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Aurea Zavam Nukácia Araújo (Organizadoras) Anais Diacronia e sincronia: diálogos possíveis ISBN 978-85-7826-178-8 Universidade Federal Universidade Estadual do Ceará do Ceará Fortaleza – CE

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Aurea Zavam Nukácia Araújo

(Organizadoras)

Anais

Diacronia e sincronia: diálogos possíveis

ISBN 978-85-7826-178-8

Universidade Federal Universidade Estadual do Ceará do Ceará

Fortaleza – CE

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CHRONOS – I Colóquio Nacional de Língua, Documentos e História 05 a 07 de junho de 2013

Universidade Federal do Ceará Tema: Diacronia e sincronia: diálogos possíveis

ANAIS

Aurea Zavam Nukácia Araújo

(Organizadoras)

ISBN 978-85-7826-178-8

Universidade Federal Universidade Estadual do Ceará do Ceará

Apoio:

Fortaleza – CE

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EXPEDIENTE Revisão geral

Aurea Zavam Revisão de texto

Aurea Zavam Eliabe Procópio Projeto editorial

Grupo de Pesquisa Tradice www.tradice.ufc.br Projeto gráfico, diagramação e capa

Maria Edineuda Teixeira Pinto

C532a Chronos: Colóquio Nacional de Língua, Documentos e História (1.:2013: Fortaleza, CE)

Anais do Chronos: I Colóquio Nacional de língua, documentos e

história – Tema: Diacronia e sincronia: diálogos possíveis. 05 a 07 de junho de 2013./ Organização de Áurea Zavam e Nukácia Araújo. – Fortaleza: EDUECE: 2013.

342p. ISBN 978-85-7826-178-8

1. Linguística- Anais. 2. Sociolinguística. 3. Linguística Aplicada -

colóquio. I. Título. II. Organizadoras (Org.). III. Zavam, Áurea (Org.). IV. Araújo, Nukácia (Org.).

CDD: 410 CDU: 80

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CHRONOS – I Colóquio Nacional de Língua, Documentos e História

Comissão Coordenadora: Profa. Dra. Aurea Zavam (UFC) Profa. Dra. Nukácia Araújo (UECE) Prof. Dr. Expedito Ximenes (UECE) Prof. Dr. Júlio César Rosa Araújo (UFC)

Comissão Científica: Alessandra Castilho Ferreira da Costa (UFRN) Antonia Dilamar Araújo (UECE) Emília Peixoto Farias (UFC) Francisco Alves Filho (UFPI) Gleudson Passos Cardoso (UECE) Hebe Macedo de Carvalho (UFC) Lucimar Bezerra Dantas da Silva (UERN) Lucrécio Araújo de Sá Junior (UFRN) Marco Antonio Martins (UFRN) Maria Cristina de Assis (UFPB) Marlos de Barros Pessoa (UFPE) Mônica Magalhães Cavalcante (UFC) Roseane Batista Feitosa Nicolau (UFPB) Valéria Severina Gomes (UFRPE)

Comissão Organizadora: Aurea Zavam Adriana Marly Sampaio Josino Adson Rodrigo da Silva Pinheiro Anna Paula Sales Ferreira Braga Eleonora Figueiredo Correia Lucas de Morais Eliabe Procópio José Araújo Chaves Júnior Karina Gomes Sena Katharine Silva de Oliveira Soares Hildenize Andrade Laurindo Maria Edineuda Teixeira Pinto Mayara Winnie de Sousa Lima Suellen Fernandes dos Santos Suyanne Monte Costa Ticiane Rodrigues Nunes Ticiane Rodrigues Walter de Carvalho Braga Junior

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Comissão de Apoio: Alexandre Vasconcelos Ana Kercia Falconeri Felipe

Angelyna Rocha Mello Beatriz Barroso Lima

Francisca Ângela de Souza Geana Barbosa Lauristela Rodrigues Lima Rafaelly Menezes Chaves Renata Denipoti Cavalcante e Silva Sonia Umo Forbs Djassi Thaisnara de Matos Alves Wagner Rodrigues Loiola

Coordenadores de GT: Andréa Feitosa Adson Rodrigo Pinheiro Iray Almeida Julianne Larens Karina Gomes Sena Sayonara Costa Ticiane Nunes Walter de Carvalho Braga Junior

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SUMÁRIO Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .06 GT 1: Variação/Mudança da língua e dos textos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07 GT 2: Edição e Crítica textual . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .150 GT 3: História e Documentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182 GT 4: Linguística de corpus e Linguística Computacional. . . . . . . . . . . . . . . . . . .318

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APRESENTAÇÃO

É com satisfação que trazemos a público os Anais do Chronos – I Colóquio Nacional de Língua, Documentos e História. O Chronos foi uma iniciativa dos grupos de pesquisa Tradice e Praetece que, em uma profícua parceria com o Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL) da UFC e o Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PosLa) da UECE, promoveram a discussão e o intercâmbio de pesquisas voltadas às relações entre lingua, texto e história.

Com o tema Diacronia e sincronia: diálogos possíveis, o Chronos reuniu interessados e pesquisadores demais de 40 instituições, entre universidades federais, estaduais, institutos federais e escolas de educação básica, de 12 estados, além do Distrito Federal e do Ceará (capital e interior), a saber: Universidade de Brasília (UnB); Universidade Federal de Goiás (UFG); Universidade Federal do Pará (UFPA); Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Universidade Federal de Alagoas (UFAL);Universidade do Estado do Mato Grosso (UEMT); Universidade Estadual do Piauí (UESPI); Universidade do Estado de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de São Paulo (UNESP); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE); Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS);Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),Pontifícia Universidade de Minas Gerais (PUC-Minas), Universidade Vale do Rio Doce (Univale) e Instituto Federal Norte de Minas Gerais (IFNMG); Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade do Estado do Ceará (UECE), Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC) e Universidade do Vale do Acaraú (UVA).

O Chronos, realizado de 05 a 07 de junho de 2013, em Fortaleza, contou com4 mesas-redondas, com duas conferências (uma de abertura e outra de encerramento), 4 grupos de trabalhos (pelos quais se distribuíram as 95 comunicações das 102 inscritas). Desses trabalhos, 28encontram-se publicados nestes anais, os quais abrangem multidisciplinarmente Linguística, Linguística Aplicada, Linguística Histórica, Filologia, Sociolinguística, História, Linguística de Corpus, Linguística Computacional, Educação, e demais áreas que tratam de questões relacionadas a história da língua; constituição, mudança e permanência dos gêneros; tradições discursivas; edição de textos e crítica textual; história social; linguística de corpus e programas computacionais que subsidiam análise de corpora linguísticos, textuais;formação de professores e ensino de língua portuguesa, entre outras.O evento favoreceu não sósocialização de pesquisas acadêmicas sobre as relações entre mudança da língua e mudança de textos, como também a difusão de estudos sobre tradições discursivas, edição de documentos antigos e crítica textual, e ainda o reconhecimento da documentação como patrimônio histórico e como método de estudo/pesquisa.

O nosso desejo é que o Chronos possibilite outros encontros de modo a conquistar ainda mais aconfiança dos pesquisadores, das instituições e dos órgãos de fomento. Agradecemos à Capes pelo incentivo dado por meio do PAEP, às instituições promotoras do evento (UFC e UECE), aos membros do grupos de pesquisa Tradice (UFC) e Praetece (UECE) pelo grande apoio, e, sobretudo, aos pesquisadores participantes do Chronos, sem os quais o evento não teria alcançado o reconhecido êxito.

As organizadoras Fortaleza, 05 de março de 2013.

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GT 1:Variação/Mudança da língua/dos textos A VALORIZAÇÃO DO CEARÊS ATRAVÉS DA COMUNIDADE “SURICATE SEBOSO”

Antonia Elane de Souza Gomes Universidade Federal do Ceará (UFC – Virtual) Margarida Pontes Timbó Universidade Federal do Ceará Resumo Este estudo apresenta caráter teórico-bibliográfico fundamentado em autores como Bagno (1994), Cunha (1964), Dalefi e Pamplona (2008), entre outros interessados pela variação e dinamicidade do português brasileiro. A metodologia está associada à leitura crítica de sociodialetos múltiplos do Nordeste, em especial, do Estado do Ceará, colecionados em mídias diversas, como as redes sociais, dentre elas, o Facebook. A partir da análise crítica da Comunidade/Página do Facebook denominada “Suricate Seboso”, este trabalho procura mostrar a relevância do papel das redes sociais em contribuir, mesmo que, inconscientemente, para a valorização de experiências socioculturais do grupo de falantes que constituem as variações linguísticas nordestinas. É possível observar que, ao longo do tempo, a perspectiva da linguagem nordestino-cearense tem seguido fortes mudanças culturais, refletindo a postura social oposta ao preconceito linguístico visto em tempos passados. Tal fator foi responsável por muitos estigmas gerados sobre os dialetos e falares nordestinos, sobretudo, o “cearês”, avaliado por alguns como linguajar sem prestígio ou fora dos padrões da norma culta. Assim, a partir de movimentos ocasionados nas redes sociais que provocam grande repercussão sociocultural como, por exemplo, a “Comunidade/Página Suricate Seboso”, podemos notar acentuada apreciação do falar nordestino, de sua cultura e de todos os aspectos sociais que os cerca. Ao associar dados do português brasileiro às atividades cotidianas dos falantes, especialmente, os que se utilizam das redes sociais, percebemos o modo como estes falantes, de hoje, lidam com o “Cearês” de ontem, redimensionando a língua falada. Os dados parciais desta pesquisa apontam para manifestações sociais direcionando a cultura, o regionalismo e a história do português brasileiro. Desse modo, acabam refletindo a fluidez criativa trazida pela língua revelada no humor nordestino-cearense. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com o intuito de discutir a contribuição da variação/mudança da língua portuguesa

e de seus textos associado à contemporaneidade, sobretudo, ao movimento crescente das

redes sociais, este trabalho objetiva descrever e analisar especificamente as relações

sociolinguísticas em contraposição ao preconceito linguístico suscitado na página

Comunidade “Suricate Seboso” da rede social Facebook.

Avesso ao que até pouco tempo era observado na nossa região nordestina, a referida

página da web trouxe, através do humor, muitas reflexões pertinentes acerca das

particularidades relacionadas ao “preconceito linguístico”. Essas especificidades ainda

estão fortemente estabelecidas, especialmente, nas regiões do Brasil que se consideram

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melhores estruturadas culturalmente e economicamente em detrimento daquelas outras

regiões de menor poder aquisitivo.

Em pesquisas sociolinguísticas é comum examinar que falantes regionais se sentem

desconfortáveis em relação à linguagem que utilizam, confrontando com a língua

normativa acham seus dialetos feios, mal falados, mal escritos, mal manuseados, assim

como afirma Pessoa1 em sua pesquisa Sociolinguisitica aplicada ao Ensino/Aprendizagem

da língua portuguesa:

Nesses depoimentos verifica-se que, muitas vezes, o estudo e o ensino da nossa Língua têm-nos pregado peças, no mínimo, maléficas. Somos, desde muito cedo, levados a acreditar que nossa fala é feia, desagradável, errada. E o dizer “errado” nos coloca, sempre, na posição de humilhados, desprestigiados, desadequados para o nosso meio.

Tal atitude nos deixa um tanto descaracterizados, com o conceito de identidade

linguística que todas as regiões do país devem preservar, indefinido por insegurança ou

receio.

Em contrapartida, o nordestino, em especial o cearense possui um caráter

irreverente reconhecido nas peripécias artísticas, em especial no humor, que utiliza para

sobressair-se e destacar-se nacionalmente, o que contribui para pensarmos as relações que

regem a dinamicidade do dialeto cearense, bem como dos textos divulgados em mídias

digitais nesse falar específico.

Assim sendo, a página “Suricate Seboso” chamou a atenção do público de forma

particular. Os próprios internautas, falantes do português brasileiro e do dialeto cearês

nordestino acabaram divulgando as particularidades de uma comunidade de falantes que

sobrevive no contexto socioeconômico da atualidade.

2 METODOLOGIA

Este estudo de caráter teórico-bibliográfico baseou-se em autores como Bagno

(1994), Cunha (1964), Dalefi e Pamplona (2008) dentre outros interessados pela variação

e dinamicidade do português brasileiro, que reafirmam notas socioliguísticas em

comprovação aos dados desta pesquisa, e norteiam os estudos no recorte sociocultural

dialético em substituição do preconceito linguístico imposto por uma postura de

propagação diatópica.

1 UNIR-Campus de Vilhena – DELL-Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários Endereço para correspondência: Av. Major Amarante, 4085 - Apto. 01 - Prédio do Boticário - 76980-000 – Centro – Vilhena –Rondônia – Brasil <[email protected]>. Acesso em 01 ago. 2013.

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Segundo Bagno (1994, p. 12), preconceito linguístico é: “fruto de uma visão de

mundo estreita, inspirada em mitos e superstições que tem como único objetivo perpetuar

os mecanismos de exclusão social.” Essa visão é compartilhada pelos linguistas que ao

mesmo tempo intentam combatê-la, assim como Marcos Bagno, a sociolinguísta Marta

Scherre (2005) conceitua esse tipo de preconceito, como julgamento depreciativo,

desrespeitoso, jocoso e, consequentemente, humilhante da fala do outro ou da própria fala.

A metodologia associou-se à leitura crítica de sociodialetos do Estado do Ceará, a

partir da análise crítica da Comunidade/Página do Facebook denominada “Suricate

Seboso”. Para análise foram coletadas cento e três (103) timelines2, que possibilitou dividir

a página em sete critérios de postagem, priorizadas na função dialética: os costumes

trazidos pelos antigos, a linguagem infantil, os anseios adolescentes, o tratamento familiar,

o ambiente escolar, os comportamentos atuais e os estilos musicais pertinentes ao estado

federativo.

Com base nessas informações do conjunto sistemático estudado, foi possível auferir

que a tendência principal da comunidade/página é o humor, perpetuando a conquista da

liberdade linguística do povo nordestino/cearense através da interpretação de um

mamífero africano denominado suricata, suricato ou suricate.3

Ao examinar as páginas observamos duas atitudes singulares, a primeira sobre a

escolha do animal em representar o nordeste, e a segunda, sobre a rápida identificação do

cibernauta não como símbolo em si - suricate, mas como o continente desses memes –

representação regional.

O mamífero, por conseguinte, não possui correlação com o nordeste, sendo utilizado

despretensiosamente pelo idealizador da comunidade/página, Diego Oliveira Jovino,

exclusivamente pelo efeito humorístico que o animal causa em suas diversas imagens

disponibilizadas facilmente na internet, que se assemelha a humanos, de forma geral,

sorrindo, gritando ou chorando.

O sucesso imediato da página provocado pela interação dos apreciadores é causado

pela identificação da maneira descontraída de como se fala no ceará, nas junções de

palavras, nos cortes de alguns fonemas, em erros propositais da gramática da nossa língua

aliados a um jeito engraçado que é utilizado para transformar o que era preconceito em

manifestação de alto apreço pela linguagem nordestina/cearense.

2 Memes: unidades de informação com capacidade de se multiplicar, através das ideias e informações que sepropagam de indivíduo para indivíduo. 3 Mamífero, nativo do deserto de Kalahari, sul da África.

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Como documenta Bagno (1994, p.35), “Todo falante nativo de uma língua sabe essa

língua. Saber uma língua no sentido científico do verbo saber significa conhecer

intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela”. O

sucesso da página e do reconhecimento dela se dá pelos falantes, que acordam o que é

tratado, priorizando a forma com se fala e o que se fala em nossa região com tamanha

identificação.

Portanto, ao analisarmos a página reconhecemos cada segmento linguístico e o

relacionamos com a realidade social do cearense enquanto comunidade ao nível popular

que se relacionam - social, econômico e até climático, que marca e caracteriza propriedades

do falante.

3 ANÁLISE DAS IMAGENS

Entre as muitas expressões regionais que mais causam identificação atrelada ao

humor da página é o “armaria nãm”, seguido de “corra linda da mãe” e “bé isso, mah”,

postagens diversas utilizando-se dessas expressões têm grande alcance; em média, são

mais de 50 mil compartilhamentos4.

Tais recortes linguísticos ultrapassaram as fronteiras regionais e até nacionais,

proporcionando compartilhamentos múltiplos, pois a internet, em especial a mídia digital,

possui abrangência imediata e possibilita próspera identificação do nordestino cearense

situado em diversas partes do mundo.

Figura 1 – Disponível em: <https://www.facebook.com/suricateseboso?fref=ts>.

4 Mecanismo do facebook que permite propagar instantaneamente em diversas dimensões arquivos como os “memes” da página.

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A figura acima foi uma das imagens de capa da página. Geralmente a foto da capa

sintetiza o conteúdo da comunidade revelando o intuito desta. Como podemos observar, os

símbolos nordestinos – mandacaru, chapéu de cangaceiro, jumento, viajantes, caçadores,

vaqueiros – se misturam com as imagens de suricates em conjunto.

A imagem a seguir retrata o costume familiar do almoço dos fins de semana, em que

os pais levam os filhos para visitar os avós. Com humor, a criança é monitorada pela mãe e

protegida pela avó. As expressões “Peste” assim como “Danado” caracterizam a criança

inquieta, hiperativa e curiosa. O verbo “bulir” tem o sinônimo de “mexer” e “dexubixim” faz

a junção de palavras com a mesma intenção de “deixe o menino”, já que o termo “bixim”

nesse caso não é pejorativo, é carinhoso. E “fia” é a abreviação linguística de filha, também

carinhosamente.

Figura 2 – Disponível em <https://www.facebook.com/suricateseboso?fref=ts>

Na próxima figura também há referência a um costume local, o casamento.No

interior do estado, principalmente, casar é um peso social positivo para as famílias; designa

regras de bons costumes e boa conduta. Levado para o humor, “moça véa vitalina” é

utilizado para referir-se à moça que não contraiu um casamento.

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Figura 3 – Disponível em: <https://www.facebook.com/suricateseboso?fref=ts>

Há, nas figuras seguintes, expressões que não transmitem as mesmas ideias fora do

contexto local: “muié” é a representação de mulher e “pa frente” possui o significado

próprio de, geralmente, meninas que estejam se destacando em certas ocasiões de inibição,

que estejam adiantadas no tempo.

Figura 4 – Disponível em <https://www.facebook.com/suricateseboso?fref=ts>.

Na seção “tia” da escola, demonstra-se o costume de tratar professora por tia na

disposição de palavras com sentidos peculiares cearenses explicando o significado

atribuído. “Amarelo queimado”, como a figura mostra, é a atribuição da cor laranja no

cearês.

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Figura 5 – Disponível em: <https://www.facebook.com/suricateseboso?fref=ts>.

A página cativa o internauta, pois mostra os mecanismos que verdadeiramente são

usados para retratar o dialeto cearense falado por alguns usuários do português brasileiro.

Para Dalefi e Pamplona (2008, p.36)“o usuário, portanto, é o criador e estruturador de sua

expressão. O falante, na sua interação com o outro, realiza os fonemas da língua,

adaptando-os às peculiaridades das suas necessidades expressivas.”

Na figura seguinte, temos a recuperação do clima árido nordestino, bem como a

imagem do filtro de barro tão reconhecida em casas do interior do Ceará:

Figura 6 – Disponível em:<https://www.facebook.com/suricateseboso?fref=ts>.

Dadas às razões, o universo linguístico representado pela página propaga-se

positivamente em escala múltipla, sobretudo porque incorpora aspectos socioculturais do

falar cearense. Nesse sentido, por causar polêmicas e grande repercussão positiva nos

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usuários do português, a concepção linguística do cearês acaba fortalecendo o sistema

sócio-geográfico e disseminando a noção de preconceito linguístico.

4 COMO COMBATER O PRECONCEITO LINGUÍSTICO?

A história do português brasileiro é escrita a partir de uma colonização manipulada,

por Portugal que impôs sua cultura e sua língua aos nativos – índios já existentes naquele

espaço. Com o crescimento do país, influenciado por outras culturas, o Brasil trouxe

consigo outros traços culturais a serem absorvidos, acrescidos posteriormente aos dos

imigrantes Europeus e Japoneses.

A língua materna consiste na expressão genuína e cultural das relações sociais de

diversas vertentes. A um país tão grande e rico em diversidade cultural, não se pode

controlar seu fluxo linguístico, muito menos impor certo padrão normativo.

A sociolinguística, um dos segmentos da linguística, estuda a língua como fenômeno

social e divide os movimentos internos e externos pelas variações geográficas ou

diatópicas, socioculturais ou diastráticas, e diafásicas:

O espaço social deixado vago, pela inexistência de uma política linguística oficial, de âmbito nacional, acaba sendo ocupado, infelizmente, por uma política linguística difusa confusa e retrógada, justamente aquela praticada de modo repressor, persecutório e cientificamente desinformado pelas diversas instancias da sociedade (BAGNO, 1994, p. 131).

Existem diversas hipóteses para a noção de preconceito nordestino, a primeira delas

estaciona-se no movimento interno que a língua desencadeou através de seus falantes que

promoveram a migração para as grandes metrópoles em busca de condições econômicas

melhores da que o seu lugar de origem poderia fornecer, até mesmo pela problemática da

seca.

Por não existir nenhum esclarecimento acessível a todas as camadas sociais como

uma política linguística social, esse comportamento foi incentivado e propagado:

[...] o que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: a gramática normativa e os livros didáticos (BAGNO, 1994, p. 13).

Muitos absurdos já foram retratados em muitos meios de comunicação. A tualmente

com as redes sociais em evidência, tem-se discutido a liberdade de expressão e a falta de

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informação que fazem com que pessoas manifestem seu preconceito com mais veemência,

conforme diversos casos relatados na imprensa5.

Entendemos, portanto, que o preconceito linguístico é o julgamento depreciativo

contra determinadas variedades linguísticas, causado pelo sotaque das regiões do país e

pelo jeito informal de falar a língua, surgido pela propagação de informações incorretas e

indevidas sobre assuntos de ordem social, geográficas e expressivas. O preconceito

linguístico reflexo do preconceito social acaba segregando ainda mais a sociedade.

Sabemos que a língua não tem a qualidade estática, ela sofre mudanças emanadas de

diversas vertentes – comportamental, histórica, social, regional – mesmo em locais

regionalmente específicos. Logo, a diversidade linguística manifesta-se de forma dinâmica.

As mudanças de variedade geográfica interferem diretamente na sociedade, desde as

características do indivíduo que configuram o sistema linguístico.

Independentemente do espaço regional aos quais pertençam, os falantes são

carregados de experiências e processos de maturação quecompõem, juntamente com sua

identidade, as formas de expressão idiomática, fatores que exprimem particularidades de

sua personalidade.

Contudo, essas alterações expressivas em sua totalidade não são instrumentos de

roubo, deturpação ou subtração da língua portuguesa. Pelo contrário constituem

acréscimo, riqueza e soma a unidade superior da língua, como assevera Cunha sobre a

manifestação sociolinguística:

Nenhuma língua permanece a mesma em todo o seu domínio e, ainda num só local, apresenta um sem-número de diferenciações. [...] Mas essas variedades de ordem geográfica, de ordem social e até individual, pois cada um procura utilizar o sistema idiomático da forma que melhor lhe exprime o gosto e o pensamento, não prejudicam a unidade superior da língua, nem a consciência que têm os que a falam diversamente de se servirem de um mesmo instrumento de comunicação, de manifestação e de emoção (CUNHA, 1964, p.39).

Com relação ao nordeste pode-se retratar um movimento histórico na luta contra o

preconceito infundado, que, já se diz “preconceito”, por não revelar um estudo detalhado,

mas que lança de mão de uma crítica desfavorável modulada por opiniões sem

racionalidade.

5 Por exemplo, a estudante de Direito, Mayara Petruso foi punida pela Justiça por proferir comentários preconceituosos contra nordestinos em redes sociais. Recentemente, com a polêmica advinda da chegada dos médicos cubanos no Brasil, a jornalista, do Rio Grande do Norte, Michele Borges manifestou ideias preconceituosas semelhante a da estudante de Direito, comparando as médicas cubanas a empregadas domésticas.

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Ao enfrentar a manipulação ideológica e irracional de privilegiar linguisticamente

determinada manifestação sociolinguística em detrimento da vulgarização de outras, o

combate ao preconceito linguístico, representado pelo cearês, conforme salientamos na

pesquisa, mostra-se visível pelas páginas e figuras que compõem a comunidade do

facebook “Suricate Seboso”.

Entre o mau uso das opiniões expressas nas redes sociais sobre o movimento

linguístico, em especial do Nordeste, a referida página da web baseou-se em movimentos

criativos contrários dessa nova ferramenta para combater pacificamente a noção de

preconceito linguístico, sobretudo, apoiado no humor, na identificação com os costumes

culturais e no fortalecimento da identidade nordestino/cearense. Acreditamos que tal

projeto seja extremamente relevante, pois conforme indica o pesquisador Marcos Bagno:

Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte tendência a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, a mostrar que eles não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa, e que são apenas os resultados da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica (BAGNO, 1994, p.48).

Através da mudança de comportamento proporcionada, sutilmente, pela

comunidade “Suricate Seboso”, observamos a boa repercussão e aceitação da página,

especialmente, de forma midiática. Os comentários negativos expressos em relação à

comunidade deram espaço ao incentivo das propriedades culturais e das modificações em

larga escala.

Além disso, como o sujeito nordestino, em especial, o cearense apresenta maior

destaque humorístico sócio e culturalmente, esse aspecto também foi expresso de forma

inteligente. Como bem notamos as piadas culturais, costumeiramente, eram criadas sobre

um tipo específico de cearense, recriando seu sotaque exageradamente arrastado, marca

principal de chacota e de insultos devido ao grande número de vocábulos específicos da

região Nordeste.

Muitos fatores de ordem cultural e social não foram determinantes para desfazer

esta noção de preconceito linguístico como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e

social do Estado do Ceará, os muitos atrativos turísticos internacionais, filhos ilustres

reconhecidos nacional e internacionalmente pelas conquistas intelectuais.

Assim sendo, de onde menos esperávamos, como, por exemplo, uma rede social,

vemos um humor inteligente que procura de forma suave cativar os falantes do português

brasileiro, apresentando a relevância do dialeto cearês.

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A página da web “Suricate Seboso” chamou atenção de um público inesperado e

diverso. Os internautas, isto é, aqueles sujeitos que objetivam relacionar-se entre si,

fizeram questão de perpetuar positivamente a iniciativa da página que interpreta

irreverentemente os muitos falares das gerações passadas e atuais dos cearenses.

Percebemos assim que, após o surgimento da referida comunidade da web, o fluxo

das comunicações enriqueceu-se de “cearês”, antes defendido timidamente por

minidicionários específicos, alguns facilmente encontrados na internet, que levavam certas

expressões ao entendimento dos falantes do português brasileiro de forma geral.

Atualmente, a página “Suricate Seboso” conta com um milhão de simpatizantes,

enquanto fenômeno midiático inspirou outros movimentos semelhantes. Além disso,

encontramos diferentes manifestações linguísticas positivas defendendo e propagando o

cearês.

Desse modo, entendemos que muito ainda há por fazer para desmistificarmos esse

preconceito impróprio que vulgariza e menospreza o prestígio de um falar genuinamente

brasileiro, como compreendemos o cearês.

Com o propósito de analisar, brevemente, a iniciativa da página “Suricate Seboso”

como movimento expressivo da linguagem do Estado do Ceará, salientamos a forma

criativa e dinâmica da valorização, não apenas da linguagem, mas também dos costumes

cearenses refletidos na disposição dos diálogos apresentados nas figuras selecionadas para

este estudo.

Portanto, as ideias apresentadas neste trabalho procuram identificação com o modo

pelo qual estes falantes, ou melhor, os internautas, interagem com a variação da língua

portuguesa na tentativa de superar certos desequilíbrios em torno da relação hierárquica

entre um dialeto e outro, através de textos coesos e referenciais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de movimentos ocasionados nas redes sociais percebemos grande

repercussão sociocultural como, por exemplo, a “Comunidade Suricate Seboso”. Assim,

pudemos notar acentuada apreciação do falar nordestino, de sua cultura e de todos os

aspectos sociais que os cerca.

Ao analisarmos sucintamente como se processa a socialização do dialeto “cearês”

nas mídias digitais, buscamos mostrar o papel das redes sociais para a valorização de

experiências socioculturais do grupo de falantes que constituem as variações linguísticas

nordestinas.

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Através de um estudo crítico atrelado à leitura teórica das representações

sociodialéticas múltiplas do Nordeste, em especial do Ceará, destacamos a relevância dos

dados do português brasileiro incorporados às atividades cotidianas dos falantes,

especialmente, aqueles que se utilizam das redes sociais.

Nesse sentido, percebemos o modo como os falantes de hoje lidam com o “cearês”

de ontem, isto é, redimensionando a língua falada anteriormente, atualizando-a. Os dados

parciais desta pesquisa apontam para manifestações sociais direcionando a cultura, o

regionalismo e, de certo modo, a história do português brasileiro.

Portanto, este debate acabou refletindo sobre a fluidez criativa trazida pela língua

revelada no humor nordestino-cerarense. A pesquisa apontou um fluxo espontâneo que, com o

dinamismo potencial das redes sociais, ganhou notoriedade não apenas no Estado do Ceará ou

no Nordeste, mas em outras regiões do Brasil, determinantes de uma postura preconceituosa e

manipuladora sobre a norma da língua portuguesa considerada não padrão.

REFERÊNCIAS

BAGNO, M. Preconceito linguístico – o que é, como se faz.51. ed. São Paulo: Loyola, 1999.

CUNHA, C. F. Uma política do idioma. São Paulo: São José, 1964.

DALEFI, R.; PAMPLONA, R. Gramática e Linguística – história, regras, e usos da língua Portuguesa. São Paulo: Moderna, 2008.

FONSECA, H. L. E. Aspectos sociopolíticos subjacentes ao preconceito linguístico. Estudo de casos no Brasil. 2009. 376 f. Tese (Doutorado em Filologias Galegas e Portuguesas) – Faculdade de Filologia, Universidade de Santiago de Compostela - Espanha, 2009. Disponível em:<http://dspace.usc.es/bitstream/10347/3017/1/9788498876093_content.pdf>. Acesso em01 ago. 2013.

GADELHA, M. Dicionário Cearês – Termos e expressões populares do Ceará. São Paulo: Clio, 2010.

PESSOA, Maria do Socorro. Sociolinguística aplicada ao ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa. Disponível em:<http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/slp15/01.pdf.Acesso em01 ago.2013.

SCHERRE, M. M.P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

OS ITENS ANTES, AGORA E DEPOIS E SEUS USOS NOS GÊNEROS ACADÊMICOS Carla Daniele Saraiva Bertuleza Universidade Estadual do Rio Grande do Norte João Bosco Figueiredo Gomes Universidade Estadual do Rio Grande do Norte

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Resumo É sabido que as gramáticas tradicionais apresentam os advérbios como uma classe fechada cujos elementos têm características de circunstanciadores, como tempo, modo, dúvida, intensidade, entre outros. Essa constatação mostra que se trata ainda de uma classe pouco explorada diante da sua complexidade no âmbito funcional e cognitivo, pois é uma classe heterogênea que não se prende somente a um núcleo, mas também ao conteúdo semântico-discursivo da oração. Dessa forma, este trabalho busca mostrar que os itens antes, agora e depois assumem novos usos, diferentes dos usos prototípicos como advérbio nos gêneros acadêmicos. Para dar conta desse objetivo, o estudo fundamenta-se na Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), na perspectiva que abriga o paradigma da gramaticalização, observando, a partir de dados sincrônicos, indícios da trajetória de mudança e os processos pelos quais esses itens passam. Foram selecionados três gêneros acadêmicos: o Artigo Acadêmico, a Dissertação de Mestrado e a Tese de Doutorado, de onde foram levantadas amostras em que havia o uso dos itens antes, agora e depois, cuja análise se centrou em duas dimensões: a dimensão formal (morfossintática) e a dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva). Os resultados empíricos tendem a mostrar que os diferentes usos que o item agora assumiu nos gêneros acadêmicos parecem seguir a trajetória crescente de abstratização, passando de um sentido mais concreto para assumir novos usos mais abstratos. Já os itens antes e depois apresentaramusos como uma construção prepositiva (antes de e depois de). Os itens antes, agora e depois foram mais usados nos gêneros Dissertação de Mestrado e Artigo Acadêmico. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Sob uma visão funcionalista, a língua, portanto a gramática, é vista como dinâmica,

emergente, um sistema cujas estruturas linguísticas, por influências decorrentes de

situações interativas reais, vão variando, mudando e regularizando-se, sabemos que as

formas linguísticas tendem a ajustar-se às necessidades informacionais dos falantes,

gerando variações ou mudanças de itens ou construções lexicais.

Diferentemente da visão estática da gramática tradicional, esses fenômenos, cada

vez mais, são estudados à luz do Funcionalismo Linguístico, no intuito de dar conta desse

dinamismo entre a forma e a função da língua, verificando como a língua é usada nos

processos comunicativos, às circunstâncias discursivas e as condições de produção.

Sabemos que as gramáticas tradicionais apresentam a classe dos advérbios apenas

com suas características de circunstanciadores, como tempo, modo, dúvida, intensidade,

entre outros. As gramáticas tradicionais apresentam ainda de que classes os advérbios

podem ser modificadores: a) de um verbo; b) de um adjetivo; c) de um outro advérbio; e d)

de uma oração inteira. (ROCHA LIMA, 1992; BECHARA, 2009).

Essa constatação mostra que se trata ainda de uma classe pouco explorada diante

da sua complexidade no âmbito funcional, pois é uma classe heterogênea que não se

prende somente a um núcleo, mas também pode modificar o conteúdo semântico da

oração.

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Seguindo a perspectiva funcionalista, este trabalho busca descrever os usos dos

itens antes, agora e depois nos gêneros acadêmicos, verificando seus usos e as novas

funções que esses itens assumem, diferentes dos usos prototípicos como advérbio.

Este artigo está organizado da seguinte maneira: primeiramente, apresentamos o

aporte teórico, que apresenta a abordagem teórica em que se insere a investigação; depois,

vem a metodologia, descrevendo a investigação; em seguida, discutimos os resultados e

apresentamos as considerações finais de nossa investigação.

2 A LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO E O PARADIGMA DA GRAMATICALIZAÇÃO

Apresentamos agora, o referencial teórico que compõe esta pesquisa. Iniciamos

ressaltando a abordagem da Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) que estuda os

processos de variação e mudança linguística a partir da língua em uso, enfatizando o

paradigma da gramaticalização segundo autores do funcionalismo norte-americano.

O termo linguística funcional centrada no uso ou (usage-based linguistics), é cada vez

mais usado por diversos autores (TOMASELLO, 1998; 2003; BYBEE, 2006; LOPES, 2008)

para indicar uma tendência funcional de abordagem das línguas que se contrapõe ao

estruturalismo e ao gerativismo. Trata-se de uma abordagem que se preocupa em estudar

como as pessoas fazem uso da língua em situações reais de comunicação e emprega a

hipótese de que a forma da língua deve refletir, em alguma situação, a função que exerce.

De acordo com a abordagem funcionalista, não se deve explicar os fenômenos

linguísticos a partir de frases que não fazem parte do contexto real dos usuários da língua,

frases inventadas e totalmente descontextualizadas, como fazem as gramáticas normativas

tradicionais. Mas, deve-se verificar como a língua é usada nos processos comunicativos, nas

circunstâncias discursivas e nas condições de produção. O estudo da língua tem, pois, como

foco a situação comunicativa.

Além disso, a gramática é vista como um fenômeno socioculturalem que sua

estrutura e regularidade advém do discurso que as moldam e modificam em processo

contínuo. Du Bois (1985) considera a gramática como um sistema adaptativo em que forças

motivadoras dos fenômenos externos penetram no domínio da língua e passam a interagir

com forças organizadoras internas, competindo e conciliando-se sistematicamente com

elas.

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Assim, o fenômeno da gramaticalização, pode ser visto como a evolução de

construções relativamente livres no discurso, motivadas por necessidades comunicativas,

para construções relativamente fixas na gramática.

Segundo Bybee (2010), a gramaticalização é comumente definida como “o processo

pelo qual um item lexical ou uma sequência de itens tornam-se um morfema gramatical,

mudando sua distribuição e função no processo.” E ressalta que, mais recentemente, tem

sido observado que a gramaticalização de itens lexicais está ocorrendo dentro de

construções particulares, criando, assim, novas construções. (BYBEE, 2003; TRAUGOTT,

2003).

A partir dessa conceituação, podemos afirmar que a unidirecionalidade constitui

uma propriedade que permite a identificação e a descrição dos fenômenos de

gramaticalização dentro do quadro mais amplo dos demais fenômenos de mudança

linguística, é por meio dessa propriedade que podemos tratar dos deslizamentos entre

classes de palavras, como a trajetória de advérbios a conectivos.

O processo de gramaticalização tem como princípio cognitivo a exploração de velhas

formas para novas funções, o que faz com que conceitos concretos sejam movimentados

para o entendimento de um elemento menos concreto.

Desse modo, os falantes e ouvintes, devido às assimetrias de suas experiências,

negociam e adaptam funções e formas para o sucesso da troca comunicativa, permitindo

que a língua altere os seus padrões discursivos e a sua contraparte mental. Essas

negociações e adaptações geram, pois, mudanças que, por sua vez, são guiadas por

mecanismos que regularizam e fixam seus usos, dentre os quais merecem destaque:

metáfora e metonímia; e, por extensão, analogia e reanálise.

Segundo Gonçalves et al. (2007), a metáfora está ligada ao processo de abstratização

dos significados, que podem ser lexicais ou menos gramaticais, e passando

metaforicamente, tornam-se gramaticais ou mais gramaticais. Assim, a gramaticalização

pode ser motivada pela metáfora que é regida por uma crescente escala de abstratização.

Já Heine etal. (1991) explica que a metáfora envolvida no processo de

gramaticalização é diferente daquela que se relaciona às figuras de linguagem, pois seria

pragmaticamente motivada e focada para a função na gramática, Uma ‘metáfora

emergente’, portanto, cuja origem que propicia à gramaticalização seria de natureza

‘categorial’, ou seja, a construção das estruturas gramaticais pode ser exposta em termos

de algumas categorias básicas partindo sempre, unidirecionalmente, do elemento mais

concreto.

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Torna-se possível expor o processo de gramaticalização por meio do grupo de

categorias conceptuais, de acordo com uma escala de abstração crescente, em que cada

elemento seguindo um percurso unidirecional se liga a outro elemento à direita por meio

de “flechas” (“>” leia-se “passa para”), resultando no que muitos pesquisadores chamam de

“metáforas categoriais”.

pessoa > objeto > atividade > espaço > tempo > qualidade

Por outro lado, a metonímia tem sido apontada como responsável pela

gramaticalização, na medida em que suas motivações estão no contexto linguístico e

pragmático de uso de uma dada forma: há uma associação conceitual entre entidades de

algum modo contíguas, de forma que o item linguístico que é usado em referência a uma

delas passa a ser usado também para outra.

Segundo Traugott & König (1991, p.212), a metonímia envolve a especificação de

um significado em termos de outro que está presente no contexto, vale dizer, representa

uma transferência semântica por contiguidade.

À metonímia está ligado um mecanismo chamado por Traugott & König (op. cit.,

p.194) de inferência por pressão de informatividade, que designa o processo em que o item

linguístico passa a assumir um valor novo, inferido do original, devido à

convencionalização de implicaturas conversacionais por meio de pressões do contexto de

uso. Quando uma implicação comumente surge com forma linguística, pode ser tomada

como parte do significado desta, podendo até mesmo chegar a substitui-la.

A reanálise pode ser definida como uma mudança na estrutura de uma expressão

que não envolve qualquer modificação imediata ou intrínseca de sua manifestação

aparente, ela não é diretamente observável. Para Hopper e Traugott (2003), no mecanismo

de reanálise, as propriedades gramaticais, sendo elas, sintáticas, morfológicas e semânticas

das formas são modificadas quanto a sua interpretação, mas não quanto a sua forma.

Já o mecanismo da analogia “se refere à atração de formas preexistentes por outras

construções também já existentes no sistema e envolve inovações ao longo do eixo

paradigmático” (GONÇALVES, 2007, p.49). Ou seja, não promove mudança na regra apenas

permite um desenvolvimento das mudanças trazidas pela reanálise.

Desse modo, tanto a reanálise quanto a analogia interessam para a gramaticalização,

mesmo sendo distintamente diferentes e com diferentes efeitos. A reanálise implica

reorganização linear, sintagmática e, frequentemente, local: uma mudança de regra, que

não é diretamente observável. Por outro lado, a analogia essencialmente implica

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organização paradigmática, mudança nas colocações de superfície e nos padrões de uso. A

analogia faz as mudanças inobserváveis da reanálise observável.

3 METODOLOGIA

Este trabalho é um recorte da pesquisa de Mestrado que busca analisar os usos dos

itens antes, agora e depois em gêneros acadêmicos. Partirmos de uma análise da frequência

dos usos dos itens antes, agoraedepois nas introduções, resultados e conclusões dos

gêneros acadêmicos para depois explicá-los, segundo o contexto em que ocorrem.

Para dar conta do nosso objetivo, primeiro selecionamos os seguintes gêneros

acadêmicos: (01) Artigo Acadêmico, (01) Dissertação de Mestrado e (01) Tese de

Doutorado, ambos sobre o processo de gramaticalização. Segundo, a fim de analisar os

usos/funções dos itens antes, agora e depois, controlando os aspectos morfológicos,

sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos, selecionamos categorias de análise de

estudos funcionalistas sobre esses itens.

Em relação ao item antes, utilizamos as seguintes categorias de análise:

a) Antes espacial: Apresenta uma relação de ordem do domínio do espaço, onde há um

movimento potencial do polo inicial na direção do polo alvo final, sendo o espaço

referenciado.

b) Antes temporal: apresenta uma relação de precedência temporal, a partir de um ponto

de referência que pode pertencer à esfera do presente, passado ou do futuro.

c) Antes com valor preferencial: apresenta uma relação comparativa e envolve uma escala

avaliativa de tipo axiológico. O item envolve uma comparação implícita entre duas

situações e avaliada pelo falante como melhor ou preferível.

d) Antes reformulador retificativo: trata-se de um valor que opera ao nível ilocutório, onde

o locutor reformula o seu ato ilocutório inicial, retificando-o e ao retificar o que disse, o

locutor expressa sua preferência pela formulação final.

e) Antes refutativo: reforça o valor do conector pelo contrario, por meio do qual o falante

assinala que vai confirmar uma proposição que contrasta a proposição anterior.

f) Antes marcador discursivo: trata-se ainda de um valor de natureza temporal, mas há uma

função discursiva claramente associada a esse valor. O locutor realiza um ato de

planificação textual por meio da transposição do valor de anterioridade relativamente a um

ponto de referência situado no mundo externo para um valor de anterioridade

exclusivamente discursivo.

Em relação ao item agora, utilizamos as categorias:

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a) Agora dêitico temporal – é tido como um advérbio temporal e apresenta as seguintes

características: + referência presente, + circunstanciação verbal e + mobilidade. Equivale

semanticamente a “neste momento” ou “no momento presente”.

b) Agora juntivo com relações de: Causalidade: é expressa pelas construções que a

gramática chama de causais, conclusivas e consecutivas.– Ressalva: introduz uma noção

semântica de restrição ou de ressalva.– Contraste: vem acompanhado da conjunção

adversativa mas e apresenta característica de adversidade.

c) Agora conector de sequencialização: Estabelece uma relação de continuidade entre as

informações do enunciado. Nessa função, o item agora pode ser parafraseado por “em

seguida” ou “a seguir”.

d) Agora marcador discursivo: exerce a função de + conector e atua na organização de

unidades tópicas.

Já em relação ao item depois, utilizamos as categorias:

a) Depois espacial: Apresenta valor espacial com sentido de localização.

b) Depois temporal: Expressa uma sucessão no tempo e não no espaço, podendo vir

acompanhado de outra indicação temporal.

c) Depois sequencial: assume um comportamento de elemento gramatical, uma vez que

serve para organizar as informações do texto, ou seja, organiza a sequencialidade dos

eventos de figura narrativa e não-narrativa.

d) Depois aditivo: assume definitivamente valor argumentativo, sua função nesse caso é

acrescentar informações em favor do que está sendo dito.

Por fim, descrevemos os dados a partir de uma análise quantitativa, com cálculo de

frequência, e, a partir desses dados, fizemos uma análise qualitativa.

4 RESULTADOS

Sabemos que os diversos estudos sobre gêneros textuais têm cada vez mais ganhado

espaço no cenário dos estudos sobre a linguagem em uso, principalmente em relação à

interação em comunidades acadêmicas e no ensino de língua materna. Como também se

sabe que tem crescido o número de estudos funcionalistas que buscam mostrar novos usos

e novas funções que os advérbios assumem na língua. O objetivo desse trabalho é mostrar

que os advérbios antes, agora e depois assumem novos usos/funções, diferente dos usos

prototípicos como advérbio, nos gêneros acadêmicos.

Inicialmente, fizemos um levantamento da frequência dos usos de antes, agora e

depois, como mostra a Tabela 1.

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GÊNERO FREQUÊNCIA

Antes Agora Depois Total Artigo Acadêmico 03 02 01 06

Dissertação de Mestrado 04 03 01 08

Tese de Doutorado 01 01 02 04

18 Tabela 1 – Frequência de antes, agora e depois segundo o gênero

Segundo a Tabela 1, nos três gêneros acadêmicos analisados ocorreu um total de 18

usos dos itens antes, agora e depois. Houve maior ocorrência desses itens no gênero

Dissertação de Mestrado (08) seguido do gênero Artigo Acadêmico (06) e por último a Tese

de Doutorado (04). Vejamos os usos e funções que esses itens assumem em cada gênero

acadêmico.

No Artigo Acadêmico analisado, encontramos três usos do item antes, ambos os usos

apresentam funções temporais, como mostra as seguintes amostras:

(1) “Nossa hipótese era que passar e começar tinham o mesmo papel gramatical na marcação do aspecto, mas diferentemente do verbo começar o verbo passar com valor 3 não indica apenas o inicio de uma situação. Na verdade ele indica na maioria dos casos o início de, podemos dizer assim, um hábito, pela instauração de uma situação que não existia antes.” (AA. p. 24)

(2) “Quanto ao fator 7 (mobilidade) o que se observa é a “fixação”, pois em 100% das ocorrências a forma nominal não pode vir para antes de passar, ou seja, este ocupa uma posição fixa na cadeia linguística, o que revela maior gramaticalização.” (AA. p. 29)

(3) “Quanto ao fator 7 (mobilidade) o que se observa é a “fixação”, pois em 100% das ocorrências a forma nominal não pode vir para antes de começar, ou seja, este ocupa uma posição fixa na cadeia linguística, o que revela maior gramaticalização.”(AA. p. 44) Como se pode perceber por meio das amostras (1), (2) e (3), o item antes

apresentou funções temporais que pressupõe uma divisão da linha do tempo em duas

metades, onde há um ponto de referência e encontra situações num espaço de tempo de

alcances indefinidos, anterior a esse ponto de referência. Tradicionalmente, a expressão

antes de, como ocorre nas amostras, classifica-se como uma locuçãoprepositiva, mas que

independente da configuração sintática (antes de + N-SN-F) funciona sempre como um

localizador temporal.

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Em relação ao item agora, encontramos apenas dois usos no artigo acadêmico, com

a função de dêitico temporal, como mostra (4) e (5).

(4) “Portanto, pelos estágios de Heine (1993) e suas características, em confronto com as observadas até agora quanto à integração, o verbo deixar com valor 3 estaria ainda no estágio 2 de gramaticalização.”(AA. p. 44) (5) “A nominalização não ocorreu no corpus analisado, mas nos parece agora, no fim da pesquisa, bastante problemática, porque se o verbo principal aparecer como argumento nominal do verbo em gramaticalização isto representaria um retorno ao verbo pleno?”(AA. p.14) Nas amostras (4) e (5) o item agora apresentou funções temporais equivalendo-se

semanticamente a “neste momento” ou “o momento presente”.

Já em relação ao item depois, encontramos apenas um uso desse item no gênero

artigo acadêmico apresentando a função espacial como mostra (6), o item depois

encontrado, apresenta valor espacial, com a função de apresentar uma localização.

(6) “Mobilidade do que vem depois do verbo em gramaticalização: A- pode passar para antes; B – Não pode passar para antes.”(AA. p. 15) No gênero Dissertação de Mestrado foi onde encontramos mais usos dos itens em

análise; em relação ao item antes encontramos quatro usos nesse gênero apresentando

funções temporais, como mostra (7), (8), (9) e (10).

(7) “[...] O advérbio é usado para indicar que o estado de coisas existe antes de um acréscimo adicional que leve o marido a trabalhar mais tempo como procurador”. (DM. p.98). (8)“[...] Em (5-20), AS é o estado de ter que escolher entre trabalhar e estudar, RI é o intervalo que representa a idade apropriada para escolher entre as duas alternativas e AS é o estado que representa a necessidade de tomar essa decisão antes da idade esperada.” (DM. p. 115) (9) “Diminuição da liberdade sintática: aparece antes do Move contrastado, escopando-o.” (DM. p. 127). (10)“[...] com efeito, em (5-41), predomina a função de anterioridade a processo, uma vez que o evento (hipotético) ‘estar convencido da sobriedade’ já teria ocorrido antes de um processo que supostamente o levará a ocorrer.” (DM. p. 132). Assim como no gênero Artigo Acadêmico, na Dissertação de Mestrado o item antes

pressupõe uma divisão da linha do tempo em duas metades. Como também ocorrem usos

da construção prepositiva antes + preposição, funcionando como um localizador temporal

em que descreve situações ou refere-se a intervalos de tempo.

Em relação ao item agora, encontramos três usos desse item na Dissertação de

Mestrado, apresentando funções temporais, como em (11), como também apresentando

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funções semânticas mais abstratas como a de juntivocom relação de ressalva em (12) e a de

conector de sequencialização, como apresenta (13).

(11) “Considerando agora a perspectiva cognitiva de Sweetser (1991), o primeiro aspecto a ressaltar é o de que já, num recorte sincrônico, é, como vimos, um item pragmaticamente ambíguo.” (DM. p. 130). (12) “O fragmento contido em (5-22) traz uma comparação entre os países mais desenvolvidos e o Brasil, tendo como padrão a adoção do divórcio. AS é o estado de adoção do divórcio pelos países desenvolvidos; RI é o estado em que se aplica o divórcio no Brasil; AS compreende o estado posterior de divórcio nos países mais desenvolvidos, em cujo intervalo agora se inclui o Brasil.” (DM. p. 116). (13) “vejamos agora a relação entre os usos de Já e a tipologia semântica do estado de coisas, conforme mostra a tabela 4.” (DM. p. 100). Conforme as amostras, vemos que o item agora apresenta no gênero Dissertação de

Mestrado função temporal, como mostra (11), em que o item agora equivale

semanticamente a “neste momento” que nos remete ao tempo presente da ação

enunciativa. Como também, vemos que o item agora apresenta funções semânticas mais

abstratas, distanciando-se de sua função prototípica, como apresenta a amostra (12) em

que o item agora atua como um juntivo com relação de ressalva, pois vemos que o item é

usado para ressaltar que o Brasil passa a ser incluído junto aos outros países mais

desenvolvidos que aceita a validade do divórcio.

Na amostra (13), o item agora atua na função de conector de sequencialização,

estabelecendo uma relação de continuidade entre as informações do enunciado, o item

agora nessa amostra funciona marcando a relação de sucessão temporal dos eventos,

podendo ser parafraseado por “a seguir”.

Já em relação ao item depois, encontramos apenas um uso desse item no gênero

Dissertação de Mestrado apresentando função temporal, como mostra (14).

(14) “Nota-se que (5-39b) é um exemplo de língua escrita. Trata-se de matéria assinada sobre segurança, logo depois dos recentes acontecimentos de violência envolvendo o PCC e a policia.” (DM. p. 131). Em (14), o item depois apresenta valor temporal expressando uma sucessão no

tempo e vem acompanhado de outro indicador temporal o logo, apresentando uma ordem

cronológica dos acontecimentos.

Por fim, no gênero Tese de Doutorado encontramos apenas quatro usos dos itens

analisados, sendo um uso do item antes com função temporal, como apresenta (15), um uso

do item agora também com valor temporal em (16) e dois usos do item depois com valor

temporal, como apresenta (17) e (18).

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(15)“Aconsequenciaeouefeitodousododeiticodiscursivoassimépercebidaquandoofalante,

porexemplo,depoisdeexporseuargumento(casadoésónopapel),marcaaideiadeconsequência

ou conclusão. Caracteriza-se, dessa forma, uma sucessão lógica, em que aquilo que vem antesconstituirazãoparaovemdepois.”(TD.p.141).

(16)“[...]Oprincipalinteresse,agora,tomaalínguacomoinstrumentoparaatingirdeterminados

fins,negligenciandoaqueladefiniçãodelínguacomosistemaestáveleautônomo.”(TD.p.17).

(17)“Aconsequenciaeouefeitodousododeiticodiscursivoassimepercebidaquandoofalante,

por exemplo, depois de expor seu argumento (casado é só no papel), marca a ideia de

consequênciaouconclusão.”(TD.p.141)

(18)“Asexpressões‘assimque’iniciamoraçãoqueexpressaumanoçãotemporaldeproximidade

imediataemrelaçãoàprincipal.Emoutraspalavras,umeventoocorre imediatamentedepoisde

outro,evidenciandoumaideiadesequencialidadedetempo.”(TD.p.143).

Como mostra as amostras, os itens antes, agora e depois no gênero Tese de

Doutoradoocorremapenascomseususostemporais.Em(15),oitemantesapresentauma

precedênciatemporalapartirdeumpontodereferência;naamostra(16)oitemagorase

equivale semanticamente a “neste momento” que nos remete ao tempo presente e nas

amostras (17) e (18) ocorre uso da construção prepositiva depois de característica em

contextospredominantementetemporais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação aos usos dos itens antes, agora e depois, constatamos por meio dos

gênerosacadêmicosanalisadosqueesses itens tendemaseguira trajetóriademudança:

concreto > abstrato, como é o caso do item agora que apresentou novas funções como:

juntivo com relação de ressalva e de conector de sequencialização, usos diferentes de sua

funçãoprototípicacomoadvérbio,contrapondo-seassimaoqueasgramáticastradicionais

afirmam. Dessa forma, o item agora está passando de um sentido mais concreto para

assumirnovossignificadosmaisabstratosnosgênerosacadêmicos.

Jáositensantesedepoisnãoapresentaramnovosusos,apenasapresentaramseus

usos temporais como construção prepositiva (antes de e depois de), possivelmente ao

número de itens encontrados nos três gêneros acadêmicos analisados. Acreditamos que

encontraremos novos usos desses itens ao analisarmos um número maior de gêneros

acadêmicos.

Desejamosqueestetrabalhosejarelevanteaocontribuircompesquisasfuturasque

sevalhamdoparadigmafuncionalistaecomaplicaçãopedagógicaqueviseaumamelhor

compreensãodofuncionamentoedossignificadosdoselementosemestudo.

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EBONICS: INGLÊS RUIM, GÍRIA, DIALETO OU LÍNGUA?

Daniel Jorge Alves de Alcântara Universidade Federal do Ceará Resumo No estudo da Linguística, um socioleto pode ser caracterizado por ser a variante de uma língua falada em um grupo ou classe social ou mesmo uma subcultura. O Ebonics é um sistema de linguagem de certas comunidades de fala nos Estados Unidos, especialmente (mas não exclusivamente) comunidades afro-americanas em áreas urbanas e no sul. O termo Ebonics foi usado pela primeira vez na década de 1970 e é utilizado até hoje. Embora tenha muitas características que o distinguem dos vários dialetos do Inglês, ele também tem muito em comum com os tipos de Inglês em todo o mundo. Diferindo-se, também, de comunidade para comunidade.Dentro da Sociolinguística, o Ebonics tem sido derrogatoriamente conhecido como “Inglês de Preto”. O objetivo deste trabalho é reforçar e apresentar ao público o trabalho que vários linguistas de diversas raças têm estudado sobre o Ebonics, seus sistemas de gramática, pronúncia e vocabulário, bem como suas origens e história, desde os anos 1970, também, pontuando a dualidade de ideias que existe entre considerar ou não o Ebonics como uma língua, pelo fato de esta ser utilizada até os dias de hoje, ou se o referido termo é apenas um mero dialeto do Inglês. Através da leitura de artigos científicos e de livros de famosos linguistas como John Baugh e William Labov, conclui-se que se deve ter o cuidado de observar que nem todos os afro-americanos falam Ebonics e que há não-afro-americanos que falam Ebonics, em virtude de terem crescido nas comunidades onde essa variedade é falada. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo destina-se ao conhecimento de uma variante da língua inglesa, o Ebonics

ou African American Vernacular English(Inglês vernáculo afro-americano, em tradução

livre), que, por sua vez, necessita que sejam apresentados alguns certos conceitos teóricos,

uma explicação mais abrangente e menos profunda da Linguística e da “História da Língua

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Inglesa”, a fim de o trabalho ser mais objetivo e conciso possível, para melhor

entendimento do leitor.

Por outro lado, não devemos esquecer ainda o contexto histórico da referida

variante, desde seus primórdios até os dias de hoje, uma vez que a conexão entre todos

esses fatores parece que vem sendo negligenciada ou distorcida na maioria dos livros.

De acordo com Lyons (1981), o termo História da Língua Inglesa é um tanto quanto

enganador, pois não existe uma “História” da Língua Inglesa. Existem inúmeras histórias

individuais e, mesmo que se tentasse procurar por uma pesquisa mais ampla sobre a

variante Ebonics, existiriam várias dimensões que seriam competentes para levar em

consideração em um trabalho tão limitado.

Por exemplo, existe a história estrutural do Inglês vernáculo afro-americano – sons,

a existência ou não de uma gramática própria e o vocabulário o qual tem se evoluído com o

passar do tempo. Existe, também, a história social – o modo como a língua veio a servir

uma multiplicidadede funções na sociedade.

Existe a história literária – o modo como os escritores item evocado o poder, a gama,

a beleza de uma língua para expressar novos arranjos de significado. Por fim, tem-se a

história cronológica – aparentemente a mais autêntica, embora não sendo possível levá-la a

uma simples questão, em termos de início, meio e fim.

Para os linguistas Mufwene, Rickford, Bailey e Baugh (1998), não existe um início

único da história do Inglês, mas vários, com os movimentos dos invasores anglo-saxônicos

e suas chegadas em variados locais e estabelecendo, mais tarde, as fundações de diferentes

dialetos.

Não existe um único meio, mas vários, com a língua divergente, no início, na

Inglaterra e Escócia e, então, muito mais tarde, tomando diferentes caminhos na Grã-

Bretanha, na América do Norte e em outros locais.

Assim, observam-se as direções cada vez mais divergentes para as quais o Inglês

está atualmente se movendo no mundo todo onde, certamente, não há um somente fim.

2 LINGUAGEM, LÍNGUA E A IMPORTÂNCIA DA LINGUÍSTICA NA SOCIEDADE

De acordo , com Fiorin (2004), Linguagem é o uso da palavra articulada ou escrita

como meio de expressão e de comunicação entre pessoas. A forma de expressão pela

linguagem própria de um indivíduo, grupo, classe, etc. O vocabulário específico usual numa

ciência, numa arte, numa profissão, etc.

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Tudo quanto serve para expressar idéias, sentimentos, modos de comportamento,

etc. Todo sistema de signos que serve de meio de comunicação entre indivíduos e pode ser

percebido pelos diversos órgãos dos sentidos, o que leva a distinguir-se uma linguagem

visual, uma linguagem auditiva, uma linguagem tátil, etc.

Por outro lado, Língua é o conjunto das palavras e expressões usadas por um povo,

por uma nação, e o conjunto de regras da sua gramática; idioma. Modo de expressão escrita

ou verbal de um autor, de uma escola, de uma época; estilo; linguagem. A linguagem

própria de uma pessoa ou de um grupo. Sistema de signos que permite a comunicação

entre os indivíduos de uma comunidade lingüística. Qualquer dos sons emitidos por um

animal e que imitam a voz humana.

Em outras palavras, linguagem é a capacidade que o ser humano tem de se

comunicar, seja por meio de palavras, gestos, sons e cores. A linguagem pode ser

classificada em verbal ou não verbal. Verbal é quando a palavra pode ser escrita ou falada,

já a não verbal, compreendo todas as mensagens que não sejam faladas, como placas de

sinalização, por exemplo.

A língua é utilizada pelo homem para transmitir para os outros suas ideias e

pensamentos por meio de seus códigos. A língua é local e concreta.

Ainda pelo pensamentro de Fiorin (2004), pode-se falar também da importância da

Linguística. Ela é uma disciplina e um campo do conhecimento e, enquanto disciplina, ela é

relativamente nova, podendo falar que ela é autônoma do início do século XX para cá. E

essa disciplina tem por objeto, o estudo das línguas naturais que surgem espontaneamente

como meio de comunicação social.

Contudo, se formos falar em Linguística como campo do conhecimento, a história

dela é mais antiga, desde o momento em que o homem começa a refletir sobre sua própria

língua e a língua dos outros homens, podemos falar do conhecimento sobre a linguagem.

De acordo com os ensinamentos da professora Maria Cristina Altamn, quando a

gente fala em língua devemos pensar na manifestação concreta de uma capacidade

universal humana abstrata. A linguagem humana enquanto tal, não se manifesta.

Ela se manifestará através das línguas e através de outras formas de expressão que

costumamos chamar de linguagem, tais como a linguagem do cinema, do teatro dos

quadrinhos.

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3 IDIOLETO, IDIOLETO E COMUNIDADE DE FALA Com os estudos de Fiorin (2002), dialeto é, basicamente, o antigo termo antigo

dialektos e que é usado de duas maneiras distintas, até mesmo por linguistas. Um uso

refere-se a uma variedade de uma língua que é uma característica de um determinado

grupo dealguns idiomas.

O termo aplica-se na maioria das vezes para padrões de fala regionais, mas um

dialeto também pode ser definido por outros fatores, tais como classes sociais.

Um dialeto que está associado com uma determinada classe social pode ser

denominado um socioleto, um dialeto que está associado com um determinado grupo

étnico pode ser denominado como etnoleto, e um dialeto regional pode ser denominado

um regioleto.

O outro refere-se ao uso de uma linguagem que é socialmente subordinado a uma

linguagem padrão regional ou nacional, muitas vezes historicamente cognato com o

padrão.

Um dialeto é distinguido pelo seu vocabulário, gramática e pronúncia (fonologia,

incluindo a prosódia). Quando uma distinção pode ser feita apenas em termos de

pronúncia (incluindo a prosódia, ou apenas prosódia), o termo sotque é apropriado, não

dialeto. Outras variedades de fala incluem: linguagens padrão, que são padronizados para

execução pública (por exemplo, uma norma escrita); jargões, que são caracterizadas por

diferenças de léxico (vocabulário), gírias, crioulos, pidgins ou argots.

Em lingüística, um idioleto é uma variedade da língua que é exclusivo para uma

pessoa, que se manifesta pelos padrões de vocabulário, gramática e pronúncia que ela

usam. Conceitualmente, a produção de linguagem de cada pessoa, o idioleto, é único,

linguistas discordam que o conhecimento subjacente de uma língua, ou de um determinado

dialeto, é compartilhada entre interlocutores.

Para Bryson (1990), a comunidade de fala é um grupo de pessoas que compartilham

um conjunto de normas e expectativas em relação ao uso da linguagem. Exatamente como

definir comunidade de fala é debatido na literatura, definições de comunidade de fala

tendem a envolver diferentes graus de ênfase sobre Adesão de Comunidade Compartilhada

e Comunicação Linguística Compartilhada.

Definições iniciais tendem a ver as comunidades de fala como grupos limitados e

localizados de pessoas que vivem juntas e chegam a compartilhar as mesmas normas

linguísticas porque pertencem a uma mesma comunidade local. Tem sido também

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assumido que dentro de uma mesma comunidade, um conjunto homogêneo de normas

deveria existir.

Essas suposições têm sido desafiadas depois que demonstraram que os indivíduos

geralmente participam de várias comunidades de fala ao mesmo tempo e em diferentes

momentos de suas vidas , cada qual com um diferentes normas que tendem a compartilhar

apenas parcialmente.

As comunidades podem ser deslocalizadas e sem limites ao invés de, unicamente,

locais e, muitas vezes, eles compreendem diferentes subcomunidades com diferentes

normas de fala. Com o reconhecimento do fato de que os falantes usam ativamente a língua

para construir e manipular identidades sociais pela associação de sinalização em

determinadas comunidades de fala.

A ideia de uma comunidade de fala limitada com as normas do discurso homogêneo

tornou-se , em grande parte abandonada por um modelo baseado na comunidade de fala

como uma comunidade fluida na prática.

A comunidade de fala trata de compartilhar um conjunto específico de normas para

o uso da linguagem por meio de viver e interagir em conjunto, e as comunidades de fala

podem surgir, portanto, entre todos os grupos que interagem com freqüência e

compartilham certas normas e ideologias. Tais grupos podem ser aldeias, países,

comunidades políticas ou profissionais, comunidades com interesses comuns, hobbies, ou

estilos de vida , ou mesmo apenas grupos de amigos.

Comunidades de fala podem compartilhar ambos os conjuntos específicos de

vocabulário e gramática convenções, bem como estilos de fala e gêneros, e também normas

de como e quando falar de forma particular.

4 A COLONIZAÇÃO AMERICANA E O INGLÊS DOS NEGROS

De acordo com Crystal (2002), durante os primeiros anos da colonização americana,

uma forma altamente distintiva de falar inglês estava emergindo nas ilhas das Antilhas e na

parte sulista continental, falada pela chegada população negra.

O início do século XVII, viu o surgimento do comércio de escravos . Navios da

Europa viajaram para a costa oeste africana, onde trocaram bens baratos pelos escravos

negros. Os escravos foram transportados em condições bárbaras para as ilhas do Caribe e

da costa americana, onde eles eram recebidos em troca de mercadorias, como açúcar, rum

e melaço. Os navios, em seguida, voltavam para a Inglaterra, completando um “Triângulo

Atlântico” de viagens, e começavam o processo novamente.

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Nos últimos anos, é claro, o discurso nas ilhas das Antilhas passou bem longedo

discurso ou pronúncia dos caribenhos, com grandes comunidades agora a serem

encontradas no Canadá, Estados Unidos e Grã-Bretanha. Como seria de esperar, estes

novos locais trouxeram novos estilos de fala, agora há diferenças notáveis entre o discurso

dos filhos daqueles que vivem em Londres (muitos dos quais nunca foram para as Antilhas)

e suas contrapartes no Caribe.

Um padrão semelhante de desenvolvimento encontra-se nos Estados Unidos, onde

uma variedade contemporânea em particular - a linguagem usada pelos negros de classe

baixa em comunidades urbanas - tem sido o foco de estudo linguístico, nas últimas décadas,

sob o título de “Vernáculo do Inglês de Preto”.

Pensa-se que cerca de 80 por cento dos atuais negros americanos falam essa

variedade da língua. O restante usa uma gama de variedades influenciados pela língua

padrão, refletindo um processo gradual de integração e ascensão de uma classe média

negra. O Inglês Crioulo não é evidente no discurso público de muitos profissionais negros e

políticos, embora vários mantenham lado a lado dois dialetos, o padrão e o crioulo - algo

que tem sido recomendado por educadores negros.

Ainda de acordo com os escritos de Crystal (1995), a história do negro inglês nos

Estados Unidos é complexa, controversa e, apenas,parcialmente compreendida. Registros

das formas dos primeiros discursos são escassos. Não está claro , por exemplo, exatamente

quanta influência de discurso, tem o discurso do negro sobre a pronúncia dos brancos do

sul.

Segundo Labov (2006), as gerações de contato resultaram nas famílias dos donos de

escravos pegando alguns dos hábitos de fala de seus servos que, gradualmente, evoluiu

para o distintivo sotaque do sul.

Wolfram; Schilling (1998) acreditam que a informação é clara, após a Guerra Civil

Americana, quando os escravos receberam direitos civis, pela primeira vez . Houve um

êxodo generalizado para as cidades industriais dos estados do norte, e a cultura negra

tornou-se conhecida em todo o país , especialmente para a sua música e dança.

O resultado foi um grande afluxo de vocabulário novo , informal em uso geral ,

como os brancos pegaram os padrões de fala de quem cantava, tocava e dançava - desde o

início dos sentidos “espirituais”, através das várias formas de jazz e blues para as

tendências atuais na soul music e break-dancing .

Nos últimos anos, os efeitos linguísticos de luta pela liberdade e integração pode ser

visto em qualquer lista representativa do vocabulário inglês negro: beat em vez de

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exhausted (exausto), cat em vez de jazz musician (músico de jazz), chick em vez de girl

(menina), dig em vez de understand (entender), solid em vez de great (ótimo) , square em

vez de dull (entedioso) e assim por diante.

5 INGLÊS VERNÁCULO AMERICANO E EBONICS NAS ESCOLAS

Ainda há divergências no que diz respeito ao ensino nas escolas americanas entre

negros, como esclarece Labov (2012). Como o fato de um professor que consegue

comunicar-se utilizando o Ebonics, mas que se sente na necessidade de ensinar o chamado

Inglês Tradicional ou Inglês Padrão. Os professores negros conseguem entender o que os

alunos escrevem pois eles compreendem o que os alunos estão falando.

Em uma de suas palestras, Dr. Ernie Smith explano que, em 1965, existiu uma lei

federal americana chamada Elementary Education, e nessa legislação, existiam programas

nomeados Capítulo 1 ou Título 1 e existiam programas até o Título 7.

O Título 1 era direcionado para crianças que estavam tendo dificuldades em obter

boas notas na escola, mas as suas diferenças entre os outros alunos eram que aqueles

estavam em uma certa desvantagem, culturalmente necessitados. A diferença era

meramente a articulação das palavras que diferenciavam uns alunos de outros.

Quando você é humano e negro, você possui uma língua materna, que é o Ebonics e,

portanto, nas escolas, você é ensinado inglês como uma segunda língua, por que existe a

interferência do dito Inglês Americano Padrão.

Assim, mesmo que o Ebonics tenha suas origens vindas da África, ele é considerado

uma variedade do inglês, pois foi a partir dali que surgiu o vasto crescimento da utilização

do dialeto em questão.

Então, é como se os negros que falam Ebonics fizessem parte do mesmo grupo de

espanhóis, chineses, brasileiros, italianos e assim por diante, quando estes têm a

necessidade de aprender inglês, e a aprenderão como uma segunda língua, ou seja, uma

educação bilíngue.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dialetos padrões são idealizações, não são, na verdade, dialetos bem definidos em

uma dada língua. Ninguém, de fato, fala, por exemplo, somente o Inglês Americano Padrão

ou somente o Ebonics, poucas pessoas quase conseguem falá-los puramente. Para esse caso

particular do IAP, ficamos mais interessados na parte gramatical do que nós estaríamos na

parte das características do sotaque (pronúncia).

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Ainda em favor dos estudos de Wolfram; Schilling (1998), a razão é social – as

variações de pronúncias regionais não são consideradas, nos Estados Unidos, algo muito

importante socialmente (dentro dos seus limites). Então, as pessoas com uma variedade de

sotaques podem ainda ser consideradas a falar um dialeto padrão.

É fácil se contrastarmos esse assunto com o sotaque Britânico, onde as divisões

societais correspondem bem mais próximas da pronúncia do que na gramática. Por

exemplo, os senadores, governadores, presidentes e outros oficiais governamentais de alto

escalão são considerados exemplos primários de IAP, embora eles exibem uma enorme

quantidade de variações em suas pronúncias.

Pode-se dizer, assim, que, não só o Inglês Americano Padrão, como o Inglês

Vernáculo afro-americano ou Ebonics são variedades ou dialetos do inglês. Elas não mesmo

podem legitimamente serem consideradas melhores do que as outras variedades

existentes pelo mundo que tem como uma das suas variantes, o inglês.

Portanto, todas as línguas e todos os dialetos são igualmente “bons” como sistemas

linguísticos, pois elas são estruturadas, complexas, sistemas governados por suas próprias

regras, as quais pode ser adequadamente enquadradas de acordo com a necessidade dos

falantes para existir uma comunicação.

Labov (2010) ajuda a esclarecer que essa questão do que é certo ou errado, segue o

valor de julgamento que algumas línguas tem em razão do social pelo fator linguístico.

Atitudes que concernem às variações não-padrões, como o Ebonics, refletem diretamente

na estrutura social da sociedade.

A diferença em quem deseja conquistar ao rotular dialetos como “padrões” ou “não-

padrões” é simplesmente acreditar que um dialeto é dito padrão quando este supre

algumas diretrizes genéricas, tais como serem utilizadas em escolas, ensinadas à

estrangeiros que têm vontade de aprender o inglês como uma segunda língua, o uso

constante pela média, entre outros.

Enquanto as variantes não-padrões são aquelas marginalizadas, que não possuem a

maioria de uma população de língua primária o inglês dito culto, ou mesmo padrão,

contrastado com o Ebonics, que se queda um dialeto, mesmo que este não seja a variante

mais comum e mais utilizada no território americano.

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AMOSTRAS PARA UM ESTUDO DO MULTILINGUISMO NA DOCUMENTAÇÃO INDIANA DE LÍNGUA PORTUGUESA E ESPANHOLA (SÉCULOS XVI-XIX)

Eliabe Procópio Universidade Federal de Roraima Resumo Existe uma antiga relação entre as Línguas Portuguesa e Espanhola, motivada principalmente por sua filogenia e posição geográfica, tanto na Europa quanto nas colônias americanas, africanas e asiáticas. No tocante à América, isso ocorreu devido às intensas relações entre colonos e militares de ambos os impérios e a União Peninsular, período em que Portugal e suas colônias integraram a Coroa Espanhola. Dessa maneira, muito da documentação produzida no Novo Continente manifesta tal contato histórico-linguístico, pois encontramos textos escritos em português e respondidos em espanhol, textos escritos em português e traduzidos ao espanhol e textos em que se verifica um relativo contato linguístico (grafia aportuguesada, lusismo, espanholismo etc.). Com isso, objetivamos apresentar escritos que ilustrem essa interação e discutir o contato linguístico entre as línguas portuguesa e espanhola a partir de um viés diacrônico, tomando como base o conceito Multilinguismo. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este texto resulta parcialmente de uma primeira apresentação realizada no I

CHRONOS, intitulada “Interação histórico-linguística na Documentação Indiana de língua

portuguesa e espanhola (1500-1700)”, na qual tratamos de várias ocorrências que

demonstram a interação linguística entre as citadas línguas. Aqui discorreremos de modo

mais detalhado as relações histórico-linguísticas estabelecidas entre o Português e o

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Espanhol e apresentaremos amostras que validam uma futura análise mais aprofundada

dessa interação. Apontamos ainda que o presente estudo encontra-se em desenvolvimento,

daí nossa abordagem configurar-se de modo genérico.

Em Procópio (2010), quando iniciamos o estudo da Documentação Indiana relativa

ao Brasil conservada nos arquivos públicos espanhóis, escrito em Língua Espanhola,

notamos a presença de textos que manifestavam um contato linguístico entre o Espanhol e

outras línguas, como o Italiano e o Inglês, além das chamadas línguas nacionais da Espanha

(Basco, Catalão, Galego, etc). Chamou-nos atenção o fato de o autor escrever e/ou utilizar

uma grafia que se aproximava de seu idioma vernáculo ou que manifestasse a fonética do

mesmo. Por exemplo, em um desses documentos, de 1579, escrito pelo cosmógrafo

napolitano João Batista Gésio, encontramos as seguintes palavras: continuata (em lugar de

continuada), osservado (observado), Vespuci (Vespucio), che il meridián (que el meridiano),

buon suceso (bueno suceso).

Tais interferências e mudanças de códigos são marcas claras da interação entre

línguas como o Italiano e o Espanhol. Além disso, nesses documentos espanhóis, lemos

constantemente menções a outras línguas, como as citadas no antepenúltimo parágrafo.

Assim, à medida que avançamos nossos estudos (PROCÓPIO, 2013; 2012b, 2012c),

observamos que esse fenômeno de interação também poderia ser visto a partir do

Português, pois as condições sociais, políticas e históricas na Romania Nova possibilitavam

a mesma interação linguística ocorrida na Romania Velha, especificamente na Península

Ibérica.

O que vemos na América de colonização latina é uma relação de continuidade, pois,

se na Ibéria, Português, Espanhol e outras línguas românicas interagiam, aqui ocorreu o

mesmo com os vernáculos que conseguiram atravessar o Atlântico.

Considerando que o foco de nossa pesquisa ter sido apenas o Espanhol dos séculos

XVI e XVII, talvez tenhamos mais dados dele do que do Português, porém isso não invalida

nosso estudo, já que aqui rascunhamos uma análise comparativa que engloba as relações

histórico-linguísticas de ambas as línguas, abarcando um período que vai do século XVI a

XIX.

