fanzine - a plurivalencia paratópica - aurea suely zavam

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  • 7/25/2019 Fanzine - A Plurivalencia Paratpica - Aurea Suely Zavam

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    9Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubaro, v. 6, n. 1, p. 9-28, jan./abr. 2006

    Zavam

    FANZINE: A PLURIVALNCIA PARATPICA

    Aurea Suely Zavam*

    Resumo:Este artigo relata uma pesquisa a partir da qual se discute a relao entre paratopia e dispositivoenunciativo. Fundamentada em suportes tericos da Anlise do Discurso, a investigao toma comoobjeto de anlise fanzines literrios, levantando elementos que assegurariam a paratopia desse dispositivo.

    Parte-se do pressuposto de que dispositivos considerados marginais, ou independentes, como o fanzine,por exemplo, trariam inscrita, como constitutiva de seu discurso, sua condio paratpica.Palavras-chave: paratopia; dispositivo enunciativo; fanzine; discurso.

    Basta que na sociedade se crie umaestrutura paratpica para que a criao

    literria seja atrada para a sua rbita(MAINGUENEAU, 2001a, p. 36)

    1 INTRODUO

    Numa sociedade como a em que vivemos, marcada por contradies de diversasordens, natural que sejam criados, por parte daqueles que se vem excludos, meiosde fazer circular sua voz, ocultada pelas normas sociais vigentes, ainda que em esferasrestritas. Nesse jogo de foras, surgem formas de expresso marginais, que (sobre)viveme se nutrem da difcil negociao entre o (re)conhecimento de um fazer e a negaoou indiferena desse mesmo fazer pela sociedade. Assim, para adequar-se ao propsitoestabelecido, quer seja, demarcar um territrio para a sua atuao e conseqentementedifuso de suas idias, e para afirmar a legitimidade do posicionamento assumido,qual seja o de insurgir-se contra a estrutura cultural dominante, que lhe subtrai direitos,o excludo,1numa atitude de recusa s formas convencionalmente aceitas, investeem gneros, dispositivos, que apontam, logo de sada, a sua condio de marginal, deindependente. o caso, por exemplo, dos fanzineiros, que, tentando vencer os obstculos

    *Professora da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Doutoranda em Lingstica na Universidade Federal do Cear(UFC). E-mail: .

    1Com as aspas, assinalamos o paradoxo da excluso: se por um lado, o indivduo excludo de determinadosgrupos, ainda que dominantes, por outro, includo naqueles a que, voluntariamente, se filia.

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    impostos por um mercado editorial seletivo, criam, distribuem e divulgam sua prpriaproduo: o fanzine2ou, simplesmente, zine.

    Inicialmente impressos com rudimentares instrumentos de reproduo, comoo mimegrafo e, atualmente, graas popularizao de outros meios de impresso,reproduzidos em offset e mquinas fotocopiadoras (MAGALHES, 2003), os fanzinesmostram-se como uma opo, em muitos casos a nica, para artistas, escritores, poetas,msicos, quadrinistas ou simples apreciadores do gnero, que buscam, atravs dadivulgao de suas obras, romper o silncio a que estariam submetidos no fosse a

    inquietude que faz desses sujeitos annimos, margem do processo produtivo e doslugares institudos (e permitidos) de manifestao artstica, verdadeiros representantes,impertinentes3dos processos pelos quais o homem (re)significa a si mesmo e o mundoem que est inserido e (inter)age por meio da linguagem, das possibilidades de discurso(ORLANDI, 2002), mesmo que na contramo do que esperado e consentido.

    Investir, pois, em um gnero4como o fanzine posicionar-se contra a ideologia,sobretudo a do mercado editorial e , conseqentemente, colocar-se margem dessemercado. E saber-se margem assumir sua paratopia, seu lugar no definido, noestabilizado, no mbito da sociedade. Portanto, o objetivo maior deste trabalho atestar

    a relao entre dispositivo enunciativo e paratopia, acreditando ser esta categoria inerentea meios de difuso marcadamente marginais. Para tanto, discutiremos a noo dedispositivo enunciativo, at ento pouco explorada, e o conceito de paratopia, ambossuportes tericos da Anlise do Discurso de linha francesa. Em seguida, atravs daanlise de fanzines, tentaremos mostrar que esse dispositivo enunciativo, alm de revelarum posicionamento, desvela sua dimenso pluriparatpica.

    2 GNERO, SUPORTE OU DISPOSITIVO ENUNCIATIVO?

    A questo dos gneros textuais (ou discursivos, dependendo da abordagemadotada), desde a ltima dcada de 80, vem atraindo a ateno de lingistas,

    2 Fanzine (vocbulo formado a partir da contrao das palavras inglesas fanatic (fantico) e magazine (revista),significaria revista de fs) so publicaes de pessoas interessadas na divulgao de determinada expresso artsticaou hobby - (re)produo de histrias em quadrinhos, poemas, contos, fico cientfica, informaes sobre bandasindependentes, experimentaes grficas, entre outros - e resultam da iniciativa e esforo daqueles que se propema veicular produes artsticas ou informaes sobre elas, que possam ser reproduzidas e enviadas a outras pessoas,por correio real ou virtual, fora das estruturas comerciais de produo cultural. (PEREIRA, Nuno. Cidade Desconhecida.Disponvel em: Acesso em: 11 maio 2004).

