a legenda aurea- uma obra aberta - versão final

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A LEGENDA AUREA: UMA OBRA ABERTA Ms. Carolina Fortes (UGF) e Msda. Priscila Falci (UFRJ) 1. Introdução Ao pensarmos em um título para essa comunicação não nos preocupamos em buscar definições exatas do que viria a ser uma “obra aberta”. Mas ao nos indagar qual seria a principal característica desta que foi uma das mais copiadas obras medievais, não pudemos deixar de recorrer à expressão “aberta”. Porque, em vários sentidos, esta foi se construindo e reconstruindo, ganhando novos capítulos escritos pelas mãos de vários religiosos, e do próprio compilador, ao longo de sua vida. Como compilação, é devedora de muitas fontes anteriores e coevas. E apresenta como personagens pessoas de diferentes grupos sociais, que demonstram ter, em certa medida, fundos culturais diferentes. 2. A Legenda Aurea O quanto se pode escrever sobre uma obra, aparentemente sem grandes pretensões, escrita há mais de 700 anos? Sem dúvida, pode-se escrever tratados. A historiografia produzida a cerca da Legenda Aurea, apenas no século XX é relativamente extensa. Os mais variados ramos do conhecimento já se interessaram por essa coletânea de vidas de santos, mas, sobretudo filólogos e historiadores, como não poderia deixar de ser. Uma das perguntas que freqüentemente se repetem em relação à obra mais conhecida de Jacopo de Varazze é o porque de seu sucesso na época na qual foi redigida. Não é nossa 1

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Page 1: A LEGENDA AUREA- UMA OBRA ABERTA - versão final

A LEGENDA AUREA: UMA OBRA ABERTAMs. Carolina Fortes (UGF) e Msda. Priscila Falci (UFRJ)

1. Introdução

Ao pensarmos em um título para essa comunicação não nos

preocupamos em buscar definições exatas do que viria a ser uma “obra

aberta”. Mas ao nos indagar qual seria a principal característica desta

que foi uma das mais copiadas obras medievais, não pudemos deixar de

recorrer à expressão “aberta”. Porque, em vários sentidos, esta foi se

construindo e reconstruindo, ganhando novos capítulos escritos pelas

mãos de vários religiosos, e do próprio compilador, ao longo de sua

vida. Como compilação, é devedora de muitas fontes anteriores e

coevas. E apresenta como personagens pessoas de diferentes grupos

sociais, que demonstram ter, em certa medida, fundos culturais

diferentes.

2. A Legenda Aurea

O quanto se pode escrever sobre uma obra, aparentemente sem

grandes pretensões, escrita há mais de 700 anos? Sem dúvida, pode-se

escrever tratados. A historiografia produzida a cerca da Legenda Aurea,

apenas no século XX é relativamente extensa. Os mais variados ramos

do conhecimento já se interessaram por essa coletânea de vidas de

santos, mas, sobretudo filólogos e historiadores, como não poderia

deixar de ser. Uma das perguntas que freqüentemente se repetem em

relação à obra mais conhecida de Jacopo de Varazze é o porque de seu

sucesso na época na qual foi redigida. Não é nossa intenção respondê-

la, mas gostaríamos de levantar algumas considerações sobre o intenso

estudo que vem sendo feita sobre ela nos dias de hoje.

Antes de mais nada, o interesse renovado pela Legenda vem a

reboque de um movimento mais abrangente de interesse por fontes

alternativas para o estudo da História, suscitado primeiramente pela

História Social, e enraizado pela História Cultural. O estudo da

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hagiografia é muito valioso para a apreensão de diversos aspectos da

cultura medieval. E, sendo a Legenda Aurea, um dos maiores, senão o

maior, expoente da hagiografia do período, nada mais certo do que

buscar nesta a resposta para um sem fim de perguntas. É claro que a

obra por si só não pode responder a todas, mas nos permite vislumbres

daquela outra realidade, a medieval. Feitas estas breves colocações,

aprofundemo-nos um pouco mais na Legenda sanctorum alias

Lombardica hystoria, dita Legenda Aurea.