2 O MULTILINGUISMO

O modo como intitulamos nossa mesa-redonda demonstra que nosso interesse foi

abrir a questão a respeito dos modos de interações entre as citadas línguas. O conceito

interação pode ser considerado protiforme, pois abriga vários significados, porém o

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entendemos a partir do conceito Multilinguismo, definido desde uma perspectiva

individual e social. Individualmente, refere-se à capacidade de um falante de se expressar

em várias línguas com proficiência igual ou aproximada de um nativo. O que se configura

bilinguismo. Socialmente, refere-se à coexistência de várias línguas dentro de uma

sociedade politicamente definida (CLYNE, 1998).

Como podemos notar o Multilinguismo está diretamente ligado às relações de poder

estabelecidas pela língua, meio de interação sociocomunicativo. Conforme Álvarez Muro

(2007), essas relações podem ser do tipo horizontal, quando elas se dão lado a lado, não

havendo um conflito direto entre tais idiomas, ou vertical, quando essa relação de poder se

dá assimetricamente, havendo uma relação desfavorável a alguma das línguas.

Álvarez ainda cita algumas causas para o Multilinguismo, são elas: migração,

imperialismo, federação e fronteira. Por sua vez Clyne (idem) aponta que certas políticas

linguísticas e/ou atitudes da comunidade podem validar, apoiar, aceitar, tolerar ou rejeitar

o Multilinguismo ou dar um estatuto especial a um ou mais de um idioma. Para o autor, a

motivação do referente fenômeno pode ser: social - no interesse da equidade para todos os

grupos; cultural - para facilitar a manutenção cultural; política - para garantir a

participação de todos os grupos e / ou obter o seu apoio político; e econômico - para ser

capaz de aproveitar recursos linguísticos em benefício da balança comercial do país.

Nesse sentido, dentro do Multilinguismo, cada língua tem sua função de acordo com

sua motivação (idioma vernacular, de casa, de trabalho, franco etc) e são os falantes que

elegem as línguas que tem à sua disposição, bem como as situações de uso.

Dentro dos documentos analisados, o conceito Multilinguismo pode ser

compreendido sob três conceitos: Interferência linguística (Language transfer),

Mudança/Alternância de Código (Code-switching) e Mistura de Código (Code-mixing). O

primeiro termo diz respeito à influência de um sistema linguístico em outro de um falante

(transferência) ou de uma comunidade de fala (empréstimo). O segundo conceito faz

referência à mudança eventual do idioma ou da variedade linguística em uso, por sua vez, a

Mistura de Código refere-se a uma associação de um ou mais códigos linguísticos durante a

interação linguística.

Clyne afirma que essas ocorrências são condicionadas pelo interlocutor, o papel

assumido em cada relacionamento social, o domínio e o tópico discursivo, o local da

situação comunicativa, o canal comunicativo, o tipo de interação e a função fática.

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Além de seu viés sociocomunicativo, o Multilinguismo, manifestado pelos três

conceitos supracitados, pode ser evidenciado por marcas estritamente linguísticas, tais

como: gráficas, fonético-fonológicas, gramaticais e lexicais.

3 O MULTILINGUISMO E A DOCUMENTAÇÃO INDIANA

O que condiciona a ocorrência do Multilinguismo na Documentação Indiana é o

contexto sócio-histórico, pois o seu surgimento está ligado diretamente aos assuntos das

Índias Ocidentais, aos negócios americanos. Dentro da Diplomática, essa documentação

costuma ser datada entre 1492 a começos do século XIX, quando surgem os movimentos de

independência americana.

Definimos Documentação Indiana, conforme Real Díaz (1970, p. 2-3):

cualquier testimonio material capaz de representar un hecho; cualquier testimonio escrito que da noticia de un hecho aunque carezca de formas legales; cualquier testimonio escrito sobre un hecho de naturaleza jurídica, realizado bajo la observancia de ciertas y determinadas formalidades, variables según las circunstancias de lugar, tiempo, materia y persona des- tinadas a conferir a tal testimonio autoridad y fe, dándole fuerza de prueba; entendemos por documento cualquier escritura de carácter legal, histórico y administrativo que se conserva en los.

Uma vez definidos, tais textos são classificados quanto sua expedição: ou na

Península Ibérica ou nas Índias Ocidentais. Contudo, Real Díaz agrega outros critérios,

como: qualidade e condição das pessoas que escreviam; natureza e conteúdo textuais;

formatação; e efeitos jurídicos produzidos por cada tipo de documentos.

Esses critérios propostos pela Diplomática poderiam ser completados por

pressupostos da Linguística Textual, utilizando, por exemplo, os fatores da Textualidade,

englobando tanto os aspectos linguísticos e conceituais (Coesão e Coerência), quantos os

pragmáticos.

Outra questão quanto à Documentação Indiana é que abundam as cópias, pois, em

um posicionamento filológico tradicional, deve-se rechaçar todo material diplomático que

não seja original, já que o ato de copiar é uma porta para alterações e adulterações no texto.

Essa bandeira levantada pelo método lachmaniano não permaneceu sobre os estudos

linguístico-filológicos, pois seria massivo o descarte de material.

É bom lembrar que, dentre esses textos, muitos são documentos oficiais e

circulavam de uma parte a outra do oceano, a maioria não resistiu a essa movimentação,

perdeu-se, extraviou-se, deteriorou-se. Além disso, nos antigos órgãos, como as Casas de

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Contratações, registravam-se tudo o que se expedia e o que se recebia. Desse modo, o

material arquivado revela essa conturbada transmissão textual.

Ademais dessa documentação oficial, há muitos textos pessoais, cartas familiares,

missiva entre conhecidos. Um caso interessante diz respeito aos impressos, também

chamados de relatos ou relaciones de suceso, muitos são epistolas familiares enviadas por

militares e colonos em terras americanas a seus parentes em terras europeias. Após

chegarem ao destino, eram vendidas por seus destinatários a impressores, que

“melhoravam” esses relatos, imprimiam e vendiam em feiras públicas. Havia um grande

interesse da população em saber o que acontecia em solo indiano, aliado a isso havia um

interesse público em alimentar o imaginário popular sobre o que ocorria do outro lado do

Atlântico. Com isso, é muito comum encontrar textos impressos que fazem referência

direta a uns manuscritos, que possivelmente haja se perdido.

Quanto a nossa temática, como afirmamos antes, é o contexto de produção e

recepção textual que condiciona a ocorrência ou não do Multilinguismo e do seu subtipo, já

que, embora a principal colonização americana, tenha sido efetuada pelos portugueses e

espanhóis, aqui se repetiu o contato linguístico corrente na Europa latina, por isso que se

denomina Romania Nova.

A principal interação encontrada é entre as Línguas Portuguesa e Espanhola, já que

são línguas que apresentam um histórico de contato antigo, ademais de uma mesma

origem latina. Seguidamente, nesse Multilinguismo, identificamos a presença de outros

idiomas, como Francês, Italiano, Inglês e Holandês. Justamente por se tratar de das línguas

utilizadas nos negócios americanos como língua franca.

Nesse contexto de interação linguística, é bom que tenhamos em conta que tanto o

Espanhol quanto o Português estavam em construção de seus padrões normativos na

Península Ibérica no século XVI – claro que esta data é fictícia, pois mesmo antes e depois

esse processo continuou; além disso, ambos os idiomas lutavam por um uso universal

dentro de seus territórios geográficos, relacionando-se com outras línguas, como, por

exemplo: Catalão, Galego (Galego-Português), Astur-Leonês, Aragonês, Mirandês, dentre

outras.

No contexto americano de interação, notamos que o Português e o Espanhol se

relacionaram diretamente com as diversas línguas indígenas (e seus crioulos),

posteriormente com as línguas africanas (e seus crioulos), devido ao tráfico negreiro. Ao

lado desses dois importantes elementos linguísticos, verificamos ainda que a América foi (e

é) uma zona de contato entre as línguas europeias.

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Quanto às sistematizações de ambos os idiomas, observamos que a primeira

gramática de Língua Espanhola data de 1492 (Gramática castellana) e a de Língua

Portuguesa, de 1536 (Grammatica da lingoagem portuguesa). Somado a isso, temos a

imposição de uso de tais línguas em contexto americanos. Em 1759, o Marquês de Pombal

proibiu o uso da língua geral na América portuguesa (Brasil) e, em 1770, o Rei Carlos III

ordenou que se falasse Castellano mesmo na América espanhola. Claro que, antes dessas

datas, há registros de ações de protecionismo a tais idiomas.

Com base nesses dados, vemos que havia uma política protecionista das citadas

línguas no espaço americano, porém isso não impediu que textos fossem escritos (e

principalmente falados) em outras línguas, ou que não houvesse uma interação linguística

tanto entre as línguas europeias, quanto entre estas e as indígenas. O primeiro texto de

caráter “indiano” produzido sobre a América foi o Diario de Bordo, de Cristóvão Colombo.

Classificado entre as chamadas crônicas americanas, o Diário colombiano tem sua escrita

em um Espanhol aportuguesado6, além da presença de inúmeras palavras de origem

indígena7. Isto é, o texto indigenista primeiro é um exemplo patente do Multilinguismo, que

marcou fortemente a colonização deste lado do Atlântico.

Entendemos que o Português e o Espanhol funcionavam como língua franca dentro

da administração colonial ibero-americana. Ao lado delas, situamos as línguas indígenas:

Língua Geral (ou Tupi) e Língua Geral Amazônica (ou Tupinambá) – contexto português;

Náuatle (México e América Central), Quíchua (Peru, Equador, Bolívia etc), Chibcha

(Colômbia) e Guarani (Paraguai), dentre outras.

Como língua franca, cada uma desses idiomas (crioulo) funcionava dentro de uma

esfera geográfica e pelos grupos sociais que ali circulavam. Seu funcionamento tanto

concorria, quanto coocorria, e isso condicionado principalmente pelas relações sociais

assimétricas e simétricas.

Sendo nosso estudo a documentação americana - escrita em ambiente oficial -

podemos propor uma escala de uso linguístico, nesse contexto multilíngue, a qual

apresenta os seguintes elementos condicionantes: a) espaço geográfico: América

portuguesa, espanhola...; b) espaço temporal: século XVI e XVII ou período independentista;

c) gênero textual: carta pessoal ou oficial, requerimento, tratado etc; d) perfil e formação

6 Conforme MENÉNDEZ PIDAL, R. La lengua de Cristóbal Colón. Madrid: Espasa-Calpe, 1942. 7 Existe uma grande discussão em relação à língua (e a origem) de Colombo. Em seu Diário, há quem aponte ainda a presença de galeguismo (GARCÍA DE LA RIEGA, C. Colón español, su origen y patria. Madrid: Sucesores de Rivadeneyra, 1914.), catalanismos etc (ARRANZ MARQUEZ, L. Cristóbal Colón: Misterio y Grandeza. Madrid: Marcial Pons, 2006.).

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do escrevente e do destinatário: nobre, militar, civil, religioso, político etc; e) conteúdo

textual; f) original/cópia; g) manuscrito ou impresso.

Analisar o multilinguismo hispano-português na documentação americana a partir

de uma proposta escalar e gradual possibilita um entendimento funcional da categoria em

questão, pois, ao estabelecer categorias tricotômicas, a análise textual fica limitada a um ou

outro fenômeno e, como ilustraremos abaixo, há documentos nos quais se manifesta um

Multilinguismo pleno, com todas as suas divisões. Ainda nessa proposta de continuum

multilíngue, verificamos que há uma manifestação intensa entre Português e Espanhol e

uma manifestação restrita das línguas indígenas, quanto aos outros idiomas citados eles se

situam medianamente na escala. Vejamos:

Espanhol Português

�� Francês, Inglês,

Italiano etc ��

Línguas Indígenas

Esquema 1 –Continuumdo Multilinguismo na Documentação Indiana

De antemão apontamos que toda tentativa de sistematização linguística torna-se

difícil, pois lidamos como um objeto de estudo fugidio, a língua, principalmente quando

tratamos de um fenômeno condicionado por fatores linguísticos e pragmáticos, como é o

Multilinguismo; daí que a tabela acima apenas é uma forma esquemática de apresentar as

relações multilíngues manifestadas na Documentação Indiana.

Na ponta esquerda, encontram-se o Português e o Espanhol em plena interação, já

que essas são as línguas dos que dominaram a máquina colonial americana, assim as

relações sociais, históricas, administrativas e linguísticas giram em torno dessas duas

línguas na America Ibérica. No meio, também temos línguas europeias, ligadas a nações que

realizaram incursões na América. Sua manifestação na Documentação Indiana ocorreu

devido a sua presença tanto oficial, administrativa, quanto não oficial, por meio de

iniciativas particulares: basicamente mercenários militares ou civis, piratas, desertores, ou

pessoas que já residiam ou estavam a serviço em Portugal ou Espanha.

Na ponta direita, temos as línguas indígenas. Sua menor ocorrência é relativa, pois,

embora fossem línguas ágrafas e sem uma cultura escrita ainda fixada, transmitiram um

enorme patrimônio lexical às línguas europeias. Sua posição menor na escala também se dá

porque, quando de sua manifestação, vocabular, há um acomodamento fonológico e

morfossintático na língua receptora. Lembramos que essa ideia de continuum busca

entender o fenômeno em termos de sua relatividade e funcionalidade, cuja ideia

“maior/menor manifestação” não apresenta nenhum juízo de valor.

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4 OS TIPOS DE MULTILINGUISMO

Nesta seção, apresentaremos alguns exemplos de Multilinguismo, seguindo a ordem

relatada na 2ª. parte deste texto. Para cada fenômeno, indicaremos trechos de alguns

documentos, acompanhados de sua transcrição e data.

i) Interferência linguística (Language transfer) – entendida como a influência de um

sistema linguístico em outro sistema de um mesmo falante (transferência) ou de

uma comunidade de fala (empréstimo). Verificamos tanto interferências entre

Português e Espanhol, mas também entre línguas indígenas, porém esse tipo de

interferência (ou combinação) se deu por ou via portuguesa ou espanhola, já textos

escritos por não nativos e presença de palavras indígenas. Observemos:

Morgado de Oliveyra – 1625

de Masapes – 1615

los aliserses – 1615

Llegó toda la armada junta al puerto de Macoripe presidio de Siara – 1615

Figura 1 – Exemplos de Interferência

ii) Mistura de Código – compreendida como a associação de um ou mais códigos

linguísticos durante a interação linguística. Aqui não encontramos mixagem entre

Português e Espanhol na Documentação Indiana, mas identificamos em um

documento de 1604, escrito por um holandês, que morava na Ilha de Bornéu e

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enviou uma carta ao rei português. Além desse caso, também identificamos Mistura

de Código entre Espanhol e Francês. Vejamos a seguir:

Los amisades –minha flota - volontade

leur appartenant en quelque sorte

Figura 2 – Exemplos de Mixagem

iii) Mudança/Alternância de Código - entendida como a mudança eventual do idioma

ou da variedade linguística em uso, citamos os casos de tradução e versão.

Durante a União Peninsular era comum a tradução dos documentos, pois eram

apresentados aos monarcas espanhóis, assim era escrito um texto e, dada sua

importância administrativa, tinha sua tradução efetuada. Além desses exemplos,

citamos missivas trocadas durante as invasões ao Uruguai – encontramos

também traduções do Português e Espanhol para Inglês ou Francês –, e os

tratados estabelecidos entre as duas nações e, posteriormente, entre o Brasil e as

novas repúblicas latinas, consideradas versões. Muda-se o código justamente

para que o texto atenda à demanda de seu destinatário. Ilustramos com uma

carta de 1809, escrita por Carlos José Guetzi ao vice-rei de Buenos Aires, Santiago

Liniers:

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{f1}{1} Traduccion {2} Quando llegó la Corte de Portugal ál Rio de Janeyro {3} ya se hallaba aquí un Español llamado Antonio López

{f1}{1} Quando chegou a Corte de Portugal ao Rio de Janeiro já se achava aqui hum Espanhol por nome Antonio Lopes

Figura 3 – Mudança de código

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossas conclusões direcionam-se mais à comentários preliminares, pois estudar a

Documentação Indiana é deparar-se com vários fenômenos, inclusive linguísticos. Aqui

tentamos apenas apresentar algumas manifestações do Multilinguismo nesses documentos,

motivado principalmente pelo contexto social e histórico da época. Assim, este texto tenta

apontar caminhos para o estudo do texto antigo com base na interação linguística.

Pensar que o contato linguístico é algo recente ou que as línguas são “puras” no

sentido de que cada uma se movimenta em compartimentos isolados, é ilusão. Tanto os

idiomas quanto seus falantes interagem o tempo todo e sempre que precisam, sempre. É

como ilustramos com a ideia do contiuum, há línguas que interagiram mais outras menos,

há línguas que se permitiram interagir mais ou trás menos, há línguas que interagiram

mais outras menos com o Português/Espanhol, os quais sempre se apresentam em

situações de contato, porquanto já havia toda uma tradição em tais relações idiomáticas.

Quando o assunto contato linguístico é visto desde a Romania Nova, os casos

multilíngues parecem que se multiplicam, porque entram em ação as línguas americanas.

Além disso, encontramos as línguas europeias lidando com elementos externos e internos

que condicionaram variações e mudanças: um novo espaço geográfico, um novo contexto

social, novas relações pessoais.

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PROCESSO DE MUDANÇA LINGUÍSTICA DOS ADVÉRBIOS EM –MENTE: GRAMATICALIZAÇÃO OU LEXICALIZAÇÃO? Emanuela Monteiro Gondim Universidade Federal do Ceará Resumo Neste trabalho, pretendemos fazer um estudo diacrônico dos advérbios em -mente, partindo das modalidades clássica e vulgar do latim e chegando ao português trecentista, a fim de verificar se tais advérbios sofreram, além do processo de gramaticalização, o processo de lexicalização. Para tanto, analisamos as construções em -mente em textos latinos da Vulgata, representantes da variedade vulgar do latim; nas obras de Ovídio e Vergílio, representantes do latim clássico; nos textos do Mosteiro de Santa Maria de Meira (MSMM), como representantes do romanço; e nos textos notariais e literários do séc. XIII e XIV, retirados, respectivamente, do Corpus Informatizado do Português Medieval (CIPM), e do Corpus do Português (CP).No que concerne aos processos de gramaticalização e de lexicalização, apoiamo-nos na proposta de Lehmann (2002), que é contrário à ideia de que esses processos são opostos. Para ele, tais fenômenos são, na verdade, complementares e podem ocorrer paralelamente. Concluímos, assim, que esses advérbios sofreram inicialmente o processo de lexicalização e posteriormente o de gramaticalização, que, ao que tudo indica, ainda não foi concluído. Ao que parece, o processo de lexicalização desses advérbios se iniciou no latim clássico, vez que já era possível acessar essas construções holisticamente e, no início da língua portuguesa, os advérbios em-mente já faziam parte do inventário lexical da língua. O processo de gramaticalização, parece ter tido início no português arcaico, quando tais advérbios passaram a expandir suas funções e incidindo sobre várias camadas do enunciado e não apenas sobre o verbo. Contudo, ao que parece, até o português trecentista, nenhum dos dois processos foi concluído. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste artigo, apoiamo-nos na proposta de Lehmann (2002), que defende que os

processos de lexicalização e de gramaticalização, ao contrário do que se imaginava, não são

opostos, mas sim paralelos e complementares. Para ele, a imagem no espelho da

gramaticalização é a desgramaticalização e a imagem no espelho da lexicalização é a

etimologia popular8.

8 Trataremos melhor dessa questão na próxima seção.

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Pretendemos, neste artigo, considerar os advérbios em -mente sob a perspectiva de

Lehmann (2002), a fim de verificar por quais processos esses advérbios passaram.

Consideramos o período que parte das modalidades clássica e vulgar do latim e chega ao

português arcaico. Para tanto, utilizamos como corpora as obras de Virgílio e Ovídio, que

nos serviram como representantes do latim clássico; os textos da Vulgata, como

representantes do latim vulgar; os textos do Mosteiro de Santa Maria de Meira (MSMM),

como representantes do romanço; e os textos notariais e literários do séc. XIII e XIV,

retirados, respectivamente, do Corpus Informatizado do Português Medieval (CIPM)e do

Corpus do Português (CP).

Nosso trabalho encontra-se dividido em duas seções. Na primeira, discorremos

sobre a visão de Lehmann (2002) quanto aos processos de gramaticalização e lexicalização

e, na segunda, tratamos especificamente das construções adverbiais em –mente desde as

modalidades clássica e vulgar do latim até o português trecentista.

2 GRAMATICALIZAÇÃO E LEXICALIZAÇÃO NA VISÃO DE LEHMANN (2002)

Na literatura da linguística funcionalista, há inúmeros trabalhos que tratam de

gramaticalização. Contudo, poucos se interessam pela lexicalização. Muitos autores

trataram esses processos como opostos, defendendo que elementos originalmente

gramaticais poderiam se tornar lexicais, por meio do processo de lexicalização, e elementos

lexicais poderiam se tornar gramaticais, por meio do processo de gramaticalização.

Contudo, alguns autores têm se dedicado a esclarecer melhor não só o processo de

gramaticalização, mas também o de lexicalização. Entre tais autores, destacam-se os

estudos de Lehmann (2002) e Brinton e Traugott (2005). Apesar de seguirmos, neste

trabalho, a proposta do primeiro, é necessário que façamos também uma breve

consideração sobre os estudos de Brinton e Traugott (2005).

Cambraia et al. (2011, p. 34-35) traduzema definição de Brinton e Traugott (2005)

sobre gramaticalização e lexicalização:

lexicalização é uma mudança na qual em certos contextos linguísticos os falantes usam uma construção sintática ou formação de palavra como uma nova forma portadora de conteúdo com propriedades formais e semânticas que não são totalmente deriváveis ou previsíveis a partir dos constituintes da construção ou do padrão de formação de palavra. Com o passar do tempo, pode haver perda de constituência interna e o item pode tornar-se mais lexical.Gramaticalização é uma mudança na qual em certos contextos linguísticos os falantes usam partes de uma construção com uma função gramatical. Com o passar do tempo, o item gramatical resultante pode tornar-se mais gramatical adquirindo funções mais gramaticais e expandindo suas classes-hospedeiras.

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Desse modo, as autoras acreditam que estruturas complexas podem, com o uso, ser

fossilizadas. As que expressam categorias maiores (substantivos, adjetivos e verbos, por

exemplo) são lexicalizadas e as que expressam classes de palavras menores são

gramaticalizadas. Cumpre ressaltar, ainda, que, para elas, esse dois processos têm muito

em comum, vez que ambos são processos graduais e unidirecionais que levam a redução de

composicionalidade estrutural.

Lehmann (2002), por seu turno, faz uma relação entre esses processos e a maneira

como abordamos um determinado objeto complexo. Afirma que podemos analisar um

elemento complexo de duas maneiras: por meio de uma abordagem analítica, ou seja,

analisando as partes do objeto e, posteriormente, seu todo; ou por meio de uma abordagem

holística, isto é, analisando o todo sem considerar as partes. De tal modo, ele assevera que

gramaticalização envolve um acesso analítico a uma unidade, enquanto lexicalização

envolve um acesso holístico de uma unidade, ou seja, uma renúncia de sua análise interna.

Assim, a lexicalização ocorre quando um determinado signo é retirado do acesso analítico e

começa a fazer parte do inventário lexical da língua. Por outro lado, a gramaticalização

ocorre quando um signo adquire funções na formação analítica de signos mais

abrangentes. Ambos os processos não dizem respeito a signos de forma isolada, mas a

signos nas suas relações paradigmáticas e sintagmáticas.

Isso se dá porque, para o autor, a diferença essencial entre gramática e léxico é a

seguinte: a primeira se preocupa com os signos que são formados regularmente e tratados

analiticamente; o segundo se preocupa com os signos que são formados irregularmente e

tratados holisticamente. Destarte, acessar um elemento holisticamente significa tratá-lo

como uma entrada do inventário da língua, ou seja, como um item lexical. Tomemos como

exemplo o verbo português botar nas sentenças abaixo:

(1) botar água no feijão

(2) Não bote boneco no trabalho, seja paciente, pois...

(3) O homem botou o maior boneco pra pagar!

A construção (1) é um exemplo apresentado pelo dicionário Houaiss do verbo botar

funcionando como transitivo direto e indireto. Dessa forma, tendemos a tratar a construção

(1) de forma analítica, ou seja, X bota Y em Z. As construções (2) e (3), por sua vez, são usos

próprios do português cearense (Cf. RODRIGUES, 2012). Essa construção ainda não está

fossilizada, pois percebemos que ainda pode haver a intercalação de elementos entre os

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vocábulos botar e boneco— como ocorre em (3) — e o verbo botar continua sujeito à

flexão. Contudo, ao que parece, os falantes dessa variedade do português tendem a tratar a

construção botar boneco de forma holística, o que, segundo Lehmann (2002, p. 3), significa

tratá-la como uma entrada no inventário. O autor afirma, ainda, que, quando o acesso

holístico da construção se torna mais proeminente, dá-se o primeiro passo para a

lexicalização.

Quanto ao processo que se opõe à lexicalização, Lehmann (2002, p. 16) afirma que,

ao contrário da lexicalização — processo que está em constante atuação na atividade

comum da língua — “conferir estrutura a uma expressão até então opaca não é um

ingrediente automático da atividade da língua, mas demanda uma medida intensificada de

criatividade”. Como vimos anteriormente, tal operação é chamada de etimologia popular e

é bem mais rara que a lexicalização. Reproduzimos abaixo o quadro utilizado pelo autor

para a visualização desses processos.

Extraído de Lehmann (2002, p. 17) – tradução nossa

Quadro 1 – Processo de lexicalização

Quanto ao processo que se opõe à gramaticalização, Lehmann (2002, p. 17) afirma

que, ao contrário da gramaticalização — processo que está em constante atuação na

atividade comum da língua — “dar autonomia a uma expressão até então dependente não é

um ingrediente automático da atividade da linguagem, mas exige uma medida reforçada de

criatividade”. Como vimos anteriormente, tal operação é chamada de

desgrammaticalização e é bem mais rara que a gramaticalização. Reproduzimos abaixo o

quadro utilizado pelo autor para a visualização desses processos.

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Quadro 2 – Processo de gramaticalização extraído de Lehmann (2002, p. 17)

Por fim, cumpre ressaltar que, para o autor, tanto o processo de gramaticalização

como também o de lexicalização são redutivos, vez que restringem a liberdade do falante

na seleção e na combinação dos constituintes de uma expressão complexa. Podemos

concluir, assim, quea gramaticalização e a lexicalização agem, respectivamente, no eixo

saussuriano sintagmático e paradigmático.

Além disso, ambos os processos podem, até certo ponto, ser considerados uma

transição de uma expressão da parole para a langue, o que está, segundo o autor, “em

consonância com a concepção de langue como o sistema da língua cujo subsistema

semântico consiste do léxico e da gramática” (LEHMANN, 2002, p. 17). Assim, ele defende

que os dois processos são as duas faces de Jano, isto é, o presente e futuro para a criação do

sistema da língua na parole, para a Versprachlichung (verbalização) do mundo.

Após essa breve explanação sobre o conceito lehmanniano de gramaticalização e

lexicalização, tentaremos, na próxima seção, avaliar a trajetória percorrida pelos advérbios

em -mente, a fim de perceber se tais construções sofreram, além do processo de

gramaticalização - já estudado, por exemplo, por Silva, Carvalho e Almeida (2008) e

Gondim (2011) -, também o processo de lexicalização.

3 AS CONSTRUÇÕES ADVERBIAIS EM -MENTE

É sabido que os advérbios em -mente são oriundos de construções latinas,

constituídas com substantivo feminino latino mens, mentis, que significa “mente, espírito”.

Segundo Camara Jr. (1979), inicialmente, este substantivo era utilizado no ablativo e

combinado com um adjetivo que se queria usar adverbialmente. Como devia concordar

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com o substantivo a que se referia, esse adjetivo também era declinado no caso ablativo e

no gênero feminino.

A respeito da gênese dessas construções, Maurer Jr. (1959) acredita que esse

emprego adverbial do adjetivo acrescido do -mente tem sua origem no latim vulgar, já que

as expressões formadas com o ablativo mente são usadas, segundo ele, com alguma

frequência, pelos autores cristãos. Outro argumento usado por muitos autores para

comprovar essa origem vulgar é o fato de que as formações em -mente são próprias de

quase todas as línguas neolatinas, excetuando-se apenas o romeno. Todavia, Duarte (2009),

discordando desse ínsigne autor, afirma que esse mecanismo pode ter origem ainda no

latim clássico, visto que Väänänen (1975) cita exemplos de formações com mente nos

autores clássicos Vergílio e Cícero, e Coutinho (2005, p. 254) detecta exemplo de tais

formações em Ovídio – “mente ferant placida” – e em Quintiliano – “bona mente factum”.

Cavalcante (1998), ao versar sobre essa questão, também assume que o latim

clássico já empregava o mente em perífrases adverbiais, porém, para ele, é no latim vulgar

que este uso se torna mais recorrente. O autor explica que o latim clássico, como é sabido,

era mais sintético, utilizando preferencialmente certas formas no ablativo e no acusativo

ou algumas terminações que acrescidas a adjetivos formavam advérbios, como -ē, -ter ou -

ĭter, -ō, -um, -a, -im, -tim, -atim e -ĭtus. Algumas dessas terminações, inclusive, podem

formar advérbios sendo acrescidas não só a adjetivos, mas também a numerais e

particípios, por exemplo. Entretanto, além dessas formas sintéticas, Cavalcante (1998)

ressalta que, mesmo não sendo tão frequentes, havia também algumas formas adverbiais

analíticas, como as construídas com sintagmas preposicionais — formadas com a

preposição latina cum acompanhada de nomes no ablativo — e as locuções perifrásticas.

Quanto às locuções perifrásticas, Cavalcante (1998) afirma que tais locuções eram

empregadas no ablativo ou, se acompanhados da preposição in, no acusativo e associavam

adjetivos ao substantivo modo. Assim, segundo o autor, humano modo, lento modo e mirum

in modum, significam, respectivamente, de modo humano ou humanamente, de modo lento

ou lentamente e de modo admirável ou admiravelmente. O autor afirma que, naturalmente,

houve uma substituição de modo por mente para indicar a atitude do sujeito falante, devido

ao caráter especificamente psicológico do segundo elemento. Assim, o autor cita as

seguintes frases de notórios representantes da variedade clássica do latim em que o

substantivo mens,-tisé utilizado com valor psicológico junto a um adjetivo.

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(01) Deos pura, intēgra, incorrupta et mente et uoce uenerari debemus (cícero) devemos venerar aos deuses não só com a voz mas também com a mente pura, íntegra e

incorrupta (=pura, íntegra e incorruptamente) (02) Menteferent plācida(ovídio) que o suportem de espírito sereno (=serenamente) (03) Obstinata mente perfer (catulo) resiste com amente obstinada (=obstinadamente) (04) Sensit enim simulata mentelocutam esse (vergílio)9 percebeu (vênus) que ela (juno) falou com intenção simulada (=simuladamente) Em estudo monográfico anterior, recorremos a obras de Vergílio e de Ovídio, a fim

de buscar outras ocorrências dessa construção e verificar se o mente ainda teria teor

psicológico ou se conseguiríamos encontrar exemplos de construção em mente com outro

valor. Contudo, nas ocorrências de ambos os escritores que analisamos, realmente ainda se

podia verificar o valor psicológico do mente.

De todo modo, acabamos por concordar com Duarte (2009) quanto à genuinidade

clássica dessas construções, pois, mesmo que timidamente e ainda com uma forte

significação psicológica, tais construções eram utilizadas ainda no latim clássico. Além

disso, é possível perceber, nessa variedade do latim, a coexistência de inúmeras formas

adverbiais e que, em grande parte, serão substituídas pelas construções em -mente, o que,

em Gondim (2011), nos fez crer que poderíamos identificar, nesse período, o princípio de

estratificação de Hopper (1991).

Contudo, analisando a construção sob a perspectiva de Lehmann (2002), chegamos

à conclusão que, inicialmente, a construção no ablativo adjetivo + mente passou pelo

processo de lexicalização. No latim clássico, essas construções ainda não estavam

fossilizadas, como podemos perceber no exemplo (09), e, ao que parece, tanto o adjetivo

como o substantivo mens, -tisforneciam conteúdo semântico à construção. Apesar disso, a

construção já parece ter dado os primeiros passos a caminho da lexicalização, pois nos

exemplos abaixo conseguimos acessá-la tanto analítica, como holisticamente. Contudo,

percebemos que, entre a abordagem analítica e a holística, há uma ligeira alteração no

significado da expressão, como podemos ver nos exemplos abaixo.

(05) laeta mente receptum (ovídio) recebido com mente alegre/alegremente

9 Quanto à locução simulata mente usada por Vergílio, há uma nota no respeitado dicionário latino de F. R. dos Santos Saraiva, na qual se traduz essa expressão como com dissimulação e não como com mente dissimulada, o que nos faz pensar que o autor já percebe em tal locução um início de gramaticalização.

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(06) et patriae rigida mente negauit opem (ovídio) e com mente fria/friamente negou auxílio à pátria (07) Et curam tota mente decoris agat (ovídio) e leve com toda mente o cuidado com o decoro (08) non tulit hanc speciem furiata menteCoroebus (vergílio) Corebo, com mente furiosa, não suportou esta imagem (09) habes tota quod mente petisti (vergílio) tens tudo o que pediste com toda a mente Quanto ao latim vulgar, encontramos, devido à pequena quantidade de fontes dessa

variedade, poucas ocorrências da construção adjetivo + mente.Nesse período, essas

construções também não haviam se fossilizado, como podemos ver no exemplo (11).

Entretanto, cumpre lembrar que foi nessa variedade latina que o uso dessas perífrases se

generalizou, vez que, como é sabido, no latim vulgar, as formas analíticas eram mais

utilizadas que as sintéticas. Assim, segundo Cavalcante (1998), nessa variedade, as

adverbiais perifrásticas formadas com a palavra mente acompanhada de adjetivo

substituíam as formas sintéticas. Podemos entender esse fato como um indício de que, no

latim vulgar, essas construções já faziam parte do inventário da língua latina, pois, se

estivessem fora do inventário lexical da língua, essas construções não poderiam substituir

expressões próprias do léxico latino.

(10) Omnes viri et mulieres mente devota obtulerunt donaria (vulgata) todos os homens e as mulheres ofereceram devotamente as oferendas dos templos (11) Ivxta quod mente devoverat (vulgata) o que tinha consagrado justamente Quanto às ocorrências do romanço e do português arcaico que analisamos,

concluímos que, desde o romanço, os advérbios em -mente não apenas já faziam parte do

inventário lexical da língua portuguesa, como já haviam começado a passar pelo processo

de gramaticalização, vez que, nesse período, tais advérbios não funcionavam apenas como

modais, mas também como circunstanciais e focalizadores, por exemplo; e não incidiam

apenas sobre verbos. Na verdade, desde o início da língua portuguesa, tais construções são

capazes de afetar diversas camadas do enunciado, como podemos ver no exemplo abaixo,

no qual o advérbio juntamente incide sobre um sintagma preposicionado.

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(12) Onega díaz hija de diego guillelmiz, juntamente con sus hijos e hijas venden a don

nicolás, abad de meira, las heredades que tienen en tierra de crecente (msmm –séc xii)

Como vemos abaixo, nas abonações dos séculos XIII e XIV, as relações sintáticas dos

advérbios em –mente foram ainda mais diversificadas. Associaram-se, não apenas a verbos,

como também incidiram, por exemplo, sobre adjetivos, substantivos, pronomes.

(13) Mandamos que se faça por esta guisa comuem a saber olhando primeiramente a

calidade das pessoas os que forem mais Ricos paguem quoremta libras (cipm – séc xii)

(14) E o sseu 57antimento eram fallamentos ((L)) sp(ri)tuaaes e davam aos corpos tam ((L)) ssollamente aq(ue)llo que lhes era neçessaryo. (cipm – séc xii)

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho se propôs a fazer um estudo diacrônico dos advérbios em -mente,

partindo do latim clássico e chegando ao português trecentista, a fim de verificar se tais

advérbios sofreram, além do processo de gramaticalização, o processo de lexicalização.

Ao que tudo indica, no latim clássico, já era possível acessar essas construções

holisticamente. No latim vulgar, essas construções, além de poderem ser acessadas

holisticamente, tornaram-se mais gerais e passaram a substituir as formas sintéticas, o que

mostra que o processo de lexicalização dessas construções já estava mais avançado que no

latim clássico. Por fim, no início da língua portuguesa, os advérbios em -mente já faziam

parte do inventário lexical da língua. Contudo, como, até mesmo no português atual, essa

construção ainda é passível de segmentação, parece ainda não ter concluído o processo de

lexicalização. Prova disso é que os advérbios em –mente podem, em uma sequência

adverbial, ser acrescidos apenas ao último adjetivo, como ocorre no exemplo apresentado

em Silva, Carvalho e Almeida (2008, p. 37):

(15) Está lá na sua cidadezinha, criando agora os netos, como criara os filhos, pacífica,

honrada e banalmente. (Jorge Amado) Além disso, no português trecentista, tais advérbios também já haviam iniciado o

processo de gramaticalização, expandindo suas funções e incidindo sobre várias camadas

do enunciado e não apenas sobre o verbo.

Temos consciência de que, para confirmação desses resultados, é necessária uma

análise mais exaustiva, que averigúe um maior número de ocorrências de forma não só

qualitativa, mas também quantitativa.

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VÄÄNÄNEN, V. Introducción al latín vulgar. Madrid: Gredos, 1975.

À LUZ DA HISTÓRIA DA LÍNGUA: VARIAÇÃO, EVOLUÇÃO E EDUCAÇÃO

Enoe Cristina Amorim Rodrigues Universidade do Porto/Instituto UFC Virtual

Resumo Pretende-se, neste trabalho, apresentar alguns pontos de interseção entre o Português Europeu (PE) e o Português Brasileiro (PB), analisando alguns aspectos sintáticos e fonológicos em contraste, tanto diacronicamente como sincronicamente. O primeiro contributo é dar a perceber que as duas variantes do português não são tão contrastantes como se costuma expor. Para a história do português, alguns autores serão abordados, como: Teyssier (1982), Silva Neto (1979) e

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Maia (2010). Outro objetivo da comunicação é analisar a importância do ensino da variação de línguas, mais especificamente da variação da língua portuguesa no Ensino Fundamental e Médio, afim de que os alunos possam perceber, desde cedo, que a língua não é estática nem rígida como é normalmente mostrada e tratada em sala de aula. As lições de Bagno (2005) e Possenti (2008) serão de extrema relevância para o âmbito educacional deste trabalho. Os seguintes passos serão seguidos: uma breve análise histórica do português europeu e do português brasileiro desde o latim, passando pela formação da língua portuguesa na Península Ibérica e chegando aos dias atuais da língua no Brasil e em Portugal. A seguir, serão expostos um caso concreto de evolução fonológica e outro de evolução sintática. Finalmente, a partir do exposto anteriormente, será mencionada a importância do ensino da variação e da evolução do português em sala de aula. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A língua portuguesa, tanto em Portugal como no Brasil, é uma língua extremamente

variável. Sabe-se, porém, que muitas vezes a variante portuguesa é tida como a mais

correta ou até mais uniforme, enquanto a variante brasileira é tida, por vezes, como

variável e até “errada”.

Um mínimo de conhecimento sobre a evolução da língua, desde o latim até os dias

atuais (passando pela Península Ibérica e chegando ao Brasil), faz-nos perceber que tais

ideias são errôneas e infundadas.

A variação, que é resultante de todo esse processo de evolução da língua em locais

distantes geograficamente, fez do português uma língua realmente bastante heterogênea.

Porém, essa heterogeneidade não se limita apenas ao território brasileiro. O português

europeu parece ser tão variável como o português brasileiro. E, tal como no Brasil, mantém

muitas vezes, em locais (localidades, vilas, cidades, regiões) mais isolados, características

mais arcaicas, seja na fonologia, sintaxe ou até mesmo no léxico. Enquanto nos locais mais

urbanizados é mais possível que a língua evolua mais rapidamente, perdendo traços

antigos com mais facilidade.

Porém, o desconhecimento de tais fatos e da história da língua pode acarretar no

que chamamos de preconceito linguístico. Por conta disso, acreditamos que o

conhecimento da história da língua é de grande importância para uma educação social, em

que o aluno passa a conhecer as variantes da sua língua: a padrão e as não-padrão, já que

todas elas são partes integrantes – e vivas – da língua. Ao reconhecer a sua variante, o

aluno poderá sentir-se dentro de um grupo social. Assim também poderá surgir interesse

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em conhecer a norma-padrão da língua, o que pode ser muito bem aproveitado pelo

professor de língua portuguesa para o letramento10 do educando.

Ao entendermos a história de um povo, podemos explicar muitos fenômenos sociais

que acontecem na atualidade. Se assim é para os estudos sociais, assim também é para as

outras ciências e principalmente para a língua. Ao compreendermos a história da língua

portuguesa, muitos fenômenos atuais que são vistos como modernos ou até mesmo

“errados”, poderão ser vistos por outro ângulo: pelo ângulo da variação e evolução de

línguas.

O conhecer é essencial para todas as áreas. Conhecer para poder falar, explicar e

questionar o mundo em que vivemos, a língua que falamos. E não é essa a educação que

queremos para os nossos jovens? Uma educação questionadora para o engrandecimento

intelectual do aluno e o desenvolvimento futuro da nossa sociedade, através de alunos mais

humanos e, obviamente, questionadores.

O atual ensino de língua materna ainda é bastante conservador e deixa muito a

desejar no que diz respeito à língua não canônica, não dando espaço para questionamentos.

Embora muito se fale de variação linguística, a aula de língua portuguesa ainda é

essencialmente gramática tradicional herdada dos lusitanos há alguns séculos. Ora, não

serão o tempo e o local dois fatores de distanciamento da nossa realidade? Será que a

língua que estudamos é a língua do nosso povo e dos nossos dias?

A história da língua portuguesa é extensa, embora seja uma língua relativamente

recente. Martins (1999), diz que os primeiros textos em português datam do século XII-XIII

na Península Ibérica. Antes disso, era tudo em latim, o que permaneceu sendo, durante

algum tempo, nas ordens oficiais e leis, por exemplo (SILVA NETO, 1979).

Para Castro (2006), a Reconquista Cristã foi essencial para a formação do português,

pois ele resultou da interação entre a língua do norte (galego-português) e os dialetos do

sul de Portugal, formando uma língua nacional.

Com essa expansão, Lisboa tornou-se um grande centro urbano. E o norte de

Portugal, que era onde havia o prestígio da norma, tornou-se obseleto e desprestigiado em

termos linguísticos.Silva Neto (1979) diz que, a partir dessa expansão, algumas regiões,

como a região norte, mantiveram alguns traços fonéticos antigos do galego-português.

10 Para entender um pouco mais sobre letramento e sua origem, ver artigo Letramento e alfabetização: as muitas facetas, de Magda Soares, 2003. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf/>. Acesso em: 24 ago. 2013.

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Assim, vemos que desde o início do português, a língua é variável, havendo essa relação de

prestígio da língua e preconceito linguístico.

Já a história da língua portuguesa no Brasil é bastante complexa devido à imensidão

do território e à influência linguística e social de diversos povos. O ponto de partida do PB

(português brasileiro) é o século XV do PE (português europeu), dado que a colonização

começou no século XVI. Um interessante fato linguístico é que no século XVIII não há ainda

nenhuma universidade no Brasil, contrariando a situação educacional da metrópole. Tal

fato nos ajuda a perceber o porquê do PB ser mais maleável quanto às normas da gramática

tradicional, visto que foi a educação a principal responsável pela normatização da norma

culta, principalmente da norma culta escrita.

A dúvida que os linguistas costumam pôr é: o PB é uma língua crioula? Esse não é

nosso objeto de estudo neste momento, porém, é preciso que tenhamos a noção de que o

português do Brasil é, ainda, uma incógnita de muitas facetas, em que poucas já foram

desvendadas por causa da escassez de dados.

Das línguas indígenas, o PB herdou algumas palavras que designavam nomes de

alimentos, de animais típicos, de rios e da cultura indígena em geral, já que a língua do

colonizador não tinha designação para elementos tão particulares do Brasil.

Como se vê, a língua portuguesa, em todas as suas variantes (embora aqui só

estejam duas em causa), é extremamente variável desde a sua origem. Nos dias atuais não é

muito diferente, pois continua a existir variação em todos os níveis linguísticos.

Portanto, é evidente que a caracterização dessas duas variedades do português vai

muito além de uma diferenciação entre o português brasileiro e o português europeu. Há,

na realidade, uma grande variação dentro de cada norma e, para percebermos a origem de

tais variações, é necessário olharmos para o passado sem a tentativa de sistematização

extrema, mas com o objetivo de observação de tendências, que podem dizer muito sobre o

passado e o futuro da língua. Olharmos, compreendermos e ensinarmos.

Será que essa realidade linguística e histórica deve continuar sendo omitida dos

alunos do ensino fundamental e médio? Será que é mesmo necessário que eles continuem

acreditando que só sabem português quando sabem classificar orações coordenadas e

subordinadas?

Se a língua é muito mais do que classificação, se é história, cultura, por que ainda

estamos ligados a uma tradição secular de gramática normativa?

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Para uma percepção da importância do ensino de variação na escola, a seguir serão

explicitados alguns casos de contraste do PB e do PE, tendo em conta a variação sincrônica

e a variação diacrônica.

O aspecto fonológico é o mais evidente para quem escuta uma língua. Por isso ouve-

se dizer que o PE é “fechado” e que o PB é “aberto”. Embora tenhamos essa percepção, será

que podemos generalizar esse tipo de classificação? Se, afinal, há variação dentro de todas

as línguas, é possível que haja também em vários níveis, como o fonético, neste caso.

Mattos e Silva (2001, p.1) diz que um estrangeiro, ao ouvir as duas variedades do

português em questão, acredita que o PE é mais consonântico, enquanto o PB é mais

vocálico. Essa impressão é reforçada pelo fato de no PB, na maioria das variantes, ter as

consoantes enfraquecidas quando estão em posição final, enquanto no PE, geralmente, o

final das palavras costuma apresentar articulação forte. (RODRIGUES, 2012). Em que

momento da história essa distinção se deu? Diante disso, surgem questionamentos

importantes em relação à língua, inclusive para alunos em fase escolar, já que essa deveria

ser uma das capacidades de um aluno do nível médio. Em que momento o PB abriu as

vogais não acentuadas? Ou foi o PB que as fechou?

Segundo Rodrigues (2012), para um falante comum, é possível que pareça que o PE

sempre reduziu as vogais átonas e que o PB tenha vindo a apresentar essa evolução, já que,

em geral, há a ideia de que o PE é a variante da língua correta, enquanto o PB é a variante

errada.

Em relação a essa mudança na língua, Cardeira (2006, p. 79) diz:

Uma mudança que se generalizou no Português foi a elevação e centralização das vogais átonas. Em contexto átono final, desde cedo (talvez ainda no Português arcaico), a vogal grafada <o> seria realizada como [u] (arcaico arcaic[u]) e esta tendência atingirá também as vogais <a> , que centraliza para [ɐ] (palavra palavra[ɐ]) e <e> que se eleva para [i] (ponte pont[i], elevação atestada pelo Português do Brasil e que acaba por centralizar para [ɨ] (ponte pont[ɨ]). Finalmente em contexto pretónico medial, as vogais médias e baixas /a/, /o/ e /ɔ/, /e/ e /ɛ/ passaram a ser realizadas, respectivamente /ɐ/ (palavra pal[a]vra mas palavrinha pal[ɐ]vrinha), /u/ (tolo t[o]lo mas tolice t[u]lice, mole m[ɔ]le mas moleza m[u]leza e /ɨ/ (pelo p[e]lu mas peludo p[ɨ]ludo, pedra p[ɛ]dra mas pedreira p[ɨ]dreira). Este é um fenómeno exclusivo do Português Europeu: a conservação vocálica no Português do Brasil que desconhece a vogal central [ɨ] permite-nos pensar que esta mudança se terá processado num período posterior à língua na América.

Analisando documentos históricos e com base em Rodrigues (2012), chega-se à conclusão

de que o português europeu devia articular claramente as vogais átonas e tônicas, apesar

de haver uma possível tendência de elevação das vogais. Tal mudança, que aconteceu

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muito lentamente, deve ter ocorrido em algum momento após a conquista do território

brasileiro, já que o PB manteve as vogais abertas, o que significa que, muito provavelmente,

a língua que entrou no Brasil com a colonização era essencialmente vocálica. Para

complementar o que já foi exposto, Teyssier (1982, p. 61) diz que as vogais alteadas se

generalizaram no PE durante a segunda metade do século XVIII. Porém, provavelmente

esta mudança já estaria em curso no território português há algum tempo.

Rodrigues (2012, p. 33) nos diz:

Tais factos nos levam a perceber que o fenómeno de alteamento das vogais, como toda e qualquer mudança da língua, já deveria existir em pequena escala e, aos poucos, foi sendo difundido até se tornar norma. Certamente, a evolução deste fenómeno da língua portuguesa que anteriormente era conotado negativamente também estaria relacionada com regiões específicas, possivelmente o centro-sul de Portugal e, no princípio, também estaria relacionada com classes sociais particulares.

Observando a sincronia, embora sejam tendências atuais da língua nessas duas

variantes, não significa que são fenômenos únicos e fixos. Seja em Portugal ou no Brasil, há

alternâncias em relação à abertura e ao fechamento de vogais, causando prestígio ou

desprestígio, consoante o local e a norma padrão da variante.

Saindo do campo fonológico, pensemos agora na morfossintaxe do português. As

formas de tratamento são alguns dos “bichos de sete cabeças” dos alunos no Brasil. Eles

passam anos aprendendo a conjugação do tu. E até hoje é raro alguém empregar o tu foste

sem o s de vós fostes. Seriam horas perdidas? Não é que os alunos não devam ter acesso a

bons textos e livros que utilizam as tais formas, é mais que isso: o aluno deveria ter acesso

à realidade da sua língua. Como evoluiu, como já foi, como poderá vir a ser. Essa

consciência linguística é benéfica, principalmente quando associada a bons textos e livros,

pois o aluno terá a capacidade de reconhecimento da sua fala e conseguirá adaptar o seu

discurso consoante a situação comunicacional em que se encontrar.

Quando se diz que em Portugal fala-se tu e que no Brasil fala-se você, apaga-se

completamente a heterogeneidade linguística das duas variedades, pois nelas coexistem

variadas formas de tratamento. Em Portugal a variação é mais discreta, pois não atinge a

flexão dos verbos.

Segundo Duarte (2010) a escolha das formas de tratamento pode ser vista pelos

princípios de interação discursiva. E, para a escolha ideal, cruzam-se questões linguísticas e

não linguísticas, bem como princípios de cortesia e de adequação ao destinatário: idade,

relação de hierarquia e de estatuto, distância ou proximidade da relação, formalidade ou

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informalidade da situação discursiva. Tal afirmação é confirmada nas duas variedades, já

que é sempre necessário ter em conta o estatuto do interlocutor para a escolha pronominal

ideal (RODRIGUES, 2012).

Os aspectos descritos acima não seriam de extrema relevância para jovens alunos?

Ou apenas os linguistas deveriam conhecer a realidade da sua própria língua? O

conhecimento do passado pode e é muito importante para o esclarecimento do presente.

Conhecer as questões sociais que permeiam a língua também pode ajudar a construir uma

sociedade mais justa, com menos preconceito e mais respeito ao próximo.

De que adiantaria ao aluno reconhecer orações subordinadas e não saber utilizar a

língua? A esse respeito, Bagno (2005) nos diz:

De fato, se o saber fizer sentido para o aluno, se o sistema apresentado for organizado de maneira coerente e não se reduzir a uma classificação ou a uma etiquetagem descoladas do uso e da significação, se não se restringir à palavra e à frase, a gramática aparecerá mais conectada com a língua, tal como a exploram os diferentes usuários,e não será mais vista como um discurso abstrato, inapropriável porque inadequado.

As formas de tratamento são exemplos interessantes quanto ao uso e à

ressignificação. Como já dito por Duarte (2010), passa por questões linguísticas e não

linguísticas.

No caso da evolução dos usos das formas de tratamento, podemos perceber que

esses critérios sempre foram variáveis. Tal como na redução do vocalismo átono, houve e

há intensa variação dentro de cada território. Faraco (1996) acredita que no processo de

colonização do Brasil a forma vós já estava em processo de arcaização, por isso o não uso

(ou uso restrito devido à escolarização posterior) na colônia. A forma vossa mercê já era,

segundo o autor, empregue de forma generalizada. Diz ainda que em Portugal o processo

de evolução do você parece ter estado relacionado a aspetos de variação linguística social e

geográfica, pois esse item é uma forma que tem marcas negativas em algumas regiões

rurais, o que leva a supor que teve origem urbana, possivelmente na fala informal da

burguesia.

Muitos autores falaram e tentaram provar a variedade dos usos das formas de

tratamento e de suas conotações nos variados contextos: Luft (1957) e Cunha (1985) são

dois grandes exemplos de linguistas que teorizaram sobre a evolução e os usos das formas

de tratamento.

Mais recentemente, Modesto (2005) acredita que no Brasil as formas de tratamento

estão, atualmente, reduzidas a duas: você, para tratamento íntimo e familiar e o senhor

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como forma de respeito, usado no tratamento cerimonioso. Diz ainda que a forma tu é

restrita, usada em algumas regiões do norte e extremo sul do País.

Porém, segundo Rodrigues (2012), não se pode negar a existência do uso do tu em

diversos contextos e regiões do Brasil, muitas vezes convivendo paralelamente ao você.

Porém, embora seja historicamente segunda pessoa, é usado como terceira sem a flexão

verbal histórica. Monteiro (1991, p. 222) diz que o pronome vocês ocupa a lacuna deixada

pelo vós, que parece ter diminuído seu uso há bastante tempo, para além de ameaçar a

existência do tu. A falta de oposição singular/plural do tu, segundo Rodrigues (2012), que

teria o vós como oposição, tem consequências no uso do pronome tu, pois, quando uso com

a flexão verbal histórica, é usado em situações de extremo cuidado. Já no PE é evidente que

o uso do tu é bastante difundido, mas já se começa a questionar se a diminuição de uso, tal

qual como no Brasil, já não estaria a começar, já que o uso do tu no contexto português

exige, em geral, uma relação de proximidade e igualitária entre os falantes.

Interessa observar que no PE o estatuto de você, nos dias atuais, é muito variável e

instável, pois nos mostra, naquele país, a distância entre os interlocutores, além de ser um

tratamento de respeito, hierárquico. Pode ser, inclusive, sentido de uma forma muito

negativa.

Com todas essas mudanças, os paradigmas verbais também mudam. Segundo

Rodrigues (2012), o português europeu apresenta hoje, na fala da maior parte dos falantes,

apenas cinco paradigmas verbais, ocorrendo a omissão da quinta pessoa vós. No entanto,

há algumas variedades diatópicas que apresentam as antigas seis posições.

Para o português brasileiro, Mattos e Silva (2001) diz que com a expansão do uso do

você e do a gente, além da diminuição do uso do tu e do vós, a terceira pessoa se generaliza,

podendo haver diferentes paradigmas verbais, chegando a ter apenas duas posições.

A diferença entre as duas variedades parece abissal, visto que o PE sofre poucas

alterações. Será que as duas normas são assim tão diferentes? Embora se distanciem de

algum modo, há alguns pontos de contato entre as duas variedades. Por exemplo, no Rio

Grande do Sul, o uso do tu é quase exclusivo e em outras regiões ainda mais restritas o tu é

usado com a flexão histórica (algumas cidades do estado do Rio Grande do Sul, por exemplo,

sempre tendo em consideração o nível de escolaridade do falante, sendo o tu, com a flexão

histórica, aprendido na escola).

Segundo Rodrigues (2012):

A redução do paradigma número-flexional do verbo, evidente no Brasil, traz grandes consequências para a sintaxe do português brasileiro. A principal delas é

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que cada vez mais se faz necessário o preenchimento do sujeito pronominal, o que faz com que o parâmetro pro-drop, possível no PE, seja potencialmente perdido no PB. Eis uma grande diferença das duas variedades do português: de modo geral, no PB cada vez mais o sujeito se torna necessário devido à redução dos paradigmas verbais, enquanto no PE o sujeito pronominal pode ser omitido sem prejuízo para a compreensão, o que não é garantido no PB, visto que sem o sujeito pronominal há grande possibilidade de haver ambiguidade em relação ao sujeito. Além disso, devido à redução do paradigma verbal, a ordem da frase no português brasileiro se torna mais fixa, com menos possibilidades de variação, enquanto a ordem da frase no português europeu pode ser mais variável.

Todas essas variedades de uso são importantes para percebemos parte do

movimento da variação e das mudanças das línguas. Relações de estatuto, relações sociais,

relações não linguísticas e linguísticas que permeiam o uso da língua.

Diante disso, há razão para omitir tais fatos dos alunos? A gramática normativa, que

se difere e muito da gramática do falante, não abrange usos e questões sociais, que são de

extrema importância para a formação pessoal e profissional de um aluno. Por que motivo,

apesar de termos uma norma variável, estudamos como se houvesse apenas uma? E essa

que é estudada, é uma norma de outra variedade, que não é tão distante, mas que não é

mais a nossa. Por que não ensinarmos a variação local, a variação diacrônica e a sincrônica?

Por que não mostrarmos a pluralidade de cultura e de formas da nossa língua? Por que não

procurarmos encontrar esses pontos de contato do que hoje é falado com o português

europeu antigo, o português europeu atual, o português brasileiro antigo, o português

brasileiro atual… e por que não pensarmos também no português da África?

Pensando no ensino da língua, Possenti (2008):

A noção mais corrente de erro é a que decorre da gramática normativa: é erro tudo aquilo que foge à variedade que foi eleita como exemplo de boa linguagem. É importante, neste ponto, fazer duas considerações. A primeira é que "os exemplos de boa linguagem" são sempre em alguma medida ideais e são sempre buscados num passado mais ou menos distante, sendo, portanto, em boa parte arcaizantes, quando não já arcaicos. Certamente, embora em matéria de língua nada seja uniforme, os exemplos de boa linguagem utilizados pelas gramáticas são mais arcaizantes do que os encontrados em jornais e nos textos de muitos escritores vivos de qualidade reconhecida.

Com a citação de Possenti, temos a clara noção de que a educação gramatical no

Brasil é realmente arcaica, inutilizada até por grandes meios de comunicação e por bons

escritores. Por que os alunos devem aprender uma língua que não é utilizada nem por seus

familiares, nem pelos seus próprios professores e nem escritores reconhecidos?

Tomando esses exemplos de variação, devemos pensar no que o aluno poderia

aprender se conhecesse a real história da língua. Além da curiosidade despertada, o aluno

teria a capacidade de observar as diferentes formas de falar: seja da sua comunidade, da

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sua família, dos seus professores. Assim, o aluno torna-se um observador, questionador e

participante de questões linguísticas e sociais, o que, de alguma forma, o insere na

sociedade de forma diferenciada, sendo capaz de se tornar um aluno questionador,

diminuindo, assim o impacto do preconceito linguístico que permeia a sociedade em que

vivemos.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da breve história da língua portuguesa e dos dois casos aqui expostos, a

redução do vocalismo átono e a redução do paradigma verbal, muitas considerações podem

ser feitas, embora muitas já sejam conhecidas, mas, infelizmente, não aplicadas ao ensino

de língua materna.

A língua portuguesa do Brasil, tal qual em Portugal, é bastante variável e maleável,

havendo pontos de interseção e pontos de distanciamento concomitantemente.

Com tamanha variação linguística, chega-se a conclusão de que a gramática

normativa é ineficaz no ensino de língua materna, além dessa gramática estar totalmente

apoiada em tradições gramaticais antigas o suficiente para que ninguém – ou quase – as

use. E, quando usada, é resultado de extremo cuidado linguístico em situações que

requerem cuidados específicos.

É preciso, portanto, que os alunos tenham noção de que não existe língua correta ou

língua errada. É preciso combater o preconceito. É preciso ensinar com bons textos, é

preciso mostrar, dar a conhecer o novo e o que eles realmente já conhecem: a língua que

falam.

REFERÊNCIAS

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SILVA NETO, S. História da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

APRESENTAÇÃO DE UM CORPUS DIACRÔNICO: AS CARTAS OFICIAIS NORTE-RIO-GRANDENSES Felipe Morais de Melo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte Resumo As cartas oficiais norte-rio-grandenses representam um corpus diacrônico inédito, resultado de nosso trabalho de mestrado (MELO, 2012). Elas constituem 107 cartas oficiais (termo que usamos para designar uma categoria textual composta por vários gêneros, dentre os quais o ofício e o requerimento) relacionadas ao Rio Grande do Norte e escritas nos séculos XVIII, XIX e XX, datando a mais antiga de 1713 e a mais recente, de 1931. Os critérios para a constituição do corpus tomaram por base, embora não estritamente, as orientações do PHPB. Neste trabalho, efetuamos uma caracterização geral do objeto em mira por duas vias. Primeiramente, justificamos o porquê da designação "cartas oficiais norte-rio-grandenses” através de uma reflexão etimológico-lexicográfica dos termos “carta” e “oficial” e da apropriação da lógica de classificação gentílica usada por Acioli (1994) a documentos coloniais brasileiros. Segue a caracterização por meio da aplicação de conceitos oriundos de Coseriu (1977, 1979, 1980, 2007): explicamos a razão de o ponto de vista mais adequado pelo qual se enxergar os textos do corpus ser o da ένέργεια (atividade); mostramos como se processam as modalidades de valoração (congruência, correto/exemplar e adequado) nos documentos; e definimos o universo do discurso e o ambiente donde nascem as cartas. Ao final desse mosaico, fica apresentado o que são as cartas oficiais norte-rio-grandenses, cabendo ao leitor julgar a valia desse corpus para o cenário atual dos estudos diacrônicos no Brasil. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

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Undecimo die, postquam à te discesseram, hoc literularum exaravi.

(Cícero)

O termo “carta” deriva do grego xάρτης, designativo da folha proveniente da

justaposição de lâminas retiradas do caule do papiro (cf. SPINA, 1977, p. 23). Pessoa (2002,

p. 203) joga a seguinte rede onomástica, sobre o mar do étimo, acerca do termo:

Aqui é importante destacar que o vocábulo carta como documento deriva do mesmo étimo que o do francês charte, no latim charta, do grego chartes (Mencione-se aqui o termo cartilha, usado no séc. XVII com o sentido de “livro para aprender a ler” do mesmo étimo, possivelmente do italiano cartella, através do francês cartelle e do espanhol cartilla. Não se deve esquecer também que em Portugal no século XVI ocorre cartinha com a mesma acepção (cf. Cunha, 1982). No latim o termo parece já possuir o sentido de documento, já que litterae é algo mais pessoal, enquanto epistula é mais literário, guardando até hoje esse sentido. No português o termo passou a significar o que em francês significa lettre, do latim litterae, embora nessa língua este último termo também signifique documento como lettre de... letra de câmbio, letra de tesouro, letra hipotecária, letra imobiliária. Missiva do francês missive, antes lettre missive. Parece que em português o termo carta ganhou pouco a pouco o significado do que em francês é lettre. Já em correspondência nas duas línguas pressupõe-se a troca de mensagens.

É de um desses termos referidos por Pessoa, litterae, que emana diminutivo o uso

que Cícero faz em linha que epigrafa este capítulo, literularum. “Escrevì esta pequena carta

onze dias despois, que me ausentei de vós”. Assim, o primeiro exemplo que Bluteau (1712,

p. 390) traz e traduz para ilustrar o significado do verbete “carta” de seu monumental

dicionário Vocabulario Portuguez, e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico,

Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico,

Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico,

Geometrico, Gnomonico, Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ichtuologico, Indico,

Ifagogico, Laconico, Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico,

Numerico, Neoterico, Ortographico, Optico, Ornithologico, Poetico, Philologico,

Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitativo, Rethorico, Rustico, Romano;

Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapeutico, Technologico, Uranologico,

Xenophonico, Zoologico, Autorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes, e

latinos, e offerecido a ElRey de Portugual, D. Joaõ V, pelo Padre D. Raphael Bluteau, obra de 8

volumes, conhecida como Vocabuario Portuguez, e Latino por favor à comodidade

mnemônica. Houaiss (2008), com as várias acepções do termo “carta” que apresenta11 e

regulado pela precisão e objetividade da lexicografia moderna, não chega ao segredo-chave

11 A primeira definição de Houaiss (2008, p. 636), que bem poderíamos utilizar neste trabalho, é a de carta como “mensagem, manuscrita ou impressa, a uma pessoa ou organização, para comunicar-lhe algo”.

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do que é uma carta, ao menos do que é uma carta segunda a imagem que a tradição

desenhou em nossa memória cordis, como o faz, mesmo (talvez fosse mais justo “por isso” a

“mesmo”) com seu estilo barroquista de pérola12, Bluteau (ibidem): “Papel, escrito a pessoa

ausente”. É exatamente pela ausência que brota a carta. Da ausência do outro, a presença

do eu transmutado em letras por travessia de tempos e espaços no encalço do que não

está13.

Entrementes, “official” – que hoje se define em Houaiss (2008), antes que qualquer

outra definição, como “emanado do governo ou de uma autoridade administrativa

reconhecida” – era “official de qualquer obra de mãos” (BLUTEAU, 1720, p. 59), sentido

que, curiosamente, se mantém na definição atual de “ofício”, “qualquer atividade

especializada de trabalho, exercida por alguém de forma definitica ou temporária”

(HOUAISS, ibidem); e “officio” que era encabeçado por “cargo publico, que dá autoridade

para mandar, ou para executar cousas concernentes ao governo, como saõ officios de

justiça, fazenda, milicia, &c.” (BLUTEAU, ibidem, p. 59-60), agora como “qualquer atividade

especializada de trabalho, exercida por alguém de forma definitiva ou temporária”

(ibidem). Por um lado ou por outro, os funcionários da administração pública nunca

deixaram de ser trabalhadores, etimologicamente.

2 O PORQUÊ DO TERMO CARTAS OFICIAIS NORTE-RIO-GRANDENSES

É, pois, por esses fios definitórios que se erige a designação de nosso corpus como

cartas oficiais. Todas foram escritas para um destinatário (muitas vezes ausentes, muitas

vezes por além-mar), daí cartas; e circulam pela administração pública, donde oficiais.

Ademais, o uso desse termo é uma declarada evocação às cartas oficiais da Paraíba

organizadas por Fonseca (2003) e à decisão nomenclatural da autora:

Dos documentos selecionados, encontram-se neste corpus, de acordo com a classificação feita por Martinheira: carta de lei, carta régia, aviso dos secretários,

12 Aprecie-se, por exemplo, o começo da preciosa definição dada no verbete sobre olho: “Precisa, & mimosa parte do corpo humano, instrumento de vista, espelho dos affectos d’alma, Sol do microcosmo, & admirável orgaõ da natureza, composto de dous nervos, seis membranas, ou tunicas, tres humores, seis musculos, & muytas veas, & artérias” (BLUTEAU, 1720, p. 71), o que segue em páginas de volutas e dobras doiradas com engenho e arte. 13 Agradecemos à contribuição da Professora Maria Elias Soares, da UFC, que, após assistir à nossa comunicação oral, alertou-nos para o fato de – especialmente quando se têm no centro da mira cartas oficiais – não ser a ausência um elemento necessariamente fundamental à elaboração duma missiva. É possível – dentro do regime de trabalho da administração pública e em atinência ao ritual que a burocracia tanto exige – que se escreva, por exemplo, um ofício cujo destinatário esteja no mesmo ambiente onde está o remetente, podendo, inclusive, este estar face àquele, que receberá a carta oficial das mãos de seu autor. Mantivemos, contudo, a consideração sobre o papel da “ausência” para a existência da carta por a considerarmos qual ingrediente simbólico central para a concepção tradicional do que é uma carta.

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ofícios. Dentre esses, os ofícios serão focalizados com a denominação geral de cartas por serem maioria aboluta e por apresentarem maior heterogeneidade. (FONSECA, 2003, p. 120-1).

O mesmo sucede em nosso corpus, de cujas cartas (denominação geral), 70% são

ofícios e 9,3% são cartas14, constituindo, portanto, 79,3% das cartas oficiais norte-rio-

grandenses.

Outra elucidação é sobre o porquê da marcação do termo com itálico. Fazer menção

a nosso corpus simplesmente como cartas oficiais norte-rio-grandenses foi descartado por

o termo assim registrado, livre de marcas, sugerir a ideia de cartas oficiais escritas no Rio

Grande do Norte ou ainda, porventura, a de cartas oficias escritas por norte-rio-

grandenses. O primeiro caso não se valida na integralidade do corpus; a segunda não se

valida, não se sabendo em que proporção, uma vez que não procedemos à busca pela

biografia dos missivistas.

As cartas oficiais norte-rio-grandenses constituem um conjunto de 107 cartas (da C 1

até a C 107) escritas na administração pública no intervalo de 1713 a 193115 em que

questões vinculadas ao Rio Grande do Norte são abordadas. Decidimos cunhar desse modo

o termo no sulco de Acioli (1994, p. 55), para quem, diante da influência ibérica impressa

patentemente nos manuscritos brasileiros, avisa:

Entendeu-se que brasileiros seriam todos os manuscritos relacionados com o nosso país, quer oriundos do Brasil, quer de Portugal. Assim sendo, tanto cartas remetidas da colônia quanto documentos régios ou consultas do Conselho Ultramarino, despachados da metrópole, foram considerados brasileiros quando o assunto em questão descreve problemas desta possessão portuguesa na América.

Por extensão de sentido, cartas oficiais norte-rio-grandenses.

Quantitativamente, 82, 24% das cartas foram redigidas no Rio Grande do Norte, o

que representa 88 das 107 cartas. Das demais, 5 (4,6% do corpus) foram escritas no Rio de

14 O ofício é um gênero de estrutura bastante semelhante à da carta e da carta régia, diferenciando-se, contudo, por uma razão de ordem sócio-funcional: são cartas oficiais trocadas, em sua maioria, entre membros da administração pública, sob a condição de nenhum dos coenunciadores, o remetente ou o destinatário, ser o Rei. A tradição da carta é, formalmente, muito símile à do ofício, mas é evocada por outra constelação discursiva, qual seja a necessidade de comunicar algum assunto relativo à administrações pública ao Rei, daí todas elas trazerem como inscriptio apenas o pronome de tratamento “Senhor” que, conforme coloca Fonseca (2003, p. 150), é exclusivo para autoridade real. Devido à fixidez de seu endereço, o Rei, é uma carta oficial sempre ascendente, isto é, escrita por alguém hierarquicamente inferior à pessoa a quem o documento é dirigido. Inscriptio, datatio e outras designações latinas que surgem neste trabalho são as partes em que um documento diplomático está dividido. Baseamo-nos, para essa estruturação da Diplomática, na obra de Belloto (2002). 15 A alteração entre os algarismos 1 e 3 foi um grande riso das Moiras aos ouvidos de nosso herói inglês Brás Cubas, no episódio de Lobo Neves. Coincidente ou simbólica ou que seu jogo marcando início e fecho de nosso corpus?

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Janeiro, 1 (0,9%) em Sergipe, 4 (3,7%) em Lisboa e nas outras 9 restantes16, não

conseguimos, com garantia, identificar a localização. Daí pode-se afirmar que 87,8% (a

soma das cartas escritas no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro e em Sergipe)

representam o que Barbosa (2002) chama de português no Brasil, isto é, textos lavrados

em solo brasileiro, sem terem sido emanados, necessariamente, de um punho brasileiro

(entenda-se uma pessoa que, mesmo não tendo nascido no Brasil, tenha vivido a maior

parte de sua vida, principalmente seus anos de formação, em terras canarinhas).

Algumas linhas devem ser escritas para esclarecer a situação dessas 9 cartas, que

representam 8,4% do corpus. Orientamo-nos, principalmente, pelo espaço do datatio para

promover a identificação do lugar de produção do documento e, nalguns casos, por

referência dêitica no corpo do texto, como em C 7, uma certidão, em que aparece, ainda no

protocolo, integrado à seção do intitulatio, o seguinte: “pella falta de escrivão della nesta

Cidade do Natal Capitania | do Rio grande”. Em alguns casos, como na C 17, havia, na

margem superior esquerda, por outro punho, o seguinte: “Junte certidaõ de q sepratica

[inint.] | Lisboa ocidental 3deAbrilde1734”, conforme se pode ver abaixo:

16 São elas C 12, C 13, C 17, C 18, C 25, C 27, C 28, C 29 e C 30.

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Embora não representando datatio e tendo sido lavrada por outro punho, vimo-nos

tentado a classificá-la como carta escrita em Lisboa porque Lopes (2000, p. 39),

historiadora que catalogou os documentos do Arquivo Ultramarino, descreveu essa carta

como escrita em Lisboa “a 3 de abril de 1714”. Contudo, essas poucas linhas de outro

escrevente à margem superior ressurgem em outras cartas, como “<Haja vista o

Procurador da Fazenda. Lixboa | 19 de Dezembro de 1785>”, em C 30, e são registradas no

catálogo por meio da data cronológica do texto, mas tendo como data tópica Natal: “[ant.

1785, Dezembro, 19, Natal]” (ibidem, p. 91). Diante dessa irregularidade e de nossa

insipiência em História, achamos terreno mais seguro manter o local de escrita dessas 9

cartas como não-identificado.

A seguir, as cartas oficiais norte-rio-grandeses serão caracterizadas por uma

sequência de tópicos que respeitam à dimensão textual de cunho coseriano.

3 CARACTERIZANDO AS CARTAS OFICIAIS

Esta seção retoma alguns conceitos centrais apresentados por Coseriu (1977, 1979,

1980, 2007) de modo a locar nosso corpus dentro das dimensões que o teórico levanta para

pensar numa linguística do texto: primeiramente, explicamos a partir de qual ponto de

vista as cartas oficiais norte-rio-grandenses podem ser interpretadas de modo mais

adequado; verificamos como se realizam as modalidades de valoração nos documentos; e

esclarecemos dentro de qual universo do discurso e de que ambiente nascem as cartas. A

finalidade dessa caracterização é, após a prévia elucidação sobre a terminologia que

nomeia nosso objeto de estudo, trazer à mostra algumas outras facetas desse corpus

diacrônico.

3.1 O ponto de vista da Ένέργεια

Em várias das obras de Coseriu (1977, 1979, 1980, 2007), a concepção de linguagem

do linguista romeno17 mostra-se filiada epistemologicamente à concepção de linguagem

legada por Humboldt, segundo a qual linguagem não é somente ἕργον (produto, o que está

17 Vamos tratá-lo como linguista romeno em razão de sua língua materna ser o romeno e por assim tradicionalmente ele ser referido na literatura linguística. Vale notar, contudo, que Coseriu nasceu na Maldávia ou República da Maldávia, país que faz fronteira com a Ucrânia e com a Romênia.

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acabado), senão ένέργεια (atividade, o que está em construção). O caráter de atividade

(ένέργεια) de Humboldt vai além, pois não acarreta apenas a noção de algo que está em

desenvolvimento, mas representa a ideia de “atividade criadora”, superando, portanto,

inclusive a natureza de δύναμις (potencial, o que se sabe e que, portanto, pode ser ativado,

transformado em atividade, em ένέργεια) que a linguagem igualmente possui, isto é, a

linguagem é uma manifestação criativa do espírito (e de espírito criativo) que, exatamente

por ser criativa, vai além de sua própria potencialidade de funcionamento. Para Coseriu,

ἕργον, ένέργεια e δύναμις são três pontos de vista a partir dos quais se pode compreender

a linguagem.

Coseriu opta, então, por conceber a linguagem – portanto a língua, uma vez que “el

lenguaje se presenta siempre como lengua” (COSERIU, 1977, p. 23) – como ένέργεια ou,

dizendo de outra maneira, a linguagem deve ser encarada do ponto de vista da ένέργεια.