    3O termo impertinentes foi empregado para destacar a no pertinncia a grupos socialmente valorizados.4A identificao do fanzine como gnero, suporte ou dispositivo ser discutida na prxima seo.

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    independente de filiaes a correntes determinadas. Esse interesse, relativamenterecente, justifica-se porque, ao pensar a lngua como possibilidade de interao eatuao, a Lingstica d-se conta de que no pode mais restringir seu objeto deestudo frase, a enunciados desvinculados de seu contexto, de suas condies deproduo e de suas situaes de interlocuo. Parte, ento, para o estudo, ou anlise,de unidades maiores e chega ao texto. Chegando ao texto, depara com uma variedadede tipos, com uma diversidade de formas de textualizao, que inexoravelmente alevam a buscar uma ordem nesse aparente caos, onde se produzem, se misturam, se

    entrecruzam as inmeras formas de enunciados. Assim, Lingstica urge buscaruma classificao, uma tipologizao, com o objetivo de, aliado ao da cientificidadesempre almejada, melhor compreender seu material de anlise (BRANDO, 2001).

    Embora a questo dos gneros venha atraindo a ateno de vriospesquisadores, a definio do que venha a ser um gnero e seus limites de constituiocontinua sendo problemtica, posto que em alguns casos no se pode precisar se setrata de um ou de outro gnero, ou de gneros entrecruzados, ou mesmo deslocadosdo seu locushabitual (ZAVAM e ALMEIDA, 2003). Como bem adverte Bonini (2001,p. 8), o conceito est em formao, de modo que as lacunas tericas ainda so

    muitas e os resultados de pesquisas, parcos. No obstante os percalos enfrentados,vrios pesquisadores continuam investindo no estudo dos gneros e alguns resultados(SWALES, 1990; ADAM, 1992; MARCUSCHI, 2000, 2002, 2004; BONINI, 2002;MEURER, 2002; entre outros) muitos dos quais consensuais tm-se reveladobastante relevantes para o estudo da linguagem.

    medida que os estudos avanam, novos desafios vo se interpondo nocaminho. Um deles diz respeito a aspectos que se mostram to imbricados no contextode realizao das prticas discursivas, que se torna difcil precisar limites entre umae outra categoria de anlise. Assim, conceitos como gnero, veculo, suporte, meiode difuso emaranham-se e a sua destrina muitas vezes parece no deixar

    suficientemente clara e inequvoca o que vem a ser cada um.Marcuschi (2003), analisando a relao entre gnero e suporte, e

    reconhecendo a contribuio deste ltimo para a forma de apresentao daquele,estabelece diferenciao entre um e outro, ainda que ressalvando o fato de a distinoentre gnero textual e suporte nem sempre ser fcil pela ausncia de limites naturais.Por gneros entende tratar-se de

    textos da vida diria com padres scio-comunicativos caractersticosdefinidos por sua composio, objetivos enunciativos e estilo, realizados

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    por foras histricas, sociais, institucionais e tecnolgicas. Os gnerosconstituem uma listagem aberta, so entidades empricas em situaescomunicativas e se expressam em designaes tais como: sermo, cartacomercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem, aula expositiva,

    notcia jornalstica, horscopo, receita culinria, bula de remdio, lista

    de compras, cardpio de restaurante, resenha editorial de concurso, piada,

    conversao espontnea, e-mail, chat e assim por diante. Os gneros soformas textuais escritas ou orais relativamente estveis (BAKHTIN, 1979)histrica e socialmente situadas. (p. 6-7; destaques do autor)

    De acordo com essa definio, poderamos, ento, tomar o fanzine comognero textual, posto que tanto se trata de um texto com padres scio-comunicativos caractersticos definidos por sua composio, objetivos enunciativose estilo, quanto pode estar includo na listagem aberta, assinalada pela expressoe assim por diante.

    Poderamos ainda recorrer ao conceito de gnero digital, uma vez que ofanzine tambm se apresenta sob essa forma, isto , o e-zine, ou zine eletrnico. Aotratar de gneros digitais, Marcuschi (2004) retoma os critrios de referencial

    bakhtiniano que servem para a identificao de um gnero (independente do ambienteem que circula, real ou virtual), quais sejam a composio, o tema e o estilo, eacrescenta a mediao pela tecnologia computacional, que responderia peladigitalizao dos gneros. Lembra ainda outros dois aspectos centrais nacaracterizao dos gneros digitais: a alta interatividade e a integrao de recursossemiolgicos (p. 33), que possibilitaria a interao entre imagem, voz, msica elinguagem escrita. Sob esse ponto de vista, o e-zine tambm poderia ser consideradoum gnero digital, embora no figure na lista dos doze gneros eletrnicos analisadospelo autor.5