Assim como obscura é a primeira fase da vida de seu compilador,

obscura é também a data exata na qual foi produzida a obra. É

consenso entre os historiadores que o documento foi escrito por volta

de 1260. Uma das principais características da compilação é a importância

imputada à pregação, o que pode ser compreendido como um dos pontos norteadores da Legenda

Aurea, principalmente se considerarmos a tensão entre os membros da Ordem Domincana causada

pela disputada entre privilegiar as atividades apostólicas dos pregadores ou as doutrinárias dos

professores. Este impasse cresceu gradativamente, durante o século XIII, tornando-se fonte de

fortes divergências, e, talvez, de certa forma marcando a resolução de Jacopo em escrever sua

compilação.

Por um lado, o dominicano reuniu um dos mais vastos materiais sobre santos já compilados,

utilizando fontes variadas, englobando experiências pessoais, textos cristãos e pagãos e a oralidade,

apresentando um material caracterizado pela heterogeneidade temporal e espacial. Somando-se a

isso, temos a organização da obra de acordo com o calendário litúrgico e a constante remissão ao

Evangelho, o que aponta para o uso na instrução dos demais irmãos, segundo preceitos reafirmados

pela Santa Sé. Em outras palavras, o compilador realizou um trabalho que requereu tempo para

levantamento e coleta das informações, e erudição para análise e compilação, visando um público

marcadamente diversificado.

Por outro lado, o uso recorrente dos exempla e o destaque dos feitos maravilhosos – os

milagres, a reconstituição dos corpos, a resistência às duras macerações, entre outros – possuíam um

forte caráter pedagógico e didático. A exaltação dos mártires e dos ascetas também indica um

objetivo apologético: a existência de recompensa em manter-se fiel ao ideal cristão, mesmo que em

condições adversas. Ambos os pontos, relacionados à construção do texto e ao seu conteúdo,

remetem-nos ao ideal apostólico da pregação e a atuação pastoral na conversão dos hereges.

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No entanto, apenas podemos compreender a relação entre este dualismo e as tensões entre

pregação e ação, se nos questionarmos sobre os possíveis destinatários da Legenda Aurea. Como

ponto de partida, assinalamos o argumento de Hilário Franco Jr.:

O objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer aos seus colegas de hábito, (...), material para elaboração de seus sermões. Material teologicamente correto, isento de qualquer contágio herético, mas também compreensível e agradável aos leigos que ouviriam a pregação.1

A partir deste trecho, podemos imputar à LA três funções diretamente relacionadas aos seus

públicos: destinava-se às leituras litúrgicas nos conventos dominicanos, às leituras particulares como

obra de edificação e como “fonte” de consulta para o preparo dos irmãos pregadores. Contudo,

considerando cada relato individualmente, sublinhamos que os elementos e as funções apresentados

não aparecem de forma homogênea na obra.

Portanto, defendemos que Jacopo de Varazze pretendia atingir dois públicos principais de

formas distintas. O primeiro e mais imediato era formado por clérigos, que consumiriam a obra e a

utilizariam na composição de seus sermões. Se considerarmos que a língua original de redação foi o

latim e que parte do material abordava questões relativas às particularidades da Igreja, 2 poderíamos

circunscrever o público mais direto à parte do clero bem educada. O segundo seriam todos os demais

– cristãos, hereges, infiéis – através da pregação.

Concluímos que a obra de Jacopo carregaria a responsabilidade simbólica de armar os

pregadores contra os inimigos da doutrina cristã, objetivando o combate às heresias e aos infiéis e a

“manutenção” dos fiéis. Somado a isso, ainda percebemos a promoção dos preceitos religiosos

propostos pela Igreja e a colocação da lei divina acima das demais, mesmo dos poderes imperiais.3

Assim, a Legenda Aurea foi uma ponte entre ação e erudição. Em suma, Jacopo

intencionava alcançar um equilíbrio entre estudo e pregação ao compilar uma extensa obra, cujas

leituras forneceriam instrução e material suficientes para garantir a eficácia da pregação. Em outras

palavras, consideramos que se o seu uso inicial era a instrução dos clérigos, seu objetivo final era

tornar mais eficaz a disseminação e o entendimento dos pressupostos cristãos para os leigos.

1 FRANCO JR., Hilário. Op.Cit. p.12.2 Neste ponto, a pesquisadora Fortes argumenta que “(...) Jacopo insere um material distintamente não voltado para os leigos, como dissertações escolásticas sobre questões doutrinais; breves ensaios sobre a história de elementos particulares da liturgia; notas críticas sobre os conflitos entre uma fonte e outra, etc.” (FORTES, Carolina C. Op. Cit. p.101).3 Acreditamos que essa questão relacionar-se-ia a resquícios da Reforma Eclesiástica ou Gregoriana e o processo de separação das coisas eclesiásticas das laicas. Essa distinção visava retirar a Igreja e os clérigos do domínio laico. Contudo com a afirmação da lei divina, representada pela Igreja, não poder ser submetida a nenhuma outra.