Além dessa base epistemológica de cunho humboldtiano, há outra, de lavra própria18,

igualmente difundida em, pelo menos, todas as obras acima referidas, que é a de que “a

linguagem é uma atividade humana universal que se realiza individualmente, mas sempre

segundo técnicas19historicamente determinadas” (idem, 1980, p. 91). Dessa sua asserção,

ele propõe “la distinción entre hablar en general, lengua y texto” (idem, 1977, p. 242),

pertencendo o “falar em geral” ao nível universal da linguagem20 (pois quem fala,

independente do idioma, obedece a princípios universais de comunicação); a língua, ao

nível histórico da linguagem (pois quem fala, fala sempre um idioma, isto é, fala sempre

conforme determinadas técnicas historicamente estabelecidas); o texto ou discurso, ao

18 Na apresentação que faz à obra Linguística del texto, de Coseriu, Óscar Loureda Lamas escreve que “La Textlinguistik tiene como punto de partida la distinción de tres niveles en el lenguaje, con seguridad una de las más difundidas – y aceptadas – de Eugenio Coseriu” (in COSERIU, 2007, p. 42). 19 Entenda-se, com o uso desse termo “técnica”, estratégias de comunicação, que podem estar no nível universal, no nível histórico (as técnicas historicamente determinadas) e no individual. Técnicas do nível universal dizem respeito aos procedimentos linguajeiros que existem em qualquer língua do mundo, como, por exemplo, a referenciação; técnicas do nível histórico tangem às regras de funcionamento dos idiomas, a exemplo do sistema de terceira pessoa do singular do português, que não diferencia entre humano e não humano (“ele” e “ela”, apenas), e o do inglês, que inclui uma forma para fazer referência a um ser não humano (daí, ao lado de “he” e “she”, haver o “it”); técnicas do nível individual se tratam de usos peculiares, expressivos, que se faz da língua e da linguagem, como alguém dizer que um outro é “muito chato demais da conta”, valendo-se de um pleonasmo pela conjunção de “muito” com “demais”, não esperado na língua portuguesa, ou o poeta Manoel de Barros dizer “Deixei uma ave me amanhecer”, numa construção igualmente inesperada pelo português, nesse caso, pela utilização do verbo “amanhecer” como transitivo. 20 Várias são as técnicas universais que podem ser estudadas. Coseriu (2007, p. 147), por exemplo, menciona a categoria universal de “agente”, que pode ser expressa, no nível dos idiomas, por funções sintáticas como a de genitivo, agentico ou de sujeito. Schlieben-Lange (1993, p. 20) realiza uma interessante abstração de modo a sintetizar as técnicas universais a duas, quais sejam: a do referir e a do alterizar. Estratégias dêiticas e de reflexividade podem ser enquadradas como de referenciação ao passo que a interpelação e a ênfase podem ser postas dentro das estratégias de alterização.

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nível individual da linguagem (pois a língua só se expressa, só se consuma quando algum

falante dela faz uso, quando produz um texto, quando realiza um discurso).

Podemos afirmar que, dentre esses pontos de vistas, as cartas oficiais norte-rio-

grandenses só são apreendidas de forma mais integral quando observadas pelo ponto de

vista da ένέργεια, isto é, de sua atividade, e em todos os três níveis de linguagem (universal,

histórico e individual). Para ilustrar essa opção, vejamos a passagem sobreveniente, de C

26.

Ilmo Ex.mo Senhor || A grandioza | esmola que deV. Ex.a Recebi naproteçaõ defelix exito do em= | prego em que me axo de capitam mor do Rio Grande do Norte, é aque mealenta eem caminha abuscar segunda ves ospes | deV. Ex.a e humilde mente rogarlhe maqueira continuar, am | parandome napertençaõ que aspiro de hir daqui p.a osiara grande | ououtra qual quer parte queV. Magestade Fidelíssima pelasua real grandesa | for servido mandarme; eporque me avisaõ setrata deste meu | requerimento enaproteçaõ deVEx.ª depende toda aminha felicidade | pelo amor de DEUS torno asuplicar aVEx.ª estamerce que eu| prometo cumprir as obrigaçoins de obediente súbdito

Nesse trecho, percebe-se que, do ponto de vista da ένέργεια, comprova-se o nível

universal da linguagem devido à ativação das duas técnicas do “falar em geral” expostas

por Schlieben-Lange (1993): a do referir, na medida em que o produtor do ofício, Joaquim

Félix de Lima, trata de algum assunto, referencia, portanto, algum objeto do discurso21,

neste caso sua vontade de ser indicado para ser capitão-mor da Capitania do Ceará ou de

outra; e a do alterizar, na medida em que outrem é interpelado, na medida em que noutro

alguém se pensa, no caso de C 26, o Rei.

No nível histórico, verifica-se a língua concreta, no caso, a língua portuguesa, que se

representa, contudo, não como sistema abstrato, mas por seu uso real que, como não

poderia não ser, deixa transparecer a norma de funcionamento do sistema “língua

portuguesa”, mas também externa peculiaridades dos manuscritos da época, como os

aglomerados verbais de “mealenta” ou “ospes”, ou ainda o registro de “obrigaçoins” com “i”,

o que pode refletir um alçamento vocálico na oralidade, uma vez que Houaiss (2008)

registra a existência de “obrigaçoões”, com “e”, desde o século XV. Todos esses casos são

timbres de uma língua concreta, enunciada num tempo-espaço (a que chamamos

cronotopia) único e irrepetível.

21 Termo emprestado de Koch (2006) que o considera como um dos pés da referenciação. As três pontas do triângulo são a referenciação (o significado), o símbolo (o significante) e o objeto do discurso (o referente), que leva esse nome porque “não espelham diretamente o mundo real, não são simples tótulos para designar as coisas do mundo. Eles são construídos e reconstruídos no interior do próprio discurso, de acordo com nossas percepções do mundo” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 123).

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A passagem revela, também, agora no nível individual, o discurso apelativo de

Joaquim Féliz de Lima, como comprovam os trechos “abuscar segunda ves ospes | deV. Ex.a

e humilde mente rogarlhe”, “deVEx.ª depende toda aminha felicidade” ou “pelo amor de

DEUS torno asuplicar aVEx.ª”, criando um tom que, não sendo regra no todo das cartas

oficias norte-rio-grandenses, denuncia o discurso particular desse remetente.

Deve-se ponderar, contudo, que o ponto de vista da ένέργεια não independe dos

outros dois, uma vez que ele é a ativação dos saberes linguísticos, que compõem a

perspectiva linguística do δύναμις, e faz parte dos produtos abstratos, com suas infinitas

possibilidades de realização, que integram o posicionamento do ἕργον.

3.2 As valorações nas cartas

Com o intuito de entender os graus de valoração da linguagem (linguagem, língua e

texto) apontados por Coseriu, partamos das seguintes tabelas, traduzidas e adaptadas de

Coseriu (2007, p. 152 e p. 141, respectivamente):

Nível graus do saber valoração

Geral elocucional congruente

Histórico idiomático correto/exemplar

Textual expressivo adequado

As três dimensões na horizontal continuam representando (de cima pra baixo,

respectivamente) os níveis universal, histórico e individual da língua22. Na primeira tabela,

temos, na segunda coluna, as funções atreladas a cada nível e, na terceira, os domínios

semânticos associados aos mencionados níveis: no nível universal, a semântica configura-

se em designação; no nível histórico, em significado; no individual, sentido. Na segunda

tabela, temos a valoração análoga a cada nível: no nível universal, fala-se em congruência

ou não congruência da linguagem (que se junge à designação, sendo, portanto, um texto

22 Língua, nesse caso, representando linguagem (cf. COSERIU, 1977, p. 23). A língua, consoante essa visão coseriana, é a expressão central da linguagem, pois é a mais básica, sem a qual o homem não pode viver em comunidade, e a mais generalizada dentre todos os outros tipos de linguagem.

realidade extralinguística função designativa designação

Língua função idiomática significado

Texto função textual sentido

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incongruente, aquele que viola a designação suposta pelas regras da linguagem); no nível

histórico, em usos corretos ou exemplares da língua (também ligado ao campo semântico,

nesse nível, o do significado: um texto incorreto seria aquele que estorvasse o significado

gerado pelo cumprimento das normas de funcionamento um idioma)23; e no nível

individual, fala-se em usos adequados (coligado ao sentido: um texto inadequado seria o

que contrariasse o sentido suposto para determinada situação de produção).

Retornando à atenção peculiar dada por Coseriu ao nível do texto, encontramos já

em sua obra de 1977 (anterior à sua Linguística del texto, cuja primeira edição data de

1980) a compreensão de que os níveis semânticos de designação e de significado, juntos,

“se convierten em signatia, es decir, en <<significantes>> para um determinado sentido”24

(ibidem, p. 254). Isso delineia um signo linguístico, do qual fazem parte a designação junto

ao significado como significante e o sentido como significado (no sentido saussuriano). Com

isso, Coseriu deixa nítida sua percepção de que, mesmo sendo o nível menor, é no nível

individual que se define a semântica do signo. As regras do nível individual superam e

mesmo podem dissidiar das regras dos outros dois níveis, que são hierarquicamente

superiores25, mas que dependem integralmente da realização do texto. Essa transgressão

potencial não se dá apenas do nível individual aos seus anteriores, também do histórico ao

universal. Ou seja, quanto menos abstrato se torna o nível, quando mais particular ele é,

mais independente ele se faz.

Como exemplo dessa emancipação de regras que vai se constatando à medida que se

particularizam os níveis da linguagem, Coseriu (2007, p. 145) dá o exemplo dafrase “eu vi

com meus próprios olhos” que, não havendo outro modo racional de ver senão com os

23 O nível de valoração correspondente ao “correto ou exemplar” não diz respeito ao que foge ao padrão prescritivo gramatical da língua, o que fica bem claro pela própria noção de “norma”, trazida por Coseriu, que se junta à de sistema. Norma abrange todo padrão de uso real da língua. Se dentro de um sistema (como o da língua portuguesa), sempre existem diferentes modos normais (todos eles, evidentemente, funcionais) de realização (cf. COSERIU, 1980b, p. 122) desse sistema (o falar caipira paulista e o falar de Lisboa, por exemplo), ou seja, já que, para Coseriu, todo sistema é um diassistema, pois sempre encerra várias normas, não se pode opor a noção de correção ou exemplaridade a “desvios da norma gramatical”. Desse modo “para mim fazer o dever” não sofre interdição valorativa, mas “para fazer o eu dever” sim, já que compromete o significado, não estando de acordo, portanto, com o correto/ exemplar da língua. 24 O texto do qual essa citação foi retirada, La <<situación>> en la linguística, foi publicado, primeiramente, em inglês, no ano de 1971 (cf. COSERIU, 1977, p. 256). 25 Quiçá melhor seria tratar os níveis universal e histórico não como superiores, mas como anteriores, posto que superioridade não parece condizer com dependência, que, na realidade, é o que existe, de um ponto de vista de concretude linguística, entre os dois níveis e o individual: aqueles dependem destes para se realizarem concretamente. Por outro lado, naturalmente, de um ponto de vista teórico e hierarquizado, o nível individual depende do histórico e do universal para existir, mesmo sem ter de se sujeitar totalmente às regras desses níveis.

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próprios olhos, fere uma regra de congruência da linguagem, sendo, contudo, permissível

(pois tem significado) em várias línguas, como no português, no alemão e no espanhol.

Do mesmo modo, um texto como Finnegans wake, de James Joyce, tendo sido escrito

em inglês, quebra as técnicas de funcionamento históricas da língua inglesa, na medida em

que usa várias outras técnicas historicamente determinadas sobre a do inglês. Ou ainda o

exemplo de um texto que quebra com a congruência, como é o caso da Metamorfose, de

Kafka, em que um homem se transforma num inseto gigante. Nesse caso, contudo, o sentido

se legaliza por se inteirar ao universo de discurso da literatura. Vemos, então, como a função

textual por meio do estabelecimento de sentido (dimensão semântica do nível individual)

pode violar tanto o significado de uma língua (caso de Joyce, rompendo com função

idiomático) quanto a congruência do falar em geral (em Kafka, infringindo a função

designativa).

Pensando nas cartas oficiais norte-rio-grandenses, quanto à congruência, não

tivemos o tino para perceber sua falta (que se dá muito mais prolificamente na literatura)

em alguma expressão das cartas, como o fez Coseriu valendo-se da expressão “eu vi com

meus próprios olhos”. Para tal percepção, parece-nos necessário um exercício de

afastamento de nossa própria língua para apurar a percepção desse nível universal. Assim,

não achamos “quês” contra a designação (da função designativa) em nosso corpus, senão

uma realização do exemplo dado por Coseriu em C 15, em que os oficiais da Câmara de

Natal, no ânimo para defender, aos olhos do Rei D. João V, a eficácia do trabalho do ouvidor-

geral da Paraíba, desembargador Manuel da Fonseca e Silva, expressam: “vimos com

nossos | olhos muitas cartas que odito capitam mor escreveo | ao desta desta Capitania”.

Reproduzindo a ideia de Coseriu (2007, p. 145), esse exemplo fere o conteúdo linguístico

da designação (cf. op. cit., p. 152), não sendo, portanto, congruente, pela impossibilidade

humana de se vê salvo por seus próprios olhos.

No referente ao caráter de “correto/exemplar” dos textos, resulta-nos difícil calculá-

lo nas cartas oficiais, uma vez que não achamos nelas passagens que destoem do padrão

funcional da língua portuguesa e as várias flutuações no que diz concerne à ortografia

assentam-se num momento histórico peculiar, de quase inexistente instrução no Brasil, e

dimanam de um padrão ortográfico de Portugal26, em que “não houve nunca, ortografia

26 A esse respeito, Elia (2003, p. 118) escreve: “Os ortógrafos do séc. XVIII se encontraram, [sic] na mesma situação de G. Viana um século depois: inexistência de um sistema ortográfico em Portugal. Tomaram, [sic] então por lema ‘escrever como se fala’, mas não se dispunham de recursos técnico-científicos para fazê-lo: ‘arrazoaram’ muito a seu gosto, o que só poderia trazer mais confusão ao problema”.

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oficial, uniforme” (Vasconcelos apud FONSECA, 2003, p. 179). Com isso, mantém-se intacto,

o significado (derivado da função idiomática) do texto.

Por fim, com relação ao adequado, embora pudéssemos levantar a possibilidade de

inadequação de algumas cartas, como C 15, C 26 e C 75, por terem uma carga emotiva

muito mais saliente do que a encontrada nas demais cartas oficiais, esse julgamento

poderia ser arriscado, principalmente por não sermos especialistas em História e por

acreditarmos que, em se trabalhando com textos de sincronias antigas, “nunca podemos

olhar um documento do passado com os olhos do presente” (Leal apud BERWANGER;

LEAL, 2008, p. 104). Por isso, apesar de termos notado a marcha paulatina que se deu, de C

1 a C 107, em direção a uma maior formalidade, desaguando na concepção de oficial

vigente hoje, não sabemos se, de alguma maneira, a presença mais sensível de emoções não

poderia ter lugar em cartas oficiais de épocas mais remotas, já que, como diz Fonseca

(2003, p. 116) retomando Martinheira, “cada época apresentava um estilo burocrático”.

Por isso, preferimos afirmar que também o sentido (da função textual) é mantido ileso.

4 UNIVERSO DO DISCURSO E O AMBIENTE DAS CARTAS

Outro conceito trazido por Coseriu (1979, p. 229) é o de universo do discurso, uma

das quatro grandes divisões que o autor define para entorno, um dos componentes

matrizes (ao lado apenas da determinação) para um estudo da fala (fala, inequívoco está,

integrando o nível individual de texto). A determinação denota o papel de atualizar, através

da enunciação (produção concreta de enunciados, de textos), um arsenal de signos que,

sem o texto, permanecem em virtualidade, isso dentro de um jogo sintagmático de relações

entre signos. O entorno expande a expressividade do texto por meio de elementos próprios

da circunstância da fala, como movimentos e expressões faciais. Técnicas do entorno

sempre complementam e podem mesmo substituir certas estratégias da determinação.

Portanto, a determinação “assegura simplesmente o emprego da língua: a integração

linguística entre um conhecer atual e um saber anterior” (COSERIU, 1979, p. 227) e o

entorno representa as “circunstâncias do falar” (COSERIU, 1979, p. 228). O universo do

discurso, como uma das faces do entorno, é “o sistema universal de significações a que

pertence um discurso (ou um enunciado) e que determina sua validade e seu sentido”

(COSERIU, 1979, p. 234).

Loureda Lamas, responsável pela edição e anotação de Coseriu (2007), afirma em

nota que:

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En una versión más elaborada sobre el tema escribe Coseriu que “hoy distinguiría sólo cuatro universos de discurso, ya que cuatro son, precisamente, los modos fundamentales del conocer humano: a) el universo de la experiencia común; b) el universo de la ciencia (y de la técnica cientificamente fundada); c) el universo de la fantasía (y por lo tanto del arte); y d) el universo de la fe” (COSERIU, 2007, p. 228).

Frente às reduzidas categorias em que consiste o universo do discurso (o universo

da experiência comum, da ciência, da fantasia e da fé), as cartas oficiais norte-rio-

grandenses situam-se dentro do universo do discurso da experiência comum. Contudo,

valendo-se de outro termo de Coseriu, o de ambiente – entendido como um tipo de região,

que integra, por sua vez, um dos quatro tipos em que se agrupam os entornos27 –, definido

como uma região “estabelecida social ou culturalmente: a família, a escola, as comunidades

profissionais, as castas, etc.” (COSERIU, 1979, p. 230), pode-se afirmar que o ambiente28 das

cartas oficiais é o da administração pública. Esses conceitos são especialmente importantes

para nosso corpus,pois são eles, o universo do discurso e, mais diretamente, o ambiente, de

onde medram os gêneros textuais com suas macroestruturas. No que respeita à

determinação, é ela valiosa, particularmente, para as expressões formulaicas, sendo destas

a nascente. Enunciando essas ideias com termos das tradições discursivas (TD), diríamos

que o gênero (uma TD) pode ser evocado pelo ambiente e que as microestruturas (outra

TD) o são geralmente pela determinação; sendo, dito de outro ângulo, o ambiente e a

determinação suas mais comuns constelações discursivas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos diacrônicos marcaram as primeiras décadas do século XX na linguística

brasileira, passando por um período de ostracismo após a década de 50. Principalmente a

partir da década de 90 – com ênfase na criação, em 1997, do projeto Para a história do

português brasileiro (PHPB), que tem sistematizado, em âmbito nacional, os planos de

trabalho relacionados à área da diacronia – os estudos históricos da língua retomam força e

vêm aumentando paulatinamente desde então. Um dos grandes desafios desse novo

cenário dos estudos diacrônicos no Brasil é precisamente a construção de um terreno

empírico sobre o qual desenvolver as investigações pela história do português no Brasil e 27 Coseriu (1979, p. 229) diz: “Em nossa opinião, é necessário distinguir uma série muito mais ampla de entornos, que podem agrupar-se em quatro tipos: situação, região, contexto e universo do discurso”. 28Ambiente é, dentro do complexo painel de noções aduzidas por Coseriu para compreender o entorno, a que mais se afina com o de domínio discursivo, conceito consideravelmente popular no estudo dos gêneros textuais e que pode ser encontrado em Marcuschi (2008) ou Costa (2009). Esse conceito também é equivalente aos campos de utilização da língua de que fala Bakhtin (2010) em uma de suas frases clássicas: “Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado, os quais denominamos gêneros textuais” (p. 262).

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do Brasil: a construção de corpora diacrônicos. As cartas oficiais norte-rio-grandenses,aqui

apresentadas em sua definição e caracterizadas em alguns pontos, representam uma

tentativa de contribuir com esta empreitada em andamento. A valia dessas cartas, caberá

ao leitor judicioso julgar!

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CARTAS PESSOAIS: TESTEMUNHAS DA VARIAÇÃO PRONOMINAL NO

PORTUGUÊS BRASILEIRO

Francisco Jardes Nobre de Araújo Universidade Federal do Ceará Resumo A variação linguística é um fenômeno universal que atinge todos os níveis da gramática (CAMACHO, 2011). Em muitas línguas, a classe dos pronomes, especialmente a dos chamados pronomes pessoais, é a que sofre mais variação e a que mais se reorganiza dentro do sistema (MONTEIRO, 1994), embora esta costume ser constituída por um número relativamente pequeno de itens gramaticais, restringindo-se a uma espécie de inventário fechado. Dentre as pessoas do discurso, é a 2ª a que mais tem sido codificada de maneira variada, não só na língua portuguesa, como em diversas outras línguas indo-europeias, nas quais há um sistema dual de pronomes para a 2ª pessoa: as formas T e as formas V (derivadas, respectivamente, do *tu e do *uos indo-europeus). A partir da terceira década do século XX, com o uso de você (forma V) em variação com tu (forma T), todo o quadro pronominal da língua, incluindo os possessivos de 2ª pessoa, passou a sofrer variação. Em português, verifica-se, ainda, a variação de formas pronominais da 1ª pessoa, com a coocorrência de nós e a gente, além da variação seu e dele para os possessivos de 3ª pessoa. Partindo do pressuposto defendido pela Sociolinguística Variacionista, sobretudo com William Labov (1978; 1983; 1994; 2008), de que a variação linguística se dá motivada tanto por fatores internos quanto externos ao sistema, o presente artigo busca descrever as variações que ocorrem entre os pronomes pessoais em cartas do século XX escritas por cearenses. Para isso, utiliza uma amostra de 240 cartas obtidas numa busca entre os habitantes do município de Quixadá, no Sertão Central cearense. As cartas coletadas foram escritas por pessoas do povo, isto é, não por profissionais da linguagem, e pertencem ao gênero “carta pessoal”, tendo sido trocadas entre amigos ou parentes. Para Tarallo (2011), esse tipo de documento é ideal para a investigação de mudanças em tempo real, mesmo de curta duração, já que não existem gravações da fala espontânea de períodos anteriores à década de 1960 (excetuando-se as feitas pelo cinema) devido à inexistência de gravadores portáteis. Este artigo é resultado de uma pesquisa em andamento que tem chegado às seguintes conclusões: i) a variação T/V ganha espaço no português escrito por cearenses a partir da década de 1940 e se prolonga até os dias atuais; ii) não se pode prever se tal variação resultará numa mudança linguística (CHAGAS, 2011), com uma das formas suplantando a outra definitiva ou temporariamente; iii) o uso de T em vez de V tende a ocorrer quando se tem o intuito deaproximação ou de intimidade com o interlocutor. 1 PRONOMES PESSOAIS: UMA CLASSE EM CONSTANTE VARIAÇÃO

O sistema pronominal de uma língua costuma ser apontado pelos estudiosos da

linguagem como o que mais oferece dificuldade de análise e descrição. Monteiro (1994, p.

29) comenta que, desde a cultura greco-romana, os pronomes têm sido “alvo de reflexões e

equívocos que ainda hoje perduram.” Em muitas línguas, como as românicas (francês,

italiano, português etc.), a classe dos pronomes, especialmente a dos chamados pronomes

pessoais, é a que sofre mais variação e a que mais se reorganiza dentro do sistema, embora

este costume ser constituído por um “número limitado” de unidades (cf. BECHARA, 2003),

isto é, há um número relativamente pequeno de itens gramaticais que podem desempenhar

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a função de pronome, restringindo-se a uma espécie de “inventário fechado”. Por exemplo,

os pronomes oblíquos átonos do português atual constituem um conjunto de itens

herdados da língua latina – me, te, se, lhe(s), o(a)(s), nos e vos – ao qual nenhum elemento

foi introduzido desde a formação de nossa língua, no séc. XIII.

Os pronomes reúnem diversas categorias gramaticais (pessoa, número, gênero, caso)

e traços semânticos (determinação, formalidade, posse etc.), além de servirem como

elementos dêiticos, que é uma de suas funções principais. Sua posição em relação ao verbo

varia de língua para língua, mesmo dentro de uma mesma família: em inglês, ocupa sempre

a posição enclítica; em alemão, da mesma família, pode ocorrer em próclise (Ich will dich

lieben!) ou em ênclise (Ich liebe dich!), como também nas línguas românicas, sendo o

português a única que ainda admite, em sua variedade formal, uma terceira posição, a

mesóclise, já abandonada na fala brasileira. Givón (2001, p. 16) dá exemplos em suaíli nos

quais o pronome pessoal insere-se entre o morfema aspecto-temporal e a raiz do verbo (a-

li-ni-ona = ‘Ele(a) me viu’, a-li-ku-ona = ‘Ele(a) te viu’, a-li-mu-ona = ‘Ele(a) o/a viu’ etc.).

Acrescente-se ainda o fato de que, em algumas línguas flexivas, como o latim, o

italiano, o romeno e o polonês, os pronomes sujeitos são preferencialmente omitidos,

depreendidos a partir da desinência verbal (lat.: amo te; ital.: ti amo; rom.: te iubesc; pol.:

kocham cię;); enquanto em outras, como o alemão, eles são obrigatoriamente expressos,

apesar a desinência (Ich liebe dich, e não *Liebe dich). O português, conforme a NGB (Norma

Gramatical Brasileira), deveria empregar os pronomes sujeitos apenas em casos de ênfase

no sujeito, para opor duas pessoas diferentes ou para desfazer ambiguidades (CUNHA,

1986, p. 284-5), embora estudos mostrem uma tendência a preferir o uso em vez da

omissão (MONTEIRO, 1994, p. 133-146).

Tais características tornam os pronomes suscetíveis a uma gama variada de

possibilidades de combinação entre si – como, por exemplo, em português, o uso do te (que

denota intimidade na variedade padrão) numa frase em que o sujeito é você (que denota

formalidade na variedade padrão) por ambos compartilharem o traço [+2ª pessoa]; ou, no

inglês, o uso do reflexivo ourselves (= nos, a nós mesmos) no singular (ourself) quando, em

discurso político, se refere a um só indivíduo, evitando a 1ª pessoa do singular, o que soaria

pedante ou prepotente – e com outras classes de palavras, como se verifica, em português,

numa frase como “Nós estamos empenhado em terminar a obra”, em que o pronome de 1ª

pessoa do plural combina-se com um adjetivo no singular para evitar o tom impositivo ou

egocêntrico, tomando como referência o falante, e também na combinação com advérbios

(p. ex.: Euaqui não sei de nada. / Eleali não sabe de nada.).

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Apesar de as gramáticas tradicionais determinarem um quadro fechado de

combinações de pronomes, donde se inferem as regras de concordância pronominal, o uso

dessas formas no cotidiano, quer na modalidade falada, quer na escrita, seja no nível

formal, seja no informal, subverte em muitos pontos o que prescrevem as gramáticas

normativas e mostra a dinamicidade de um sistema costumeiramente considerado um

inventário fechado. Assim, formas pronominais caem em desuso (como o thou do inglês e o

vós do português), enquanto outras ganham espaço na língua (como a expressão a gente do

português) e outras passam a competir (como as formas lei, ella e essa, de 3ª pess. fem.

sing. do italiano); umas passam a acumular valores distintos (como o você do português,

que pode indicar certo grau de formalidade em algumas regiões, intimidade em outras e

indeterminação em alguns contextos), outras passam a combinar-se a despeito das regras

prescritas pelas gramáticas, como é o caso dos pronomes ditos de 2ª pessoa (tu, te, ti, teu

etc.) usados com pronomes ditos de 3ª pessoa (se, lhe, seu etc.), em frases como “Tuse acha

muito esperto”, em que tu e se são correferentes.

2 AS VARIAÇÕES PRONOMINAIS ATRAVÉS DE CARTAS

A carta pessoal é um tipo de correspondência entre duas pessoas, sendo inegável,

portanto, sua importância como instrumento para o estudo da linguagem, a qual reflete as

relações sociais entre remetente e destinatário, reveladas, entre outros aspectos, na

escolha das formas linguísticas para se dirigir ao leitor. Por normalmente ser uma

comunicação íntima, a carta pessoal aproxima bastante a fala da escrita, pois o remetente

quer ser reconhecido em seu texto e, através dele, romper a distância, aplacar a saudade e

marcar sua presença. Deste modo, muitos aspectos da fala podem ser verificados na escrita

em cartas pessoais, gênero textual que favorece a ocorrência de muitas das variações

linguísticas observáveis na fala.

2.1 Um elemento novo no cenário

Na maioria das línguas indo-europeias (IE), existe uma distinção entre o que se

chama convencionalmente de pronomes de tratamento polidos e familiares (LYONS, 2011,

p. 235). Os primeiros originam-se, em geral, do uso respeitoso da 2ª p. pl. (que, na maioria

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das línguas IE, é uma forma pronominal iniciada por V) pela 2ª p. sing. (que, na maioria das

línguas IE, é uma forma pronominal iniciada por T)29.

Em português, a partir do século XIX, a expressão de tratamento vossa mercê

(portanto, uma forma V) foi se contraindo e resultando nas formas vosmecê (hoje arcaica) e

você, que, no singular, concorre, em muitas regiões do Brasil, com o tu e, no plural,

substituiu completamente o vós na língua corrente.

A variação entre tu e você pode ser conferida em (1), carta de 1969:

(1) Tu não podes mais levar esta carga, escolhe outros maioraes. Você precisa saber o

que é que diz os altos e modernos técnicos... [C080-15.12.1969]

Na década de 1930, a variação tu/você já ocorria, como mostra o trecho (2) de uma

carta de 193630:

(2) Lembranças aos teus, beijos para Hilda, e para voce minha querida quantos beijos,

quantos tu desejar. [Carta 01-JM-24-09-1936]

A concorrência com o pronome tu fez surgir o uso da forma oblíqua te como

anafórico de você, como se verifica em (3), trecho de uma carta de um pastor evangélico

para seu cunhado, também pastor, e em (4), trecho de uma carta de uma jovem a seu

namorado:

(3) ...é bem possível que você esteja precisando de alguém para te dizer... [C080-

15.12.1969]31

(4) ...enquanto você não me esclarecer de uma vez por toda, eu não me calarei, até gritarei para mundo, que te amo. [C093-02.04.1973]

Além dessa possibilidade de combinação, a entrada de você no quadro pronominal

português fez surgir todo um conjunto de variações na 2ª pessoa, envolvendo todos os

pronomes, inclusive os possessivos. Assim, temos as seguintes variações as formas T/V no

PB: te/lhe, te/o, ti/você e teu/seu, todas testemunhadas em cartas, como mostram os trechos

a seguir:

29 Formas T: fr./ital./port. tu, esp. tú, russ./pol./tcheco ty, ingl. thou – incl. al./sueco/din./hol./ du e isl. Þú; formas V: fr. vous, ital. voi (posteriormente Ella e Lei), rom. voi, esp. vos (posteriormente usted<vuestra merced), port. vós (posteriormente você<vossa mercê), russ./tcheco vy, pol. wy; al. Sie, sueco ni, din. De, hol. U e isl. þér (considerado arcaico). 30 Do acervo organizado por Rachel Oliveira e Célia Lopes, do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Carta 01-JM-24-09-1936, disponível em: http://www.tycho.iel.unicamp.br/laborhistorico/cgi-bin/getversion.pl#s_9#26 31 As cartas identificadas com esta codificação constituem o corpus da pesquisa aqui proposta. A letra C significa “carta”, os primeiros três dígitos indicam o número da carta e os oito seguintes referem-se à data, que, neste caso, é dia 15 de dezembro de 1969.

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a) variação te/lhe na função de obj. direto:

(5) Você não imagina como lhe esperei na agência (...) não sei se era de tristeza ou se

era vontade de te ver. [C096.05.08.1974]

(6) preciso lhe vê (...) te adoro. [C283-21.10.1992]

b) variação te/lhe na função de obj. indireto:

(7) Rezouvi escrever-te estas linhas dando-lhe nossas nuticias [C094-21.11.1973]

(8) resolvi te escrever (...) já que você contou seus segredos, vou contar-lhe um [C267-

02.04.1990]

c) variação te/o (-lo):

(9) como desejava vê-lo outra vez (...) mas quando te vi, percebi que não era tristeza

[C096.05.08.1974]

(10) acho até que as outras coisas teriam te chocado (...) eu quero mantê-lo perto de mim. [C288-09.12.1993]

d) variação ti/você:

(11) Querida não é possivel suportar estas saudades que sinto de ti (...) aqui termino

com muita saudade de você. [C092-21.03.1973]

(12) Mesmo longe de ti, não esqueço de você [C276-06.08.1992]

e) variação teu/seu:

(13) Acuso que recebi sua ultima carta, a qual veio dar-nos tuas notícias. [C012-

13.04.1945]

(14) Recebi tua amoroza cartinha (...) Lembranças a todos. O mais fica para a sua vinda. [C031-13021950]

(15) do seu sempre teu. [C086-09011972]

Além de ocasionar variações, a entrada de você no quadro pronominal português

possobilitou uma série de combinações entre as formas T/V, neutralizando o caráter de

polidez que antes as distinguia (COOK, 1997). Bagno (2011, p. 756) defende que essa

“mistura” de pronomes é perfeitamente natural e revela que houve uma reorganização do

quadro de índices pessoais. Essas combinações encontram-se registradas nos seguintes

trechos de cartas:

(16) Comunicu-te o recebimento de sua carta [C003-07.01.1940]

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(17) Comunicu-lhe o recebimento de vossa carta [C008-29.04.1941]

(18) Dou em meu poder vossa carta de 1 de Dezembro, aqual respondo-vos: o silencio que nos separou, teve um mutivo, cujo é o seguinte eu não queria, lhe escrever, sem mandar o retrato de seu Pai. [C016-s/d.1947]

2.2 A persistência do vós

Embora tenha caído em desuso no português de todas as regiões em que a língua é

falada, conforme Bagno (2011, p. 968), encontramos o pronome vós em cartas pessoais

ainda na década de 1980, talvez por força da linguagem bíblica, uma vez que a ocorrência

de tal pronome (bem como de suas formas oblíquas e possessivas), em nosso corpus, só

apareceu em cartas de evangélicos. Os trechos seguintes mostram algumas dessas

ocorrências:

(19) A pas do Senhor seja com todos vós, que amáes, o Senhor e sua vinda [C005-

s/d.10.1940]

(20) a paz do senhor seja convosco e com todos da vossa casa. [C052-14.06.1953]

(21) comunico-lhe que recebemos sua cartinha, e que ficamos muitos contente em saber as vossas notícias, em saber que vocês estão vivendo na firmesa da fé em Cristo Jesus. [C184-29.08.1980]

(22) Tomo Este Momento de Muita Tristeza, Para Vos Comunicar A Grande dezaparecimento do Enesquesivel, Companheiro E Amigo, (...) [C246-23.05.1985]

O uso de vos, em algumas cartas, concorre com lhes, como em (23), ou está associado

a vocês, como em (24), trechos de uma mesma carta de 1953.

(23) Escrevo-lhes estas linhas paradizer-vos que o Osmídio veio... [C052-14.06.1953]

(24) (...) êle disse-nos que não era bem certeza vocês irem. Agora pesso-vos que logo

que recebas esta carta, responda-me. [C052-14.06.1953]

2.3 Os tônicos pelos átonos Em variedades não padrão do português brasileiro, os pronomes tônicos do caso

reto têm sido usados como oblíquos, pondo em variação os pares tônicos e átonos eu/me,

tu/te, ele/o.

Embora eu também ocorra na função de complemento direto (em vez de me), como

no trecho (25) da conhecida canção de Meriti e Do Cais (2002), interpretada pelo sambista

Zeca Pagodinho:

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(25) Deixa a vida me levar / Vida, leva eu! ou mesmo na de complemento indireto (em vez de mim), como em (26), de Luiz

Gonzaga e Zé Dantas (1951): (26) Tu que cantas, passarinho (sabiá) / Alivia minha dor, / Tem pena d'eu (sabiá).

Em cartas, é mais comum o uso de eu por me com verbos causativos seguidos de

oração infinitiva, o que pode ser verificado nos trechos (27) e (28), de cartas de 1952 e

1953, respectivamente:

(27) tenho que ver uma vitória de Jesus concentir eu ir vizitar os irmãos. [C034-

05.11.1952]

(28) aqui é a única coza que estar fazendo eu ir embora. [C053-18.10.1953]

E também no trecho (29), de outra carta de 1952, em que a codificação do objeto

direto faz-se por me com o verbo não seguido pela oração infinitiva (oração subordinada –

OS), mas por eu,no mesmo parágrafo, na oração inifinitiva, em que o pronome tanto pode

ser entendido como objeto direto do verbo na OP como sujeito do verbo da OS:

(29) Peço oração de todos os irmãos por mim para Jesús me preparar e não deixar eu

pecar. [C032-04.01.1952]

Em (30), de uma carta de 1953, a confusão entre as funções sintáticas do pronome

(OD do verbo causativo da OP e SUJ do verbo da OS) pode ser a explicação para o uso de

ambas as formas da 1ª pessoa junto como mesmo verbo:

(30) No Pará me sobrevieram algumas perseguições as quais mei forçaram eui retirar-

me para o est. de São Paulo onde estou. [C013-17.05.1953]

Mais comum é o uso de ele(a) por o(a), comentado em Cunha (1986, p. 290),

Monteiro (1994, p. 87-8), Moura Neves (2000), Bechara (2003, p. 173-5), Castilho (2012)

entre outros, como mostram os trechos (31), (32) e (33), de cartas de 1940,1953 e 1971,

respectivamente:

(31) a mesma irmã viu elle agarrado com uma irmã da mesma natureza delle. [C004-

29.01.1940]

(32) eu, logo que saiba o dia que vão, mando éla pra casa do Odiel com antecedência, sim? [C052-14.06.1953]

(33) ...ela banha ele e bota lá na cama da Beta. [C316-19061971]

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Quanto à forma oblíqua tônica ti, também ocorre variação com você, como

demonstram os trecho (11) e (12) citados anteriormente.

A forma contigo é, conforme Monteiro, uma alomorfia de ti combinada com a

preposição com (escrita con por preceder um t). O alomorfe tigo originou-se do arcaico

tego, que, por sua vez, proveio do lat. vulg. tecu e este do lat. cláss. tecum, que nada mais é

do que a preposição cum (>com) posposta ao ablativo te (>ti). O esvaziamento semântico

da preposição de companhia presente em tego, tigo na sílaba go (<cu < cum) resultou na

necessidade de reforço, acoplando-se novamente a preposição com, desta vez

prefixalmente, o que deu origem à forma etimologicamente redundante contigo

(COUTINHO, 1976). Uma vez que ti encontra-se em variação com você, seu alomorfe tigo

também concorre com esse pronome. A variação contigo/com você é evidente em (34),

trechos de uma carta de 1993:

(34) Muito me entristece ouvir os outros falarem em você (...) Qualquer coisa que eu

queira ter contigo existe uma superior que ao vou desfazê-la, que é nossa amizade. [C288-06.12.1993]

No trecho acima, o pronome usado após a preposição em é você, mas usado após a

preposição com é ti (portanto, contigo), quando a remetente poderia ter mantido o você, já

que a referência é a mesma.

2.4 Como em Portugal

Para a forma consigo, dá-se explicação semelhante: se +

cum>secum>secu>sego>sigo>com + sigo>consigo. Quanto a esta forma pronominal, há certa

divergência em seu emprego em Portugal e no Brasil: lá, consigo se usa como equivalente

de com você, com o(a) senhor(a); aqui, a NGB prescreve-o como “exclusivamente reflexivo”

(ROCHA LIMA, 2012, p. 158) e “unicamente reflexivo” (TERRA, 1996, p. 119) condenando,

portanto, frases como (35), trecho de uma carta de 1940:

(35) a paz do Senhor Jesus seja com sigo e toda a sua família. [C006-05101940]

No PB, a forma reflexiva de 3ª pess. costuma aparecer codificada pelo pronome ele,

em vez de si, como mostra o trecho (36), de 1940:

(36) este indivíduo é prosttuído, e quer levar para o abismo muitos outros com elle.

[C003-07.01.1940]

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Si, defendido pelas gramáticas normativas como de uso “exclusivamente reflexivo”

(ROCHA LIMA, 2012, p. 158), é empregado no lugar de você, não reflexivo, o que é muito

comum no português lusitano, nesta carta de 1958:

(37) ...e Mariinha dê um abraço em si por mim. [C061-19.06.1958]

Nesse trecho, em que Mariinha é a mulher do destinatário, o si refere-se a ele (a

remetente pede que o destinatário diga à esposa para abraçá-lo).

2.5 A generalização do se

O pronome se, reflexivo, tem sido usado, em algumas variedades regionais do PB

como correferente de todas as pessoas (BAGNO, 2011, p.743), sendo bem documentada a

ocorrência com o sujeito tu (cf. SOARES, 1980, p. 86). Com o sujeito nós (portanto, em

variação com o reflexivo nos), encontra-se registrado nos seguintes trechos:

(38) nósi temos que sei encontrar la na gloria [C095-25.04.1974]

(39) quero que nósinosi entendemos bastante bem. [C096-05.08.1974]

2.6 Em vias de extinção

A forma pronominal o (e suas variações -lo e -no, bem como sua flexão a(s), -la(s), -

na(s)), como aponta Monteiro (1994), encontra-se, no português brasileiro, em fase de

franca extinção e restrito à fala de pessoas cultas em situações formais. Para Bagno (2013,

p. 280), esse pronome não faz parte da gramática intuitiva do falante e seu emprego,

“muito raro, é fruto exclusivo da escolarização”. No entanto, não é rara sua ocorrência na

modalidade escrita, dada a formalidade com que se reveste por vezes essa manifestação da

língua. Originalmente um pronome demonstrativo de 3ª pessoa (do lat. illum, “aquele”

>illu>lo>o), passou a ser usado com referência à 2ª pessoa quando esta era tratada por você

ou outra forma mais polida (o senhor, Vossa Senhoria etc.), de modo que é possível que

ocorra com o sujeito tu, como mostra este trecho (40) de uma carta escrita em 1920:

(40) Deos (sic) o abençoe e dê-lhe calma pa (sic) cumprir os seus deveres. (...) Ésbom

christão (sic), sabes a religião à (sic) fundo.32[carta 28-AP-18-3-1929]

32 Disponível em: <http://www.tycho.iel.unicamp.br/laborhistorico/cgi-bin/getversion.pl>. Acesso em: 28

maio 2012.

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Nesse trecho, a codificação dos casos acusativo e dativo, respectivamente, se dá

através dos pronomes o e lhe, originalmente de 3ª pessoa, já o caso nominativo (sujeito)

codifica-se através do tu oculto e depreendido pela desinência verbal –s nas frases

seguintes.

Já no trecho (41), de uma carta de 1974, a remetente usa a forma –lo com o verbo

ver para referir-se ao destinatário e, mais adiante, usa te com esse mesmo verbo e com a

mesma referência:

(41) Vocêi não imagina como lhe esperei na agência e como fiquei triste por ver que não

vinhas. (...) como desejava vê-loi outra vez. (...) eu andava triste, a razão não sabia por que, não sei se era de tristeza ou se era vontade de tei ver. [C096-05081974]

Note-se também neste trecho que a codificação da 2ª pessoa no caso objetivo dá-se

de três formas: com lhe, com o (-lo) e com te.

Talvez por hipercorreção (BAGNO, 2013, p. 247-254), verifica-se o uso de o (-lo) na

função de dativo, em vez de lhe, nos trechos (42) e (43), de cartas de 1966 e 1986,

respectivamente (com o pron. na forma feminina):

(42) Em relação a Natália, eu sou sabedor a muito tempo, que você ler as cartas que eu a

escrevo [C076-03.08.1966]

(43) Mande-me o endereço da Valentina pois quero escrevê-la. [C249-03111986] O uso de o (-lo) por lhe talvez seja decorrente da perda do traço [+3ª pessoa] que

sofreu o pronome lhe no português falado no Brasil (BAGNO, 2013, p. 230). Entretanto, lhe

ainda conserva o traço [+3ª pessoa] em cartas da década de 40, como comprovam o trecho

(44):

(44) disse a Dina que quando o Manecoi veio de Mossoró que esteve em Lajes e Angico

foi em casa della, Dina, mas de uma vez seduzi-la não somente com palavras prostituídas, como agindo, dizendo a Dina que lhei servise de mulher, pois pretendia formicar com ella, dizendo que a esposa era doente e não podia ficar separado de mulher, o que ella rezistiu muito que a última vez que ellei a procurou, foi em um estado tão vergonhoso, dizer que ella lhei fizesse isto e ella repreendeu-oi, que não seria falda a seu marido [C004-29.01.1940]

2.7 Os possessivos

Assim como se usa te em correlação com você, usa-se também teu (e flexões),

concorrendo com seu (e flexões), quando o sujeito é você. É o que se verifica em (45), de

uma carta de 1993:

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(45) Você me fez sentir expulsa da tua vida. [C288-09.12.1993]

O contrário, ou seja, o uso de seu quando o sujeito é tu, também ocorre, como mostra

o trecho (46):

(46) A paz de nosso senhor Jesus seja comsigo e todos de sua família. (...) Espero que

tu nos escreva dando uma larga notícia desta novidade d’ahi. [CC012-13.04.1945]

Na 3ª pessoa, a forma seu passou a competir com dele(a), devido a, pelo menos, três

tipos de ambiguidade, conforme Monteiro (1994, p. 207-8): a relacionada com a pessoa do

discurso, pois, com a entrada de você no quadro pronominal, seu tanto pode se referir à 2ª

pess. (você) quanto à 3ª pess. (ele/ela); a relacionada com o número gramatical, pois seu

tanto pode se referir ao singular (de você, dele) quanto ao plural (de vocês, deles); e a

relacionada com existência de dois referentes, ambos de 3ª pessoa e ambos possíveis

possuidores.

Em cartas, encontramos tanto a forma seu quanto dele com referência à 3ª pessoa, o

que consiste em mais uma variação pronominal no PB, como mostram os seguintes trechos

de cartas:

(47) Ella dizia que não trahiria nunca o seu espozo [C003-07.01.1940]

(48) Apas do senhor seja com todos vós, que amáes, o senhor e sua vinda, e o seu reino

[C005-s/d.10.1940]

(49) a irmã contou Irmã Sufia que o Hygino procurou conquistar a filha della [C003-07.01.1940]

(50) Todos aqui me chateiam, é claro. E os amigos dele também, ficam perguntando aonde ele vai encontrar leite Ninho para comprar p’ra mim. [C258-08.02.1987]

2.8 Uma variação mais recente Todas as variações comentadas até então já se verificam no PB há algum tempo e

tem motivado alguns estudos, levando, inclusive, a algumas gramáticas normativas a

abonarem certas formas, como faz Rocha Lima (2012, p. 386-7) quanto ao uso de você e tu

para a 2ª pessoa, bem como o de lhe tanto para a 3ª pessoa quanto para a 2ª, ou Cunha

(1986, p. 316) sobre o uso de dele(a)(s) por seu. Poucos, porém, têm admitido a expressão a

gente no quadro pronominal, concorrendo com nós.

Monteiro (1994, p. 148) diz que o pronome nós está sendo substituído por a gente

em todas as faixas etárias. Uma carta de 1970 (51) escrita por um senhor evangélico e

outra de 1987 (52) escrita por uma garota de 17 anos comprovam a afirmação do autor:

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(51) Tudo que se faz de bem para ela, ela não reconhece; e se agente vai dar um conselho a ela, ela pega em pedra e apedreja tudo que tiver na frente [C081-02.04.1970]

(52) Se der certo, neste fim de semana, eu e mamãe vamos por aí. Caso agente não vá, você compra, tá certo? [C256-03.05.1987]

3 CARTAS PESSOAIS: IMPORTANTES TESTEMUNHAS DAS VARIAÇÕES NA FALA

Trabalhos sobre gêneros da modalidade escrita, sobretudo cartas pessoais, revelam

sua importância no estudo das variações e mudanças linguísticas. Seara (2006) defende

que a autenticidade das relações sociais, culturais e pessoais encontra seu testemunho de

forma ímpar nas cartas, as quais traduzem o cotidiano e a vivência, em determinada época,

de uma sociedade. Para a autora, o passado memorizado, o presente vivido e o futuro,

esperado e desejado, podem ser encontrados no desenvolvimento das cartas, que é,

portanto, lugar de temporalidade múltipla, pois “encerra esta mistura de tempos diversos:

o da história passada, o da seleção da informação, o da escrita, o do envio, da recepção, da

leitura e da releitura”.

Chagas (2011) afirma que os textos escritos são importantes quando pretendemos

ter uma noção das mudanças de alguma língua num período mais extenso ou mais distante

do atual. Porém o pesquisador deve estar preparado para interpretar o que está registrado

nos textos de sincronias pretéritas e em que medida eles são um retrato fiel da língua

falada naquele período, pois, apesar de ser algo conhecido que as línguas mudam, tanto em

sua forma falada quanto em sua forma escrita, a modalidade escrita é sempre mais

conservadora do que a falada. Por normalmente ser regulada por regras socialmente

estabelecidas e estáveis, como os acordos ortográficos e as gramáticas normativas, a

modalidade escrita de uma língua causa a impressão de se encontrar em um estado

normalizado, estagnado, o que leva a achar que certas mudanças linguísticas ocorrem em

bloco e em saltos, coisa com que nem todos os teóricos concordam. Assim, a nossa

percepção da ocorrência de mudanças linguísticas é, em certa medida, filtrado pelo contato

com textos escritos.

Silva (2002) diz que cartas pessoais, assim como outros corpora de língua escrita

são importantes fontes de investigação dos resultados de mudança em tempo real ou

mesmo em tempo real de curta duração, ficando a cargo do pesquisador decidir o quanto

vai retroceder na língua para fazer sua análise. Dependendo do veículo a ser utilizado como

recorte da língua, o pesquisador pode fazer um recuo de séculos (cujo resultado será em

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tempo real) ou apenas de décadas (o que dará um resultado de tempo real de curta

duração).

Andrade (2011) defende que a carta converte-se num espelho da conversação face a

face, porém deve apresentar uma escrita própria, entre a elegância oratória e a

conversação familiar. A autora defende ainda que a comunicação por cartas busca

estabelecer uma relação entre pessoas ausentes, servindo de nexo informativo em um

momento de separação espaço-temporal e cumprindo uma finalidade comunicativo-

interacional. Para ela, é a relação estabelecida entre os interlocutores que garante a eficácia

de uma carta, que deve encerrar confidencialidade e, desse modo, “as cartas são um retrato

da sociedade de seu tempo, porque revelam e desvelam não só o missivista, mas também

seu destinatário numa prática social que os instanciam no momento da enunciação.”

Este artigo surgiu a partir de uma pesquisa que estamos realizando sobre a variação

te/lhe em cartas pessoais escritas por cearenses ao longo do século XX. Como a pesquisa

ainda está em andamento, não podemos adiantar aqui as conclusões a que chegaremos,

mas cremos que todo o exposto acima serviu tanto para dar visibilidade às diversas

variações existentes no sistema pronominal do PB quanto para mostrar que as cartas

pessoais servem como testemunhas dessas variações, que não são exclusivas da

modalidade oral. Esperamos, com isso, colaborar com os estudos de variação no PB,

acreditando termos deixado muitas ideias para pesquisadores desenvolverem trabalhos de

investigação das variações de nossa língua.

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A COLOCAÇÃO DOS PRONOMES CLÍTICOS EM SENTENÇAS COM VERBOS NO INFINITIVO EM ANÚNCIOS E CARTAS DE LEITORES NA IMPRENSA BRASILEIRA DOS SÉCULOS XIX E XX Geison Luca de Sena Pereira Universidade Federal do Rio Grande do Norte Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar e descrever a colocação de pronomes clíticos em sentenças retiradas de anúncios e cartas de leitores publicados nos estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia e Pernambuco, durante os séculos XIX e XX. Os textos utilizados nesta pesquisa fazem parte do corpus mínimo comum impresso do PHPB (Projeto para a História do Português

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Brasileiro). Fundamentamos nossa pesquisa nos pressupostos teórico-metodológicos da sociolinguística variacionista (Cf. TARALLO, 2007; WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006), nos estudos de Mateus et al. (2003), referentes aos padrões de ordenação de clíticos no Português Europeu (PE), de Martins (2009, 2012), em relação aos padrões de colocação de clíticos no Português Brasileiros (PB), e nos estudos de Menon (2012) acerca da colocações de clíticos em construções preposicionadas. Em nossa análise e descrição dos dados, focalizamos nossas atenções para o contexto das orações com verbos no infinitivo e observamos que houve uma redução no número de próclises durante os séculos XIX e XX em sentenças com verbos no infinitivo. No século XIX, a diferença entre o número de ocorrência de próclises e de ocorrências de ênclises não é muito grande, apesar de a quantidade de ênclise ser maior. Já no século XX, há uma diminuição nas ocorrências de próclises, aumentando dessa forma a diferença em relação às ocorrências de ênclises.Neste trabalho, especificamos os contextos em que há maior ou menor número de próclise em orações com verbos no infinitivo e apresentamos uma explicação para os padrões de colocação encontrados. 1 INTRODUÇÃO

Os estudos acerca da colocação dos pronomes clíticos em sentenças retiradas de

textos escritos em língua portuguesa têm contribuído bastante na investigação sobre a

formação do português brasileiro. As análises da ordenação de clíticos evidenciam padrões

que podem ser visto como reflexo de mudanças no sistema linguístico do português. Com

isso, muitos estudos têm focalizado a ordenação de clíticos em sentenças de língua

portuguesa a fim de evidenciar se tais mudanças refletem modificações na estrutura da

língua que culminaram na formação de uma gramática de PB. Entre os estudos acerca da

colocação de clíticos no Português brasileiro destacamos os estudos de Martins (2009;

2012) em relação à colocação de clíticos em peças de teatro escritas por catarinenses

nascido nos século 19 e 20.

A fim de contribuir com os estudos acerca da colocação de clíticos no PB, propomos

uma investigação que busque sanar as seguintes questões: (i) Qual é o padrão de colocação

de clítico em sentenças com verbos no infinitivo retiradas de cartas de leitores e anúncios,

publicados nos séculos 19 e 20? (ii) Encontraremos no século 19 diferentes padrões de

colocação de clíticos em sentenças com verbos no infinitivo, configurando esse século como

um ambiente de variação clV/Vcl? (iii) Encontraremos no século 20 a próclise majoritária

no contexto das orações com verbos no infinitivo? Buscamos, portanto, responder essas

questões a partir da análise qualitativa que desenvolvemos em relação à amostra composta

por dados retirados de cartas de leitores e anúncios publicados no século 19 e 20.

Organizamos, assim, este trabalho da seguinte forma: na seção 1, discorremos

acerca dos pressupostos teórico-metodológico da sociolinguística variacionista. Na seção 2,

trataremos das questões referentes à mudança sintática. Na seção seguinte, daremos foco

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aos resultados obtidos por Martins (2009; 2012) acerca da colocação de clíticos em teças

teatrais. E, por fim, na seção 4, apresentaremos nossa análise e os resultados obtidos com a

amostra.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA SOCIOLINGUÍSTICA

A sociolinguística, também denominada de teoria da variação e mudança linguística,

tem como ponto de partida de suas investigações a relação entre língua e sociedade. A

teoria da variação e mudança linguística tem como marco a publicação do ensaio

Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística escrito por Weinreich,

Labov e Herzog.O modelo teórico-metodológico proposto nesse trabalho tem como objeto

de estudo da língua em uso que, apesar de sua heterogeneidade e aparente impossibilidade

de padronização, pode ser sistematizado e estudado. É através da sistematização do

universo caótico, característico da língua em uso, que podemos perceber fenômenos como

a contemporização e a mudança. Esses fenômenos ocorrem devido à existência das

variantes linguísticas que são basicamente as “diversas maneiras de se dizer a mesma coisa

em um mesmo contexto” (TARALLO, 2007, p.8). Segundo Tarallo (2007), para que esta

sistematização seja feita é necessário que a pesquisa sociolinguística consista em: (i) um

levantamento de um grande número de dados de fala; (ii) uma descrição detalhada da

variável; (iii) uma análise dos fatores lingüísticos e não lingüísticosque podem ser

considerados condicionadores do uso de determinada variante; (iv) o encaixamento da

variável no sistema lingüístico e social da comunidade e (v) a projeção histórica da variável.

Como foi exposto anteriormente, o primeiro passo a ser seguido para que se possa

sistematizar o caos linguístico é o levantamento de dados de língua falada. A princípio o

pesquisador deve buscar apenas os dados constituídos do vernáculo, a língua falada no

cotidiano, ou seja, aquela em que o falante esteja totalmente despreocupado com o como

enunciar. Contudo, a obtenção de dados com esta qualidade pode ser prejudicada pela

presença inibidora do pesquisador e de seu gravador, fatores essenciais na coleta de dados.

Esta dificuldade, conhecida como Paradoxo do observador, pode ser superada com a

utilização de questionários que estimulem o informante a relatar narrativas de

experiências pessoais. Esse método tem se mostrado eficiente, pois ao relatar uma

experiência pessoal, o informante mostra-se menos preocupado com o como enunciar,

visto que ele está envolvido emocionalmente com o que está sendo relatado.

Antes mesmo de iniciar o trabalho de coleta de dados, o pesquisador necessita ter

cautela no que se refere à comunidade e à seleção dos informantes. Para que não haja

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maiores problemas nessa fase introdutória da pesquisa, Tarallo (2007) aconselha que: (i)

jamais se deixe claro ao informante que o objetivo da pesquisa é estudar a língua tal como é

usada pela comunidade; (ii) se avise ao informante que ele pode pedir a qualquer momento

a inutilização da fita; (iii) se procure acomodar seu comportamento social e linguístico ao

do grupo ou comunidade entrevistada; (iv) se procure entrar na comunidade por

intermédio de um integrante dela e (v) se utilize a amostra aleatória para a seleção dos

informante. Na seleção dos informantes é importante, também, a utilização das células

sociais. Estas células são formadas a partir dos fatores não linguísticos que o pesquisador

acha que podem ser um condicionador do uso das variantes. Com a utilização dessas

células, o pesquisador irá construir um perfil básico dos informantes em potencial, assim

como determinar o número exato de informantes que serão necessários para a realização

da pesquisa.

Não menos importante que o levantamento dos dados, a descrição detalhada das

variantes caracteriza-se como uma etapa necessária para que se possa sistematizar o caos

linguístico. A descrição detalhadas das variantes, o envelope de variação, é importante na

pesquisa sociolinguística, pois permite que o pesquisador descubra “as armas usadas pelas

variantes”, ou seja, os contextos que condicionam o uso de diferentes formas de se dizer a

mesma coisa com o mesmo valor de verdade.

Depois de descrever detalhadamente as variantes, o pesquisador dever dar

continuidade a pesquisa, analisado os fatores linguísticos e não linguísticos que podem ser

considerados como condicionadores do uso das variantes. Os fatores linguísticos, por

terem sido elencados na etapa anterior, devem ser associados às variantes a que

correspondem, ou seja, as variantes devem ser encaixadas ao sistema gramatical da língua

estudada. Ainda nessa etapa, o pesquisador deverá identificar também os fatores não

linguísticos que podem condicionar o uso das variantes. Devemos lembrar que quanto

maior o número de fatores não linguísticos maior será o número de informantes que

deverão ser entrevistados, visto que para garantir a representatividade da amostra é

necessário respeitar a proporção de 5 informantes para cada célula social formada.

O encaixamento da variável no sistema linguístico e social da comunidade é outra

importante atividade que deve ser desempenhada pelo sociolinguísta. Nessa etapa, o

pesquisador deve elaborar testes que serão respondidos pelos informantes. Esses testes

variam de acordo com a natureza da variável (fonológica, morfológica, sintática ou

semântica) e pode ser de dois tipos: de percepção ou de produção. Nos testes de percepção,

será exposto aos informantes um grupo de orações ou palavras, de acordo com a natureza

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da variável, que contenham as variantes descritas detalhadas anteriormente. Diante do

conteúdo do teste, o informante deverá expressar sua aceitabilidade em relação às

proposições expostas. Já nos testes de produção, o pesquisador deve elaborar mecanismos

que façam o falante produzir sua variante ou a variante que considerar mais aceitável.

Esses e outros testes são aplicados com o objetivo de extrair informações que possam

expressar o papel e o valor que o informante atribui às variantes que circulam na

comunidade.

A última etapa destacada por Tarallo (2007) como necessária para a sistematização

do caos linguístico é a projeção histórica da variável. Ao projetar a variável na história,

poderemos identificar se a luta entre as variantes trata-se de um duelo de contemporização

ou uma batalha que resultará na morte de uma das variantes (a mudança em processo). A

contemporização é, portanto, um fenômeno linguístico em que duas ou mais variantes

coexistem em um determinado momento na história. Por outro lado, a mudança

compreende a vitória de uma variante sobre a outra. Para podermos identificar a mudança

em processo é necessário incluir na pesquisa o fator histórico e encaixar a variável nessa

nova dimensão. Para que isso seja possível, podemos usar procedimentos de projeção

histórica como os métodos do tempo aparente e a do tempo real. O tempo aparente

configura-se como um corte transversal na amostra sincrônica, baseado na faixa etária dos

informantes, ou seja, será observado o uso das variantes em diferentes faixas etárias. Dessa

forma, se for identificado um maior uso da variante inovadora pelos informantes mais

novos, podemos está diante de uma mudança em processo. Já o método do tempo real

configura-se como a projeção diacrônica das variantes e é somente através deste

encaixamento histórico que podemos comprovar a mudança linguística. Considerando isso,

Tarallo (2007), com base na proposta de Labov, toma a projeção histórica como uma

viagem de ida (do presente ao passado) e de volta (do passado ao presente).

Vale ressaltar que os procedimentos metodológicos expostos por Tarallo (2007),

são métodos pertencentes às pesquisas que tem como objeto de estudo a língua falada. Por

isso, procedimentos como a elaboração de questionários, a realização de entrevistas e as

técnicas de seleção de informantes são justificadas e recomendadas para esse tipo de

pesquisa. No entanto, quando nos referimos a pesquisa lingüística com base em textos

escritos não podemos considerar esse tipo de procedimentos. Como em nossa pesquisa

+buscamos analisar os padrões de colocações dos pronomes clíticos no corpus impresso do

PHPB, ou seja, um corpus de língua escrita, devemos considerar como aspectos relevantes a

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essa pesquisa, o pressuposto de língua como um sistema linguístico heterogêneo e os

conceitos de contemporização e mudança, expostos por Tarallo (2007).

3 MUDANÇA SINTÁTICA Considerando que nessa pesquisa buscamos analisar as mudanças sintáticas

ocorridas na história do português ou pelo menos as mudanças ocorridas em relação à

colocação de pronomes clíticos na formação do português brasileiro, com foco nas orações

com verbos no infinitivo, devemos nos aprofundar um pouco mais em nossas

considerações em relação ao fenômeno de mudança sintática. A mudança sintática é um

fenômeno muito estudado pelos linguistas na atualidade. Os diversos estudos

desenvolvidos sobre a história das línguas produziu diversas teorias sobre a mudança

linguística, ou mais especificamente, a mudança sintática. Dentre as teorias relacionadas ao

fenômeno de mudança sintática, há a teoria de Princípios e Parâmetros, caracterizada

como uma teoria formalista, que foi desenvolvida por Noam Chomsky.

De acordo com a teoria de Princípios e Parâmetros, todo ser humano possui um

componente mental, herdado geneticamente, chamado de Gramática Universal (GU). Essa

gramática é dotada de regras, ou princípios, universais que possibilitam ao indivíduo

adquirir uma língua em particular a partir do contado desse indivíduo com sua língua

natural no período de aquisição da linguagem. Por meio dos princípios da Gramática

Universal os indivíduos adquirem parâmetros que são justamente os componentes que

variam de uma língua para outra. Dessa forma, podemos considerar que “a faculdade

humana para a linguagem possui certos princípios inatos, sujeito a variações entre as

línguas. Essas variações são as expresses (sic) possíveis dos parâmetros relacionados aos

princípios.” (CYRINO, 2012, p.98).

Como foi dito anteriormente, a mudança sintática é um fenômeno linguístico muito

estudado nos últimos tempos. Muitos linguistas estudam os processos de mudança da

língua a fim de traçar um panorama dos processos de formação das línguas naturais e

compreender as mudanças linguísticas que ocorreram no decorrer dos séculos. Os diversos

trabalhos desenvolvidos por esses estudiosos nos proporcionaram algumas visões acerca

das mudanças sintáticas. Trataremos, aqui, de algumas visões de cunho formalista, afim de

que possamos compreender um pouco mais sobre o processo da mudança sintática.

De acordo com Lightfoot (1979, apud CYRINO, 2012), as mudanças sintáticas não

são originadas por mudanças internas a língua, nem mesmo pelo contato de uma língua

com outra. Para esse linguísta, as mudanças sintáticas ocorrem no período de aquisição da

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linguagem, por meio de uma reanálise gramatical ocorrida na mente do indivíduo no

momento em que ele está adquirindo sua língua natural. Levando em consideração que

nesse período o indivíduo adquiriu a língua materna por meio da transformação dos

parâmetros dessa língua e dos princípios universais da GUem conhecimento sobre sua

língua natural, formando assim sua língua I, podemos dizer que a mudança sintática,

segundo postulada por Lightfoot (1979, apud CYRINO, 2012), é uma falha na transmissão

dos parâmetros pertencentes à língua materna.

Já o modelo de mudança sintática elaborado por Anthony Kroch não comunga com

os postulados de Lightfoot, ou seja, Kroch não considera que a mudança seja oriunda de

uma reanálise de parâmetros no período de aquisição da linguagem. Para Kroch, a

mudança sintática se origina em “uma mudança na gramática, que causa mudanças nas

frequências de certas formas linguísticas que, por sua vez, são propagadas na comunidade

linguística.” (KROCH apud CYRINO, 2012). Dessa forma, ele considera que a falha na

aquisição tanto pode ocorrer no momento de aquisição da linguagem na infância como

também quando os indivíduos tentam aprender uma segunda língua. O modelo postulado

por Kroch considera que a mudança é resultado da competição entre gramáticas diferentes

de uma mesma língua. Com isso, uma mudança sintática somente é atestada quando os

padrões de uma gramática se sobressaem em relação aos padrões de outra gramática.

Essas duas visões acerca da mudança sintáticas são fundamentais para a

compreensão desse fenômeno em nossa pesquisa, visto que observamos a colocação dos

pronomes clíticos em cartas de leitores e anúncios publicados no nordeste durante o século

19 e 20. Nessa pesquisa adotamos a concepção de mudança sintática como o resultado da

competição entre gramáticas distintas, assim como foi sugerido por Anthony Kroch e

advogado por Martins (2009) em sua pesquisa referente à colocação dos clíticos em textos

de catarinenses nascidos no século 19 e 20.

4 A COLOCAÇÃO DE CLÍTICOS EM SENTENÇAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Nesta seção, discorremos um pouco sobre a colocação pronomes clíticos em

sentenças do Português brasileiro. Para isso, tomaremos como base a pesquisa feita por

Martins (2009; 2012) acerca da colocação dos clíticos em textos de catarinenses nascidos

no século 19 e 20. Em seu estudo, Martins (2009; 2012) defende a proposta de Anthony

Kroch, de mudança sintática como “um processo gradual que procede via competição de

gramática” (KROCH apud MARTINS, 2009), assim como, a idéia de Galves e colaboradoras

de que o Português brasileiro se afasta da gramática do Português clássico (Gramática de

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PC) e não da gramática do Português europeu (Gramática de PE). Dessa forma, podemos

considerar que a gramática do Português brasileiro (Gramática de PB) e a gramática de PE

contemporâneo tomam diferentes percursos a partir da gramática de PC. Isso explicaria a

grande diferença existente entre o Português falado e escrito em Portugal e o Português

brasileiro, diferenças que podem ser evidenciada em todos os níveis da língua.

Buscando comprovar a hipótese de que a mudança sintática que originou a

formação da língua que falamos hoje no Brasil ocorreu via competição de diferentes

gramáticas do português, Martins (2009; 2012) escolheu investigar a sintaxe dos

pronomes clíticos em peças de teatros escritos por catarinenses nascidos nos séculos 19 e

20.Para isso, foram elencadas 24 peças pertencentes a escritores catarinenses, levando em

conta os anos de nascimentos de cada um deles. Foram elencadas, também, 21 peças de

teatro escritas por lisboetas nascidos nos séculos 19 e 20. Martins (2009) organizou esse

corpus, formado por 24 peças de teatro escrito por catarinenses e 21 peças escritas por

lisboetas, a fim de verificar se a mudança sintática ocorrida na formação do português

brasileiro ocorreu via competições de três gramáticas distintas: (i) uma gramática mais

conservadora, a gramática de PC; (ii) uma gramática inovadora, a gramática de PB e (iii) a

gramática de PE.

Para que essa hipótese fosse confirmada, seria necessário que fossem encontrados

padrões de colocação de clíticos característicos da: (i) gramática de PB, como próclise a V1

e ao verbo não-finito em construções com complexos verbais; (ii) gramática de PE, como a

ênclise em orações com sujeito pré-verbal, advérbios e sintagmas preposicionados; e (iii)

gramática de PC, como a interpolação e as construções com subida de clíticos sem

atratores. Para isso, foram organizadas amostras constituídas de orações finitas com

verbos simples e com complexos verbais, extraídas das peças de teatro de catarinenses e

lisboetas.

Quanto à posição do verbo na estrutura sintática da oração, Martins (2009)

considerou três tipos de contextos: (i) contexto V1, posição em que o verbo ocupa a

primeira posição absoluta na oração, podendo ocorrer tanto em oração não-dependentes

afirmativas primeiras ou segundas coordenadas; (ii) contexto XV em que o verbo é

antecedido por um elemento que pode ser um sujeito, um advérbio, um sintagma

preposicionado, um quantificadorou expressão quantificada, sintagma Q/COMP

preenchido ou um constituinte topicalizado/focalizado; e (iii) contexto XXV, em que o

verbo é antecedido por dois elementos.

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Dadas as considerações teórico-metodológicas anteriores, devemos partir para a

análise e descrições dos dados. Para diagnosticar a variação na ordenação dos clíticos,

Martins (2009) excluiu da amostra os dados em que há próclise categórica (Contexto clV) e

os dados em que há ênclise categórica (Contexto Vcl). Os dados em que possuem próclise

categórica, ou majoritária, são aqueles que apresentam contextos como: (i) orações não-

dependentes com operadores de negação (Neg V); (ii) orações não dependentes

introduzidas por quantificadores ou expressão quantificada; (iii) orações introduzidas por

sintagmas-Q/COMP preenchido; (iv) orações não-dependentes introduzidas por advérbio

(Advérbio V); e (v) orações não dependentes com constituintes focalizados. Já os dados em

que a ênclise é categórica foram encontrados contextos como: (i) orações com verbos

precedidos por vocativo e elementos discursivos; (ii) orações com verbos precedidos por

orações dependentes (Oração V); e (iii) orações com tópicos marcados. Os exemplos

destacados abaixo mostram alguns dos contextos citados acima como contextos de próclise

ou de ênclise categórica. No exemplo (5) mostra um dos contextos em que a próclise é

categórica, o contexto das orações não dependentes com operadores de negação. Já em (6),

temos o contexto dos verbos precedidos por orações dependentes (oração V).

(1) NãoSEconhece na historia da medicina um preparado| que consegue tanto beneficio ás

criaturas doentias como a| Emulsão de Scott Legitima. Anun XX 1 BA – Folha do Norte 25 de setembro de 1910

(2) Como uns appontamen- | tos pódem sevir-vos, por que nada há neste mundo, que não tenha seu dia de utilidade, e | quando o meu trabalho vos fôr util, lembrai-VOS de mim com a amisade. CARleitor XIX 2 RJ – O Guarany 08 de setembro de 1853/n°8 Em relação às orações simples, os contextos de variação foram divididos em dois

grupos: o contexto de variação A, formado pelas orações com verbo em primeira posição

absoluta, ou seja, o contexto V1; e os contextos de variação B, formado pelas orações com

verbo precedido por sujeito (SV), por advérbio (AdvV) ou por sintagma preposicional

(PPV), ou seja, o contexto (X)XV. Ambos os contextos de variação se caracterizam como

ambientes de ênclise categórica na gramática PE, mas apresentam um aumento da taxa de

ocorrência próclise quando consideramos os dados relativos aos textos escritos por

catarinenses nascidos nos séculos 19 e 20.

O primeiro contexto de variação, o contexto de variação A, é composto pelas orações

afirmativas finitas não-dependentes com o verbo em primeira posição absoluta, o contexto

V1. Nesse contexto foi observado que a ênclise é categórica nos textos de autores

catarinenses nascidos até 1927, visto que as ocorrências de próclises neste período não

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ultrapassam o percentual 11%. Por outro lado, nos textos de autores nascidos a partir de

1927, exceto os textos de Ody Fraga, mostram um significativo aumento no uso de próclise

em primeira posição absoluta, chegando a alcançar 78% nos textos do escritor Ademir

Rosa. Vale ressaltar que foram retirados dessa amostra os dados com orações afirmativas

não-dependentes segundas coordenadas com verbo em primeira posição absoluta, pois é

possível verificar ocorrências de próclise a V1 nesse contexto na história do português.

Considerando isto e a história do português, podemos dizer que a próclise a V1 em orações

afirmativas não-dependentes principais e primeiras coordenadas é uma marca

característica da gramática do Português brasileiro (PB), visto que a construções clV não é

atestada no Português europeu (PE) e no Português clássico (PC).

No contexto de variação B, por sua vez, não é focalizado, como critério de análise, a

posição do verbo na sentença e sim a natureza do elemento que precede o verbo.

Considerando isso, Martins (2009) reconheceu como contextos de variação, pertencentes a

esse segundo grupo, as orações com sujeito pré-verbal; as orações com advérbios não-

modais e orações com sintagmas preposicionais. Os exemplos abaixo mostram como esses

exemplos podem ser considerados como contextos de variação na colocação de clíticos no

português.

(3) elle | SEdirigio a mim, que lhe respondi o | que devia, que era esperar pela deci- | são de Sua

Majestade Imperial, a quem, já se achava | affecto este negocio. || CARleitor XIX 1 RJ – O Propugnador, 13 de julho de 1824/nº2

(4) só no | que ella não fallou verdade, foi á respeito das circunstancias da minha desgraça | Calunga, he verdade, que já não sou o que d’antes era; mas fiquei assim, não pelo que pu bli- carão, mas por hum descuido. deixei-me dor- | mir ao pé de hum chiqueiro, e hum porcodeo- | ME huma dentada... Ah! quando vires o es- | trago que elle me fez, chorarás! Fiquei final- | mente desgraçado, e para maior infelicidade minha, todo o mundo o sabe! A Deos Calunguinha, lembra-te, e chora || O Teo || Pilingrino. CARleitor XIX 1 RJ – O cidadão, 29 de novembro de 1838/nº 38

(5) Ao agradecimento dos duos guardas pela im- | prensaseguiu-SE um artigo do Diário, attri- | buindo ao Senhor Conselheiro Ferraz a recusa, que | só provinha de Vossa Excelência; foi preciso declarar eu | ao publico que nisso estva innocente o Senhor Fr- | raz. CARleitor XIX 2 RJ – A Actualidade – Jornal da Tarde 29 de janeiro de 1869/n° 62

O segundo contexto é composto por orações afirmativas finitas não-dependentes

com verbo precedido de sujeito, advérbio não-modal e sintagma preposicional não

focalizado. Dada a natureza distinta dos constituintes que antecedem o verbo, o autor

dividiu esse contexto em dois: o contexto XV, formado pelos advérbios não-modais ou os

sintagmas preposicionais; e o contexto SV, formado por um sujeito pronominal ou um

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sujeito DP. Desta forma, foi observado que no contexto SV há um aumento de 23%,

primeiro autor nascido no século XIX, de ocorrência de próclise, para 100% no último

nascido no século XX. O mesmo não pode ser observado no contexto XV, visto que as

oscilações nos percentuais mostram que a colocação pronominal está ainda em variação,

de forma que não é possível apontar a predominância de uma colocação sobre a outra. A

união destes dois contextos intermediários, XV e SV, mostram uma evolução no uso da

próclise que pode ou não ser atribuído ao padrão proclítico do Português Brasileiro.

O último contexto analisado foram as orações com estruturas verbais complexas.

Estas estruturas são formadas por um V1 finito + um V2 não-finito. Neste contexto foram

encontradas três variantes: V1(X)V2cl, ênclise ao verbo não-finito; V1(X)clV2, próclise ao

verbo não-finito e V1clV2 em que não é possível identificar se é uma próclise ao verbo não-

finito ou uma ênclise ao verbo finito. Observando a ocorrências destas duas variantes nos

textos dos escritores catarinenses nascidos no século XIX, vimos que a variante V1(X)V2

tem percentuais de ocorrências elevados, de 93% nos textos de Carvalho, nascido em 1829,

a 100% nos textos de Nahas, nascidos em 1889. Neste mesmo período as variantes

V1(X)clV2 e V1clV2 não alcançaram 20% de ocorrência. Por outro lado, nos textos de

catarinenses nascidos no século XX, podemos observar um aumento na ocorrência de

próclise ao verbo não-finito e ao contexto ambíguo V1clV2. Seguindo o sentido inverso, a

ocorrência da ênclise ao verbo não-finito caiu de 93% para 10% em Bravaresco, nascida em

1969.