    At aqui, caminhamos no sentido de considerar o fanzine (impresso ou digital)como um gnero textual. Por desconhecermos qualquer investigao na rea daLingstica ou da Anlise do Discurso (AD) que tome o fanzine como objeto de

    5Marcuschi (2004), admitindo desconhecer levantamentos exatos de quantos gneros poderiam ser identificadosna mdia virtual (p.27), analisa somente doze gneros digitais mais conhecidos e que vm sendo estudados nomomento (e-mail, chat em aberto, chat reservado, chat agendado, chat privado, entrevista com convidado, e-mail educacional, aula chat, vdeo-conferncia interativa, lista de discusso, endereo eletrnico e weblog) elembra, mais de uma vez, que seu ensaio no pretende, e nem poderia, analis ar todos os gneros emergidos ouem fase de emergncia no meio virtual (p.15).

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    estudo6e o veja como gnero textual (ou discursivo), devemos admitir, pois, outrapossibilidade: a de conceb-lo como suporte.

    No mesmo ensaio em que discute a relao gnero-suporte, Marcuschi (2003,p. 3) define suporte de um gnero como um locus fsico ou virtual com formatoespecfico que serve de base ou ambiente de fixao do gnero materializado

    como texto (destaque do autor) e, em seguida, ao sintetizar o conceito, afirmatratar-se de uma superfcie fsica em formato especfico que suporta, fixa e mostraum texto.Mais adiante, estabelece distino entre suporte convencional e suporte

    incidental. Os suportes convencionais seriam aqueles que foram elaborados tendoem vista a sua funo de portarem ou fixarem textos; j os incidentais seriam aquelesque operariam como suportes ocasionais ou eventuais (p. 9). Entre os suportesconvencionais, Marcuschi cita a revista de informao (semanal ou mensal), dizendotratar-se de suporte distinto do jornal dirio, uma vez que, alm de conter menosgneros textuais, o fato de ser semanal, quinzenal ou mensal lhe permite dartratamento diverso a alguns, por exemplo, a notcia, gnero tambm encontrado nojornal. Dessa forma, o fanzine poderia ser visto como revista de informao e, comotal, um suporte convencional.

    A fim de tornar mais clara nossa exposio, tomemos um fanzine impresso7

    como exemplo [figs. 1-3].Como se v nesses exemplos [figs. 1-3], o fanzine impresso tambm alberga

    gneros encontrados em revistas carta do editor [editorial, cf. fig.2] e cartas doleitor [cartas insanas, cf. fig.3], e tem periodicidade definida uma vez por ms [cf.fig.1], ainda que em tiragem pequena e circulao restrita.

    Tomar o fanzine como gnero ou como suporte, nessa perspectiva, no dariaconta de aspectos que pretendemos considerar na anlise pretendida, pois nem umanem outra categoria contempla as condies de enunciao sob as quais tal prticadiscursiva constituda. Tomar o fanzine como gnero ou suporte seria ignorar que

    6 Deve-se, por outro lado, ressaltar estudos sobre fanzine na rea da comunicao, que o tomam como veculo.Dentre eles, podemos citar, alm de MAGALHES, Henrique. O que fanzine. So Paulo: Brasiliense, 1993, osseguintes trabalhos: 1. FANZINE: do mimegrafo editorao eletrnica, de Henrique Magalhes (Disponvel em:.Acesso em 28 jul.2004); 2. A mutao radicaldos fanzines, do mesmo autor (Disponvel em: Acesso em 29 jul.2004); 3. Gnese, histria e importncia das publicaes independentesdo Brasil e do mundo: os Fanzines e as Revistas Alternativas, de Gazy Andraus (Disponvel em: Acesso em: 28 jul.2004).

    7 Como os fanzines so publicaes que renem vrias pginas, e sua reproduo integral demandaria muito espao,optamos por reproduzir somente aquelas que julgamos necessrias e suficientes argumentao apresentada.

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    o enunciador doInsano Comics, por exemplo, fala de um lugar, ocupa uma posiosocial e investe em um meio de difundir sua voz. Tomar o fanzine como gnero ousuporte significaria no considerar o ethos (a personalidade do enunciador,MAINGUENEAU, 2001b, p. 98), o posicionamento (a revelao da identidadeenunciativa, CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 392), nem o cdigo delinguagem (a variedade lingstica eleita na negociao que o enunciador estabelececom o cdigo que lhe prprio e adequado ao seu propsito, MAINGUENEAU, 2001a).Por fim, tomar o fanzine como gnero ou suporte equivaleria a restringir-se acaractersticas formais e funcionais dos enunciados, e o que pretendemos ir alm,

    Figura 1 Capa do fanzine Insano Comics.

