritarismo.Pefience à primeira qualificação o fato de que ele só vema perceber a noite (isto é, o roubo do dia) por ter desobe-decido à Rainha, que o chama primeiro para o banho e,mais tarde, paÍa a janta. E duas decisões suas caracteÍizama arbitrariedade e o autoritarismo: mudar a ordem danaÍureza, embora isto não convenha a ninguém, como dãoa entender os membros dâ coletividade; impor um destinoà sua filha.

A caracterização do Rei como representando concomi-tantemente um modelo de comportamento infantil estereo-tipado e de exercício do poder (ou de regime político) tem

180

sido uma tônica cla literatura brasileira para criançlts voll;t

cla ao reaproveitamento do conto de fadas. Em O reizitrl.trtmandão, Ruth Rocha uttliza semelhante procedimcnto,bem como Eliardo França, em O rei de quase tudo. Assirt't,

â personagem responsável pelo mando tem atitudes ao

lnesmo tempo arbitrárias e pueris, percebendo-se aí LÌma

preocupação com a critica à autoridade. No entanto, cabe

a ressalva de que, na medida em que o herói se infantilizzr,

ocorre igualmente o oposto: a voz infantil, quando se con-

verte em senhora do poder, é contrariada e condenacla porintermédio das insinuações do narrador, invariavelmcntetrm adulto. A ameniztção dessa clificuldade advém clo

recurso a um outro procedimento narrativo: é introcluzicla

LÌma nova personagem, agora jovem ou criança, que dcsa-

fia o poder estabelecido. É a Princesa que diz não ao pai,

a menina que manda o reizinbo mandão "calar a boca",

repetindo-se o process o cle A roupa noua do imperador, cle

Hans Christian Andersen, no qual cabe à inocência infantila denírncia da farsa encenada pelos adultos.

Conseqtientemente, um estereótipo do conto de faclas

é contrariado - o que atribui ao Rei a iustiça, a sabedoria e

o pocler -, substituindo essas virtudes pela puerilidade e il

tirania. Contudo, a associaçào carrega consigo o colnpro-misso com outro protótipo - o da crítica à criança mimada,

que pode permanecer como compofiamento latente no

adulto, o que vem â ser relativizado ou não pela introduçãode um novo procedimento -, a denúncia da falsidade dos

valores adultos pelos mais jovens que, não estando ainda

envolvidos com sua ideologia, podem revelar sua superação.

Se o elemento configurador do padrão positivo encon-Íra-se matizado nos termos antes descritos, cabe verificar oque acontece com os estereótipos do mal, o que transpa-

rece por intermédio da evolução da narrativa. Esta apre-

senta dados originais em relação à norma do conto de fadas:

- o conflito é desencadeado pela falsa acusação doRei, de que o Sol e, depois, a Lua foram furtados;

181

Page 90: A Literatura Infantil Na Escola

rut

- há um herói que se clispõe a resolver o clesequilíbrio,porém não ê bem-sucedido, ou melhor, .r.- ,"qt,"r chcglra se defrontar com o pretenso vilão;

- os representantes do povo não desejam a vitória ckrPríncipe Encantador e são eles que solicitam a ajuda cl:rentidade má.gica, em favor do dragão;

- nem o gigante, nem o dragão são rnaus e é de suucolaboração mútua que nasce a proteção contra as investi-das do Príncipe.

Assim, as entidades tradicionalmente más perclem aconotação negativa, dissolvendo-se o dualismo cãracterísti-co do gênero; por isso, pocle ser clispensado também oauxiliar do herói, em geral uma facla, já que é o dragâo quecarece de ajuda. Enfim, dragão e gigante têm uma cono-tação simbólica que remete o texto às origens da narrativafolclórica.

tXdadimir Propp, analisanclo as raízes populares danarÍativa fantâstica,74 observa que aquela teve iua gêneseem relatos de tipo mítico q,_,. .o.rtnrram as provas inicia_tórias do rapaz em vias de alcançar a idadê viril. Assim,cabia a ele o afastamento do âmbito social cla tribo e oenfrentamento de uma realidacle adversa, que estava encar_nada na floresta a que se clirigia e nos entès maléficos quederrotava. Bruxas e outros seres sobrenaturais eram a cor_porificação do medo ao desconhecido, que devia ser cler_rotado como pÍova de qualificação à vidá social e aclulta.

Na narrativa de Ana Maria Machaclo, essa tópica retor_na, e também de modo inverticlo: o dragão é a noite e seuolho brilhante, a Lua, ou nas palavras do Rei: ,,o sol bran_co e frio que brilhava na escuridão', (p. 36); e o ,,Giganteadormecido", "deitado eternament.,, (p. 26), a natírezapoderosa que protege os que estâo a seu laclo. Desse mo_do, os seres sobrenaturais outÍa vez passam a corporificar

14 rnOeg rüZladimir. ras raíces bistoricas clel cuento. Madrid:Editorial Fundamentos, s.d.

1.82

,r Írrncionamento cla natureza, só que esta deix<xr clc st.r.olrrg:rr da afirmação da supremacia da ordem hluÌllrìrìi r.nl,lt'corrência, o Príncipe não leva seu projeto adiantc, rr:r<rt:uìto por se ver bloqueado por rios, plantas e insetcts, rrr:rsl)()rque, iluminado pela lua (o olho do dragão), elc vô rr

l'trstora e enamorâ-se dela.Assinalando a solidarieclade da natureza, e sobretucl() ;l

lrroteção que a noite oferece ao homem, o texto proclamu :rrccuperação da ordem por intermédio da recllsa à ação grrcr-rcira. O herói se convefie em amante, o homem de ação qtrc"rrão (tinha) nada para fazer o dia inteiro" (p. 24), em tra-lralhador dos "campos em volta da aldeia"-(p. 4O).

Nessa medida, o relato se encerra pela anulação clecliferentes tipos de dicotomias, próprias ao gênero:

- a etâria, já que os jovens têm mais sabedoria que osvelhos;

- a política, uma vez que é o povo que toma a inicia-tiva de preservar o que julga certo, contrariando a orclemreal;

- a ideológica, pois não mais se proclama a superio-ridade do homem sobre a natureza;

- a social, pois a Princesa se transforma em persona-gem itinerante (papel antes ocupado pelo Príncipe); alémdisto, como este torna-se um vaqueiro, o casamento nãoaparece como possibilidade de promoção na escala social;

- a êtica, na medida em que não está flrado de ante-mão o lugar do bem e do mal, cabendo a cada um verificara procedência e a validade desses conceitos.

Dessa maneira, Histo4a meio ao contrário compartilhacom Sop4nho, de Fernanda Lopes de Almeida, o questiona-mento do recorte maniqueísta da realidade. Também nessecaso o alvo é a verificação da validade dos conceitos pre-estabelecidos relativos ao bem e ao mal. E a trajetória dosmeninos, em sua estada no Bosque Encantado, leva-os àexperimentação de que "os dois lados (...) sempre foram

183

Page 91: A Literatura Infantil Na Escola

nristtrrados".15 Nessa narrativa, as personagens rnírgicu.sigualmente corporificam - e de modo mais eviclente _ luiforças da natureza: a Rainha ê a Fada clo Bom Tempo, e :rtempestade, a chuva e o vento são protagonizaclos pel<rGigante Surumbamba, o Rei do Mau Tempo, cujo segreclc>é gtrardado pela Bruxa Asa Negra. Desse modo, Soprínboigualmente transita no âmbito da natureza, ressaltanclo seLrcarâter benéfico. Por essa razão, converte-se no cenário porexcelência pan a formação da personaliclacìe, cle moclo queas personagens, jovens e crianças, necessariamente passampor uma transformaçâo a seu contato. Eis o vínculo com oconto de fadas tradicional, assinalando que a ligação nãoprovém apenas da vtilização de seus elementos composi_cionais (personagens e seqüência narrativa), mas t"-bé-dos resultados a que chega a trajetôria existencial cras figu-ras humanas. É preciso verificar o que ocorre quan<io seintroduz a paisagem urbana, como no relato cle BartolomeuCampos Queirós, Oncle tem bntxa tem.facla...

Essa narrativa se incorpora ao gênero aqui analis açlo apartir de seu títlllo, tendo como protagonista central umaidéia qtre se faz fada: Maria do Céu - ,,E Maria, icléia nocéu, virou fada."16 Sua trajetória terrestre ê râpida e guardaanalogias com o modelo cristão: vem ao mundo, não éreconhecida por ninguém, porque se defronta com umasociedade materialista. Faz seu primeiro milagre _ um me_nino aprende a ler sem ir à escola -, o que atrai a atençãodas crianças, seus principais adeptos. Atende ao pedido deuma delas, mas, significando isto uma alteração cla orclemadulta, é presa. Foge da cadeia e se aloja no sonho de cadacriança: "visitou cada menino e entrou no sonho deles. Viu

15 eUraftOe, Fernancla Lopes cle. Soprinbo. São paulo: Melhora_mentos, s.d. p. 171.

16 qurnós, Bartolomeu Campos. Onde tem b.,axa tem fada...Belo Horizonte: Vega, 1979. p.8. As citações provêm desta e<iiçãt.

784

,prc' sortltavluÌì c()rn cidades onde toda fantasil (.t';t l)(ìr,:;lvt'1" (p. 25). Após se converter em idéia das crianç'us e'l)r{)jt'to clc ação, desaparece, mas seu efeito é senticlcl lr e';rrl;r

rrrornento:

Quando algum adulto, impaciente com o desaparccirrrt'rrto da Fada, pergunta a um menino qual é o segredo que a lirrl:rconrou, ele responde: - "AMANHÃ EU FAÇO" (p.27).

Assim, a presença da Fada na terra, quando ela recebelu adesão das crianças e se defronta com a reação do poderedulto (um banqueiro, um industrial, um economista, umclelegado), corresponde à revelação de uma força infantiÌ ea abdicação à esperança, pois esta significa uma protelação:"A Fada compreendeu por que era importante para os meni-nos terem esperanças. A esperança é uma coisa que sempreespera e nada faz" (p. 23). Objetivada a mensagem, está

ctrmprida a missão; e a heroína volta a seu lugar de partida.O carâter mítico do relato se complementa ainda por

outros aspectos: a Fada é o elemento mediador entre doispólos - o adulto e o infantil; e sua proveniência é celeste,representando uma concepção que vem do alto e é trans-mitida aos que são merecedores dela, devido à sua purezade alma. São os que podem sonhar, tornando-se, pois, per-meáveis à mensagem fantástica.

Dessa forma, a narrativa peÍtence ao paradigma aquiexaminado, na medida em que abole o compromisso dorelato de fadas com a afirmação da ordem adulta. Essa é

repressora, sobretudo quando envolvida com a sociedadecapitalista e urbana; por isso, os vilões são representadospor um elenco de figurantes relacionados às finanças e àindústria da construção: o banqueiro, o economista, o arqui-teto. É essa configuração das personagens que aproxima otexto da realidade cotidiana: não são mencionados prínci-pes, castelos e gigantes, mas indMduos inseridos no dia-a-dia, crianças, professores, delegados, o que indicia a con-

185

Page 92: A Literatura Infantil Na Escola

It'rrrponrneiclade do conflito examinado. Dessa maneira, otcrrr:r cliscutido é atualizado, integrando-se ao horizontet:ult() existencial como social de seus leitores.

Entretanto, ao contrário das histórias antes examinadas,cssa reforça dicotomias. O fato já é cornprovaclo pelo títu-lo, que acentua a oposição latente entre o bem e o mal. Eessa cisão estará corporificada por duas ordens humanas _a infantil e a adulta, de modo que igualmente estes estaclos,que sâo por excelência transitórios e muitas vezes tãosomente aparência (como comprovam as narrativas antesexaminadas, de Ruth Rocha e Ana Marja Machado: os reissão as figuras mais pueris do relato), convertem-se emcondições imutáveis. Em vista disto, não é o ser humanoque é posto em questão, mas uma divisão passageira, tor-nada permanente e sinal de identiclade.