5 A COLOCAÇÃO DE CLÍTICOS NO CONTEXTO DE SENTENÇAS COM VERBOS NO INFINITIVO

Como foi dito na introdução deste artigo, buscamos analisar a colocação de clíticos

em sentenças com verbos no infinitivo retiradas de cartas de leitores e anúncios publicados

no Brasil durante aos séculos 19 e 20. Para isso, consideramos dois contextos distintos que

mostraram padrões diferenciados na colocação de clíticos diante de um verbo na forma

infinitiva: (i) o contexto das orações com verbos no infinitivo não precedido por preposição

e (ii) o contextos das oração com verbos no infinitivo precedido por preposição. Como

exemplificado em (1) e (2):

(1) O Doutor Jacobus é intelligente e estudioso; não deve, pois, andar fazendo bandeira da sua pobreza para | fazer o publicoapiedar-SE do seu trabalho. | CARleitor XIX 1 Faísca (16 de abril de 1887/nº 76)

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(2) Independente disso, QUAKER OATS é de um sabor deli-|cioso, agradando sobremaneira ao paladar mais exigente.| Pode ser preparado de maneiras diversas, despertando o| appetite nos que têm a ventura de saboreal-O.|| Anun XX 1 BA – Folha do Norte 26 de janeiro de 1929

Em (1), podemos observar que o elemento que precede imediatamente o verbo

apiedar é um DP (sintagma determinante), logo consideramos que essa sentença pertence

ao contexto das orações com verbos no infinitivo não precedido por preposição. Já em (2),

o verbo em destaque é precedido por uma preposição de, por isso consideramos que essa

sentença pertence ao contexto das orações com verbos no infinitivo precedido por

preposição. Na análise que desenvolvemos para este trabalho, a distinção entre esses dois

contextos foi necessária, pois observamos padrões de colocação de clíticos condicionados

pela presença/ausência de uma preposição na posição anterior ao verbo.

Iniciaremos nossa análise com o contexto das orações com verbos no infinitivo não

precedidos por preposição. A colocação de clíticos nesse contexto durante o século 19 se

deu de acordo com os exemplos destacados abaixo:

(3) O Doutor Jacobus é intelligente e estudioso; não deve, pois, andar fazendo bandeira da sua

pobreza para | fazer o publicoapiedar-SE do seu trabalho. | CARleitor XIX 1 Faísca (16 de abril de 1887/nº 76)

(4) Este anno ainda me não foi preciso ir | tratar de negocios nem a alfandega nem á | mesa das diversas Rendas, mas cazualmen- | te passando pela praça ouvi varios negoci- | antesqueixarem-SE do estado daquellas du- | as repartições, dalli huns dizião “nada | isto não vai bem:” daquellla parte outros | ”He preciso que isto leve volta.” CARleitor XIX 1 PE – Diário de Pernambuco 19 de janeiro de 1837/nº 15

(5) Quem O apresentarna dita fabrica| ou n'esta cidade, a rua do Paço número 21, será| bem gratificado. || ANUNCIO XIX 2 Diario da Bahia (12 de dezembro de 1871)

(6) QuemAdescobrire Alevarà seo | Senhor na Cidade baixa, no Armazem número 30, | Ru[a] direita de Santa Barbara, receberá de gra-|tificação 20$000 réis.|| ANUNCIO XIX 1 Diário da Bahia (30 de abril de 1833) Os exemplos (3), (4), (5) e (6) representam o padrão de colocação que encontramos

nesse contexto nos dados referentes ao século 19. Contudo, o mesmo padrão de colocação

também será evidenciado durante o século 20, ocorrendo, dessa forma, apenas mudanças

quantitativas em relação à ocorrência de próclise. De acordo com o que encontramos nos

dados pertencentes à amostra desta pesquisa, acreditamos que o padrão de colocação de

clíticos em orações com verbos no infinitivo não precedidos por preposição é a ênclise

majoritária. Um indício que nos leva a essa hipótese é o fato de que o elemento que

antecede o verbo nas sentenças em que há ocorrência de ênclise pode ser de natureza

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diversa. Nos exemplos (3) e (4), respectivamente, os constituintes que antecedem o verbo

são um DP e um sintagma quantificador. Por outro lado, nos casos em que houve a

ocorrência de próclise, o verbo era precedido por um elemento proclitizador, ou melhor,

um atrator de próclise. Nos exemplos (5) e (6), o atrator de próclise é o elemento qu- que

encabeça a oração subordinada.

Acreditamos que a possibilidade de ocorrência em um maior número de ambientes

linguísticos qualifica a ênclise como padrão majoritário de colocação de clíticos nos

contextos das orações com verbos no infinitivos não precedidos por preposição. O outro

fator que nos levou a essa interpretação foi o fato de a próclise ocorrer em um contexto

restrito em que o verbo sofre a ação de um elemento que provoca a atração do clítico para

a posição anterior ao verbo.

Já no contexto das orações com verbos no infinitivo precedido por preposição,

obtemos resultados distintos. Em nossa amostra, podemos observar que esse contexto

apresenta uma forte variação clV/Vcl durante o século 19, como podemos ver nos

exemplos (7) e (8).

(7) Senhor Redactor do Pedro II ” –Como no seu | jornal nº 1523 venha transcripto um es- |

pecifico para a cholera morbus, permita- |me que lhe dirija as seguintes linhasPA- | RA lhes dar publicidade se por ventura ellas | o merecerem. || CARleitor XIX 2 CE – O Cearense 04 de janeiro de 1856

(8) Teria sua senhoriao direitoDEsuppor-me poli- | tico si por ventura tivesse visto minha | assignatura em algum manifesto partida- | rio CARleitor XIX 2 Jornal de Noticias (23 de maio de 1896/Ano XVII, nº 4927) As sentenças (7) e (8) foram publicados na segunda metade do século 19 e ambas

estão no mesmo ambiente linguístico, ou seja, uma sentença com verbo no infinitivo

precedido por um sintagma determinante. Contudo, (7) e (8) apresentam a colocação de

clíticos é distinta nas duas sentenças. Diante disso, acreditamos que no século 19 a

colocação de clítico nesse contexto sofre forte variação no século 19.

No século 20, a colocação de clíticos nesse mesmo contexto se mantém em forte

variação, porém há um pequeno aumento do número de ocorrência de próclise,

principalmente em ambientes como das sentenças com a preposição de. As sentenças (9) e

(10) abaixo representa o que dissemos acima:

(9) Dou entretanto a qualquer | que se ache prejudicado o di-|reitoDE ME procurar para um|

entendimento em Santa Bar-|[[ba]]bara onde tenho residencia.|| Santa Barbara, 28 de Ja-|neiro de 1926.|| Antonio Alves de Moraes.|| N. 1121– 1– 1| CARleitor XX 1 BA – Folha do Norte 23 de janeiro de 1928

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(10) Agradecendo, de antemão, a | atenção que vier dispensar ao | assunto, valho-me da oportuni- | dadePARAapresentar-LHE os | meus protestos de elevada es- | tima e devida consideração. || CARleitor XX 1 RN – Tribuna do Norte 08 de maio de 1957 Ao compararmos o exemplo (9) ao (8), vemos que ambos pertencem a ambientes

semelhante, porém a sentença retirado do texto publicado no século 19 apresenta o clítico

na posição pós-verbal. Já na sentença do século 20, a colocação do clítico realiza-se na

posição pré-verbal. A comparação entre a colocação de clíticos nessas duas sentenças

representa o aumento do número de ocorrência de próclise que se evidencia nessa amostra

em orações do século 20. No entanto, o aumento na ocorrência de próclise no século 20 não

é o suficiente para que possamos dizer que o padrão de colocação de clítico nesse período

seja de próclise majoritária.

6 CONCLUSÃO

Por fim, concluímos que a colocação dos pronomes clíticos em sentenças com verbos

no infinitivo pode mostrar padrões de colocação que nos ajudem a compreender a

formação do PB, visto que, como foi observado, a ordenação dos clíticos nesse contexto

sofre variação no período do século XIX e XX. Vale ressaltar que essa variação ocorre em

um contexto bem específico, nas sentenças com verbos no infinitivo precedidos por

preposição. Diante disso, resolvemos dividir o contexto das orações com verbos no

infinitivo em dois outros contextos: (i) o contexto das sentenças com verbos no infinitivo

não precedidos por preposição; e (ii) o contexto das sentenças com verbos no infinitivo

precedidos por preposição. Dessa forma, tivemos como resultado um contexto, as

sentenças com verbos no infinitivo não precedidos por preposição, em que não houve

variação clV/Vcl, visto que o padrão enclítico se manteve durante os dois séculos e outro

contexto, as sentenças com verbos no infinitivo precedidos por preposição, em que a

variação foi atestada.

REFERÊNCIAS

CYRINO, S. M. L. Mudança Sintática.In: MARTINS, M. A.; TAVARES, M. A.História do Português Brasileiro no Rio Grande do Norte: Análise linguística e textual da correspondência de Luis da Câmara Cascudo e Mario de Andrade -1924 a 1944. Natal, RN: EDUFRN, 2012

MATEUS, M. H. M. et al. Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Editora Caminho S.A. 2003.

MARTINS, M. A. “O português são três”: evidências empíricas para a hipótese de competição de gramáticas. Revista da ABRALIN, 2010.

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______. A colocação de pronomes clíticos na escrita brasileira: para o estudo das gramáticas do Português. Natal: EDUFRN, 2012.

MENON, O. P. S. Uma mudança encaixada: clíticos em construções preposicionadas. Revista do GELNE, 2012.

TARALLO, F. L. A pesquisa sociolinguística.8.ed. São Paulo: Ática, 2007.

WEINREICH, U.; LABOV, W.;HERGOV, M. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança sintática. Trad. Marcos Bagno, São Paulo: Parábola, 2006.

A INFLUÊNCIA E AS POSSIBILIDADES DE ENSINO DA LÍNGUA INGLESA PARA O ALUNO COM DEFICIÊNCIA VISUAL: CEGUEIRA CONGÊNITA E ADVENTÍCIA Ivan Vale de Sousa Unidade Educacional Especializada em Deficiência Visual Jonas Pereira de Melo

Resumo O presente trabalho parte de uma pesquisa e análise bibliográfica sobre a influência da língua inglesa na vida do educando com deficiência visual cego, assim como das possibilidades de intervenções e aprendizagem nesse idioma com essa clientela. A discussão concebe a língua inglesa como uma ferramenta de inclusão dentro e fora do contexto escolar, perpassando pelas habilidades que o educando deficiente visual pode desenvolver assim como os demais aprendentes no processo educacional. A presente produção tem por objetivo provocar uma discussão e reflexão acerca da acessibilidade em língua inglesa para o educando em questão, como também apontar possíveis mecanismos de aprendizagem tornando uma constante a comunicação e o desafio nesse idioma. Na contemporaneidade, principalmente a língua inglesa é entendida como prestígio social e o passaporte para os melhores cargos, para tanto é necessária à formação para tal êxito; para o deficiente visual cego a língua inglesa é vista como um desafio, mas ao mesmo tempo como oportunidades de igualdade. Nesse sentido, o presente trabalho aponta alguns mecanismos que podem fomentar a discussão acerca de uma educação para todos no que se refere ao aprendizado de uma segunda língua; traz ainda, à discussão, a importância dos Sentidos Remanescentes no processo de aquisição da linguagem e como forma de apreensão do aprendizado, perpassando pelo desenvolvimento das habilidades linguísticas focada nos materiais concretos, pois a partir desse contato o educando formula seus conceitos sobre o próprio aprendizado, como também discute a integração dessas habilidades de forma contextualizada e por fim, espera-se que a referida discussão desperte o pensar e o repensar a prática pedagógica na perspectiva da escola e da educação inclusiva. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As formas de comunicação entre o ser o homem e seus semelhantes são múltiplas:

linguagem corporal, visual, gestual e oral. Comunicar-se significa uma necessidade e uma

condição para viver em sociedade. Diferentes línguas são ao mesmo tempo diversificadas

culturas, na atualidade, o conhecimento de outro idioma representa a inclusão social

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através da linguagem, logo, aprender uma segunda língua significa incluir-se numa

sociedade cada vez mais exigente e desafiadora.

Aprender uma língua é muito mais do que a decodificação de signos, é entendida

para a pessoa com deficiência visual, especificamente com cegueira, como políticas de

acessibilidades aos mesmos bens comuns ou pelo menos deveria ser. O papel assumido

pela linguagem na vida acadêmica e pessoal do educando em questão possibilita ao

convívio em sociedade na qual as diferenças são respeitadas e as potencialidades

valorizadas.

A presente produção visa suscitar as redefinições de conceitos e valores acerca do

aprendizado daquele com deficiência visual, assim como abrir a discussão na perspectiva

de uma reflexão em prol de um ensino de língua inglesa contextualizado com a realidade e

a diversidade dos aprendizes.

2 AS ESPECIFICIDADES DO EDUCANDO COM DEFICIÊNCIA VISUAL

As pessoas com deficiência visual são por inúmeras vezes vistas como incapazes de

realizar algumas atividades, por mais simples que sejam; uma delas estar mitologicamente

associada acerca do ensino e aprendizagem da língua inglesa. O que muitas pessoas

imaginam é que a incapacidade de enxergar esteja associada também à impossibilidade de

aprender.

O motivo do deficiente visual não utilizar a visão como via de aprendizagem e

instrução, não significa que ele não possa também desenvolver as habilidades linguísticas

na aprendizagem de uma segunda língua. O certo é que muita informação passa pelo canal

visual transmitindo-a ao cérebro, porém o deficiente visual desenvolve uma forma

particular de aprender, ou seja, uma readaptação, uma maneira singular de conviver e,

assim devem também ser as intervenções educativas no seu processo de formação.

Entender como o educando com deficiência visual desenvolve as particularidades

durante o aprendizado, é motivado por questionamentos, tais como: qual a influência da

língua inglesa para o convívio do deficiente visual? O que é aprendizagem colaborativo-

significativa para o educando cego? Como desenvolver as habilidades linguísticas em língua

inglesa com esse educando?

Partindo dos questionamentos, faz-se necessário a abordagem acerca das cegueiras

congênita e adventícia, assim como as implicações que ambas podem trazer para o ensino e

aprendizagem de uma segunda língua. Geralmente o método utilizado no processo de

ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras tem por base a concepção visual-auditiva,

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ou seja, tem como ponto de partida a visão como primeiro contato e inferências ao

conhecimento que consequentemente é seguida da função auditiva.

A referida metodologia de ensino não se aplica ao processo educacional do

educando com cegueira, pois a apropriação do conhecimento passa pelos sentidos

remanescentes (tato, audição, sistema cinestésico33, olfato e paladar). Para que a sua

aprendizagem seja concretizada é fundamental considerar as peculiaridades na aquisição

do conhecimento.

Como uma constante, o que é valorizado em sala de aula no aprendizado do

educando em questão é o recurso auditivo-tátil. A utilização de materiais concretos

contribui com a compreensão e a aquisição do conhecimento do estudante. Todavia, é

válido ressaltar que a aprendizagem de um aluno com cegueira congênita, às vezes difere

do educando com cegueira adventícia. Este pode apresentar facilidades em relação aos

conceitos construídos, considerando a idade de incidência, assim como o período de

experiência visual, enquanto aquele com cegueira congênita pode formular conceitos de

forma mais limitada, uma vez que o tato apropria-se das informações das informações não

de maneira geral, mas de forma fragmentada.

Vale ressaltar que tal limitação não é abordada como uma forma generalizada, pois

dependendo dos estímulos que o educando com cegueira congênita tenha recebido desde a

infância, pode se sobressair em algumas situações. Cabe a abertura de parênteses acerca da

importância do papel da família na vida acadêmica do aprendiz com deficiência visual.

Dessa forma, os conceitos formulados por um educando com cegueira congênita

diferenciam-se qualitativamente daqueles construídos com bases nas experiências visuais,

cegueira adventícia. Assim, como forma de fundamentação acerca das teorias, apresenta-se

a diferença entre as cegueiras.

A ausência da visão manifestada durante os primeiros anos de vida é considerada cegueira congênita, enquanto a perda da visão de forma imprevista ou repentina é conhecida como cegueira adquirida ou adventícia. (DOMINGUES et al., 2010, p. 30, grifos nossos)

É perceptível que a aprendizagem acontece na troca de experiências e na relação

com o outro. Entende-se, portanto que o processo motivacional para o aprendizado de uma

segunda língua perpassa pela interação entre os envolvidos: alunos videntes e não

33 Nota-se a existência de certa confusão com relação aos termos cinestesia e sinestesia. Neste trabalho cinestesia é concebido a partir de Ferreira 1986 (apud Rabêllo 2011). Enquanto que sinestesia é “associação (de natureza psicológica) de sensações de caráter distinto, como a de um som com uma cor, de um sabor com uma textura, etc.” (AULETE, 2004, p. 734).

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videntes34. A relação entre os ‘diferentes’ constitui-se como fatores de inclusão, pois a

aprendizagem nos mesmos espaços que as pessoas ditas ‘normais’ são vistas como

características de Educação Inclusiva, a qual concebe o espaço escolar como sendo comum

a todos, no qual “[...] os alunos constroem o conhecimento segundo suas capacidades,

expressam suas ideias livremente, participam ativamente das tarefas de ensino e se

desenvolvem como cidadãos, nas suas diferenças” (RAPOLI et al., 2010, p. 8-9).

Partindo da concepção de um ensino de língua inglesa na perspectiva da inclusão é

fundamental ressaltar que não são os aprendizes que devem se adequar às metodologias

ou às escolas, mas são elas que devem promover a acessibilidade à aprendizagem dos

envolvidos. Assim, o ensino de língua inglesa na temática da educação inclusiva, a cegueira,

não deve ser considerada como empecilho, porém como possibilidades desafiadoras no

processo educacional.

A compreensão da cegueira e do atendimento aos educandos no contexto da escola

comum reabre a discussão da capacitação ou formação continuada de professores, pois a

progressão do educando com deficiência visual depende em parte da compreensão

daqueles que mediam o conhecimento e da escola em propor momentos de discussões e

reflexões acerca das práticas educativas inclusivas.

3 A IMPORTÂNCIA DAS ATIVIDADES COLABORATIVO-SIGNIFICATIVAS PARA O EDUCANDO DEFICIENTE VISUAL CEGO

Para que o aprendizado daquele com cegueira na aquisição do conhecimento em

língua inglesa seja concretizado é importante à promoção de momentos de aprendizagens

colaborativo-significativas em que o aluno não vidente vivencie os mesmos desafios que os

demais educandos, sendo necessário, portanto, as adequações às suas necessidades

educacionais.

A aprendizagem colaborativa pode ser definida como a comunhão das ideias de um

trabalho pedagógico realizado em grupo, em que compartilham o conhecimento de forma

que todos são agentes do próprio aprendizado. Pode-se ainda, ressaltar que na

aprendizagem colaborativo-significativo todos são autores e protagonistas na construção

do conhecimento, sendo que é na relação com o outro que a aprendizagem se torna um

bem comum de forma coletiva.

34 No texto, os termos videntes e não videntes são utilizados em substituição e como sinônimo das palavras pessoas que enxergam e pessoas cegas respectivamente.

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Na perspectiva da aprendizagem colaborativo-significativa numa vertente inclusiva,

o professor assume o papel de mediador do conhecimento possibilitando aos envolvidos o

acesso às formas de aprendizagens. Na aprendizagem colaborativa os alunos pesquisam,

debatem, analisam, registram e interagem entre si, logo o papel do professor é de

fundamental importância na proposição desses momentos.

Parafraseando Fiorentini (2004), o trabalho coletivo se estabelece de forma

colaborativa ou cooperativa. Nesta vertente, os envolvidos executam tarefas que não

necessitam de negociação conjunta em relações desiguais e hierárquicas, individualmente.

Enquanto, naquela, todos trabalham em conjunto, apoiando, tendo um relacionamento não

hierárquico. Para Damon e Phelps (1989) a aprendizagem colaborativa direciona-se aos

métodos instrucionais pelos quais os aprendizes são incentivados a desenvolverem juntos,

atividades como participantes ativos do processo.

Nesse sentido, a aprendizagem colaborativa leva em consideração o nível de

conhecimento que pode ser construído na coletividade e na cooperação entre os

envolvidos. É nessa forma coletiva de aprender, discutir e refletir que os laços de amizades

são construídos e consolidados; são momentos importantes que contribuem com

aprendizagem do educando com deficiência visual. Dessa forma, a diferença entre

aprendizagem colaborativa e cooperativa, justifica-se da seguinte forma:

A aprendizagem é uma filosofia de interação e um estilo de vida pessoal, enquanto que a cooperação é uma estrutura é uma estrutura de interação projetada para facilitar a realização de um objetivo ou produto final. Assim, pode-se dizer que a aprendizagem colaborativa é muito mais que uma técnica de sala de aula, é uma maneira de lidar com as pessoas que respeita e destaca as habilidades e contribuições individuais de cada membro do grupo. (TORRES; IRALA, 2007, p. 73)

O ensino de língua inglesa na perspectiva da aprendizagem colaborativa é entendido

como a proposição de desafios de aprendizagens com foco nas habilidades linguísticas. Nas

atividades em duplas, por exemplo, e na conversação é uma boa oportunidade para

desenvolver em toda a turma o respeito mútuo às diferenças, potencializar as habilidades

de todos os envolvidos sob a ótica de um ensino para todos.

Sabe-se que as atividades realizadas em grupo são necessárias numa escola

inclusiva. Cabe, portanto, destacarmos a diferença entre a aprendizagem colaborativa e a

cooperativa para que o trabalho na escola comum inclusiva seja praticado sob a ótica da

colaboração. As diferenças entre os trabalhos realizados colaborativamente e individuais

são conforme demonstra o quadro:

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Grupos de aprendizagem colaborativa

Grupos de trabalho tradicional

� Interdependência positiva � Responsabilidade individual � Heterogeneidade � Liderança partilha � Responsabilidade mútua

partilhada � Preocupação com a

aprendizagem dos outros elementos do grupo

� Ênfase na tarefa e também na sua continuidade

� Ensino direto das relações interpessoais

� Professor - observa e intervém � O grupo acompanha a sua

produtividade.

� Não há interdependência � Não há responsabilidade

individual � Homogeneidade � Há um líder designado � Não há responsabilidade

partilhada � Ausência de preocupação com

as aprendizagens dos outros elementos do grupo

� Ênfase na tarefa � É assumida a existência das

relações interpessoais � O professor não intervém no

funcionamento do grupo � O grupo não acompanha a sua

produtividade. Quadro 1 – Diferença das Aprendizagens - Fonte: Adaptado Johnson, Johnson, Holubec, Roy, 1984, p. 10;

Putman, 1997, p. 19.

Como demonstrado no quadro, a aprendizagem colaborativa tem como foco

trabalhar com a interdependência dos aprendizes no processo de aprendizagem em que o

professor não somente observa, mas intervém e propõe discussões educativas. Assim, o

professor colaborador é aquele que assume uma postura crítico-reflexiva da ação e na

própria ação pedagógica, na mudança de postura diante da realidade da sala de aula,

conduzindo-os ao aprendizado coletivo.

Dentro da perspectiva da aprendizagem colaborativa e com significados pré-

estabelecidos o papel do professor é fundamental para que todas as atividades tenham os

mesmos êxitos. Nessa concepção o professor ultrapassa a função de detentor do saber, de

autoritarismo inquestionável e assume o papel de professor-mediador-parceiro. Logo, o

professor-mediador-parceiro é aquele que busca:

[...] a flexibilização de currículo e de papéis em que as regras de convivência são partilhadas e as responsabilidades são assumidas e cobradas por todos. Dessa forma, a contribuição de cada é fator decisivo para a produção de bem comum o conhecimento coletivo. (SANTOS, 2009, p.106)

O professor-mediador-parceiro é aquele que propõe momentos de aprendizagens

significativas colaborativamente; que incentiva a todos os discentes a investigarem todas

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as possibilidades de conhecimento. Nessa investigação, professor e alunos são agentes

ativo-reflexivos que aprendem juntos, é ainda aquele que explicita aos envolvidos os

objetivos de cada etapa de aprendizagem para que eles tenham consciência desse processo

construtivo.

4 A AQUISIÇÃO DAS HABILIDADES LINGUÍSTICAS E O ALUNO COM DEFICIÊNCIA VISUAL

Por intermédio da língua, o indivíduo tem acesso ao conhecimento de diferentes

culturas e diferentes formas de refletir, agir e criar. Assim, é fundamental focar no processo

de ensino e aprendizagem em língua estrangeira o caráter prático (entender, falar, ler e

escrever) contribuindo com a capacidade do educando acessar informações diversificadas

e significativas para a própria vida e principalmente para a superação do preconceito e da

quebra de barreiras como também dos estereótipos criados.

Sabe-se que na contemporaneidade a inclusão das pessoas com necessidades

educacionais especiais tem avançado, embora o respeito às diferentes sejam fomentados

dentro do espaço escolar é fato que muito ainda precisa ser feito e uma dessas ações é

possibilitar as mesmas condições de aprendizagens aos discentes com deficiência visual,

assim como os ditos normais. Os discentes inclusos almejam também ser desafiados

pedagogicamente com atividades adaptadas às suas necessidades, não querem mais passar

pela escola sem sentir a transformação que a educação pode fazer em suas vidas.

Os novos tempos são repletos de possibilidades de interação, de aprendizagens e de

construção do conhecimento. A globalização provoca mudanças na escola e com isso os

alunos inclusos também sentem a necessidade de passar pela escola almejando a mudança

na forma de pensar, de agir e de transformar a própria realidade. Nesse sentido, adquirir as

habilidades linguísticas numa escola inclusiva é permitir a vivência da própria cidadania,

numa escola inclusiva o ensino de língua inglesa não é prioridade de poucos, mas a garantia

da multiplicidade de aprendizagens.

Assim, adquirir as habilidades linguísticas parte das possibilidades adaptáveis

oferecidas aos estudantes com necessidades educacionais especiais, especificamente, os

deficientes visuais. Na perspectiva de refletir acerca das habilidades linguísticas, a presente

discussão, como um exercício didático, apresenta essas habilidades de forma discursivo-

reflexiva, sua importância e as intervenções necessárias na aprendizagem do educando em

questão.

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4.1 Compreensão Auditiva e Oral

Na aprendizagem de uma língua estrangeira a compreensão auditiva é característica

principal para a assimilação do conteúdo. Esta, geralmente vem acompanhada da utilização

de imagens que pela associação entre o visual e o auditivo o aprendiz vidente apreende

parte do conhecimento. Contudo, para o educando deficiente visual tal apreensão acontece

inicialmente pela audição em que as informações são enviadas ao cérebro, interpretadas

conforme são descritas, processadas e a partir desse momento são formulados os conceitos

pelo discente.

É importante que as atividades partam da perspectiva de propósitos definidos, pois

aquele envolvido no processo estabelece a formulação de conceitos a partir das

intervenções educativas, claras e concisas quanto ao ato de aprender. A audição não é

compreendida simplesmente pela intencionalidade da escuta, para o aluno deficiente visual

cego, as intenções indicam a criação de caminhos para que se atinja um entendimento

acerca dos objetivos estabelecidos, significa, portanto, a ‘ponte’ entre a concretude ou a

abstração da palavra.

Concretizar uma palavra ou um texto falado para o deficiente visual significa dar

formas e contornos à imaginação ou ao entendimento do sujeito envolvido, ou seja, ouvir

sem o auxílio da visão significa formular uma tese levando em consideração o

conhecimento de mundo, da língua e da realidade na qual estar inserido. Logo, a

compreensão auditiva e oral apresenta propósitos diversificados “por estarem envolvidas

pessoas diferentes, com propósitos interacionais nem sempre iguais e conhecimento de

mundos variados” (BRASIL, 1998, p. 89).

A interação em sala de aula é um dos pontos fundamentais para o crescimento

daquele que não utiliza a visão como via de aprendizagem, pois no processo interacional o

discente é instigado ao desafio, à construção dos laços de amizade, à aprendizagem coletiva

e colaborativa, como também na tomada de decisões, na afirmação de sua identidade, na

conquista ao respeito e ao espaço escolar e, sobretudo na partilha de saberes.

Para o aluno em questão, a compreensão auditiva constitui-se como processo lento,

uma vez que sempre necessitará de referências para a assimilação do que estão sendo

apresentadas, para isso as informações não podem ser deturpadas, entretanto, precisas,

claras e objetivas. A aquisição da habilidade oral é o resultado das ações da auditiva; falar

para o educando em questão significa ter segurança do que estar sendo aprendido, para

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tanto é necessária à criação de oportunidades vivenciais, significativas, desafiadoras e

adaptáveis às necessidades especiais dos envolvidos.

É fato que não se pode generalizar o ensino e conceber simplesmente uma forma de

aprendizagem baseada nos moldes ou nos estereótipos de normalidade. Sabe-se que o

processo de ensino e aprendizagem é dinâmico e por isso permite aos envolvidos aprender

e reaprender continuamente. Logo, as habilidades do educando com deficiência visual em

parte se diferenciarão no que se refere aos recursos e às intervenções das pessoas videntes.

O presente artigo não tem a intenção de abordar como superior ou inferior às

formas como as habilidades auditivas e orais são adquiridas pelo estudante não vidente,

mas reforçar as proposições condicionais necessárias para que se desenvolva como os

demais discentes. Logo, as habilidades linguísticas diferenciam-se, conforme, observa-se no

quadro seguinte:

Educando vidente Educando deficiente visual

Auditivo-visual Auditivo-tátil

Auditivo-oral Auditivo-oral

Audição associada ao uso de imagens

Audição associada ao uso de materiais concretos

Interação através das imagens Interação intermediada por materiais concretos

Quadro 2 – Habilidades desenvolvidas

Para que sua compreensão seja um ato natural é necessário que além das

possibilidades de interação em sala de aula, com seus pares utilizando a própria língua, o

treino faz-se necessário através das atividades linguísticas significativas, valorizando a sua

realidade, ou seja, a prática com conversações, porém para isso o ato de ouvir e

compreender “precisa ser treinado aos poucos a reconhecer as mudanças de pronúncia em

conversas rápidas” (DAVIES, 2005, p. 10).

Tal habilidade passa a ser compreensível e significativa através da vivência, da

interação e da valorização dos sentidos remanescentes: audição e tato – os quais

constituem a integração entre as funções auditivo-táteis, considerando como são realizadas

as atividades práticas pedagógicas. E no que se refere especificamente à oralidade, esta

será motivada pela compreensão auditiva, uma vez que as práticas de conversação

(audição + entendimento + prática) direcionarão os resultados na oralidade e que aos

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poucos o educando vai construindo seu léxico na dinamicidade da interação entre os

discentes e docentes.

4.2 Compreensão Leitora

A leitura independente das condições dos sujeitos envolvidos - assume funções que

ultrapassam as ações de informar, persuadir ou divertir. Contribui significativamente com

a formação de sujeitos crítico-reflexivos na construção de uma sociedade justa e igualitária.

Para isso, faz-se necessário que o conhecimento acerca das várias formas de leitura: as que

se diferem das práticas convencionais, a leitura – interpretação em Libras35 e a leitura

Braille36 a qual é um dos focos da presente discussão.

A habilidade leitora para o discente deficiente visual cego dar-se por intermédio da

utilização do Sistema Braille. Somente através do contato com sua forma de leitura e escrita,

o discente construirá sua autonomia durante o aprendizado. Por meio da leitura tátil, o

aprendiz percebe que as composições auditivas e orais diferem da compreensão leitora e

para isso é fundamental que essa diferença na escrita e na leitura em língua inglesa seja

percebida e investigada pelo próprio educando como parte desafiante do aprendizado.

A sua forma peculiar de leitura deve ser valorizada, pois é a maneira que lhe permite

as mesmas possibilidades de aprendizagem, merecendo, portanto, uma atenção especial

daqueles que têm como clientela também o educando com deficiência visual, uma vez que

isso permitirá a sua inclusão, o acesso às informações, ao convívio social e ao exercício de

sua cidadania, pois “somente o Braille é capaz de propiciar o prazer inigualável de

desfrutar da leitura sem intermediários” (OLIVEIRA, 2009, p. 147).

Assim, promover a forma peculiar de leitura e escrita do aluno significa criar

horizontes que possibilitam a sua independência, o respeito às diferenças e oportunidades

de desafios semelhantes aos demais. Entretanto, é perceptível que a sua inclusão nos

cursos de idiomas, ainda é feita de forma tímida, talvez isso não aconteça em larga escala,

pelas barreiras encontradas pelos deficientes visuais, como a produção de material a qual

não contempla às necessidades de aprendizagem, as condições financeiras, pois boa parte

35 Língua Brasileira de Sinais voltada às pessoas com surdez. 36 Criado por Louis Braille (1809 – 1852) é constituído por 64 sinais em relevo cuja combinação representa as letras do alfabeto, os números, as vogais acentuadas, a pontuação, as notas musicais, os símbolos matemáticos e outros sinais gráficos. Baseia-se em uma matriz ou símbolo gerador, a cela Braille, constituída por seis pontos em relevo, dispostos em duas colunas verticais, com três pontos à esquerda (pontos 1, 2 e 3) e três à direita (4, 5 e 6), ordenados de cima para baixo. A disposição dos pontos da cela gera uma variedade de configurações específicas para representar o alfabeto e a grafia braile aplicada a todas as áreas de conhecimento (DOMINGUES et al, 2010, p. 47-48).

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das pessoas com deficiência conta simplesmente com o benefício mensal que recebe do

Governo Federal, ou de profissionais sem conhecimento na área da Educação Especial nas

escolas de idiomas.

4.3 Compreensão Escrita

A habilidade de escrever é uma ação que revela muito de seus autores, para o

educando com deficiência visual, a escrita estar vinculada ao ato de ler, contudo é uma ação

que leva tempo no seu processo aquisitivo, pois inclui vários fatores que podem ou não

influenciar negativa ou positivamente na sua forma de escrita. Assim como a leitura, a

escrita, também apresenta suas particularidades, na qual é caracterizada de lectoescrita,

uma vez que é explorada de forma tátil.

Para a concretização da escrita a utilização dos recursos pedagógicos ou materiais

escolares37 são necessários, porém para a produção escrita utiliza-se do sistema de ‘pauta’

através da máquina braile Perkins. Vale ressaltar, que a aquisição da máquina baile não é

uma realidade para a maioria dos estudantes cegos, pois apresenta um preço elevadíssimo

quanto à sua aquisição, sendo, portanto, o recurso mais utilizado e acessível: a reglete e o

punção. Este funciona como uma espécie de lápis, porém a sua função é furar a folha braile a

qual fica acoplada à reglete a qual se traduz com uma prancha e um conjunto de celas braile.

A única forma de escrita da pessoa com deficiência visual é por intermédio do Sistema

Braille. Como um exercício didático, apresenta-se, o alfabeto braile, conforme abaixo:

Imagem 01 – Alfabeto Braille

Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/braile/braile.php

37 O presente artigo concebe como materiais escolares para o discente deficiente visual cego os aparatos necessários para seu aprendizado, como: máquina braile, reglete, punção, folha braile, soroban, pen drive, mp3, Sistema Dosvox.

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Uma das problemáticas observadas na leitura tátil é o recolhimento das informações

de forma limitada, uma vez que o discente precisa identificar caractere a caractere.

Adquirir essa habilidade na escrita braile demanda tempo e requer do aprendiz o anseio de

tornar-se um exímio escriba, entretanto, essa façanha não é conquistada da noite para o dia

e sim na prática a ser desenvolvida durante a vida acadêmica.

No que se refere ao ensino da compreensão escrita em Língua Estrangeira, para facilitar o engajamento discursivo do leitor-aluno, cabe privilegiar o conhecimento de mundo e textual que ele tem como usuário de sua língua materna, para se ir pouco a pouco introduzindo o conhecimento sistêmico. (BRASIL, 1998, p. 90)

É importante que o educador valorize o conhecimento de mundo que o educando

traz consigo. Cabe ao docente criar estratégias de aprendizagens utilizando o

conhecimento internalizado pelo estudante como forma de possibilitar a progressão na

área da leitura e da escrita, pois o entendimento das relações com o meio refletir-se-á na

própria compreensão escrita.

Assim, a aquisição das quatro habilidades para o educando com deficiência visual é

um processo instigante e promissor, cabendo ao mediador dessa aprendizagem, oferecer as

condições necessárias para que seu desenvolvimento seja prioridade na construção e na

relação com o próximo, fazendo do processo de ensino e aprendizagem não um ato

solitário, mas a partilha de conhecimento no contexto solidário.

5 INTEGRANDO AS QUATRO HABILIDADES LINGUÍSTICAS

Embora as habilidades linguísticas sejam apresentadas separadamente, isso se

diferencia na ação da prática pedagógica, pois terminam integralizando-se. Como exemplo

dessa integralização, temos a conversação – ouvir e responder, ou seja, captar informações

e transmiti-las na sequência. Nesse sentido, compreendemos que uma habilidade

desencadeia outra, por isso é fundamental que o educador tenha em mente o trabalho com

as quatro habilidades de forma integralizada propiciando momentos de aprendizagens

desafiadoras.

O estímulo é capacidade de ouvir, discutir, falar, escrever, descobrir, interpretar situações, pensar de forma criativa, fazer suposições, inferências em relação aos conteúdos é um caminho que permite ampliar a capacidade de abstrair elementos comuns a várias situações, para poder fazer generalizações e aprimorar as possibilidades de comunicação, criando significados por meio da utilização da língua, constituindo-se como ser discursivo em língua estrangeira. (DAVIES, 2005, p. 55).

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Integralizar as habilidades linguísticas é permitir ao educando não vidente as

possibilidades de uso da língua para a sua autoafirmação e a quebra de estereótipos

referentes à sua inclusão no ensino de língua estrangeira. As atividades assumem as

características significantes para o discente deficiente visual quando este é respeitado nas

suas individualidades e potencialidades.

Entender que a compreensão das habilidades linguísticas requer tempo e dedicação

na aquisição de uma segunda língua é fator a ser esclarecido aos envolvidos. Ouvir, falar,

ler e escrever relacionam-se na interação e nas ações atitudinais dos sujeitos envolvidos e

na própria relação com as formas de aquisição da linguagem. Nesse desafio, entende-se que

“[...] a leitura é um processo ativo de construção de sentido a que o leitor chega por meio de

antecipações, confirmações e/ou reformulações de hipóteses, inferências, utilização de

conhecimentos prévios, uso de informações não linguísticas” (TOTIS, 1991, p. 37).

Valorizar o que o educando com deficiência visual traz como conhecimento de

mundo é permitir a vivência de cada etapa na passagem de uma aprendizagem desafiadora,

entretanto, faz-se necessário, as intervenções educativas e orientacionais na singularidade

de aprender. O que se pretende com o ensino de língua inglesa não é facilitar para que o

discente em discussão seja ‘dotado’ de conceitos excelentes, tampouco dificultar sua

aprendizagem, mas possibilitar condições favoráveis e adaptáveis às suas necessidades

educativas especiais na perspectiva da aprendizagem colaborativa inclusiva.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No tocante às habilidades linguísticas, entende-se que necessitam serem

valorizadas, respeitando as peculiaridades de cada discente levando em consideração a

utilização dos sentidos remanescentes. Os momentos de aprendizagens devem ser

significativos e condizentes com a realidade dos envolvidos, ou seja, atividades que tenham

relação com o cotidiano do discente para que o ensino de língua seja inclusivo no contexto

da educação formal.

Em suma, espera-se a discussão e a reflexão fomentadas no presente artigo, sejam

compreendidas na perspectiva das oportunidades educacionais a todos os envolvidos no

processo interacional das aprendizagens. Não sejam entendidas como barreiras a não

utilização da visão como via de instrução, mas como abertura de caminho, de respeito às

diferenças dentro da escolar comum na perspectiva da inclusão, pensando e repensando

acerca das práticas pedagógicas no atendimento à diversidade no âmbito escolar.

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TOTIS, V. P. Língua Inglesa: leitura. São Paulo: Cortez, 1991.

AS CONSTRUÇÕES XV EM CARTAS DE LEITORES E ANÚNCIOS DE JORNAIS NORTE-RIOGRANDENSES DOS SÉCULOS 19 E 20 Rafael Aguiar Moura Universidade Federal do Rio Grande do Norte Resumo Este trabalho tem como intento descrever e analisar a natureza dos constituintes pré-verbais das construções XV (com pelo menos um constituinte em posição pré-verbal) em orações principais finitas não dependentes em cartas de leitores e anúncios de jornais norte-riograndenses dos séculos 19 e 20. Nessa descrição e análise, haverá uma atenção especial para o sujeito quanto ao seu posicionamento (anteposto ou posposto) em relação ao verbo. Os textos utilizados na pesquisa integram o corpus mínimo comum organizado pelo Projeto para a História do Português Brasileiro no Rio Grande do Norte (PHPB-RN). Os pressupostos teórico-metodológicos utilizados neste trabalho são aqueles propostos pela sociolinguística variacionista (WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006 [1968]; TARALLO, 2007) e nos embasamos em estudos anteriores sobre a diacronia dessas construções no Português Brasileiro (PB), a saber, Ribeiro (1995, 2001) e Coelho e Martins (2009,

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2012). Esses estudos mostram basicamente que no Português Europeu (PE) há, ainda, um padrão XVS com inversão germânica que no PB não é mais atestado. Os resultados obtidos com a pesquisa mostraram que a ordem SV predomina sobre a VS ao longo dos dois séculos analisados, seja em construções XV (um constituinte pré-verbal), seja em construções YXV (dois ou mais constituintes pré-verbais). A partir do século 20, a ordem SV se enrijece (mais de 70% dos dados obtidos) como padrão gramatical do PB, que manifesta ainda a ocorrência de construções XVS que estão em conformidade com os estudos sobre tais construções do tipo inacusativa. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo tem como objetivo expor os resultados da pesquisa que

desenvolvemos sobre a natureza dos constituintes pré-verbais das construções XV (com

pelo menos um constituinte em posição pré-verbal) em orações principais finitas não

dependentes das cartas de leitores e anúncios de jornais norte-riograndenses publicados

nos séculos 19 e 20.

Os textos analisados, que refletem padrões da sintaxe do Português Brasileiro (PB),

integram o corpus mínimo comum organizado pelo Projeto para a História do Português

Brasileiro (PHPB), considerando textos coletados pelas equipes do Rio Grande do Norte. Os

pressupostos teórico-metodológicos utilizados neste trabalho são aqueles propostos pela

sociolinguística variacionista (WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006 [1968]; TARALLO,

2007). Este artigo tem como embasamento os estudos de Ribeiro (1995, 2001) e de Coelho

e Martins (2009; 2012). Esses estudos evidenciam que, enquanto no Português Europeu

(PE) há uma aquisição do padrão (X)VS com inversão germânica, no PB tal padrão não é

mais atestado. Pelo contrário, no PB já há evidências do enrijecimento da ordem sujeito –

verbo – objeto (SVO).

Em se tratando dos diferentes padrões de ordenação (Y)XV (e as possibilidades de

inversão do sujeito) na escrita brasileira, a descrição e a análise das construções presentes

no corpus mostraram que a ordem SV predomina sobre a VS ao longo dos dois séculos

analisados, seja em construções XV (um constituinte pré-verbal); seja em construções YXV

(dois ou mais constituintes pré-verbais).A partir do século 20, a ordem SV enrijece-se como

padrão gramatical do PB ao lado das construções XVS inacusativas, enquanto as

ocorrências das construções XVS germânicas caem vertiginosamente, tendo em vista os

resultados obtidos e o que foi dito nos estudos de Ribeiro (1995; 2001) e de Coelho e

Martins (2009; 2012).

O artigo está organizado da seguinte maneira: (i) referencial teórico (subdivide-se

em dois tópicos: a pesquisa sociolinguística e as ordens SVX/XVS em português); (ii)

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procedimentos metodológicos da pesquisa e (iii) análise dos padrões (ordens) encontrados

no corpus.

2 Referencial teórico 2.1 A pesquisa sociolinguística Tarallo (2007) desenvolve, como modelo de análise da língua, a “teoria da variação

linguística”. Esta consiste em um modelo teórico-metodológico que assume o “caos”

linguístico como objeto de estudo. Esse modelo teve como precursor o americano William

Labov que, em seus estudos, insistiu na relação entre língua e sociedade.

Inicialmente, Tarallo (2007) apresenta a distinção entre a “variável linguística” e as

“variantes linguísticas”. Estas são as várias maneiras de se falar a mesma coisa em um

mesmo contexto, enquanto aquela é um conjunto de variantes. Estas se encontram sempre

em uma relação de concorrência: padrão vs. não-padrão; conservadoras vs. inovadoras; de

prestígio vs. estigmatizadas. Um exemplo dessa relação, apresentado pelo autor, seria a

marcação do plural no português do Brasil em que a variante [s] é padrão, conservadora e

de prestígio e a variante [ ] é inovadora, estigmatizada e não-padrão.

O autor deixa claro que o ponto de partida mais adequado para o processo de

investigação científica é o vernáculo – veículo linguístico de comunicação usado em

situações naturais de interação social, isto é, a língua falada de forma espontânea. Uma vez

apresentado o objeto, é preciso ter em mente uma metodologia para a composição do

corpus a ser analisado. Como solução para esse desafio, Tarallo propõe o método de

entrevista sociolinguística em que o pesquisador coleta narrativas de experiência pessoal.

Nesse caso, o pesquisador, além de evitar prejudicar a naturalidade da situação de coleta

pela sua presença, deve propor um roteiro de perguntas a fim de homogeneizar os dados

de vários informantes para posterior comparação. Os dados não-naturais (que não

constituem o vernáculo) podem ser aproveitados para estabelecer uma hierarquia

estilística do desempenho do informante: de formal (não-natural) a informal (natural).

Tarallo (2007) utiliza, como exemplo, para evidenciar a mudança em progresso, o

estudo sobre o espanhol panamenho realizado por Henrietta Cedergren (1970). Este

abordou cinco casos de variação e subdividiu os informantes em cinco faixas etárias. Os

resultados atestaram que há uma correlação entre uma variante (enfraquecimento da

palatal /ch/) e dois grupos intermediários da faixa etária (21-30 e 31-40), logo, constitui

um caso de mudança em progresso (“duelo de morte” entre as variantes). Nos outros casos,

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não há qualquer correlação entre as variantes e as faixas etárias, constituindo, pois, uma

relação de estabilidade das variantes (“relação de contemporização” pela coexistência das

variantes).

Para Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), o processo de mudança linguística

está sujeito tanto a estímulos/restrições de fatores linguísticos (estrutura da língua)

quanto à de fatores extralinguísticos (sociais), podendo essa mudança começar quando um

dos muitos traços linguísticos da variação na fala se difunde através de um subgrupo

específico da comunidade de fala, de maneira que esse traço assume certa significação

social (encaixamento na estrutura social), pois simboliza os valores sociais inerentes

àquele subgrupo. A partir do momento que a mudança está encaixada na estrutura

linguística, o traço linguístico se generaliza gradualmente a outros elementos do sistema,

perdendo assim a sua significação social anteriormente assumida, conforme bem colocam

os autores: “a completação da mudança e a passagem da variável para o status de uma

constante se fazem acompanhar pela perda de qualquer significação social que o traço

possuía” (WLH, 1968, p. 125).

Por fim, WLH expõem alguns princípios gerais para o estudo da mudança linguística

destacando, dentre tantos outros princípios, o fato de a estrutura e a homogeneidade não

se associarem, tendo em vista que a estrutura linguística inclui a distinção ordenada dos

falantes e dos estilos através de regras que comandam a variação na comunidade de fala, a

ponto de o domínio do falante nativo sobre a língua inclui o controle destas estruturas

heterogêneas. Outra assertiva, exposta pelos autores, que merece ser destacada é: “Nem

toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura linguística implica mudança; mas toda

mudança implica variabilidade e heterogeneidade” (WLH, 1968, p. 125). Em síntese, pode-

se dizer que o grande mérito de WLH foi a inovação ao propor uma heterogeneidade

“ordenada”, isto é, uma variação com um caráter sistemático e controlado, constituindo

assim uma condição indispensável para a realização dos estudos acerca da mudança

linguística.

2.2 As ordens SVX/(X)VS em português

Com o intuito de realizar um estudo sobre a ordem sintática no Português Arcaico

(PA), Ribeiro (1995) desenvolve uma análise para a discussão do fenômeno da colocação

do verbo no PA, mais especificamente, da colocação do verbo em segunda posição

denominado “fenômeno V2” (Verb Second). As “línguas V2”, segundo a autora, são aquelas

que realizam as construções declarativas raízes com a ordem XV(S), em que o verbo finito

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(V[+f]) está em segunda posição e é antecedido por um constituinte sintagmático qualquer

(um objeto direto, um objeto indireto, um advérbio ou até mesmo um sujeito).

Em seus estudos sobre a perda da inversão do sujeito no Português Brasileiro (PB),

Ribeiro (2001) propõe que a ordem (X)VS pode ser de três tipos: com inversão românica

em que há a posposição do sujeito em relação ao verbo, isto é, o sujeito é quem se

movimenta, sendo representado geralmente por um “SN (sintagma nominal)

foneticamente pesado” que funciona como foco da sentença; com verbos ergativos ou

construções inacusativas (correspondem aos verbos monoargumentais que selecionam o

argumento interno, tendo como exemplos os seguintes verbos: nascer, morrer, chegar,

partir, vir,…); e com inversão germânica em que há o fronteamento do verbo, bem como o

do constituinte X (Objeto/Advérbio/SPrep), isto é, neste tipo de inversão, não é o sujeito

quem se movimenta, havendo uma relação estrita entre os termos fronteados no sentido de

que ambos devem ocupar o mesmo domínio sintático. Esta inversão parece estar

condicionada a certos traços da posição dos complementadores e das formas verbais, além

de funcionar como um divisor sintático entre línguas românicas modernas (que não

permitem a ordem germânica) e as línguas germânicas (que permitem essa ordem). Porém

há exceções em relação a essa divisão. Observe alguns exemplos de construção inacusativa,

inversão românica e inversão germânica, respectivamente:

(1) “Chegamestes pobres soldados” (1585) – VS (p. 105) (2) “comoo guardaráaquelle que não sómente se vê roto” (1585) – (X)VS (p. 106) (3) “Com tanta paceençasofriaelaesta enfermidade” (DSG. 4.13.13) – (Y)VSX (p. 102)

A fim de obter dados para a reflexão sobre a constituição sintática do Português

Brasileiro (PB), Ribeiro (2001) apresenta, sob o ponto de vista sincrônico e diacrônico, a

questão da inversão verbo-sujeito. A abordagem sincrônica observa a ausência da ordem

(X)VS (Constituinte X + Verbo + Sujeito) no PB, em comparação ao Português Europeu (PE),

na língua escrita ou falada. Já a abordagem diacrônica vê essa perda da ordem (X)VS em

relação ao PE como uma mudança sintática do PB. Assim sendo, “é possível falar-se em

mudança linguística do PB tendo como parâmetro, em geral, o PE moderno?” (RIBEIRO,

2001, p. 93). A partir desse questionamento, Ribeiro (2001) assume que as raízes do

português brasileiro estão no século 16 e, ao analisar a questão da inversão verbo-sujeito

nesse século, em sentenças declarativas, ela percebe, ainda que em baixa frequência, a

ocorrência da ordem (X)VS nos seguintes tipos de estrutura: inversão românica e inversão

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de construções inacusativas. Dessa forma, percebe-se que a perda da ordem (X)VS no PB

está relacionada com a inversão germânica, mas não em termos de gramática, pois esse

tipo de inversão não se mostra presente nas raízes do PB.

Quando Ribeiro (2001) apura um pouco da história da ordem (X)VS germânica (do

português arcaico ao português moderno), nota-se, na gramática do PE arcaico (do século

13 até final do século 15), um equilíbrio com a ocorrência dos três tipos de ordem

supracitados, estando a inversão germânica bastante presente nesse período. No PE

clássico (século 16 e 17), percebe-se uma quase ausência da inversão germânica, havendo

uma predominância da inversão românica e das estruturas inacusativas nas construções

(X)VS. A autora aponta poucos casos de fronteamento de verbo (inversão germânica), que

se mostram presentes nos dados retirados dos estudos de Torres Morais (1993) e de João

de Barros (1540). De acordo com a autora, esses casos podem resultar da imitação da

ordenação de constituintes do português arcaico, logo, eles não fazem parte da gramática

do PE clássico.

Essa diferença ou variação entre a gramática do PE arcaico (com inversão

germânica) e a do PE clássico (sem inversão germânica) pode ser considerada, conforme

proposto por Kroch (1994, apud RIBEIRO, 2001), como uma mudança sintática que

funciona via competição entre gramáticas, em que uma substitui a outra no uso. Essa

substituição se dá com os padrões de ordenação conservadores cedendo lugar aos

inovadores. Já na gramática do PE moderno, nos séculos 18 e 19, as inversões germânicas

aumentam consideravelmente a sua frequência, distinguindo-se dos séculos 16 e 17.

Conforme afirma Ribeiro (2001), Torres Morais (1993) mostra que enquanto no PE

moderno há uma aquisição da ordem (X)VS germânica no PB inicia-se uma perda dessa

ordem, que começa a se extinguir a partir do século 18, chegando a 0% nos textos do século

20. Diante disso, cria-se um paradoxo ao assumir a ordem (X)VS do PB do século 18 como

um produto da língua-I38, sendo mais coerente não se falar “em perda da inversão

germânica no PB em termos de gramática interna, mas sim em termos de opções

estilísticas” (Ribeiro, 2001, p. 122), isto é, em termos de opções de língua-E39.

Ao realizarem os seus estudos a respeito da diacronia em construções XV, Coelho e

Martins (2009) utilizam duas amostras extraídas de um mesmo corpus constituído de

textos dramáticos escritos por catarinenses nascidos entre os séculos 19e 20. Tais textos

38 A Língua-I deve ser entendida como a gramática internalizada do falante, isto é, como o conhecimento que o indivíduo tem sobre a sua língua nativa. 39 A Língua-E deve ser vista como o objeto externalizado da gramática internalizada (ou Língua-I) do falante nativo de uma língua.

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fazem parte de um projeto em curso, vinculado ao Projeto Variação Linguística Urbana da

Região Sul do Brasil (VARSUL), na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). No

estudo da ordem (X)VS, os autores utilizaram sete textos do corpus.

Dentre os inúmeros enfoques teóricos acerca da ordem verbo-sujeito (VS) no PB,

Coelho e Martins (2009) salientam a proposta incipiente de Kato e Tarallo (1988): “o PB

obedece a uma restrição sintático-fonológica denominada de monoargumentalidade, isto é,

VS seria possível apenas se não houvesse mais de um argumento manifesto em posição

pós-verbal, uma espécie de XVY.” (p. 4). Esses argumentos poderiam ser tanto sintagmas

nominais (SN) quanto adverbiais (SAdv). Observe os exemplos:

(4) Agora é tarde. Ahi vêm D. Clarinda e sua filha. [Brinquedos de cupido (1898) de Antero Reis Dutra (1855-1911)] (p. 4); (5) Lá por isso respondo eu: aquilo era uma boa alma. [Raimundo (1868) de Álvaro Augusto de Carvalho (1829-1865)] (p. 4).

Segundo Kato e Tarallo (1988, apud COELHO; MARTINS, 2009), a ordem VS seria

mais facilmente licenciada nos verbos inacusativos, tendo em vista que estes selecionam

originalmente o argumento interno, conforme mostra o exemplo (4). Nota-se, no exemplo

(5), o licenciamento do sujeito pós-verbal mesmo havendo outro constituinte à direita do

verbo.

Diante dos resultados do estudo realizado, Coelho e Martins (2009) observam que o

português de SC do final do século 20 perdeu a inversão românica e está perdendo a

inversão germânica ao mesmo tempo em que enrijece a ordem SV(O) atestada nos

contextos (in)transitivos. No entanto, ainda mantém um uso bastante regular da inversão

inacusativa (X)VS, de forma que a proporção de VS inacusativa nos textos do século 19 é

ainda encontrada em textos do século 20. Além disso, dentro desse padrão regular, os

autores constatam que contextos preferencialmente com verbo em segunda posição (XVS),

quando o sujeito está contíguo ao verbo, parecem mais resistentes à mudança,

confirmando assim o padrão sintático-fonológico defendido como hipótese por Kato e

Tarallo (1988). Por fim, Coelho e Martins (2009) também atestam que o PB está perdendo

construções que apresentam dois argumentos à direita do verbo (VSX ou VXS), optando por

estruturas com apenas um argumento expresso em posição pós-verbal, a esclarecer XVY,

sendo o Y representado por um objeto, um adjunto ou por um sujeito quando a construção

for inacusativa.

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Tomando como parâmetro o estudo realizado por Coelho e Martins (2009), Coelho e

Martins (2012) propõem uma discussão sobre uma das mudanças sintáticas atestadas pelo

PB: a de ordem variável do sujeito de construções não inacusativas em direção a um

predomínio da ordem sujeito-verbo-objeto (SVO). O trabalho dos autores visa explicar a

gradação observada entre formas em variação em textos de escritores catarinenses

nascidos no curso do século 19, bem como a hipótese de competição de gramáticas,

proposta por Kroch (1989). Para isso, o estudo leva em consideração os postulados teórico-

metodológicos de Weinreich, Labov e Herzog (1968).

Conforme já foi dito, a ordem XVS envolve diferentes tipos de estruturas

(germânicas, românicas e acusativas) e diferentes condições de licenciamento dessa

ordem. As estruturas dessa ordem mais recorrentes no trabalho de Coelho e Martins

(2012) são: a inversão germânica (aquela em que há o fronteamento do verbo e do

constituinte X para a posição inicial da sentença, gerando estruturas do tipo OVS, SPVS ou

AdvVS) e a inversão com verbos inacusativos (monoargumentais que selecionam o

argumento interno do sintagma verbal). Esta última é muito frequente no PB atual.

Segundo Ribeiro (2001), a inversão germânica não está associada nem à gramática do

Português Clássico (PC) nem à gramática do PB, mas sim à gramática do Português Antigo

(PA) ou do Português Europeu (PE).

No que diz respeito aos resultados do trabalho, do total de 575 dados investigados

(construções V2/V3 não dependentes) do século 19, Coelho e Martins (2012) encontram

522 na ordem sujeito-verbo (91%) e 53 na ordem verbo-sujeito (9%). Os resultados

comprovam que a ordem SV é a que mais predomina, havendo uma maior ocorrência das

construções YXV e XV com 93% e 89% respectivamente. A frequência dessa ordem

aumenta ainda mais no século 20. Na verdade, isso não é uma novidade, haja vista que

Torres Morais (1993, apud COELHO E MARTINS, 2012) já havia mostrado que, a partir do

século 18, as ordens XSV/SXV e SV com o sujeito em posição pré-verbal tinham se tornado

uma tendência progressiva. São exemplos desses três tipos de ordem, respectivamente:

(6) “Decididamente estes criados anthepatisão commigo” – Brinquedos de cupido, 1898, de Antero Reis Dutra (1855-1911) (p. 10); (7) “Eu bem lhe disse” – Um cacho de mortes, 1881, de Horácio Nunes (1855-1919) (p. 10); (8) “o fidalgo tem as goelas forradas de veludo” – Raimundo, 1868, de Álvaro Augusto de Carvalho (1829-1865) (p. 10).

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Segundo Coelho e Martins (2012), o século 19 atua como um período de transição

em que as construções (Y)XVS (com inversão de sujeito) e (X)SV (sem inversão de sujeito)

convivem lado a lado, ainda que em proporções bastante distintas. Outros resultados dos

dados analisados no trabalho ainda comprovam a grande incidência de construções XVS

com inversão inacusativa (31%) na gramática do PB. Também se mostram

significativamente presentes as construções XVS não inacusativas (11%), que não estão

associadas à gramática do PB, em termos de Língua-I – são as chamadas inversões

germânicas.

Levando em consideração a realidade sociolinguística na qual os textos analisados

foram escritos, Coelho e Martins (2012) assumem que “há, nos textos, o reflexo de um

padrão sociolinguisticamente marcado” (p. 12); isto é, um padrão que está associado a

resquícios de outra gramática. Dessa forma, caso apareçam construções XVS germânicas

em ocorrências do PB no final do século 20, devem ser vistas como fósseis linguísticos, pois

se tratarão de expressões cristalizadas. Como exemplos de construções XVS germânica e

inacusativa encontradas nos textos analisados, tem-se, respectivamente:

(9) “Atrás dela ando eu” – Um cacho de mortes, 1881, de Horácio Nunes (1855-1919) (p. 10); (10) “Pois morro eu de uma apoplexia fulminante” – Um cacho de mortes, 1881, de Horácio Nunes (1855-1919) (p. 12).

Os resultados da análise dos autores mostram que, na construção (Y)XV, o X que

antecede imediatamente o verbo é preferencialmente realizado como sujeito em 71% dos

casos. Por outro lado, na construção XV, a existência de um X como advérbio ou

complemento preposicionado condicionará a ocorrência de sujeitos pós-verbais. Coelho e

Martins (2012) mostram também um indício que explica o aumento das construções V3

(verbo em terceira posição na sentença) na ordem SV: “frequência significativa de

construções em que X é a clivada é que, predominantemente em SXV (92%)” (p. 15). Além

disso, os resultados também revelam uma frequência significativa de sujeito pronominal

em XVS não inacusativa – inversão germânica prototípica.

Portanto, Coelho e Martins (2012) acreditam que a escrita dos brasileiros nascidos

no século 19 mostra padrões associados a diferentes gramáticas do português: seja ao PB

(com a ordem SV, isto é, o sujeito ocupando a posição pré-verbal (XSV ou SXV) e a XVS

inacusativa); ao PE (com construções XVS inacusativa e germânica e construções XSV ou

SXV); e/ou ao PA (com a ordem XVS inacusativa e não inacusativa – germânica). Logo, em

consonância com Kroch (1989, 2001), os autores entendem que as variações presentes nos

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textos históricos podem refletir gramáticas distintas (uma conservadora e uma inovadora).

Isso evidencia, para Coelho e Martins (2012), um processo de mudança sintática que seria

o reflexo de uma competição entre diferentes gramáticas do português.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA: O PHPB – RN

No que diz respeito à metodologia adotada na pesquisa aqui realizada, pode-se dizer

que ela envolve vários procedimentos ou etapas. O primeiro procedimento consiste na

organização de um corpus mínimo que integre o Projeto História do Português Brasileiro

do Rio Grande do Norte (PHPB – RN). Esse corpus é composto por 23 cartas de leitores e

419 anúncios de jornais norte-riograndenses dos séculos 19 e 20. No caso desta pesquisa,

os objetos de descrição e análise, isto é, as construções (Y)XV foram analisadas em cartas

de leitores e anúncios existentes nesses jornais norte-riograndenses. A segunda etapa

consiste na transcrição das cartas e dos anúncios, ou seja, esses gêneros textuais foram

digitados, seguindo as regras de transcrição de textos. O terceiro procedimento é a coleta

dos dados nas orações finitas não dependentes em que o verbo é antecedido por um ou

mais constituintes, levando em consideração os contextos (Y)XV.

Na quarta etapa, os dados coletados foram categorizados em consonância com a

metodologia da sociolinguística variacionista (cf. WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968;

LABOV, 1972, 1982) e submetidos aos programas das rodadas estatísticas do GOLDVARB

2001 (cf. ROBINSON; LAWRENCE; TAGLIAMONTE, 2001). Após o tratamento estatístico

das ocorrências, veio a quinta etapa: a análise comparativa entre as ordens (padrões)

encontradas ao longo da história do Português Brasileiro (PB). No sexto procedimento, está

a análise teórica dos padrões SV e XV a partir de teorias sobre a sintaxe da ordem nas

gramáticas do português com base gerativista. Por fim, a última etapa consiste na

publicação do corpus e dos resultados da pesquisa sobre construções XV.

4 ANÁLISE DOS PADRÕES (ORDENS) ENCONTRADOS NO CORPUS

Nesta seção, pretende-se realizar a descrição e a análise dos padrões encontrados ao

longo do corpus a partir dos dados categorizados, que foram submetidos às rodadas

estatísticas. Ao se promover o cruzamento da variável tipo de construção (um ou mais de

um constituinte em posição pré-verbal) com a variável ordem e realização do sujeito

(sujeito anteposto ou posposto ao verbo ou sujeito nulo) tomando aquela variável como

dependente, obteve-se um total de 747 dados, conforme mostra a Tabela 1:

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Grupo XV YXV Total

SV 246 (58%) 177 (41%) 423 (56%)

VS 99 (82%) 21 (17%) 120 (16%)

Nulo 128 (62%) 76 (37%) 204 (27%)

Total 473 (63%) 274 (36%) 747

Tabela 01

Diante dessa tabela, é possível perceber que as construções com um único

constituinte pré-verbal (XV) tendem a ter o sujeito posposto ao verbo em 82% dos casos de

ordem VS encontrados no corpus, isto é, o constituinte anteposto ao verbo é

predominantemente realizado por algum sintagma que não desempenha a função de

sujeito. Entretanto, nas construções com mais de um constituinte em posição pré-verbal

(YXV), a ocorrência do sujeito posposto ao verbo diminui (17%) consideravelmente, logo,

há indícios que mostram que a posposição do sujeito pode ser condicionada

principalmente pelas construções do tipo XV. Vejamos alguns exemplos:

(11) XVS – Si os aspirantes a suspirada ca- | deirinha na quadrionnal não tiverem bastante juisosahemuita gente fu-rada. || – CARTAS DE LEITORES (XIX, 2ª metade) – Brado Conservador (24/02/1881); (12) YXVS – Até o fim de Outubro | na rua do Rozario nº 2com- | pra-secaroço de algodão | – ANÚNCIOS (XIX, 2ª metade) – O Povo (06 de julho de 1889).

Fazendo-se o cruzamento da variável tipo de construção (também como variável

dependente) com a variável natureza do constituinte que antecede imediatamente o verbo,

logram-se os resultados expostos na Tabela 2:

Grupo XV YXV Total

Sujeito 241 (78%) 67 (21%) 308 (41%)

Advérbio 25 (38%) 40 (61%) 65 (8%)

Sent. Subordinadas 54 (42%) 73 (57%) 127 (17%)

Vocativos/apostos 41 (50%) 41 (50%) 82 (10%)

Sint. preposicional 73 (65%) 38 (34%) 111 (14%)

Const. focalizados 9 (64%) 5 (35%) 14 (1%)

Arg. topicalizado 24 (77%) 7 (22%) 31 (4%)

Clivada 0 (0%) 2 (100%) 2 (0%) Knockout

CP(Complem./QU) 5 (83%) 1 (16%) 6 (0%)

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CP(quantificadores) 1 (100%) 0 (0%) 1 (0%) Knockout

Total 473 (63%) 274 (36%) 747

Tabela 02

Na Tabela 2, merece destaque o fato de que o sujeito predomina como constituinte

imediatamente anterior ao verbo, totalizando 41% dos resultados encontrados. Dentre

esse total, nas construções XV (um constituinte apenas em posição pré-verbal), há uma

preponderância (78%) da realização do sujeito como o constituinte que antecede

(imediatamente) o verbo. Por outro lado, 8% do total dos dados obtidos têm um advérbio

como constituinte imediatamente anterior ao verbo, sendo que, nas construções YXV (dois

ou mais constituintes pré-verbais), a frequência dos advérbios nessa posição é muito maior

(61%) do que nas construções XV (38%). Dessa forma, entende-se que o sujeito antecede

imediatamente o verbo, geralmente, em construções do tipo XV; já o advérbio ocupa a

mesma posição, principalmente, nas construções YXV. Tal situação pode ser exemplificada

abaixo:

(13) SV – A nossa normaé um por todos e todos por | um; – CARTAS DE LEITORES (XIX, 2ª metade) – A República (27 de agosto de 1892); (14) YXV(S) – Ouvindo o som dos pianos “Albert | Schmolz”muitome satisfeza sua | amplitude e suavidade sonora. – ANÚNCIOS (XX, 1ª metade) – A Ordem (31 de março de 1938).

Quando se realiza o cruzamento da variável (dependente) tipo de construção (XV ou

YXV) com a variável século (19 ou 20), é possível atestar os seguintes resultados expressos

na tabela abaixo:

Grupo XV YXV Total

19 159 (56%) 121 (43%) 280 (37%)

20 314 (67%) 153 (32%) 467 (62%)

Total 473 (63%) 274 (36%) 747

Tabela 03

Conforme se pode observar na Tabela 3, o século 20 apresenta uma preponderância

(67%) de construções do tipo XV, representando mais do dobro das construções YXV

(32%) encontradas nesse século. O século 19, por sua vez, apresenta certa regularidade no

que concerne à proporção de ocorrência desses dois tipos de construções. Essa situação

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evidencia, pois, uma possível consolidação das construções do tipo XV nos textos do século

20. Como exemplos que corroboram o que foi dito, há os seguintes:

(15) SV – Eupretendo fazer d’esta | maneira, ao lado, da patrícia ado- | ravel algumas reflexões

sobre a | educação – CARTAS DE LEITORES (XX, 1ª metade) – A República (07/05/1910);

(16) XV – Para redimir o Rio Grande do Norte, | vote em | Aluizio Alves - Walfredo Gurgel –

ANÚNCIOS (XX, 2ªmetade) – Tribuna do Norte (14 de junho de 1960).

Ao se retomar os resultados expostos na Tabela 1, nota-se claramente uma

predominância absoluta da ocorrência de construções com sujeito em posição pré-verbal

equivalente a 56%. Isso corresponde a mais do dobro de ocorrências com sujeito nulo

(27%) e a mais do triplo de ocorrências com o sujeito em posição pós-verbal (16%).

Entretanto, para se ter a ciência da quantidade de ocorrências das construções com as

ordens SV e VS ao longo dos dois séculos (19 e 20), é preciso realizar o cruzamento da

variável século com a variável ordem do sujeito e com a variável tipo de construção,

consoante está exposto na Tabela 4:

TTabela 4

Conforme podemos observar na Tabela 4, do século 19 para o século 20, há um

aumento (69% - 72%) da ordem SV em construções do tipo XV, entretanto, não há um

aumento da ordem VS no mesmo tipo de construção. Por outro lado, em construções do

tipo YXV, ocorre justamente o oposto; isto é, a ordem SV decresce (88% - 73%) e VS

aumenta (12% - 27%). A diminuição da ordem SV em construções YXV é algo no mínimo

curioso, logo, merece uma atenção especial nos estudos que se seguirão acerca desse

assunto. Conforme foi exposto nos estudos de Coelho e Martins (2009) acerca da diacronia

em construções XV dos séculos 19 e 20, dentre os casos de VS, a maior parte deles é

composta por inversão inacusativa, tendo em vista que esse tipo de ordem ainda mantém

certa regularidade no século 20, diferentemente do que acontece com a inversão

Grupo XV/YXV SV VS

Séc. 19 XV 75/109 (69%) 34/109 (31%)

Séc. 19 YXV 79/90 (88%) 11/90 (12%)

Séc. 20 XV 171/236 (72%) 65/236 (28%)

Séc. 20 YXV 98/108 (73%) 10/108 (27%)

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germânica. Portanto, a partir da análise dos resultados aqui expostos e dos estudos

realizados sobre as construções XV pelos autores citados anteriormente, podemos inferir

que as construções SV se manifestam com predominância absoluta no século 19 e se

consolidam definitivamente como ordem prototípica (padrão) do PB no século 20. Em se

tratando das construções VS, supomos que, durante o século 19, elas estão associadas a

dois tipos de inversão: germânica (padrão gramatical do PE) e inacusativa (padrão

gramatical do PB). Por outro lado, no século 20, a ordem VS vincula-se provavelmente

apenas às inversões do tipo inacusativa, pois a ocorrência das inversões germânicas torna-

se cada vez menor nesse século. Como exemplos das ordens SV e VS inacusativa e

germânica, estão os seguintes:

(17) SV – A in- | denização paga totalizou Cr$ 399.850,00 || – CARTAS DE LEITORES (XX, 2ª metade) – Tribuna do Norte (12/03/1957); (18) XVSINACUSATIVA – No Umary preto, distri- | cto de Flores, do Acary, fal- | leceo na idade de 105 annos | a Senrª. D. Francisca Maria| do Rego – ANÚNCIOS (XIX, 2ª metade) – O Povo (06/04/1889); (19) XVS GERMÂNICA – e com elleestareieu .... || – CARTAS DE LEITORES (XIX, 2ª metade) – O Caixeiro (24/05/1893).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo que foi exposto até aqui, podemos concluir que, apesar de haver,

aparentemente, a manifestação dos padrões de duas gramáticas distintas (PB e PE) no

corpus do século 19 e no corpus do século 20, é possível atestar uma mudança nesse

sentido, tendo em vista que a ocorrência dos padrões da gramática do PE começa a se

tornar cada vez mais rara. Isto é, há um enfraquecimento da ordem XVS germânica em

detrimento do aumento e enrijecimento da ordem SVO. Os poucos casos de inversão do

sujeito no século 20 devem ser atribuídos à ordem XVS inacusativa. Dessa forma, o

aumento da ordem VS (atestado nos resultados da tabela 4) do século 19 para o 20 em

construções do tipo YXV está relacionado com a manutenção da regularidade das inversões

inacusativas. Os casos raros de ocorrência da ordem XVS germânica no século 20 devem

ser vistos como “expressões cristalizadas” ou “fósseis linguísticos”, tendo em vista que não

fazem parte da gramática do PB em termos de Língua-I (interna).

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REFERÊNCIAS

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COELHO, I.; MARTINS, M. A. Padrões de inversão do sujeito na escrita brasileira do século 19: evidências empíricas para a hipótese de competição de gramáticas. Revista Alfa, 2012.

RIBEIRO, I. M. O. A sintaxe da ordem no português arcaico: o efeito V2. Campinas: Unicamp [Tese de Doutoramento], 1995.

RIBEIRO, I. Sobre a perda da inversão do sujeito no português brasileiro. In: MATTOS E SILVA, R. V. (Org.). Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas FFCH/USP, 2001. v.2., p. 91-126.

TARALLO, F. L. A pesquisa sociolinguística.8.ed. São Paulo: Ática, 2007.

WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical foundations for a theory of language change. In: LEHMANN, W. P.; MALKIEL, Y. (Ed.) Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 97-195.

POR QUE A BRUXA TEM QUE MORRER? Yls Rabelo Câmara Universidade de Santiago de Compostela Guilherme Linhares Neto Universidade Federal do Ceará Resumo Este trabalho busca focalizar a personagem da bruxa desvinculada da imagem do mal, que a tem caracterizado nos últimos vinte séculos. Apresentamo-la como a mulher poderosa e fálica que foi e é provocadora de inquietude em meio à sociedade falocêntrica que rechaça o elemento feminino por razões sexistas. Tratamos de dar-lhe uma dimensão psicanalítica e de encaixá-la no contexto das perseguições medievais que a vitimaram a fim de que tenhamos a exata medida da visão preconceituosa com a qual tem sido tratada.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Osório (2004) defende que a típica imagem da bruxa que habita a imaginação do

ocidental comum está intrinsecamente vinculada ao repúdio. Caracterizamos-lha, no mais

das vezes, como a mulher velha, feia e pobre; enrugada e com uma grande verruga

pendendo da ponta do nariz aquilino; o cabelo maltratado, longo e grisalho; a voz rouca;

totalmente vestida de negro e curvada sobre seu imenso caldeiro, onde um menino cristão

está sendo cozido a fogo lento para servir de base para o preparo de poções mágicas. Ao

seu redor, além do caldeiro, símbolo ancestral que representa o grande útero da Deusa

Mãe, em que vida e morte estão conectadas pela reencarnação, estão também outros

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objetos igualmente mágicos: a varinha, a vassoura e a companhia inevitável de corvos e

gatos pretos. Esta imagem não difere muito da que Barstow (1991, p. 178) defende:

En una época en la que se apreciaba sobremanera la belleza exterior, que se creía indicadora de la virtud interior, una vieja fea era considerada maligna y bruja. Un observador de la caza de brujas en Essex escribió que las sospechas recaían sobre ‘cualquier mujer vieja con la cara surcada de arrugas, un entrecejo poblado, un labio con vello, un ojo cerrado, una voz cascada o una lengua mordaz… acompañada por un perro o un gato.

Na maioria dos contos de fadas, as bruxas são as vilãs por excelência e devem

morrer no final para que o bem possa, por fim, triunfar. Mas, afinal, quem eram/são as

bruxas? E por que têm que necessariamente desaparecer no final da trama para que este

suposto bem possa prevalecer? Cardini (1996, p. 14) as define assim, etimologicamente

falando:

O italiano striga, strix refere-se à ideia de metamorfose e de vampirismo; o francês sorcière vem de sortes e indica, antes de tudo, uma técnica de conhecimento do futuro; o espanhol bruja, o português bruxa e o alemão hexe referem-se ao caráter sagrado de antigas mulheres sábias, pagãs, que habitavam os bosques, e provêm de etimologias que indicam a madeira e as árvores; o inglês witch indica a sábia germânica.