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    buscar a articulao dessas caractersticas com os fatores que acabamos de levantar., pois, no s considerar o aspecto formal, mas articular o como dizer ao conjuntode fatores do ritual enunciativo (MAINGUENEAU, 1997, p. 36). Como nem semprea noo de gnero ou de suporte contempla esse conjunto de fatores, preciso quetomemos, ento, o fanzine como dispositivo enunciativo.

    Quando optamos por tratar o fanzine como dispositivo enunciativo, noestamos querendo dizer que a Anlise do Discurso rejeita o conceito de gnero. Naverdade, Maingueneau (2001b, p. 59) reconhece, como Bakhtin (2000), que todo

    Figura 2 Primeira contracapa.

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    Figura 3 Segunda contracapa.

    texto pertence a uma categoria do discurso, a um gnero de discurso,correspondendo cada um a necessidades da vida cotidiana dos locutores. Dessaforma, o analista do discurso no pode ignorar tais categorias. Primeiro, porque

    justamente o discurso, produzido a partir de certas posies e lugares sociais eatravessado pela materialidade lingstica, que constitui seu objeto de investigao;segundo, porque, ainda conforme Maingueneau (1997, p. 39), o estatuto de sujeitosenunciadores e de seus presumveis destinatrios inseparvel dos gneros dediscurso utilizados (destaques do autor).

    Mesmo reconhecendo que a noo de gnero no de fcil manejo (1997,p. 35), Maingueneau afirma que a AD no pode deixar de refletir sobre o gneroquando aborda um corpus (p. 38), posto que seria utpico um enunciado isentode qualquer coero, considerada como constitutiva do dizer. Por outro lado, adverte

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    o autor, a AD no deve se circunscrever constatao de que existe este ou aquelegnero, mas deve, sobretudo, trabalhar com a hiptese de que recorrerpreferencialmente a um e no a outro gnero to constitutivo da forma discursivaquanto o contedo (p. 38).

    Falar em dispositivo enunciativo dentro de uma abordagem da anlise dodiscurso francesa poderia parecer um contra-senso, uma vez que no h refernciaa esse termo nem em Termos-chave da Anlise do Discurso(MAINGUENEAU, 1998),nem no mais novo dicionrio de Charaudeau e Maingueneau (2004),Dicionrio de

    Anlise do Discurso. No entanto, o prprio Maingueneau (2001a, p.66) queemprega o termo dispositivos de comunicao, quando, ao falar de gnerosliterrios, afirma que estes

    no poderiam ser considerados procedimentos que o autor utilizaria damaneira que lhe aprouvesse para passar de forma diversa um contedoestvel, mas como dispositivos de comunicaoem que o enunciado eas circunstncias de sua enunciao esto implicadas para realizar ummacroato de linguagem especfico (destaque nosso).

    Na mesma obra, mais adiante (p. 71), o lingista francs emprega a expressodispositivo enunciativo como sinnimo de dispositivo de comunicao. Discutindoa relao, varivel, de um posicionamento que o escritor pode assumir (ou no)com a recorrncia a determinado gnero, Maingueneau postula que,

    quer se trate de criao de novos gneros ou de recusa de qualquer gnero,a inovao s pode ter um alcance relativo.Hernaniabranda o alexandrino,mas conserva-o, quebra a unidade de tempo ou de lugar, mas permaneceno espao do teatro italiana. De qualquer modo, existe um nvel que difcil colocar em questo: a pertinncia ao dispositivo enunciativoda

    Literatura. (destaque nosso)

    Ao considerar a relao de uma obra (ou um discurso), com o mundo (ocontexto), no qual ela surge, Maingueneau (2001a, p. 84) diz no ser possvel apart-la de seus modos de transmisso e de suas redes de comunicao, e recorre,ento, Midiologia, disciplina proposta por Rgis Debray (1991 apud MAINGUENEAU,1998) para chamar ateno para a dimenso midiolgica, isto , para as mediaesmateriais que no se apresentam como simples contingncias do dizer, mas comointervenientes na prpria constituio do discurso.

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    midiologia interessaria o estudo do midium, entendido, em sentidopleno, como o sistema dispositivo-suporte-procedimento de memorizao,articulado a uma rede de difuso (DEBRAY, 1995, p. 218). Para o filsofo,midiono significa mdia nem mdium, mas mediaes, ou seja, o conjuntodinmico dos procedimentos e corpos intermdios que se interpem entre umaproduo de signos e uma produo de acontecimentos (p. 28-29). Ou ainda,na voz de Maingueneau (2001b, p. 71-72), o midium no um simples meio,um instrumento para transportar uma mensagem estvel: uma mudana

    importante do midium modifica o conjunto de um gnero de discurso(destaque do autor).