Portanto, tratando-se aqui também de uma ,,fada quetinha idéias", estas últimas visam à consoliclação cla .roçaode que a idade infantil ou a adulta pertencem à naturezado ser humano. E que esse necessariamente se situa numdos pólos da oposição, devendo compaftilhar de seus valo-res - as crianças, com seu universo onírico; e os adultos,com seus interesses materiais e consumistas. O único ele_mento que não participa dessa visão ê Maria do Céu, o quelegitima seu papel mediador; porém, ela não p".t..r.ã neste mundo, ela simplesmente ,,passou pela terra,, (p. 27),legando uma mensagem qlle visa ao reforço clo dualismoadulto/criança.

Assim, embora Onde tem bruxa tem fada... apenastangencie o conto de fadas, afastando-se bastante de seumodelo narrativo e elenco de protagonistas, cle fato eleinsiste nllma visão dicotômica da realidacle, tão fértil nogênero. Com isso, acaba por acentuar as divisões (etária,social, ideológica) das quais depencle a orclem aclulta paraconfirmar seus privilégios. Em vista disso, esclarece-se emque medida o gênero, apesar de antigo e traclicional, podeser o veículo para a transmissão de um sentido original da

186

cxistência e da própria literatura: é por meio clo <lttrsl iot t;t

rÌìento de seus fttndamentos ideológicos, valenclo-st', p;tt;t

i.sto, de suas bases literárias. É o que se passa con'r Ilislttt'ttttneio ao contrario, que retoma a estrutura do gêncr<l p:tt:t

:rlcançar a inversão de seu efeito.O exame das narrativas que se inscrevem no ântllil<r

clo conto de fadas revela que a qualidade dos textos advóttt,cle um lado, da contradição às expectativas do leitor etttrclação a um padrão consagrado pelo uso. E, de outro, essc

lrrocedimento determina uma mudança no foco tradicionalclo gênero: em vez de se patrocinar a afirmação de umaordem estabelecida, na qual os privilégios e o saber cabemaos adultos, promove-se a perspectiva dos jovens, perquiri-clora e rebelde em relação à arbitrariedade dos mais velhos.Enfim, facilita-se a dissolução de certas divisões instituídascliscricionariamente na realidade, que, de maneira quaseinvariável, depõem contra o lado mais fraco: o da natureza,o da criança ou jovem, o das camadas inferiores. Produz-se,assim, um determinado questionamento do poder e pro-põe-se sua modificação, com base nos recursos mesmosque, em olltras épocas e circunstâncias, serviram à sua con-solidação, assim como da própria literatura infantil: o contode fadas.

Examinada a produção nacional para crianças, não é

apenas deste lugar que se desencadeou o processo de re-novação artistica, significando um redimensionamento douso que até então se fazia do texto destinado à infância. É

preciso assinalar, ainda que de modo mais breve, outras li-nhas de ação que chegaram a semelhante resultado.

Mesmo que se considere que não cabe insistir numaoposição entre realismo e fantasia, devido à sua falta defundamento teórico, é necessário assinalar quais as metas

de uma literatura voltada ao verismo na representação. Sua

eclosão, que se deu sobretudo na segunda metade da dêca-da de 70, coincidiu com uma rápida, mas decisiva, ascen-são de uma ampla inclinação neo-realista na literatura bra-

787

Page 93: A Literatura Infantil Na Escola

silc'irlr, (lLlc proclÌrou ocupar certos espaços então negligen_<'irrclr.s na produção literâria anterior: a narrativa ae partlci-;r:rçâo política e a representação das camadas populares. Secssa temática jâhavia gerado o romance d" 30, na literaturair-rfàntil constituía-se numa lamentável lacuna: a tracliçãoliterária para crianças evitava o "laclo podre" cla sociedacle,seja em termos sociais (ausência de temas relacionaclos aosexo, às diferenças raciais ou conflitos de classe), seja exis_tenciais, faltando a apresentação de cleterminados proble-rnas familiares, como a falta de dinheiro ou dos pais, amolte, os tóxicos.

Se no tratamento do conto de fadas, o leitor é surpreen_dido, porque não ocorre o retorno do conhecido, nà casode uma literatura interessada na apresentação clos clramassociais, ele se defronta com uma realidade inusitada e estra-nha. É o que se passa, por exemplo, com as histórias cen_tradas no pequeno traball-rador ou no menor abanclonado:Lanclo clas ruas, Piuete ou Os meninos cía nta rla praiavalem-se, como na grande parte das histórias infantis, depersonagens crianças; mas estas apresentam uma particu_laridade social - a de pertencerem às camadas marginais.Com este recurso, amplia-se o espaço de representação lite_râúa, aparecendo, além de setores sociais inéditos, cenáriosaté então ausentes, como a favela ou o subúrrbio, e relaçõeshumanas conflitantes: entre filhos e pais ou entre gruposantagônicos.

Por sua vez, a introdução de uma temâtica apropriadaà narrativa de denúncia social na literatura infantil podedesencadear uma dificuldade em que submergem algumascriações: a insistência numa visão adulta do problema, demodo que o texto se converte num manual cle regras paraa percepção da realidade circundante. por esse aspecto, elepode cair na mesma armadilha do didatismo que afligegrande pane da produção para a infância. por isso, é pÃ_ciso que o tema se convefta em gatilho para o desenvolvi_mento da ação; assim, em Coisas de menino, de Eliane

188

Ganem, o motivo típico da aventura policial - o toul,o rirtransforma em pretexto para a investigação clu clilì.rlr rq,l , L'classes e exposição do problema do adolescentc: l)ol r1r,r;rr,'é empurrado para o crime. E torna-se necessário {qut.o !nr nnarrativo compartilhe a perspectiva dos pequenos ltt'roir,, ,r

fim de que se amenize a influência adulta na perccl)('rro rl.t:,questões sociais. Em Os meninos da rua da Pruirr, rltSérgio Caparelli, é o ponto de vista dos garotos - os jol.naleiros - que predomina, de modo que emerge :r vislroque eles têm da realidade, segundo sua posição sociul r.

estado existencial, abstendo-se o narrador de uma intcrÍc-rência que auxilie a decodificação da mensagem:

- Pra iora é mais fácil. Tem mais terra, muita terr:Ì.

- Muita terra coisa nenhuma. Ninguém tem onde rnofirr.Todo mundo vagueando em beira de estrada.

A tartaruguinha se surpreendeu com o que dizia a mulhcr.Para ela, as distâncias eram muito grandes e a terrâ se perdia clcvista. Atrás de um morro sempre existia um outro morro; depoisde um rio corria outro. A terra era grande demais. Con-ro poclia e

mulher dizer que não tinha teffa? Na beira da estrada, terra; nlrilha, terra; gado pastava na teÍra coberta de grama e capirl. I,ì

como uüÌa mulher e tantos meninos podiam nâo ter terra? Deviehaver engano. Ela não tinha sido bem informada, qualquer coisaassim.

- Claro que tem terra - falou Tonho. - Uma vez viajei cor-r-r

meu pai um mundão de quilômetros e na campanha tinha terraàs pampas; se tivesse pouca, a gente teria ido mais depressa.

- Ah bom - disse a muÌher -, ter, tem. Mas de quem?

- Ué, acho que de todo mundo, não ê?17

Se, por um lado, a exposição dos males que afligem asociedade brasileira se depara com a carência, por parte clcr

17 CAperuttl, Sérgio. C)s meninos cla rua da praia. porto Alegre:Instituto Estaduai do Livro; L&pM, 1979. p. 54.

1Bg

Page 94: A Literatura Infantil Na Escola

Icilor rrririr.n, cle uma vivência social mais ampla, o qllcpotle scr um fator de inibição no rnomento da iriaçao lite_r':irirr, por outro, contribui para o alargamento dela. É ness:rrrrcclicla que pode dar margem à renovação no âmbito artís_tico, o que implica a necessidade cle conversão clo tema emcvento narrativo. A preservação de um foco narrativo acle_quado às figuras ficcionais em cena será igualmente a con_clição da harmonia entre a realidacle representacla e suaenunciação ao leitor. Em outras palavras, a ampliação temá_tica transmllta-se em recurso estético, de moclo que a cos-movisão renovadora ressoa no interior da construç ão artis_tica, clando-lhe coerência e verossimilhança.

Por isso, se o aspecto temático verista tem na literatu_ra infantil uma importância como vanguarcla, porque rom_pe com os padrões ordinários relativos às procluções paracrianças, sua plena realiza.ção clependerá de sua obediênciaaos parâmetros inerentes a toda a literatura: verossimi-lhança no tratamento da história, afinanclo o munclo repre_sentado à enunciação do narrador; e coerência no cleido_bramento da ação, que cleve <iecorrer cle uma necessicladeinterna e causalidade narrativa.

No exame de duas tendências cla literatura infantilnacional, o que importa verificar não é uma oposiçãoinócua e ineficaz entre o conto de fadas ou a fantásia e orealismo. E sim que ambos os gêneros se clefrontam comcertos padrões vigentes, que sucedem de uma tradiçãoliÍerâria, procurando .o-pè-lo, e inováJos. procedem_node modo original e distinto, em decorrência clo panoÍamacom o qual se deparam. O conto de fadas quer ser o seucontrário, como diz o título clo livro analisadà, e contrariareste passado significa abdicar do uso daclo ao gênero aolongo de sua história. Deixa, pois, de servir à afirmação dasuperioridade do mundo adulto, evidenciando a infantili_dade deste, sua tirania ou arbitrariedade. Anulando tam-bêm a percepção do mundo por dicotomias, enseja o des_dobramento de uma percepção critica davida circundante,

190

.scrn preconceitos. Portanto, a renovação se faz por trrrr clilikrgo com o pass:rclo clo gênero, modificando-o cle acorcl<r('olÌì slìa intimidacle. O resultado é o questionamento clc r-tnrlr

icleologia incrustacla naquela modalidade literârra, o da pus-sividade da criança e supremacia do adulto, qlre serviu porrrrr,rito tempo aos propósitos didáticos com os quais as obras

l)ara a infância se colnprometeram desde seu nascimento.O processo é mais complexo quanclo se trata de uma

literatura de denúrncia social. Trata-se, neste caso, de incor-porar dados externos à interioridade do livro infantil, que osrenegolÌ por muito tempo. Por isso, sacode com as estrutllrasliterárias, que precisam ser acomodadas à nova situação. E,

cnquanto o conto de fadas pode ser remexido ao extremo,Lrma vez que se está questionando sua rigidez e automatiza-Ção, a narrativa verista precisa se manter obediente às leis denecessidacle e verossimilhança a fim de que permaneça lite-ratura. O resultado é uma divergência de meios, o que podeser falsamente compreendido como uma oposição de principios ideológicos: o conto de fadas fica totalmente livre,porque problematiza um ideário estagnado, mas sempreacessível a todo leitor-menino; e o verismo amplia o espaçocla representação, voltando-se ao mundo exterior; por isso,precisa se ater a um tipo de narrativa tradicional.

É por intermédio desses aspectos que se pode verificardois rumos diversos no processo de evolução da prosainfantil brasileira. Sua validade decorre de sua infiltraçãoem modelos tradicionais, visando transformá-los e, comisto, modificar a percepção do leitor, tanto em relação à lite-ratura como em relação à realidade. Desse modo, se a litera-tura infantil nacional tem uma história relativamente breve,por outro lado ela apresenta modificações que denotamuma sensibilidade para os avanços da afie literâria. Ao mes-mo tempo, trata de renovar seus quadros internos, já que,quando se fala do conto de fadas, alude-se a um modo deexpressão definitivamente incorporado à produção p^racrianças.