Segundo Paradiso (2011) e Zordan (2005), a imagem da bruxa foi sendo construída

a partir de discursos que apresentavam a mulher metaforicamente como um ser autônomo

e sexualmente emancipado, em oposição direta ao sistema de controle patriarcal

hegemônico. As bruxas eram a personificação da rebeldia, da autossuficiência, dos instintos

mais primitivos e de uma sexualidade selvagem. Em vista destas características, fez-se

necessário moldá-las ao discurso falocêntrico: emudecê-las e segá-las.

Desde a aurora de nossa civilização, as mulheres têm sido sempre as encarregadas

de promover a cura através do domínio e uso medicinal das ervas, uma vez que ficavam em

casa com a prole, cuidando desta e dos bens tangíveis de seus núcleos familiares enquanto

que seus homens caçavam ou guerreavam. Entre as ocupações femininas mais corriqueiras

estava também o observar a natureza e seus ciclos, como atestam Baring e Cashford (2005,

p. 72): “Al permanecer cerca de la casa para cuidar de los niños, debieron de percartarse de

que las semillas de las hierbas salvajes reaparecían al año siguiente”. Os homens, ocupados

com outras tarefas, não desenvolveram a mesma sensibilidade para com os elementos

naturais que os cercavam e que culminaram neste conhecimento de caráter mais

marcadamente feminino. Como não conseguiam explicar o poder destas mulheres

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naturalmente sapientes, os homens as respeitavam, de seus serviços dependiam e eram

incapazes de afrontá-las por temor.

Seguindo o curso natural do tempo, este conhecimento empírico foi-se

aprofundando na Idade Média. De acordo com Barstow (1991), as bruxas eram as tecelãs,

cervejeiras, artesãs, serventes, parteiras e curandeiras pertencentes a uma sociedade que

as necessitava. Considerava-se natural o fato de que uma pessoa recorresse às

conhecedoras dos mistérios fitoterápicos para livrar-se de seus problemas físicos,

emocionais e espirituais ou para afugentar a má sorte, já que se tratava de pura magia

branca e, por tanto, considerada inofensiva.

Contudo, estas mesmas mulheres se tornaram uma ameaça social ao formarem

confrarias e colocarem em risco o incipiente saber médico masculino, sexista e paternalista

que se estava gestando junto com o Cristianismo que se legitimava como a religião oficial

do mundo civilizado. Desta forma, os saberes pagãos faziam com que a bruxa expressasse,

conforme Zordan (2005, p. 339-340), “[...] o poder das Grandes Deusas, a divinização da

Natureza e a terra-corpo como sagrados [...]”. Acreditava-se que o poder de curar poderia

levar também ao de matar. E este poder inexplicável, sobrenatural, somente poderia haver

sido concedido a tais mulheres pelo próprio Satanás, com quem elas supostamente

haveriam feito um pacto de sangue anteriormente, segundo Barstow (1991).

O que não encontrasse eco nos ditames cristãos deveria ser expurgado. Se as

mulheres eram vistas com desconfiança pela nova religião, as mulheres fálicas, inteligentes,

carismáticas e resistentes ao discurso falocêntrico, que depreciassem a instituição

matrimonial focada na monogamia e valorizassem o sexo e o prazer estéreis, tornavam-se

uma ameaça e exemplo de vida antissocial que deveria ser eliminada. Paradiso (2011)

resume que estas mulheres foram declaradas inimigas, dotadas de malícia, lascívia e

corrupção; em seguida, perseguidas com o apoio do clero e da nobreza e, finalmente,

emudecidas à custa de sangue. A desculpa encontrada e que melhor cabida teve para

silenciar-lhes o discurso e postura fálicos foi a de taxá-las de endemoniadas... E calhou... A

partir de então, o silêncio passou a ser o destino das mulheres, cabendo o discurso ao

homem, que o construiu com base em um arcabouço autoritário e patriarcal.

2 A IMPLACÁVEL PERSEGUIÇÃO ÀS SÁBIAS

Ellis (1995) afirma que sua perseguição começou de forma gradual e aparentemente

bem-intencionada. A medicina tradicional dos antepassados gradualmente passou a ser

considerada bruxaria pelos inquisidores. As pessoas que faziam uso dos antigos

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conhecimentos pré-cristãos como filtros e poções passaram a ser perseguidas. Com o

Cristianismo cada vez mais preponderante, intolerante e imponente, tornava-se inviável

que a mulher continuasse a agir como sempre havia agido; não se aceitava mais que a

mulher seguisse remediando a vida. Bastava com gestá-la.

As bruxas, antes respeitadas por sua cultura milenar e hereditária, passaram a

simbolizar a ligação feminina com o oculto diabólico. O termo ‘bruxaria’ apareceu pela

primeira vez no ano 589 e defendia que a bruxa era a concubina do Diabo, representando o

irreal através do resultado de suas ações maléficas, e o real, como alguém que se devia

torturar, matar ou exilar, de acordo com Carneiro (2006).

Mas bruxaria é sinônimo de feitiçaria? Uma bruxa pode ser classificada como

feiticeira e maga? Evans-Pritchard, autor da obra Witchcraft, Oracles and Magic among the

Azande (1976), fez a clássica distinção entre feitiçaria e bruxaria. Para ele a bruxa era uma

benfeitora inofensiva; contrariamente, a feiticeira causava dano através de seus atos

maléficos que alcançavam a materialidade em seus resultados, segundo Bechtel(2001).

A violência misógina legitimada que se produziu contra estas e aquelas chegou às

raias do delírio e da insanidade. Determinadas localidades assistiram a um verdadeiro

extermínio de pessoas acusadas de bruxaria (diga-se de passagem, que entre 75 e 90% dos

casos tratava-se de mulheres). E por que mulheres e não homens? Provavelmente porque

as mulheres sempre estiveram mais próximas às crianças, aos velhos e aos doentes – aos

mais débeis, portanto; sempre trabalharam mais de perto na elaboração do alimento;

sempre foram profundas conhecedoras das dores, dos partos, das doenças e da morte em si

e, consequentemente, passaram a ser vistas com maior desconfiança devido a tal

proximidade, como defendem Menon (2008) e Mainka (2002).

3 A DIFERENÇA ENTRE A INQUISIÇÃO E A CAÇA ÀS BRUXAS

O senso comum erroneamente amalgama a Inquisição e a Caça às Bruxas como

sendo um mesmo fenômeno. A Inquisição ocorreu entre 1184 e 1821 e a Caça às Bruxas

entre os séculos XV e XVII. As duas tiveram basicamente os mesmos propósitos em

distintos momentos, mas não são sinônimas uma da outra.

Saindo do modelo matricêntrico pagão, de doadora de vida a mulher passou a

simbolizar a influência demoníaca sobre a sociedade patriarcal cristã. Para caber nos novos

parâmetros, tiveram de contê-la e, se necessário, purificá-la pelo suplício e pela morte que

concediam o perdão. O Santo Ofício foi criado oficialmente em 1231 com a intenção de

impor os preceitos cristãos sobre toda e qualquer ‘falsa verdade’. Destarte, grupos de

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dominicanos moralmente irrepreensíveis e intelectualmente bem amparados se

dispuseram a salvar a humanidade.

Faz-se necessário mencionar que a Inquisição não foi especialmente severa com as

artes mágicas nem com a feitiçaria em si; seu objetivo maior eram os desvios religiosos e

especialmente os resquícios do paganismo, que, segundo Bechtel (2001), deveriam ser

sumariamente erradicados. Para tanto, fez-se uso abusivo do reconhecimento, da confissão,

da humilhação, da renúncia, da abjuração e da retratação pública dos culpados como forma

de expiação.

A Caça às Bruxas, diferentemente da Inquisição, foi marcada pela histeria coletiva,

como aponta Mainka (2002, p. 117):

Os centros da perseguição foram à Suíça, a França, a Escócia e, principalmente, o Sacro Império Romano-Germânico, onde havia mais da metade dos aproximadamente 100 mil casos acusados de bruxaria e também mais da metade das 50 mil execuções em toda a Europa. O apogeu das perseguições que aconteceu, como acima mencionado, em ondas relativamente sincrônicas,esteve entre 1560 e 1660 ou, mais concretamente, entre 1585/90-1630/35.

4 A BRUXARIA SOB A ÓTICA CRISTÃ Acreditava-se que a mulher era mais propensa às investidas do Demônio devido à

sua frágil consistência, tal como Casanova e Larumbe (2005, p. 360) expõem:

Por su naturaleza más simple las mujeres eran más fáciles de engañar, por su curiosidad se veían incluidas a conocer las cosas ocultas, por su debilidad eran más propensas a la venganza artera y, por último, que al llegar a la vejez desarrollaban o avivaban apetitos carnales que no pudiendo satisfacer las llevaban a pedir ayuda al demonio.

Para Cornut-Gentille (1998) e Bechtel (2001), houve uma série de razões que

levaram nossos antepassados a acreditar que as mulheres estavam por detrás das

desgraças que ocorreram na Europa um pouco antes que a Caça às Bruxas tivesse início: a

transferência papal para Avignon (1309), a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), a Peste

Negra (1347-1351) e as mudanças meteorológicas do século XVI - cujos violentos

temporais causaram a destruição completa das colheitas por vários anos e que resultou

numa violenta onda de fome generalizada. Todas estas calamidades inexplicáveis levaram

ao desencadeamento de uma guerra sem precedentes contra os adeptos da bruxaria, os

judeus, os leprosos e os homossexuais – com maior destaque para os primeiros. Os

campônios, desgraçados e famintos, eram levados a crer no suposto poder demoníaco que

pairava no ar e que lhes estava afetando, de acordo com Barstow (1991).

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Cria-se que as mulheres especialmente tocadas pela sabedoria, através da

intercessão direta do Inimigo de Cristo, tinham o poder também de lançar o mal de olho,

praticar conjuros que arruinavam colheitas, matar o gado e fazer homens, mulheres e

crianças adoecerem; de provocar a impotência e a esterilidade; de fabricar poções, filtros

de amor e venenos para matar seus inimigos, além de unguentos que lhes permitiam voar

pelas noites escuras em busca de sabás nas quais podiam venerar seu deus, o mesmíssimo

Satã. Em tais reuniões, supunha o senso comum que se entregavam a todo tipo de orgias

inconfessáveis. Um procedimento mágico clássico e que ganhou fama no Medievo foi a

chamada ligadura (defixio) e consistia em um encantamento que ligava um determinado

malefício a uma determinada vítima. Este era normalmente expresso em pequenas placas

de chumbo que eram preenchidas enquanto se articulavam as invocações assassinas. A

seguir, as placas recém-manipuladas eram atravessadas por um instrumento perfurante e o

processo rematava quando o defixio era enterrado em um cemitério.

Casanova e Larumbe (2005) nos esclarecem que a grande maioria destas

“malfeitoras” pertencia aos estratos sociais menos favorecidos e habitualmente eram

diagnosticadas como mentalmente desequilibradas. A economia foi, segundo Barstow

(1991), um dos maiores detonantes das perseguições. Normalmente, as acusadas ou eram

mulheres paupérrimas e que dependiam de seus vizinhos para sobreviverou eram

abastadas e atraíam a ganância de seus algozes, além de outros agravantes, segundo as

palavras de Barstow (1991, p. 184): “Todas las mujeres solas eran consideradas

especialmente vulnerables al diablo. Las parejas de madre e hija eran muy sospechosas, y

muchas fueron quemadas o colgadas juntas”.

Para Casanova e Larumbe (2005), uma possível explicação do porquê a mulher

haver sido mais perseguida que o homem pela paranoia delirante de líderes religiosos pode

repousar no crescente número de mulheres que viviam sozinhas naquele momento da

História devido à dissolução de conventos em áreas protestantes e/ ou à viuvez imperante

em razão das guerras contínuas. Sozinhas e vulneráveis, sem a proteção de uma figura

masculina, estas mulheres desamparadas, mentalmente afetadas e materialmente pobres

tornaram-se presas fáceis para os inquisidores.

4.1 A Igreja e os Livros Assassinos – o Formicarius e o Malleus Malleficarum

Bechtel (2001) defende que para justificar o genocídio misógino, o dominicano

alemão Hans Nider publicou em 1435 sua obra-prima: o Formicarius – o primeiro passo

para estabelecer a paranoia delirante que se instalou na Europa no que diz respeito à caça

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aos “adoradores do Diabo”. Ele criou o mito da bruxa que não somente emprega sortilégios,

mas que também é uma feérica adepta do satanismo. Para aperfeiçoar o retrato falado que

se criou dela, o autor adaptou alguns perfis a fim de corroborar sua teoria: o bruxo, o

canibal e as estriges voadoras. O holocausto não começou até 1450 e teve seu ponto

culminante paralelo à Reforma Protestante e à Contrarreforma Católica.

Em 1487, com a publicação do Malleus Malleficarum pelos dominicanos Kramer e

Sprenger, logrou-se a obtenção da aprovação papal para se combater o satanismo através

da bula expedida por Inocêncio VIII, a Summis desiderantes affectibus, de 5 de dezembro de

1484, como aponta Mainka (2002). Trata-se da obra mais misógina e demente concebida

até então e os danos que provocou foram irreparáveis. Ao longo de suas 300 páginas e

dezenove reedições até 1669, pode-se ver claramente a obsessão dos dois inquisidores

pelos mistérios da sexualidade feminina. A obra é persuasiva e insuflou os ânimos dos

leitores com descrições detalhadas do modus operandi das bruxas contados por

testemunhas ‘fidedignas’ e de seu líder, o próprioDiabo. O livro servia como um manual de

instruções para o inquisidor: ensinava-lhe como deter uma bruxa, que perguntas fazer-lhe

e como proceder na tortura - tudo desprovido da menor réstia de sentimento; os

inquisidores eram impermeáveis aos apelos, gritos, prantos e súplicas de clemência por

parte de suas vítimas. Indubitavelmente, as primeiras ondas persecutórias devem sua

existência a esta obra, cujo sucesso editorial superou sua antecessora, o Formicarius.

4.2 A Agonia das Bruxas do Medievo

Para levar adiante a guerra contra o Demônio, o apoio popular fez-se

imprescindível. Para isso, necessitou-se espalhar o terror e animar os vizinhos a delatar

aquelas que lhes parecessem suspeitas. Bastava com um gesto ou uma aproximação maior

das observadas a crianças ou idosos e que estes depois adoecessem e/ou morressem, que

as suspeitas fossem muito bonitas ou muito feias, que desprendessem um odor indefinível,

que fossem parteiras ou conselheiras sentimentais, que fossem à igreja muito

frequentemente ou que não a frequentassem de forma alguma...

Em outras palavras, tudo estava muito bem articulado para eliminar estas mulheres

que incomodavam pelo simples fato de serem mulheres e de agirem como mulheres que

eram. A figura da bruxa sedimentou crenças ancestrais que associavam a mulher à

Pandora, à Eva e à serpente maligna. Primeiramente, conforme Bechtel (2001),

perseguiram-se as feias, as viúvas e as velhas; a seguir, as belas e as jovens; por fim,

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passaram a ser executadas sem distinção porque o que incomodava mesmo era o fato de

haverem nascido mulheres, prova cabal de seu crime diabólico.

Segundo este teórico, o martírio de uma bruxa começava com um rumor, uma

denúncia muitas vezes anônima e despeitada, que levava a comunidade a dar meia volta e

fazer o sinal da cruz ao cruzar com ela em via pública, desviar-lhe o olhar e não dirigir-lhe a

palavra. Sua total exclusão social era uma questão de tempo. Se algo ocorria na aldeia ou no

bairro, procedia-se à sua prisão surpresa em um dia de festa ou à saída da missa.

Lançavam-se sobre ela com uma rede ou uma cesta, evitando ao máximo o contato com seu

corpo e a levantavam alto, impedindo que seus pés tocassem o solo, que era de onde se

acreditava que provinham seus poderes. Vendavam-lhes os olhos e conduziam-na à prisão.

Ali a despiam completamente, depilavam-lhe o corpo por inteiro, cortavam-lhes as unhas

dos pés e das mãos, vestiam-lhe com uma camisa batizada no domingo com água benta e

colocada de molho com sal. Metiam-lhe na boca a maior quantidade de sal bento que se

pudesse colher com os dedos e depois lhe davam um único gole de água benta e água de

batismo. Enquanto lhe preparavam para a tortura que se avizinhava, sua casa era

devassada na busca de sapos, pós e gorduras fétidas, jarros com ossos de crianças e tudo o

mais que parecesse suspeito e que comprovasse sua culpabilidade.

Faminta, nua, gelada, vendada e atemorizada... A ela não lhe concediam o benefício

da dúvida nem um advogado de defesa. No princípio do interrogatório, o juiz e os carrascos

evitavam empregar a violência física, mas abusavam da psicológica para fazer-lhe

perguntas e confundi-la com suas próprias respostas. Para tanto, os algozes começavam

jogando com a diferença sutil entre a feitiçaria e a bruxaria demoníaca. Qualquer

camponesa daqueles tempos herdava de suas antepassadas as receitas de remédios

caseiros contra as doenças comuns, o que, aos olhos dos inquisidores, era uma prova

irrefutável de seus conhecimentos obscuros. Se algum parente, vizinho ou conhecido por

quem ela não nutrisse muita afeição chegasse a morrer, perguntavam-lhe se ela não teria

alguma participação no sinistro, se não tivesse desejado ocultamente, em algum momento,

que isso viesse a acontecer. Ao admitir que alguma vez pudesse haver desejado a morte ou

desgraça deste, passava-se a outro estágio do interrogatório.

Em se tratando da confissão em si, desconhecemos quando nasceu esta tradição, já

que não há registros de que Jesus tivesse o costume de confessar-se. Decidiu-se no Concílio

de Letrán IV (1215) que a confissão seria uma obrigação anual a partir dos sete anos, de

acordo com Bechtel (2001). Séculos depois, este sacramento foi aplicado exaustivamente

com o intuito maior de se obter ‘a verdade’ por parte das pessoas condenadas por bruxaria.

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A tortura, permitida e praticada como uma ferramenta imprescindível por parte da Igreja,

fazia com que depois de horas e/ ou dias de um sofrimento atroz, uma mulher dorida física

e psicologicamente confessasse que conhecia o Diabo de perto, que havia copulado com ele,

provocado a desgraça de seus vizinhos (dos quais tinha inveja), matado e bebido o sangue

de crianças indefesas e todo tipo de atrocidades, contanto que se lhe fosse apresentada a

mais vã esperança de liberdade. Não se pode considerar como livres as confissões de

mulheres que preferiam confessar e ser executadas a suportar as torturas que as

esperavam se permanecessem em silêncio, já que algumas destas confissões, segundo

Levack (1988), eram seguramente o resultado da mais absoluta demência.

Algumas das torturas mais comuns nas sessões daqueles idos consistiam em fazer

com que o réu tragasse por volta de dezesseis litros de água por via nasal/ oral; que

tomasse banho em ácido fumegante; que tivesse as unhas arrancadas com alicates, os

órgãos genitais violados e as fossas nasais entupidas com cal vivo, além, obviamente, dos

inúmeros e inevitáveis espancamentos, conforme Bechtel (2001). Outras torturas famosas

e amplamente utilizadas foram a pera, a roda, a forca, as botas espanholas, a cadeira das

bruxas e o sepultamento em vida, segundo Mainka (2002). A elas adicionamos outras,

igualmente tétricas e praticadas à exaustão: o pêndulo, o tronco, a mesa de evisceração, a

dama de ferro, o berço de Judas, o garfo, as garras de gato, o garrote, as gaiolas suspensas, a

submersão, o garrote e o empalamento.

5 O SADISMO E A PERVERSÃO DOS TORTURADORES 5.1 As Marcas do Diabo

Bechtel (2001) nos esclarece que, entre um suplício e outro, buscavam-se as

inconfundíveis marcas do Diabo nos corpos das torturadas (verrugas, herpes, manchas,

imperfeições na pele e cicatrizes). De serem estas insensíveis, de não sangrarem ou de

sangrarem pouco, davam vazão a que se pensasse que eram o resultado das mordidas

libidinosas do Diabo em sua primeira cópula com estas mulheres. Os que se dedicavam a

esta faina de buscar provas indeléveis nos corpos desnudos de supostas bruxas eram, em

sua maioria, médicos, cirurgiões e barbeiros (que amiudadas vezes atuavam como médicos

nas comunidades mais necessitadas), mestres de torturas, ademais de um ou outro

praticante mais ou menos interessado economicamente no resultado.

Para tal, cravavam-lhes agulhas em todos os pontos que julgavam apresentar

qualquer anomalia e que pudessem ser interpretados como diabólicos. A vítima, nua e com

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os olhos vendados, tinha que dizer se sentia dor ou não. O pudor feminino era

insistentemente violado por mãos quase sempre inexperientes: a maioria dos carrascos,

sádicos e sexualmente perversos, costumava espetar as agulhas em regiões tão esdrúxulas

quanto à córnea e os seios, ademais do interior da boca, da vulva e do músculo anal de suas

torturadas.

A confissão e a verdade eram secundárias. O sadismo dos torturadores se comprazia

na agonia de suas vítimas, como defende Barstow (1991, p. 195): “La violencia era gratuita;

se mantenía viva a la víctima durante todo el tiempo que fuera posible para que el

torturador experimentara el máximo placer”.

5.2 A Indústria da Morte Primordialmente, as torturas objetivavam a dor; “no pain no gain”. Normalmente,

eram aplicadas de forma gradual, em três níveis distintos. Em um primeiro momento, o

carrasco apresentava os vários instrumentos de tortura e os explicava (territio verbalis);

em seguida, a suspeita era despida e os instrumentos de tortura eram montados, mas ainda

sem aplicá-los (territio realis); por fim, a tortura propriamente dita tinha início.

É comum a ideia da fogueira e da bruxa ardendo nela como sendo uma tortura

vinculada diretamente com a Inquisição e a Caça às Bruxas. No entanto, a cremação

representava um ato extremo e a partir de 1600, este modo de execução caro e trabalhoso

para o carrasco, passou a ser cada vez menos utilizado, segundo Mainka (2002). O horror

que se supõe que estas perseguições suscitavam é apontado assim por Levack (1988, p.

175):

[...] aqueles aldeães e habitantes das cidades, ao tomarem conhecimento de que mais e mais de seus vizinhos e mesmo alguns de seus dirigentes estavam sendo denunciados como bruxas, ficaram aterrorizados – aterrorizados de que seus amigos e vizinhos mais chegados fossem bruxas, aterrorizados de que suas comunidades se tornassem totalmente cativas do poder diabólico, aterrorizados talvez até de que eles próprios pudessem vir a ser falsamente acusados.

Bechtel (2001) expõe que sob tortura, a condenada começava a duvidar de si

mesma. Os torturadores traziam-lhe bruxos e bruxas já tratados (torturados) que juravam

diante dela havê-la visto nos sabás. De palavra em palavra e de dúvida em dúvida, que a

confundiam pelas supostas marcas diabólicas e pelos supostos testemunhos, os

torturadores avançavam até os tormentos finais que lhes arrancaria da ré a prova final.

Assim se desmoronavam todas as referências da acusada e morrer já não doía tanto;

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morrer passava a significar apenas e tão somente o fim dos tormentos e o descanso

merecido depois de tanto sofrimento.

Segundo a normativa, estava proibido repetir a tortura por mais de três vezes com

uma mesma condenada, mas os torturadores passavam ao largo desta regra e os martírios

duravam horas e dias seguidos. Muitas vezes se suspendia a tortura para reiniciá-la horas

mais tarde, intervalo este que os torturadores aproveitavam para comer ou para se distrair

com outros quefazeres, enquanto a torturada permanecia pendurada ou atada aos

instrumentos de silício, à espera dos algozes para a retomada de seus padecimentos.

De acordo com os fanáticos líderes religiosos de então, a tortura não objetivava

matar a torturada, mas fazer-lhe confessar seu(s) delito(s). Na verdade, poucas resistiram

às macabras sessões de tortura, especialmente quando se ameaçava com reiniciá-las.

Bechtel (2001) nos esclarece que, de fato, somente um percentual muito baixo, entre 5 e

6% sobreviveu. Ainda assim, depois dos interrogatórios, as que sobreviveram acabaram

morrendo posteriormente, dado o caótico estado físico e mental em que se encontravam.

Contudo, há registros de pessoas que sobreviveram à tortura sem nada dizer, sem nada

confessar. Sem confissão não podiam ser tachadas de culpadas e assim, recebiam penas

leves. A grande maioria, todavia, era condenada ao cadafalso ou à fogueira, mas antes deste

último passo ocorriam as últimas vexações: diante de um público cúmplice, a bruxa era

despida e açoitada para depois retratar-se publicamente; seus cadáveres ficavam expostos

por um tempo indefinido a fim de edificar os bons cristãos e era terminantemente proibido

enterrá-los em cemitérios paroquiais.

6 RESULTADOS DOS MAIORES GENOCÍDIOS MEDIEVAIS CONTRA O ELEMENTO FEMININO

Supõe-se que aproximadamente 50.000 mulheres europeias desapareceram sob as

mãos implacáveis dos carrascos no tempo em que durou a Inquisição:

Haciendo pasar por brujas conchabadas con el Diablo a unas modestas hechiceras de pueblo, la Iglesia logró que el poder civil llevara a la hoguera a varias decenas de mujeres entre 1450 y 1650. Curiosamente, el 75% de las personas condenadas a muerte por brujería en los períodos álgidos hablaban una lengua de origen germánica. En el período de tiempo supra citado, se encausó a unas 200.000 personas, 100.000 de las cuales fueron citadas en los tribunales y unas 50.000 ejecutadas (BECHTEL, 2001, p. 168).

No referente à Caça de Bruxas, quatro de cada cinco execuções foram de mulheres e

houve mais mortes entre os séculos XV e XVIII que em todas as guerras nas que a Europa

participou até o ano de 1914, de acordo com Cornut-Gentille (1998). A participação

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assassina da Igreja é descrita por Baring & Cashford (2005, p. 597-598) nos seguintes

termos:

La Iglesia, formada por intelectuales, hombres honrados e instruidos, nada hizo para evitar el genocidio; al contrario, mataron en nombre de Dios, en una clara paradoja con la ley mayor. La creencia en que el cuerpo tiene que ser controlado, llevado al sufrimiento por sus deseos y sometido a la mente quedó profundamente enraizada en la psique cristiana.

Os mais cruéis ataques ocorreram em terras católicas e o modus operandi era tão

brutal que em Trier, na Alemanha, por exemplo, entre 1587 e 1593, dois de seus povoados

ficaram somente com uma mulher em cada um. A execução de crianças banalizou-se a tal

ponto que a grande maioria dos processos incluía crianças tanto na qualidade de vítimas

quanto na de acusadores. Este era o sentimento que aquelas mulheres aterrorizadas e

inapelavelmente perseguidas supostamente nutriam, conforme Barstow (1991, p. 190):

En gran parte de la Europa occidental, durante el apogeo de la caza de brujas, cualquier mujer se debió de sentir un animal perseguido. Si descendemos al nivel de la ciudad o de la aldea, el terror que debieron de sentir las mujeres en este periodo es evidente. Las mujeres se encontraron solas ante un ataque que con el tiempo no respetó edades, clases ni posiciones económicas. Con pocas excepciones, sus familias no hablaron en su favor a causa del miedo y, en algunos casos, se volvieron contra ellas. Acusadas por sus vecinos y delatadas por sus amigas sometidas a tormento, normalmente se presentaban ante el tribunal sin ningún apoyo. Enfrentadas a procedimientos legales que no entendían y amenazadas con la tortura, se esforzaban en decir lo que creían que los jueces querían oír. Pero la mayoría no conseguía recuperar la libertad, y el desamparo de las voces que nos transmiten las actas judiciales demuestra que eran conscientes de que no tenían escapatoria.

Depois dos genocídios misóginos que caracterizaram a Idade Média, já no século

XVIII, deu-se início um grande câmbio na condição feminina. A sexualidade emudecida fez

com que as mulheres se tornassem frígidas, uma vez que o orgasmo é considerado um

prazer hedonista – diabólico, portanto. A ambição de buscar seu lugar na sociedade

tampouco era aceita e as mulheres foram ficando cada vez mais confinadas ao âmbito

doméstico e familiar, sob o jugo patriarcal de seus pais, de seus maridos ou de seus filhos. A

milenar sabedoria popular feminina entrou na clandestinidade e foi fagocitada pelos

médicos. O acesso ao conhecimento lhes foi negado e elas passaram a aceitar esta condição

como natural, transmitindo-a de geração em geração sem maiores questionamentos.

Vendo por este lado, a Inquisição e a Caça às Bruxas foram uma desculpa, uma

estratégia muito bem arquitetada pelas classes dominantes para legitimar sua ascensão ao

poder, passando por cima daquelas que podiam vir a ser um empecilho.

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No entanto,contrariando o que comumente fez-se crer, a bruxa ancestral nunca foi

sumariamente erradicada como se pretendia. Ela seguiu existindo transvestida de outros

nomes: curandeira, rezadeira, benzedeira e parteira são apenas alguns deles. Estas

mulheres, que aplacaram enfermidades, mitigaram a morte e trouxeram vida ao seu

entorno, ainda podem ser encontradas nas comunidades menos providas de recursos

materiais. Já não são tantas, já não se lhes dá a mesma importância por parte de seus

clientes como outrora, mas seguem operando como suas antigas mestras. A bruxa não

morreu. E por que deveria?

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, fazemos nossas as palavras de Cardini (1996, p. 15):

[...] As bruxas são, antes de mais nada, consolatrices afflictorum, vendedoras de sonhos e de ilusões de potência, de triunfo, de vitória, de vingança. E são bodes expiatórios dos maus pensamentos de uma sociedade cheia de desejos e de medo, de vícios e de impotência. A bruxaria triunfa quando não há esperança de outra redenção, nem social nem cultural. Eis porque a “caça às bruxas” foi uma grande tragédia. Não apenas para as bruxas.

Por que a bruxa tem que necessariamente morrer no final da história? Por que seu

sacrifício tem que justificar a legitimação da supremacia do Bem contra o Mal, se elas se

dedicaram e se dedicam mais àquele que a este?

Urge que corrijamos, por fim, esta injustiça social. Muito devemos a elas no que

tange à cultura popular, ao saber pré-cristão que tantas vidas salvou e que tanto conforto

trouxe a quem as buscou e busca com o fim de aplacar seus temores e curar suas dores. O

sacrifício daquelasmilhares demulheres levou consigo muito da espontaneidade feminina

que ainda está em seu processo de recuperação. Com tanta exposição ao discurso

falocêntrico cristão, que há vinte séculos nos molda, tolhe e controla, tornamo-nos imunes

ao seu grito de resgate. Felizmente, com o advento do movimento feminista, veio também

uma lenta reconstrução da imagem destas mulheres que ousaram descobrir uma voz não

autorizada. Segundo Paradiso (2011, p. 200): “não esquecê-las é, acima de tudo, fazer

serem vistas como realmente são – mulheres”. E elas não foram esquecidas; seguem com

outra roupagem: o das atuais curandeiras que ainda nos cercam.

Neste trabalho, procuramos enfatizar a bruxa sob uma ótica mais humana e até

certo ponto romântica, respeitando sempre sua trajetória. As bruxas e tudo o que a elas

concerne são um universo fascinante e surpreendente, fonte de inspiração para o

pesquisador desprovido de preconceito e que almeja beber das mais genuínas fontes de

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nossa cultura ancestral. O trabalho se justifica, portanto, por ser um instrumento que

objetiva que se faça justiça com quem não teve meios para se defender de um destino

imposto à sua revelia e que lhes ceifou a vida, a honra e quase que absolutamente a

posteridade.

REFERÊNCIAS

BARSTOW, A. L. La caza de brujas: historia de um holocausto. Girona: Tikal Ediciones, 1991.

CARDINI, F. Magia e bruxaria na Idade Média e no Renascimento. Psicologia USP, v.7, n.1/2, p. 9-16, 1996.

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LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise.4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MAINKA, P. J. A bruxaria nos tempos modernos – sintoma de crise na transição para a modernidade. História: Questões e Debates, n. 37. p. 111-142. 2002.

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NUNES, S. A. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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PARADISO, S. R. Mulher, bruxas e a literatura inglesa: um caldeirão de contra discurso. Revista Cesumar, v.16, n. 1, p.189-202, 2011.

PRATES, C. J. Magias e pedagogias culturais ensinando como jovens meninas devem ser para os meninos. Fazendo Gênero 8 – Corpo,Violência e Poder,agosto, p. 1-7, 2008.

ZORDAN, P. B. M. B. G. Bruxas: figuras de poder. Revista Estudos Feministas, v.13, n. 2, p. 331-341, 2005.

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GT 2: EDIÇÃO E CRÍTICA TEXTUAL ASPECTOS CODICOLÓGICOS E PALEOGRÁFICOSDOS AUTOS DE ARREMATAÇÃO DA VILA DE SOBRAL Adriana Marly Sampaio Josino Universidade Estadual do Ceará Expedito Eloísio Ximenes

Universidade Estadual do Ceará

Resumo Os autos de arrematação de que nos ocupamos neste trabalho são documentos que registram práticas culturais da sociedade colonial, especificamente da vila de Sobral, situada ao Norte da antiga capitania do Ceará. Os autos são documentos constituídos a partir de leilões, em praça pública, promovidos pela presidência da câmera da vila com o intuito de arrecadar dinheiro para os cofres da coroa com a venda de objetos diversificados deixados por ausentes, ou seja, por pessoas já falecidas. Os textos são fontes genuínas que testemunham, além das práticas culturais, os usos da língua portuguesa no início do século XIX e estão reunidos no códice Arrematações de Auzentes da Villa de Sobral, códice pertencente ao acervo do Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Propomo-nos a fazer a análise codicológica, com ênfase no estado de conservação de seus aspectos físicos: encadernação do livro, quantidade de fólios, suas dimensões e os danos sofridos devido à ação do tempo. Os autos de arrematação estão sendo editados conforme o modelo semidiplomático.Com isso, esperamos contribuir para o resgate e a preservação da memória documental da sociedade cearense e, principalmente, para os estudos de crítica textual no Estado do Ceará. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na história da humanidade, a invenção da escrita foi um divisor de águas. Até então,

as informações eram transmitidas oralmente. Assim sendo, muito se perdia. Devido ao seu

caráter permanente, a escrita deu consistência aos processos sociais por meio dos

registros. Leis, contratos, certidões, cadastros: tudo parte do registro escrito. Para Queiroz

(2006): “O surgimento da escrita e sua difusão estão relacionados, essencialmente, à

evolução da memória”. É possível compreender a história através da análise dos registros

escritos. Ao se analisarem os documentos que circularam em um momento histórico, pode-

se mapear a forma como se organizava a sociedade, identificar as relações de poder, os

procedimentos administrativos e o comportamento da comunidade discursiva.

Existe, no entanto, um paradoxo: apesar de a memória documental ser valiosíssima,

seu principal suporte, o papel, é deveras frágil. Se arquivado de forma incorreta, o risco de

perda é grande. “Vários fatores podem acelerar a destruição do papel. Um ambiente

inadequado, por exemplo, é prejudicial, e também a umidade, a péssima ventilação, a

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atmosfera seca, a alta temperatura, a contaminação ou o excesso de luz.” (BAEZ, 2006 apud

QUEIROZ, 2006). Basta uma faísca, e se vão embora anos de registro histórico.

Buscar formas de preservar, e às vezes até de resgatar, é a alternativa que se nos

apresenta. Uma das maneiras de se resguardarem os documentos, respeitando ao máximo

sua originalidade, é fazer sua edição o mais imparcialmente possível, evitando

interferências quaisquer do editor, fazer sua edição semidiplomática: “... este (o editor)

realizando apenas: correção de erros por conjectura, desdobramento das abreviaturas,

elaboração de notas explicativas, atualização ortográfica...” (QUEIROZ, 2006).

O objetivo deste artigo é refletir sobre a necessidade de se preservarem os textos e

estudá-los, fazendo-se sua descrição e interpretação dos dados.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Considerando que os textos documentam a história da humanidade, faz-se indispensável

sua preservação e estudo. Para Lausberg (1963), a principal tarefa do filólogo, pesquisador que

possui o necessário letramento, é salvar os textos da destruição material. Quando se fala em

destruição material, quer-se ir além da mera preservação física. Pretende-se também a

preservação de sua carga de informações: sua essência, o teor das informações que dele

decorrem – a sociedade em que circulavam, quem os redigia, a quem se destinavam. “Interessa-

nos (aos linguistas) saber se há traços a marcar tempo, lugar e nível sociocultural. Interessa-nos

supor se haveria traços marcando a filosofia geral de seu tempo” (BARBOSA, 2002).

Uma das finalidades da escrita é formalizar os processos sociais, garantindo-lhes

validade e legitimidade. Essa formalização é uma espécie de espelho social. Esse aspecto

dos atos escritos é o objeto de estudo da Diplomática, ciência que se ocupa da “estrutura

formal dos atos escritos de origem governamental e/ou notarial” (BELLOTO, 2002).

Importante aliada da Paleografia, da Linguística e da História, a Diplomática estuda os

dados que asseguram a legitimidade dos documentos. Segundo Belloto (2002), “o

documento diplomático é o registro legitimado do ato administrativo ou jurídico,

consequência, por sua vez, do fato administrativo ou jurídico”.

A Paleografia, por sua vez, “tem como fim o estudo dos caracteres gráficos antigos”

(SPAGGIARI; PERUGI, 2004, apud ANDRADE), com vistas a possíveis alterações que os grafemas

tenham sofrido ao longo do tempo, às mudanças ortográficas, aos sinais de pontuação, aos

arabescos. Essa ciência trabalha as estratégias que devem ser usadas para a correta leitura de

documentos antigos, contemplando também a origem e a evolução dos grafemas, em diferentes

épocas e contextos. Possui caráter teórico e pragmático. Este, segundo Cambraia (2005), capacita

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os leitores modernos à verificação da autenticidade de um documento, analisando a sua escrita;

aquele avalia a constituição sociohistórica dos sistemas de escrita.

Codicologia e Paleografia caminham juntas. Enquanto a Paleografia se debruça

sobre o documento e as suas singularidades, a Codicologia expande os estudos aos

documentos encadernados, em formato de livro, também denominado códice (ou códex).

Os códices substituíram os rolos de papiro ou pergaminho, devido à escassez do papel e à

comodidade de arquivamento. “A Idade Média consagra a substituição do rolo pelo códex,

da mesma forma por que substitui o papiro pelo pergaminho [...]” (MARTINS, 2002) A

Codicologia vai consagrar o estudo dos documentos em seus aspectos físicos.

3 CONTEXTO HISTÓRICO

O códice analisado data do início do século XIX (1817-1823). A vila de Sobral, situada às

margens do rio Acaraú, projetou-se economicamente pela expansão algodoeira. A capitania do

Ceará Grande partia em busca do comércio no mercado europeu. Havia, por parte da Coroa, o

controle de todos os processos, visando à obtenção de lucro e controle de gastos.

Dadas a complexidade de efetivação de núcleos de povoamento e a necessidade de

se estabelecer uma comunicação entre o novo território e o Reino, tornou-se

imprescindível a centralização da administração das capitanias: foi instituído um Governo

Geral. A Coroa tomou uma série de medidas restritivas aos donatários e desenhou a

estrutura da Justiça. “Anulando as principais mercês feitas aos donatários, a coroa nomeou

um seu representante, que fizesse guardar as leis, que centralizasse ao mesmo tempo o

poder militar em toda a capitania”. (GARCIA, 1956).

A vastidão territorial, o custo elevado para se chegar às capitanias e nelas conseguir

manter-se eram fatores que acabariam por arrematar a sorte lusitana nos primeiros anos

de posse do território americano. Os episódios de resistência dos habitantes indígenas

foram uma forte influência para a adoção das medidas portuguesas, uma vez que as

tentativas de permanência nos pequenos povoados eram cada vez mais frágeis. “Os povos

indígenas que eram donos da terra são transformados em invasores, na perspectiva do

dominicano” (PINHEIRO, 2002).

A instituição do Governo Geral, à primeira vista, buscava o mesmo objetivo

inicialmente utilizado para fixar os colonos à terra: a catequização indígena. No entanto,

aqueles que resistissem à reclusão em aldeamentos e, portanto, considerados rebeldes, não

obstante a proibição de maus tratos, eram utilizados como força compulsória de trabalho.

“O que houve foi uma guerra em que os povos indígenas que resistiram à catequese e em

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decorrência disso à obediência à coroa portuguesa passaram a ser tratados como

inimigos”. (PINHEIRO, 2002).

A centralização buscou, inicialmente, estruturar a vida administrativa e jurídica nos

moldes lusitanos, objetivando a eficiência na gestão colonial. “As leis gerais do reino, salvo os

casos especificados, eram consideradas vigentes no Brasil”. (GARCIA, 1956). Juntamente com o

Governador Geral chegaram funcionários do Reino encarregados de, ao mesmo tempo,

satisfazer aos propósitos portugueses quanto à efetivação dos negócios coloniais e manter a

organização dos núcleos povoados, não deixando de empreender incursões território adentro.

Naturalmente, os povoados acabaram por necessitar de uma estrutura organizada, uma

vez que as relações entre os indivíduos se tornaram mais complexas, dado o sensível

incremento populacional e institucional. O surgimento de novas vilas e povoados demandaram

a presença de representantes da Justiça e de outras autoridades administrativas, assim como

religiosas, para atenderem às urgências de cada lugar. Ouvidores, juízes (ordinários, de fora à

parte, territoriais, de vintena, de órfãos), escrivães, tabeliães, alcaides, meirinhos, inquiridores,

quadrilheiros e almotacés foram designados para administrar a colônia.

4 O CÓDICE

Livro costurado e coberto por capa dura, o códice Arrematações de Auzentes da Villa

de Sobral pertence ao acervo do Arquivo Público do Estado do Ceará, onde fica arquivado

no fundo das Capitanias, Caixa 2, sendo o Livro 106.

Figura 1 – Códice Arrematações de Auzentes da Villa de Sobral (25-Fevereiro-1817)

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Contém documentos manuscritos produzidos na Vila de Sobral, Capitania do Ceará

Grande, no período de 1817 a 1823. Trata-se da coletânea Arrematações de Auzentes da

Villa de Sobral. Em seus 102 fólios – 101 fólios manuscritos em ambas as faces (rosto e

verso) e 1 manuscrito apenas em uma das faces – traz aproximadamente 40 autos de

arrematação, distribuídos da seguinte maneira:

1817 12 autos

1818 4 autos

1819 6 autos

1820 5 autos

1821 3 autos

1822 3 autos

1823 7 autos

Quadro 1 – Distribuição dos autosao longo do códice

Os manuscritos possuem quase duzentos anos e, por isso mesmo, já se encontram

bastante marcados pela ação do tempo. Os fólios são muito amarelados, alguns possuem

manchas que, às vezes, dificultam a leitura. Cerca de dez fólios se encontram deveras

maltratados, extremamente manchados devido à ação dos elementos oxidantes presentes

na tinta que fora utilizada. Entre os referidos fólios, foi inserida uma folha de papel ofício, a

fim de tentar minimizar os efeitos dessa oxidação. Possuem nítida fragilidade. Há aqueles

que têm partes quebradas. Não se pode dizer que estão rasgados, porque, com o

ressecamento, o papel se torna realmente quebradiço. Os pedaços dos fólios quebrados

encontram-se dentro do códice. Em alguns casos, principalmente nos fólios mais antigos, a

tinta provocou o ressecamento do papel e este se encontra cortado na haste de algumas

letras. Alguns fólios possuem furos que têm dimensão entre 3 e 5 mm, que os atravessam.

Com cerca de 340 mm por 220 mm, os fólios são manuscritos em Língua

Portuguesa. A quantidade de linhas varia discretamente. À exceção do primeiro e do último

fólio, este com 4 linhas e aquele com 6 linhas, os fólios possuem entre 34 e 36 linhas.

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Figura 2 – Primeiro fólio

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Figura 3 – Último fólio

5 ALGUNS ASPECTOS PALEOGRÁFICOS 5.1 Os grafemas

Ao observar as diversas caligrafias presentes no códice analisado, infere-se que os

manuscritos foram produzidos por diferentes mãos. Os traços da escrita, no entanto, são

bastante semelhantes, à exceção do último auto. Há ocorrência de excesso de tinta, o que,

por vezes, dificulta a legibilidade.

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Figura 4 – Primeiro auto

Figura 5 – Último auto

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A escrita utilizada, predominantemente, foi a itálica, com letra cursiva, bastante

cuidadosa, inclinada para a direita, apresentando traçado regular. Os grafemas são

corridos, ligados uns aos outros. As pausas entre as palavras, nem sempre respeitadas. Às

vezes, ocorrem rasuras.

A dimensão dos grafemas oscila entre 8 e 12 mm, no caso das maiúsculas, tendo as

minúsculas entre 2 e 4 mm. Os tipos de letras são muito semelhantes aos usados

atualmente, conforme procuramos mostrar a seguir:

a

b

c

d

e

f

g

h

i

J

l

m

n

o

p

q

r

s

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t

u

v

x

z

Quadro 2 – Grafemas da Língua Portuguesa

Há ocorrências de letra ramista, cuja denominação se deve a uma homenagem ao

humanista francês Petrus Ramus, que as propôs referindo-se ao fato de “os escribas da

Idade Média, tanto quanto os latinos, não distinguirem I e J, U e V” (HIGOUNET, 2003 apud

ANDRADE).

Jozé

Quadro 3 – Exemplo de letra ramista

5.2 A ortografia

Predomina a grafia pseudoetimológica que, sob as luzes do Renascimento, suplantou

a escrita fonética, buscando aproximar português e latim. “Com o Renascimento, a

admiração que já existia pelo latim redobrou, subjugando os espíritos de forma tal, que a

sua ortografia tornou-se o modelo da nossa [...]”. (NUNES, 1989 apud XIMENES). É o que

ocorre em:

Villa, pella, anno, commigo,

estillo, ella, nella, pello.

Conservação insonora de grupos de

consoantes.

Christo. Conservação do diagrama grego ch.

Quadro 4– Exemplos de escrita pseudoetimológica

Apesar dessa tendência à aproximação à grafia clássica, ainda se observam

ocorrências da escrita fonética. Observem-se algumas ocorrências do fonema /z/ em:

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fazer

Joze

Meza

Quadro 5 – Ocorrências do fonema /z/

O fonema /s/ e o ditongo nasal /ão/ são representados de diferentes maneiras:

Aremataçaỏ

Sinco

Nassimento

Pregaỏ

Escrivam

Quadro 6 – Representações do fonema /s/

5.3 As abreviaturas

Muito presentes nos manuscritos, as abreviaturas ocorriam por hábito ou

convenção – no protocolo final, por exemplo; e para dar rapidez à leitura, visto que a

estrutura textual era bastante previsível; além do alto custo do papel à época. Ao se

proceder à edição semidiplomática dos documentos, tratou-se de desenvolver as

abreviaturas, para facilitar-lhes a leitura. Algumas das abreviaturas encontradas foram

desenvolvidas, usando caracteres em itálico/negrito, para distinguir as supressões:

Portr.o Porteiro

p.a para

r. reis

Quadro 7 – Exemplos de abreviaturas

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A memória documental é parte importante da história da humanidade. A leitura dos

documentos que desenham a história de um povo propicia o contato com um contexto

sociocultural que o conduziu ao contexto em que se encontra. Ao filólogo cabe não permitir

a total extinção dos textos produzidos em épocas pretéritas, por meio de sua edição e

divulgação para a leitura nas novas esferas sociais.

Apesar do esforço do Arquivo Público do Estado do Ceará em proteger o patrimônio

que está sob sua guarda, pôde-se verificar, por meio da observação criteriosa do códice

Arrematações de Auzentes da Villa de Sobral (1817), que a ação do tempo é implacável,

destruindo inclusive o que há de mais valioso: a memória de uma nação.

Lançando um olhar comprometido com a fiel descrição dos documentos e isento de

qualquer juízo de valor, foi-lhes feita breve análise paleográfica. A análise verificou que os

grafemas utilizados há duzentos anos eram em muito semelhantes aos utilizados

hodiernamente. Verificou também que se utilizavam diferentes grafemas para a

representação de um mesmo fonema.

Os documentos analisados neste trabalho têm sua importância histórica, pois

atestam um procedimento administrativo adotado no período colonial brasileiro. Suas

características linguísticas representam etapas por que passou a Língua Portuguesa antes

de chegar ao sistema que se utiliza modernamente, o que foi possível observar através das

edições dos documentos, bem como da análise paleográfica.

Existem milhares e milhares de documentos que estão à espera do olhar da Ciência,

intermediado pelo cientista da linguagem. Um olhar que preserve as suas características.

Muitas descobertas a fazer, muitas searas a desbravar.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Elias Alves de. Aspectos paleográficos em manuscritos dos séculos XVIII e XIX. Disponível: <http://dlcv.fflch.usp.br/sites/dlcv.fflch.usp.br/files/Andrade_0.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2013.

BARBOSA, Afrânio Gonçalves. O contexto dos textos coloniais. In: ALKMIM, Tânia Maria (Org.). Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas, 2002.

BELLOTO, Heloísa L. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil: 1500-1810. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1956.

LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1963.

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MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. São Paulo: Ática, 2002.

PINHEIRO, Francisco José. Mundos em confronto: povos nativos e europeus na disputa pelo território. In: SOUZA, Simone de (Org.). Uma nova história do Ceará. Ceará: Edições Demócrito Rocha, 2002.

QUEIROZ, Rita de Cássia R. (Org.). Para que editar: a filologia a serviço da preservação da memória baiana. In: Diferentes perspectivas dos estudos filológicos. Bahia: Quarteto Editora, 2006.

XIMENES, Expedito Eloísio. Estudo filológico e linguístico das unidades fraseológicas da linguagem jurídico-criminal da capitania do ceará nos séculos XVIII e XIX. Tese (Doutorado em Linguística), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009.

______. Relação da missão da Serra da Ibiapaba: estudos de aspectos ortográficos. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/praetece/relao-da-misso-da-serra-da-ibiapaba>. Acesso em: 22 maio 2013.

OBRA COMPLETA (CONTOS) DE MOREIRA CAMPOS – EDIÇÃO CRÍTICA

Elisabete Sampaio Alencar Lima Universidade Federal da Bahia Maria Neuma Barreto Cavalcante Universidade Federal do Ceará Resumo A realização da 2.ed. da Obra Completa (contos) do escritor cearense José Maria Moreira Campos teve como base o relatório da Comissão Machado de Assis(1958), que reuniu filólogos nacionais, sob a presidência de Austregésilo de Athayde, para estabelecer critérios para organização de edições críticas no Brasil. Os dois volumes de Obras completas, reúnem contos publicados por Moreira Campos entre 1949 e 1993. Em média, 70% dos contos vieram a lume em várias coletâneas e algumas delas reeditadas a técnico vezes. Como texto-base, utilizamos as últimas edições em vida do autor. Quando necessário, recorremos aos manuscritos constantes do Acervo do Escritor Cearense (AEC-UFC). Esse Acervo foi criado em 2007, com ao ficialização da doação à Universidade Federal do Ceará dos arquivos pessoais dos escritores Moreira Campos e NatérciaCampos e passou a integrar o patrimônio da Biblioteca do Centro de Humanidades. Tornou-se viável a partir daí a organização de edições críticas, genéticas, comentadas, anotadas, além de abrir perspectiva para outros tipos de pesquisa. A 2.ed. de Obra Completa (contos) – revisada, ampliada e anotada, aquala crescentamos uma introdução filológica e bibliografia atualizada, conservando os textos introdutórios da1.ed. – beneficiou-se da documentação constante nesse Acervo. Com este trabalho procuramos apresentar como ocorreu o processo de elaboração da 2. ed. da Obra Completa (contos) de Moreira Campos. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A elaboração de uma edição crítica de Obra Completa (contos) de Moreira Campos

surgiu do interesse do público manifesto no esgotamento da 1. edição, e a doação, por sua

família, em sistema de comodato, do Arquivo Pessoal de Moreira Campos, à Universidade

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Federal do Ceará, em outubro de 2007, conservado no Acervo do Escritor Cearense(AEC-

UFC).

O AEC tem como objetivo central a aquisição, organização e preservação da

memória de estudiosos, criadores e pesquisadores brasileiros e, em especial nordestinos,

voltados para estudos relacionados com a nossa cultura, nota da mente escritores –

romancistas, poetas, críticos, historiadores, ensaístas – que tenham conservado seus

manuscritos, correspondência, obras publicadas, em muitos casos textos preparados para

reedições, coleções particulares de livros frequentemente enriquecidos por anotações.

Resulta afinal em um lugar de memória que exerce a função de biblioteca, Arquivo Pessoal

e Museu. Necessita, portanto do auxílio de técnicos desses três equipamentos culturais.

Como os demais arquivos literários até então em funcionamento no país, sejam públicos ou

privados, e aqui citamos como exemplo somente aqueles arquivos públicos ligados a

universidades, tais como o IEB/USP, o AEM/UFMG, o AES/PUCRS e o AEC/UFC, que se

constituem de documentos de extrema importância para reconstituir-se o processo de

criação de uma obra ou para delinear-se a formação de uma personalidade.

A meta final do Acervo será colocar a documentação organizada e indexada, à

disposição de estudiosos, professores e estudantes das áreas de literatura, história,

sociologia, comunicação, artes cênicas, dentre outras, que encontrarão nele uma rica fonte

de pesquisa para desenvolvimento demonografias, dissertações, teses, ensaios, biografias,

estudos sobre a vida cultural da cidade etc.

O AEC conta atualmente com quatro fundos de arquivos pessoais: de José Maria

Moreira Campos, Natércia Campos, Antonio Girão Barroso e Gilmar de Carvalho. O arquivo

pessoal de Moreira Campos foi o início desse projeto de reunir-se em um só local as fontes

primárias para estudos e pesquisas permanentes e de longa duração. Foi criado por

iniciativa da Profª Drª Neuma Cavalcante ao escolher como objeto de pesquisa, para

concorrer ao cargo de professora visitante da Universidade Federal do Ceará (UFC), a

organização do Arquivo Pessoal de Moreira Campos, que reúne documentos relativos à

vida e à obra do escritor. Seu projeto O Arquivo Pessoal de José Maria Moreira Campos:

memória de uma vida criativa visava organizar e indexar os documentos pessoais do

titular. Propunha-se mostrar as possibilidades de pesquisa que tais documentos oferecem e

a necessidade de se incentivar apreservação de acervos particulares. O acesso ao espólio do

escritor possibilitou a realização de comunicações apresentadas em congressos e

seminários nacionais e internacionais, de quatro dissertações de mestrado, A Casa:

arquitetura do texto – uma investigação sobre as origens do romance de Natércia Campos,

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de Elisabete S. Alencar; A gestação de Dizem que os cães vêem coisas: o transitar dos

manuscritos, de Terezinha A. Melo; Conversa atrás da porta: Moreira Campos cronista, de

Isabel G. Lima e O sertão de papel de Natércia Campos: memória das Trindades, de

Margarida Timbó, a publicação em livro da colaboração do escritor no Jornal O Povo, de

Fortaleza, sob o título Porta de Academia, lançado no dia 20 de agosto do corrente ano, na

Academia Cearense de Letras; a edição genética da coletânea de contos inéditos A gota

delirante [no prelo], sob os auspícios da Secretaria de Culturado Estado e a edição crítica da

2. Edição dos volumes Obras completas (contos) de Moreira Campos que ora apresentamos

neste evento. A leitura da documentação paratextual e dos manuscritos de obras, ajudou-

nos a entender melhoras escolhas do autor e as intervenções editoriais existentes na obra

publicada.

2 VIDA E OBRA DE MOREIRA CAMPOS

Antes de iniciarmos a descrição do trabalho, acreditamos ser válida uma breve

notícia sobre a vida do escritor cearense José Maria Moreira Campos. Filho do português

Francisco José Gonçalves e da brasileira Adélia Moreira Campos, nasceu em 6 de janeiro de

1914, na cidade de Senador Pompeu (interior do Ceará), e passou sua infância em Lavras

da Mangabeira, do mesmo Estado. Em 1930, mudou-se, com os pais, para Fortaleza, e, a

essa época, já havia perdido os dois irmãos e nos anos seguintes, os progenitores. Em1937,

casou-se com Maria José Alcides Campos com quem teve três filhos Natércia, também

escritora, Marisa e Cid.

Foi funcionário público, trabalhando na Marinha Mercante, ingressou na Faculdade

de Direito em 1940, bacharelando-se em 1946. Em 1967, passou a integrar o corpo docente

na Universidade Federal do Ceará (UFC), junto ao Departamento de Literatura. Era

professor titular (catedrático) de Literatura Portuguesa. Para assumir tal cargo, Moreira

Campos achou mais prudente graduar-se em curso específico e ingressou na antiga

Faculdade Católica de Filosofia do Ceará.

Foi membro da Academia Cearense de Letras, da Academia de Língua Portuguesa e

Integrante do Grupo Literário CLÃ, formado por jovens intelectuais, que surgiu no início da

década de 40 e consolidou o Movimento Modernista do Ceará.

Iniciou sua carreira como escritor em 1949, com o livro de contos Vidas Marginais,

(Edições CLÃ). Depois lançou Portas Fechadas, 1957(editora Cruzeiro do Sul, premiado

pelo Instituto Nacional do Rio de Janeiro); As Vozes do Morto, 1963(editora Francisco

Alves); O Puxador de Terço, 1969(editora José Olympio); Contos escolhidos, 1971, 1974,

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1978 e em 1984(pelas editoras Imprensa Universitária, Antares/INL, Rio de Janeiro e a

última pela Ed. UFC, Fortaleza). Em 1978, foi lançado Contos, pela Imprensa Universitária, e

em 1981 10 Contos Escolhidos(Brasília, ed. Horizonte), ambos uma seleção de contos já

publicados. Ainda em 1978 foi lançado Os Doze Parafusos, com contos inéditos e em 1976,

seu único livro de poesia, Momentos (Imprensa Universitária). A Grande Mosca no Copo de

Leite, 1985(Nova Fronteira) e o último, publicado em vida, Dizem que os cães vêem coisas,

com duas edições 1987(UFC) e 1993(Maltese) com contos já publicados e um inédito.

Mesmo sendo contista por excelência, Moreira Campos colaborou no jornal OPovo,

entre os anos de 1987 e 1994, no caderno Fame, com a coluna Porta de Academia em que

escrevia crônicas, notas, comentários.

Moreira Campos é um dos mais conhecidos escritores cearenses e teve sua obra

traduzida para diversos idiomas, dentre eles o inglês, o hebraico e o alemão, pelo seu

destaque nacional e internacional acreditamos ser necessária a elaboração de uma edição

crítica que contemple todos os seus contos e que traga novamente a público a sua

primorosa escrita. Para Raquel de Queiroz, que prefacia Dizem que os cães vêem

coisas(1987): “Com sua prosa perfeita, bela, que não imita ninguém, Moreira Campos não

fez escola; é que não pode ser imitado na singularidade da sua estética. Não sei de nenhum

prosador vivo, na nossa língua, que o iguale ou mesmo o imite”.

3 O TRABALHO DO EDITOR

A escolha de elaborar uma edição crítica deve-se ao fato de termos textos de

tradição plural, ou seja, os textos apresentam-se diferentes a cada nova edição. Para tanto,

a prática filológica, através de sua metodologia bem definida(recensio, collatio, emendatio,

stemmacodicum e constitutivo textos), é utilizada com afinalidade de escolher um texto-

base(copy-text), além do texto-base são registradas, em notas de rodapé, asvariações

encontradas. Nas palavras de Rosa Borges e Arivaldo Sacramento(2012,p.28) sobre a

edição crítica:

Para sua realização, cumprem-se todas as etapas do método filológico: recensio, collatio, emendatio, stemmacodicum, constitutivo textos. O trabalhos e completa com a apresentação última de um texto, único, com determinadas características gráficas e tipográficas, e a organização de um aparato de variantes, alinhado à esquerda ou no rodapé da página, o espaço que além de mostrar as variantes que circularam entre o público e o leitor, também possibilita ao leitor conhecer o processo de decisão do editor, envolvendo-o no processo crítico, ao que se podem acrescentar, em um segundo aparato, anotações de caráter histórico, cultural e linguístico que considere o editor.

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A dificuldade de estabelecer o texto de autores modernos não é a mesma

encontrada na época medieval, pois não há mais o trabalho manual do copista e a

autenticidade do texto pode facilmente ser comprovada, porém esta dificuldade reside no

fato do editor precisar ser mais flexível para trabalhar com situações textuais diversas e

com os materiais heterogêneos que compõem a documentação paratextual.

Nas palavras de Antônio Houaiss (1983, p.270):

O estabelecimento de textos críticos de autores modernos, embora encerrando as peculiaridades dos textos medievais, não pode ser considerado fácil ou de secundária importância. Aliás, há, é óbvio, uma gradação diferencial segundo a cronologia: assim, um texto crítico de um Francisco de Sá de Miranda, de um Luís de Camões, no século XVI, de um Antônio Vieira, um Gregório de Matos, no século XVII, de um Tomás Antônio Gonzaga, um Cláudio Manuel da Costa, no século XVIII, de um Casimiro de Abreu, de um Martins Pena, do século XIX, de um Euclides da Cunha, um Lima Barreto, no século XX, não apresenta as mesmas peculiaridades e

as mesmas dificuldades.

O trabalho de edição de um texto está muito além da retirada de gralhas, requer do

editor o conhecimento sobre o estilo do autor, para que as decisões sejam tomadas de

forma consciente e possam dar credibilidade à edição. Conscientes da responsabilidade de

editar os textos de um autor tão representativos da literatura cearense, Moreira Campos,

nos debruçamos sobre sua obra – édita e inédita – para compreendermos melhora

composição de suas narrativas, além disso, lemos a documentação para textual encontrada

em seu arquivo pessoal.

Para a realização da 2a. edição, seguimos a orientação das normas estabelecidas

pela Comissão Machado de Assis para a organização de edições críticas no Brasil. Essa

comissão, instituída em 19 de setembro de 1958, foi presidida por Elmano Cardim (1958) e

por Austregésilo de Athayde (a partir de 1959) e em suas diferentes fases teve 21

membros, reunindo filólogos nacionais de renome tais como: José Renato Santos Pereira,

Antônio Cândido de Melo e Sousa, Augusto Meyer, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,

Barreto Filho, Brito Broca, Ciro dos Anjos, Eugênio Gomes, José Simeão Leal, Lúcia Miguel

Pereira, Marco Aurélio de Moura Matos, Mário Gonçalves de Matos, Francisco Assis Barbosa

e Peregrino Júnior. Tal Comissão foi criada por uma portaria presidencial de Juscelino

Kubitschek para consolidar os textos de Machado de Assis, sendo posteriormente ampliada

para quais que rescritores de língua portuguesa que mereces sem esse reconhecimento. O

motivo de nossa escolha deve-se ao fato de ser a primeira Comissão a tratar de forma,

teórica e prática, a questão da edição crítica no Brasil, além disso, serviu como base para o

desenvolvimento dessa técnica de edição em textos modernos.

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Em média, 70% dos contos de Moreira Campos vieram alume em várias coletâneas e

algumas delas reeditadas até cinco vezes. Seguindo a orientação da Comissão, trabalhamos

com aquelas que foram publicadas em vida do autor, uma vez que estas foram revisadas

por ele, e tomamos como texto-base a última publicada sob suas vistas. Durante o cotejo

das edições, realizado durante mais de um ano, por Elisabete Alencar, Isabel Gouveiae

Neuma Cavalcante, a equipe detectou diferenças significativas na estrutura dos contos e

que não foram consideradas na 1.ed. da Obra Completa (contos). Para respeitar a vontade

do autor e acreditando ser enriquecedor ao público leitor, optamos por revelar essas

diferenças para que o leitor possa acompanhar o processo de escritura dos contos.

Surgiram algumas peculiaridades durante o processo de elaboração dessa edição:

uma delas foi o fato de haver dois contos com o título A família, porém com enredos

diferentes. Decidimos publicar os dois textos, uma vez que na 1.ed. de Obra Completa

(contos) essa diferença não foi considerada e foi escolhido apenas um dos contos. O conto

Portas fechadas, quedava título ao livro em que estava contido, sofreu alterações no enredo

e no título, passando a ser chamado de Raimunda, na coletânea Contos(1978). Na segunda

edição do conto, o autor escolheu retirar os trecho sem que aparecia mais fortemente a

questão das diferenças sociais. Por exemplo: quando vai em busca do soro antiofídico que

poderia salvar a vida de sua irmã, Vicente ao deparar-se com as portas fechadas da casa

senhorial, não teve coragem debater e esperou que o dia amanhecesse para pedir o

remédio. Esse trecho que mostra a atitude servil de Vicente e fixa as relações sociais, ainda

feudais, no meio rural nordestino, foi retirado. Ao seguirmos o critério de considerar a

última edição publicada em vida pelo autor, deveríamos apenas reproduzir no aparato

crítico o trecho eliminado. No entanto, consideram os que seria mais enriquecedor para o

leitor oferecer-lhe a oportunidade de ele próprio fazer o cotejo das duas versões do conto.

4 CRITÉRIOS PARA A 2a. EDIÇÃO

Para organização da 2a. edição de Obra Completa (contos) de Moreira Campos

adotamos os seguintes critérios:

i) São mantidos os textos iniciais da 1a. edição: – Meu pai, Moreira Campos, de

Natércia Campos; Prefácio de Rachel de Queiroz e Moreira Campos e a arte do conto,

de Sânzio de Azevedo.

ii) Os contos são apresentados rigorosamente em ordem cronológica de publicação,

registrando-se no índice o título do conto.

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iii) Na primeira página de cada conto, ao lado do título, constará número que remete

ao rodapé onde se registram o título e o ano do volume em que foi publicado.

iv) Da produção ficcional de Moreira Campos foram considerados tão somente os

contos publicados em vida pelo escritor, nos livros: Vidas marginais, Portas fechadas,

As vozes do morto, O puxador de terço, Os doze parafusos, Contos, 10 contos escolhidos,

A grande mosca no copo de leite, Contos escolhidos e Dizem que os cães veem coisas.

v) Nos casos em que os contos tenham sido objeto de reedição, adota-se como texto-

base a última publicação em vida. Em rodapé, registram-se as variantes – quando

ocorrem – entre as edições anteriores ao texto-base.

vi) As modificações são apresentadas em notas com numeração sequencial, iniciada

a cada texto, registradas no local onde ocorrem. Em rodapé, após o número da nota,

indica-se o ano da publicação, em seguida, invariante – variante – invariante.

vii) Conserva-se a pontuação do texto-base.

viii) Respeita-se as eccionação do texto-base nos seus parágrafos, no espaçamento

entre eles. Em relação ao livro A grande mosca no copo de leite, como não havia

recuo no primeiro parágrafo, inseriu-se o espaço inicial para padronizar.

ix) Foram mantidas as variações formais de vocábulos, tais como mungubeira e

mongubeira e regionalismos, desde que fossem ambas dicionarizadas. A criação de

neologismos não era um traço desta cadona criação ficcional de Moreira Campos,

por isso consideram os intencional a utilização por ele das duas formas.

x) A acentuação gráfica conforma-se ao sistema ortográfico vigente no decreto

6583/08.

xi) Foram uniformizadas as abreviaturas de tratamento com letra minúscula.

xii) A intervenção se restringiu em atuar na emendade falhas evidentes de

composição (erro ou omissão) e de concordância.

xiii) O discurso indireto marcado com negrito, aspas ou itálico foi uniformizado com

a adoção de aspas.

xiv) Moreira Campos escreveu, com o mesmo título, dois contos diferentes quanto

ao tema, estrutura e personagens: A família (O puxador de terço, 1969 e em A grande

mosca no copo de leite, 1985); Mãe e filho (Portas fechadas, 1957 e em A grande

mosca no copo de leite, 1985). Foram publicados, então, nesta edição, os quatro

contos.

xv) O conto Portas fechadas (Porta fechadas, 1957) foi republica do como título

Raimunda em Contos (1978). Correspondendo às alterações ocorridas a dois

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momentos diferentes de escrita do autor, apresente edição contemplaesses dois

momentos, apresentando ambos os textos, com seus respectivos títulos, o que dará

ao leitora oportunidade de acompanhar um exemplo do processo de criação de

Moreira Campos.

xvi) Além de manter os textos introdutórios da 1a. edição, foram incluídos dados

biográficos do escritor, bibliografia do autore de estudos referentes às suas obras,

índice de todos os contos, introdução crítico-filológica.

5 EXCERTO DO TEXTO CRÍTICO

Abaixo segue o excerto do texto crítico do conto A carta e o aparato de variante sem

rodapé para que o leitor possa ver como o texto se apresenta na 2a. edição da Obra

Completa (contos) de Moreira Campos.

A CARTA40

Ele está vindo à Capital duas vezes por mês para prestar contas das obras da

empresa. Traz notícias, o pedido de encomenda ou carta do amigo para a noiva41.

Estudaram juntos no colégio e ocupam agora o mesmo quarto na pensão42. Buzina43, aquele

som de buzina já conhecido e esperado44, em frente ao portão da noiva45 do amigo. Ela dá

toque rápido aos cabelos46 diante do espelho, aligeira os passos, cintura reduzida, pernas

bem-feitas [...].

As noticias que traz do47outro são quase sempre as mesmas. Ótimo de saúde.

Continua a trabalhar muito no banco. O extraordinário aos sábados. Por último, a notícia

boa da promoção que teve48.[...].

[...].De passagem, ajeita na penteadeira, sem necessidade, o vaporizador de água-de-

colônia ou estala os dedos. Anda nervosa. Aborrece-se com a mãe49. A velha tem mania de

mandar pacotinhos de doce para o futuro genro. Porque era aniversário dele, aquele bolo

40 Publicado em Os doze parafusos, 1978 e em Dizem que os cães veem coisas, 2. ed. 1993, que serviu de base para esta edição. 41 1978: noiva (ele e o amigo estudaram juntos 42 1978: pensão). Buzina 43 1978: Buzina (aquele 44 1978: esperado) em 45 1978: noiva. Ela 46 1978: cabelos em frente ao espelho 47 1978: do amigo são 48 1978: teve e do aumento concedido. Ele 49 1978: mãe. Ela tem

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difícil e ridículo, que o50moço teve de ajeitar com muito cuidado no porta-malas, limpando

depois os dedos no lenço de que se evolava o perfume.

Zanga-se:

- Acho isso absurdo51!

A mãe se aborrece também. Entende que não há abuso nenhum, se os dois são

amigos, e o moço sempre tão atencioso:

- Absurda é você52!

[...]

Quando ele chegou em casa e buzinou para que a empregada abrisse o portão,

lembrou-se de que não lhe entregara a carta, nem ela a reclamara. Teve um gesto de

contrariedade: bateu o punho contra a mão. A mãe, que lhe vinha sempre ao encontro,

indagou:

- Alguma preocupação, meu filho?

- Não, não. Nada.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A elaboração da 2a. edição da Obra Completa (contos) de Moreira Campos nos faz

ressaltar a importância da preservação dos arquivos pessoais, nas palavras de António

Braz de Oliveira (2007, p. 376),

[t]odo o trabalho de recolha, preservação e disponibilização dos espólios literários em posse pública ou privada, ganha sentido na medida em que se encontra com diferentes grupos de utilizadores [...] que desejam explorar as múltiplas virtualidades informativas dos “papéis” que neles se conservam.

Para concluir, fazemos nossas as palavras de Carlos Reis chefe da Equipe Eça de

Queiroz que preparou a edição crítica das obras do escritor português. Na nota prefacial ao

livro Alves & Cia., edição de Luiz Fagundes Duarte (1994), ele diz: “[...] parece oportuno

desde já sublinhar que esta edição vem de novo evidenciar a relevância dos espólios

literários, da sua salvaguarda e do seu estudo metódico”, pois o acesso aos papéis de

Moreira Campos, zelosamente guardados por sua esposa Dona Zezé, e hoje sob a guarda da

Universidade Federal do Ceará, nos deu a confiança de estarmos fazendo um trabalho

demorado e árduo, é verdade, mas necessário para se oferecer ao público uma edição o

50 1978: o outro teve 51 1978: absurdo. § A velha se 52 1978: você. § Numa

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mais possível fiel à vontade do autor, mostrando assim o nosso respeito à obra do grande

contista cearense José Maria Moreira Campos.

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A FILOLOGIA DO TEXTO E PARA ALÉM DO TEXTO: CONJECTURAS SOBRE O LABOR FILOLÓGICO SUSCITADAS PELO CÓDICE 132

Rafael Marques Ferreira Barbosa Magalhães Universidade Federal da Bahia Alícia Duhá Lose Universidade Federal da Bahia

Resumo Por muito tempo a Filologia foi conhecida como a Ciência da Erudição; seu caráter inegavelmente interdisciplinar é devido ao seu objeto de estudo, o texto, que exige do cientista um incessante diálogo com ciências ligadas ao texto como Paleografia, Diplomática, Codicologia, mas também com História, Literatura, Linguística, dentre outras. O Códice 132 é um documento manuscrito, cuja escrita remonta ao século XVIII, depositado na Biblioteca Histórica do Mosteiro de São Bento da Bahia por doação de um ex-Oblato; surpreende este volume, estranhamente acondicionado na Biblioteca do Arquivo (onde ficam apenas livros impressos), ao revelar-se como uma biografia do ilustríssimo Marquês de Pombal. A edição desse documento, acompanhada das análises e estudos que já realizados a partir dela, demonstraram ser pertinente que se dedique esta pesquisa não somente a análises e estudos erigidos a partir do documento, exclusivamente, mas também ao conhecimento que se já produziu a partir dele, suscitando, desta forma, a reflexão acerca do íntimo diálogo entre Filologia e História, exigido à adequada interpretação e estabelecimento do texto, propiciando, assim, um texto fidedigno, mas também dispondo de todo o conhecimento e instrumentalização necessários a sua exegese. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A tradição monástica sempre esteve associada ao conhecimento, sendo os monges

copistas principais exemplos dessa proximidade, podendo ser remetida a Cassiodoro, do

mosteiro italiano Vivarium, na Calábria, que prescreveu as primeiras regras de transcrição

e ortografia, por acreditar ser função dos mosteiros a custódia da produção literária da

antiguidade. É, porém, com São Bento, no mosteiro de Monte Cassino, fundado por ele em

480 d.C, que tem início a sistematização da editoração medieval.

Por ser o Mosteiro baiano a continuação milenar da história beneditina, iniciada por São Bento no ano 480 d.C., os monges beneditinos da Bahia são autênticos herdeiros da tradição bibliográfica (produção e conservação), possuindo, em seus arquivos, grandes raridades em livros e manuscritos do Brasil (LOSE, 2009, p.17).

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Vindos para o Brasil em 1582, atendendo aos anseios da comunidade em conviver

com as grandes ordens religiosas da Europa, os nove monges fundadores inauguraram,

junto com o mosteiro baiano, a biblioteca que hoje é conhecida como Biblioteca do

Mosteiro de São Bento da Bahia. Apresenta-se tal biblioteca utilizando as palavras de

Andrade (2010, p.16),

um grande ambiente dividido em 3 setores: o Setor de Referência, onde ficam obras impressas do séc. XIX ao XXI, com boa parte dos títulos já catalogadas na base de dados informatizada e disponíveis para empréstimo e consulta; o Setor de Obras Raras (no Centro de Documentação e Pesquisa do Livro Raro Dr. Norberto Odebrecht), com obras impressas do séc. XVI ao XIX, às quais apenas pesquisadores previamente autorizados têm acesso, e o Arquivo do Mosteiro, onde ficam todas as obras mais preciosas, por sua raridade e antiguidade, todos os textos manuscritos, e os documentos relativos à ordem monástica e a sua sede, também de acesso restrito a pesquisadores autorizados. Tal Arquivo, que até pouco tempo se encontrava em um espaço interno, em ambiente de clausura, agora está sendo deslocado para uma sala especial no interior da Biblioteca, onde foram instalados arquivos deslizantes confeccionados sob medida para este fim.

Em seus mais de 400 anos,

o Mosteiro de São Bento da Bahia, o primeiro das Américas, possui uma Biblioteca com 300 mil volumes, inaugurada juntamente com o Mosteiro em 1582, e conserva um Arquivo com centenas de milhares de documentos raros, de suma importância para a história da Bahia e do Brasil. (LOSE, 2009, p.17).

O Mosteiro de São Bento da Bahia assistiu e foi personagem da história

soteropolitana, baiana e, por conseguinte, do Brasil. Exemplo de tal presença é notável em

diversos momentos como: quando, diante da tomada da cidade de Salvador pelos

holandeses, o mosteiro foi transformado em quartel pelos invasores em 1624; quando do

surto de peste que assolou a capital baiana no século XVIII, o mosteiro tornou-se uma

grande enfermaria para atender a comunidade; na resistência às sanções pombalinas

contra os noviciados das Ordens Religiosas brasileiras; quando o Abade Geral da Bahia

decretou a liberação de todos os escravos da Ordem de São Bento do Brasil em 1867; e

quando, novamente, foram cedidas as instalações do mosteiro para ser formada uma

enfermaria para receber os feridos da guerra de Canudos.