    Assim, ao abordar a imbricao entre gnero, suporte e modo de difuso(midium), com sua importncia j ento atestada pela midiologia, Maingueneau(2001b) se vale do conceito de dispositivo comunicacional para lembrar que

    Quando tratamos do midium de um gnero de discurso, no basta levarem conta seu suporte material no sentido estrito (oral, escrito,manuscrito, televisivo etc.). necessrio tambm considerar o conjuntodo circuito que organiza a fala. [...] Na realidade necessrio partir de

    um dispositivo comunicacional(destaque do autor) que integre logode sada o midium. (p. 72)

    Portanto, poderamos dizer que, para Maingueneau, dispositivocomunicacional (ou enunciativo) seria o todo de um enunciado, produzido sobdeterminadas condies de enunciao, sujeito a coeres constitutivas de suanatureza, materializado em um suporte, que, por sua vez, estaria agregado a ummodo de difuso que influenciaria (assim como seria influenciado por) o prpriodiscurso.

    O conceito de dispositivo comunicacional (ou enunciativo) no figura somentena obra de Maingueneau. Costa (2001, p. 16), procurando contemplar todos osaspectos da enunciao (gnero, cenografia, ethos, entre outros) no discurso ltero-musical brasileiro, refere-se aos textos do cancioneiro popular como dispositivosenunciativos, para tentar compreender a cano, tomada como produto de umacomunidade discursiva especfica, em todas as suas dimenses enunciativas. Omesmo Costa (2003), ao falar sobre o modo como os discursos circulam nasociedade, recorre ao conceito de dispositivo enunciativo definindo-o como umproduto simblico que integra numa unidade, em condicionamento mtuo, todos os

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    fatores envolvidos em seu funcionamento: o gnero, o suporte, o cdigo delinguagem, o etos.8

    Assim, ancorados nessa definio a nosso ver mais precisa, trataremos ofanzine como dispositivo enunciativo e dessa forma poderemos ainda contemplar,na mesma perspectiva da Anlise do Discurso, uma categoria que nos pareceinseparvel de dispositivos enunciativos marginais, como o fanzine: a paratopia, essacondio do enunciador que se esfora para superar seu no pertencimento a lugarese posies institucionalizadas, e que paradoxalmente lhe assegura a prpria

    enunciao.

    3 A PARATOPIA DO DISPOSITIVO FANZINE

    A noo de paratopia foi introduzida por Maingueneau, 2001a [1993],9paratratar da questo problemtica que a pertinncia de um escritor ao campo literrioe sociedade. Se, por um lado, o campo literrio inscreve-se na sociedade, poroutro, a prpria enunciao literria que abala a estabilidade da representaoconvencional daquilo que se entende por lugar, onde fora e dentro encontram-se

    delimitados. O espao discursivo da literatura se constitui na fronteira, isto , no selocaliza nem dentro, posto que a literatura no se confunde com a sociedade comumcomo tantos outros campos da atividade social, nem fora, porquanto no se fechaem si mesma, muito menos vive apartada da realidade. Como bem salientaMaingueneau (2001a, p. 28), a pertinncia ao campo literrio no , portanto, aausncia de qualquer lugar, mas antes uma negociao difcil entre o lugar e o no-lugar, uma localizao parasitria, que vive da prpria impossibilidade de seestabilizar.

    H que se ressaltar o fato de que o estudo da paratopia, em Maingueneau,deveu-se lacuna deixada pelos tradicionais analistas da literatura que procediam anlise de uma obra literria sob dois enfoques: ou se considerava a histria literria,numa perspectiva filolgica, isto , a obra seria a expresso e a representao de seu

    8 H que se ressaltar que a noo de dispositivo tratada tanto na rea da comunicao quanto na do jornalismo,nas quais recebe conceituaes distintas da que proposta pela Anlise do Discurso. (cf. FERREIRA, Jairo. Mdiae conhecimento: objetos em torno do conceito de dispositivo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CINCIAS DACOMUNICAO, 25, 2002, Salvador. Disponvel em: Acesso em: 18 abr. 2004.).

    9A data entre colchetes refere-se ao ano de publicao da edio original em francs (Le contexte de loeuvrelittraire nonciation, crivain, societ.Paris: Dunod, 1993).

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    tempo; ou se considerava a clausura literria, numa perspectiva estilstica, ou seja, tomadacomo um universo fechado, traduziria o esprito, a conscincia criadora do autor.

    Essa viso reducionista, embora tendo se prolongado por muito tempo, noimpediu que uma nova abordagem e concepo do fato literrio se instaurassem. Assim,correntes que viam a obra literria sob um novo olhar passam a conceb-la como umato de comunicao no qual o ditoe o dizer, o texto e seu contexto so indissociveis(MAINGUENEAU, 2001a, p. X).

    Silva (2003), analisando as relaes entre filosofia e literatura na obra de Albert

    Camus, constata a posio paratpica do escritor (pobre e argelino numa Franaconservadora) que tem seus escritos marginalizados, tanto os filosficos, por no secircunscreverem no mbito da tradio dominante do pensamento filosfico, quanto osliterrios, por romperem com o que esperado dentro de uma certa tradio do gneroromance e valerem-se de recursos literrios pouco ortodoxos.