197

Page 95: A Literatura Infantil Na Escola

__---t!

'lirclavia, a vanguarda no setor da literatura infantil<liligc-se preferencialmente aos processos de escrita. Mes-rÌì() qLÌe ultrapassemos as fronteiras aqui estabelecidas -cntre o conto de fadas e o verismo -, mencionando as preo-cr-rpações coln a simbolização da situação infantil e a inves-tigação de seu mundo interioq como procede Lygia Bo-junga Nunes, o resultado da análise será similar: as modifi-cações se fazem no âmbito do texto, ao qual se agregam osprogramadores gráficos e ilustradores. Desse modo, a pro-dução para crianças define-se antes por seu carâter literá-rio, submetendo-se ao imperialismo da cultura textual antesdescrito. De maneira que slìa forma preferenciaÌ de comu-nicação dá-se pela palavra e depende do domínio de habi-lidades ligadas à leitura. Seu recebedor é, antes de tudo,um leitor, e ela existe para propagar esta condição. Se essefato não indica que a literatura infantil permaneceu estáti-ca aos avanços dos outros meios de comunicação, sua tra-jetória deu-se nos limites do literário, apropriando-se dasconquistas da atte com a palavra.

Por isso, seu dinamismo decorre de seus contatos como campo dentro do qual se inscreve e de onde retira suasregras de ação: 'à arte literária inteira. Depende de tal asso-ciação não apenas seu desenvolvimento histórico e caráterde vanguar<la, rnas seu valor e permanência. Em vista disso,ela não se posiciona ao lado dos meios cle comunicação demassa, embora esses a ameacem continuamente.

Líteraturalnfantil e Oucros Meios d.e Cornunícação

A inserção da literatura infantil não apenas se faz nosquadros da escrita, como é desta relação que ela retira suasnormas e valor. Isso significa sua permeabilidade à histórialiterâria e a necessidade do compromisso do escritor comuma iniciativa para o novo e o transformador. Todavia, asobras para crianças absorvem recursos de outros meios de

192

t'omunicação, sobretudo os de ordem 6ptica, corìÌ() rt cx 1 rl, r

r':rção do visual, próprio às artes pictóricas e aos vcíctrlos rft'cultura de massa. Essas interferências, porém, não atittgt'ttro âmago do gênero, dando-se na periferia e facilitanclo < r

trânsito do texto em regiões dominadas pela história crnr1r-radrinhos, por exemplo, ou pela televisão.

Tal circunstância, de que a literatura infantil renovzl-.sc

cnquanto se mantém fiel a si mesma, afirma a soberania cl<r

texto, jâ referida. O que acontece quando ela abdica dessrr

condição e transforma-se em auxiliar para outros meios dccomunicação? Isto é, o que ocorre quando se examina a

recíproca da situação anteriormente desenhada?A menção a outros meios de comunicação determina

inevitavelmente a associação com a cultura de massa. Pois,quando se verifica a relação entre as artes nobres, como a

literatura, o teatro, as artes plásticas, a conclusão é semprepela irredutibilidade de suas linguagens. Teatro não ê litera-tura dramática, ê mise-en-scène; e o filme tem sua estéticaprópria, o que dificulta sua comparação com a literatura,mesmo quando os argumentos são idênticos. Assim, se se

postula que a literatura infantil é antes de mais nada arreliterâria, por suas aproximações estéticas, ela vem a parti-cipar da mesma irredutibilidade no âmbito da linguagem. E

o fato de afirmarmos que ela ó primordialmente texto, cola-borando atê na expansão de uma cultura textual, vem a

comprovar a unidade.No entanto, seria ilusório confinar pura e simples-

mente a literatura infantil ao teffeno da arte literâria. A exis-tência do vínculo não impede que os livros para criançascirculem como cultura de massa, jâ que estão comprome-tidos com um sistema de divulgação e consumo caracterís-ticos da indústria cultural. Em vista disso, eles passam,

quando examinados em quantidade, pelos mesmos proces-sos de produção a que se une grande parte da indústria dolivro infantil: grandes tiragens, repetição de clichês, perso-nagens estereotipadas, banalização do assunto, reforço da

1.93

Page 96: A Literatura Infantil Na Escola

*:-|

itk'ologiu vigente. Assim, o modo de produção a que seurrc grande parte da indústria do livro infantil provoca suat'xpansão, de maneira que sua penetraçâo nos lares bur-gLleses é rnuito maior que qualquer olltro tipo de literatura.'lbclavia, isso não significa que esse fato a desvalorize; comef'eito, o prejuizo maior da literatura infantil pode decorrerde sua adesão à pedagogia, como incentivadora de com-pofiamentos socialmente adequados e edulcorando a visãoda criança, rumo à sua aceitação do sistema em vigor.

O esforço da obra infantil para converter-se em artepode afastâ-la tanto da inclinação pedagógica, quanro datÍivialização da existência e do rebaixamento do estilo. porisso, se a linguagem da literatura infantil não pode ser trans-plantada para outros meios de comunicação, devido à irre-dutibilidade antes mencionada e

^o fato de suas transfor-

mações darem-se no universo da escrita, enquanto os ou-tros apelam ao visual, ela pode funcionar como espelho noqual eles se podem mirar, na medida em que compartilhama dificuldade de massificação. Se coube à literatura infantilo desejo de liberar-se da orientação ao consumo e à solidi-ficação de idéias prontas, o que a separa da influência peda-gógica, incorporando qualidade poética à produção quan-titativa, ela atua como um exemplo para as demais criaçõesvoltadas à criança. Por isso, sem renunciar à difusão emgrande número, essas podem atingir um valor maior, con-tribuindo para o crescimento da arte e abrindo novos cami-nhos à sua expansão no mercado consumidor. Somenteassim poder-se-á depor os preconceitos contra as artes me-nores, que decorrem de sua fafta veiculação, e se pesquis-ar trilhas originais em cada uma das diferentes modalidades,evitando a renúncia à especificidade de suas respectivas lin-guagens. E inaugurar-se rotas novas de ação que avancemalém do texto, sob cujo abrigo vive contemporaneamente acultura ocidental.

OVERISMOEÃFÃNTÃSIÃDÃS CRTÃNÇAS

Lít era'ann a lnfancíL e R ealís rn o

Após um período de visível estagnação nos anos 50 e60, o gênero infantil passou, na dêcada de 70, por uma reno-

vação, proveniente do aparecimento de um bom número de

novos autores. O fato pode ser associado ao desenvolvi-

mento da literatura brasileira em sua totalidade, LÌma vez que

se assistiu a uma grande movimentação, devido à eclosão de

um grupo novo de contistas e poetas (os "novos", os "mar-ginais", a "genção mimeógrafo"), assim como à ocorrência

de acontecimentos de ordem social ou política, visando agre-

gar os homens de Letras em torno de ideais comuns.O aparecimento de novos autores e de muitos livros

para crianças não significou necessariamente que todos fos-

sem renovadores ou que tivessem boa qualidade literâria;ou ainda, que seguissem uma linha uniforme de conduta.Contudo, ao menos evidenciou-se uma orientação comum nogrupo de escritores que se impôs, coletivamente pode-se

dizer, um program determinado, dispôs de uma editoraespecializada e foi recebido pela crítica como a vanguarda

da literatura infantil brasileira. Tratou-se da adoção de umprogïama de perspectiva realista na criação dos textos, ao

mostrar a vida "tal qual é" ao leitor mirim. André Carvalho,

194 195

Page 97: A Literatura Infantil Na Escola

('(lit()Í'cla Coleção do pinto, da Editora Comunicação, BeloI l( )r'izonte, sintetizou esta aspiração com as seguintes palavras:

E ele nos dá um livro forte, corajoso, com uma temáticaque vai assustaf pessoas que ainda acreditam em meninos desin_formados e que nâo participam de problemas sociais, _", q.,.vai responder aos interesses das crianças e pais atentos à reali-dade do mundo de hoje.

Patenteia-se o propósito verista desses textos, o quedemonstra a coincidência dessa orientação dacla à prod.riaodestinada às crianças e o desenvolvimento cra literatura brási-leira daqueles anos, em que se verificou, com João Antônio.Ignácio de Loyola Brandão e outros, a preocupação com afotografia da sociedade brasireira, principarmentã dos seg-mentos populares urbanos, traduzindo sua linguag"_

"visão de mundo, no sentido da denúncia de uma ..ulldn.l"imediata. o caso extremo foi dado pelo chamado romance-repoftagem Çosé Louzeiro, Aguinaldo Silva, plínio Marcos),que pretendia abolir a ficção da narrativa, a fim de tornarmais pungente e eficaz a amostragem de uma *fatia da vida,,.se o objetivo temático foi retirar a matêria ficcional da viçlapresente, o modelo literário encontrado não era tão atual,pois provinha do romance naturalista de Zola (de AluízioAzevedo, na versão local) e do realismo da década d" 30,que reagiu à vanguarda modernista dos Andracle.

Se foi a Editora Comunicação, de Belo Horizonte, quese transformou no principal reduto desta literatura infantilrealista, o exame das obras aí publicadas pode apontar paraas vantagens e os limites de tal conduta literãrja.

Coleção do Pínto - O Prograrna Realísta

Além do editor André Carvalho, críticos literários sepronunciaram reTativamente à produção da Editora comu-nicação. Escreveram eles:

196

1. O escritor parte da constatação de quc () r.ct't'|r... l,,rvirtual do livro infantil, a criança, não ê o mesm() clc rrrrliri;rmente, o que o motiva à criação de obras diferentc.s. li oque Henry Corrêa de Araújo declara a Luís Fernanclo lrrrrt.diato: "As crianças de hoje são mais adultas que lrs clt.ontem, e não merecem aquelas histórias um tanto iutltc't'i:;e fora de época, aquelas fadas, varas de condão, príncillt'sencantados, bruxas, caçadores, porquinhos e chapeuzinlrosvermelhos."lB

2. Não apenas se modificou o destinatário, mas igrurlmente as intenções do emissor: ao escrever seu livro, clt.quer "manter esta criança com os pés na terra, na rclrli-dade" (Corrêa de Araújo, loc. cit.). Deve abordar, pois, "urìrproblema social imediato" (Danúsia Bârbara), do que resr.rl-ta uma obra "mais realística e social".19 Assim, o objct<rdesses textos coincide com o da literatura naturalista antc.smencionada.

3. Qual a finalidade do compromisso com o real intc-diato? Ampliar a visão de mundo da criança, ou, corìl()escreve Ricardo Ramos, "o objetivo parece ser o de demons-trar que a criança não pode ser murada".20 No entanto, ll.Corrêa de Araúrjo reconhece que não se pode mostrar tuclo:"É claro que, escrevendo para crianças, não pude contzÌr'certos fatos, certas coisas que vi, como o uso de drogas, oproblema sexual. Não pude também empregar o seu lin-guajar típico, pois é violento demais" (loc. cit.).

4. Resulta daí a presença nos textos (mesmo quancl<ratenuada) da violência, o que, todavia, não ê novidade paru

18 gltgDntO, Luís Fernando. A literatura infantil abanclona oreino do faz-de-conta. Jornal do Brasil, Rio de Janeìro, 27 mato 1977.Livro.

19 eÁngeRA, Danúsia. A violência da vicla real, Jornal do BrasilRio de Janeiro, 21 maio 1977. Liuro n. 33. p. 6.

20 nanAOS, Ricardo. Realismo, em sinal cle respeito à criança. IstoE,São Paulo, n.32, p.40-47,3 ago.7977.

L97

Page 98: A Literatura Infantil Na Escola

:r ('r i:llìç'u cle hoje: "Por que continuar falando às criançasrrt'.st:t lìnguagem cheia de inbos e inhas se ela passa três(lu:rrtos da infãncia diante da televisão, deglutindo crimes,cstLlpros, novelas, uma infinidade de coisas violentas errlicnantes?" (Corrêa de Araújo, loc. cit.). Além disso, a vio-lência sempre fez parte da literatura infantil: ,,euem selembra bem das histórias que ouviu em criança não vaiachar o livro tão violento. É menos do que João e Maria,abandonados pelos próprios pais e qlle por pouco esca-pam de serem devorados por uma bmxa. Muito menos quePele de Asno, obrigada a fugir das intenções incestuosas c1e

seu pai. Comparado com a Bela Adormecida, quase truci-dada com seus dois filhos pela sogra, ou com a pequenavendedora de fósforos de Andersen, qlle morre de frio noNatal, é um texto muito suave" (Danúsia Bârbara,loc. cit.).

lls Narracrva s Infanús P ro duziãas

A Coleção do Pinto conta com quatro títulos: O mení-no e o pinto cío menino, Os rios morTenx de sede, ambos deWander Piroli, O dia cle uer rneu pai, de Vivina de AssisViana, e Piuete, de Henry Corrêa de Araújo. Em taishistórias, são Íocalizadas as seguintes questões:

- a vida familiar, com as dificuldades econômicas queassolarn a cÌasse média brasileira, assim como os probÌemasde relacionamento entre os pais, determinando eventual-mente a separação do casal e a solidâo dos filhos;

- a poluição, resultado do crescimento urbano e doabandono pela sociedade de suas fontes naturais;

- a desigualdade social urbana, que origina uma classemarginal, levada ao crime pela necessidade de assegurar assuas condições mínimas de sobrevivência.