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3. As Fontes e o Original

É sabido que o período medieval não se caracteriza pelo amor às

novidades. Como bem coloca Aron Gurevitch o medievo é um tempo em

que se considerava meritório “repetir o pensamento dos antigos e se

condenava a expressão de novas idéias; que o plágio não fosse objeto de

perseguição, enquanto que a originalidade poderia ser tomada como

heresia”.4 Assim, não poderíamos esperar nada diferente de Jacopo de

Varazze, personagem inserida em seu contexto de dominicano do século

XIII. Século esse que se configura como a “idade de ouro” da Ordem,

quando alguns pontos da missão dos pregadores são colocados em

prática.

Por exigência de sua missão doutrinal, alguns frades pregadores

consagraram-se desde cedo à escrita. Para eles, como para todos os

dominicanos, a atividade literária era uma prolongação da atuação

apostólica. A produção literária dos pregadores, durante o primeiro

século de sua existência, foi enorme. Mandonnet, renomado historidor

dominicano, afirma que, embora uma estimativa global seja difícil, é

muito provável que o conjunto de obras dominicanas até a metade do

século XIV não esteja longe de se igualar a totalidade do que foi escrito

pela Igreja latina até então.5 Buscava-se, então, conhecer para

converter. E parte desta busca pelo conhecimento se concretizou em

um grande esforço de compilação do saber cristão produzido até ali.

Não é necessário dizer que compilações têm como definição a

cópia, a reunião de saberes já conhecidos. Une-se nesse esforço

dominicano, desta forma, o pendor à cópia, próprio do período, e a

necessidade de se organizar os conhecimentos cristãos, própria da

missão dominicana. O que nos levaria a supor, muito naturalmente, que

a Legenda Aurea não passa de um aglomerado de vidas de santos, como

4 GURIEVITCH, Aron. Las Categorias de la Cultura Medieval. Madri: Taurus, 1990. p. 29.5 MANDONNET, Pierre. St. Dominic and His Work In:http://www.op.org/domcentral/trad/domwork/default. htm

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diria Le Goff no prefácio ao livro de Boureau,6 que “carece de qualquer

valor literário”7 e cujos “milagres e episódios edificantes parecem

maçantes e sem incisividade”.8 Enfim, Jacopo é um “compilador sem

genialidade e um teólogo medíocre”.9

Em parte, concordamos com Le Goff, não há dúvida de que o

conteúdo da LA é repetitivo, de que Jacopo bebeu de fontes variadas, as

quais apontaremos em seguida, muitas vezes copiando-as ipsi literis. No

entanto, existe algo além da cópia nesta obra, em alguns momentos o

compilador se deixa levar por suas próprias posições a respeito do seu

tempo, e as faz ser ditas pelos santos, seus confessores e pelos fiéis que

enchem as páginas da compilação.

Embora as fontes sejam bastante numerosas, algumas aparecem

com mais freqüência. Jacopo tomou conhecimento do trabalho

desenvolvido por seus predecessores, escolhendo como fontes

principais de muitos capítulos de seu legendário a Abbreviatio in gestis

et miraculis sanctorum (1244) de Jean de Mailly e o Liber epilogorum in

gestis sanctorum (também de 1244) de Bartolomeu de Trento,

integrando com as vitae e as passiones originais partes que não o

fatisfaziam.10 Segundo Dondaine, 136 episódios são copiados

literalmente de Jean de Mailly, 11 embora este não seja citado sequer

uma vez.

Além dessas duas fontes principais, de Bartolomeu de Trento ainda

temos o Liber Miraculorum beatae Mriae Virignis (1244-51), o

Speculum de Vicente de Beauvais, o qual é citado apenas duas vezes

embora esteja presente em mais de 500 passagens. Jacopo também se

baseia nas hagiografias de Tomás de Cantimpré, assim como em seu

6 BOUREAU, Alain. La Legende Dorée. Le Système narratif de Jacques de Voragine. Paris: Cerf, 1984 7 Idem, p. I8 Idem, p. IV.9 Idem.10 MAGGIONI, P. Ricerche sulla composizione e sulla transmissione della “Legenda aurea”. Spoleto: Centro italiano de studi sull´Alto Medioevo, 1995. p. 65. 11 DONDAINE, Antoine. Le dominicain français Jean de Mailly et la Légende Dorée. Archives d´histoire dominicaine, 1, 1947, p. 53-100.