Preservar a memória, portanto, é mais do que uma obrigação para os monges beneditinos, é uma vocação, pois são tantos e tão valiosos os documentos presentes nos arquivos do Mosteiro de São Bento da Bahia que os acervos, juntamente com todo o complexo arquitetônico, mobiliário,

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pinacoteca, coleção de esculturas, etc. foi tombado pelo IPHAN como patrimônio histórico-cultural brasileiro (ANDRADE, 2010, p. 11).

Como se dirá adiante, o texto é o suporte fundamental e a porta de acesso para a

história, é nos textos que está registrada a história do homem (ao menos uma parte dessa

história). O documento que subsidia esta pesquisa, salvaguardado pela supramencionada

instituição beneditina, é prova cabal da indissociabilidade da pesquisa histórica de fontes

documentais e da Filologia que, como já disse Auerbach (1972), "[...] é o conjunto das

atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do Homem e das obras de arte

escritas nessa linguagem". Mas, afinal, o que é Filologia?

2 O QUE É FILOLOGIA?

A Filologia é uma ciência muito antiga, talvez tão antiga quanto à própria escrita,

mas é, também, uma ciência desconhecida e misteriosa para o público não especializado,

especialmente o público leigo. A herança etimológica que o nome empresta ao filólogo,

"amigo do saber", diz respeito à vasta empresa que constituem as diversas atribuições

necessárias ao labor filológico, mobilizando inter e transdisciplinarmente as disciplinas

ligadas ao "amor pela palavra” (CARVALHO, 2011) a fim de acessar a episteme do texto

(LOSE, 2010). Desde a proposta de uma edição para o Códice 132 (cf. MAGALHÃES, 2012),

buscou-se o aparelhamento necessário a sua execução; a edição digital e sua técnica exigem

do pesquisador um cabedal de leitura, rica e heterogênea, suscitado pelo próprio

documento e viabilizado pelas possibilidades da mídia digital. Entender a complexidade

dessa atividade está para além de compreender as muitas definições para ela oferecidas,

principalmente porque o estudo do texto conduz a espaços não restritos ao campo das

palavras.

Notadamente, “[...] não existe história que não se funde sobre textos” (HIGOUNET,

2003, p. 10), é no textus [textum], do Latim tecido, obra formada de várias partes reunidas,

encadeamento, narração, exposição (cf. FARIA, [1962] 2013 p. 995; MONIZ, [2001] 2013, p.

665; BUSSARELLO, 2007, p. 268), que as fibras da cultura, a experiência vivida, as crenças,

o empírico e o científico, o conhecimento e o saber, o artístico e o filosófico, alinham-se,

codificando-se na forma das mais diversas escritas que se já conheceu, encontrando, assim,

a perpetuação da memória e das civilizações em milênios de tradição escrita. Dispondo-se

sobre pedras, madeira, cerâmica, peles de animais, metais, argila, seda, papiro, papel ou

qualquer outro suporte, a escrita

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[...] foi assumindo, paulatinamente, um caráter mais mnemônico, passando, assim, a ser um auxiliar da memória, memória essa conforme aponta Le Goff (1990) responsável pela remissão a um conjunto de funções psíquicas que levam os seres humanos a atualizarem impressões ou informações passadas e também o que ele representa como passado. Assim, o acesso ao passado é possível graças ao uso da linguagem (FERREIRA; MAGALHÃES; LOSE, 2011).

Decifrar a escrita, entender a língua, traduzir e promover a intelecção do conteúdo

dos documentos, enfim, o papel do filólogo é dar voz aos textos e intertextos, tornando-os,

em sua materialidade, testemunhos legítimos da civilização de onde são originários.

Ainda assim, não se respondeu à pergunta norteadora que intitula esta seção.

Remanesce, portanto, a necessidade de um mergulho mais profundo neste terreno fértil e

amplo, cujos milênios de história não fazem perder o vigor, mas sim impelem à aquisição

de novas técnicas, métodos e à formulação de novos entendimentos sobre si e seu fazer.

Apresentam-se, nas linhas que seguem, as reflexões suscitadas por uma das inumeráveis

atividades filológicas que se vêm desenvolvendo na contemporaneidade. Propondo-se o

descortinar dos caminhos que se trilham nesse exercício, pretende-se o entendimento da

descontinuidade das fronteiras entre o saber histórico e o saber filológico, além da

problematização sobre o suporte mais propício ao diálogo entre essas duas formas de

saber.

3 MEMÓRIA DO CÓDICE 13253: HISTÓRIA E DESCRIÇÃO D(N)O DOCUMENTO

A descoberta de um documento manuscrito na Biblioteca do Arquivo do Mosteiro de

São Bento da Bahia, setor onde estão alocadas, apenas, obras impressas causou surpresa.

Desprovido de qualquer elemento indicativo de seu conteúdo, à exceção de uma inscrição

em sua lombada, a saber, "Portugal – Manuscrito do século XVIII", acreditava-se tratar-se o

Códice 132 de um tratado geral sobre a história portuguesa no dito século. Doado por um

ex-Oblato54 ao Mosteiro em 05 de novembro de 2006, fora adquirido pelo mesmo em julho

de 1984 no Centro Antiquário do Alecrim em Lisboa, Portugal, pela quantia de $50.000,00

(cinquenta mil Escudos Portugueses).

O documento é composto por cadernos manuscritos unidos através de cosedura,

totalizando 360 fólios não paginados, escritos em recto e verso em quase sua totalidade,

53 Referência à comunicação O que nos conta o Códice 132 – [história de] portugal: descrição do conteúdo proferida por Aldacelis dos Santos Lima Barbosa, por ocasião do VI Seminário de Estudos Filológicos (VI SEF) e I Congresso Internacional de Estudos Filológicos (ICIEF), na Universidade Federal da Bahia e publicada nos anais dos referidos eventos conjuntos. 54 Leigo que vive segundo as prescrições da Regra de São Bento.

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numa reencadernação em percalina ou algum tipo de material artificial. O papel avergoado,

de boa qualidade, apresenta uma cor amarelada devido à ação do tempo associada à

umidade e o mau uso, estando preservado em sua materialidade; pequenos rasgos na

margem próxima à costura e evidências de ataques por papirófagos são as únicas máculas

encontradas. O processo natural de contração e dilatação da matéria vegetal deixou rugas

em todos os fólios, além de o contato com a umidade ter provocado a oxidação da tinta,

ocorrendo, muitas vezes, sua migração, sendo, também, possível ver a sombra da mancha

escrita do recto no verso e vice-versa.

Escrito por um único scriptor em letra humanística cursiva, apresenta

[...] ductus, peso, inclinação (sempre à direita), módulo, espaço entre linhas e parágrafos, ângulo e forma das letras homogêneos, mantendo-se estáveis em todo o códice; a mancha escrita dispõe-se uniformemente sobre o papel, estabelecendo um padrão de margens rigorosamente respeitadas (MAGALHÃES, 2012, p. 293).

Pode-se destacar, ainda, a rica ocorrência de abreviaturas, bem como de letras

geminadas, a saber,<ll>, <nn>, <pp>, <cc>, <mm>, <tt> (cf. BARBOSA, 2012), por exemplo;

destaque-se não ser o papel pautado, demonstra o scriptor, pela disposição do escrito,

perceptível também na sombra da mancha escrita do recto no verso, uma noção virtual da

existência de linhas, "tendo, todos os fólios, em média, 29 linhas (poucas e raras exceções)

(e vice-versa)” (MAGALHÃES; LOSE, 2012). De forma não sistemática, nota-se a presença

de reclames ao longo do documento.

3.1 Elementos memorialísticos para um perfil do Marquês de Pombal

Surpresa maior terá sido o descortinar de suas páginas, revelador, através de seu

Índex, de uma biografia de Sebastião José de Carvalho e Mello, Conde de Oeiras, o Marquês

de Pombal. Dedicam-se os dois primeiros capítulos do documento a explanar sobre seus

dados natalícios e seu début como cortesão. Nato aos 13 de maio de 1699, sendo seus

progenitores Manoel de Carvalho de Attaydes, Fidalgo da Casa Real, e D. Thereza de

Mendonça, na "Vila de Cernacelhe" (hoje Vila da Ponte, uma freguesia do Conselho de

Sernacelhe), Comarca de Pinhel no distrito da Beira.

No terceiro capítulo, o narrador propõe-se a discorrer sobre "assuntos difíceis e

profundos". Declarando viver na Corte e se ocupar da "especulação e análise" desses,

começa a tecer os fios das relações institucionais e a estabelecer um panorama do

comportamento político da elite administrativa portuguesa, intróito, nestas "memórias",

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para o caos administrativo que encontrou o Reino Português quando do terremoto de 01

de novembro de 1755. Exaltando a primazia das ações do então Secretário de Estado no

sentido de viabilizar a coesão da máquina real a fim de tornar exequíveis as medidas

necessárias ao reerguimento do Reino após a catástrofe, prossegue o documento numa rica

e incessante narração da Portugal do século XVIII. Tomando os feitos administrativos do

Conde de Oeiras como fio condutor para o seu encadeamento, estabelece-se um novo

paradigma acerca da administração pombalina, atribuindo-se-lhe o mérito pelo

restabelecimento administrativo, político e financeiro. Emerge, então, um traço marcante

na escrita desse documento, a elevação das virtudes do biografado.

Ainda na esteira da personalidade e de seus atos, é oferecida uma nova perspectiva

sobre a morte do padre Gabriel Malagrida e a expulsão dos Jesuítas do Reino de Portugal,

essencialmente atribuindo-se-lhes à simonia; o julgamento dos Távora, por sua vez, foi

atribuído à “exclusiva e irreversível vontade real”. Para todos estes acontecimentos foram

apresentados demonstrativos de boa vontade (em tentar mitigar as penas daqueles que

foram acusados e condenados, apesar de sabido não estarem envolvidos na tentativa de

regicídio), virtude e retidão de caráter por parte do Marquês, a este cabendo, apenas, o

papel de executor da ordem real, vindo a tornar-se scape goat na narrativa daqueles que

adquiriram a benesse do poder. A despeito do senso comum ou, antes, de encontro a ele,

esse manuscrito estabelece uma defesa de Sebastião José de Carvalho e Melo ante a

imagem de tirano e vil que se lhe recaíram ao longo dos séculos.

Cláudio de Britto Reis, advogado e historiador, escreveu diversas obras tendo o

Marquês de Pombal como tema, exortando, incisivamente, no mesmo sentido que o Códice

132. Interessa, neste momento, sua obra Perfil do Injustiçado Pombal (1992) em que se

pode identificar a forte influência deste manuscrito, tendo um capítulo inteiro a ele

dedicado. Em sua introdução ao "perfil", Reis (1992) procede à instituição de uma defesa

do estadista, pautando-se numa metodologia autointitulada "histórico-biográfica” (p. 14).

Arguindo sobre as críticas de Camilo Castelo Branco no Perfil do Marquês de Pombal (2013,

[1900], [1882], p. 15), ao qual qualifica como "peça acrimoniosa com linguagem desabrida,

inspirada no ódio e no baixo sentimento de vingança”, o estudioso tece seu texto,

apresentando elementos que, pretende, desqualificariam o autor, expondo sua parcialidade

e corruptibilidade.

É atribuído à "Viradeira", frente polítco-ideológica que se levantou contra o

despotismo esclarecido do Conde de Oeiras, o papel de corruptor ativo. Àqueles foi

imputada a tentativa de denegrir a imagem do político e, assim, demovê-lo do cargo e

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mitigar seus poderes, atribuindo-lhe, ainda, a responsabilidade pelos três acontecimentos

históricos que marcaram a história e a subjetividade portuguesas no que concerne Pombal:

1. condenação e o suplício dos Távoras a 13 de janeiro de 1759; 2. expulsão dos jesuítas de

Portugal a 03 de setembro de 1759; 3. a morte do padre Malagrida a 20 de setembro de

1761. Conclui, o autor, sobre o caso dos Távora, "El Rei D. José I queria vingança” (p. 17);

não poderia ser atribuída a sua majestade tão baixo e vil sentimento, eis que recai sobre o

"injustiçado" essa "culpa".

4 A FILOLOGIA DO TEXTO E PARA ALÉM DO TEXTO: AS MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES SUSCITADAS PELA DIALOGICIDADE

Sabe-se que se situam os arquivos eclesiásticos dentre, se não o forem, as maiores

fontes documentais conhecidas a salvaguardar o conhecimento produzido ao longo da

história. Os mosteiros não escapam a essa regra, sabendo-se que,

[...] na Idade Média, Vivarium, na Calábria (Itália), é o primeiro mosteiro a ser identificado com o livro. Na época, o Mosteiro era dirigido pelo romano Cassiodoro, que achava que os mosteiros deveriam abrigar a produção literária da Antiguidade, por isso redigiu para os monges copistas algumas regras de transcrição e ortografia, que perduraram por séculos. O acervo contava com uma centena de códices. No entanto, foi o Mosteiro de Monte Cassino (529 d.C.), fundado pelo próprio São Bento, que marcou o início do movimento sistemático de editoração medieval (LOSE et al., 2009, p. 17).

Não aleatoriamente, é no acervo do Mosteiro de São Bento da Bahia que se revela

essa obra ímpar que, até onde sabido, inédita, muito pode vir a contribuir para a

compreensão da história. Tratam-se, porém, de acervos particulares e, apesar de seu

conteúdo ser, inegavelmente, de interesse público, o acesso a eles está subordinado às

regras e condições das instituições que os detêm, as quais, na maioria das vezes, não estão

instrumentalizadas e/ou não dispõem de pessoal qualificado para a adequada conservação

e manuseio. O Mosteiro de São Bento da Bahia, atendendo às premissas de seu patriarca, é

uma das instituições que, entendendo a importância de seu acervo para a comunidade,

abriram suas portas a pesquisadores e imbuíram-se coletivamente no intuito de preservar

e tornar acessível sua riqueza documental, permitindo que este e outros trabalhos possam

estar sendo desenvolvidos.

A definição de Filologia por Telles (2000, p. 94),

[...] uma ciência e disciplina dedicada a indagar e definir uma cultura e uma civilização literária, antiga ou moderna, através do estado dos textos literários e dos documentos de língua, reconstituindo-lhe a forma original e individualizando seus aspectos e suas características lingüísticas e culturais,

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remete ao caráter dialógico dessa ciência, que exige do filólogo diálogo incessante com as

mais diversas ciências, especialmente aquelas ligadas ao "amor pela palavra” (CARVALHO,

2010). Decorre de seu objeto de estudo a dificuldade em se delimitar o campo de estudo da

"ciência da erudição"; a fim de que se cumpra fielmente o labor filológico, o cientista deve

lançar mão de todo o conhecimento, métodos e informação disponíveis para que possa

atender à diversidade que se lhe apresenta nos documentos, para que se possa acessar o

"epistema do texto” (LOSE, 2010), portanto, "[...] es la Historia (o cualquier otra disciplina)

la que se convierte en auxiliar de la Filologia, pues para interpretar un texto puede ser

necesario cualquier conocimiento que aporte cualquier disciplina [...]” (AGUILAR, 2000)55.

Considere-se que

[...] o homem é um ser histórico e social, portanto, é o resultado do meio em que vive. Para compreender esse homem de hoje e o seu mundo, o passado tem um valor fundamental. É nos registros de tempos idos que se encontra a formação do pensamento de um povo, de uma cultura, de uma história. (ANDRADE, 2010, p. 11)

É, portanto, pertinente que se dedique esta pesquisa não somente a análises e

estudos erigidos a partir do documento, exclusivamente, mas também ao conhecimento

que se já produziu a partir dele.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transdisciplinaridade da Filologia já terá sido conveniente e apropriadamente

comentada por Lose (2010), encontrando na edição digital o suporte mais adequado e

produtivo, sendo uma tecnologia ainda pouco difundida no meio filológico,

[...] a edição digital, e não edição meramente em formato digital, mostra-se um tipo completamente adequado à Filologia que precisa não somente trabalhar o texto, mas também o paratexto, as informações que contextualizam e dão sentido ao documento editado. Nas edições anteriores tais informações vinham como arredores, mas na edição digital esse arcabouço informacional está totalmente integrado ao texto transcrito, criando assim uma sintonia perfeita entre a transcrição e todas as informações que foram necessárias para que o filólogo adentrasse esse texto, e, consequentemente, desempenhasse sua função (de trazer o texto fidedigno) com mais confiança e clareza. O entorno do texto ésempre

55 Que se pode traduzir por: É a História (ou qualquer outra disciplina) que se converte em auxiliar da Filologia, pois para interpretar um texto pode ser necessário qualquer conhecimento que aporte qualquer disciplina; agora bem, para tal interpretação é preciso que o texto seja fiável: a Filologia acaba assim especializando-se no labor de fixar, reconstruir, criticar etc., os textos transmitidos.

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fundamental para uma boa edição e a edição digital possibilita esse diálogo de forma natural e soberana. A edição digital mostra-se completa, pois o editor pode escolher os critérios de qualquer tipo de transcrição já existente e fazer dialogar isso através de hiperlinks com seu paratexto, além de desdobramento de abreviaturas, movimentos de correção do autor, em caso de texto moderno, entre outras possibilidades. Além disso, tornar o texto digital é possibilitar sua divulgação de forma mais fácil, acessível e abrangente [grifos do autor] (LOSE, 2010).

Todas essas reflexões suscitam o entendimento de que

[...] além de abrir espaço para textos outros, a filologia também se depara com dificuldades e com possibilidades outras. Entre estas possibilidades encontram-se as tecnologias disponibilizadas pela era digital. Ao serem introduzidas no âmbito filológico, estas tecnologias passam a merecer destaque e gerar uma série de reflexões sobre o mérito da questão (LOSE, 2006, p. 64).

Este trabalho visa propiciar uma nova centelha que inspire a reflexão sobre as

práticas que se desenvolvem contemporaneamente no âmbito da Filologia. Espectando

sejam constituídas, no exercício dessa ciência, valendo-se das ferramentas hoje disponíveis,

novas tecnologias, metodologias e procedimentos "atualizados" que venham a potencializar a

preservação, o acesso e a interpretação do texto, não se referindo, apenas, à decodificação e

compreensão do código linguístico, mas também à definição e análises de características

linguísticas, culturais, históricas, dentre outras, que o objeto filológico possa oferecer.

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GT 3: HISTÓRIA E DOCUMENTOS A ANÁLISE DO DOCUMENTO LITERO-MUSICAL COMO FERRAMENTA PARA O ESTUDO DA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NO PERÍODO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

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Ana Luiza Rios Martins Universidade Estadual do Ceará

Resumo Pretende-se discutir as diferentes ideias difundidas sobre os negros partindo da análise do documento lítero-musical do gênero modinha. A música produzida em Fortaleza no período da Primeira República é marcada por um dissenso no que diz respeito à representação do negro. Enquanto nas modinhas ao piano de Alberto Nepomuceno, Branca Rangel e do letrista Juvenal Galeno, foram encontradas a exaltação do mestiço e uma menor presença do negro, nas modinhas ao violão de Ramos Cotôco, Teixeirinha e Carlos Severo, foram realçadas as imagens do populacho, considerado costumes e práticas menores, enfatizando os problemas urbanos dos trabalhadores formais e informais, a exaltação do negro e do mestiço, a ojeriza ao “burguês”; mas com um tom de jocosidade e pilhéria. Alberto Nepomuceno, Branca Rangel e Juvenal Galeno estavam envolvidos com o Romantismo e por esse motivo buscaram uma identidade sonora para a nação após a Abolição da Escravidão e da Proclamação da República. Já Ramos Cotôco, Carlos Severo e Texeirinha representavam os negros em suas canções à luz de teorias que exploravam o preconceito e a exclusão social de certos grupos. A luta de classes revelada no Manifesto Comunista de Karl Marx Friedrich Engels e o desencanto por bens materiais destacado na obra de Scenes de la vie de bohàme, de Henri Murger, influenciaram esses compositores a exaltarem mulheres que traziam consigo características semelhantes: eram pobres, negras e mantinham profissões informais. As discussões em torno da História-Música foram aprofundadas no Brasil por historiadores como Marcos Napolitano e José Vinci de Moraes, que tentaram apontar algumas soluções para os problemas teórico-metodológicos nesse tipo de abordagem. Analisar a música por completo é uma tarefa importante, embora difícil. Marcos Napolitano aponta que os instrumentos que foram utilizados, o gênero musical que foi selecionado, bem como a letra, não podem ser observados separadamente. Entender o contexto histórico, as intenções do compositor, para quem a música foi feita e quais os motivos é de fundamental importância. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Na virada do século XIX para o XX ocorreram inúmeras transformações no Ceará. No

período em que o Brasil passava pela queda do Império e implantação da República, a

nossa província abolia os seus escravos e presenciava o aparecimento do capitalismo em

Fortaleza, que culminou em um longo processo de urbanização. Existiam planos de

modernização na capital que incluíram a “remodelação” do espaço urbano, ou seja, a

“disciplinarização” do crescimento da cidade. Com o intuito de evitar a expansão

desordenada, o engenheiro Adolfo Herbster preservou o traçado xadrez de Silva Paulet,

vislumbrando a possibilidade de ocupação das áreas periféricas, fato que não custou a se

tornar realidade, enquanto as novas elites econômicas e intelectuais, compostas por

comerciantes ligados ao comércio interno e externo, de profissionais liberais como

médicos e advogados, e a classe média de pequenos comerciantes, artistas, poetas e os

demais trabalhadores letrados, ocupavam e valorizavam as áreas centrais da cidade, as

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regiões mais afastadas e com menores condições de infraestrutura foram legadas aos

pobres, negros e migrantes do interior do Estado.

Esse sistema de ocupação dos espaços, inspirado nas reformas do Barão de

Haussmann em Paris, contribuiu para que as diversões das camadas abastadas fossem

isoladas em clubes e salões. Nesses ambientes as elites tentavam se distinguir socialmente

se apropriando de bens culturais trazidos da Europa, como os livros de August Comte, as

vestimentas de ceda, os pianos Essenfelder e Doner & Sohn, que eram encontrados em um

número reduzido e ritmos europeus como a valsa, a polca, o schottisch e a quadrilha. Já nos

areais das zonas periféricas, a “arraia miúda” se divertia com suas manifestações

tradicionais como os fandangos e maracatus. No entanto, essas festas eram, em grande

parte, desmanchadas pelas autoridades policiais, com a justificativa que causavam muitos

tumultos. Essa condição suburbana imposta a uma parcela da população cearense

desfavorecida economicamente, de fato, contribuiu para o surgimento de uma cultura “à

margem” do “afrancesamento” e do requinte aclamados pelas elites locais.

Compositores de vários gêneros e extratos sociais, cientes do contexto histórico

conturbado desse período, relataram de diferentes formas através de suas músicas os

principais problemas vivenciados pelos cearenses. O escritor Antônio Sales, por exemplo,

teve letra que tratava sobre a política local musicada pelo flautista Oscar Feital e pelo

cantor e violinista Antônio Rayol. Juvenal Galeno foi um dos escritores que mais recebeu

adaptações musicais para as suas poesias, principalmente pelo compositor e multi-

instrumentista Alberto Nepomuceno e a pianista Branca Rangel. Essas músicas tratavam

sobre a questão do negro e da mestiçagem, do elogio às zonas rurais e da ingenuidade do

homem do campo. Considerado um dos primeiros folcloristas, Juvenal Galeno tinha uma

poesia caracterizada pelo uso constante de temáticas referentes ao meio, à raça e ao

folclore. Já nas canções ao violão de Ramos Cotôco e Teixeirinha, estavam presentes o

relato dos principais problemas que o Ceará passava naquele momento. Esses boêmios

realçavam as imagens do populacho, considerado costumes e práticas menores,

enfatizando os problemas urbanos dos trabalhadores formais e informais, a exaltação do

negro e do mestiço, a ojeriza ao “burguês”; mas com um tom de jocosidade e pilhéria.

A historiografia sobre o tema é vasta, mas a maioria dos escritos é de origem

memorialística. A escrita memorialística é, sobretudo, marcada por um desejo de retorno a

um passado que não deveria ter mudado. Ele é guardado na tentativa de algum momento

ser restituído. O saudosismo e o sentimento de lembrar a si e aos outros estão

constantemente presentes nessa escrita. Nesta pesquisa, percebe-se que é necessário

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buscar o passado de sons que são evocados nas memórias afetivas desses indivíduos. Os

artigos em periódicos também trazem detalhes sobre a cena musical cearense, mas a

escrita desses colaboradores muitas vezes era tendenciosa e dependente das ideologias

dos editores. Os trabalhos acadêmicos sobre o tema são recentes e muitos deles abordam

os compositores do fim do século XIX e início do XX de maneira individual. Dessa forma,

este trabalho foi uma tentativa de analisar e discutir de forma mais abrange o circuito

musical cearense.

As discussões em torno da História-Música foram aprofundadas no Brasil por

historiadores como Marcos Napolitano (2002), que escreveu o livro História & Música:

História Cultural da Música Popular e José Vinci de Moraes (2000), que além de ter

organizado o livro História e Música no Brasil, escreveu o artigo intitulado História e

Música: a canção popular e o conhecimento histórico, apontando algumas soluções para os

problemas teórico-metodológicos nesse tipo de abordagem. Dessa forma, entende-se que a

música produzida aqui no Ceará no fim do século XIX e início do século XX, não pode ser

analisada apenas como um meio de entretenimento, mas também como uma forma de se

entender a sociedade por uma perspectiva bem diferente dos outros tipos de fontes de

informações que existiam no período como, por exemplo, jornais, almanaques e revistas.

Analisar a música por completo é uma tarefa importante, embora difícil. Marcos Napolitano

aponta que os instrumentos que foram utilizados, o gênero musical que foi selecionado,

bem como a letra, não podem ser observados separadamente. Entender o contexto

histórico, as intenções do compositor, pra quem a música foi feita e quais os motivos é de

fundamental importância.

O conceito de cultura popular também é muito caro, pois o desvendamento de

pontos obscuros desse universo pode nos levar a entender um pouco mais sobre a história

desse período. No Brasil do fim do século XIX e início do XX, foi iniciada uma procura por

identidade nacional por autores como Sílvio Romero (1953), que defendia o

“branqueamento” racial e cultural do Brasil através da miscigenação, buscando através do

meio, da raça e do folclore diferentes grupos eleitos como representantes da nação. A

maioria dos autores românticos e folcloristas buscaram, alguns nas zonas rurais e outras

nas zonas urbanas, uma seleção de práticas culturais que eles consideravam provenientes

do povo, rotulando esse apanhando de cultura popular. Renato Ortiz (2004) aponta que

para nomear algo como popular, muitos literatos usavam o seu poder de triagem,

separação e “aperfeiçoamento”. Dessa forma, a cultura popular não seria um conceito

pertencente ao povo, pois ela foi criada e dissimulada.

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2 AS DIFERENTES REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA MODINHA CEARENSE O gênero canção, ou vulgarmente chamado pelos cearenses de modinha, era

constantemente utilizado pelos músicos no fim do século XIX e início do XX. No entanto,

percebe-se que existem diferentes apropriações da cultura popular se comparadas às

modinhas ao piano com as do violão. A modinha de salão, como era chamada a canção em

português de cunho lírico no Ceará naquele período, tem sua história intrinsecamente

ligada à canção para piano e voz. A opereta e o lied alemão foram os dois gêneros que

inspiraram a modinha de salão ao longo do século XVIII e XIX. No entanto, os movimentos

atrelados à questão nacionalista e ao Romantismo marcaram a história da música

decisivamente, fazendo com que compositores buscassem fundir a música artística com o

que houvesse de melhor na rural. Alberto Nepomuceno, Juvenal Galeno e Branca Rangel,

preocupados com a urgência de encontrar e expor elementos que representassem a nação,

incorporaram a ideia de popular, sobretudo apoiada na do Romantismo alemão, que trazia

uma acepção de "espontaneidade ingênua" e anonimato, característicos de uma

coletividade homogênea e una que se poderia considerar a alma nacional.

A partir de uma ótica de caráter naturalista e preocupado com o registro

documental da cultura nacional, as especificidades raciais de um povo ainda indefinido se

tornaram mote de suas discussões. A doutrina naturalista se baseava em caracteres físicos

como o solo e a raça, a língua e os costumes. O determinismo geográfico e biológico dessa

forma de representar a nação negava a liberdade de escolha e era traduzido em práticas

políticas autoritárias. Isso fez com que, sobretudo, Alberto Nepomuceno, buscasse o caráter

da “música popular brasileira” nas origens étnicas.

Além de compositor, Alberto Nepomuceno foi pianista, organista e regente. Em sua

juventude Nepomuceno deixou o Ceará, mas visitou continuamente a cidade devido ao elo

sentimental com os parentes, amigos e com a própria Fortaleza. Teve muito apresso as

questões abolicionistas, filiando-se ao Centro 25 de Dezembro, através de suas ligações

com João Cordeiro e João Brígido, este último diretor do jornal Unitário. As canções de

Nepomuceno eclodem a partir do lied romântico, passam pelo surgimento da mélodie

francesa e culminam com a gênese da canção brasileira a partir da modinha. O poeta

Juvenal Galeno também desde cedo aderiu à causa do abolicionismo, escrevendo obras que

abordavam o assunto. Já Branca Rangel foi pianista e uma das fundadoras do Conservatório

de Música Alberto Nepomuceno.

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Em Medroso de amor, modinha de Alberto Nepomuceno sobre texto de Juvenal

Galeno, encontra-se pela primeira vez um elemento retirado do universo popular, no caso,

o ritmo sincopado característico da música popular urbana da época, presente em gêneros

como o maxixe, o tango brasileiro e o choro. O uso frequente de contratempos56 e

síncopes57 cria, desde o início, um ambiente de indecisão, traduzindo, na música, o espírito

evocado pelo título da peça. A tonalidade menor (ré menor), juntamente com o ritmo

característico do lundu, também contribui ao entendimento da obra, dando um caráter

dançante e, por conta do tom menor, melancólico, representando o prazer do flerte e o

medo do envolvimento com uma mulher visivelmente miscigenada.

Nepomuceno certamente tinha familiaridade com essa música feita de sacolejos e

requebros, que, aos poucos, ia invadindo os salões e fazia dançar todas as classes sociais da

Capital Federal, e, por ela, nutria no mínimo, alguma simpatia, como demonstram os

convites feitos justamente a Catulo da Paixão Cearense e a Ernesto Nazareth para que

participassem das apresentações musicais da Exposição Nacional realizada em 1908. Não

somente a imprensa, mas também inúmeros compositores foram desfavoráveis a atitude

de Nepomuceno de convidar Catulo para o ambiente dos salões, considerando-o

inconsequente, uma vez que o violão era um instrumento inadequado para aquele

ambiente.

A união da modinha, nascida no ambiente branco, com o lundu, que cresceu com os

negros, era o símbolo da união das raças. O branqueamento do povo brasileiro valia-se

dessa mestiçagem, para amalgamar as diferenças étnicas encontradas no país e forjar a

ideia da “raça brasileira”, sinônimo de “povo” e de “nação”. O branqueamento como projeta

de formação de uma raça brasileira, era a própria metáfora da nação em construção.

Nepomuceno também trouxe a “selvageria” para a sala de concertos em suas “danças de

negros”, rompendo com a visão preconceituosa e aristocrática que condenava o batuque ao

exílio da senzala. Observa-se que essas ideias foram vinculadas na composição do Hino do

Ceará em 1903, sobre versos de Tomás Lopes, encomenda do Barão de Studart (1856-

1939) para comemorar os trezentos anos da chegada dos primeiros portugueses àquela

região. A composição tinha reflexos do nacionalismo e era apoiada na etnologia e num

projeto de educação artística do povo.

Medroso de Amor

56 Compasso apoiado nos tempos fracos. 57 Prolongamento sobre um tempo forte de uma nota emitida em tempo fraco ou na parte fraca de um tempo.

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Moreninha, não sorrias Com meiguice... Com ternura; Este riso de candura Não desfolhes... Não sorrias! Que eu tenho medo d´amores, Que só trazem desventuras! Moreninha! Não me fites, Como agora apaixonada; Este olhar - toda enlevada Não desprendas... Não me fites! Pois assim derramas fogo Em minh´alma regelada! Moreninha! vai-te embora... Com teus encantos maltratas; Eu fui mártir das ingratas Quando amei... Oh, vai-te embora! Hoje fujo das mulheres, Pois fui mártir das ingratas. (NEPOMUCENO, Alberto; GALENO, Juvenal, 1984)

Já a modinha seresteira está ligada ao nascimento da Indústria do Disco. A música

popular urbana passou a ser mais curta pela necessidade que se tinha do músico gravar as

composições em um pequeno espaço que continha os cilindros e discos de cera,

considerados os primeiros aparelhos de som mecânico. Dessa forma, a música passou a ser

difundida de uma maneira mais rápida e prática porque o tempo de gravação era pequeno,

sendo por volta de três minutos cada música. Foi um momento em que se passou a pensar

na comercialização da música, criando-se a preocupação da autoria da obra, bem diferente

do período anterior ao século XIX, em que muitas melodias se perderam no anonimato.

Foi nesse período que também teve início a confusão com o conceito de música

popular, que se tornou logo sinônimo da “música do povo”, sendo empregado de uma

forma ambígua para definir a música das grandes cidades e também a do mundo rural. Essa

necessidade do compositor de aderir o rótulo de popular veio a partir do momento em que

o termo foi ligado à identidade nacional, sendo algo adequado de se ouvir. Era, por

exemplo, a única forma de compositores e intérpretes negros de ganhar um grande público

e chegar às famílias mais conservadoras. Um dos primeiros a pensar na estratégia de

ganhar o público com a finalidade de legitimar suas práticas de comércio foi Pedro

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Quaresma, que tinha uma livraria conhecida por ter obras acessíveis a todos. Fred Figner

apostou na mesma fórmula, gravando pelo selo da Casa Edison um grande repertório de

músicos e intérpretes da classe média, sendo muitos deles negros, que saiam

esbranquiçados na capa para não causar tantas tensões.

O estilo boêmio, que se caracterizava pela despreocupação em relação a grandes

somas monetárias e as normas sociais impostas pelo Estado, Igreja ou por famílias

conservadoras, foi incluída nas modinhas desses compositores, que se obstinaram a

projetar socialmente as camadas menos favorecidas, como trabalhadores urbanos, negros,

mestiços, retirantes, caboclos, se distanciado do romantismo ufanista e realçando as

imagens do populacho.Outra grande influência foi a dos cantores e instrumentistas

cariocas de projeção, que usavam o rótulo de popular como sinônimo de autenticidade na

tentativa de garantir um público consumidor de suas músicas. Quanto aos cearenses, além

de modinheiro, Ramos Cotôco era poeta e artista plástico. Uma figura excêntrica que,

muitas vezes, chocava a elite com o seu jeito irreverente. Era de costume adotar na lapela

do paletó enormes girassóis. Já Teixeirinha era poeta, funcionário público, arrendatário e

barman do Teatro José de Alencar e funcionário público.

Na canção intitulada Mulata Cearense, Ramos Cotôco apresentou a exaltação da

miscigenação étnica e a do meio, porém, estes aspectos foram realçados sem o ufanismo

comum aos outros estudiosos da “cultura popular”. Diferente de Juvenal Galeno, por

exemplo, que se referia ao Ceará como uma terra rica culturalmente, mas cheia de

infortúnios climáticos, Ramos Cotôco tratou dos aspectos positivos, mas não deixou de

complementar a letra com uma ácida crítica as mulheres brancas, sendo a maioria moças

de posses.

Mulata Cearense Eu sou da terra de um sol de brasa, Seus raios trago nos olhos meus; Na trança negra trago reflexos Das estrelinhas lindas dos céus: Meus alvos dentes lembram os toques Da branca lua, pura, sem véus. Estes encantos que em mim se notam Não são fingidos, são naturais; Meu garbo altivo lembra a sublime E verde copa dos coqueirais, Onde a jandaia seus cantos solta, Notas plangentes, doridos ais.

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No peito eu sinto um vulcão de amôres E na alma sinto o gênio a arfar; O peito diz-me que é a vida é flôres A alma murmura: gozar! gozar! Meu céu é lindo! Que lua bela! Que sol tão quente! Que verde mar! As brancas tôdas de mim não gostam, Voltam-me o rosto se vou passando, E eu nem reparo na raiva delas... Passo sorrindo, cantarolando: Todos os moços me chama linda E a muitos deles vou namorando. Vou desfrutando esta mocidade Sendo querida, querendo bem! Ser cearense – é felicidade Quanta alegria minh’alma tem! Adoro a pátria – meu berço róseo Não volto o rosto, caminho além. (RAIMUNDO, Ramos, s/d).

Na modinha Cabocla, Ramos Cotôco repete a temática racial, mas acrescenta sátira

na medida em que mistura uma crítica jocosa em cima da valsa dançante e alegre, como

indica a tonalidade de Dó Maior na partitura que se encontra em anexo. Ele aproveita o

ensejo para adicionar uma reclamação ao consumismo exagerado das moças de posse. Ao

mesmo tempo em que critica a apropriação da moda de Paris em suas vestimentas, elogia

os dotes naturais das mestiças pobres e a criação modesta, mas ao mesmo tempo bela do

seu vestuário.

Cabocla Ninguém me vence em beleza, Pois sou formosa também Sem possuir a riqueza Que a môça da praça tem. Não invejo os requintes da moda, Fantasias que o instante desfaz É bastante a beleza (bis) Dos meus dotes naturais. Quando eu passo em qualquer parte Todos ficam a me olhar. E dizem: que primor d’ arte! Que formosa sem par! No entanto a minha veste é tão simples,

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É de chita de azul côr do céu E sob ela a beleza (bis) Que a natureza me deu. Nenhuma rica da praça, Envôlta na fantasia, Tem mais beleza, mais graça Mais meiguice e poesia. Eu sou pobre, não tenho essas sêdas Nem brilhantes, nem rubros corais... Tenho só a beleza (bis) Dos meus dotes naturais. As brancas de mim não gostam E só me olham com desdém! Eu nem lhes presto atenção E creio que faço bem. Não invejo os requintes da moda Fantasias que o instante desfaz: É bastante a beleza (bis) Dos meus dotes naturais.

(RAIMUNDO, Ramos, s/d).

Em uma de suas poesias, intitulada Eu gosto assim, Ramos Cotôco comenta sobre o

seu gosto pelas “pretinhas com línguas daninhas”, pois ele não tolerava todas as

formalidades e convenções sociais exigidos pelas moças brancas. Ramos Cotôco chegou a

namorar muitas negras e mestiças em amores furtivos nas “portas detrás” dos bordéis e

quintais e a maioria desses casos viravam música ou poesia. Na modinha em tempo de

tango intitulada Meu gosto, fica mais evidente a sua defesa em relação a esses tipos de

mulheres. A tonalidade dessa modinha está em Fá Menor, triste e arrastada, justificando-se

talvez pelo fato do autor tratar sobre o descontentamento com a discriminação desses

tipos sociais pelos agentes do poder público, que buscavam “regenerar” esses indivíduos,

livrando-os de hábitos considerados indisciplinados.

Assim como Ramos Cotôco, Teixeirinha agrupa de uma forma genérica, várias

práticas de extratos sociais desfavorecidos economicamente, sobretudo a dos negros e

mestiços. Também rechaça a mulher branca e diz que gosta de atiçar briga e fazer

revolução. No entanto, também estava inserido nos segmentos da classe média, sendo

funcionário público durante o dia e arrendatário do bar do Theatro José de Alencar e

barman durante a noite. Essa sua relação com os humildes está também intrinsecamente

ligada à filosofia de vida boêmia, que possui certa ojeriza aos ricos.

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Diante das transformações que ocorreram na vida econômica, política e social, os

indivíduos inseridos no processo de composição das modinhas procuraram criar

expressões ou se afirmar diante dos embates sociais de seu tempo através das disputas

entre o piano e o violão, da modinha de salão e da modinha seresteira. É possível perceber

que a modinha no Ceará formou-se em um ambiente cheio de incoerências. Embora alguns

escritores tenham narrado um dinamismo enriquecedor entre grupos diferentes, fica

evidente que as trocas culturais eram discrepantes. Grande parte dos intelectuais e artistas

que visitavam as festas que ocorriam nos areais, por exemplo, não permitiam o acesso dos

indivíduos desses areais em suas reuniões e confraternizações.

As relações estabelecidas entre a música artística (de alto padrão estético), a

nascente música popular urbana e a rural folclórica formaram-se a partir de contradições.

Elas ocorreram em um momento de disputa por legitimação das novas práticas sobre as

velhas e de interesse sobre a construção de uma identidade sonora para a nação. Embora

trocas culturais existissem através do contato de negros e migrantes com boêmios nos

locais públicos, muitos artistas ligados ao Romantismo forjavam uma relação pacífica e

multilateral entre as partes. De qualquer forma, a situação criada levou alguns músicos e

instrumentistas a criarem uma música específica, que influenciou decisivamente o que hoje

se chama de música popular brasileira.

Enfim, distante das imagens de consenso preconizadas por diversos estudiosos da

música e cultura nacionais, que enxergaram a fusão de ritmos, melodias e harmonias,

atreladas ao caráter étnico dos diferentes povos, há muito mais dissenso na construção do

campo da música, e o dissenso pode advir de diferentes origens, contribuindo para a

percepção de que a cultura é um campo indeterminado onde os diferentes sujeitos

embatem-se na busca de reconhecimento social, cada qual com seu arcabouço de

possibilidades e inventividades.

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“PARA QUEM DISSE QUE OS ÍNDIOS NÃO TINHAM HISTÓRIA”: DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA INDÍGENA NOS SERTÕES DOS CARIRIS NOVOS NO PERÍODO COLONIAL

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Antonio José de Oliveira Universidade Federal do Ceará Resumo O presente trabalho é fruto das reflexões que venho realizando no Curso de doutorado em História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará. Neste artigo pretendo provocar discussões sobre a história dos índios que habitaram os sertões dos Cariris Novos nos período Colonial. Semelhante aos outros nativos que foram violentamente expulsos de seus territórios, muitos argumentos foram utilizados para a tomada de suas terras, dentre eles podemos citar; o não desenvolvimento de sociedades complexas semelhantes a dos brancos, não disporem de tecnologias que explorassem as terras nos moldes à europeia e, sobretudo por não dominarem a palavra escrita. Em vista disso, os índios dos sertões dos Cariris Novos foram considerados pelos seus “conquistadores” povos inferiores e sem importância histórica. Diante dessa constatação, os colonos entendiam que era necessário submetê-losàs normas da dita sociedade branca e “civilizada”.Os enormes massacres contra essas sociedades comungando com o genocídio imaterial de milhares deles e do envio para as aldeias do litoral dos que ainda estavam submetidos nos aldeamentos, por muito tempo se acreditou que todos eles tinham desaparecidos por completo da região. Hoje, quando olhamos para os movimentos indígenas ainda latentes em nossa sociedade, necessitamos olharmos para o passado e compreender que esses povos construíram sim a sua história. 1 OS SERTÕES DOS CARIRIS NOVOS: BREVES CONSIDERAÇÕES

Situada num vale que fica ao sopé da Chapada do Araripe a mais ou menos

quinhentos e sessenta quilômetros da cidade de Fortaleza, o Cariri é uma das regiões mais

importantes do interior do Estado.As inúmeras fontes que brotam dos supedâneos da

chapada ainda são fortes elementos que a diferencia das demais localidades dos sertões do

Ceará. Na época colonial essas fontes alimentaram os seus principais rios (Salgado, Cariús,

Porcos) e os contrastes dentre as demais áreas do sertão eram tão grandes que os colonos a

denominaram de Sertões dos Cariris Novos58. Com essa rica hidrografia bem como outros

recursos, em pouco tempo a localidade se tornou o principal alvo de imigração, sobretudo

em tempos de secas.

Assim como foi nos primórdios de sua ocupação muitos grupos humanos ainda se

dirigem para aquele espaço. As antigas estradas boiadeiras que tropeiros, carreteiros,

colonos e outras categorias sociais percorreram hoje se transformaram em grandes

rodovias estaduais e federais. O intenso fluxo de veículos por essas vias permite que suas

principais cidades consigam manter um dos maiores e mais movimentados comércios do

58 O termo sertão dos Cariris Novos foi atribuído pelos colonos para diferenciar do sertão do Cariri paraibano. Este ultimo, além de ter sido conquistado e colonizado primeiro que os serões dos Cariris Novos, tem clima bastante seco, oposto ao primeiro.

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interior do Ceará59.Na arquitetura dos casarões e sobrados que ainda restam nas cidades

mais antigas (Crato, Barba lha, Missão Velha, Santana do Cariri e Jardim) e nas ruínas dos

velhos engenhos de rapadura, revelam os mais significativos traços de poder e riqueza dos

potentados senhores de engenhos e de uma rica elite urbana que por muito tempo

dominou o cenário econômico e político na região. Na atualidade, essa elite já não tem a

força e o poder de outrora e os engenhos praticamente desapareceram; apenas Barbalha e

algumas cidades ainda preservam alguns engenhos em funcionamento (OLIVEIRA, 2003).

Apesar de a região já ser bastante estudada ainda não se tem produções que

identifique contundentemente as dimensões territoriais dos sertões dos Cariris Novos na

época colonial. O que se tem são informações esparsas e não é suficiente o bastante para

que haja essa compreensão.De qualquer forma as informações esparsamente contidas em

documentos do século XVIII, nos diários de alguns viajantes/naturalistas que no século XIX

por ali passaram e na diminuta produção local, já nos servem de indícios para que deles se

possa ter idéia de suas dimensões. Num documento do século XVIII, tem-se a seguintes

informações:

A Freguezia S. Jozé dos Careri he a mais fértil de toda a Capitania; fica ao sul da Freguezia dos Inhamús ao poente da do Icó, entre a Villa e o Rio de S. Francisco tem trinta legoa de largura e outras tantas de cumprimento; onde menos sustenta de farinha, fructos e rapaduras não só a todas as freguezias das suas vizinhanças, mas também de outros Certoens mais remotos(...). (ABN, 1902).

Essas são as informações mais antigas que até o momento consegui sobre as

dimensões espaciais do Cariri. Em cima delas se pode ter uma idéia de sua abrangência. As

demais informações são fornecidas a partir dos XIX, por viajantes e mais tarde por

estudiosos locais. De acordo com Figueiredo Filho (2010, p. 20),

Ao conjunto desta faixa circunscrita e ao pequeno vale é o que se conhece por Cariri. Abrange vários municípios do Estado, e não tem mais de 7.660 quilômetros quadrados de área, com uma população de 330 000 habitantes, o que dá a densidade demográfica de 43. A parte nuclear, com 4 municípios, me 2.460 quilômetros quadrados, com população de 171 000 habitantes, correspondendo à densidade demográfica de 73. Estas cifras dão uma idéia da concentração humana no minúsculo vale da Batateira, a região melhor irrigada do Cariri. Quanto à modalidade geográfica, a singularidade do Cariri, especialmente do vale, provém da situação, na natureza e origem do solo, da sua geomorfologia e, especialmente, do modo feliz como a natureza preparou o seu sistema de irrigação e drenagem.

59 A região do Cariri fica distante cerca de 500 a 600 quilômetros de cinco capitais do Nordeste: Fortaleza, João Pessoa, Natal, Recife e Teresina.

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George Gardner (1975, p. 92), naturalista inglês que, na primeira metade do século

XIX, visitou aquela região, foi um desses viajantes a testemunhar as belezas naturais do

Cariri. Vejamos suas observações:

Impossível descrever o deleite que senti ao entrar neste distrito, comparativamente rico e risonho, depois de marchar mais de trezentas milhas através de uma região que naquela estação era pouco melhor que um deserto. A tarde era das mais belas que me lembra ter visto, com o sol a sumir-se em grande esplendor por trás da Serra de Araripe, longa cadeia de montanhas a cerca de uma légua para oeste da Vila; e o frescor da região parece tirar aos seus raios o ardor que pouco antes do poente é tão opressivo ao viajante nas terras baixas.

Com o objetivo de coletar material botânico, documentar a fauna, a flora e reunir

informações sobre outras riquezas potencialmente ali existentes, o inglês se surpreende ao

encontrar no semi-árido uma área tão diferente das demais que ele até então havia

conhecido. Apesar de haver obtido informações sobre a região quando estava na vila de Icó,

ele não tinha idéia de que iria encontrar natureza e paisagens tão surpreendentes. Em suas

observações,

Após uma quinzena, fiz os preparativos para deixar Icó, visto que desejava chegar o mais cedo possível a Crato, cidade situada a cerca de cento e vinte milhas ao sudoeste, no sopé das montanhas que separam as Províncias de Ceará e Piauí, onde, me afirmaram que minhas pesquisas seriam compensadas amplamente, porque o clima geral era muito mais fresco e a região bem irrigada pelos regatos das montanhas(GARDNER, 1975, p. 87).

Gardner foi apenas um dos inúmeros viajantes/naturalistas que percorreram o

interior do Brasil naqueles tempos. Outros como Henry Koster, Saint-Hilaire, Spix e

Martius, Francisco Freire Alemão, João da Silva Feijó, só para citar esses nomes, deixaram

ricas informações sobre a paisagem do interior do Brasil, como também da população e as

suas várias formas de se relacionar e interagir com a natureza.

Nos sertões dos Cariris Novos, por quase toda a primeira metade do século XVIII os

colonos tiveram muito trabalho para retirar daquelas terras os resistentes nativos que o

habitavam.A partir da segunda metade do referido século esses povos já estavam quase

todos dispersos e os que sobreviveram foram reduzidos nos aldeamentos São José dos

Cariris Novos e Missão do Miranda. Esses dois aldeamentos foram os principais

condicionantes para formação das primeiras freguesias na região, dentre elas Missão Velha,

Missão Nova e Crato, As freguesias de maior destaque foram as de Missão Velha,

desmembrada de Icó em 1748, e a de Crato, que se tornou o principal pólo de

desenvolvimento na região, sendo elevada à categoria de Vila Real ainda no século XVIII

(1764).

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Com as potencialidades hídricas que a região possuía, não demorou que ali fossem

desenvolvidas várias atividades econômicas. Naquele recanto, além da pecuária, a cana de

açúcar foi também cultivada. Essa cultura foi a mais importante na solidificação das vilas

supracitadas, bem como um bom atrativo para quem tivessem condições de montar

engenhos. Com o desenvolvimento dessas atividades não demorou e antes que o século

XVIII acabasse os Cariris Novos já se destacava dentre as demais regiões da Capitania do

Ceará. Oliveira (2003, p. 26) salienta que:

No Cariri, a partir da segunda metade do referido século, já se percebe certo progresso populacional, conseqüência das tentativas de povoamento e das correntes migratórias que para a região se dirigiam: o aumento da densidade demográfica fez-se notar nos primeiros recenseamentos na Capitania, entre 1775 e 1808, principalmente em Icó, Crato, Viçosa, Sobral e Russas.

Outro fator que se de levar em consideração para esse progresso foi a descoberta de

ouro na segunda metade do século XVIII. Além da atividade canavieira, da extração de

frutas nativas, cultivo de gêneros de subsistência tais como feijão, mandioca, milho etc,

pelos colonos ali estabelecidos, a extração aurífera embora em pouco tempo que esteve em

atividade incrementou cada vez mais o desenvolvimento dos núcleos urbanos e despertou

em muitos o interesse em se dirigirem para aquela localidade na intenção do

enriquecimento “fácil”. Mais uma vez Oliveira (2003, p. 24) assegura que:

As notícias de que havia esse tipo de metal na localidade ocasionaram a imigração de grande número de pessoas para o sul da Capitania, engrossando cada vez mais as fileiras dos colonos já estabelecidos em função da pecuária. As informações de que se poderia encontrar ouro no Cariri ecoaram para além do sul Capitania, deixando eufóricos muitos aventureiros; e por mais ou menos três anos tentou-se extrair ouro através da Companhia São José dos Cariris Novos. Correspondências enviadas à Coroa denunciavam essa tentativa.

Dada essas inúmeras possibilidades, a partir da primeira metade do século XIX o

intenso movimento migratório se acentuou consideravelmente. Nessa dinâmica foram

surgindo novos povoados dentre eles: Jardim (1816); Freguesia de Senhora Santana ou

Brejo Grande (1838) e Barbalha (1838).

Com foi posto acima, na segunda metade do século XVIII, quase todos os nativos que

habitavam os Cariris Novos estavam dispersos e os que ficaram foram reduzidos nos dois

principais aldeamentos. Uma vez encurralados e “doutrinados” os índios pelos

Capuchinhos, ficou “fácil” aos colonos se apossarem das melhores terras. Os índios que ali

foram aldeados eram administrados por um Capuchinho e tinha cinco nações; Quicheréu,

Cariú, Caririuanê, Calabaça e Icozinho, Cariús e Xocós. Essas tribos são consideradas por

muitos estudiosos locais como pertencente à nação Kariri.

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Essas tribos foram as que motivaram aos primeiros colonos a nomear a região de

Sertão dos Cariris Novos, hoje apenas região do Cariri, e como já foi elucidado, sua grande

resistência ao homem branco e a “submissão” aos aldeamentos levou a historiografia local

a acreditar sua total extinção daquela região. Na observação de Pinheiro (2010, p 10),

“desses nossos líticos antepassados, os Cariri, não restam hoje representante, a não serem

os Carnijó (serão mesmo Cariris?) que vivem no município de Águas Belas, de Pernambuco,

e se acham reduzidíssimos, em via de extinção”.

Diante do exposto é necessário evidenciar aqui, grosso modo, um pouco da

trajetória desses nativos até sua chegada no sul do Ceará e tentar compreender também o

porquê de no século XIX muitos estudiososencontrar elementos que justificassem a total

extinção desses povos.

2 DOCUMENTOS PARA HISTÓRIA INDÍGENA NOS SERTÕES DOS CARIRIS NOVOS

Na tradição documental da América portuguesa, os nativos sempre estiveram

presentes. Antes do século XIX, os grandes estudiosos e, sobretudo os religiosos, tiveram a

curiosidade de registrar em seus trabalhos as peculiaridades de um povo estranho aos seus

costumes – as formas de sobrevivência, a explicação de seu mundo, sua organização social,

rituais religiosos, alimentação, indumentária, táticas de guerra, relações familiares. Estes

aspectos despertavam nesses intelectuais a curiosidade, o estranhamento e a necessidade

de um entendimento que levasse à possibilidade de submissão desse tipo de sociedade.

Para que a Colônia prosperasse e conseguisse suprir as demandas materiais tanto da

sociedade local como a da Metrópole era necessário que esses indivíduos fossem

subjugados. Uma vez submetidos, facilitaria o domínio de um importante elemento para a

produção; a força de trabalho. Para esse objetivo a empresa colonizadora no Novo Mundo

foi fechando cada vez mais o cerco contra os índios e os que não se submetiam a essas

diretrizes eram violentamente expulsos de suas terras. Essas medidas adotadas pela coroa

provocaram sangrentos conflitos pelas disputas e domínio não apenas pelo espaço

territorial mais também pelos recursos naturais que a Colônia oferecia.

Os momentos mais marcantes desses violentos confrontos aconteceram na segunda

metade do século XVII. Pela posse das terras, em especial as do interior das capitanias do

Norte, aquele século se configurou como o século das mais agudas lutas entre nativos e

colonos. Historiadores que estudaram esses conflitos asseguram que a conquista desses

territórios foi a mais violenta de todo o período colonial. Denominada de Guerra dos

Bárbaros ou Confederação dos Cariris, esse conflito se iniciaram na segunda metade do

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século XVII e perdurou praticamente até a primeira metade do século seguinte (PUNTONI,

2003).

A guerra provocou muitos prejuízos para a Colônia. Cidades e vilas foram arrasadas,

população dispersas, dezenas de negros fugiram debilitando cada vez mais a produção de

açúcar nos engenhos, que por sinal foram também quase todos destruídos. Par amenizar

esses prejuízos a Metrópole lançou mão de vários mecanismos dentre eles ocupar o mais

rápido possível os territórios ainda “devolutos e desaproveitados”. Nesse caso os sertões

do nordeste.

Naquele contexto as terras mais afastadas da chamada Capitanias do Norte já tinha a

pecuária como uma importante atividade econômica. Suprindo de ração os soldados

durante as guerras essa economia foi se firmando cada vez mais. Vejamos a informação do

documento abaixo:

E da certidão do capitam Gaspar onde afolha 11 semostra que ordenando o conde de Banhollo em 2 de setembro de 637 mandara ir buscar gado para sustento de nossa infantaria e exército foi elle supplicante na tropa que foi a conduzir e trabalhou no ditto serviço com muitto empenho ajudando a retirar520 cabesas como da certidamcomo largamente se consta (AHU-PE, 1642).

A pecuária foi muito importante para a conquista, ocupação e colonização dos

sertões dessas capitanias.Os caminhos do gado forçaram milhares de nativos a se

submeterem à lógica mercantil ou a procurarem outros espaços. Dessa forma essa

atividade foi se tornando a base econômica e um dos grandes elementos justificadores para

aquisição de terras e intensificando cada vez mais aexpansãodo projeto colonizador pelos

mais dilatados sertões.

Ocupar as terras do interior era prioridade. Mas a resistência dos nativos era uma

constante e a violência foi tal que gerou intensos debates nas instituições gestora desses

empreendimentos.Em reuniões se discutiam dentre outros temas como fazer guerra justa a

esses nativos arredios á colonização. Em uma reunião da Junta das Missões de

Pernambucoem 1711, constam as seguintes preocupações:

Sobre fazer guerras aos Ianduins. Aos sinco dias do mês de septembro deste prezente anno de mil e setecento e dose neste Palácio das Torres em que Reside o Excelentissimo Senhor Felix Jose Machado de Mendonça, Governador destas Capitanias, e Juhnta de missões em que presidio o Excelentíssimo Senhor Governador e o Illustríssimo Senhor Dom Manuel Alvarez da Costa, Bispo destas Capitanias, se assistirão os maysministros e prellados abaixo asignado e pello ditto Senhor Governador foy proposto emjunhta, se foi justa a guerra que se fez ao Tapuya da Nação Jandoim, Cabore e Capella (...) (GATTI, 2009).

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Essa guerra pode ser considerada também como a extensão das guerras lusa

holandesas. Nessa ultima, muitos índios aliaram-se e lutaram em ambas as partes. Agora,

não mais servindo para os propósitos portugueses antigos aliados se tornaram empecilhos

aos brancos na ocupação dos sertões. No entanto, os índios que mais sofreram com essas

jornadas ao interior foram os que ficaram do lado dos holandeses como os Junduins e os

Potiguaras. Do lado dos portugueses se tem noticias dos Tabajaras e muitos da tribo Kariri

do Médio São Francisco. Antigos aliados ou inimigos, qualquer tentativa de resistência ao

empreendimento colonial eram rechaçados sem piedade.

A procura por áreas territoriais mais propicias à sobrevivência (ribeiras dos

principais rios e vales) bem como de minas de ouro, prata e salitre, fizeram as guerras se

multiplicaram pelos sertões baianos e pelos das demais capitanias do Norte.Espalhando-se

para além do Médio São Francisco, onde se concentravam o maior número dos índios da

não Kariri, nos finais do século XVII e princípio do XVIII, os conflitos chegaram às fronteiras

sul da Capitania do Ceará. Vejamos um relato desse drama:

(...) Há terra dilatada em fertilíssimos campos, vistosos olteiros, e cortada de altíssima serras, e por isso acomodada habitação para muitos milhares de homens. Sofriam mal que os portugueses cada dia fizessem entradas por aquellas terras, fazendo se, senhores do mesmo certão, em que hião fundando sítios, e fazendas de criar gado vacuns, e cavallares. Como conservavão o ódio contra os portugeuezes que lhes havia tomado os lugares marítimos,os Xucurus, Panatis, Icos, Icosinhos, e Coremas levantarão se, e pondo em armas davão de repente em diversas partes matando e roubando(...) em várias partes lhe sairão partidos de indios rebeldes, que cortado sempre do nosso ferro, levarão no castigo a pena de sua ousadia (...) chegou finalmente no Pajaú, onde tiverão os maiores ataques, porque sendo aly mayor o poder, foy mais vigorosa a resistencia. Hum anno foi necessário para assegurar aquelle distrito das invasões dos inimigos, o que conseguido a custa de repetidas vitorias, passou Manoel de Araújo ao distrito de Piranhas, donde se achava o Capitão Mor Theodósio de Oliveira Ledo posto em campo contra os Panatis.. (...) Continuou Manuel de Araújo a conquista do Piancó, e Rio do Peixe, para o qual forão necessário três anos (...) conseguindo essa graça, tratou de levantar no Cariry hua Fortaleza e deu principio a hua igreja (...) desde seos principios foy a Igreja do Cariry, que erigio Manoel de Araújo parochia e a primeira dos certões do Cariry, Piranhas e Piancó (...) (Anais da BN, 1902, p 28-37).

Fugindo do Médio São Francisco, esses nativos estavam pouco a pouco perdendo os

locais mais propícios à sua sobrevivência. As batalhas acima descritas inevitavelmente

fizeram muitos desses índios fugirem para o Sul da Capitania do Ceará, espaço ainda não

ocupado pelos colonos. Nessa capitania, segundo a historiografia, por quase todo o século

XVII se tentou conquistá-la, vindo a se consolidar totalmente somente nas décadas finais do

referido século.

Dada a violenta conquista dos territórios dessa capitania, sobretudo no Cariri é que

no século XIX os índios que ali habitaram estavam em vias de extinção ou se não o fossem

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seriam absorvido pela raça branca e preta. Araripe (1858, p. 47), um importante estudioso

da época assegurava que:

A população indígena é insignificantíssima na província e tem quase totalmente desaparecido. Internando-se nos bosques uns, retirando-se do solo da província outros, mesclando-se os demais com as raças branca e preta, hoje os aborígenes já não se fazem notados pelo número (...) o gênio civilizador da população ocidental da Europa não devia parar, e ficar ali contido, somente porque os aborígenes americanos deviam ter caça, pesca e frutos abundantes, prodigalizados pela fertilidade natural. A terra é do domínio do homem, e uma raça menos favorecida de dotes morais e intelectuais não devia impedir o desenvolvimento de outra raça mais ativa e mais capaz de vencer a natureza.

Esses eram os argumentos que pairavam nas produções historiográficas naquele

século. Se durantes os séculos XVI, XVII e XVIII, para dominar os nativos os colonos

construíram conceitos como os de bárbaros, gentios, infiéis, no XIX será o de incivilizado.

Outro argumento bastante forte para sua decadência era por serem sociedades ágrafas.

Não dominando a palavra escrita, se justificava que o agora Império brasileiro deveria

civilizá-los e “incorporá-los” na sociedade branca. Com isto, a sociedade dominante tentava

apagar a memória desses indivíduos e “todo” um passado de lutas e resistências.

Foi a partir das guerras de extermínio, das dispersões e dos aldeamentos que no

século XIX os poderes oficiais projetaram a total extinção dos índios. Para os Sertões dos

Cariris Novos, essas concepções se tornaram mais forte quando os índios que ali ainda

existiam foram em 1780 descidos para as aldeias do litoral, especialmente para a da

Parangaba. Vejamos o documento transcrito por Pinheiro (2010, p.48):

1780, 16 de outubro – Nesta data foram espoliado de suas terras e expulsos para Aronches, hoje Parangaba, os índios do Crato, por ordem do ouvidor José da Costa Dias e Barros. Prova-o o seguinte documento: Atestação. Atesto que fiz executar esta ordem quanto aos índios da vila do Crato em 16 do corrente, dia em que saíram da mesma vil para a de Aronches o que tudo presenciei, e quanto aos de Arneirós declarou o tenente-coronel Eufrásio Alves Feitosa, a quem incumbi a diligência, ser 20 do mesmo mês. O Escrivão da provedoria da fazenda registe esta para contar. Vila do Crato, 28 de outubrode 1780.

A crença do processo civilizador e evolucionista que a sociedade branca estava

desenvolvendo, levaram os estudiosos supracitados a projetarem o “fim” dos índios, ou, na

melhor das hipóteses sua diluição no mundo civilizado são conseqüências da política

pombalina de “inclusão” dos nativos na sociedade colonial na segunda metade do século

XVIII.Essa política, como vimos nos exemplos acima, levou a historiadores e outros

estúdios do século XIX e primeira metade do XX a acreditarem nesse progressivo

“desaparecimento”. Apenas para exemplificar, vejamos os argumentos de um documento

do XVIII:

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Ex. Senhor; Debaixo da eficaz proteção, e pelas mãos de V. Ex.ª chego a por na realprezença a notícia geral do Seara Grande: noticia a mais individual que me foi possível adquirir da sua coreografia, população, estado prezente da sua arrecadação, e administração da Fazenda Real, e seus abusos, disciplina da Tropa, e taóbem o modo de promover novas formas de comercio (...) (sobre os Índios). Devefazer-se o mayor esforço para atrahir os Índios a viver em sociedade deixando-os sertoens, em que habitão dispersos, perssuadindolhes as utilidades, que dahi lhe resultão (...) e para esse fim devem ser tratados com toda brandura, livrando-os das opressões dos queprezentemente padecem os já aldeados (AHU-CE, 1782).

Para a segunda metade do século XVIII, viver em sociedade significava absorver os

costumes dos brancos, incorporar seus valores, sobretudo os do trabalho60. Em cima disso

os argumentos historiográficos do desaparecimento dos índios tomaram mais impulso

quando os debates sobre a identidade para o Novo Império do Brasil se fizeram mais

claros. O lócus desse debate foi o IHGB. Fundado em 1838/39, essa instituição foi

importante na institucionalização e reflexão da pesquisa histórica sobre a verdadeira

identidade da Brasil (REIS, 2003). A partir de então toda produção dos intelectuais dessa

instituição buscará traçar o perfil dos grupos sociais que deveriam fazer parte da recém

nação independente. E os índios, incivilizados e em vias de extinção, inevitavelmente não

teriam lugar nessa nova nação.

Dentre as principais produções que entendia que os índios seriam extintos se

destaca a de Francisco Adolfo de Varnhagen. Em História Geral do Brasil, (Idem, p. 24) o

autor faz literalmente apologia ao português, como principal povo a compor a nação

brasileira. Do ponto de vista dos nativos, ele os exclui totalmente, considerando-os inaptos

a fazerem parte da nação e definindo-os com os piores adjetivos: bárbaros, vagabundos,

selvagens antropófagos, etc. Com essa concepção, os índios são anulados totalmente da

composição dessa nação, configurando como uma sociedade sem importância para o Brasil.

A partir de Varnhagen, até a década de trinta do século XX, predominará na historiografia

toda uma concepção em que se coloca o “índio” apenas como figurante na construção

nacionalista.

Retomemos ao Cariri. Pelas produções historiográficas relacionados aos índios da

região as poucas referências que temos Irineu PinheiroO Cariri, (1950), Pe. Antonio Gomes

de Araujo, A cidade de Frei Carlos, (1973), José de Figueiredo Filho, História do Cariri, vol.

60 Na segunda metade do século XVIII, o liberalismo clássico levou a muitas metrópoles adotarem a política econômica liberal para dinamizar suas economias abdicando a forma do monopólio colonial. Em Portugal, o Marquês de Pombal tomou várias medidas que melhorasse a produção. Com a proposta de fazer a Colônia produzir cada vez mais é que intensificam a busca pelas terras férteis. Ocupadas pelos índios, que muitos viviam do extrativismo, essas terras eram pelos colonos entendidas como devolutas e desaproveitadas e deveria ser ocupadas para fazê-la produzir.

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I.(1964), João Brígido, Apontamentos para História do Cariri, (2007), e intelectuais como

Carlos Stuart Filho, Os Aborígenes do Ceará, (1963), Pedro ThebegeEsboço histórico sobre e

a Província do Ceará (2001) etc, que, fiéis ao paradigma evolucionista da época, não

fugiram às análises dos demais que estudaram outras sociedades indígenas da capitania

cearense de que índios estariamfadados ao “completo” desaparecimento.

Debruçados nos exemplos historiográficos é pertinente problematizar essa

historiografia e buscar compreender as complexas relações e experiências vividas desses

índios envolvidos na luta pela não ocupação de suas terras, em particular nos Cariris

Novos.

Naquela região, em função da expansão da pecuária, do rápido crescimento de

doações das sesmarias e, sobretudo da implantação da cana de açúcar,61 forçaram os Kariri

a repensar e exercer uma nova postura nesse novo panorama uma vez que não havia mais

localidades que pudessem fugir. Por essas questões é que não se pode mais pensar os

“índio” dos sertões dos Cariris Novos apenas como mero participante da empresa

colonizadora. Resistências, alianças, fugas e colaborações fizeram parte de seu

aprendizado/ou experiência nesse novo desafio. Importante nessa investigação é entender

também como esses nativos se comportaram diante da ocupação, produção e

transformação de seus espaços de sobrevivência. Como afirma Pompa, os Kariri precisaram

“refundar” ou reorganizar sua realidade, a história de seu povo e a sua historicidade.

Quanto aos documentos que podem nos ajudar a perceber as ações dos índios nos

sertões dos Cariris Novos frente aos brancos e a partir deles desmistificar a idéia de que os

índios não tinham história são vários. Para efeito de exemplificação os documentos do

Arquivo Histórico Ultramarino (Cartas, Bandos, Provisões, Ofícios, Requerimento, etc,)

direcionados para aqueles sertões são de imensa importância para compreender um pouco

do mundo desses nativos. Vejamos um exemplo:

Proximamente receby hua carta do governador e Capp™ Geral de Pernambuco com dous bandos inclusos sobre a faculdade que V.M foi servido concederlhe, paraque mandasse manifestar as minas dos Cariris Novos do distrito desta Capitania (...) mando de Pernambuco officiais determinados para as ocupações dos officios das ditasminas (...) como já tenho representado a V.M. e consta nas cartas de Bentto da Silva Oliveiyra Capp™. Mor da mesma Villa de Icó; a vista de cujo rendimento he exurbitantistisma à dispesa que se faz com o distacamento oficiais e Indios, que se acham presidiados nas referidas minas (AHU-CE, 1753).

61 Sobre o impacto da cana-de-açúcar no mundo dos nativos, ver o trabalho de Mary Del Priore e Renato Venâncio, Uma História da vida Rural no Brasil, (2006) está se configurando como importante fonte de consulta para compreender esse impacto no sul da capitania.

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Em bem verdade que nesse e nem nos outros documentos até então pesquisados

não se tem a fala do índio, mas se deve compreender que pelo simples fato deles serem

mencionados já são indícios para uma análise mais ampla. No exemplo acima, se pode

ventilar sua importânciacomo mão de obra na extração de ouro nas minas da região.

Deve-se estar atento também em compreender as sutilezas que esses documentos

contêm. Uma vez que os índios já mais aceitaram qualquer tipo de exploração e faziam de

tudo para se livrar dessa condição, na medida do possível lançavam mão de vários

expedientes dentre eles fugas, suicídios, barganhas pelos serviços prestados a Coroa

portuguesa, etc. Exemplo contundente desse tipo de prática está numa petição do Padre

Miguel de Carvalho, tutor de Francisco Dias Matarôa, principal da nação Procaz. Eis a

petição:

Por decreto de 26 do prezente mez e anno manda V.Magestade se veja e consulte nesse conselho o que parecer sobre huma petiçam do Pe. Miguel de Carvalho como tutor de Francisco Dias Matarôa Capitam mor de todos os Índios da nação Porcaz moradores no certão de Rodellas, em que diz q. elle vinha em sua companhia para este Reino pedir a V.Magestade alguma recompensa dosmuitos servisos q. lhe tem feito assim nas guerras dos Tapuyas Brabos, como no descobrimento do caminho q. se fez da Bahia para o Maranhão, e em outras muitas obras úteis ao serviço de Deos e a V. Magestade (...)(AHU-PE, 1764).

Apesar da petição do índio ser através de seu tutor isto não invalida a fala do índio.

Através do padre se ouve a voz dos nativos e demonstra que eles sabiam muito bem como

recorrer ao que lhes tinha direito.

Outro tipo de documentação para a história indígena dos Sertões dos Cariris Novos

são os registros de batismo produzidos pelos Frades Capuchinhos italianos que ali

edificaram os primeiros aldeamentos ainda na primeira metade do século XVIII. Neles é

possível compreender as estratégias de dominação do poder eclesiástico atuando sobre os

índios desde seu nascimento. Se, apartir dos primeiros contatos com os europeus, os

nativos foram de imediatos olhados com estranhamento e mais tarde compreendidos como

inferiores aos brancos, o batismo era um dos métodos mais eficazes de conversão e

dominação das crianças indígenas. A cor e o nome cristão no ato do batismo assinalavam a

nova condição do indígena e era um forte sinal de que se devia “anular” sua ancestralidade.

Vejamos o exemplo abaixo:

Aos dous dias do mez de Fevereiro de milsetecentos e quarenta e oito annos nestta Capella de Santo Antonio de Missão Nova desta fregeuezia batizou Perpétua, parda filha de Eugenia criada e escrava do Capitam Cicero Ferreira de Sirqueira morado nesta freguezia (...) foram padrinhos o Padre José (...) Barreto e Maria mulher de Estevão Correia da Silva de Queiroz desta freguezia de Nossa Senhora da Luz dos

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Cariris Novos epor este assento epor verdade assinado o Padre Gonçalo Coelho de Lemos, Cura. Aos dous dias do mês de março de mil setecentos quarenta e oito annos no brejo do bom sucesso batizou da licensaminha Padre João da Costa a André, filho de Vicência India forra (...) são padrinhos o Capitam Custódio deMagahaes Macedo e Andreza forra negra desta freguesia de São José dos Cariris epor este assento epor verdade assina o Padre Gonçalo Coelho de Lemos, cura(LRB-CRATO).

Para o século XIX os documentos são mais “abundantes”. O Jornal o Araripe, os

relatórios dos presidentes da Província, os documentos dos movimentos de 1817, 1824 e

1832, todos eles são imprescindíveis na busca pela compreensão da história indígena na

região em vários contextos.

As informações dos viajantes são também uma boa fonte para ver que os índios

estabelecidos nos Cariris Novos não desapareceram pelo descimento de 1780. George

Gardner (1976), ao realizar pesquisas na região entre os meses finais de 1838 e primeiros

meses de 1839, relatou que no Crato, para uma população de mais ou menos dois mil

habitantes, “a maioria era de índios ou mestiços que deles descendem”.

Outro viajante que passou pela região do Cariri nos finais de 1859 e início de 1860

foi Francisco Freire Alemão. Em seus relatos, é freqüente a presença de categorias sociais

como a de caboclos e pardos62, que era uma denominação dada pelos colonos aos nativos

ditos “aculturados”.

Assim, diante do exposto, não se pode aceitar o discurso de que os índios

estabelecidos nos Cariris Novos durante o século XIX tenham se extinguido completamente

da região. É necessário discutir o processo de miscigenação, as relações interétnicas,

experimentadas por esses povos e as permanências culturais desta sociedade que

permitem a visibilidade desta etnia.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se olharmos com maior detalhe, vamos perceber que a luta dos índios sempre foi

uma constante. No entanto, por muito tempo, muitos estudiosos e mais tarde os

historiadores, por vários motivos que não cabe aqui elucidar,não levaram em consideração

essas lutas.Ao longo desses mais de 500 anos, só a partir das ultimas décadas é que a

história desses povos está sendo revisitada e escrita por nós, historiadores. A aproximação

com algumas disciplinas, sobretudo a Antropologia, proporcionou uma maior e melhor

62 Para uma melhor compreensão consultar a obra de Maio Oliveira Xavier, “Cabôcullos São os brancos”: dinâmica das relações socioculturais dos índios do temo da vila Viçosa Real- Sec. XIX. Fortaleza: Secult/CE, 2012.

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compreensão da história indígena. No Ceará e em alguns Estados do Nordeste, já existem

muitas produções sobre os índios.

No Cariri, ainda não se têm estudos aprofundados sobre os índios que habitaram

aquela região, mas as já citadas produções, embora todas produzidas no século XX nos

servem de fontes para, a partir delas, compreender o universo daqueles povos ali

estabelecidos.

Para que tenhamosmaiorvisibilidade de que os nativos da região não

desapareceram por completo recentemente foram encontrados descentes desses índios na

região. O caderno regional do jornal Diário do Nordeste no dia 19 de abril de 2008 trouxe a

seguinte reportagem:

Crato. Trezentos anos depois da chegada dos primeiros colonizadores no Sul do Estado, restam poucas informações sobre os índios Cariris, primeiros habitantes da região. A presença dos nativos foi parcialmente esquecida pelos historiadores oficiais. A memória dos Cariris foi apagada pelo tempo (DIARIO DO NORDESTE, 2008)

Cinco meses após essa reportagem (cinco de setembro), o caderno regional do

mesmo Jornal estampou a seguinte manchete: Índios Kariri lutam por reconhecimento da

tribo. Vejamos a reportagem:

Crato. Pela primeira vez os índios Kariri se reúnem com estudiosos, no Crato, para debater o processo de reconhecimento, bem como a criação de uma entidade que possa defender seus interesses. Hoje está sendo debatida a definição de um estatuto para se criar uma associação. O I Encontro dos Índios Kariri foi iniciado na manhã de ontem, no Sítio Poço Dantas, distrito de Monte Alverne, situado na zona rural do município do Crato (DIARIO DO NORDESTE, 2008).