Esses temas não podem ser considerados peculiares àliteratura infantil, nem se enraizam nlÌma tradição da qual

198

se aproprioll este gênero (a dos contos clc lìrcl:rs, l)(,1 {'\''rrrplo). Pelo contrário, clizem respeito especifìcrrlrìt'ttlt',i t't' l.t

brasileira tnoderna, urbanizacla, que sofre os p('l't':tlr.,:, rl"crescimento econômico desigual. Além clisso, {r ltttl:tt ,;rt,'as personagens ocupam na sociedade é semprc illlt'ttlt ,

sejam eles pivetes ou peftençam à classe méclie, lotlr:,estão afastados dos tnecanismos do poder, o qlle atestlÌ stl;l

impotência diante cle uma engrenagem que os sacriÍ'it':t.

Mais uma vez defrontamo-nos com temas que povoam lt litc-

ratlÌra deJoão Antônio, Rubem Fonseca, Vancler Piroli (nos

contos não destinados às crianças).No entanto, o fato de ocorrereln em Ìivros infantis gera

uma série de problemas não resolvidos, como os que sc

seglÌem:

- A primeira dificuldade é dada pela impossibilidadede esclarecer as callsas das irregulariclades denunciadas,

sobretudo quando se trata de questões sociais (a poluição,o trombadinha). A exceção aparece por meio clo tema clo

desquite, que não é propriamente social; no entanto, comoa autora não esclarece a tazão de ser cla separação, a per-

sonagem infantil, e o leitor por extensão, mais uma vez fica

privada de conhecer o porquê, fato que acentua a paralisia

antes referida.

- O ponto cle vista com que a história ê narrada é sem-

pre o do adulto, não o da criança, traduzindo uma dificul-dacle permanente da literatura infantil e que depõe contra

ela, uma vez que a torna um meio de manobrar o pequeno

leitor e incutir-lhe suas idéias.

Em Os rios morrem de sede e Piuete, o problema rela-

tivo ao foco narrativo é mais flagrante; no primeiro, não é

a decepção do menino durante a pescaria falhada o que

ocupa o primeiro plano, mas a de seu pai. E Piuete é, comoescreve Ricardo Ramos, "uma história contada de fora pata

dentro" (loc. cit.),,pois predomina a preocupação do autorem justificar o problema social dos trombadinhas ao leitor

799

Page 99: A Literatura Infantil Na Escola

T( lu(' cvidentemente não é um deles. Mais uma vez a exce-r':r<r cstá constituída pelo livro de Vivina de Assis yiana,rt:rrrado em primeira pessoa pelo menino que, entretanto,l)crmanece em interrogação constante sobre o mal que oaflige, sem que seus pais o esclareçam.

- Como as personagens defrontam-se com situaçõesde certo modo insolúveis, torna-se impraticável qualqueração. Dai o clima sentimental resultante e o excesso delágrimas derramadas. Os casos extremos são O menino e opinto do menino e O dia de uer meu pai, cuja ação trans-corre no meio familiar. Considerando que o choro é umareação tipica da criança a uma situação de impotência oucontrariedade, vê-se que os livros identificam-se aos leito-res a que se destinam, sem todavia proporJhes uma saídamenos passiva.

Em vista disso, torna-se claro que, à iniciativa de tra-zer a realidade imediata do leitor (pelo menos, daquele quevive em grandes centros urbanos e pertence à classe média)para dentro de seus livros, o que é, por todas as razões, lou-vável, corresponderam alguns percalços: como nomear ascausas profundas da situação que vive e como propor umaação que o retire da apatia que se verifica ao final do textoe que seja ao mesmo tempo compatível com a condiçãoinfantil?

Tais questões não pertencem apenas à literatura infan-til nacional; com efeito, elas se colocam a todo aquele quese dispõe a fazer livros para crianças que agudizem a suavisão de mundo, sendo concomitantemente emancipató-rios. No entanto, se faltam à criança um senso do real maisdesenvolvido, vivências mais profundas e um conhecimen-to que lhe permita decodificar apropriadamente sua circuns-tãncia, não se pode esperar que uma literatura infantil rigo-rosamente realista preencha o efeito desejado, pois paratanto teria de contar com o que ainda não existe.

É talvez o recuÍso à fantasia que pode ocupar essalacuna, mas, neste caso, trata-se da renúncia ao pressupos-

200

to realista. Isso significa que, à literatura infantil, cltlrt' proceder à virada que tem caracterizado a produçâc> t-utt't'rtliv:t

clos últimos anos, apropriando-se dos recursos ficciort:rir'vinculados ao fantástico. Por suavez, como a fantasia 1totl.'atuar num texto dessa rratLrceza? D. Richter e J. Merl<c'|,

pesquisadores alemães de uma literatura infantil progrc.ssista e, ao mesmo tempo, adequada à perspectiva da criançrt,procuram esclarecê-lo, recusando em princípio uma expli-cação exclusivamente psicanalitica dada ao processo mcn-tal que produz a fantasia. Assim, em vez de tomála apenascomo compensatória, tais autores consideram que ela poclctambém tornar-se um meio de transformação de uma rea-lidade vivida como opressiva. O exemplo oferecido é o dcr

conto de fadas, cuja propagação deu-se durante o feudalis-mo, quando refletia o anseio da camada popular inferiori-zada de se libertar de seus opressores. As personagens fan-tásticas, como fadas, e as propriedades mágicas, como a

força sobrenatural ou as múltiplas metamorfoses, vêm a sera transfiguração, em meios palpáveis e concretos, do dese-jo de transformação social, embora demonstrem também a

impossibilidade de uma modificação do estado vigente, porintermédio dos instrumentos imediatos e reais à disposiçãodo camponês revoltado com sua condição servil.21

Pasteurizadas posteriormente pelos Irmãos Grimm,essas narrativas perderam a carga de rebelião que conti-nham, vindo a colaborar na formação da criança burguesa,o que justifica sua rejeição, como foi citado antes, poraqueles que querem produzir uma literatura infantil reno-vadora. Contudo, é patente que elementos de inclinação fan-tástica, oriundos de uma fantasia criadora, podem exerceruma função não alcançada por um verismo restrito, a saber:

- colocar as causas reais dos problemas vividos pelaspersonagens, já que o recurso ao maravilhoso pode supe-

21 nICgTfn, Dieter; MERKEL, Johannes. Marcben, Pbantasie undsoziales Lernen. Berlin: Basis Yerlag, 7974.

207

Page 100: A Literatura Infantil Na Escola

riu ir.s l>:rrreiras impostas por srÌa representação naturalist:rr lo c.spaço e do tempo;

- fazer com que a criança colabore no desempenho clcr

lrupel transformador, desenvolvenclo sua atividade criado-ra, devido à identificação do leitor com a personagem querompe os limites impostos pela socieclade repressora;

- adotar um ponto cle vista representativo do ânguloinfãntil.

É nessa meclicla que a fantasia, que orienta o empregocle personagens e recursos fantásticos no interioÍ clo texto,assume grande proeminência na literatura infantil e, nãosendo meramente compensatória (e, neste sentido, regres-siva), exerce função emancipadora. Entre a produção nacio-nal recente, pode-se destacar o livro de Fernanda Lopes deAlmeicla, A fada que tinha idéias.

As c'.rr:rcterísticas dessa obra são cliscerníveis a partirde seu título: o universo é fantírstico, pois as personagenssão fadas; e, entre estas, salienta-se Llma que "tinha idéias",cle modo que sua vir-tucle principal consiste na criatividadeque possui e fuga aos padrões convencionais. Com efeito,a heroína, Clara Luz, desde as primeiras páginas da narra-tiva, chama a atenção por seu temperamento original, queseglle suas inclinações mais espontâneas e rejeita o que theparece autoritário ou ultrapassado (representado pelo Livrodas Fadas, a que suas companheiras obedecem). Em virtu-de disto, entretanto, ela desencadeia uma autêntica crise deEstado, quando suas idéias, que são manifestações de espon-taneidade e liberdade de criação (de fantasia, portanto),invadem o palácio da Rainha, fonte cle repressão e arbi-trariedade. O confronto entre as duas personagens, nos capí-tulos finais, representa - como no conflito entre Alice e aRainha de Copas - a oposição entre o velho e o novo, aautoridade e a liberdade, o medo (vivido pelas Fadas-Mães,diante da ameaça de despejo, ou pelas Conselheiras, qlÌenão querem perder seus vultosos honorários) e a coragemde quem sabe que tem idéias próprias.

202

Colocanclo clurestões centrais relativas à vicllr tl:t t t i;tttt,'t

e solidarizando-sc com a óptica desta última, o cllrc srti vrtl '

rizado é o mundo infantil enqlÌanto simboliza lnaniÍestrr(.:r( )

clo novo, do livre e clo criativo. Por suzÌ vez, é pela prcsc'lì(':l

clo elemento Íàntástico que a imaginação aclquirc vitl:r

(como a chuvÍÌ coloricla ou a ampliação dos horizontt's),

cxercendo a representatividade esperada; igualtnentc, tot"

na-se possível o acesso da criança .Ìos mecanismos tlttt'manipulam o poder, visualizando o exercício da atttol i-

clacle, clesde seus sintomas aparentes - a velhice, a "rabttgicc"

- até suas singularidades mais obscuras, como o parasitisnt<r

cias Conselheiras e o servilismo clas Damas de Honra.

Contudo, o mundo das fadas não paira no incleterttti-

naclo, alimentando-se, pelo contrário, de referências zì vicllr

urbana nacional, isto é, à vida brasileira contemporânclt'

Toclavia, o âmbito escolhiclo pelzt autora restringe-se prati-

camente ao lar e à escola. Em razão disso, não estão intc-gra<los ao relato aspectos da realiclade masculina' colÌÌo ()

trabalho e o relacionamento com a mulher (para não fallrr

c1o que constitui t matêria dos livros cle 'Vander Piroli: clifi-

culclacles econômicas, poluição etc.). A única família conr-

pleta é a clo Sr. Relâmpago, mas este parece antes Lun velh<>

aposentado, sem maior atuação no meio social, do qr'rc

resulta a supremacia do gineceu e do horizonte feminin<r

ao longo do livro.Afada que tinba idéias configura, pois, uma alternativa

ao realismo estrito de que se falou antes e demonstra como'

cle acorclo com as oportunidades ficcionais desencadeaclas

pela fantasia, é possível uma literatura emancipatória, con-

duzindo a alenção da criança à discussão dos valores que 1ì

circunclam e, concomitantemente, assentando-se na reali-

dade imediata percebida pelo leitor.

20i

Page 101: A Literatura Infantil Na Escola

à REPRESENTÃçÃODA FAI.{.ÍLIA

Janeiro, devido às exportações do cafê, a expxnsrt(, :rgl t( { )

la e financeira de São Paulo, o ensino universitlirio l;rrilitando o surgimento do profissional liberal, a orglutiz;rç':ìnclo exército e sua nova influência na vida brasileinr, r' tt.rse-á um quadro dos segmentos que permitiram a fornrlrç';ìr I

de um grupo, heterogêneo, é certo, que consistiu a ltusc rl;rburguesia nacional.