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Bonum universale de apibus.12 Ainda são fontes freqüentes a

Agiographia, de Uguccione de Pisa, a Historia scolastica de Pedro

Comestore, o Tractatus de diversis materiis praedicabilibus, de Estevão

de Borobone e, logicamente, a Vulgata. De acordo com Ferruccio

Bertini, Jacopo também se vale de fontes patrísticas e clássicos da

antiguidade, como Cícero e Sêneca, citando-os em segunda mão.13

Segundo Maggioni, podemos classificar as vidas da LA em quatro

tipos:

1. Dependência literal de uma única fonte: Algumas partes da

Legenda Aurea são copiadas palavra por palavra da fonte. Trata-se, em

geral, de autorictates ou de hinos litúrgicos, mas também capítulos

inteiros que reproduzem obras de outros autores. Nesses casos, Jacopo

se comporta como um copista, limitando-se a intervir eventualmente no

incipit para tornar menos brusco a passagem entre as várias partes de

seu legendário. Como exemplo podemos citar o capítulo Os Sete

Adormecidos,14 copiado do legendário de Jean de Mailly.

2. Reelaboração de uma única fonte: Alguns capítulos, como

aqueles que derivam do material hagiográfico que usualmente

acompanhava a transmissão da Vitae Patrum, constituem algumas das

partes mais originais da Legenda Aurea, descrevendo os feitos dos

santos que haviam sido ouço desenvolvidos nos legendários

precedentes. Nestes casos o texto de Jacopo é fruto de uma

reelaboração original e se afasta das fontes, embora seja sempre

evidente a relação de dependência. A parte final do capítulo sobre

Santa Maria Egipcíaca15 pode ser tomado como exemplo dessa

12 FERRUA, Valério. “Istanze e antitesi dell´Ordo Praedicatorum nella vita e nell´opera di Iacopo da Varazze”. In: GUIDETTI, S.B.(org) Il Paradiso e la Terra. Iacopo da Varazze e il suo tempo. Atti Del Convegno Internazionale. Varazze, 24-26 settembre, 1998. Firenze: SISMEL/Galluzzo, 2001.p. 44.13 BERTINI, Ferruccio. “Le Fonti Classiche in Iacopo”. In: GUIDETTI, S.B.(org). Op. Cit., p.61-70.14 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Aurea. Vidas de Santos. Trad: Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 576-580. As referências a obra serão feitas a partir da edição em português feita por Hilário Franco Jr, sob a sigla LA.15 LA, p. 354.

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categoria, e teve como fonte a Vita Mariae Aegyptiacae.16 Diversamente

do caso anterior, aqui a Legenda Aurea se afasta da sua fonte,

abreviando o texto original.

3. Reelaboração a partir de várias fontes: A maioria dos capítulos

da Legenda Aurea foram compostos integrando partes dos

predecessores de Jacopo com o texto das vitae e das passiones

originais. Como exemplo dessa categoria podemos citar o capítulo

referente a São Bartolomeu,17 que funde a Passio Bartholomaei e o

Abreviatio de Jean de Mailly.