    Por sua vez, Costa (2001) estendeu o conceito de paratopia e, saindo um poucoda esfera reconhecidamente literria, aplicou-o ao universo ltero-musical brasileiro,embora se deva admitir, como o prprio autor o faz, que esse tipo de discurso em algunsaspectos considerado literrio, em outros, no. O discurso ltero-musical no se situa

    dentro nem fora do campo literrio (este tambm paratpico em relao sociedade),estando, portanto, num permanente e duplo conflito entre o lugar e o no-lugar de quefala Maingueneau.

    Analisando a localidade paradoxal, isto , a paratopia, e considerando os aspectosque essa paratopia pode assumir em funo de pocas e sociedades distintas, Maingueneau(2001a) estabelece distino entre paratopia espacial e paratopia social.

    A paratopia espacial estaria associada, por um lado, ausncia de um lugarverdadeiro e, por outro, aos lugares constitudos na disputa travada pelas relaes entreo escritor e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade (p. 30). Esseslugares no so identificados como espaos fsicos concretos: muitas vezes podem ser

    assegurados pela convergncia de idias, de projetos, de propostas de vida. Nesse sentido,os escritores se agrupam em tribos, isto , comunidades discursivas que implicam ritos,normas, intercmbios e marcao de espaos (COSTA, 2004, p. 330). Existem assimtribos de natureza variada, umas marginais, excludas da sociedade, mas inscritas emmovimentosunderground, e outras de certa forma estruturadas, cujos membros literrios,apesar de no desfrutarem de uma posio assegurada pelo aparelho social, so benquistospelo mercado editorial, sendo reconhecidos e alguns at laureados pela sociedade. Essastribos estruturadas habitam o Olimpo, esse lugar etreo, e sagrado, destinado s divindades;aquelas vagam pelo limbo, s vezes em busca de uma vaga nesse territrio disfarado de

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    lugar social; outras ainda, vangloriando-se dessa condio paradoxal de enunciar de umlugar deslocalizado. Maingueneau (2001a, p. 31) reconhece a existncia de um certonmero de tribos invisveis, que desempenham um papel na arena literria, sem porisso terem tomado a forma de um grupo [literrio] constitudo. nessas tribos invisveis,marginais, que inclumos os fanzineiros, sobretudo os literrios.

    Nesse momento, faz-se oportuno lembrar que o fanzine surge no Brasil nadcada de 60, representando a resistncia das histrias em quadrinhos brasileirasfrente ao descaso das grandes editoras e invaso das HQ estrangeiras (MAGALHES,

    2003). Assim, os fanzines originais, primeiros, so boletins de histrias emquadrinhos. Quadrinhos produzidos pelos excludos do espao assegurado aosquadrinistas reconhecidos. Surge, ento, uma estrutura paratpica e para a rbitadessa estrutura que se vem atrados os escritores literrios (MAINGUENEAU, 2001a),quer por se verem rejeitados pela sociedade e pelo mercado editorial excludente,quer por se posicionarem contra a ideologia dominante e, assim, assumirem umaposio contrria a desse mesmo mercado.

    J a paratopia social estaria vinculada problemtica posio na estruturasocial a que o escritor inevitavelmente estaria fadado. Problemtica pela sua relao

    com o meio do qual poder tirar proventos, posto que com a escrita, da mesma formaque com a arte em geral, a noo de trabalho, de salrio, s pode ser colocada entreparnteses (MAINGUENEAU, 2001a, p. 38). Dito de outra forma, o fazer literrio no visto como uma atividade laboral com a qual se possa ganhar dinheiro; muito pelocontrrio, os escritores que fazem da arte de escrever uma forma de amealhar riquezaso, via de regra, malvistos, quando no proscritos da tribo dos literatos.

    Sobre essa relao problemtica do escritor com o dinheiro, Costa (2004, p.328) afirma que, se a atividade literria,

    por um lado, uma atividade material, que depende de uma fora produtiva

    e de uma infra-estrutura para ser realizada, sem a qual no h literatura,por outro, no s o escritor rejeita essa dependncia, como tambm aprpria sociedade costuma negar um lugar normal ao fazer literrio nointerior da estrutura produtiva e ao escritor na convivncia social.

    Ao investir, pois, num dispositivo como o fanzine para divulgar sua obra, oescritor (fanzineiro literrio) quer ver reconhecida a sua vocao enunciativa10e

    10Maingueneau (2001a) denomina vocao enunciativa ao processo atravs do qual um sujeito se sente chamadoa produzir literatura.

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    investe nela mesmo sabendo que a sociedade no lhe dar retorno financeiro, nemmuito menos lhe destinar uma posio privilegiada na estratificao social, conformese v no texto a seguir:

    A Noite no Quixabeira11

    Glauber AlbuquerqueDesculpem-me,

    no era a minha inteno,

    levar a poesia para as mesasonde os burgueses bebericam e conversam.

    Juro que no era, mesmo, a inteno.Pois os versos da poesia, so livres,

    e no acorrentados a qualquer status-quoou a qualquer bom modo,do senso sofismtico.