A ascensão da escola e da educação faz parte clc.ssc

mesmo p^norama, cabendo a ambas garantir a transmissÌodas normas sociais em vigor e a obediência aos interesses ckrEstado, quais sejam, a valorização da pâtria e suas institui-ções. Assim, o Segundo Reinado presencia e estimula, de umlado, a arregimentação da sociedade burguesa e, de outro, aemergência de seus instrumentos de ação: uma ideologia dafan-úlia, patrocinada em sua privacidade e isolada das influên-cias dos laços de parentesco, os quais constituíram, no perío-do colonial, um sistema de relações bastante forte e autô-nomo; e a organização da escola, lugar de integração do serhumano aos padrões burgueses e urbanos de vida.

Pertence a essa moldura a valorização específica dainfância. Jurandir Freire Costa narra o processo históricobrasileiro, versão nativa do fenômeno europeu: a normafamilista se consolida quando de uma descoberta da crian-ç4. A faixa etâria correspondente à infância recebe novaimportância, passando a criança a ser o centro de interesseda célula unifamiliar, que se volta à sua conservação deacordo com uma divisão de papéis: a mãe torna-se a res-ponsável pelo lar e pela preservação dos filhos, a prove-dora de alimentação e afeto; e o pai assume os encargosfinanceiros do pequeno grupo, advindo do trabalho suaprincipal fonte de renda.Z3 O ócio não ê produtivo e, numa

23 Cf . ^

propósito COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e normafamiliar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. V. ainda MACHADO, Roberto;LOUREIRO, Angela; LUZ, Rogério; MURICI Katia. Danação da nornta.Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro:

Sendo a literatura infantil um clos tantos produtos cul_turais oriundos da ascensão da camada burguËsa, ,.,, lrrrrn_lação na sociedade brasileira teve cle ug.,nidn, a emergên_cia das classes médias urbanas. Esse processo deu_se n"pur_tir da segunda metade do século XtX, devido, a" r.r_ tijo,à implantação de um setor burocrático no Rio de Janeiro: aexpansão do aparelho administrativo do Impériá a.rnrrr_dou pessoal, engrossando o grupo incìpiente de funcioná_rios num estamento que se solidificou .àdn u",

^ui", u-p*_tir de então.22 De ouro lado, a interrupção do tráfico deafricanos propiciou a aplicação de recursos monetários,originalmente destinados ao mercaclo de escravos, na indús_tria nascente. Mauá, inaugurando a comunicação fenoviâriaentre a Corte e petrópolis e pondo em relevo a lmportarrcãdo desenvolvimento inclustrìal, encarna o novo tipo emer_gente; e sua aliança com os ingleses revela que a i".firrufãoa outros modelos econômicos nâo rompe a dependênciacolonial a uma Metrópole esÍangeira, no caso a brjtãnica.Somem-se a estes fatos o crescimento comercial do Rio de

22 cf. a propósito deste fenômeno FAoRo, Raymundo. os cronosdo poder. Formação do patronato político brasileiro. porto AÌegre: Globo;Sâo Paulo: Universidade de São paulo, 1975.

204

l

l

205

Page 102: A Literatura Infantil Na Escola

:'( )( i('(l:tclc que vai se identificando com os valores do capi_t;rli.slrro, ele começa a ceder terreno para o prestígio daoc'r-rpação rendosa.

Em vista disso, não é surpreendente que a literaturainfhntil faça seu aparecimento na sociedacle brasileira quetransita da Monarquia à RepÍrblica. Os primeiros textos con-fìndem-se com o livro didático, e um clos autores, CadJansen, produziu obras sobretudo para o ensino, tenclo seclestacado como educador. Desse modo, ao mesmo tempoque adapta narrativas consagradas na Europa pelo gostoinfantil - como Robinson Cntsoe ou Auenturas clo Barão cleMtinchhausen -, traduz livros didáticos dedicaclos à ciên-cia, revelando sua preocupação em promoveÍ essa ãrea deconhecimento em nosso meio:

Esperamos, pois, que estes peqrÌenos, mas valentes bata_lhadores pela ciência, abrirão caminho nas demais províncias clenosso país, a fim de tornar uniforme em todas as nossas escolaso estudo tâo indispensáveÌ deste ramo de conhecimento.24

A vinculação do livro infantil ao ensino não é privilé-gio de Jansen. Mesmo que se ignore o caráter moralizanteda maioria dos textos produzidos na época, como nos con-

Graal, 1978. A respeito de história da educação e/ou cia fan.rília, v. aincla:ARIES, Philippe. História social da crictnça e da família. Rio cle Janeiro:Zahar, 7978. CHARIOT, Bernard. A mistificação pedagógica. Rio cleJaneiro: Zahar, 7979. DONZEIOT, Jacques. Tbe policing offamilies. NewYork: Panrlreon Books, 1979. POSTER, Mark. Teoria crítica ctafamília.Rio de Janeiro: Zahar, 1979. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. Históia claechtcação brasileira. A organização escolar. Sâo paulo: Cortez & Moraes,1979. SHORTTR, Edward. Tbe making of modern famity. Glasgow:Fontana/Collins, 7979. STONE, Lawrence. Tbefamity, sex & marriage inEngland 15OO-1BOO. London: penguin, 1979.

24;eNSfN, Carl. Ao leiror. In: GEIKIE. A geografia pbysica. Adapt.de Carl Jansen. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, s.cl. (Impressão émLisboa). Carl Jansen data de 22 de outubro de 1B82 seu prefácio (cujaatualizaçâo ortográfica foi procedicla por nós).

206

tos de Figueiredo Pimentel, o autor rnais c()lìltt't itl.r 'l'Iperíoclo, é preciso reconhecer a preocupação 1-lctllrllr rlitr ;r

àe Monteiro Lobato, em relatos como Geograf irr tlt' ltBenta ot História clo mundo para crianÇds' Nã() se'lttl"'

evidentemente, obras conformistas, nem destinadas 1Ì() tl:;( )

no colégio, Lobato lhes dá um c:Ìráter escolarizant€, rcpttr

cluzinclo D. Benta a posição de mestra - crítica e lro:t

ouvinte clas interrupções dos meninos, é certo - e Peclri-

nho, Narizinho e os olttfos' a de alunos compenetrados,

atentos à lição transmitida.Assim, é no âmbito da ascensão de um pensamento

burguês e familista qlre sLÌrge a literatura infantil brasileira,

."pãtirtdo-te aqui o processo ocorrido na Europa um sécu-

lo antes; e, como no Velho Mundo, o texto literário preen-

che uma funÇão pedagógica, associando-se muitas vezes à

própria escola, seia por semelhança (convertendo-se no

ii r.ã diaatico empregado em sala de aula) ou contigüidade

(o livro de ficção que exerce em casa a missão do profes-

sor, como nas narrativas de cunho histórico de viriato cor-

reia e Érico Veríssimo, o' informativo, em Monteiro Lobato).

Toclavia, cabe examinar um outro processo adjacente ao

fenômeno histórico: como o gênero destinado às crianças

Íeflete sobre as condições sociais que decretaram seu nasci-

mento. Isto é, como a ficção apresenta a familia burguesa,

foco com base no qual veio a existir a infância tal como a

concebemos hoje e a afte literâria a ela dirigida. Deste

moclo, o procedimento é voltar às origens do problema,

contudo, por intermédio de sua inscrição na obra ficcional.

O ModeLoEufórico

A literatura infantil não pode ser considerada, em sen-

ticlo estrito, uma modalidade realista de representação.

Apresentando entidades mágicas' como fadas e duendes,

uË.., u.rrropomorfizados' como animais e obietos, e ainda

207

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irs 1)ossibilidades de metamorfoses múltiplas, a arte desti-nucla à criança confunde-se muitas vezes com o animismoqLre caracteriza seu pensamento. Por isso, a instalação purac simples da estrutura familiar nas histórias nem sempreocorre, pois a relação entre a realidade social e sua tradu-ção ficcional pode ser filtrada de tal modo por variadosinstrumentos de mediação, que estes acabam por atenuar ediluir, de maneira crescente, a reprodução do imediato.Entretanto, mesmo no conto de fadas tradicional existe umresíduo de vida familiar burguesa. Embora a procedênciadessas narrativas seja popular, vinculada a uma sociedademarcada pelas relações feudais de produção, durante otransplante, feito pelos Irmãos Grimm, do mundo originalque elas mostravam para a vida urbana da Europa em fasede industrialização, foram introduzidas circunstâncias pró-prias à fanúlia burguesa, à sua ideologia e seqüelas traumá-ticas. Por causa dessa passagem, Bruno Bettelheim pôdedescobrir nelas vestígios do complexo de Édipo (como na"Branc de Neve e os sete anões"), das fases do amadure-cimento da criança rumo ao princípio da realidade (em ,,Os

três porquinhos"), e assim por diante.Z5 O abrandamentodos laços da personagem com a vida exterior e a concen-tração daquela no setor exclusivo da fanúlia, afrouxando acútìca ao poder político que havia nos contos primitivos,26são igualmente fatoÍes que comprovam a inserção dosrelatos na vida burguesa e a possibilidade de examinálosà luz do critério ideológico.

Todavia, devido ao processo de transfusão que mar-cou o início da literatura infantil nacional, com Figueiredo

25 gelTErHrIM, Bruno. A psicanãlise dos contos defad.as. Rio cìe

Janeiro:,Paz e Terra, 7978.2Ó Cf. nfCHtER, Dieter. Til Eulenspiegel - der asoziale Held und

die Erzieher. Kindermedien. Astbetik und Kommunikation. Berlin:Asúretik und Kommunikation Verlag, n. 27, 1977. RICF{TER, Dieter; abr.MERKEL, Johannes. Marcben, Pbantasie und soziales Lemen. Berlin: BasisYerlag, 1974.

208

pimentel se apropriando ou datradição ibéric:r ()tl tltÌ; tt,lltos de Perrault e Grimm, os quais simplesmentc lttl:t;rlntt,

torna-se preferível verificar o tema de acordo colÌì 0s t','it.li

tores modernistas. Nesse sentido, a obta de Érico Vcl'íssittt('

oferece um bom exemplo, pois, embora tenha siclo ptn

duzida à sombra de Monteiro Lobato, elabora um moclt'lt I

cla vida familiar característico de boa parte da prosa nacio-

nal: é aquele que privilegia os valores da existência domÓs-

tica, encerrando nela as personagens infantis' Portanto,

transparece aqui uma euforia com a vida administrada pela

família, que lega a seus rebentos os principais padrões da

sociedade.Examinada em coniunto a produção de Érico Verís-

simo, verifica-se que as pefsonagens centrais de seus livros

são ou representam crianças: ao primeiro caso' pertencem

Fernando (As auenturas do auião uermelbo) e Rosa Maria

(Rosa María no castelo encantado); ao segundo, os animais

antropomorfizados: os três porquinhos (Os três porquinbospobres; Outra uez os três porquinhos), o elefante Basílio ('4

uida do etefante Basílio) e o Urso (O urso com música na

baníga). No início das histórias, todas elas vivem fechadas

"*.ur". Os porquinhos, que se queixam do chiqueiro onde

rnoram, corporificam melhor esta situação de clausura, com

a qual não ie conformam. Tal rebeldia e mais o desejo de

aventura cleterminam a fuga: os porquinhos e Fernando

abandonam, logo que podem, o lugar de origem e soltam-

se pelo espaço; o Urso e Basílio são levados para fora por

outros, mas igualmente lançam-se ao mundo e precisam

sobreviver nestas novas circunstâncias.No entanto, voluntariamente ou nào, esses aventurei-

ros sempre retornam; os três porquinhos terminam num

o.,t.o .hiqrreiro, onde ouvem histórias contadas por Cha-

peuzinho Verde; Fernandinho acaba em casa' repreendido

pelo pai; o Urso reencontra seu lar, e Basílio, uma nova

familia, tão solícita quanto a primeira. o circuito dos heróis

vai da cas para o universo e, deste, para os braços dos

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l),ri.s. lj, pois, a família o setor promovido pelos textos,l)()r'(lLrc ali os heróis estão seglÌros, embora a tlnham aban_rÍ.raclo inadvertidamente. E essa promoção fica tão maiscviclente quando os protagonistas cleixam a casa a contra_g()sto: Basílio, feito prisioneiro, espera pacientemente aliberdade, que coincide com a acloção pelo pai cle Gilberto;e o lJrso, comprado por insistência de Rafael, sonha emvoltar para seus genitores, o que consegue, após fugir cleseu clono.