4. Partes originais: Termos como originalidade e autoria devem ser

usados com muita cautela diante de obras como os legendários

condensados. Todavia não há dúvidas de que algumas partes da

Legenda Aurea não têm nenhuma fonte direta e são produtos

exclusivamente da cultura e da capacidade narrativa, histórico ou

interpretativa de Jacopo. Exemplos de partes originais da obra são os

capítulos de São Pelágio,18 que contem uma “História Lombárdica”, a

qual deu nome a toda a compilação (Legenda aurea, vulgo historia

lombardica dicta),19 e algumas partes exegéticas ou homiléticas que

constituem a estrutura dos capítulos mais complexos, como A

Natividade e Nosso Senhor Jesus Cristo segundo a carne20 e a

Purificação da Bem-Aventurada Virgem Maria.21

4. Diferentes “vozes” para diferentes ouvidos

Na Legenda Aurea se lê sobre um cavaleiro que, partindo para

combater em um torneio, passa por um mosteiro dedicado a Virgem, e

aí para a fim de assistir a missa. Mas uma missa se segue a outra, e a 16 Cf. MAGGIONI, P. Ricerche sulla composizione e sulla transmissione della “Legenda aurea”. Spoleto: Centro italiano de studi sull´Alto Medioevo, 1995. p. 69.17 LA, p. 697-705.18 LA, p. 1003-1024.19MULA, Stefano. “L´Histoire des Lombards. Son role et son importance dans la Legfenda aurea” In: Morenzoni, Franco e Fleith, Barbara, (ed.) De la sainteté à l’hagiographie : genèses et usages de la Légende dorée (XIII-XVe siècles) Actes de Colloque de Genève, avril 1999. Genève : Droz, 2001.p. 75-95.20 LA, p. 94-102.21 LA, p. 243-252.

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outra e a outra mais. O tempo passa, mas o cavaleiro permanece

assistindo à missas, pela grande devoção que tem a Virgem. Quando o

cavaleiro enfim sai a caminho da justa, já é tarde demais. Então corre

para o local do torneio e encontra pela estrada espectadores que

comentam sua brava performance. Continua a andar e se depara com

homens que dizem terem sido vencidos por ele se oferecendo como

seus prisioneiros. O cavaleiro entende, enfim, o que havia acontecido: a

rainha do céu o havia honrado com sua gentileza. Explica a todos o que

aconteceu e retorna ao mosteiro, onde viveria a partir dali como servo

de Cristo.

Entendemos essa curta passagem de um dos capítulos da Legenda

Aurea22 como um bom exemplo da obra. Ao mesmo tempo em que se

preocupa com assuntos religiosos, volta-se para o divertimento de

laicos e clérigos, utilizando-se de armas espirituais. Nunca é demais

insistir em que os quadros eclesiásticos eram formados, no século XIII,

por nobres cavaleiros, como também por camponeses, artesãos,

comerciantes. E Jacopo pretende atingir a todos esses cristãos, que

provêm de fundos culturais diferentes. É assim que a obra é também

aberta no sentido de tentar chamar a atenção de todos. Constituindo-se

como material básico para sermões, as pequenas narrativas

maravilhosas, que têm como personagens as pessoas e situações mais

corriqueiras, intencionam a fácil identificação dos fiéis com os relatos e,

principalmente, o cumprimento dos ensinamentos que são passados

através destas.

Um exemplo no relato de um discurso voltado mais para os

clérigos está na relação entre o bispo e o imperador Teodósio de

Tessalônica em um segundo momento no capítulo. Jacopo apoia-se da

História Tripartite ao narrar uma passagem na qual, durante uma

revolta em Tessalônica, alguns juízes foram apedrejados pelo povo e o

imperador Teodósio, revoltado, mandou matar 5 mil pessoas, sem

22 A Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria. LA, p. 752.

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diferenciar culpados de inocentes. Quando foi a Milão, foi proibido de

entrar na igreja e intensamente repreendido por Ambrósio. O

imperador voltou chorando e gemendo a seu palácio. Contudo, um de

seus generais, Rufino, vendo a desolação do imperador e informado do

ocorrido, propôs-se a ir a Milão para demover o bispo de sua decisão.

Em vista disso, o imperador respondeu: “Você não poderá persuadir

Ambrósio, porque o poder imperial não é capaz de amedrontá-lo a

ponto de fazê-lo violar a lei divina” (Idem, p.363).

Rufino insiste e segue para Milão, mas não consegue alterar o

jugo de Ambrósio. Assim, o imperador decide reencontrá-lo e aceitar a

punição pelos seus pecados. Após cumprir penitência pública, Teodósio

retorna perdoado. Destacamos a seguinte passagem:

Depois de perdoado foi à igreja, dirigiu-se ao presbitério e ali ficou de pé. Ambrósio perguntou-lhe o que fazia, e o imperador respondeu que esperava para participar dos santos mistérios. Ambrósio disse: “Imperador, o coro da igreja é reservado apenas aos padres, saia e espere junto com os outros fiéis. A púrpura faz de você imperador, não sacerdote.” No mesmo instante Teodósio obedeceu. De volta a Constantinopla, estava um dia fora do coro quando o bispo local mandou que entrasse, ao que Teodósio respondeu: “Demorei muito para saber a diferença entre um imperador e um sacerdote, não tinha um mestre capaz de me ensinar à verdade, somente Ambrósio, autêntico pontífice conseguiu fazê-lo” (Idem, p.364)