Dessa forma os índios dos sertões dos Cariris Novos não passaram incólumes frente

a ações da sociedade não índia. Desde o período colonial, sempre lutaram e ainda lutam

pelas suas terras. Essas ações vêm despertando a atenção da sociedade como um todo e

servem como exemplo de que suas lutas em defesa de sua existência material e imaterial

jamais deixaram de existir.

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Jornais

Diário do Nordeste, caderno regional. Disponível em:

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www.cdpdh.org.br/noticias/arq/n13_povosidigenas_ceara,html. Acesso em: 17 set. 2010

HISTÓRIA E IMPRENSA: REFLEXÕES SOBRE O USO DE TEXTOS JORNALÍSTICOS COMO FONTE DOCUMENTAL PARA O TRABALHO HISTORIOGRÁFICO Benedita França Sipriano Universidade Estadual do Ceará Resumo Este trabalho objetiva discutir as relações entre imprensa e história, em especial a utilização de textos jornalísticos como fonte documental para a pesquisa historiográfica. A partir de um levantamento bibliográfico, em autores como Martins & Luca (2008), Luca (2005), Capelato (1988) e Zicman (1985), articulando com a discussão sobre discurso jornalístico Rüdiger (2003) e Mariani (1999) e linguagem Bakhtin/ Volochínov (1990); Bakhtin (2002), pretendemos trazer uma contribuição para o debate acerca das relações entre história e imprensa brasileira. O jornalismo é uma atividade de linguagem, assim, nesta pesquisa, consideramos que os textos jornalísticos não são transparentes, nem meros instrumentos transmissores de informação. As práticas de linguagem, na perspectiva aqui trabalhada, devem ser compreendidas a partir de sua historicidade, de sua efetivação nas mais diversas situações concretas de interação (Bakhtin/ Volochínov, 1990; Bakhtin, 2002). É importante destacar que a utilização da imprensa como fonte documental requer um questionamento à ideia de que os textos jornalísticos são registros precisos, “espelhos da realidade”, pois o discurso jornalístico está situado historicamente e é palco de embates ideológicos, da tensa relação dominação x resistência dos vários grupos sociais. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No final do século XIX e início do século XX, o trabalho do historiador tinha como

principal objetivo a busca pela “verdade dos fatos”, que seria atingível por meio dos

documentos. Assim, os jornais não eram considerados documentos objetivos, pois seriam

marcados por imagens parciais e subjetivas da realidade. Nesse sentido, Tânia Regina de

Luca (2005) destaca que, até a década de 1970, ainda era pequeno o número de trabalhos

que utilizavam os jornais como fonte para o estudo historiográfico. Essa autora enfatiza

que os periódicos, e o jornal em particular, eram considerados, até então, como fontes não

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confiáveis, pois não teriam o critério de neutralidade, objetividade e mesmo de

credibilidade, requisitos considerados básicos para que um documento fosse alçado à

categoria de objeto de estudo pelo historiador. Conforme Luca (2005, p.112),

Para trazer à luz o acontecido, o historiador, livre de qualquer envolvimento com seu objeto e senhor de métodos de crítica textual precisa, deveria valer-se de fontes marcadas pela objetividade, neutralidade, fidedignidade, credibilidade, além de suficientemente distanciadas de seu próprio tempo. Estabeleceu-se uma hierarquia qualitativa dos documentos para a qual o especialista deveria estar atento. Nesse contexto, os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que “essas enciclopédias do cotidiano” continham registros fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez de permitirem captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.

Assim, o uso da imprensa como fonte documental surge no bojo de uma renovação

das problemáticas, objetos, fontes e procedimentos metodológicos do fazer historiográfico.

2 O JORNAL COMO FONTE DOCUMENTAL PARA A HISTÓRIA Segundo Zicman (1985), nas relações entre História e Imprensa, destacam-se dois

grandes campos de estudos: a História através da Imprensa e a História da Imprensa. O

primeiro engloba trabalhos que utilizam a imprensa como fonte primária para a pesquisa

histórica e o segundo reúne trabalhos que objetivam reconstruir a trajetória e as

características dos órgãos de imprensa em determinado período da História. A autora

destaca que a “Imprensa é rica em dados e elementos, e para alguns períodos é a única

fonte de reconstituição histórica permitindo um melhor conhecimento das sociedades ao

nível de suas condições de vida, manifestações culturais e políticas, etc.” (ZICMAN, 1985, p.

89).

O presente trabalho tem como foco a abordagem do primeiro campo de estudos: a

utilização da imprensa como fonte documental para a História. Luca (2005) destaca que,

até a década de 1970, no Brasil, já era possível verificar um considerável número de

trabalhos voltados para a escrita da História da imprensa, entretanto ainda havia certa

relutância em se utilizar os periódicos para a escrita da História por meio da imprensa.

O uso do jornal como fonte para a pesquisa historiográfica começa a se acentuar a

partir dessa década e está inserido em um processo de reação ao paradigma tradicional de

História. Oliveira (2011) destaca que tal mudança representa um reflexo da rebelião

historiográfica contra a velha Escola Metódica. “A ‘rebelião’ buscou não apenas uma nova

interpretação do conhecimento histórico, mas também novas fontes de pesquisa para o

historiador” (OLIVEIRA, 2011, p.126).

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Essa ruptura com as práticas tradicionais da História se intensifica na segunda

metade do século XX, mas já vinha sendo desenvolvida anteriormente, em especial a partir

da década de 1920, com a fundação da revista Annales, que tem como principais

articuladores Lucien Febvre e Marc Bloch. Peter Burke (1997) destaca que o movimento

dos Analles trazia como principais propostas, em sua primeira fase63: a substituição da

tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema; a superação da

restrição dos estudos historiográficos ao campo da política; e a aproximação da história

com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a economia e a linguística. Assim,

autores como Le Goff (1998) associam a chamada História Nova a esse processo de

renovação dos estudos historiográficos, empreendido pelo movimento dos Analles. De

acordo com esse autor (1998, p.30),

Sobretudo, a história nova já tem uma tradição própria, a dos fundadores da revista “Annales d’historire économique et sociale”. [...] Antes de tudo, tirar a história do marasmo da rotina, em primeiro lugar de seu confinamento em barreiras estritamente disciplinares, era o que Lucien Febvre chamava, em 1932, de “derrubar as velhas paredes antiquadas, os amontoados babilônicos de preconceitos, rotinas, erros de concepção e de compreensão”.

Conforme Burke (1992) a chamada História Nova (ou Nova História) representa

uma reação deliberada ao paradigma tradicional e possui algumas características que se

opõem a essa tradição, entre elas: o interesse por toda atividade humana, não só a política;

“a história vista de baixo”, ou seja, a visão de que o estudo historiográfico não deve

concentrar-se nos feitos dos “grandes homens”, pois deve estar voltado para as pessoas

comuns; a crítica à suposta objetividade do trabalho do historiador e à concepção de

tradicional de documento, segundo a qual as fontes do trabalho do historiador deveriam

ser os registros escritos e oficiais. Sobre esse aspecto, Peter Burke (1992), destaca que, na

perspectiva tradicional, os estudos historiográficos deveriam utilizar como fonte registros

emanados do governo e preservados em arquivos, entretanto, “os registros oficiais em

geral expressam o ponto de vista oficial. Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos

rebeldes, tais registros necessitam ser suplementados por outros tipos de fonte” (BURKE,

1992, p. 11).

63 Segundo Peter Burke (1997), o “movimento” dos Annalespode ser dividido em três fases. A primeira, de 1920 a 1945, tem como principais representantes Lucien Febvre e Marc Bloch e caracteriza-se pela crítica à História tradicional rankeana. A segunda fase, de 1946 a 1968, marcada pela presença de Fernand Braudel, é a fase em que o movimento “mais se aproxima verdadeiramente de uma ‘escola’” (Burke, 1997, p.12). A terceira fase, iniciada em 1968, é liderada por Jacques Le Goff e Georges Duby e é marcada pela fragmentação e diversidade de abordagens.

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A partir da História Nova ocorre o que Le Goff (1998) chama “revolução

documental”, pois o campo do documento histórico é ampliado e incorporam-se outros

tipos de fontes e não apenas as oficiais. De acordo com Le Goff (1998, p.28).

Produtos de escavações arqueológicos, documentos orais, etc., uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto, são, para a história nova, documentos de primeira ordem.

A proposta de novas abordagens e novos objetos na pesquisa historiográfica

resultou na busca de novas fontes para suplementar as oficiais, assim a utilização do jornal

como fonte documental surge no contexto dessa mudança de paradigma. Capelato (1988,

p.13) destaca que “o periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já

é reconhecido como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época”. Essa autora

(1988, p. 24) enfatiza, ainda, que:

O respeito sagrado pelo documento [da história positivista] desaparece e com ele o mito do historiador-cientista, dono da verdade absoluta. Desta forma, sua tarefa [do pesquisador, sob paradigmas “modernos” ou “pós-modernos”] se tornou mais complicada. Antes dele se exigia coleta, crítica e organização das fontes; agora deve questionar e analisar seu instrumento básico de trabalho,

A utilização da imprensa como fonte documental, assim, requer um questionamento

à ideia de que os textos jornalísticos são registros precisos, “espelhos da realidade”, pois o

discurso jornalístico está situado historicamente e é palco das relações de poder que se

materializam na linguagem. A respeito dessa questão, Oliveira (2011, p.126) salienta que:

Ao selecionar o texto jornalístico como sua fonte de pesquisa, o historiador deve levar em conta que sua fonte não é um documento “puro e cristalino” que contenha todas as verdades. É importante dialogar com essas fontes, fazer entrecruzamentos com outras informações e, às vezes, buscar as razões do seu silêncio ou de sua omissão. Acima de tudo, o historiador procura manter o seu olhar crítico, pois considera que a objetividade da notícia de um texto jornalístico é “vista como uma falácia, até para o mais ingênuo dos profissionais” (OLIVEIRA, 2011, p.126).

O jornalismo é uma atividade de linguagem. Nesse sentido, as práticas de linguagem

devem ser compreendidas a partir de sua historicidade, de sua efetivação nas mais diversas

situações concretas de interação (Bakhtin/ Volochínov, 1990; Bakhtin, 2002). Assim, o

olhar lançado pelo pesquisador sobre os textos da imprensa deve ser questionador e deve

considerar fatores como as condições de produção da atividade jornalística e as relações de

confronto e poder em determinado momento histórico.

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3 SOBRE AS ORIGENS DO JORNALISMO NO BRASIL De acordo com Rüdiger (2003), a configuração do jornalismo como prática social

relativamente consistente está ligada à formação do mundo moderno, no final do século

XVII. As primeiras publicações da imprensa brasileira, porém, surgiram apenas em 1808,

com a vinda da família real portuguesa para a colônia. Até essa data, a metrópole proibira a

imprensa no Brasil. Assim, com a criação da Imprensa Régia, órgão oficial de publicação do

governo, foi possível o lançamento, em setembro de 1808, da Gazeta do Rio de Janeiro,

primeiro jornal produzido e publicado em terras brasileiras.Alguns meses antes da

impressão da Gazeta do Rio de Janeiro, Hipólito José da Costa lançara, em Londres, o Correio

Braziliense. A publicação mensal era enviada de forma clandestina ao Brasil e circulou até

1822. Conforme Oliveira (2011), “com a criação da tipografia oficial, começam a ser

produzidos não apenas a Gazeta e a documentação governamental, mas também outras

obras populares como folhinhas, almanaques e textos literários e de cunho científico”

(OLIVEIRA, 2011, p. 132).

Nos primeiros anos da imprensa no Brasil, não houve uma atividade jornalística

periódica, pois proliferaram os pasquins, publicações sem periodicidade definida,

geralmente, anônimas, nas quais predominavam, muitas vezes, o insulto e o deboche64.

Conforme Sodré (1999, p.155, 157)

O ambiente do país, na época em que surgiram e se multiplicaram os pasquins, explica de forma nítida a fisionomia áspera assumida pela pequena imprensa, comprovando que suas características eram ligadas diretamente às condições do meio. [...] Eram vozes desconexas e desarmoniosas, bradando em altos termos e combatendo desatinadamente pelo poder que lhes assegurasse condições de existência compatíveis [...]. Não encontrando a linguagem precisa, o caminho certo, a norma política adequada aos seus anseios, e a forma e a organização a necessárias, derivavam para a vala da injúria, da difamação, do insulto repetido.

Rüdiger (2003) destaca que, após 1850, há um declínio na presença dos pasquins e o

início de uma atividade jornalística propriamente dita, com a predominância do jornalismo

político-partidário, que desenvolveu a concepção de que “o papel dos jornais é

essencialmente opinativo, visa veicular organizadamente a doutrina e a opinião dos

partidos na sociedade civil” (RÜDIGER, 2003, p. 37). Segundo o autor, essa tendência

64 Rüdiger (2003) destaca que é importante distinguir jornalismo e imprensa. Segundo esse autor, o jornalismo é “uma prática social componente do processo de formação da chamada opinião pública; prática que, dotada de conceito histórico variável conforme o período, pode estruturar-se de modo regular nos mais diversos meios de comunicação, da imprensa à televisão” (RÜDIGER, 2003, p. 11).

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predominou até a década de 1930, quando se consolida a hegemonia da grande imprensa,

com os conceitos de jornalismo informativo e indústria cultural65.

Esse modelo de jornalismo informativo tem como um dos princípios a suposta

imparcialidade jornalística, segundo a qual o real deve ser descrito de forma isenta, precisa

e objetiva, em busca da verdade dos fatos. Porém, longe de ser imparcial, o discurso

jornalístico66 é mercado pelas forças políticas em confronto em determinado momento

histórico. Conforme Benites (2002, p.12)

Sendo a subjetividade uma característica inerente a toda atividade de linguagem, pode-se afirmar que não existem textos objetivos, mas recursos discursivos que constroem, tanto o efeito de objetividade como o de subjetividade. Cabe ao leitor, depreender a subjetividade e a ideologia presentes no texto, a partir do reconhecimento do conjunto de opções estilísticas utilizadas pelo locutor e da própria organização do material verbal.

Os textos jornalísticos são, pois, produtos culturais carregados de sentidos

ideológicos. O jornal surge como instrumento de que o capitalismo necessitava para o

trânsito de informações e mercadorias. Entretanto nem sempre são visíveis os processos

histórico-sociais que constituem os sentidos do discurso jornalístico e os jornais, muitas

vezes, são lidos como espelhos da realidade. Porém, a linguagem não é um simples

instrumento transmissor de informações. É sobre as implicações do jornalismo como

prática de linguagem que trataremos a seguir.

4 O JORNALISMO COMO ATIVIDADE DE LINGUAGEM

Para mobilizarmos a discussão sobre o mito da transparência, imparcialidade e

objetividade do discurso jornalístico, tomemos como ponto de partida o conhecido modelo

dos elementos básicos da comunicação, elaborado por Roman Jakobson (1989).

65 Nilson Lage considera que “a história do jornalismo brasileiro pode ser dividida em quatro períodos distintos: o de atividade sobretudo panfletária e polêmica, que corresponde ao Primeiro Reinado e às regências; o de atividade dominantemente literária e mundana, que corresponde ao Segundo Reinado; o de formação empresarial, na República Velha; e a fase mais recente, marcada por oposições aparentes do tipo nacionalismo/ dependência, populismo/autoritarismo, tanto quanto pelo uso intensivo na comunicação no controle social” (LAGE, 2001,p.20). 66 Utilizamos o termo discursojornalístico, pois, na perspectiva teórica aqui trabalhada, os textos jornalísticos são atividades discursivas, construídas por sujeitos históricos em situações concretas de enunciação.

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Segundo este modelo, todo processo de comunicação verbal se dá quando um

REMETENTE transmite uma MENSAGEM a um DESTINATÁRIO, através de um CANAL, que

seriam os meios técnicos ou uma conexão psicológica, que possibilitam o contato entre

REMETENTE e DESTINATÁRIO. Para que se estabeleça a comunicação, também é

necessário um código comum entre emissor e receptor, condição para que a mensagem

seja compreendida. Ainda de acordo com o esquema proposto por Jakobson, a MENSAGEM,

para ser operante, requer uma situação um CONTEXTO ao qual ela remete, isto é, um

referente.

Este modelo descritivo dos fatores constitutivos do processo de comunicação trouxe

uma importante contribuição para os estudos da teoria da informação ao colocar em cena

os protagonistas, sujeitos, do discurso (REMETENTE) e (DESTINATÁRIO), e, ao considerar

o contexto da mensagem. Entretanto, conforme destaca Charaudeau (2009), é “um ponto

de vista ingênuo” valorizar um modelo de comunicação social segundo o qual tudo

acontece como se houvesse entre uma fonte de informação e um receptor uma instância de

transmissão encarregada de fazer circular o saber. Esse autor (2009, p.35) enfatiza ainda

que

A fonte de informação é definida como um lugar no qual haveria certa quantidade de informações, sem que seja levantado o problema de saber qual é a sua natureza, nem qual é a unidade de medida de sua quantidade. O receptor é considerado implicitamente capaz de registrar e decodificar “naturalmente” a informação que lhe é transmitida, sem que seja levantado o problema da interpretação, nem o do efeito produzido sobre o receptor.

Nessa perspectiva, no processo de comunicação não há, simplesmente, transmissão

de mensagens e informação. Assim, linguagem nem sempre é sinônimo de comunicação.

Tampouco, comunicar quer dizer necessariamente informar.

A construção do discurso jornalístico, portanto, é marcada pelo contexto histórico-

social. Os jornais produzem leituras possíveis sobre a realidade. Tais leituras constituem-se

como um olhar, dentre tantos outros possíveis. E este olhar é parcial. Além disso, os jornais

não conseguem dar conta da totalidade e complexidade da vida real, em consequência,

pegam determinados fragmentos do real, enquanto muitos outros ficam de fora. De acordo

com Mariani (1999, p. 104),

Sendo inseridos na ordem do discurso jornalístico, alguns acontecimentos são transformados em fatos, i.e., conseguem ganhar espaço e se tornarem públicos. O que se escreve nos jornais são interpretações do mosaico que constitui historicamente uma formação social, mas são é do mosaico inteiro que se fala, apenas de sua parte hegemônica, i.e., da parte que se impõe a ler.

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O jornalismo, portanto, é uma atividade de linguagem, sendo, assim, é constituído a

partir de todas as implicações ideológicas em conflito na sociedade. As empresas

jornalísticas ocupam uma posição política e econômica na sociedade, dessa forma, muitas

vezes, interesses políticos e econômicos têm um papel predominante na construção do

discurso jornalístico.

Trabalhamos, aqui, em uma perspectiva que considera a natureza social da

linguagem, a qual se efetiva em situações de enunciação e está ligada às condições de

comunicação e às estruturas sociais, conforme preconizado por Bakhtin/ Volochínov

(1990) e Bakhtin (2002). Para esses autores, as palavras são tecidas a partir de uma

multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais: “a palavra é

signo ideológico por excelência” 67. Bakhtin/ Volochínov (1990) afirmam que o signo

linguístico se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Nesse sentido, há uma

crítica a visão estruturalista que compreende a língua como entidade abstrata,

desvinculada do contexto histórico e da prática social concreta. Segundo

Bakhtin/Volochínov (1990, p. 33),

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, mas uma sombra da realidade. (...) Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações e reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior.

A língua se constitui a partir do fenômeno social da interação verbal, ou seja, há uma

troca, um constante diálogo entre os atores da enunciação e destes com o seu contexto

histórico-social. Conforme Bakhtin/ Volochínov (1990, p.113),

Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo falto de que precede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre o locutor e o interlocutor. Se ela se apoia sobre o locutor numa extremidade, na outra apoia-se sobre o interlocutor.

A palavra, então, é plurivalente, múltipla, e os sentidos são construídos na interação

verbal. Vale ressaltar que essa troca não se dá, necessariamente, de maneira harmoniosa e

cooperativa, pois a língua é o espaço de materialização das forças sociais em embate. Nessa

perspectiva, Bakhtin/ Volochínov (1990) preconizam o princípio dialógico da linguagem,

67 Miotello (2012) esclarece que, na teoria bakhtiniana, a ideologia não é tratada meramente como falsa consciência ou como expressão de uma ideia, mas sim como expressão de uma tomada de posição determinada, “como a expressão, a organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens” (MIOTELLO, 2012, p.171).

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segundo o qual todo enunciado é uma resposta a um já-dito, ou seja, toda fala dialoga com

outra precedente, um discurso sempre fala em relação a outros. Ele não é isolado, único ou

primeiro, mas faz parte de uma cadeia de discursos que foram se constituindo

historicamente. Nesta perspectiva, o dialogismo é considerado “um princípio constitutivo

da linguagem e a condição de sentido do discurso” (BARROS, 2011, p.2).

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 2002, p. 88).

A língua, portanto, é compreendida a partir de sua historicidade, de sua efetivação

nas mais diversas situações concretas de interação. Assim, toda fala dialoga com falas que a

precedem e a sucedem, formando um elo da cadeia da comunicação verbal. Daí o

questionamento à imagem do Adão bíblico, o qual utopicamente seria o primeiro a

designar o mundo. Entretanto, toda fala se configura a partir de sua relação com o outro,

pois está repleta de “ecos e lembranças de outros enunciados aos quais está vinculada no

interior de uma esfera comum da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2002, p. 317).

Nessa perspectiva, as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios

ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais: “a palavra é signo ideológico por

excelência”. Bakhtin/ Volochínov (1990) afirmam que o signo linguístico se torna a arena

onde se desenvolve a luta de classes. A língua se constitui a partir do fenômeno social da

interação verbal, ou seja, há uma troca, um constante diálogo entre os atores da enunciação

e destes com o seu contexto histórico-social.

A linguagem, portanto, não é transparente, nem isenta. Os jornais emitem

interpretações sobre os acontecimentos a partir de determinado lugar social. Este lugar

ocupado pela empresa de comunicação acarreta toda uma implicação ideológica, o que nos

permite afirmar que noticiar não é um ato neutro. Mariani (1999, p.111) destaca:

O discurso jornalístico, como qualquer outro discurso, é produzido em condições históricas de confrontos, alianças e adesões que gerenciam e constituem as interpretações produzidas. Ao mesmo tempo, o processo através do qual isso se dá fica apagado. [...] A eficácia ideologia da transparência da informação intervém na construção, dentro do funcionamento discursivo dos jornais, de interpretações que se apresentam para o leitor como expressão da realidade.

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Assim, o discurso jornalístico produz múltiplos sentidos a partir das diversas

posições sociais em conflito em dado momento histórico. O apagamento de todo esse

processo tem uma eficácia ideologia grande, pois garante a legitimidade do discurso

jornalístico como expressão da verdade. No que se refere à escrita da história, o discurso

jornalístico é palco de acirrados conflitos que contribuem para a constituição da memória

histórica oficial. A esse respeito, Mariani (1999, p.112) enfatiza que:

O discurso jornalístico, em resumo, funciona desambiguizando o mundo, construindo modelos de compreensão da realidade. Daí seu caráter ideológico: por contribuir na construção das evidências, a imprensa atua no mecanismo de naturalização e institucionalização dos sentidos, apagando alguns processos históricos em detrimento de outros. A imprensa, então, ajuda a construir/ desconstruir a memória histórica oficial num processo que para o leitor comum passa despercebido [...]. O discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social repetidora de certa ideologia quanto, direta ou indiretamente, se deixa atravessar pelas muitas vozes divergentes também constitutivas da história.

O jornal, portanto, traz em suas páginas, as diferentes vozes sociais em conflito.

Supostamente, a presença dessa multiplicidade de vozes indicaria que o discurso

jornalístico, de fato, é neutro e imparcial. O discurso jornalístico seria, então, isento de

juízos de valor: “a voz da verdade”. Entretanto, lembremos que o jornalismo é uma

atividade de linguagem, sendo, assim, é constituído a partir de todas as implicações

ideológicas em conflito na sociedade.

As empresas jornalísticas ocupam uma posição política e econômica na sociedade,

dessa forma, muitas vezes, interesses políticos e econômicos têm um papel predominante

na construção do discurso jornalístico. No discurso jornalístico, portanto, materializa-se

essa tensão entre as vozes e os sentidos hegemônicos e as vozes e os sentidos

marginalizados. Conforme Capelato, “o confronto das falas, que exprimem ideias e práticas,

permite ao pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o significado da atuação de

diferentes grupos que se orientam por interesses específicos” (1988, p.34).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os processos históricos que constituem os sentidos do discurso jornalístico nem

sempre são levados em conta e os jornais são lidos, muitas vezes, como “espelhos da

realidade”, “verdade histórica”. Os textos jornalísticos, porém, não podem ser

compreendidos, simplesmente, como uma fonte de informação, como um meio para se

revelar a “verdade” dos fatos. O discurso jornalístico, portanto, como atividade de

linguagem, “é fruto de determinadas práticas sociais de uma época. A produção desse

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documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem

desvendadas” (CAPELATO, 1988, p. 24).

Cada jornal vai construindo uma visão de mundo específica e diferente [...] o discurso jornalístico produz leituras do mundo, isto é, se temos consciência de que ele interpreta (e, até mesmo produz) os acontecimentos, qual e como poderá ser o gesto de leitura do pesquisador interessado em analisá-lo? (MARIANI, 1999, p. 103).

Nesse sentido, a utilização da imprensa como fonte documental exige do

pesquisador uma postura questionadora sobre o material utilizado, tendo em vista que os

textos jornalísticos são práticas de linguagem, são construídos a partir de um contexto

histórico, permeado por relações de poder, portanto não são registros transparentes e

objetivos da realidade.

REFERÊNCIAS

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PROPOSTA DO PNLD 2011: METODOLOGIA NO ENSINO DE HISTÓRIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO E A ABSTRAÇÃO DA HISTORIOGRAFIA LOCAL Bruno Maciel Universidade Vale do Acaraú Resumo O presente trabalho pretende analisar o Programa Nacional do Livro Didático/2011 séries finais do ensino fundamental, o PNLD é um programa criado pelo MEC, ainda no período getulista em que o respectivo ministério abrangia dois serviços básicos, educação e saúde publica, um programa criado para a organização do processo de distribuição dos livros didáticos, em que este programa passou por varias fases de execução através de distintos órgãos responsáveis integrado ao MEC, e que, devido às idas e vindas dos órgãos responsabilizados no processo de distribuição dos livros didáticos, o PNLD só veio receber esta nomenclatura através do decreto lei nº 91. 542, de 19 de agosto de 1985. Através de um documento básico do PNLD 2011, série final do ensino fundamental, especificamente de história, e juntamente a legislação educacional, pretendo analisar a fragmentação do currículo e sua constante obliteração da história local, contrastando o conhecido curricular enciclopédico em que abrangia várias disciplinas, as quais atendiam às potencialidades cognitivas do alunado, de História regional à História da Filosofia, de Língua Portuguesa à Arte/Literatura, ao Frances, Inglês e Alemão, sobre a ótica do sistema educacional até meados da década de 1960 fornecido a pequena parcela da população, para que publico é atribuído uma educação de qualidade? Esta dissociação de uma educação de qualidade permanece no século XXI? O respectivo trabalho tem o propósito de apresentar este contraste e apresentar o método interdisciplinar, História e Literatura, como principal meio de arguir do alunado a realidade a sua volta do ponto de vista político, social e cultural devido a representações da sociedade nordestina, de modo a edificar a importância desta metodologia de ensino interdisciplinar para a história local e renegar uma história totalizante. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A presente análise deste estudo tem por objetivo elucidar por meio do guia dos

livros didáticos PNLD 2011, especificamente de história, séries finais do fundamental, a

fragmentação do currículo que desarticula o processo de produção do conhecimento do

alunado e a descoberta de suas aptidões profissionais e intelectuais, fato este, atendido

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pelo conhecido currículo enciclopédico vigente na primeira metade do século XX. Além

desta documentação básica contaremos com a legislação educacional, LDB 9394/96, PNE

(Plano Nacional da Educação), projetos do FNDE, então órgão responsável pelo processo de

distribuição e financiamento do livro didático e os Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs) que auxiliam tanto o estabelecimento de ensino com seu projeto político

pedagógico sobre a prática metodológica do corpo docente na sala de aula, quanto na

própria elaboração e editoração do livro didático, especificamente de história, e suas

formas de abordagens do conteúdo do livro didático de história aplicando temas que dêem

conta da heterogeneidade étnica, cultural e social.

O PNLD é criado sobre o Decreto Lei Nº 91.542 de 19 de Agosto de 1985, período em

que o Estado brasileiro restabelecia a democracia antes infligida constitucionalmente pela

ditadura militar. O Programa Nacional do Livro Didático surge através da iniciativa do

Ministério da Educação (MEC) visando auxiliar o trabalho metodológico/pedagógico dos

professores no processo de escolha e distribuição dos livros didáticos por meio do Guia de

Livros Didáticos, que só veio ser equipado no ano de 1996 sendo formulado apenas no ano

seguinte por uma comissão formado por profissionais do corpo docente que desenvolvem

pesquisas sobre o livro didático e, especificamente o ensino de história.

Diante da responsabilidade social no campo do magistério me atenho a entender

metodologicamente e pedagogicamente a pratica do ensino de história, através de leitura

sobre educação do qual percebo uma pratica quase que culturalmente estabelecida entre

sociedades ainda longínquas sobre a dissociação, ou dicotomia da educação publica, ensino

educacional nobre organizada adequadamente com uma boa estrutura e formação

profissional e intelectual, e ensino educacional pobre apreendido pela labuta do dia a dia e

quando atendido por uma instituição de ensino sua condição de vida, de sobrevivência é

dificultado pelas adversidades ocasionadas pela falta de renda como, por exemplo, na

compra dos materiais didáticos. A dicotomia educacional é debatida na Europa no período

onde inseria – se o desenvolvimentismo industrial, conhecida pela revolução industrial,

sendo propagada mundialmente a mudança de comportamento dos Estados Nacionais no

que diz respeito a quem oferecer a educação, dividindo opiniões que convergem causas e

consequências, relatadas por Souza (2007, p. 22):

[...] na Europa muitas controvérsias em torno da educação a ser dada ao povo. Um grupo considerável da elite política e econômica opunha – se à educação popular, considerando indesejável e perigosa; outros grupos defendiam uma educação muito limitada servindo aos interesses dos indivíduos e da sociedade, e somente

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um pequeno grupo considerava benéfica a extensão da educação a toda a sociedade.

Esse tipo de debate sobre educação repercute até os dias atuais no que diz respeito

à qualidade do ensino publico no país e é através dessa distinção no campo da educação

que elucidaremos.

2 CURRÍCULO, HISTÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA

O problema da educação norteia consideravelmente ao publico que está sendo

atendido pelo poder publico, escamoteando as mazelas da sociedade através deste serviço

básico, projeto do qual não é extraído da papelada que de forma regencial garantem os

direitos de civilidade, termo este suscitado por Elias (1990) definindo – o como uma

variante, pois, a civilidade está inserida dentro do contexto do qual a sociedade se encontra

nos tipos de habitação, aos costumes, a ideias religiosas e etc. No geral são os tipos de

comportamentos que irão gerar o status de civilidade ao individuo, e consequentemente

estabelecerá como uma das prioridades básicas, a política educacional, do qual consta na

conhecida Constituição Cidadã de 1988, no art. 6º:

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Segundo Saviani (1991) a “educação estará contribuindo para superar o problema

da marginalidade na medida em que formar indivíduos eficientes, portanto, capazes de

darem sua parcela de contribuição para o aumento da produtividade da sociedade”. Mas o

que tem haver estas informações com tema proposto? De que forma estes dados está

inserida sobre questão do currículo, a história e o próprio ensino de história? Bem, o que

tentaremos salientar é a dissociação do currículo enciclopédico, que abrangia varias

disciplinas do qual o alunado se adequava as suas habilidades intelectuais, um modelo

advindo por ideais positivistas, no que tange a conquista do progresso nacional, ideais

propagados na proclamação da republica em 19 de novembro de 1889, e o currículo atual,

onde tanto a história como o currículo e o próprio ensino de história se adequa ao modelo

politico, econômico, social e cultural no “processo civilizador”.

Até os anos setenta a escola publica ostentava sua qualidade no ensino, é nesta

década implementado em plena ditadura militar a LDB 5.692 de 11 de agosto de 1971,

onde expandiu o numero de estabelecimento de ensino fazendo com que atendesse a

demanda da população brasileira, esta democratização do atendimento escolar as massas

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fez com que colégios cuja estabilidade na sua qualidade de ensino se perdeu68 como uma

referencia, a exemplo o Liceu do Ceará, colégio instalado oficialmente no dia 19 de outubro

de 1845, referencia da capital cearense e formadora da elite cearense. O currículo do Liceu

do Ceará é denotado nas memorias de Girão (1997, p.34), do qual não se lembra de todas

as matérias devido a sua quantidade:

O curso não era mole. Havia uma grande quantidade de matérias, constando, se bem me lembro, de Português e Matemática, terrores de nós; Francês, Inglês e Latim; História do Brasil e História da Civilizações; Geografia Física e Geografia do Brasil, Desenho, Musica, Ciências, Educação Física e nem sei mais o que.

Além deste registro de memória sobre o currículo do Colégio Liceu do Ceará, dados

coletados no arquivo, pelas atas, do respectivo estabelecimento de ensino comprovam a

diversidade de distintas disciplinas dos quais eram cursadas, os cursos eram divididos

entre cientifico e clássico, o primeiro voltado mais para o mercado de trabalho, o ultimo

com características eruditas, uma formação intelectual. Podemos constatar no gráfico

abaixo:

Entre 1951 - 197269

Curso Científico Curso Clássico Português Desenho Português História Natural Matemática Francês Latim História Geral Física Inglês Grego História do Brasil Química Espanhol Canto Orfeônico Filosofia História Natural Moral e Cívica Matemática Ed. Artística His. B e Geral O.S.P.B Física Filosofia Geografia Química

Ainda devemos salientar que o curso científico de caráter estritamente trabalhista

em que o aluno já saia com uma profissão, hoje as escolas profissionais voltam com a

mesma proposta, mas o currículo “formal” se assim posso denominar, não atinge seu

objetivo, que fazer com que o aluno ingresse na universidade, contendo no currículo as

disciplinas de matemática, história, geografia, português, química, física e biologia

disciplinas dos quais cursei no Liceu do Ceará.

Já fazendo uma análise no campo da História, ou seja, na “operação histórica”,

Certeau (1976) diz que o historiador historiciza os objetos produzindo novos problemas

68 NETO, Júlio Frizola. O Liceu do Ceará e as politicas educacionais (1960 – 1975). IN: CAVALCANTE, Maria Juraci Maia (Org). História da educação no Ceará. Fortaleza. Imprensa Universitária, 2002. P.202. 69 Dados retirados direto do Livro de atas, nos quais constam as disciplinas e as respectivas notas dos alunos em cada uma das displinas. Devo salientar que o gráfico acima corresponde a anos compartimentados e analisado de uma forma geral a presença das disciplinas.

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através de novos documentos, esta adaptação da história advinda desde a Escola dos

Annales, tendo como objeto de analise, vestuário, morte, habitação, corpo entre outros

objetos que ajudam entender e abranger o contexto de determinada época. Esta Nova

História para alguns teóricos, na sua maioria filósofos, que analisam os caminhos e os

descaminhos da história veem a crise da história ocasionada pelo pós-modernidade em

pleno século XXI, essa fragmentação da história com novos objetos ambientando – se em

outras ciências humanas, como sociologia, antropologia, medicina dentre outras ciências

acaba perdendo seu papel na história. A História é uma reflexão do passado, sendo uma

reflexão do passado a história é a própria filosofia, assim defendem os filósofos da história,

a história social defende que a história é social porque está ligado aos aspectos sociais.

Esses debates na história, embora às vezes distorcidas, são importantes, pois, no

ensino de história no século XXI está ligada a formação da cidadania do alunado, e não a

mini – historiadores, “Tudo é História”, segundo Guimarães e Silva (2007, p. 69 e 127),

contrapondo determinadas reflexões de historiadores e filósofos, onde o ensino de história

percorre:

muitos exemplos de cultura material... na própria sala de aulae nos corredores e arredores da escola: corpos humanos, roupas, móveis, equipamentos esportivos e alimentos...Um de seus objetivos no ensino de diferentes graus pode ser sair desse circulo vicioso, permitindo a compreensão de outras experiências sociais em diferentes temporalidades...E o patrimônio histórico – edificado ou disperso em diferentes fazeres e saberes – contém inestimáveis elementos para a discursão daquele universo, possibilitando ao ensino de história se beneficiar da reflexão sobre objetos e experiências existentes no cotidiano de cidades e campos, em visita orientada a lugares adequados ao projeto de curso...A alegria de descobrir que o ensino de história e o processo educativo em geral abrangem qualquer momento e qualquer lugar não merece ser desdobrada num abandono das escolas, como se elas fossem lugares descartáveis. Escolas continuam a ser espaços de enorme importância para amplos setores da população que não possuem bibliotecas, laboratório e computador em casa – a maior parte dos as frequentam.

Esta tendência no ensino de história nada mais é do que propostas da legislação

educacional contando com o pleno desenvolvimento do individuo (o aluno) através do

pensamento, da arte, da cultura e no pluralismo de ideias na formação de um ser critico,

reflexivo consciente dos seus direitos e deveres na pratica cidadã, ideais defendidos pela

Constituição Federal de 1988, consubstanciada pela LDB 9394/96.

O Programa Nacional do Livro Didático de 2011, séries finais do ensino

fundamental, programa já discutido no inicio do texto, tem por uns dos objetivos

desvincular qualquer tipo de estereótipo de modo a atender a diversidade cultural da

estudantada, fazendo com que o docente faça a escolha adequada a sua realidade, ao meio

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do qual a escola está inserida, objetivo este de acordo com os Parâmetros Curriculares

Nacionais (1997, p. 28):

Mas, na medida em que o princípio da equidade reconhece a diferença e a necessidade de haver condições diferenciadas para o processo educacional, tendo em vista a garantia de uma formação de qualidade para todos, o que se apresenta é a necessidade de um referencial comum para a formação escolar no Brasil, capaz de indicar aquilo que deve ser garantido a todos, numa realidade com características tão diferenciadas, sem promover uma uniformização que

descaracterize e desvalorize peculiaridades culturais e regionais.

Mecanismo da educação que serve para padronizar, equalizar os conteúdos mais

pertinentes para a compreensão da formação étnica e cultural do país, algo contrastante

com a dimensão territorial brasileira e fragmentada em aspectos culturais, onde está

dimensão cultural não abarca todo processo civilizatório em seus pontos particulares

políticos, econômicos e sociais. Cabe indagar, se os livros didáticos têm que atender a esta

diversidade cultural, algo que não acontece, pois, acaba excluindo territorialmente lugares

que integram a sociedade brasileira, sem promover uma uniformização, como integrar as

peculiaridades culturais e regionais nos livros didáticos de história, assim descrito nos

PCN?

Como conceber uma identidade, segundo Bauman (2005), se seu “Cristo é judeu. Seu

carro é japonês. Sua pizza italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado,

turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas...”, como atender à diversidade étnica

brasileira, não pode priorizar somente uma região como forma de caracterizar o Brasil, o

nordestino tem história que não convergem em termos políticos e econômicos, mas sobre o

aspecto cultural conseguimos enxergar distinções.

O fato que é corriqueiro sobre os livros didáticos de história é que eles não atendem

aos fatos inerentes de cada Estado ou Municípios, no ponto de vista do Ceará o que consta é

apenas a figura de Lampião, ou abolição da escravatura, temas que estão presente em

quase todas as coleções dos dezesseis livros didáticos de história, do nono ano, no PNLD

2011, esquecendo – se do processo de modernização e sua consequente exclusão social

pelos representantes da terra, que até os dias atuais planejam o fim da seca, temas que

elucidarão o processo civilizatório da região para uma formação cidadã e critica do aluno. O

que notamos é que o mercado editorial suprime aos anseios da própria legislação

educacionais.

De fato devemos reconhecer que os livros didáticos do PNLD 2011, trazem temas

dos quais respeitam a heterogeneidade étnica, dando obrigatoriedade para que esses

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temas possam ser discutidos nos estabelecimentos de ensino, assim como consta no LDB

9394/96:

Art. 26 – Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna – se obrigatório o estudo da história e cultura afro – brasileira e indígena. §1º O conteúdo a que se refere este artigo incluirá diverso aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e politica, pertinentes à história do Brasil. §2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro – brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.

3 EDUCAÇÃO, UMA QUESTÃO DE CURRÍCULO?

Parte da análise feita neste trabalho, além de atentar a interdisciplinaridade no

ensino de história concebido através do meio em que a estudantada convive do qual

abordaremos mais a frente, estamos condicionados a questionar a educação. Para que

serve o sistema educacional? Como funciona? Qual é sua função? Tem objetivos diretos?

Indiretos? Consciente ou inconscientemente estes objetivos são arquitetadas, organizada

ou elaboradas?

Partindo do pressuposto no que tange a formação do educando, em seu pleno

desenvolvimento como pessoa para o preparo do exercício da “cidadania” e sua

qualificação para o trabalho de acordo com o Art. 205, da Constituição de 1988, e a própria

legislação educacional em um todo, sendo especificado no PNLD 2011 como um dos

princípios a serem respeitados e suplantados nos estabelecimentos de ensino, tendo como

a “condição de o livro didático auxiliar a formação de cidadãos conscientes.” (BRASIL,

2011). Cabe perguntar, quem é esse “cidadão”? Ou, que cidadão é esse?

A historiografia do Ceará no que corresponde a produções de trabalhos mais

recente sobre a educação da região, nos aponta a formação do alunado de um ensino

propedêutica para áreas profissionais consideradas importantes nos anos oitocentos e

novecentos, e que perdura até hoje em dia, como a medicina, o direito e a engenharia70,

onde esta classe dirigente, segundo Frizola (2002), influenciaram no direcionamento da

vida econômica, politica e cultural do Ceará, do qual é ressaltado por memorialistas como

Girão (1997). Neste período dimensionado, no ponto de vista local da escola publica, entre 70 No caso da formação de padre presente no período colonial, acredito através do contato da historiografia lida por este que vos fala, a formação de padre venha perder credibilidade no final do século XIX, e inicio do século XX, devido ao evento de 1889 e a progressiva intensificação da industrialização.

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a construção do Liceu do Ceará em 1845 até a segunda metade do século XX, o educando é

pertencente à classe dirigente, era o pleno cidadão consciente de seus direitos e deveres.

Já na observação de Frizola (2002), com implementação da Lei 5.692/71

universalizando o ensino publico para o atendimento da demanda em maior proporção da

população a escola publica começa a ser desvalorizada, logo, consequentemente o objetivo

da educação sobre modificações no ponto de vista da formação plena do educando para o

exercício da cidadania e sua qualificação profissional dando a estes alunado uma educação

fragmentada, haja vista a mudança da legislação educacional no que corresponde ao

magistério impondo a licenciatura curta, trocando a disciplina de história por estudos

sociais. Quais as perspectivas deste educando? Na maioria dos casos, tendem a caminhar

rumo ao operariado, ou seja, trabalhar nas grandes indústrias e tentar sua sorte por lá.

Claro que não devemos generalizar como uma regra geral, tendo em vista o sucesso de

determinada parcela que merece ressalva.

Sobre a ótica do educador Rubens Alves dito no Documentário – Rubem Alves o

professor de espanto, a escola no século XXI perdeu sua função de educar, ou seja, a escola

deixou de fornecer perspectivas qualificadas, bem estruturada e conceituada nos princípios

básicos do cidadão e suas oportunidades. Alves (1988), em uma de suas obras, relata que a

“educação e policia tem a mesma função, controlar o comportamento. Na educação busca –

se levar o individuo a aceitar voluntariamente as regras do jogo social, instruindo – o no

conhecimento que o tornará um “cidadão útil”. A coerção violenta aparece quando a

coerção voluntaria falhou”, dentro desta perspectiva temos um objetivo traçado pela

educação e seu conceito de “cidadania” como uma utilidade produtiva para sociedade. Ou

seja: “Não adianta prometer o que não vamos cumprir. Não dá para transformar todo

mundo em rico, nem sei se vale a pena, porque a vida de rico em geral é muito chata”

(FERREIRA, 2001), palavras de Fernando Henrique Cardoso em campanha eleitoral em

1998 na favela do Rio de Janeiro. O Estado quer disciplinar, educar ou controlar? São

hipóteses relevantes para a questão.

Todo espaço de encarceramento tem por objetivo, observar, controlar e disciplinar o

corpo, segundo Foucault (1987), a cidadania é justaposta na sociedade como algo ser

seguido e respeitado sem qualquer tipo de manifestação individual ou coletivo. O melhor

espaço de encarceramento para a disciplinarização do corpo é o exercito, onde está

condicionado a obedecer a ordens, enquanto a escola caminha com o mesmo objetivo71.

71 Idem.

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O que centra nesta pequena analise feito acima, é conceder como condição

necessária um ensino de história intercalada com a literatura de modo que o aluno conheça

seu espaço de vivencia para tomar consciência de seus direitos e deveres como cidadão

pleno de qualidade, sem a obliteração dos fatos corriqueiros no seu dia a dia.

4 CRÔNICAS: LITERATURA NO ENSINO DE HISTÓRIA

Várias pesquisas desenvolvidas desde a década de 90, década em que o país

intensificava sua redemocratização, atentaram – se sobre ensino de história, onde

questionavam a sua forma metodológica de ensinar ao educando, um modelo pragmático e

mimético, método aplicado este que dificultava a compreensão das mudanças e das

permanências na sociedade e sua vinculação como sujeito histórico ativo, conceituado pelo

sistema politico, econômico, social e cultural como cidadão, esta vigência de cidadania no

ensino de história é compreendida como algo profícuo de titulação, obliterando a

dimensionalidade do conceito de cidadania na história. Este discurso fez parte de grande

maioria dos pesquisadores no ensino de história que contribuíram para as mudanças

estabelecidas na LDB 9394/96, e consequentemente a elaboração dos PCN’s e por ultimo

de fundamental importância o Programa Nacional do Livro Didático, especificamente de

história, instrumento didático que tem o contato direto com o alunado, programa que

sobre analise de especialista no ensino de história tentam desvincular qualquer tipo de

estereotipo ou exclusão por parte da diversidade étnica e cultural.

Segundo Nadai (1993), “o movimento histórico é realizado por obra e graça de um

único agente – o individuo’’, com a análise deste trecho identificamos que o aluno é parte

integrante do “movimento histórico”, suas ações, negações, criações, imaginações e

participação são fatores que constituem o senso critico do alunado. As mudanças ocorridas

na legislação educacional brasileira, devido à contribuição das pesquisas citadas acima,

constituem os mesmo preceitos de uma educação plena de qualidade no que tange ao

ensino de história, e a própria formação critica do aluno descrito nos PCN (1997, p.27) do

fundamental:

faz-se necessária uma proposta educacional que tenha em vista a qualidade da formação a ser oferecida a todos os estudantes. O ensino de qualidade que a sociedade demanda atualmente expressa-se aqui como a possibilidade de o sistema educacional vir a propor uma prática educativa adequada às necessidades sociais, políticas, econômicas e culturais da realidade brasileira, que considere os interesses e as motivações dos alunos e garanta as aprendizagens essenciais para a formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, capazes de atuar com competência, dignidade e responsabilidade na sociedade em que vivem.

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Partindo do discurso historiográfico no que corresponde à revolução documental

propiciado por Lucien Febvre e March Block com a Escola dos Annales, e seus respectivos

sucessores como Michel de Certaeau, Le Goff, Roger Chartier e entre outros historiadores

que vem contribuindo para o surgimento da diversidade de fontes dos quais podem ser

analisada diante suas relações, minimeses, imaginário e suas representações em

determinado contexto histórico. “As palavras e as coisas” 72 a partir de uma ordem

discursiva geram valores, costumes que constroem termos selecionados e organizados

sobre representações, seja, através da escrita literária ou da escrita do historiador, ambos

pertencem a um tempo, são homens de seu próprio tempo, logo partilham de experiência e

vivencia.

Com base neste breve contexto acima, sobre história e literatura, e no longo discurso

do respectivo trabalho sobre a necessidade de fazer com que o alunado entenda as relações

e suas representações no âmbito social em que vive tornando o ensino de história mais

interessante e compreensivo, que trago como objeto interdisciplinar alguns versos das

crônicas de Juvenal Galeno, que sobre uso da toponímia, é nome de rua, colégio e a casa de

cultura, antiga residência do próprio autor.

Juvenal Galeno tinha como característica na escrita expressões e práticas populares,

sendo aqui analisados alguns versos da sua obra “Cantigas Populares”, que nem chegou a

ser publicado, contando apenas com apanhado de crônicas no qual a Secretaria de Cultura

do Ceará resgatou, homenageando o autor que falecera no inicio do século XX. Contaremos

com quatro crônicas, “Formosura”, Confissões do Frade”, “Casa Grande” e “O Cearense”.

Na crônica “Formosura”, temos a representação da mulher na condição servil em

meados do século XIX, ocupada com os afazeres doméstica e sempre dispostas aos seus

maridos e demonstrando às vezes sinais de fraqueza. Documento literário utilizado na sala

de aula no qual podemos contrastar a subserviência da mulher sobre a ótica do autor e a

mulher na atualidade.

Casei – me com Formosura Só pensando na Beleza; Agora que tenho fome - Formosura, bota a mesa! (...) E passeando no bosque, No seio da natureza... - Jantemos um doce amplexo... - Formosura, bota a mesa! (...)

72 Título do livro de Michel Foucault.

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Mas, ai, que noto em seus olhos Certos sinais de fraqueza... Que, decerto, outro alimento... - Formosura, bota mesa!

A segunda e terceira crônica, assim como a primeira já explicitada acima, trata das

relações sociais, ou seja, praticas do cotidiano diante da moralidade ou nas formas de

servidão, como na crônica “Casa Grande”, e as praticas ao ar livre descrito na segunda

crônica “Cantiga de Frade”:

Ai, tempos que não mais voltam... Ai, tempos que longe vão!” Os ricos se confessavam Com fervor, com devoção; (...) Novenas, missas, responsos... (...) Nos conventos, a fartura, Hoje em dia a privação; (...) Ai, tempos! Nenhum herege Escapou do fogo, então, Nas fogueiras sacrossantas Da divina Inquisição; Nas praças o pelourinho Servia de correção!

A partir destes versos podemos discutir com os alunos tanto as praticas da

Inquisição constituída com a Contrarreforma e a separação do Estado da igreja, devido à

proclamação da republica, na descrição dos “conventos, fartura. Hoje em dia a privação”.

Enquanto em “Casa grande” denota o tratamento com os escravos sobre açoites, e a própria

calamidade das secas que não só atingiam aos pobres sertanejos, mas também aos

latifundiários do nordeste, cujo codinome coronel que habitava a casa grande, sendo o mais

rico da redondeza oprimia aos que moravam próximo. São cotidianos da vida privada e da

publica que em parte possibilitará ao alunado as mudanças e permanências no seu próprio

cotidiano.

A última crônica “O cearense” o autor sintetiza a história do Ceará, onde denota a

chegada dos “desbravadores” pelo rio Ceará, a utilização da força portuguesa na conquista

do território, onde posteriormente entra em combate contra holandeses que tentavam

dominar esta terra, saindo como vencedor os lusitanos. Além de enaltecer o solo de onde

nasceu o autor, argumenta sobre as mazelas da seca e a consequente fome, doenças e a

peregrinação dos retirantes nordestinos que buscavam melhores condições de vida. A

primazia da abolição da escravatura e a terra de grandes personalidades em diversas áreas

como poetas, juristas, romancistas e militares.

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Subindo do rio acima (...) Da força pelo direito; Portugal, em seu proveito Vem cultiva – la, é senhor Mas chegam bravos da Holanda, Disputando aos portugueses (...) Sou cearense e me ufano! (...) Minha terra é mãe fecunda Que tem por milhares Que s’espalham noutros lares (...) Seca tremenda e fatal Morre gado e mirra a planta Surge a fome, peste, horrores! (...) Primeiro quebrou a algema Nos pulsos da escravidão (...)

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como empreender cognitivamente na estudantada a criticidade do aluno, se

realmente não objetivarmos o ensino de história como algo existente no cotidiano do

aluno?

O PNLD 2011 séries finais do ensino fundamental, trazem novos temas a serem

discutidos dos quais em manuais antigos obscureciam os fatos através de estereótipos

preconceituosos e excludentes, em parte ganhamos muito tanto a sociedade brasileira

quanto a educação dando ênfase na culturas afro-brasileira e indígena e suas respectiva

riqueza imaterial e material, contrario a sociedade do consumo, porem, este destaque da

pluriculturalidade no ensino de história não traz ao publico escolar a altivez intelectual,

critica e a consciência cidadã.

O aluno tem que compor o âmbito social, incluir–se, como parte integrante do

processo histórico, logo sujeito da própria história, instigando a fazer perguntas, é a

pergunta que o faz enxergar o real, os fatos e os codinomes dos costumes e praticas.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE HISTÓRIA, LÉXICO E CULTURA NA RELAÇÃO DA MISSÃO DA SERRA DA IBIAPABA, DOCUMENTO DO SÉCULO XVII, DE AUTORIA DO PADRE ANTONIO VIEIRA Francisco Carlos Carvalho da Silva Universidade Estadual do Ceará Geórgia Gardênia Brito Cavalcante Universidade Federal do Ceará Resumo O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas considerações acerca da História, dos aspectos lexicais e da cultura, elementos indispensáveis para a compreensão da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, documento do século XVII, de autoria do padre Antonio Vieira, da Companhia de Jesus. Criada em 1534 por iniciativa de Inácio de Loyola (1491-1556), a referida ordem assumiu como objetivo principal a defesa da Igreja Católica frente aos avanços da contrarreforma de Lutero (1483-1556). Assim sendo, os jesuítas, como eram chamados os padres da referida Companhia, espalharam-se pelo mundo em busca de novas almas para sua Igreja e sua fé. E é assim que, no dia 4 de julho de 1656, os religiosos destacados para a missão de catequese em terras cearenses chegam à Ibiapaba. O documento em questão foi publicado em 1904 no tomo XVIII da Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará e, mais recentemente, 2006, pela editora Almedina, de Coimbra, intitulado apenas como A Missão da Ibiapaba, de padre Antonio Vieira. Embora seja um documento de inestimável valor cultural, possibilitador de inúmeras formas de análise, nosso estudo consiste na observação dos aspectos culturais presentes na obra, mais especificamente os aspectos históricos e lexicais. Para tanto, como fundamentação teórica básica, recorreremos aos estudos de Abbade (2006), Aragão (1985), Sodré (1997), Studart (2001), Vieira (1904) e Williams (2007).

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ao longo do presente artigo, teceremos algumas considerações sobre o documento

intitulado Relação da Missão da Serra da Ibiapaba pelo Padre Antonio Vieira da Companhia

de Jesus, publicado em 1904, no tomo XVIII da Revista do Instituto Histórico, Geográfico e

Antropológico do Ceará. Tendo em vista tratar-se de um documento dos mais ricos,

necessitamos fazer um recorte que atendesse à abordagem que aqui pretendemos expor.

Assim sendo, optamos por discorrer acerca dos aspectos históricos, lexicais e culturais

presentes no referido documento. Contudo, para uma melhor sistematização do artigo,

discorreremos primeiramente sobre as origens da Companhia de Jesus e, em seguida, sobre

sua atuação na colônia brasileira, especificamente no Ceará, enfocando o relacionamento

dos jesuítas com os nativos. Na sequência, abordaremos a Relação como forma de

comunicação entre os missionários e seus superiores hierárquicos, para somente então nos

determos na análise da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba.

Como já aludimos, centraremos foco na História, na Cultura e no Léxico por

defendermos não ser possível compreender um documento de tamanha relevância sem nos

atermos aos aspectos constituintes da sua gênese.

2 A COMPANHIA DE JESUS E O MUNDO EMBRUTECIDO

Por iniciativa de Inácio de Loyola (1491 – 1556), a Companhia de Jesus foi criada no

ano de 1534. Contudo, somente por volta de 1537, juntamente com mais seis estudantes da

Universidade de Paris, é que Loyola vai para Roma solicitar ao papa Paulo III autorização

para criar a Societas Iesu, a Ordem dos Jesuítas. Autorização concedida, Inácio de Loyola

para de peregrinar pelo mundo e se estabelece em Roma em 1538, tornando-se Superior-

Geral da Companhia que acabara de criar. O referido religioso redige, então, as

Constituições, documentos esses que regerão a Companhia a partir de 1554. Sob a

liderança de Loyola, os missionários são enviados para os quatro cantos do mundo com o

objetivo de levar a palavra de Jesus aos mais recônditos lugares. Contudo, o contato entre

os missionários e seus superiores deveria ser mantido a qualquer custo. E assim, tendo em

vista as dificuldades de comunicação, escolheram a carta como forma de contato. Embora

os assuntos tratados nas cartas fossem os mais variados, com o tempo a carta se torna a

principal forma de relatar os acontecimentos nas chamadas missões. Era através dela, da

missiva, que todos deveriam compartilhar seus sucessos e suas dificuldades. Uma vez

tratar-se a carta de um verdadeiro relatório, recebeu oficialmente o nome de Relação.

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A logística da Companhia de Jesus em “espalhar-se pelo mundo” acaba por se tornar

necessária para a Igreja Católica, tendo em vista a ofensiva causada pela Contrarreforma de

Matinho Lutero (1483 – 1556), a qual resulta na divisão da cristandade romana. Acuada, a

Igreja Católica começa a ver seu rebanho se dispersar. Assim, na tentativa de defender sua

Igreja, os Jesuítas avançam pelo mundo em busca de novos seguidores. Para tanto, os

jesuítas não mediram esforços. Se havia um lugar, lá estavam os jesuítas. Embora

mudassem os métodos de conversão, os objetivos continuavam sendo os mesmos. Assim,

se na Europa buscavam reforçar o catolicismo através do ensino, nas conquistas

ultramarinas ibéricas, buscavam sua expansão via catequese, assumindo em tempo integral

a chamada “vocação da Companhia”, recebendo por isso o epíteto de “Soldados de Cristo”.

Dessa forma, os jesuítas estiveram na América do Norte, na América do Sul, na África e no

Oriente, tornando-se não apenas divulgadores do Evangelho, mas precursores de diálogos

entre culturas. Os jesuítas, homens já vivendo numa cultura renascentista, produziram

relatos (a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba é um exemplo) sobre povos, hábitos e

línguas, além de fundarem cidades e escreverem dicionários.

No Brasil não foi diferente, já no início da colonização, defendendo os interesses da

Coroa, os jesuítas chegaram em 1549, acompanhando Tomé de Souza e liderados pelo

Padre Manuel da Nóbrega (1517 – 1570). De início, conforme Vainfas (2012:16-17),

acreditaram que, por tratar-se de uma sociedade menos complexa que as orientais, a

catequese seria mais fácil, e alguns chegaram a escrever que os tupinambás não tinham

religião. Assim, Nóbrega esboçou seu plano de aldeamento, cujo passo inicial era deslocar

os índios para aldeias controladas pelos padres. Missionar no mundo indígena era ineficaz

e perigoso. E os jesuítas perceberam isso da pior maneira possível. Um deles, Pedro

Correia, acabou sendo comido pelos índios carijós, na região de Cananéia, em 1554.

Os jesuítas tinham objetivos previamente calculados e determinados. Assim sendo,

não se limitariam apenas aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. O ideal

era se embrenhar cada vez mais na mata, interior adentro, na busca de servos para a obra

do Senhor. Tudo, como dizia o lema da Companhia, para a maior glória de Deus e serviços do

Reino. E é com essa determinação que os jesuítas aportaram também no Nordeste

brasileiro. E, por volta de 1556, já havia casas nas principais capitanias do País. Objetivo?

Oferecer o ensino elementar complementar da catequese aos indígenas, o que deve ser

compreendido como o embrião do império que estava por vir, constituído de missões,

igrejas, colégios e seminários. Para Porto (2012:20-21), no entanto, ainda havia uma vasta

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região a ser conquistada: os 2.400 quilômetros que se estendiam de Pernambuco até o

Maranhão pela costa, e os confins que se estendiam para o interior.

Como nem sempre a palavra era o suficiente para que os nativos “se entregassem a

Jesus”, os jesuítas não hesitavam em recorrer ao fio da espada na tentativa de convencer

aqueles mais “descrentes’. E é dessa forma, que o homem europeu, católico, branco e

“superior” descarta completamente, no mais claro exemplo de violação, uma cultura já

existente, impondo sua própria cultura como referencial a seguido. Do auge da sua

superioridade, o conquistar impõe à força a sua fé ao “outro”, que como “bárbaro” que é só

resta se submeter. Convém, no entanto ressaltar, que a dominação do mais forte sobre o

mais fraco no Brasil colônia não era monopólio dos jesuítas, uma vez que inúmeros outros

povos com diferentes interesses também campeavam as terras do País. A Companhia de

Jesus, no entanto, era apoiada em seu intento por outras relações de poder. Entre elas, a

Coroa Portuguesa e a Igreja Romana.

Sobre isso, observemos o que afirma Sodré (1997, p.81):

Catequese religiosa e expansão ultramarina constituíram uma antinomia e não poderiam deixar de levar a contradições profundas nas áreas coloniais. Conquanto a catequese não tenha sido monopólio da Companhia de Jesus, a verdade é que acabou por se confundir com ela, ficando as demais ordens em segundo plano. Nos primeiros tempos, nas áreas de colonização ibérica, foi sobre os discípulos de Loyola que recaiu a quase totalidade do esforço da catequese. Eles deram-lhe fisionomia e conteúdo, e sofreram, por isso mesmo, as consequências da antinomia.

Os recorrentes conflitos entre catequistas, colonizadores e bandeirante não se

mostravam oportunos. Ao contrário, eram entraves ao acordo entre a Coroa Portuguesa e a

Igreja Romana, tendo à frente a Companhia de Jesus, que tinha como objetivo expandir

seus domínios. Para tanto, uma nova estratégia começava a ganhar corpo. Para as novas

investidas, evitar-se-ia recorrer ao poder dispersivo da espada, mas à cruz, empunhada

pelas mãos generosas dos missionários da Companhia de Jesus.

3 A CERTIDÃO DE NASCIMENTO DO CEARÁ

Com o objetivo de cumprir sua parte no acordo pré-estabelecido, os jesuítas se

embrenham nas matas do Nordeste, numa missão quase espartana. Não havia tempo a

perder. E assim, das empreitadas dos jesuítas por terras cearenses, foram legados para a

posteridade dois importantes documentos prenhes de relevantes informações para a

compreensão de um dos mais ricos períodos da nossa história. São eles: a Relação do

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Maranhão, considerada a certidão de nascimento do Ceará, do padre Luiz Figueira e a

Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, do padre Antonio Vieira.

Assim sendo, considerando-se a interdiscursividade que une os dois documentos,

teceremos algumas considerações sobre a Relação do Maranhão como aporte para as

observações que faremos mais adiante acerca da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba.

Dessa forma, no dia 20 de janeiro de 1607, os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira

embarcam no Recife rumo ao Ceará. A ideia missionária de conquistar o Maranhão, afirma

Aragão (1985) surgiu por deliberação de Fernão Cardin, reitor do Colégio da Bahia e

entusiasta da catequese maranhense. O historiador ainda afirma, que a escolha dos

referidos padres jesuítas se deu por serem predestinados do martirológio e serem amantes

do mundo embrutecido.

Conforme Aragão (1985, p.31):

Nessa primeira etapa, fez-se a viagem por via marítima, com o aproveitamento de navios salineiros. Desembarcaram no rio Mossoró, a 2 de fevereiro seguinte, e, nesse local permaneceram durante alguns dias. Não conduziam armas nem petrechos de guerra, mas serviam-se apenas de índios domesticados e designados para os trabalhos de guia e condução de alguns pertences.

Sobre a chegada dos referidos religiosos ao Ceará, observemos o mesmo relato nas

palavras do Barão de Studart (2001, p.6):

20 de janeiro – Os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam-se no Recife para a cathechese dos índios do Ceará em um barco, que ia carregar nas salinas de Mossoró. Acompanharam-os 40 índios, potiguares, tobajares e tupinambás. Prosseguindo pela costa septentrional 120 leguas, desembarcam no porto do Jaguaribe e d’ahi fazem seu caminho por terra a pé em demanda da Serra da Ibiapaba, tendo antes se encontrado com o chefe potiguar Algodão ou Amanay, que os acolheu com estima e respeito e sob cuja proteção estabeleceram uma aldeia, que tomou o nome de Ceará, da qual mais tarde se de tacaram duas outras com os nomes de Parangaba,e Paupina e muito posteriormente a de Caucaia (...).

Os dois historiadores cearenses adaptam para seus textos, o trecho inicial da Relação

do Maranhão, escrita pelo jesuíta Padre Luiz Figueira, enviada ao seu superior Cláudio

Aquaviva. Nas palavras do próprio padre tem-se:

PAX CHRISTI. No mez de jan.ro de 607 p. ordem de Fernão Cardim pr.al esta pr.a nos partimos pera a missão do Maranhão o p. e fr.co Pinto e eu cõ obra de sessenta Indios, cõ intenção de pregar o evangelho aaquela desemperada gentilidade, e fazermos cõ q’ se lançassem da parte dos portugueses, deitando de si os frãcezes corsairos q’ lá residem pera q’ indo os portugueses como determinão os não avexassem nem captivassem, e pera q’ esta nossa ida fosse sem sospeita de engano pareceo bem ao p. e pr. alq’ não levássemos conosco portugueses e assi nos partimos sós co aquelles sessenta Indios (FIGUEIRA, 1903, p.97).

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A jornada que os dois padres empreenderam pelas entranhas nativas das matas locais

não se mostrou das mais agradáveis. Inúmeras foram as adversidades enfrentadas pelos

dois missionários. Chuvas torrenciais, rios transbordantes e caminhos lamacentos se uniam

à fome, aos insetos, aos animais peçonhentos e ao intransponível da mata numa espécie de

provação a qual estavam submetidos, tendo a obrigação de vencê-la, para realizar a missão

para a qual haviam sido enviados. Com enorme esforço, transpuseram a Serra dos Corvos,

hoje Serra da Uruburetama, sentido na própria pele a inospitalidade dos tristes trópicos

habitados por homens “sem almas”, carentes de conversão. Sobre as adversidades

enfrentadas, Figueira afirma:

Nesta triste serra dos corvos parece q’ se juntarão todas as pragas do brasil, innumeráveis cobras e aranhas a q’ chamão caranguejeiras, peçonhentissimas de cuja mordedura se diz q’ morrem os homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranham.t e e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora e assy parecião os índios leprosos das mordeduras, nem eu fizera caso de escrever essas cousas senão foram extraordinarias (...) (Figueira, 1903, p.103).

O assassinato do Padre Francisco Pinto foi, certamente, o coroamento às avessas da

tentativa dos jesuítas de alcançarem o Maranhão. Impossibilitado de prosseguir, o Padre

Luiz Figueira comunica, via carta (datada de 26 de agosto de 1609), aos seus superiores, as

razões do fracasso da Missão, listando pelo menos seis motivos para tal e, mesmo assim, se

oferecendo para uma futura empreitada se assim for o desejo da Companhia. E assim o foi.

E se o sabemos é a partir da abertura do documentoRelação da Missão da Serra da

Ibiapaba, o qual afirma que o referido religioso retorna à Ibiapaba, onde é assassinado,

assado e comido pelos índios, em um local denominado de barra do Grão-Pará, no ano de

1643.

Ao escrever a Relação do Maranhão o Padre Luiz Figueira estava cumprindo as

orientações que haviam sido criadas pelo fundador da Companhia de Jesus, Inácio de

Loyola. Desde a criação da Companhia de Jesus, a obrigação de se escrever cartas já era

uma realidade. Durante toda sua vida, Inácio de Loyola teria escrito por volta de 7000

cartas nas quais tratava não apenas das questões relacionadas ao funcionamento das obras

da Companhia, mas também sobre a forma, o conteúdo e o estilo na feitura das missivas.

Produzir cartas e enviá-las aos superiores era algo já previsto nas Constituciones, o

documento que contém as normas que regem a Ordem.

Documento de fundamental importância para os estudos de História, cultura e língua

brasileiras, especificamente para o Ceará, não se sabe, se é que ainda existe, onde se

encontram os originais de tal narrativa. A versão disponível na Revista do Instituto

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Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, tomo XVII (www.institutodoceara.org.br)

para pesquisas é, conforme Florival Seraine (1987), uma reprodução de uma fotocópia,

cujo original se acha guardado no arquivo S. J. Romanorum e que teria sido entregue ao

Barão de Studart, historiador cearense, pelo jesuíta P. J. B. van Meurs, do Limburgo

Holandês, por ordem do Superior Geral da Companhia de Jesus.

O texto em questão constitui-se de extrema importância para os estudos de História,

Filologia, Linguística, Historiografia e Etnografia, entre outros. Contudo, uma vez que não

se conhece seu paradeiro, o que impossibilita uma edição crítica, por exemplo, acabamos

por reafirmar nossa incompetência na manutenção das nossas próprias memórias. No

entanto, se por um lado a Relação do Maranhão se limita a edição à qual já aludimos, a

Relação da Missão da Ibiapaba foi publicada no ano de 2006 em forma de livro pela editora

Almedina, de Coimbra, organizado por António de Araújo, com prefácio de Eduardo

Lourenço e posfácio de João Viegas; afirmando os devidos créditos de autoria ao Padre

Antonio Vieira. E é sobre esse documento que passamos a tratar.

4 A RELAÇÃO DA MISSÃO DA SERRA DA IBIAPABA: CONSIDERAÇÕES SOBRE HISTÓRIA, LÉXICO E CULTURA

As narrativas produzidas sobre o Brasil colonial são caracterizadas por discorrerem

sempre sobre os mesmo aspectos, ou seja, os hábitos dos nativos, as riquezas naturais, a

fauna e a flora. E assim sendo, os documentos produzidos pelos jesuítas que por terras

cearenses estiveram não fogem a regra.

Embora tenhamos ressaltado a existência de duas versões da Relação da Missão da

Serra da Ibiapaba, optamos por trabalhar aqui com a versão da Revista do Instituto

Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (www.institutodoceara.org.br), numa

tentativa de se manter certa uniformidade, uma vez que são da mesma fonte as referências

que fizemos acerca da Relação do Maranhão. Assim sendo, a edição da Relação da Missão da

Serra da Ibiapaba constitui-se de cinquenta e três páginas impressas, numeradas do

número oitenta e seis ao número cento e trinta e oito, disponíveis no tomo XVIII da referida

Revista. Os assuntos a serem abordados ao longo do documento são previamente

apresentados, uma vez que o corpo da Relação traz dezessete subdivisões, indicando cada

um dos assuntos a serem tratados. O texto de Padre Antonio Vieira se inicia com a seguinte

observação, posta logo abaixo do título do documento: “primeiros Missionários da

Companhia de Jesus que no Brazil passarão por terra ao Maranhão: seus trabalhos. Morre na

empreza o venerável padre Francisco pinto, e outros” (p.86). Tendo em vista os negócios

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entre a Igreja Católica e a coroa portuguesa, não é com bons olhos que nosso narrador vê a

presença dos holandeses em território nacional, bem como sua relação como os nativos

tabajaras. Mas não eram apenas os holandeses a ocupar terras nordestinas. A gênese da

formação do povo brasileiro, a miscigenação, algo que só bem mais tarde seria observado

por Gilberto Freyre, já era devidamente notada por Vieira, o qual mais uma vez não vê com

bons olhos a tal miscigenação. Deduz-se que, para ele, toda essa presença estrangeira em

nada contribuía para a efetivação dos objetivos da Companhia em terras nordestinas. Eis o

que afirma o religioso:

[...] eram verdadeiramente aquellas aldeãs uma composição infernal ou mistura abominável de todas as seitas e de todos os vícios, formada de rebeldes, traidores, ladrões, homicidas, adúlteros, judêos, hereges, gentios, atheus, e tudo isto debaixo de nome de Christãos, e das obrigações de Catholicos. (VIEIRA, 1904, p.94).

Certamente que o posicionamento do Padre Antonio Vieira não é apenas seu, mas de

toda uma Europa sedenta por conquistar cada vez mais espaço e de uma Igreja

descobridora das benesses advindas das conquistas. Assim sendo, a história do Ceará e a

cultura daí surgida estão impregnadas pelos resquícios da ambição eurocêntrica, a

derrama do sangue nativo e a imposição de uma fé que nem de longe era a desejada.

Embora não se justifique, o povo nativo cearense não foi o único “bárbaro” a sofrer tal

violação. Por toda a América Latina, muitos povos foram invadidos, violados, extirpados de

suas famílias e expropriados de seus bens e, muitas vezes exterminados em nome de uma

cultura que não desejavam para si e em nome de uma fé que não era a sua. Documentos

como a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, se lidos detidamente, dizem muito dessa

dominação histórico-léxico-cultural a qual o povo cearense especificamente, e o povo

latino-americano, genericamente, esteve submetido.

Além dos aspectos históricos e culturais, a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba

também possibilita o estudo da língua sob suas mais variadas vertentes. Que sejam: a

fonética, a morfologia, a sintaxe e o léxico. Destarte, tendo em vista a exiguidade de espaço,

não nos permitimos discorrer sobre todas essas vertentes. Assim sendo, no que concerne a

língua, fizemos um recorte acerca do léxico. Mais especificamente, acerca do que

denominamos aqui de “léxico do sagrado”. Ressaltamos, porém que o termo “sagrado”,

nesse caso, não deve ser compreendido como oposição ao “profano”, muito menos ao

“bárbaro”, ao “outro” ou ao “selvagem”. Se assim fosse, estaríamos afirmando que um léxico

é sagrado enquanto outro não é. Nossa intenção é, no entanto, proceder a um levantamento

de alguns termos usados na narrativa do Padre Antonio Vieira (logo, estamos tomando o

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léxico do sagrado de apenas uma das partes), sem contextualizá-los, mas expondo-os na

tentativa de observarmos quanto à sua manutenção (ou não) ao longo dos últimos cento e

nove anos, se tomarmos por base 1904, o ano de publicação do referido documento e 2013,

ano da elaboração do presente artigo.

Para tanto, acreditamos ser necessário um discorrer, mesmo que breve, sobre a

conceituação dos termos sagrado e cultura. Dentre muitas das suas acepções, o termo

sagrado, conforme o Dicionário Houaiss (2004), pode significar “aquilo que inspira ou deve

inspirar respeito ou profunda veneração” e ainda “que não se deve infringir; inviolável”. O

termo cultura, por sua vez, tem sua origem no ato de cultivar. Contudo, sua mais conhecida

acepção é, ainda conforme o Houaiss, “o conjunto de padrões de comportamento, crenças,

costumes, atividades etc.”. Tais conceituações nos servem aqui, para observarmos o quanto

ambas podem ser aplicadas tanto ao colonizador quanto ao colonizado e, discuti-las neste

momento nos guiaria para fora do objetivo proposto. Registramos, porém, com o intuito de

deixarmos claro não desconhecermos as diferentes vozes envolvidas no discurso que se

tem na narrativa do documento em questão. Dos aspectos culturais remanescentes das

relações operadas entre portugueses e nativos, a influência do colonizador na formação da

língua pátria foi, certamente, o fator mais relevante. Contudo, como bem nos lembra

Abbade (2006):

Língua, história e cultura caminham sempre de mãos dadas e, para conhecermos cada um desses aspectos, faz-se necessário mergulhar nos outros, pois nenhum deles caminha sozinho e independente. Portanto, o estudo da língua de um povo é, consequentemente, um mergulho na história e cultura deste povo (ABBADE, 2006, p. 214).

Destarte, o imbricamento entre língua, história e cultura é observável na narrativa

do Padre Antonio Vieira ao relatar aos seus superiores os acontecimentos do processo de

catequização, que o trouxe até o interior do Ceará. Convém-se notar a preocupação do

referido padre com a língua, uma vez ser ele considerado o melhor orador em língua

portuguesa de todos os tempos. Assim sendo, nada em sua narrativa é desproposital ou

fora de lugar. Nada sobra. Nada falta. Cada termo, cada lexia está exatamente onde ele quis

que estivesse. Assim, ao abordarmos os termos religiosos usados pelo autor em questão,

limitamos o léxico à sua conceituação mais geral. Conforme Dubois (2007): “a palavra

léxico designa o conjunto das unidades que formam a língua de uma comunidade, de uma

atividade humana, de um locutor etc.”. Embora se trate do léxico da comunidade jesuítica a

partir da pena do locutor Padre Antonio Vieira, o “léxico do sagrado” se mostra por demais

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oportuno para compreendermos a permanência, a evolução ou a estagnação de parte da

constituição lexical do sagrado em língua portuguesa.