Por sua vez, são os progenitores as figuras que detêmo poder e a razão nos relatos: Gilberto goÀhn o

"l"fu.rt., "Rafael, o urso, porque seus pais podem comprar os bichospara os filhos. E é o pai de Fernando que lhe doa o livroe, mais tarde, o avião, objetos que estimulam a fantasia domenino e o desejo de voar por ambientes cÌesconhecidos.E esse pocler de compra que assinala o lugar social .1"; ;;_sonagens paternas e, simultaneamente, a força de seuraciocínio; por isto, elas têm sempre razão. Mesmo famíliasmais modestas, como as cle Basílio e clo Urso, têm no pro_genitor avoz da razão, aquela que explica ao pequeno'ete_fante o valor cla moral, áo bom .o-porrn-ento, cla tole_rância e da peciência.

Assim, o universo dos textos divicle_se em cluas cama-das, a das crianças, que abanclonam o campo domiciliar,mas nâo têm condições de romper com ele clefinitivamente.a dos adultos, de preferência os pais (as mães são raraJnestes relatos), que regulam a vida familiar, orclenanclo suasconcepções existenciais e o moríus uíuendí.

Entretanto, o fato cle as crianças buscarem romper estecerco pode ser o sintoma cle uma insatisfação. Sem clúvicla,esta última ocorre, senclo posta em relevo uma monotonia,como fazem os porquinhos, que querem deixar o chi_queirg. No entanto, igualmente acontece que a experiênciatrazidas pelas crianças é a <le que: ou o munclo èaseiro ésuperior em sua tranqüiliciacle pequeno_burguesa, o que sepassa em A uida clo elefante Basílio ott O urso com música

270

na barriga; ou o contato com a realiclaclc t,xl.l ..r rr.r,l.racrescenta à interioridade da personagem, poi.s ;ìrpr,,l.r ,,,=

apresenta de modo desconexo e desvinculaclo .lr r , , ,

nhecido.Em razão disso, o patrocínio da vida famililr. (.()ntrl

setor restrito ao convívio entre pais e filhos, no qtral <krrr'nam os primeiros, não decorre apenas da ênfase postlr l.ì(...ir(.modelo de existência. Advém igualmente cla negaçìo rlt.qtralquer outro tipo de experiência relativa ao munclo extc,rior, sobretudo porque este não adquire contornos precis's,evitando-se a possibilidade de que se identifique com alg<rconhecido. Assim, não é apenas o protagonista criança qr_rcretorna ao lar; é igualmente o leitor que, acompanhanclo :rtrajetôria dos heróis mirins, reconhece sell pequeno munclosomente quando a personagem está oL volta à casa. Fecha_se o circuito doméstico e, dentro dele, está aprisionado oleitor, levado a prestigiar não apenas sua circunstância, masos papéis adr-rltos e dominadores exercidos pelos pais.

O Mod.elo Crtcíco

A presença de uma visão benevolente em relação àvicla famlliar caracteriza grande parte da produção literâriadestinada às crianças. Isto significa que permanece viva emmais outros autores, podendo caracterizar_se seja pelo pres-tígio concedido ao modelo doméstico, do qual não se cleveescapar, como em O sobraclinbo dos pardais, de HerbefioSales, ou A casa das três rolinbas, de Marques Rebelo; sejapela atribuição de um poder crescente clentro tla nanativaà figura infantil, como nos relatos de Ecly Lima, em que onanador criança tão-somente testemunha os eventos, nãopodendo parÍicìpar ativamente dos principais fatos apre_sentados. Por sua yez, em A fada que tinba icteias, d,eFernanda Lopes de Almeida, é proposta LÌma reforma <iaest ntura, paftindo do interior da família: clara Ltz ê a cri-

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.uì(';t (lr.tc rnodifica o compoftamento do grupo, emborarrì. transforme a modalidade social e política,nig.nt.. po.-t;rnto, é o modelo familiar liberal que sai prestigiado. On<rvo relevo dado à criança ainda ocorre em O meninomagico, de Raquel de eueirós, e A curiosiclade premiada,clc Fernanda Lopes de Almeida.

A partir dai, cabe verificar se é possível a elaboraçãode um modelo crítico da familia, investigando quais o, ,á.,,efeitos na representação quando se pensa que a literaturainfantil permanece circunscrita aos ideais expostos no iní-cio: os davida burguesa, balizados pelavalorização da vidadoméstica controlada pelos adultos, e a posse de um conhe_cimento universal, nem sempre pragrnâtico, transmitidopela escola, senhora dos códigos clominantes. É a vertentevinculada mais diretamente ao realismo verista na represen-tação quem se encarregou desta tarefa crítica. centrancro amaior parte das histórias no cenário urbano e utilizanclopersonagens oriundas da classe média, estas narrativasenfatizam os problemas que resultam de seu lugar na es_cala social e profissional. O meníno e opinto do menino, cleVander Piroli, inaugura, de cefto modo, essa inclina ção, aoabordar as dificuldades experimentadas por uma familiaencastelada num pequeno apartamento, quando o filhomenor ganha da professora um pinto. O assunto do textoé a impossibilidade de assimilação do animal aos aperrosque vivencia o grupo, devido à falta de local, de dinheiro,de harmonia. O sacrifício do pinto representa, pois, o dopróprio menino que perde a ilusão cle poder t ni., algo deseu mundo particular ou de seu clesejo privado pu.n d..r_tro do lar. Não há espaço para ambos _ menino e pinto _nesse campo estreito, assim como para a prórpria classemédia no espectro social brasileiro, esmagada ..rìr. o, np._los de ascensão e consumo e a necessiclade cre sobrávi-vência econômica.

Instantâneo da vida familiar cla pequena burguesiaurbana nacional, o menino e o pinto dò menino documen-

212

ta a percla do paraíso infantil, por obra dos lllo1 ttt." 't'lrtltor, à professora, que ilusoriamente doa o anirrt;rl' ;l' l'''litando Lstar agindo com correção; os pais' qLlc ( lllii 'rrrr 'r

mestra, dividem os sentimentos do menino (entrc o ;tlr'll 't

eles ou à boa professora) e são incapazes de alcrrrÌ("'rr 't

solução para um problema aparentemente simples' l)t'r-tttl.'

tifica-se ò adulto, ao fazer com que perca sua attrJ ttt:t1"i' 't

de remecliaclor, e desnuda-se avlda doméstica como lrrli:tr

de conflito e irascibilidade'Coisas d'e menino' de Eliane Ganem, Segue trajct<it i;r

similar.AoadotarcomoprotagonistacentralameninaClltr.it't',o livro mostra o desajuste entre os desejos infantis c lts

aspiraçOes do aclulto: os pais constroem moldes para o's Í'i

lhos, contra os quais alguns se rebelam, como é o caso cl:t

g:Lrota. Decorre ãaí o clima cle hostilidade dentro da casrt'

[r.,,e a.r.tlta nas brigas entre os irmãos ou entre pais e filhos'

óutra vez o cotidiano é documentado, servindo a literattr-

ra como meio para a revelação das contradições do sistclrl:t

burguês: llberàl por princípio, acaba por impor formrts

.o-portutnentais; patrocinando a imagem da familia col-Ìì()

céluia harmônica, revela-a cindida em gerações e sexos clìì

conflito.O fracasso do modelo burguês evidencia-se ainda m"ris

no confronto com a farrúlia favelada Nezinho' que se con-

vefte no pivete Olho de Boi, e sua mãe querem introduzir'

o padrão vigente da família ajustada e do filho educaclo'

Contudo, a pressão social é mais forte' decorrendo tant<r

dos precon.ài o, (contra o menino de cor e analfabeto) qr'rc

impàdem que ele tenha um emprego, quanto dos desacer-

tor.lu sociãdacle brasileira: o crescimento da camada pobrc

gera o marginal a quem resta lào-somente o crime "lqu"n.

to chance de sobrevivência' Assim, a norma em vlgor (:

duplamente posta em questão i a partír de seu interior' por

intèrmédio da insatisfação de Clarice; e de seu exterior,

quando sua imagem ,. ttt*n nas deformaçÕes da socie-

dade nacional.

273

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Tl)cs.sa forma, a vertente rnais engajada com LÌma re-

l)rc.ser-ìtaçâo verista do contexto social urbano atinge seuolrjctivo inicial, ao denunciar os desequilíbrios no interiorclu unidade doméstica que LÌma Ìiteratura mais traclicionalscnlpre incensou. Todavia, são essas mesmas metas os limi-tes do programa artístico: a clenúrncia toma a configuraçãocle uma fotografia exterior do problema, de modo que nãoé filtrada pelas personagens, e muito menos pelos heróiscrianças. Dessa maneira, colno no ceso do modelo eufóri-co, este moclelo crítico aincla encerra sells heróis no círcu-lo familiar, embora apareç incômodo e desajustado. O fatofica evidente quando se verifica que as personagens mirinsnão conseguem elaborar internamente a crítica que o nar-rador - um adulto, como se pode constatar em O meninoe o pinto do menino - desenvolve, por intermédio de seuprocedimento narrativo ou dos acontecimentos desdobra-dos no tempo. Mesmo quando os eventos são apresentadosem primeira pessoa, como em O clia de uer meu póti, deVivina de Assis Viana, a alÌtora não produz um esboçocompreensível do problema de sua personagem, o meninoFabiano, que é igualmente o narrador. Assim, por não trans-cender ao fato crítico (a dissolução da família, devido àseparação dos pais), o herói não se transforma internamen-te, de modo que se lhe torna impraticável uma emanci-pação dos laços domésticos, convertidos numa modalidadede prisão domiciliar.

Configuram-se as fronteiras que experimenta um mo-delo crítico de representação da familia, fundado numaperspectiva verista de tratamento literário. Da mesma ma-neira, esboça-se aquilo em que ele pode-se tornar, se se-guir o processo evolutivo a qlÌe naturalmente aponta: nacriação de uma personagem qlÌe tem em mira sua eman-cipação individual de acordo com um ângulo question-ador das circunstâncias sociais e familiares nas quais estáinserida.

214

O Mo delo Ernancíp at órío

Monteiro Lobato poderia representar o pritttt'll( l r'\r''rr

plo cleste modelo: recusando a intermediaçãO tk)ri l);rt" rr'r

ielação entre a criança e a realidade, coloca 'ì('tl'ì lt.t.t"numa posição de autonomia em relaçâo a LlmlÌ irtr'l'rtì( r'r

superior e dominadora. D. Benta, a avô, é antes LtlÌ1lÌ 1ì( )\/( l

nanta do Sítio (a ela cabem as tarefas de provisão ccorttlttrt

ca e alimentar, funções concomitantemente paternlì c lÌìrl

terna) e uma preceptora, ministrando o saber no rnolììclìl()

em que é solicitada e fazendo com que as criattlr:ts tlttt'

vivem com ela se postem criticamente perante a realicl:rclc'.