Acreditamos que a insistência do compilador em reafirmar a

separação dos poderes temporais dos espirituais era mais que

influência dos discursos da Reforma do século XII. Jacopo responde

diretamente aos conflitos entre o papado e a dinastia Hohenstaufen, do

imperador Frederico II, e o rei da França, Filipe Augusto, ao longo do

século XIII.23 Neste sentido, ele posiciona-se acerca do lugar do

imperador em relação à Igreja, evidenciando que a lei divina não

poderia ser desrespeitada por nada. Em suma, a LA é produto das

23 FORTES, Carolina C. Idem.

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relações de poder, nas quais seu compilador está inserido.24

Determinamos, até o momento, que o personagem Ambrósio foi

construído como um modelo eclesiástico para os clérigos

(especialmente, para os dominicanos).

Nesta lógica, sua narrativa possuiria a função de instruir os

pregadores para o combate e a conversão dos hereges e dos infiéis

através da pregação. Como os sermões também se destinavam à

doutrinação dos fiéis, para guiá-los com os preceitos religiosos da

“verdadeira fé” propostos pela Igreja, quais os elementos que

indicariam a presença deste objetivo, nessa vitae?

A respeito dessa questão, sublinhamos no relato a constância de

milagres e fenômenos maravilhosos – que serão analisados mais

adiante – com o intuito de atrair os fiéis. Contudo, é em um longo

parágrafo, dedicado a enumerar e descrever de forma simples e

aprazível as virtudes do bispo Ambrósio, que percebemos indicações

para a condução correta da vida de um cristão. Neste, destaca-se a

abstinência do santo, realizando o jejum quase que diariamente; sua

generosidade e o desapego às coisas materiais; sua compaixão

demonstrada com as lágrimas pelo pecado alheio; sua humildade e o

amor ao trabalho por escrever manualmente seus livros; sua piedade e

doçura por chorar amargamente a morte de um sacerdote ou bispo; e

sua constância e força na alma por não adular imperadores e príncipes,

pelo contrário, repreender seus erros em voz alta. A apresentação de

cada qualidade com a indicação de como Ambrósio a alcançou

apontaria não apenas para o engrandecimento moral dos eclesiásticos,

mas, neste caso, dos fiéis também. Antes de ser sacerdote, Ambrósio é

colocado como cristão.

A explicitação das virtudes pode ser interpretada como um

artifício para atrair a atenção dos fiéis, como intuito moralizante, mas

24 Mais uma vez, Jacopo, ao colocar Ambrósio como autêntico pontífice por não temer o poder do imperador, estaria criticando os sacerdotes que se curvavam perante as vontades imperiais.

10

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não o único. Em um dos trechos da narrativa, um homem, que havia

cometido um crime horrível, foi sentenciado por Ambrósio, que temia

novos crimes, a ser entregue a Satanás. No mesmo momento, “o

espírito imundo dilacerou aquele homem” (Idem, p.359). Defendemos

que a ausência de especificação do crime cometido alargaria as

possibilidades de uso deste exemplum na pregação. Neste sentido, o

pregador jogaria com o fator medo, ou seja, esse caso serviria para

amedrontar os fiéis de cometer o mesmo crime desconhecido e,

portanto, sofrer as mesmas conseqüências.

Assim, por um lado, a narrativa de Ambrósio é recheada de

exempla, objetivando postular modelos de conduta para clérigos e

laicos, utilizando-se da convergência de elementos da erudição com os

da pregação.

5. Várias redações

Podemos dizer que a Legenda não é uma só, mas muitas obras. Ou

melhor, que é uma obra aberta porque permitiu, ao longo das últimas

décadas do século XIII que seu compilador a reescrevesse, ao mesmo

tempo em que, ainda no mesmo século, outros religiosos adicionassem

a ela novos capítulos.

Existem muitas Legende do ponto de vista do autor, não tanto

porque ao longo dos anos se tenha transformado a cultura de Jacopo,

mas sobretudo porque mudaram sua história e seu papel político.