    E a minha poesia quer bailar,mas no nos pores de ratos,

    pois nossa poesia, quer brincarde sentir e de ser sentida.

    Nos colgios, nas praas, no manicmio,no teatro, no hospital, no asilo

    e em todos os lugaresonde a expresso possa ser sentida.

    Porque no me importase os figurantes sabem ou noo valor da palavra: crepsculo.

    O que importa so se seus coraes

    esto abertos a sentir,da revolta a compaixo.

    Estando livre parachorar por melancolia ou xtase.

    Isso sim poesia!e ainda posso at conceituar,

    11Extrado do fanzineAs flores mortas do palhao, distribudo nas ruas de Salvador-BA e disponibilizado no site. Acesso em: 28 jul. 2004.

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    ser superior a saber de forma eruditao valor que o dicionrio nem tem.

    Neste poema, o escritor reconhece a sua no-pertinncia s camadas sociais quedesfrutam de lugares prprios e se desculpa pela invaso (no era minha inteno,/levar a poesia para as mesas / onde os burgueses bebericam e conversam), assimcomo identifica os espaos tipicamente ocupados por aqueles que, como ele, sentem-se alijados onde pode difundir seu discurso, por saber que a encontrar uma audincia

    garantida, refletida (manicmio, praas, teatro, hospital, asilo).A evocao pelo poeta das mesas onde os burgueses bebericam e conversam

    permite-nos estabelecer uma analogia com o que postula Maingueneau (2001a, p. 33)acerca do caf (lugar de convivncia social) do sculo XIX: localizado na fronteira doespao social, o caf (no nosso caso o bar), constitui lugar de dissipao de tempo edinheiro, de consumo de lcool e fumo, permitindo que mundos distintos seencontrem lado a lado e, portanto, que o poeta/artista freqente um lugar sem, contudo,ocup-lo, porque no possui status-quo. a paratopia sendo transposta para o interiorda obra; , pois, a paratopia constituindo o contedo da prpria obra.

    Essa instabilidade espacial e social leva o escritor, poeta ou artista, segundoMaingueneau (2001a, p. 36) a identificar-se com todos aqueles que parecem escapars linhas de diviso da sociedade: bomios, mas tambm judeus, mulheres,palhaos,aventureiros, ndios da Amrica..., de acordo com as circunstncias (destaquenosso), como se verifica na capa do fanzine acima referido, reproduzida na figura 4.

    At aqui, constatamos a dupla paratopia do fanzineiro, quer numa dimensoespacial, quer numa dimenso social. No entanto, nosso objetivo ainda postularque se possa falar, alm de posio paratpica e lugar paratpico, em dispositivoparatpico. Defendemos que o dispositivo enunciativo fanzine um dispositivoparatpico e, como tal, traria inscrita na sua materialidade, alm de umposicionamento contra os valores institudos pela ideologia dominante, um etos deum enunciador revolucionrio, contestador, inovador, e, pois, a sua condioparatpica. A paratopia no estaria, portanto, somente associada a lugar, posio,personagem ou tempo12, poderia estar tambm associada ao dispositivo enunciativoque marcasse essa situao. No estamos propondo que haveria, por outro lado,dispositivos tpicos, mas sim que haveria formas distintas de revelar essa paratopia:marcada e no marcada.

    12Sobre paratopia temporal ou paracronia, conferir Costa (2004, p. 325-351).

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    A paratopia mostrada e no-marcada (numa aluso ao que prope Authier-Revuz, 1990, para a questo da heterogeneidade enunciativa) seria constitutiva dedispositivos enunciativos com circulao garantida por serem reconhecidos meiosde difuso cultural (da cultura da ideologia dominante): o livro (aqueledisponibilizado nos locais destinados comercializao de produtos), o jornal e arevista (da grande imprensa, ou digamos, da imprensa padro), o CD produzido nasgravadoras que detm o monoplio da produo musical, entre outros. E por queseriam paratpicos, mesmo assim? Porque, no caso do material a que nos referimos,

    continuariam sendo discursos produzidos por escritores, poetas, artistas, todosparatpicos, como vimos. Alm do que as tribos se diferem pela paratopia, pelodispositivo de que lanam mo.

    Figura 4 Capa do fanzineAs flores mortas do palhao(n 1).