Ao mesmo tempo, o escritor deu maleabilidacle rr<r

cenário criado: o Sítio do Pica-pau Amarelo pocle ser ttttt

microcosmo do Brasil (como em O poço do Visconcle), tcrt-

clo um funcionamento metafórico em relação à realidacle clrr

criança leitora; ou então representa pafte de Llm todo qtlc

ultrapassa os meninos e D. Benta, de moclo que eles lan-

çu--i" para fora, experimentando contextos desconheci-

clos, sempre numa postura interrogadora.Lobato evita, por intermédio desses recursos, as 2ìrme-

clilhas em qlle cairam os adeptos do modelo eufórico:

- o retorno clos heróis, imprescindível à continuztção

clas histórias, significa invariavelmente uma aprendizagem e

Lìm crescimento do conhecimento da realidade;

- este retorno não significa necessariamente LÌm reco-

nhecimento da superioriclade do lugar de origem, visto

qlÌe, em alguns casos, esta volta não é bem acolhida por

alguns heróis (Emília, em A cbaue do tamanbo);

- o fato de que, em muitas narrativas, olÌtros agentes

sejam introduzidos no Sítio e clepois queiram abancloná-lo(o anjinho, em Memórias de Emília) indica a reversibiliclacle

clo sistema e a similaridade entre o Sítio e o qr-le não lhe

pertence.Não se pode, pois, afirmar que Monteiro Lobato tenha

promoviclo um conceito estabeleciclo de existência familiar

21>

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('(l()nìcritìca e lutado por ele em suas obras. Embora sert'rrltlreçam nos livros momentos do cotidiano, como, porcxcrrrplo, o serão na fazenda, o fato insere-se num contex_to rnaior, que é o da discussão dos valores que emergemcrrr tais circunstâncias. O serão, que aparece em peterpan,<tu Serões de D. Benta, propicia o momento do cliálogo; asatividades econômicas ou os jogos são os pretextos combase nos quais surgem as grandes aventuras: assim, o impe_rialismo aparece em O poço do Visconcle, e o lúclico, .ro úrodo pó de pirlimpimpim, que esrá na base das trajetórias notempo e no espaço. A partir daí nasce a possibilidade dopadrão emancipatório antes referido; não se trata cle umreforço da estrutura familiar ou cle uma reforma em seuinterior, mas da proposta de um outro funcionamento darelação entre indivíduos, segundo a qual ficam suprimidasas divisões estanques entre o adulto e a criança, assimcomo as ligações de dependência e sujeição entre eles.

Com Monteiro Lobato, abre-se a perspectiva de umaproposta renovadora no tratamento das relações familiarese do lugar da criança em seu contato com o mundo exte_rior ou com os maiores. Todavia, evitando proceder a umacritica à família (como ocorre no moclelo antes examinaclo),o escritor simplesmente a aboliu de seus textos, sonegandoo problema (viu-se como D. Benta tem antes uma funçãoadministrativa, e não doméstica). Gerou-se, pois, uma lacu_na e, diante da alternativa de lançar seus heróis no con_temporâneo ou introduzir um setor intermediário dentro doqual a solução final pudesse ser protelada, o escritor optoupela segunda. Foi assim que o Sítio se converteu numaescola, de modo que a escolha feita mostrou-se ainda mar-cada pelos condicionamentos peclagógicos cle seu tempo,quando a mentalidade escolarizaclora encontrava-se emfase de expansão, em decorrência do reaparelhamento clasociedade para a circunstância burguesa emergente.

Devido a isso, não existe solução cle continuidacle entreos livros informativos e os propriamente ficcionais clesse

216

autor. Em todos, os protagonistas vivem umlt .sittl:tç.lr I {",, I I

lar, na qual o tempo estagnou, de modo (ltl(' :.rr,l lìrrrgressão intelectual não ê acompanhada por Lllìì:l ('\'{,ltr,-,i',

cronológica, seja dos indivíduos envolvidos ncl:t, r;,';,t ,1,,

ambiente. Como quando freqtientam o colégio, os lÌl('trltr,r,isolam-se do meio vivo, podendo então receber ,,'11 ;;;1ltr'l

universal e teórico, separaclo da práxis diâria. É cslrt ,pr,'falta nos livros, de modo que, ao lado da sonegaç-rio rl,r

familia, foi abolida a atualidade, o que convertelì o Stli.num reduto inexpugnável, dentro do qual, como na cs('( )

la, as crianças nunca precisam crescer, para não poclct'

escapulir dela. Esbarrando a criação lobateana neste limitc,é preciso verificar se mesmo esse protótipo não pode scrrompido, instaurando-se uma nova espécie de visão emân-cipadora para o leitor mirim.

É nos relatos de Lygia Bojunga Nunes que se podeconstatar a ficcionalização dessa alternativa emancipadora,já que os laços de parentesco ocorrem na maioria de seus

textos. Não em Os colegas, sua primeira narrativa, que enfa-tiza a importãncia da amizade e solidariedade entre as pes-

soas, mas em Angélica e A bolsa a'marela', que colocam emquestão o lugar da criança no interior do grupo familiar. É

a heroína do primeiro relato que o desafia, quando nega a

mentira sobre a qual se apóia a celebridade das cegonhas.Raquel, no outro livro, sente o peso da falta de prestígiodas condições (somadas) de criança e mulher. Angélica,pois, enfrenta os adultos, abandonando o meio em que

vive, para construir sua vida isoladamente; Raquel, pelocontrário, é sufocada pelo ambiente doméstico, do qualnão escapa, podendo, quando muito, racionalizar que sermenina não ê tão ruim assim. A cegonha oferece a lição deuma existência exterior à farrília e, como em Os colegas, o

convívio com os artistas substitui o calor doméstico, Ercatzcompensatório de uma carência deflagtada pela decisão da

protagonista. E Raquel se conforma com seu estado, forne-cendo, neste caso, aos companheiros mágicos o exemplo a

2r7

Page 108: A Literatura Infantil Na Escola

.scr seguido - o guarda-chuva, da valiçJacke de ser mulher; orrlfinete cle fraldas, d,a valiclad,e de ser pequena.Os livros mencionados buscam a emancipação da cri_ança perante os condicionamentos que os adúltos impõema ela, utilizando o períoclo existencial clominado ;;ã;,cunsrância familiar - a infância, fase deficitária oà i.rairri-duo, porque ele acumula depenclências (econôrnica, ali_

mentar, cognitivas e outras), sem poder oferecer q.rníq.r.,contrapartida. Entretanto, as balizas dessa ema.rclpuçâomostram um horizonte relativamente estreito cle açao _ cleum lado, o abandono do lar, compensaclo pela vida deartista, numa comunidade de iguais; de outro, o conformis_mo com o presente, num assumir_se que é igualmente umaespécie de adaptacionismo. Em A boísa amarela. esse fatoainda ê reforçado por olltro, quando a personagem é pre_senteada com um último consolo: ao visitar u Cnrn .lo"consertos, descobre que há famílias boas e ru.r.io.rri-,colÌìo a que vive em tal lugar.

Corda bamba rompe com essa inclinação, oferecendcra modalidade de emancipação autêntica. Maria, a protago_nista central, não se converte em artista, como os animaisem Os colegas, e Angélica ou Raquel, em A bolsa amarela.que quer ser escritora; sendo apresentad, a" iro"áãiocomo equilibrista de circo, sua caracte rização como artistasuplanta, de antemão, a de ser criança. E o fato a" ,.. hatrina corda bamba .simboliza sua situaçâo humana,

"t" p";estar numa faixa etâria infantil, mas porque precisa ,,_,p..n.uma dificuldade radical, a amnésia. Em visia disso, com ti;;i;,confluem profissão e esrado exisrencial, sem que i";;;fir"no processo o fato de ainda ser uma menina. O horizontedo tratamento do problema se alarga, no momento em quea autoÍa desiste de circunscrever a personagem ao âmbitoexclusivo de sua fatxa etâria

Por sua vez, atribuindo a Maria uma amnésia decor-rente da não-assimilação da morte dos pais num acidenteno circo, o livro apresenta como pode ser tratacla a relação

278

conflitiva da criança no interior da famílil. liillr;t t[' tttncasal de equilibristas, Márcia e Marcelo, MaLirt vt'ltt rnoi,tr,quando fica ôrfã, com a avó materna, D. Mru'irt ( ìr'r tli,t

Mendonça de Melo. A narrativa mostra, do ponto tlt' r,ir,l.t

exterior, os primeiros momentos da nova vicla tlt' iVl;ttt;t,

suas aulas particulares, a festa de aniversário, <t t'r:lrtciott.tmento com os avós; do ângulo interno, apresentx () lt'nl,,avançar da menina rllmo a seu passado, descobritttlo n:t

memória (e no sonho) o primeiro encontro entre ser.rs 1'l:tis,a ruptura de Márcia com slÌa mãe devido à inferioricllrclc'social do noivo, o nascimento da filha, a vida circense. ()momento mais traumâÍico ê, para Maria, a aceitação cl:t

morte dos dois, que concordam com uma exibição nltcorda sem a rede protetora, a fim de obter um rendimentc>melhor e p gar as dívidas contraídas com a garota, o qLrc

ocasiona suas mortes simultâneas e o sentimento de culpana filha.

A recuperação da memória vem acompanhada de utnzt

liberação total - da culpa, já que fora Maria Cecília qlÌemverdadeiramente ocasion r^

^s dívidas que Márcia querizt

pagar; da influência dos pais, pois, ao assumir sua mofie, a

menina se livra simultaneamente do poder repressivo da

avó e da lembrança opressiva ocasionada pela perda dosgenitores. Trata-se, simbolicamente, da mptura de um cor-dão umbilical, representado, na obra, pela corda bambaque conduz a menina de volta a seus procriadores. Recon-quistar o passado é também desprender-se dele e, pofian-to, desenvolver feclìrsos para viver autonomamente ofuturo. Por isso, o livro encerra sintomaticamente com umcatálogo de projetos mentalizado pela protagonista.

Em Corda bamba, Maria defronta-se com muitos geni-tores: de um lado, os pais ideais, Mârcia e Marcelo, o casalmodelar que ela perdeu; de outro, os pais reais, a repres-sora Maria Cecília e o benévolo, mas indiferente, Pedro; e,

enfim, os pais sobressalentes (substitutivos), Barbuda e

Foguinho, a quem Maria apela quando falham tanto o

219

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,1()lìlr(), qLranto a realidade. Dividindo, dessa maneira, emp;rrc.s diferentes a percepção distinta que a menina tem de.scus parentes, o livro oferece concomitantemente umavi.são da familia por seu prisma dicotômico (isto é, em suarepartição entre afeto e abafamento) e ,a necessidade deuma emancipação destes dois protótipos de vida domésti_ca. E nessa medida que o relato rompe com a trajetóriaantes referida pela autora e que não representava uma libe_ração verdadeira: porque a protagonista, que oscilava entredois modelos familiares - o real ú substitutivo _, vem criarinstrumentos para uma vida autônoma, decorrente de umaconquista interior. Raquel chega a esse ponto e estaciona;Maria passa pelo processo que oferece os meios individuaispara esse salto fora do lar e procede ao mesmo, como ante_cipara Angélica. Síntese, pois, das garotas das narrativasprecedentes, é Maria quem demonstia a medida da eman_cipação, sem recorrer seja a circunstâncias que são tão_somente uma pergu\tn (n escola, o grupo de ãrtistas), sejaao conformismo, ainda que temporá.ú, á.t.r_inando a rotade uma possível representaç ão cla existência burguesa naliteratura infantil fora aa camisa-de-força de seus valoresideológicos, promovidos pelos aclultos.

Se a literatura infantil está circunscrita historicamentepela emergência de uma classe social, a burguesia, e algunsde seus pilares ideológicos, como a'valorilação especïficadada à família e à .situação infantil, ela pode, po, .ri" _"r_ma razão, proceder a uma representação delte processo.Interioriza, desse modo, os fatóres que estão na raizcle suaprodução como gênero literário, val,endo_se seja dos recur_sos ligados ao maravilhoso e à fantasia, como nos relatosde Monteiro Lobato e Lygia Bojunga Nunes, seja daantro_pomorfização de animais e objetãs, à maneiía cle Éricoveríssimo, ou ainda respeitando os limites do verismo. Emtodos esses casos, e independentemente cla opção técnica,o que se evidencia é o aproveitamento da temâíica familiarsegundo uma óptica afirmativa e eufórica ou crítica e inqui_

220

ridora. Tal escolha determinará, por sua ve7-, <> ( ( )llrl)1,llrl',so do texto com uma postura pedagógica ott t-tlìt ), vlr'lr ) , lrlt'é o afastamento desta índole transmissora clc tt,)Írrr'l'. {'

ensinamentos um dos fatores de sua autonoltti:t t' t':llotartístico. Se, por um lado, a produção nacional rtilltl,t r,t'

sujeita em muitos casos ao patrocínio de um moclo tlt' vtr l:t

marcado pela dominação da criança e afirmação clo potlt'tadulto, por outro, avulta igualmente a tendência corltl'ritirt,por meio do reformismo ou do questionamento, visltttckrantes à ênfase na emancipação do ser humano, concliç:ìtrpara a mudança das circunstâncias que produziratn lrtis

aparelhos de dominaçâo.