Existem várias redações do legendário, seja porque se distinguem,

durante sua vida, o número de capítulos, seja pela variedade das fontes

citadas, seja pela forma como as fontes são utilizadas e inseridas na

obra.25 Tal fato é condizente com a forma de redação de outros

legendários do mesmo período. O autor não termina de uma vez por

todas sua obra, mas continua a trabalhá-la enquanto ainda é um

25 MAGGIONI, Giovanni Paolo. “Le Molte Legende Auree: modificazioni testuali e itinerari narrativi”. In: Morenzoni, Franco e Fleith, Barbara, (ed.). Op. cit., p. 16 e ss.

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simples prior em Asti, depois como provincial dominicano da Lombardia

e também quando se torna arcebispo da grande e conturbada Genova.26

Tanto quanto é inquestionável que tenha existido uma Legenda

Aurea originária, é igualmente difícil reconstituí-la. Tanto mais porque

quase imediatamente o legendário começou a se difundir de forma

impressionante.27

A primeira Legenda Aurea não é muito diferente daqueles que a

precedem e que se constituem como suas principais fontes, o

Abbreviatio e o Liber epilogorum. Mas a Legenda Aurea que se

desenvolve nas décadas seguintes, como obra do provincial da

Lombardia, equivale àquilo que haviam composto, em âmbitos

diferentes, Tomás de Aquino para a teologia e Vicente de Beauvais para

a história, ou seja, uma síntese exaustiva, uma espécie de summa

agiographica, que comportasse como complementar tudo que pudesse

explicar as passagens obscuras da história sacra. Para Maggioni, não se

tratava mais de uma obra destinada apenas ao púlpito, mas também aos

leitores. Esta ampliação de público encontra respaldo em uma das

primeiras variantes redacionais,28 no capítulo sobre o Advento do

Senhor:

“(...) Esta também é a razão pela qual o primeiro responso do primeiro domingo do advento tem quatro versículos, inclusive o Gloria Patri, a fim de designar esse quatro adventos. Julgue o leitor, com prudência, a qual dos quatro prefere dar sua atenção.” 29

Assim, como a última redação da Legenda Aurea feita por Jacopo

foi destinada a um público também composto por leitores diretos, um

público mais variado e, pelo menos em parte, mais culto

26 Cf. AIRALDI, Gabriella. Jacopo da Varagine tra santi e mercanti. Milão: Camunia, 1988.27 GAFFURI, Laura. “Du texte au texte: réflexions sur la premiére diffusion de la Legenda Aurea.” In: Morenzoni, Franco e Fleith, Barbara, (ed.). Op. cit., p.139-145.28 MAGGIONI, Giovanni Paolo. “Le Molte Legende Auree: modificazioni testuali e itinerari narrativi”. Op. cit., p. 18.29 LA, p. 47. Grifo nosso.

12

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inevitavelmente muda o uso da língua, o número de fontes e a forma de

sua utilização.

Neste sentido, como não podemos citar aqui todas as fontes às

quais Jacopo recorreu, por conta de seu grandioso número, também nos

será impossível enumerar todas as adições que sofreu a Legenda ao

longo dos séculos. A própria edição Graesse, até fins do século passado

a mais considerada dentre as edições da Legenda, apresenta nada mais

do que sessenta capítulos adicionais, escritos por outras pessoas. Outro

exemplo da variedade de suas adições temos nas Atas do Colóquio

Internacional sobre a Legenda Aurea, realizado em 1983.30 Estas são

divididas em quatro partes, das quais cinco dedicam-se a diversos

ramos vernaculares, ou seja, a tradução/adaptação para o vernáculo,

sempre acompanhadas da colocação de novos capítulos e eliminação de

antigos que careçam de interesse para as diferentes comunidades.

Esses ramos são: em língua de oc e catalão, em francês, em alemão, em

tcheco e em inglês.

As muitas versões da Legenda Aurea começaram a circular ainda no século XIII, quando a

compilação foi traduzida para o catalão e o alemão. Em 1340, foi elaborada a primeira tradução

para o francês; para o holandês, em 1358; e para o tcheco, em 1360. No final do século XIV, as

múltiplas edições contabilizavam 156, aproximadamente. Essa difusão da obra não apenas

comprova sua importância desde o século em que foi produzida, mas também suscita questões

relacionadas às diferenças entre cada versão.