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    J a paratopia mostrada e marcada seria constitutiva de dispositivosenunciativos alternativos, tais como o fanzine, a revista e o jornal da imprensaalternativa, ou qualquer outra publicao underground, e, ainda, o CD independente,desvelando a pertinncia irredutvel desses escritores, poetas, artistas annimos sociedade que os rejeita e, ao mesmo tempo, os inclui. A ancoragem dessa paratopiamarcada seria o prprio dispositivo, estigmatizado muitas vezes por trazerdenunciadas as condies precrias em que foi produzido (legibilidade comprometidapelas tcnicas mais populares de impresso, por exemplo), que, de certa forma,

    acabam por contribuir com a significao que o discurso busca impor.O fanzine seria ento um dispositivo enunciativo que desvelaria sua dimenso

    pluriparatpica: a paratopia espacial, posto que o escritor e/ou poeta de fanzines,pertencendo a uma tribo, enunciaria de um lugar no reconhecido, um lugarfronteirio; a paratopia social, porquanto sua atividade de escritor, diferentementedas atividades profissionais tpicas (MAINGUENEAU, 2001a, p. 39), nopossibilitaria uma posio assegurada pelas regras do aparelho social; e a paratopiado dispositivo, uma vez que no pertenceria ao mbito dos dispositivos que gozamde circulao e difuso privilegiadas e asseguradas pelas instncias constitudas.

    4 GUISA DE CONCLUSO

    Neste artigo, procuramos analisar a relao entre paratopia e dispositivoenunciativo. Partimos, inicialmente, da validao de se tomar o fanzine no como gneroou suporte, mas sim como dispositivo enunciativo, uma vez que pretendamos nodeixar de abordar, ainda que superficial e indiretamente, algumas categorias da Anlisedo Discurso, como posicionamento e etos, mas, sobretudo, de considerar a paratopia.

    Nossa investigao nos permitiu evidenciar que o fanzine, assim como outrosdispositivos marginais, desvela, alm de um posicionamento do autor em relao estrutura

    que controla e manipula, os meios de (re)produo cultural, uma situao paratpicaplurivalente, evidenciada tanto pela paratopia da posio do escritor, do lugar doenunciador, quanto marcada pelo investimento na marginalidade do prprio dispositivo.

    Assim como h escritores, e como tal paratpicos, que tm um espaoreservado, assegurado, para a materializao do seu discurso, de certa formaautorizado: o romance, a antologia (livros); por outro lado, h outros a quem no permitido habitar esse territrio particular, prprio dos escritores laureados: osfanzineiros, por exemplo, que tm a materialidade enunciativa atravessada pela batalhaque travam na reproduo e difuso do seu discurso.

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    Acreditamos, por outro lado, que investir em um novo dispositivo e,conseqentemente, em um novo meio de difuso significa contribuir para adesestabilizao dos dispositivos e meios institudos, que tm lugar de certa formareservado, numa sociedade que preserva os valores daquilo que considera aceitvel;significa, ainda, reivindicar reconhecimento, ainda que fora dos padresconvencionais, modificar as relaes de poder; significa, em ltima instncia subverter,e por que no?, a ordem n(d)o discurso.

    Para finalizar, gostaramos de nos reportar a Orlandi (2002, p. 39), quando

    afirma que no h, desse modo, comeo absoluto nem ponto final para o discurso,no caso, o nosso. Hoje, o fanzine pode ser considerado paratpico marcado, amanhno, sobretudo se considerarmos as inscries histricas pelas quais a obra literriapassou nas mais distintas pocas da nossa sociedade; sobretudo se considerarmosque a representao de um discurso (em gneros, dispositivos, mdias) dependeinexoravelmente de posies histricas e socioculturais a que toca viver o escritor, oartista, o poeta.

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    Recebido em 13/08/05. Aprovado em 18/10/05.

    Title: Fanzine: the paratopic polyvalenceAuthor: Aurea Suely ZavamAbstract: This paper describes a research in which the relation between paratopia and utteranceis discussed. Based on Discourse Analysis, the research focuses on literary fanzines, indicatingthose elements that would assure the paratopy of such a device. It is assumed that literary devicesconsidered marginal or independent, as the fanzine, for example, would present a paratopicalcondition as constitutive of its discourse.Keywords: paratopy; utterance; fanzine; discourse.

    Ttre: Fanzine: la plurivalence paratopiqueAuteur: Aurea Suely ZavamRsum: Cet article a comme objectif discuter la relation entre la paratopie et le dispositif nonciatif.Fonde dans les perspectives thoriques de lAnalyse du Discours, la recherche prend commeobjet de lanalyse des fanzines littraires, apportant des lments qui assureraient la paratopie dece dispositif. On part du prsuppos qui considre que des dispositifs considers marginaux, ouindpendants, comme le fanzine. par exemple, apporteraient linscription de sa conditionparatopique comme constitutive de son discours.Mots-cls: paratopie; dispositif nonciatif; fanzine; Discours.

    Ttulo: Fanzine: la plurivalencia paratpicaAutor: Aurea Suely ZavamResumen: Este artculo relata una investigacin en la que se discute la relacin entre paratopa ydispositivo enunciativo. Desde la teora del Anlisis del Discurso, la investigacin toma fanzinesliterarios como objeto de anlisis, poniendo de relieve elementos que garantizaran la paratopa deese dispositivo. Se parte del presupuesto de que dispositivos considerados marginales oindependientes, como el fanzine, por ejemplo, llevaran inscripta su condicin paratpica comoconstitutiva de su discurso.Palabras-clave: paratopa; dispositivo enunciativo; fanzine; discurso.