227

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T-q

,4. REVrTÃLIZHçA.O DAMEMÓRIIT NÃCIONÃL

São tantas lutas inglóriasSão bistorias que a bistória

Qualquer dia contaráDe obscuros pesonagens

As passãgens, cts coragensSão sementes espalbadas pelo cbão

De.fttuenctis e de raimundosTantos julíos cle santana

Uma crença num enorme coraçãoDos bumilbaclos e ofendiclos

Lxplorados e oprimidosQtte tentam encontrar a solução

Lliz Gonzaga Jr.: pequena memóriapara um tempo sem memoria

(A legião dos esquecidos)

É a "legião clos esquecidos", cle que fala a canção deLuiz GonzagaJr., que parece ter adentrado na literatura porintermédio das novelas O soldado que não era e Do outroIado tem segredos, respectivamente de Joel Rufino closSantos e Ana Maria Machado. Se a literatura infanto-juvenil,quando se debruçou sobre os eventos da História do Brasil,sempre pfocurou feforçar seu compromisso com a versâooficial dos fatos, aqueles escritores inveftem o ângulo detratamento do problema e lhe dão novas dimensões. Com

222

isso, não apenas questionam a narriÌtivlr lr;rtlrt i,,11,s1 rp1,=

retirou sua inspiração do passado nrÌcior.ìíÌ1, nì;r, lrr,r ur,uiiromper o cordão que a prende umbiliclrlrrr('nl(' .rir liu,,didático. Desse modo, evitam o probÌenlll vivt'rrr r.irl' 1r,1essa espécie de texto - sua natlÌreza escolrrr, sulrir, lr,il tr h r .r':

informações recebidas na sala de aula, lÌs (lu:ri:, r'lr,lr ì':':.rentusiasticamente; decorrência disto é slrlr Ir'inr,llr rrr.r,-,ìi r

em apêndice do sistema escolar, o que iurpt'tlt' ,r .rrrt,,n,rmia da obra e, sobretudo, corrobora sua inc'lirr;rr..i,r 1,,,|.igógica.

Em vista clisso, inverter o tratamento tl:rtll .r,, l.lt,,histórico gera estas conseqüências:

- enfaliza-se o indivíduo anônimo ou lrrrrrrrlrlt' ,yr, l.r-a História nacional, evitando apresentá-l() ('( )n rr Ì I rr , ,! lr rr ' r

dela, o que ocon'e quando se veicula qlÌe n()ss( )r, I rrirr, il' riheróis são apenas os líderes oLÌ os generais (r'orrr,r rrr,-: ii l.ltos sobre as Bandeiras, em Viriato Correa, ()u it í ru.:ri.r '1,,Paraguai, nos livros dicláticos), ou que tocl<x; r'r' rl,,l ,r,lrrpassivamente a leis, decretos e outras cletclrrrirr.r,=r=rr: r,!iundas da esfera administrativa do Estado (conÍìrrrru ,r', rr.,!icias relativas à abolição da escravatura, resr-rrrrirl,r !rnilr i l, i

sancionada pela Regente);

- rompem-se necessariamente os laços i(k'olnui',,= .l,r

literatura infanto-juvenil com o aparelho esc()liu, ',rrl'-=;,!i i

rio do poder político e da classe clominante;

- emerge uma visão crítica dos fatos nlur:rrl,,'. . .1. ',paÍticipantes neles, mais ou menos ativos.

Por isso, O solclado que nã.o era, ao colltíu ,l lri.r,,iirdo levante baiano contra as tropas portugllcslt:i (1r' r, !

tiam à proclamação da independência lideracll 1ror l', .1,, , I

contrapõe-se à versão difundida que apreseillír r' r ;,r .lr',da autonomia política como um aconteciment() tr,lrr ,, .,, r i

do "às margens plácidas" do riacho lpirang:r. l)r" r,,t, 1,

zando a placidez paralisada do mito oficial,Jocl l{rrllri.' .l' '

Santos mostra as lutas sangrentas e os sacriÍìc'io:, r i. ;,1,,

pelo povo da Bahia na defesa da liberdade polítir.r

Page 111: A Literatura Infantil Na Escola

() caráter popular do levante é outro âspecto ressalta_rl<r 1>clo autoÍ em sua narrativa. Evitando fazer uma históriarlc rniÌitares e aristocratas, salienta os heróis populares quel()lnaram parte no evento e cujo sangue foi o preço davitória. Destaca-se, por esse ângulo, sua heroína, ,,o solda_clo que não era" Maria euitéria cle Jesus, moça humilde,filha de um pequeno proprietário, que abandona a familiapara acompanhar o exército nacional que enfrenta o poclerlusitano. O livro recupeÍa, portanto, uma personagem emgeral negligenciada pela história brasileira, já que, quancloé mencionada, a jovem aparece tão-somente como curiosi_dade, espécie de enfeite ou pitoresco que sempre caracte_riza o ensino do passado numa nação que procura ignoraros heróis provenientes das camadas menos favorecidas.

Dessa forma, em sua novela, Joel Rufino dos Santospropõe uma seqüência de desmistificações dignas de men_ção, porque consistem numa revisão da tradição nacional:

- a de que não houve dificulclades, nem clerramamentode sangue nos episódios relativos à conquista da autonomianacional, o que garante a continuidade dos laços coloniais en_tre Brasil e Portugal e, por extensão, o imperialismo europeu;

- a de que se pode continuar ignorando a participaçãopopular no movimento separatista, quando ela existiu etomou colorações nacionalistas.

E, usando como protagonista central uma mulher, oautor ainda problematiza a questão da eventual colabora_ção feminina nos episódios que dizem respeito à trajetôriada sociedade brasileira. vare dizer, ele mostra as dificul-dades que revestiram as possibilidades de participação numacontecimento político, já que não apenas Maria euitériaprecisou antes travestir-se em homem para ser aceita comosoldado, como sua ação jamais foi reionhecida pelo pai,que a expulsou da famílja e deserdou-a. Nessa meclida, èvi_denciando os contornos do pensamento da época, seuspreconceitos e limitações, Joel Rufino dos Santos evita um

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nacionalismo desmesurado, o que aproximarilr r;t'rr livr,r,lroutras tantas visões deturpadas do passado lor':rl.

O ufanismo ainda ê contornado pela inlr'otlu(,i{}, !!(rtexto, de um segundo narrador. Quem conta ()s l)rn( rl,.u,episódios da luta é o corneteiro Luis Lopes, dc tnotlr r1u,'

as opiniões mais exacerbadas e ufanistas pefienc:r'rrr :r cl,',e não ao narrador primeiro, que se apresenta c()rìì() unrouvinte mais jovem. Esse recurso permite que se atcrìrr<' oentusiasmo e os exageros de Lopes, que participotr tk x.

principais eventos transcritos. E possibilita igualmentc rlrrr'o autor evidencie ficcionalmente o fenômeno mesmo quc ( )

levou a escrever o livro: o de que, por negligência cl:r

história oficial, comprometida com o poder político, esquc-cemos nossos heróis mais simples. Desse modo, Lopc.sintroduz a seus ouvintes de lembrança curta a valente Muriu

Quitéria, cuja importância nem seus vizinhos recordavam,os quais ainda faziam blague dela, por não entenderentseus hábitos excêntricos. Em vista disso, o ouvinte reproduza situação do leitor juvenil, e este tem meios a partir dai derefletir sobre os fatos da história e o modo como ele é nor-malmente convidado, por meio, principalmente, da ação daescola, a consumi-los.

O processo de recuperação de uma memória recalca-da pela versão oficial dos acontecimentos, usando para istoo próprio adolescente que é leitor ou personagem do texto,ocorre igualmente na narrativa de Ana Maria Machado, Dooutro lado tem segredos. Não se tratando de um relato pro-priamente histórico, como o anterior, seu propósito é mos-trar como a coletividade negra foi rompendo pouco a

pouco os laços com seu passado. Assim, o livro apresenta,de um lado, o protagonista central, Benedito ou Bino, embusca da compreensão de suas taizes com base nas refe-rências esparsas que recebe dos mais velhos. Coletando ecompondo os pedaços, o menino obtém um quadro deinformações mais completo sobre o aprisionamento e escravi-zação dos negros africanos, suas constantes revoltas, o papel

fl

Page 112: A Literatura Infantil Na Escola

rlo líclcr Zumbi ., o qy. é mais importante, o lugar que()cr-rpa Bino neste encadeamento de fatos. por outio raào,1r<rr intermêdio da inquirição do garoto, o livro alcança acli'rensão do relato de cunho histórico, pois reconstitui oseventos mencionados antes e fornece novos meios de inter-pretaçâo dos modos como se deu a ocupação e coloniza_ção do território americano.

Assim, a narrativa organiza_se em duas camaclas, cor_respondendo a primeira à trajetôria passacla clos negros,desde a prisão pelos brancos, até a introclução cle suicul_tura no interior da sociedade e história brasireiras, e a se-gunda, à lenta apropriação por Bino deste aceruo de ocor-rências por intermédio de sua investigação. er-rando os cloismotivos se encontram, constitnindo no conÀecirnento queo protagonista adquire sobre si mesmo e sobre as origËnsde seu povo e situação social, o menino conquista o solosobre o qual constrói sua existência e consolictà seu enten_dimento sobre a amplitude clos costumes e ambiente que ocircundam. De modo que, integranclo o tratamento do pro_blema e o horizonte de compreensão cro herói

"i.rau ,,'!rrl-no à perspectiva crítica buscada, esta pode questionar a

tradição e recuperar uma parte _ e â menos .rãbr", o quepropiciou sua rejeição - do passado cla nação.

Do outro lado tem segredos e O solclado que não erasão, pois, narrativas que compartilham um projeto comllm:de um lado, visam mostrar acontecimentos em geral obs_curecidos nos livros que se ocupam em transmitir a vidacolonial brasileira e o processo de autonomia porítica (res-pectivamente dos negros e brancos, provando que não sederam da mesma maneira). De outro, liclam .o- o ;"J;de recuperação desses eventos: peranie uma memóriaamordaçada pela falta de informações verdacleiro, o., p."_cisas, torna-se necessária uma tomada cle decisão -mo ainversão do procedimento. por isso, ambos os livros inte-riorizam o problema, fazendo que as personagens discutamo esquecimento e tratem de preencher esta lacuna com

226

clados verídicos sobre a realiclade e a tracliÇlìtt ( it;lt";t:' ;t l:tt:'

escolhas, a literatura infanto-juvenil tambérrl sc: ll;lttr,l, )l lrr,ì í'

modifica a tendência de ser mera pârceira ckrs 11i11111'1r t;, ,ltciais, ntmando para sua autonomia artísticáÌ c v:th)Íll,1(..1r)

estética.

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A, Hurora

Regina. Zilberman, nascida em Porto Alegre, licen-

ciou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande

do Sul e doutorou-se em Romanística pela lJniversidade de

Heidelberg, na Alemanha. É professora da Pontifícia Univer-

sidade Catôlica do Rio Grande do Sul, onde leciona Teoria

c1a Literatura e Literatura Brasileira. Dirige a Faculdade de

Letras e coordena o Programa de Pós-Graduação em Letras.

Entre 7987 e 7991, dirigiu o Instituto Estadual do Livro,

instituição ligada à Secretaria de Cultura, do Governo do

Estado do Rio Grande do Sul. Foi Honorary Research

Fellow no Spanish & Latin American Department, da Uni-

versidade de Londres, no ano escolar de 1980-1981. Reali-

zou o pós-doutoramento no Center for Portuguese & Btazi-

lian Studies, da Brown University, Rhode Island (EUA). É

pesquisadora !Ã do Conselho Nacional de Desenvolvi-

mento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi assessora-cien-

tifica da Fapergs, entre 1988 e 7993. Coordenou a ârea de

Letras e Lingüística entre 7991-1992 e 7993-7995, da Fun-

dação Capes, fazendo parte de seu Conselho Técnico-

Científico. Pertenceu ao Conselho Estadual de Ciência e

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