Percebemos assim, que até o século XV a Legenda continuou a ser

copiada e reescrita ao sabor dos interesses locais. Foi utilizada como

legitimadora da fama sanctitate de várias personagens ainda não

reconhecidas pela Igreja,31 como é o caso de Adelfo, bispo de Metz,

Henrique, imperador do Sacro Império Romano Germânico, Catarina de

Siena, Tomás de Aquino, entre outros.32

30 DUNN-LARDEAU, Brenda (org.). Legenda Aurea: Sept Siécles de Diffusion. Actes du Colloque international sur le Legenda Aurea: textes latin et brainches vernaculaire. Montreal-Paris: Bellarmin-Vrin, 1986.31 REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: University Press, 1985.p.?32 SANTIAGO DE LA VORÁGINE. La Leyenda Dorada. 2 vols. Madri: Alianza, 2000.

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Page 14: A LEGENDA AUREA- UMA OBRA ABERTA - versão final

6. Conclusão

Com o objetivo de mostrar que a Legenda Aurea é uma obra multifacetada buscamos

ressaltar alguns pontos que a caracterizam. A obra possui diferentes públicos-alvos. Bebe, de

variadas formas, das mais diversas fontes, contemporâneas ou antigas. Equilibra-se entre erudição e

ação, a letra e a palavra, o grande ideal dos irmãos pregadores então. Tem distintas redações, feitas

pelo próprio compilador, que a modifica tanto para complementá-la, quanto para expressar seu

sempre transformado papel político. Conta com um número enorme de redações feitas depois da

morte de Jacopo, que seguem igualmente a obsessão pela summa, adicionando mais e mais

capítulos. Mas do mesmo modo privilegiam santos regionais, buscando legitimar algum figurão ou

simples vilão que trouxesse fama e recursos para sua localidade ou comunidade religiosa.

Assim, se até aqui não utilizamos o conceito de obra aberta forjado por Umberto Eco 33 foi

para evitar cairmos em anacronismo ou um estruturalismo exacerbado. Mas, tomando os devidos

cuidados para adaptar o conceito contemporâneo a uma obra literária do século XIII, podemos

defender que esta é sim, uma obra aberta. Senão vejamos o conceito de Eco.

Para o semiotista italiano, a intencionalidade é considerada um pressuposto da obra aberta.

Vimos como Jacopo manipula suas fontes e cria matéria original para atingir alguns dos objetivos

principais da compilação: postular “modelos de boa conduta” para instrução dos seus irmãos e

proporcionar material teologicamente correto para formulação dos sermões, visando a ação entre os

fiés e a conversão dos infiéis e hereges. Além de toda obra possibilitar várias interpretações, a obra

aberta apresenta-se de várias formas e cada uma delas se submete ao julgamento do público.

À medida que o autor cria várias obras, deixando ao executante escolher uma das

seqüências possíveis, a própria execução da obra torna-se um ato de criação. É assim que o próprio

Jacopo escreve e reescreve sua obra, fazendo uso de outros autores, e deixando depois que outros

façam uso e alarguem (e/ou estritem) sua compilação. Nesse sentido, autoria e co-autoria acabam se

confundindo de tal maneira que já não se pode falar de uma obra, mas de várias. Embora Eco se

refira aqui a um único “objeto”, e a obra literária tenha, frequentemente, por característica ser mais

maleável que um obra de arte plástica, a Legenda muitas vezes não pode ser entendida como tendo

um autor. Não só por conta de toda a inexatidão que cerca esse conceito para o período medieval,

mas igualmente porque são vários os autores presentes na obra, tanto os utilizados como fonte,

quanto os que a reaproveitarão inserindo nela características direcionadas para seus próprios fins.

33 ECO, Umberto. Obra Aberta: Forma e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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Além desse primeiro sentido do conceito de obra aberta, há, porém, segundo Eco, uma

segunda categoria de obras que podem ser denominadas "abertas": aquelas que são determinadas

quanto à forma, mas indeterminadas quanto ao conteúdo. Nesse caso, poder-se-ia dizer que a

abertura é efeito da combinatória de signos que formam a estrutura da obra, que, evocando os mais

diversos sentidos, permitem ao intérprete fazer, durante a fruição, as mais diversas conjecturas

interpretativas. Aqui também se enquadra a Legenda Aurea. Seus sentidos são múltiplos, assim

como são múltilpas as leituras possíveis de seus signos. Portanto, podemos afirma que, também

segundo a visão de Eco, a Legenda Aurea é uma obra aberta.

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