Tomado o documento Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, procedemos ao

levantamento de todos os termos relacionados ao sagrado. Ao todo, sem levarmos em

consideração aqueles que se repetem, identificamos 127 termos.

Passamos a apresentar os dados coletados. Para tanto, seguem os quadros

demonstrativos com os termos organizados em ordem alfabética.

ORDEM

ALFABÉTICA TERMOS OCORRÊNCIAS

A Abel, Adoração, Alma, Anjo (da guarda), Apostólico,

Arrependido, Ateu.

07

B Babel, Batizado, Bem, Blasfemar, Blasfemo. 05

C Caim, Calvinista, Capelão, Castigo, Catecismo, Católico, Céu,

Companhia (de Jesus), Conta (terço), Converter, Convertido,

Cristãos, Cruz, Culpa, Cizânia, Colher, Confissão, Consolação,

Comungar.

19

D Demônio, Deus, Devoção, Divindade, Divino, Doutrina, Dor. 07

E Endoença, Escritura, Esperança, Espiritual, Exorcismo. 05

F Fé, Feiticeiro, Fervor, Fidelidade, Formosura, Fruto. 06

G Glória, Glorioso, Graça, Grandeza. 04

H Herege, Heresia, Hóstia. 03

I Igreja, Imagem, Inferno, Injúria, Ira, Irmão. 06

J Jejum, Judeu, Justiça. 03

L Louvor. 01

M Majestade, Mal, Manjar, Matrimônio, Milagre, Ministro,

Misericórdia, Missa, Missão, Missionários, Mistério, Moisés,

Morte.

13

O Obediência, Ovelha, Obstinação, Oração. 04

P Padecer, Padre, Pagão, Páscoa, Pastor, Paz, Pecado,

Penitência, Perdão, Perdição, Predestinado, Pregação,

Pregador, Pranto, Profecia, Profeta, Protestante, Providência

(divina).

18

R Reino, Relicário, Remir, Renunciar, Reverência, Rito,

Riqueza, Rogar.

08

S Sacerdote, Sacramento, Sacrifício, Sagrado, Salvação, Sangue,

Santa (fé), Santo, Seita, Senhor, Superior.

11

T Temor, Templo, Tentação, Trigo, Trono. 05

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V Veneração, Virgem. 02

Em termos gerais, percebemos que, mesmo passados 109 anos da publicação da

Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, não se observou nenhum acréscimo ao léxico do

sagrado, (no caso, reforçamos tratar-se de um campo semântico comum à fé católica).

Nota-se que os termos listados se compõem de nomes próprios, adjetivos, verbos e

substantivos; sendo que alguns desses termos podem às vezes, quando contextualizados,

assumirem outra classe gramatical ou até mesmo indicarem outra significação quando

postos em contextos diferentes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegado ao século XXI o homem ainda luta para conseguir ter seus direitos

respeitados; seja no que diz respeito à sua liberdade individual, à liberdade de expressão

ou à assunção da sua identidade. Isso, contudo, não tem se mostrado tão simples assim. A

civilização do espetáculo tal qual analisada por Vargas Llosa (2013), mas já anunciada

como sociedade do espetáculo, por Guy Debord (1967) tem causado intrigante

interferência naquilo que se convencionou chamar de cultura. Se o conceito de cultura

estava ligado ao ato de cultivar, como bem nos lembra Raymond Williams (2007), não nos

parece mais ser bem assim. Instaurou-se, na verdade, uma cultura do efêmero, do

descartável, que acaba por impedir que se perceba o que é realmente relevante para a

constituição de um estado que se pretenda nação, ou seja, de um povo que se pretenda

cidadão.

Analisando por essa ótica, percebe-se que um documento como a Relação da Missão

da Serra da Ibiapaba é de relevante importância para a compreensão da gênese do povo

cearense, por possibilitar seu estudo através de diferentes áreas do conhecimento. É,

certamente, objeto para a Linguística, a História, a Historiografia, a Etnografia e a Filologia;

somente para citarmos algumas áreas.

Dessa forma, tentamos fazer algumas considerações acerca do referido documento,

mas cientes da impossibilidade de abarcá-lo como um todo, tendo em vista sua amplitude.

No entanto, acreditamos ter alcançado o objetivo proposto no título do artigo que agora

encerramos, por considerarmos o estudo da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba

proporcionador de possibilidades para inúmeros outros estudos que contemplem a língua,

a linguagem, o discurso, a história, a cultura, bem como suas múltiplas acepções, ações,

atividades, ressignificações e usos.

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REFERÊNCIAS

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ARAGÃO, R. B. História do Ceará. Fortaleza: IOCE. Vol. 5. 1985.

BAUMAN, Z. Europa: uma aventura inacabada

.Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

______.Ensaios sobre o conceito de cultura. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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DUBOIS, J. Dicionário de linguística. São Paulo: Cultrix, 2007.

FIGUEIRA, Pe. Luis apud STUDART, G. A Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta Padre Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva.Revista do Instituto do Ceará. 1887, Tomo I, p.97-138, site: HTTP://www.institutodoceara.org.br/. Acesso em: 03 mai. 2012.

HOUAISS. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

LLOSA, M. V. A civilização do espetáculo -uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura.Tradução: Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

SODRÉ, N. W. O que se deve ler para conhecer o Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

STUDART, B. Datas e fatos para a história do Ceará. Edição fac-similar. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara. Tomo I, 2001

VIEIRA, A. Relação da Missão da Serra da Ibiapaba pelo Padre Antonio Vieira da Companhia de Jesus. Revista do Instituto do Ceará, 1904, tomo XVIII, p.86-138, site: http://www.institutodoceara.org.br/. Acesso em: 03 maio 2012.

______. A Missão de Ibiapaba. Coimbra: Almedina, 2006.

VILELA, M. O léxico da simpatia.Porto: Inic, 1980.

WILLIAMS, R. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução: Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.

DISCURSOS LETRADOS DO INÍCIO DO SÉCULO XX: LEONARDO MOTA E O PROJETO DE CULTURA NACIONAL Juliana TaliaRibera de Holland Universidad Federal do Ceará Resumo Leonardo Mota foi folclorista cearense que ficou conhecido, nos círculos intelectuais de todo o país, como O Embaixador do Sertão. Defendia a ideia de um Sertão alegre, com sujeitos que não corresponderiam a figura caricaturada do Jeca, e sim personificariam “o estado dinâmico da nossa inteligência, a intuição anelante dos fenômenos estéticos, cúpula e base de todas as nacionalidades”. Mota utilizou-se da palavra escrita e da oralidade para realizar a sua defesa de uma nova imagem do Sertão e da cultura sertaneja. Optando por produzir sua defesa não só em livros impressos no Rio de Janeiro e em Fortaleza, mas, também, em alguns jornais cearense (chegou a criar seu próprio periódico, intitulado Gazeta do Sertão, em Ipu no ano de 1916), e em artigos para o Instituto

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Histórico do Ceará. Estudar a obra escrita de Leonardo Mota, é analisar os discursos produzidos no período, as tradições e rupturas estruturais tanto na escrita e documentos jornalíticos, como na crítica textual e literária das décadas de 20 e 30 do século XX. Analisando, ainda, através dos jornais, revistas e livros do período, os espaços de sociabilidade e os ostracismos que ultrapassavam o universo da escrita e se materializavam nos lugares de saber e de lazer utilizados pelos intelectuais do período. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nas décadas de 20 e 30 do século XX, percebe-se um forte movimento dos

intelectuais e poetas de todo o Brasil em torno de uma reavaliação acerca das questões

nacionais (como identidade, símbolos, cultura, ...). Ao mesmo tempo, havia uma reavaliação

sobre a forma de entender o ser letrado no país (a nomenclatura intelectual passava a ser

mais utilizada do que a de letrado, no final da década de 20 do século passado). Essa

reavaliação sobre o papel social e intelectual do letrado, assim como a comunicabilidade e

conhecimento das diferentes ideias que eram produzidas e reproduzidas no campo

artístico e intelectual73do País, formam um conjunto de fatores importantes para se

entender as tentativas transformadoras e de consolidação de uma identidade e cultura que

seriam nacionais.

Contudo, essas tentativas transformadoras e consolidadoras de uma identidade e

cultura nacionais e as reflexões acerca do papel social do ser letrado no Brasil, já podiam

ser percebidas desde a década de 70 do século XIX, assim como o uso da nomenclatura

modernpara nomear um grupo letrado e que ia permeando as falas e as escritas dos

letrado-intelectuais do país. Desse modo, deve-se entender a atuação e as nomenclaturas

dos letrados brasileiros das primeiras décadas do século XX não como totalmente

inovadoras e autônomas, pois elas seriam um desdobramento do movimento intelectual

brasileiro do final do XIX. Nesse sentido, a historiadora Mônica Velloso (2003, p. 354)

chama a atenção de que:

já existia no Brasil um movimento literário que foi denominado pelo crítico e historiador José Veríssimo de 'modernismo'. Tobias Barreto, Sílvio Romero, Graça Aranha, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha destacaram-se como intelectuais que compunham esse grupo, conhecido como a 'geração de 1870'. Se conhecemos bem algum desses nomes, geralmente não associamos as suas figuras e produção literária ao nosso modernismo. Isso acontece justamente porque acostumamos a pensar o modernismo como um movimento espaço temporal definido: São Paulo,

73 O conceito de campo artístico e intelectual é entendido aqui segundo a noção de Pierre Bourdieu (e não a de Lukacs e Goldmann), que o entende como um “universo relativamente autônomo de relações específicas: com efeito, as relações imediatamente visíveis entre os agentes envolvidos na vida intelectual”, onde devem ser percebidas as relações entre as posições sociais, políticas, científicas dos sujeitos (para Bourdieu “agentes sociais”) que ocupam um determinado campo intelectual ou artístico.

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1922. Geralmente não prestamos a devida atenção aos 'sinais de modernidade' que já vinham despontando, das mais distintas maneiras, em várias regiões e cidades. Na virada do século XIX, vai ocorrer uma série de modificações técnico-industriais que alteram, de maneira drástica, as percepções e sensibilidades sociais.

O entendimento de ser moderno foi se transformando, nas primeiras décadas do

século XX, no meio letrado do país. Ser moderno era romper com estilos e discursos dos

intelectuais do passado que tinham suas produções entendidas como ultrapassadas e que

não correspondiam com o movimento de modernização e de progresso que ocorria no país.

Os debates em torno da nacionalidade brasileira, nesse período, constituiu-se, assim, como

um desdobramento, mas não continuidade, das modificações de “percepção e

sensibilidades sociais” das produções letradas do país, que haviam constituído seus

esforços em resposta às representações negativas do Brasil no exterior e na própria

mentalidade brasileira, que eram “caracterizadas pelo 'atraso cultural' e pela 'inferioridade

étnica'” (VELLOSO, 2003, p. 355). Essas representações podiam ser percebidas nos

sentimento de inferioridade que permeavam o campo intelectual do país, influenciando as

tentativas de reconstruções das imagens da cultura e da identidade nacional, produzidas

pelos letrados, principalmente, através dos seus escritos literários e científicos. Gilberto

Nogueira (2005, p. 50) diz:

A nossa literatura, tomando o termo tanto no sentido restrito quanto amplo, tem, sob este aspecto, consistido numa superação constante de obstáculos, entre os quais o sentimento de inferioridade que um país novo, tropical e largamente mestiçado, desenvolve em face de velhos países de composição étnica estabilizada, com uma civilização elaborada em condições geográficas bastante diferentes. O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra todavia ante particularidades de meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhe propõe, e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes.

O ser letrado/intelectual no Brasil assumira para si, desde o século XIX,

aresponsabilidade e a missão de elaborar outros conhecimentos e enunciar verdade (ou

verdades) sobre a identidade e cultura nacionais, missão essa que se tornou concernente à

“atividade do intelectual engajado”, como acentuou a historiadora Helenice Rodrigues Silva

(2002, p.17):

A atividade do intelectual engajado, para não dizer a sua própria existência, é conflitual e ambivalente. Por um lado, ele tem por função a produção do conhecimento, a elaboração das ideias, por outro, investido por essas mesmas ideias, ele 'enuncia a verdade'. A prática do intelectual se situa, então, entre dois pólos distintos e contraditórios: a produção do saber e a enunciação da verdade. A tentação ideológica ameaça os intelectuais a partir do momento em que eles tendem a considerar o saber uma ideologia e esta última como uma verdade. Desse modo, na ideologia do progresso leva-o a produzir novos mitos.

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2 DISCURSOS LETRADOS NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Uma revisão do papel social do letrado era acompanhada da construção de uma

mentalidade de que era somente um homem das letras quem poderia e deveria produzir os

conhecimentos em torno dos assuntos sociais e ideológicos da nação e de produzir outros

mitos e simbologias nacionais. Os letrados/intelectuais seriam, assim, os portadores do

conhecimento necessário para o progresso e modernização da sociedade em seus aspectos

culturais, educativos, memorialísticos, simbólicos e imagéticos. Através de seus textos

literários e científicos é que se consolidaria uma reavaliação histórica das questões

nacionais e sociais do país, Nicolau Sevecenko (2002, p.33) salienta:

O que seus textos destacam é o escopo panorâmico da revisão histórica, empenhada em desmontar o nacionalismo romântico, ao mesmo tempo em que formula um ambicioso projeto de refundação republicana do Brasil, em íntima conexão com os potenciais do conhecimento, das tecnologias contemporâneas e do rearranjo das forças políticas no plano internacional.

Destarte, um dos elementos que permeou a mentalidade letrada, sendo alvo de seus

debates e dos seus esforços escriturários, foi o cultural. A busca e as tentativas de

consolidação dos elementos culturais do país que representariam, por fim, uma cultura

brasileira e que seriam parte importante na construção identitária, tornou-se uma marca

profunda nos escritos e debates letrados do país nas primeiras décadas do século XX. É

nesse debate, e nas tentativas de reagrupamento e reconhecimento cultural, que podem ser

notadas as alternativas e experiências sociais dos intelectuais brasileiros e os julgamentos

destes sobre as diversas práticas culturais brasileiras. O termo cultura assumia o aspecto

de abstração porparte dos intelectuais, que a trabalhariam no sentido de construir um

“novo tipo de sociedade”, como bem colocou Raymond Williams (1969, p. 24) ao analisar o

universo intelectual inglês e as transformações ideológicas e conceituais de vários termos,

como cultura:

cultura como uma abstração, como algo de absoluto: surgimento que, primeiro, o reconhecimento de uma separação prática entre certas atividades morais e intelectuais e o ímpeto vigoroso de um novo tipo de sociedade; segundo, a elevação dessas atividades a uma espécie de corte de apelação para o homem, posta acima dos processos de juízo social prático e, ao mesmo tempo, como alternativa moderadora e reordenadora. Em qualquer desses sentidos, cultura não foi apenas uma resposta aos novos métodos de produção - à nova Indústria. Ligava-se também aos novos tipos de relações pessoais e sociais, constituindo, repito, um reconhecimento de separação prática e uma forma de acentuar alternativas.

Novas alternativas para se pensar o nacional surgiram com as inovações técnicas de

produção industriais, de tecnologias para o lazer (como o cinema) e para o transporte, dos

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discursos progressistas, das inovações estilísticas literárias e artísticas que eram

desenvolvidos no exterior e que chegavam ao Brasil, nas primeiras décadas do século XX.

Entretanto, essas novas alternativas que surgiam para pensar o social, eram acompanhadas

das construções de certa liberdade ou autonomia intelectual, mas, também de limitações no

universo escrito dos letrados. Pois, como afirmou o historiador Roger Chartier (1994, p.

106):

Deve-se constatar que toda construção de interesses pelos discursos é ela própria socialmente determinada, limitada pelos recursos desiguais (de linguagem, conceituais, materiais, etc.) de que se dispõem os que a produzem. Essa construção discursiva remete portanto necessariamente às posições e às propriedades sociais objetivas, exteriores ao discurso, que caracterizam os diferentes grupos, comunidades ou classes que constituem o mundo social. Em consequência, o objeto fundamental de uma história cujo projeto é reconhecer a maneira como os atores sociais investem de sentido suas práticas e seus discursos parece-me residir na tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os constrangimentos, as normas, as convenções que limitam – mais ou menos fortemente, dependendo de sua posição nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, enunciar e fazer.

Num país de grande extensão, com uma profunda marca histórica de “recursos desiguais”

(a que se refere Chartier acima) entre as regiões que o compõem, as fronteiras74geográficas

e sociais constituíram-se como um elemento significativo nas construções e percepções

sociais dos intelectuais brasileiros. Dessa forma, entender o meio social dos intelectuais ou

letrados é imprescindível para a análise histórica, visto que ele interfere na produção ou

criação individuais, assim Lucien Febvre (1989, p.209) afirmava:

O meio social penetra à priori no autor da obra histórica enquadra-o e, numa larga medida, determina-o na sua criação. E, quando esta está pronta, ou morre, ou então, para que ela viva é preciso que sofra a colaboração ativa, a terrível colaboração das massas, a pressão do meio, irresistível e constrangedora. Por outras palavras, a sociedade é para o homem uma necessidade e uma realidade orgânica. [...] E o indivíduo recebe as suas determinações desta sociedade; são-lhe um complemento necessário. 'Ele tende para a vida social como para o seu estado de equilíbrio'.

O meio letrado do país também se compunha, paradoxalmente, como espaço de

liberdades criativas e também de limitações dos discursos. Essas limitações eram sentidas,

principalmente, pela intelectualidade do Norte e Nordeste do país, que, ainda nas décadas

de 20 e 30 do século XX, eram reconhecidas pelos intelectuais sulistas como um grupo e

região únicos: o Norte. Constituiu-se, assim, no período, uma organização e agrupamento

social dos intelectuais do país composto e regido pela dicotomia entre o Norte e o Sul.

74 Segundo Anthony Cohen: “A fronteira simboliza a comunidade para seus membros de dois modos diferentes: é o senso que eles têm de sua percepção pelas pessoas do outro lado - a face pública e a maneira 'típica'- e é sua noção da comunidade como retratada através de todas as complexidades de suas vidas e experiências - a face privada e a maneira idiossincrática”.

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3 LEONARDO MOTA E OS DEBATES EM TORNO DE UMA CULTURA NACIONAL

Se as pressões e constrangimentos de uma imagem negativa e pessimista do Brasil

no exterior era forte e incômoda para os letrados do sul do país, eram-nas ainda maiores

para os intelectuais do nortistas. Pois além de trabalharem contra as representações

pessimistas estrangeira, também lidavam com o pessimismo que permeava a mentalidade

social do próprio país em relação às práticas culturais, sociais, produtivas e tecnológicas do

Norte e Nordeste, e, ainda, em relação à própria formação intelectual dos letrados do Norte

(MATOS, 1994, p.22-23). Dessa maneira, o esforço dos intelectuais nortistas consistia tanto

numa reavaliação da cultura como também na tentativa de se inserir nos debates dos

letrado-intelectuais do sul do país (que se constituíam como as elites letradas do país)

sobre as questões nacionais. Isso pode ser percebido através dos esforços de intelectuais

como Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Cornélio Pires, Gustavo Barroso, Leonardo Mota.

Assim, é significativa a crítica de Oscar Lopes publicada no jornal carioca O País, de 5 de

agosto de 1921:

A capital dilúe, com dolorosa frequência, as celebridades das províncias. A história literária ou seiculáfica, a história parlamentar, têm as suas páginas repletas de naufrágios dessa espécie, na sua maioria talvez de lastima e piedade, porque, em geral, as víctimas do desastre estavam convencidas de que vinham deslumbrar o centro e na hora do choque rolam grotescamente de alturas imaginárias, sem que na vertiginosa descida encontrem um ponto de apoio que lhes attenue as consequências do esborramamento completo. Há, evidentemente, as compensações, embora em número muito menor. Entretanto, não conheço nenhum caso tão immediato e de brilhante triumpho como o desse moço cearense, o Sr. Leonardo Motta.

Era nesse ambiente desigual que as práticas e discursos de Leonardo Mota

passaram a possuir uma característica importante: a de propagação de uma união da classe

letrada. Assim, ele afirmava “Não medram no nosso meio os Mecenas. Por quê? Talvez

porque eles, os argentários, reparem que a classe dos letrados continua cada vez mais

desunida, o que, decididamente, é a 'desgraça da classe'...” (MOTA, 1925, p.22). Trabalhava,

também, para que houvesse um maior diálogo e interação entre os letrados/intelectuais do

país, fossem os ditos modernos, passadistas, regionalistas, etc. Nessas suas práticas e

discursos pode-se perceber “a tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou

das comunidades e os constrangimentos, as normas, as convenções que limitam – mais ou

menos fortemente, dependendo de sua posição nas relações de dominação – o que lhes é

possível pensar, enunciar e fazer”, a que se referiu Roger Chartier. As tensões (exclusões,

embates, depreciações, etc.) entre os intelectuais brasileiros se perpetuavam com o passar

dos anos, ainda sendo percebidas, nos primeiros anos da década de 30 do século passado,

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como denunciou Leonardo Mota, em dezembro de 1934, em artigo para o jornal paraibano

Folha do Norte:

Vivem os intelectuais dos diferentes Estados do Brasil no displicente desconhecimento um dos outros. Tudo que aconteça, 'intra muros' das diferentes circunscrições territoriais do país, dificilmente repercute na opinião nacional. Duvido que os literatos paraibanos estejam em dia com o movimento cultural gaúcho. É de se apostar em como um homem de letras do Paraná vive jejuno das novidades literárias do Maranhão. Quem pretender renome procure o Rio de Janeiro, em cujas mãos continúa o monopólio da irradiação consagradores dos valores beletrísticos.

Nota-se, nessa passagem, como os valores e divulgações das produções intelectuais

ainda eram produzidas de forma desigual no país. O Rio de Janeiro continuava a ser o berço

de uma elite intelectual brasileira. Para desenvolver projetos intelectuais que visassem o

nacional, era imprescindível que as obras e ideias dos letrado-intelectuais fossem

submetidas à crítica carioca. Dessa maneira foi que Leonardo Mota desenvolveu a

divulgação e valorização de sua obra. Os Cantadores (1921), Violeiros do Norte (1925),

Sertão Alegre (1928), No Tempo de Lampião (1930), todos esses livros folcloristas

passaram primeiramente pela crítica carioca, para depois Leonardo Mota dar continuidade

à divulgação das suas ideias em conferências proferidas por várias cidades dos estados de

São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte,

Ceará, Piauí.

Ao contrário do histórico de rejeição dos letrados nortistas, Leonardo Mota teve, no

período, uma boa aceitação de suas obras e conferências no meio intelectual. Teve seus

estudos e ideias reconhecidas em todo o país, chegando a ser considerado pelos críticos e

literatos que escreviam para jornais e revistas, como O Sacy e América Brasileira, como um

dos “homens das letras brasileiras”. Diversos jornais do país publicavam suas crônicas e

solicitavam suas críticas sobre os assuntos folclóricos e sobre produções e discursos de

outros intelectuais sobre as questões culturais, como as de Mário de Andrade. Na notícia da

morte de Virgulino Ferreira, o Lampião, o jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro,

publicava parte do primeiro capítulo do livro No Tempo de Lampião, de Leonardo Mota,

para descrever uma pequena trajetória do conhecido cangaceiro. Hoje, entretanto,

dificilmente é trabalhada academicamente a produção de Leonardo Mota, ao tratar do

movimento de reavalição cultural ou os escritos folcloristas das décadas de 20 e 30 do

século XX.

Alguns estudos, como, por exemplo, o de Francisco Firmino, Alegorias da Maldição,

percebem a atuação de Leonardo Mota como regionalista, devido a se considerar apenas os

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dois movimentos que foram importantes na intelectualidade brasileira do século XX: o

modernismo e o regionalismo. Alguns estudos acadêmicos e intelectuais, que analisam as

décadas de 20 e 30 do século passado, tendem a trabalhar somente essas duas correntes,

parecendo só ter existido essas duas possibilidades na reavaliação cultural e identitária do

período. Contudo, essa prática é simplista e infrutífera, pois exclui as alternativas, práticas

e discursos dos intelectuais do período, como as de Leonardo Mota, que não era nem

modernista nem regionalista. Mota pensava e discutia os assuntos etnográficos e

paremiológicos pensando um projeto nacional de incorporação da cultura interiorana

numa cultura popular brasileira, que era muito discutida naquele período.

Leonardo Mota não pretendia que fossem ensinadas ou apreendidas as tradições

culturais sertanejas ou que certas práticas culturais fossem preservadas como desejavam

os regionalistas (OLIVEN, 1992, p.36). Na sua crônica para o jornal O Povo de 10 de março

de 1934, afirmava:

Claro que ninguém está a exigir que os nossos poetas versejem à maneira do cego Sinfrônio, ou que os nossos prosaístas se exprimam em linguajar plebeu. Entretanto, não são dispiciendas as observações sobre a poética dos nossos rústicos menestréis esôbre as peculiaridades da gente simples. Desmoralizam, pelo menos, a cretina e impatriótica criação do jecatatuísmo derrotista. É bonito, reconheço, saber interpretar ao piano Listz, Beethoven ou Chopin. Mas, nem por isso devemos deixar de estudar os motivos musicais populares, porquanto somente estilizando-os teremos arte genuinamente nacional. É o que acertadamente estão compreendendo os srs. Vila Lobos e Marcelo Tupinambá.[...] Não ensinemos a juventude a tocar viola talqualmente o fazem o Jacó Passarinho e o Azulão, mas indigitemos neles as manifestações de nossos pendores artísticos, imaginando as possibilidades de suas inteligências desaproveitadas.

Dessa maneira, ele queria que a cultura interiorana fosse conhecida, analisada,

valorizada e incorporada como parte da cultura nacional. A cultura que ele defendia não

desaparecera nem dava indícios de desaparecimento, naquele momento, que eram o

espírito satírico, criativo, o humor, presentes nas poesias, cordéis, músicas, causos e

linguagem das populações interioranas. Assim, esses aspectos, que constituiriam uma

inteligência sertaneja, não deviam ser preservados para Leonardo Mota, mas, sim,

valorizados como parte cultural e base dos sentimentos nacionais (MOTA, 1925, p. 24).

Além disso, Mota não considerava um problema a adesão a simbolismos festivos vindos do

estrangeiro; assim, aceitou caracterizar- se de Papai Noel na festa natalina de 1933,

promovida por Henriqueta Galeno. Em seu discurso, como Papai Noel, na Casa Juvenal

Galeno, criticava o exagero de alguns poetas e letrados de quererem modificar a figura do

Papai Noel velho, gordo, de roupa vermelha, por figuras como “Pai João” ou “Vovô Índio”:

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[...] Cantarolam por aí, em desmentido: Dizem que Cristo nasceu em Belém... A História se enganou: Cristo nasceu na Bahia, meu bem, e uma baiana o criou! Aqui está um abrasileiramento difícil de se documentar, mas explicável num país facecioso que se esforça por substituir a clássica figura de um 'Papai Noel' velhinho e branco por um charoço bronzeado e antropófago, encadernado na lírica antonomásia de 'Vovô Índio'. Não pega! Afirmo-o com todo o devido respeito: não pega! Apesar da minha simpatia pelos aborígenes [...]. Eu votava, de preferência, por um 'Papai João', advertindo até pela circunstância de haver, em contrapeso, a viabilidade de se cultivar paralelamente uma 'Mãe Preta’. [...] Não seja, contudo, nem 'Vovô Índio' nem 'Pai João' quem hoje celebremos: seja o mesmo 'Papai Noel', em torno de quem hoje estejamos genufletindo com o orbe todo. [...] Outros bardos, como Filgueiras Lima, se atrevem em travestir um 'Papai Noel' modernista e audacioso: Olhe, menina, Eu sou o seu papai noel um papai noel moderno, sem barbas brancas e sem saco às costas É muito mais prodigo, Muito mais sentimental Do que o velhinho da lenda...

Seus esforços também não eram modernistas, como chegou a afirmar a escritora

Raquel de Queiroz em artigo para o jornal O Povo de 15 de janeiro de 1948. Ao contrário,

Leonardo Mota, até 1934, criticava os chamados modernistas, pois acreditava que eles

rompiam e depreciavam os escritores e poetas antigos, sendo algumas vezes chamado de

“passadista”. Ele não acreditava ser necessário o esquecimento e desapreciação da

produção beletrista de escritores e poetas do passado. Para Mota, deveriam ser respeitadas

as produções intelectuais mesmo que não se concordasse com o estilo e as ideias

defendidas nelas. Ele mesmo não concordava com algumas das construções e ideias de

Euclides da Cunha, José de Alencar, Thomáz Pompeu, mas apreciava o esforço e

importância intelectual desses escritores para as letras nacionais. Outro ponto de

discordância de Leonardo Mota estava num dos preceitos do nacionalismo modernista: ser

universal, pois nacional (OLIVEN, 1992, p.33). Assim ele escrevia, em 13 de janeiro de 1934,

para o jornal O Povo:

Quintino não troca pelo resto do mundo este velho Ceará de nossos pecados: 'A Pátria é o mundo? - Mentira! Nem o amor tal me convença! Si essa fôra a nossa crença, O mundo eu não preferia... A Pátria que entendo e amo, É o canto obscuro que amo, Que me prende e me seduz! Assim não sou do Universo, Que a Pátria é meu berço, Meu berço – A Terra da Luz! [...]” Estouva-se o Edgar de Alencar e faz versos modernistas como estes: “Na feira livre dos Estados Unidos do Brasil Ceará armou barraca: Tem renda de bilro,

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Tem milho, pacopaco, Algodão, carnaúba e rapadura... Mas a especialidade é outra: - Secas e talento!”

Além disso, os modernistas da primeira geração pensavam o Sertão de modo

contrário ao de Leonardo Mota, que via como heróica a maneira como viviam os sertanejos

(MOTA, 1928, p.59). Mário de Andrade expressava sua percepção sobre o Sertão, em 1928,

no seu diário, da seguinte maneira:

A desgraça climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É medonha. O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial, porém uma falsificação hedionda. Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez para acertamos o nosso trabalho de homens. Euclides [...] transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopéia... Não se trata de heroísmo não. [...] Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora.

Outro elemento deve ser percebido na análise das transformações, jogos, embatesse

debates no campo intelectual do início do século XX. São os espaços ou lugares de saber,

que se constituíram como um espaço de interatividade, criados por e para os

letrados/intelectuais do período. Esses espaços eram significativos para se estabelecerem

as parcerias entre os intelectuais, as divulgações de ideias, os debates sobre reavaliações

ideológicas e identitárias nacionais, as construções de autoridade e de identificação do ser

intelectual. As Academias de Letras assumiram um papel importante como “redes

intelectuais” no universo letrado do País, assim como os clubes sociais, institutos históricos

e agremiações literárias. Sirinelli (1994, p.224-225) expõe que:

A história das redes intelectuais contribui para a compreensão dos fenômenos de influência e define o papel do indivíduo num micro-ambiente social. O seu objeto é o de práticas intelectuais que dão forma a conteúdos [...]. A anatomia dinâmica das redes faz sobressair os modos de difusão de uma e outra causa, bem como os diferentes níveis de adesão que atraem. [...] As instituições constituem outras [redes],muitas vezes mais estáveis. As redes são então um produto de um efeito de instituição, quer este seja material, resultante de uma simples proximidade física (os indivíduos frequentam regularmente os mesmos lugares), quer simbólico (existem solidariedades de instituições que convém sempre estabelecer de fato), quer ainda profissional (quando os indivíduos trabalham juntos).

No caso cearense, foi reorganizada a Academia Cearense75, no ano de 1922,

passando a ser chamada de Academia Cearense de Letras (ACL). Justiniano Serpa, Barão de

Studart, Quintino Cunha e Leonardo Mota foram os reformuladores da ACL, que passou a

75 Fundada em 15 de agosto de 1894, possuía até sua primeira reorganização apenas 28 cadeiras. Em 1922, ainda permaneciam na Academia apenas oito sócios, mas não se reuniam mais e deixaram de publicar a sua revista.

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contar com 40 cadeiras efetivas de sócios (sendo oito delas ocupadas pelos antigos sócios

da Academia Cearense), sendo um espaço de debates e de solidariedade entre os

intelectuais. Nenhuma escritora ou poetisa cearense figuravam no quadro da associação

dos letrados, o mundo letrado era ainda um espaço fundamentalmente masculino. No ano

de 1930, com a movimentação e os amplos debates sobre o mundo das letras que já ocorria

nos anos anteriores, foi realizada a segunda reformulação e reinauguração da ACL.

Sob a presidência do dr. Leiria de Andrade reuniram-se hontem, na residência do escriptor Walter Pompeu, os membros organizadores da Academia Cearense de Letras[...]. Depois de o sr. Leiria de Andrade explicar a razão de ser da reunião, convidou o sr. Walter Pompeu e Luiz Sucupira para secretários. Houve, em seguida, longos debates sobre o nome que deveria tomar a nova corporação, sendo, por fim, adoptado o de Academia Cearense de Letras, passando-se, então a discutir e aclamar os nomes de intellectuaes que deveriam completar a lista de quarenta acadêmicos [...].76

A nova organização da Academia Cearense de Letras tinha como presidente de

honra Matos Peixoto e presidente efetivo Antônio Sales. Vinte sete intelectuais, que tinham

composto a ACL de 1922, deixaram de fazer parte do quadro efetivo de sócios por

divergências pessoais, políticas e ideológicas com os novos membros, entre eles Barão de

Studart, Leonardo Mota, Quintino Cunha e Rodolfo Teófilo. Assim como em 1922, no novo

quadro de sócios não havia nenhum nome feminino, não por não haver escritoras

conhecidas e bem vistas pela crítica literária do período, pois se tinha Raquel de Queiroz,

Suzana de Alencar, Henriqueta Galeno. Nota-se, aqui, como nos espaços intelectuais

também se manifestavam relações de poder e de desigualdade social. Contudo,

paradoxalmente, o “tecido urbano” também oferecia alternativas de manifestações de certa

liberdade e das “reivindicações de autonomia”, como afirma Roncayolo (1986, p.480):

Na verdade, são mal conhecidos os mecanismos através dos quais uma cultura popular, eventualmente uma contracultura, modifica os objetos urbanos e os modela. Esta reflexão convida simplesmente a pensar que os moldes de habitar não são meros reflexos das desigualdades ou mesmo dos conflitos sociais enquanto tais. Conviria procurar através do tecido urbano as manifestações de liberdade, as reivindicações de autonomia, a construção do coletivo ou a defesa do privado, à margem das hierarquias sociais existentes.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reproduziram-se, assim, as hierarquizações sociais, culturais e políticas nesses

lugares. As relações de poder e de desigualdades se manifestava também no mundo

intelectual, transpunham as páginas dos livros, dos periódicos, das revistas e se

76 O Povo, 22 de maio de 1930.

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manifestavam nos lugares que foram apropriados como espaços de divulgação, de diálogo e

de união entre determinados grupos letrados. Mas, ao mesmo tempo, também podem ser

constatados, no “tecido urbano”, as “manifestações de liberdade” a que chamou atenção

Marcel Roncayolo ao estudar a cidade, pois, ao mesmo tempo em que se criam espaços

onde se percebe uma hierarquização ou separação entre grupos sociais ou intelectuais e

artísticos, também se podia criar ou estabelecer outros espaços de sociabilidade, liberdade,

parceria e autonomia. No caso dos intelectuais cearenses, criou-se outra academia, de

nomenclatura provocativa, a Academia de Letras do Ceará:

Esteve hoje nesta redação um grupo de intellectuaes conterrâneos, communicando- nos que será instalada nestes dias mais uma academia de letras, denominada 'Academia de Letras do Ceará' e da qual, entre outros, farão parte os seguintes literatos: Quintino Cunha, Alba Valdez, Gilberto Câmara, Henriqueta Galeno, Gastão Justa, Filgueiras Lima, Raquel de Queiroz [...]. O quadro de honra será constituído dos seguintes intellectuaes: Juvenal Galeno, padre Antônio Thomaz,Rodolpho Teóphilo, Barão de Studart [...]77

Na Academia de Letras do Ceará, percebe-se a presença de algumas escritoras e

figuram no quadro de honra da instituição recém criada alguns dos nomes dos primeiros

fundadores da Academia Cearense de Letras que haviam sido retirados na reformulação da

ACL, como Barão de Studart e Quintino Cunha. A nova Academia possuía também quarenta

sócios efetivos, sendo a grande maioria nomes do movimento modernista cearense.

Leonardo Mota também não fez parte dessa Academia, somente retornará ao quadro em

1937. Depois da primeira participação na fundação da Academia Cearense de Letras, ele

passou a não ter tanto interesse em compor as academias de letras que existiam no país.

Dizia, em carta endereçada ao seu filho Moacir, de 9 de dezembro de 1934:

A grande novidade que até me acanho em referir é que a estudantada cearense levou minha candidatura à vaga de Humberto Campos na Academia Brasileira! Imagina que fiasco vou sofrer! Não alimento a mínima esperança de vitória, mas não pude deixar de atender ao apelo de Arruda, Yaco, Lourival e numerosa comissão do Centro Estudantal Cearense que veio cá em casa convencer-me de que tenho o direito de aspirar às palmas acadêmicas e de envergar o fardão e o espadim. Tenho o senso do ridículo, mas tive de me render. Isso, afinal, me aproveitará, pelo rataplã que se fará em torno do meu nome. A imprensa local acolheu com simpatia a iniciativa da mocidade e a macacada está disposta a fazer um estardalhaço dos diabos... Era o que faltava: quem escapou à morte candidatar-se à... imortalidade!

Apesar de dizer que havia cedido ao apelo dos estudantes na carta ao filho,

Leonardo nunca chegou a oficializar sua candidatura para a Academia Brasileira de Letras

77 O Povo, 23 de maio de 1930.

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(ABL) em nenhuma das vezes que teve seu nome lembrado. Preferia o convívio com os

intelectuais e jornalistas no Café Glória, Bar do Brahma, Instituto Histórico do Ceará (a

partir do ano de 1932) e no Salão da Casa Juvenal Galeno.

A Casa Juvenal Galeno foi um dos espaços letrados de Fortaleza onde se percebia

uma maior manifestação de liberdade e autonomia intelectual, constituindo-se uma “rede

intelectual”. Fundada em 27 de setembro de 1919, tinha como objetivo, desde sua

fundação, a divulgação e comunicação das ideias literárias e o incentivo e acesso dos jovens

às produções literárias do Brasil. Na Casa Juvenal Galeno percebia-se uma maior

preocupação na inovação e diálogos entre os letrados, assim como a movimentação e

transformações das ideias de vários intelectuais. Um exemplo é Leonardo Mota que

passava a não criticar mais os modernistas como antes, chegando a defendê-los, assim

como a participação feminina nas letras em sua crônica intitulada Deixemos de Leirias!,

publicada em 19 de janeiro de 1934, no jornal O Povo:

A humanidade sempre maldisse da época em que está vivendo, ao passo que se voltou com saudade para o tempo que se foi. Nós, no Ceará, temos o vezo de, quando se fala no momento intelectual que ora dellue, muchochear desdenhosamente dos poetas e escritores contemporâneos. Turma brilhante era a da Academia Francesa; falange luzida era a da Padaria Espiritual[...] Hoje...e torcemos a cara, num gesto de desprezo pelo valimento de nossos cerebrais vivos. Uma injustiça, porquanto a atualidade mental cearense não é de estagnação ou nirvanismo, como eu próprio já tive ocasião de escrever em horas fugitivas de desconsolo. O que hoje nos falta é o espírito gregário, o gosto associativo. A não serem os serões do 'Salão Juvenal Galeno', onde uma radiosa mentalidade feminil anima e estimula as atividades estéticas, tudo quanto produzimos se vem realizando em ação isolada, individual. A Academia de Letras do Ceará e a Academia Cearense de Letras mui de raro em raro nos dão o ar de sua graça. Só o Instituto do Ceará se reune consuetudinariamente [...] mas este é tão pouco amante da divulgação de seus trabalhos que o que se faz ali tem a publicidade do que se opéra num sarcófago.[...] Deixemos de lerias! Si temos razão para nos orgulharmos de nosso pretérito, também a temos para nos envaidecermos de nosso presente, e, até, para confiarmos no nosso porvir. Eu, pelo menos, respondo quanto aos 'novos' homenageados ultimamente na Casa de Juvenal…78

Nessa passagem, é notório que as divergências de pensamento entre os intelectuais

brasileiros ou entre os fortalezenses gerava, ao invés do diálogo, uma distância e desunião

entre a “classe letrada”. A falta de “um espírito gregário” ou do “gosto associativo” no meio

intelectual, que denunciou Leonardo Mota, demonstrava as dificuldades de se manter

debates produtivos e de conhecimento real das ideias do outro que se perpetuaram nos

anos 30 local ou nacionalmente. Além disso, a crítica de Mota aponta para um fato

interessante, o da mudança produzida no universo letrado, que já não seria de

78 O Povo, 19 de janeiro de 1934.

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exclusividade masculina, sendo a “mentalidade feminil” a responsável em estimular “as

atividades estéticas” e o diálogo entre os intelectuais e artistas, em Fortaleza. Percebe-se,

ainda, que os valores e ideias dos intelectuais eram destoantes, sendo formadas diferentes

agremiações ou instituições, como, no caso fortalezense, o Instituto Histórico, a Casa

Juvenal Galeno, as Academias de Letras. Desse modo, era difícil a concretização de uma

união da “classe letrada”, pois as divergências de valores e ideais entre os

letrados/intelectuais nos primórdios do século XX, geraram uma “nocividade” que lhes

separavam e que tornava difícil “refluir o saber” (SIRINELLI, 1998, p.276).

Os lugares de saber construídos pelos intelectuais representam, ainda, outra

questão social muito característica do início do século XX: a não participação, no

movimento de construção da cultura nacional, dos sujeitos que tinham a sua cultura

analisadas (fosse positivamente ou não) pela intelectualidade do período. Havendo uma

nítida separação entre intelectuais e população simples, humilde e, em sua maioria,

analfabeta. A cultura em seu estado “puro” estaria presente no interior do povo, mas

somente os intelectuais eram capazes de reavaliar e julgar os costumes e hábitos que

constituiriam uma “cultura popular” (DAVIS, 1990, p.188). Assim, a cultura no período

pode ser entendida como “um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre troca

entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena

de elementos conflitivos” (THOMPSON, 2008, p.17).

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DESAFIOS BIOGRÁFICOS: UMA ANÁLISE DA RECONSTRUÇÃO DA TRAJETÓRIA DE ADÍSIA SÁ Luiza Helena Amorim Universidade Federal do Ceará Resumo No âmbito acadêmico, o fazer biográfico transita com facilidade tomando saberes e metodologias interdisciplinares, ao mesmo tempo que requer dos pesquisadores reflexões historiográficas, além de uma visão crítica sobre o biografado e o contexto em que este está inserido. O mercado editorial tem investido na produção do gênero biográfico, imprimindo diferentes títulos que vão dos que relatam trajetórias que narram a história não oficial a outros em que explicitamente há mais preocupação com a apologia que à análise, o que pode fazer ou não com que se encaixem na categoria de fontes históricas. No entanto, outros se colocam como importantes documentos históricos que revelam a história coletiva através do olhar e das ações de um sujeito. Todo processo de construção da narrativa biográfica passa por diversas fases como a pesquisa, captação de entrevistas, documentação, interpretação dos dados, seleção e edição do material coletado. Muitos questionamentos podem ser feitos a cerca desta práxis: Quais os principais desafios do biógrafo? Que fontes foram utilizadas, confrontadas ou esquecidas? Como o pesquisador deve proceder com estas fontes e materiais coletados, em termos técnicos? Como escapar das armadilhas da memória

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da oralidade? Há de se dar relevância também aos fatores subjetivos que levam o pesquisador a apropriar-se deste material e tratá-lo de uma determinada forma, o que se traduz na forma como a história é contada e com que objetivo. Há também fatores que desafiam o biógrafo no tecer na memória: questões éticas, estéticas, e principalmente a difícil contraposição entre interesse público e privado. Esta pesquisa pretende contribuir com este diálogo, tendo como objeto a análise do processo de re-construção da imagem/biografia da jornalista Adísia Sá, a primeira mulher a trabalhar em uma Redação no Ceará, uma das fundadoras do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O historiador não é um arqueólogo da documentação, mediador neutro entre a verdade da fonte e a verdade da História, mas sim aquele que é capaz de formular uma problemática e de construir uma interpretação em que reconhece o encontro entre duas historicidades: a sua própriae da documentação que utiliza. (NEVES, 1985, p. 34-5).

Ao remexer uma pequena caixa contendo fotos e passaportes antigos, Adísia Sá

descobriu que completaria cinquenta anos de atividade jornalística, em 2005. A informação

animou-ae foio motivo dela permitir que sua vida fosse narrada, contudo haveria de ser

com rigor científico, um livro escrito a partir da pesquisa aprofundada em documentos e da

realização de entrevistas."O biografo tem de reunir o maior número possível de

conhecimentos sobre umpersonagem histórico, a fim de se aproximar, tanto quanto

possível, da sua verdade viva, com o máximo de precisão, de autenticidade e de probidade"

(ORIEUX, 1986, p.33 -34).

Há de se ressaltar que na trajetória de Adísia Sá79, perpassam momentos

importantes para a história da imprensa cearense, uma vez que ela foi a pioneira a

trabalhar oficialmente em uma Redação, no Estado, além de ser uma das fundadoras do

curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Daí, mais do que

deter-se a contar aspectos da vida privada, o importante dessa empreitada seria construir

um discurso em que a história coletiva também pudesse ser contada, não apenas como

pano de fundo, contudo, muitas vezes, também enquanto fator determinante na tomada de

decisões e ações da biografada. Afinal, “... a biografia torna-se história, quando a vida de um

indivíduo é tratada como um artifício do autor para retratar o seu contexto histórico, que 79 Adísia Sá foi a primeira repórter policial feminina no Ceará; destacou-se por sua participação nos Debates do O POVO, na Rádio O POVO; foi comentarista na televisão e ombudsman do Jornal O POVO por três mandatos. Deu sua contribuição na área educacional quando atuou como professora de diversos colégios e assumiu a direção do Colégio Justiniano de Serpa. Durante toda sua trajetória participou do movimento sindical dos jornalistas, n o Sindicato da categoria, na Associação Cearense de Imprensa (ACI) e na Federal Nacional dos Jornalistas ( Fenaj). Hoje, aos 84 anos continua em plena atividade profissional escrevendo artigos para jornais, fazendo comentários na rádio, publicando livros e assumiu a presidência da Associação Cearense de Imprensa, em 2013.

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serve de fio condutor para a narrativa e, desse modo, tornando dificultosa a separação

entre os gêneros”(SILVA, 2007, p.12).

A biografia tem por objetivorevelar uma personalidade única apresentando aos

leitores como o biografado viveu a seu tempo e como esta vida pode influenciar outras,

inclusive o próprio biógrafo ( VILAS BOAS, 2008).Um indivíduo "(...) pode ser pesquisado

como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado período

histórico (...)” (GINZBURG, 1991, p.27). Assim, esse tipo de registro pode se tornar objeto

de análise e interpretação histórica, sendo possível estabelecer a articulação entre o tempo

de uma história individual e o tempo sócio-histórico.É, pois, um importante documento

histórico ao narrar a história coletiva ou a história de um tempo a partir da ótica de um

personagem e suas vivências. É também um produto estigmatizado por alguns

pesquisadores que associavam as biografias à imprecisão histórica e a subjetividade,

leituras voltadas a um grande público "ávido por intimidades e desatento à consistência

científica" (MOTTA, 2000, p. 102). Entre os motivos, para o desprezoao gênero biográfico

questões subjetivas que tratam do método à ética.

Na medida em que a historiografia privilegiava as análises de natureza econômica ou sociológica, parecia "arbitrário", e mesmo "perigoso", selecionar um indivíduo dentro da massa de homens que fizeram e que fazem a história. Mais grave ainda era admitir a possibilidade que essa história de vida pudesse fornecer elementos de compreensão de todo social. Além disso, havia ainda o risco de o historiador se deixar envolver pelos "sentimentos" de seu biografado, o que lhe retiraria a capacidade crítica e o distanciamento indispensáveis ao ofício de pesquisador (MOTTA, 2000, p. 102).

2 ALGUMAS ABORDAGENS SOBRE A BIOGRAFIA

Ao passear por algumas Escolas e correntes de pensamento percebemos as

mudanças na concepção e tratamento das biografias, como também no objetivo dessas

escritas da história.

Ao longo de mais ou menos dois milênios, autores acharam que contar a história de vida de alguém era algo distinto de uma História (que narra fatos coletivos e contava a verdade): as “histórias das vidas” (termo usado então pelos autores) serviam, desde o mundo greco-romano, para dar exemplos morais, negativos ou positivosmuitas vezes constituindo os panegíricos. Essa chamada biografia clássica punha um acento muito maior no caráter político, moral ou religioso do biografado do que em sua pessoa, em sua singularidade. No mundo medieval, a ideia dos exempla prolongou-se, configurando-se nas hagiografias e crônicas(BORGES, 2008, p.205).

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No Positivismo, o papel do indivíduo na história era analisado através de uma

abordagem empirista dos documentos públicos e oficiais, já que aspiram auma relação

neutra e objetiva com o passado. Seu conservadorismo refletiu-se, por exemplo, na escolha

dos personagens a serem dignos de serem biografados sempre relacionados às elites. Desta

forma, são celebrados os heróis para servirem de exemplo por meio dos seus feitos

notáveis a seus contemporâneos (SCHMIDT, 1996, p.166). Esta visão da narrativa foi

amplamente criticada pelo Marxismo e pela Escola dos Annales.

Em termos gerais, pode se dizer que o marxismo descentrou o indivíduo na sua explicação da sociedade e da transformação social, condicionando a atuação deste a uma determinação mais ampla: a produção das condições materiais de existência. Por isto, as análises históricas construídas com tal inspiração enfocam, sobretudo as grandes estruturas sociais, sobretudo a infraestrutura econômica, e o movimento de sujeitos coletivos, as classes. (SCHMIDT,1996,p.168)

Desta forma, a historiografia marxista considerava a biografia um gênero menor,

Para eles a narrativa biográfica não alcançava a escrita da história das minorias, não

retratando a história das massas. As trajetórias individuais tinham um peso "mínimo, ou

nulo" na explicação das tramas históricas80. Os historiadores da Escola dos Annales

propuseram uma nova abordagem longe da história política tradicional, mais próxima à

colaboração das ciências humanas menos atentas às ações individuais (especialmente a

geografia, a sociologia e a economia); além disso, “introduziram a noção de história

problema e reivindicaram uma história total, preocupada com todos os aspectos do fazer

humano” 81.

Algumas biografias publicadas sob a égide da Escola dos Annales destacam-se pelo

tratamento dado aos personagens, como as escritas por Lucien Febvre (Lutero, Rabelais e

Margarida Navarra). O autor reduz a autonomia dos grandes personagensinserindo-os no

contexto em que viveram, visto aqui como um limite para a livre atuação individual. Nas

palavras de Febvre “(...) o indivíduo é sempre o que sua época e seu meio permitem” 82·.

Teria sido Adísia Sá fortemente influenciada pelo meio em que vivia? Ela cresceu na Pensão

Sobral que pertencia a seus pais e estava localizada na Rua Senador Pompeu onde se

localizava a maioria das Redações dos jornais da época e onde também moravam ou

passavam muitos destes jornalistas. No contexto de sua história está também a quebra de

paradigmas, pois, ousou a “enfrentar” preconceitos, até mesmo do próprio pai, para seguir

a carreira de jornalista, numa época em que às mulheres restava o papel de donas de casa

80Idem 81 Idem, p. 169. 82 Idem

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ou no máximo serem professoras. Ou será que ao contextualizar a personagem em seu

berço não seria uma tentativa de se criar uma lógica artificial? Ela poderia ter seguido

outra profissão não necessariamente esta, no entanto, sua personalidade alimentou-se

dessas influências. Seria a biografia um relato histórico de credibilidade, mas, tendencioso

frente às escolhas do biógrafo? Toda escrita tem suas intenções expostas diretamente ou

nas entrelinhas.

Para Vilas Boas (2000, p.11),“A biografia é o biografado segundo biógrafo. Em

outras palavras, um trabalho autoral”. A frase aparentemente simples nos mostraque muito

mais que uma história que se conta, interessa-nos saber como ela é contada, com que

propósitos, que fontes foram ouvidas, quais os silêncios propositais ou não, além de outros

pontos, apresentados a seguir. No entanto, para compreender esse processo de construção

biográfica, precisamos também analisar alguns aspectos metodológicos.

3 A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA BIOGRÁFICA

As vidas e as obras (do biógrafo e do biografado) estão interligadas na aventura

das interpretações possíveis e das compreensões necessárias (VILAS BOAS, 2008, p.31).

Assim, a construção do discurso biográfico é permeada de recortes feitos a partir dos

direcionamentos do pesquisador que irão interferir na versão da realidade a ser

apresentada aos leitores.

A visão pessoal do biógrafo, o viés adotado ao narrar e a intencionalidade transformam o ato linguístico em imitação precária ou limitada do fato, em representação deformada do mundo. No plano da criação textual, é preciso ter consciência da potencialidade das estratégias narrativas, o que nos parece algo salutar, fundamental para desconstruir a realidade como verdade inquestionável. No trabalho literário, ressignificar o real é um modo de transformá-lo em signo plural, sujeito a variações e imprecisões, não menos profícuas. Mesmo quando observamos um texto histórico, não podemos acreditar na isenção da linguagem puramente objetiva, capaz de reproduzir fidedignamente esse real (DUNGE, 2006, p.15).

Na construção do discurso biográfico, quatro instâncias podem interferir no

resultado da obra: o próprio biógrafo (autor e interpretante), os guardiões do passado do

personagem, a empresa (editora) e a fidedignidade das fontes orais e escritas (VILAS

BOAS, 2002, p. 54). Há quem opte por dar mais ênfase às fontes primárias, como George

Painter, biógrafo de Marcel Proust que preferia não fazer entrevistas e para compensar

isso se valia da recreative imagination. Assim, ela utilizava-se da evidência e seus fatos, e

da relação entre eles (VILAS BOAS, 2002, p.55).Para Weinberg(apudVILAS BOAS, 2002, p.

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55) "Os biógrafos nunca usam fontes secundárias antes que todos os caminhos para as

fontes primárias estejam esgotados".

No entanto, é preciso seja qual foi a fonte a ser utilizada,ter sempre o cuidado de

fazer uma análise da confiabilidade das fontes, segundo a Tradição da crítica

historiográfica: Quais foram utilizadas, confrontadasou esquecidas propositalmente?

Quem produziu tais documentos? Em que situação? Que papel o autor do documento

desempenhou na sociedade e que tipo de pessoa era ele? Que objetivos estavam por trás

desses registros escritos?

Essas colocações remetem a relação conflitante entre documento e monumento.

Há de se ressaltar que o que transforma o documento em monumento é justamente a sua

utilização pelo poder. Basta, segundo Le Goff, relembrar a“ilusão positivista (que, bem

entendido, era produzidapor uma sociedade cujos dominantes tinham interesse que

assim fosse), a qual via no documento uma prova de boa-fé, desde que fosse autêntico

(...)”.Logo quando falamos sobre as implicações que pairam sobre o documento

percebemos que

o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto documento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 2008, p.535).

Dessa forma, temos no trabalho do biógrafo um constante diálogo com as fontes,

onde surgem a todo o momento dúvidas, questionamentos, lacunas que nem sempre

podem ser preenchidas, e necessidades de apreensão da realidade histórica. Por ser um

conhecimento produzido em contínua aproximação do real está sujeito a mudanças

constantes e a imparcialidade. Para Dezin (apud VILAS BOAS, 2008, p. 21), existem várias

convençõese pressupostos “ocidentais” que condicionam a maneira como as vidas tem sido

escritas. Uma delas é que “textos biográficos devem ser escritos tendo-se ‘outros’” textos

biográficos em mente. Ou seja, como se uma bibliografia anterior fosse obrigatória para

legitimar o discurso. No caso da elaboração da pesquisa sobre Adísia Sá, este foi um fator

que trouxe um desafio a mais, uma vez que não haviam registros detalhados sobre sua

trajetória, principalmente aspectos de sua vida particular. Uma publicação fundamental

para se pensar uma espécie de roteiro de pesquisa,foi o livro “História & Memória no

Jornalismo Cearense”, no qual uma dasentrevistadas foi aprofessora Adísia Sá. Se eram

escassos os livros, por outro lado, outros documentos foram aproveitados como jornais,

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revistas, passaportes, carteiras de categoria profissional como do sindicato dos jornalistas

e associações de classe,registros na carteira de trabalho, certidões, certificados, diplomas,

troféus, fotografias, entre outros.

Para suprir essa ausência bibliográfica, a principal metodologia escolhida para a

construção da narrativa de Adísia Sá foi a história oral, por meio de entrevistas, centrada

na própria biografada conforme a apresentação da obra, “Adísia Sá, uma biografia”:

Ela ficou admirada com o meu interessem em escrever sua história, achava que sua biografia seria póstuma. E eu respondi: "Por que não? Você é a melhor fonte que eu posso ter!" Tanto que centrei todo o livro na figura dela, a partir dos encontros que tivemos, entrevistas e recortes de jornais do seu arquivo particular, além da leitura de alguns livros. (...) Ora, toda informação veio dela direta ou indiretamente. (...) Era dela que deveriam fluir as histórias, foi ela quem viveu, quem sentiu. Eu apenas a estimulei a contar, a resgatar da memória o seu passado, e esperava ansiosa que ela abrisse eu mundo para mim(AMORIM, 2005, p. 9).

Para ter um salto qualitativo das informações coletadas através de entrevistas e já

que o objetivo era claro de contar histórias e revelar pensamentos, optou-se pela técnica

de entrevistas de compreensão, longe da "camisa de força do questionário fechado", no

dizer de Medina (1986, p. 11).Esta escolha possibilita que o centro do diálogo se desloque

para o entrevistado, com isso, “ocorre liberação e desbloqueamento na situação inter-

humana e esta relação tem condições de fluir; atinge-se a auto-elucidação”(MEDINA,

1986, p. 11). Encontramos nas entrevistas de compreensão muitos aspectos comuns à

História Oral como a arte do ouvir, respeito às pausas, ausência de um questionário

inflexível, o contato face a face, entre outras.

Uma das características importantes das fontes orais reside na sua capacidade de

revelar questões subjetivas de acordo com a capacidade do entrevistador em fazer o

entrevistado refletir sobre seus atos e mostrar-se além da persona. As fontes orais

contam “não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar

fazendo e o que agora pensa que fez”(PORTELLI, 1997, p.3). Por conseguinte, para o

historiador,

(...) não se trata de propor interpretações da mensagem que lhe é comunicada, mas de saber que o não dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato (FERREIRA, 2006, p.31).

No entanto, sendo a memória um exercício de reconstruir uma narrativa do

passado repensada a partir da experiência atual, a entrevista mostra-se também como um

instrumento escorregadio de apreensão do saber.“A entrevista, evidentemente, se funda

na mais duvidosa e mais rica das fontes, a palavra. Ela corre o risco permanente de

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dissimulação ou da fabulação” (MORIN, 1973, p. 120). Através de narrativas induzidas e

ou estimuladas é revelada a tensão entre o passado e sua reelaboração no presente.

Assim, um dos desafios da pesquisa biográfica é ter um olhar acurado sobre tudo que foi

coletado tendo consciência das armadilhas da memória, conforme alerta Delgado (2006,

p. 31): “A relação memória e História é também a relação memória coletiva e memória

individual, sempre entrelaçadas e quase sempre dotadas de poder: poder de esquecer, de

lembrar, de omitir, de silenciar”.

E assim, a narrativa biográfica vai sendo construída ultrapassando os dilemas

entre o “real” eo “inventado”.

O passado, pelos olhos atentos do agora, nos traz imagens diversas de um mesmo indivíduo, permitindo-nos a reconstrução de faces não reveladas, de sujeitos em aspectos plurais. “Somos levados a conceber múltiplas interpretações que envolvem uma única vida, tendo a hermenêutica, além da memória, a tarefa de revelar o “real” em sua complexidade, uma realidade posta sob distintas descrições” (SOLANO, 2010, p.2).

Para contrabalançar a presença de outras vozes no discurso quase uníssono de

“Adísia Sá, uma biografia”, foi colocada uma parte no livro denominada “Outros Olhares”,

que consta da compilação de alguns depoimentos escritos poramigos e colegas. Este

artifício talvez não seja suficiente para comparar dados, apresentar outras versões, no

entanto, foi a metodologia escolhida.

Depois das entrevistas com Adísia Sá e da transcrição, veio afase de redação e

revisão, o esforço de dar coerência a narrativa, valendo-se do material coletado e tendo

em mente tanto questões de ordem metodológica quanto éticas. Afinal, o que é

considerado de interesse público e de interesse privado em uma biografia? O quê, quanto

e como revelar?José Castelo defende que “a tarefa do biógrafo parte de um limite, que se

inicia com os riscos específicos da tarefa e termina na ética” (HISGAIL, 1996, p.8).

Este é um dos pontos cruciais nesse por vezes,tortuoso, caminho de construção do

discurso biográfico. O pesquisador decide sobre que o tratamento que será conferido ao

material coletado, principalmente no quesito questões subjetivas como aseleção de

informações, interpretação e edição do texto. A concepção dessa narrativa pode

apresentar distorções como idealização dos protagonistas.Vilas Boas (2008, p.11)reflete

sobreo biografismo e destaca alguns pontos comuns em muitas narrativas biográficas:

1. Descendência - Buscar na descendência “explicação” para certas características do

temperamento do biografado;

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2. Fatalismo -considera fictício qualquer personagem que seja visto como

predestinado vencedor;

3. Extraordinariedade - biografado é sempre visto como gênio inato;

4. Verdade - desmistificar a biografia como a verdade, somente a verdade, nada mais

que a verdade;

5. Transparência - os biógrafosnão se revelam ao longo dos textos;

6. Tempo - a narração biográfica linear cronológica é uma limitação tanto filosófica

quanto narrativa.

Para o autor, muitos biógrafos se valem destes pontos ou os ignoram, desta forma,

muitas vezes, formulam uma criação artificial de sentidos ao dar uma sequência lógica aos

acontecimentos, prejudicando os sentidosou tornando a narrativa superficial.Analisando-

se a narrativa de “Adísia Sá, uma biografia” percebe-se a presença de algumas dessas

características. O fator inédito do livro está em contar passagens da infância e juventude da

jornalista, além de apresentar alguns de seus pensamentos sobre, por exemplo, vida e

morte. Qual o grau de influência que a família e o ambiente exerceram na formação da

personalidade de Adísia Sá? Seria possível contar sua trajetória sem falar nas histórias que

ouvia do pai, nas andanças nas livrarias e sebos? O que dizer da escrita precoce de um

jornalzinho manuscrito? Há indícios na narrativa que parecem determinar que caminho a

personagem seguiria, como na citação:

Não se sabe como, que encanto foi. Mas, de alguma forma inexplicável, aquele barulho das enormes rotativas dos jornais embalava o sonhos da menina que escrevia o MABS. O cheiro forte de chumbo das linotipos, lhe invadia as narinas, apossando-se do seu coração (AMORIM, 2005, p.37).

Relembrando Maurice Halbwachs, destacamos a origem social da memória,

logotoda e qualquer lembrança vincula-se “à vida material e moral das sociedades que

fazemos ou fizemos parte”(SODRÉapudHALBWACHS, 2004, p.11). Há de se ressaltar, no

entanto, que “esse resgate da descendência consanguínea a fim de explicar o caráter é um

pressuposto dos métodos biográficos em Ciências Sociais; não se trata apenas de uma

convenção tácita apenas do modo biográfico de narrar."(LOWENTHAL apud VILAS BOAS

2008, p. 57). Lowenthal questiona esse papel recorrentede destacar os ancestrais na

biografia, pois segundo ele, em alguns casos,

É como se o autor quisesse impor ao leitor que seu herói, em considerável medida, fosse entendido em termos de hrança biológica e regional. É uma espécie de

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conceito darwiniano primitivo dos fatos sociais: a tendência de colocar o peso da explicação e da responsabilidade sobre os ombros da geração anterior. O indivíduo em si surge como um mero produto do passado (VILAS BOAS 2008, p.55).

Em “Adísia Sá, uma biografia”, os pais aparecem apenas no início da obra, como

educadores, influenciadores e depois se diluem na narrativa dando espaço a uma

personagem adulta ocupada com questões acadêmicas e profissionais. O livro inicia na

forma de romance biográfico com a reconstituição de cenas e de diálogos, sendo narrado

na primeira pessoa. Depois, o narrador personagem se ausenta, tratando de apenas contar

os fatos que se seguem, aparecendo novamente no terceiro capítulo, a fim de oferecer uma

imersão no pensamento e sentimentos da biografada, na forma de entrevista. Na

apresentação do livro, é clara a não pretensão de chamar esta de biografia definitiva:

Fiz uma viagem no tempo, mas não tenho a pretensão ou ingenuidade de dizer que tenho aqui uma biografia definitiva, que consegui resgatar toda uma vida, em tão breve espaço de tempo. Rascunhos Imprecisos é uma biografia e não a biografia. É uma tentativa de desvendar a vida da jornalista e escritora Adísia Sá, o seu mundo, seus pensamentos e sentimentos. (...) Conheço Adísia em sua trajetória profissional, desde suas aspirações infantis até suas revoluções no jornalismo; seus sentimentos e personalidade. Eis um recorte de vida, uma versão, um rascunho meio que impreciso (AMORIM, 2005, p.11).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa biográfica, como ciência Humana, não possui manuais de como

proceder ou fórmulas fechadas que determinem a maneira como deva ser sua escrita,

destarte, há um constante debate sobre métodos, abordagens e perspectivas. Levi defende

que o tema seja discutido afastando-se da tradição dos Annales e atendendo a alguns

problemas específicos como a relação entre normas e práticas, entre indivíduo e grupo,

entre determinismo e liberdade, ou ainda entre racionalidade absoluta e racionalidade

limitada (LEVI, 2006, p.179). A partir deste ponto percebe-se o quanto as questões ainda

são amplas, entre os que se propõe a debruçar-se sobre o objeto biografismo.

A matéria prima de trabalho do biógrafo e suas subjetividades são complexas, logo

a trajetória de pesquisa e composição do personagem é constantemente assombrada por

incertezas. “Como a biografia nunca teve uma terminologia e protocolo de aceitação geral,

ou uma estética que pudesse ser apoiada e contestada, a incerteza a respeito do método

biográfico reflete a duplicidade do território em que o biógrafo trabalha”(Vilas Boas, 2002,

p.155). Ferrarotti (1991, p. 172)alerta para a necessidade de se fazer uma distinção entre a

escrita biográfica e a escrita científica, “A especificidadedo método biográfico implica

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ultrapassar o trabalho lógico-formal e o modelo mecanicista que caracteriza a

epistemologia científica estabelecida”.

Uma destas características da biografia é a sua habilidade de passear por vários

saberes, da sociologia, da psicologia, entre outros. Elase privilegiada relação nem sempre

harmoniosa entre a historiografia e as técnicas peculiares da literatura. Essa influência,

segundo (LEVI, 2006, p. 168),

(...) suscitou problemas, questões e esquemas psicológicos e comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos documentais muitas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição.

Esse questionar do "modo de fazer" fez surgir outra pergunta: Pode se escrever a

vida de um indivíduo? Sempre haverá imprecisões, logo o relato biográfico nada mais é do

que um recorte da realidade. Bourdieu reflete sobre os perigos de se forçar uma

linearidade, uma coerência inexistente no relato tornando-o uma criação artificial de

sentido, uma ilusão biográfica.

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequencia de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com a ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa reforçar(BOURDIEU, 2006, p. 185).

Segundo essa teoria, a ilusão está implícita nos "já", "desde então", "desde

pequeno" e "sempre" ao referir-se sobre certas ações e características do personagem. O

biógrafo é cúmplice da ilusão para satisfazer o leitor tradicional.O autor tem a preocupação

de "tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva,

uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito-

causa eficiente ou final" (BOURDIEU, 2006, p.185). Bourdieu propõe alternativas para fugir

dessa armadilha.

Bourdieu sugere que para sair da tradição biográfica é indispensável reconstituir o contexto, a superfície social em que agiu o indivíduo, respeitando a variedade de campos e momentos da vida, estando atento às nominações dadas pelos documentos: registros civis, religiosos, presidiários, judiciais, entre outros e às redes de sociabilidade em que o indivíduo biografado esteve inserido (OLIVEIRA JÚNIOR apud BOURDIEU).

Outros autores também apontam caminhos para a construção da biografia,

comoSchmidt (2000, p.63),que alerta para a necessidade de dar mais complexidade à

personalidade do personagem “(...) os biógrafosnão devem se fixar na busca de uma

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coerência linear e fechada para a vida de seus personagens, mas precisam sim apreender

facetas variadas de suas existências (...)”. Pena (2004, p.16) explora detalhadamente a

multiplicidade do personagem e propõe a Teoria da Biografia sem Fim, lançando algumas

inquietações:

Será possível construir histórias e identidades com coerênciae estabilidade numa época em que a realidade se apresenta em formas múltiplas e desconexas, deixando clara a sua complexidade? Será possível escrever biografiascomo relatos diacrônicos de acontecimentos com significado e direção?

Ele acredita que não e para isso propõe uma biografia escrita em fractais fora da

ordem cronológica e estipulando a lacuna e a infinitude como seus referenciais teóricos. A

narrativa, segundo ele, deve refletir as múltiplas identidades do personagem, pode ser lido

fora de ordem, sem perder o sentido e apresenta diversas versões sobre os fatos (PENA,

2004, p.17).

Cada fractal traria nas notas de rodapé a referência de sua fonte, mas não haveria nenhum cruzamento de dados para uma suposta verificação de veracidade, pois isto inviabilizaria o próprio compromisso epistemológico. Quando a mesma estória fosse contada de maneira diferente por duas fontes, a opção seria registrar as duas versões, destacando a autoria de cada uma delas (PENA, 2004, p.17).

De acordo com o autor, obiógrafo seria apenas um mediador, responsável pela

reconstrução da história dos outros. O leitor passaria a interagir de maneira muito direta

com o livro, atuando como um co-autor, pois juntamente com o livro impresso seria

lançado um site aberto a quem quisesse contribuir com o conteúdo da publicação em uma

próxima edição a ser impressa. O trabalhopublicado nesse molde seria sempre interativo e

sem fim. Pena criou a teoria e a pôs em prática no livro “Seu Adolpho: uma biografia em

fractais de Adolpho Bloch, fundador da Revista e da Tv Manchete”, cujo texto na quarta capa

assim apresenta a obra:

Na verdade, como o princípio básico da história é a lacuna, o leitor sempre é co-autor de qualquer narrativa, não só porque a reconstrói conforme seus próprios referenciais, mas, principalmente, porque a totalidade nunca será alcançada, e, portanto, há sempre espaço para um novo relato. A história de uma vida é apenas o que se sabe sobre essa vida, jamais a sua fiel representação, como pretendem alguns biógrafos.

Já Vilas Boas (2007, p.180)defende que toda biografia deve prezar pela

transparência, que os biógrafos compartilhem com seus leitores seus processos

intelectuais e perceptivos. Desta forma, ele sugere que quando houver dúvidas ou lacunas,

‘realidades’ e ‘possibilidades’ elas devem estar presentes no texto, contato que seja

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explicitadas em notas de rodapé.Como se o biógrafo tivesse a obrigação de mostrar ao

público o quanto sabe e o máximo possível sobre as fontes e métodos utilizados.

Ora, não existe nenhuma regra declarada ou subentendida que impeça o biógrafo de dar transparência à sua narrativa pela inclusão ( pertinente, sensata, comedida) de suas dúvidas, suas escolhas, seus conflitos, seus impasses, suas vivências ao longo da jornada biográfica; dizer por exemplo, como chegou lá e até onde não pôde chegar por causa disso ou daquilo. Mas não uma ou duas linhas no prólogo. Refiro-me a expor-se no contexto do que se narra, a fim de imprimir franqueza e liberdade de espírito (VILAS BOAS , 2007, p.180).

A partir da ideia de transparência, Vilas Boas propõe a metabiografia como a

solução mais viável para uma biografia .

(...) a Metabiografia pode e deve ser uma boa possibilidade de construção biográfica para os historiadores, pois sua construção é jogo de estratégias narrativas que significam e fogem de velhos princípios de escrita tradicional e ineficiente. Sua essência toca no limiar da subjetividade, desaproxima de certos aspectos meramente científicos, visto que o autor (biografo), tem plena (ou deve ter) consciência de que esta construindo um personagem (GAUDÊNCIO, 2007).

Em "Adísia Sá, uma biografia", não há uma linguagem tão inovadora quanto a

proposta por Felipe Penanem por Sergio Vilas Boas. Buscou-se com uma narrativa

diferenciada em que a narrativa romanceada dá lugar a um capítulo em tom de entrevista,

em que são revelados alguns pensamentos da biografada. Percebemos um esforço de

explorartodas as fontespossíveis que revelam ângulos diversos da biografada, depois de

uma busca para fugir do mito, como foi afirmadona apresentação do livro. Tem-se um

aproveitamento da história oral que releva fatos e pensamentos até então inéditos ao

público leitor. Como se trata do primeiro recorte biográfico publicado sobre a jornalista,

dá-se margem para outras publicações biográficas sobre ela. Assim, de certa forma, deve

figurar como referencial para outras possíveis biografias sobre Adísia Sá.

REFERÊNCIAS

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FERREIRA, M. M; AMADO, J. Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

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PENA, F. Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

PONTE, S. R. (Coord.). História & memória do jornalismo cearense. Fortaleza: NUDOC/UFC/Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Ceará/ SECULT, 2004.

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O USO DAS FONTES POLICIAIS NA ANÁLISE DO CONTROLE SOCIAL EXERCIDO EM FORTALEZA ENTRE OS ANOS DE 1935 A 1941 Priscylla Lima de Aguiar Universidade Federal do Ceará Resumo Em 1935, Menezes Pimentel escolheu Manuel Cordeiro Neto para compor sua equipe de governo como Chefe de Polícia. Essa instituição passou a desempenhar de forma atuante os papéis de repressão social e política e de agente consolidador de uma política de estado, manifestando a aquisição de um novo papel e reorientação na estrutura da nação brasileira. Na tentativa de compreender os anseios policiais de ordenação da cidade, a análise das fontes policiais da primeira

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gestão de Cordeiro Neto na Secretária de Polícia e Segurança Pública do Estado do Ceará foi fundamental para entender o discurso e a prática da polícia utilizado na cidade de Fortaleza na década de 1930 e as suas relações com a política. O objetivo central da pesquisa concentrou-se em refletir na medida policial de determinar o uso do trabalho de presos correcionais e “desocupados” nas obras públicas de construção e reforma como uma prática social de uma cultura política que, através da concepção e dos ideais de trabalho racional, visa à construção e organização do Estado e controle social da cidade de Fortaleza no período de 1935 a 1941. A metodologia utilizada foi nos parâmetros estabelecidos pela história social, analisando as fontes documentais do APEC e também jornais, principalmente, O Povo e O Nordeste. Conclui-se que o trabalho de presos correcionais e “desocupados” em obras públicas na cidade foi documentado nos registros policiais e serviu muito bem ao modelo de sociedade orgânica almejada, pois os presos correcionais passariam por um processo de “regeneração” através de um trabalho em benefício da sociedade. Portanto, a polícia empreendeu um controle social baseado no discurso do trabalho, mas a Cordeiro Neto foi além desse mecanismo, atuando dentro da prática social que o tornou uma figura emblemática na história do Ceará e deixou materialmente sua influência demarcada na arquitetura da cidade de Fortaleza através de prédios que ainda são existentes e utilizados. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O General Manuel Cordeiro Neto apresentou uma longa trajetória política no Ceará,

destacando-se, entre outras, na função de Secretário de Polícia e Segurança Pública do

Estado.A sua primeira gestão entre os anos de 1935 e 1941, inicialmente, como Chefe de

Polícia e, depois, Secretário de Polícia e Segurança Pública, trouxeram questões que

envolveram a utilização do trabalho de presos correcionais e “desocupados” em serviços

públicos como de limpeza e obras públicas de construção e reforma.

Em 1935, Menezes Pimentel escolheu Cordeiro Neto para compor sua equipe de

governo como Chefe de Polícia. Essa instituição passou a desempenhar de forma atuante a

repressão social e política, manifestando a aquisição de um novo papel e reorientação na

estrutura do Estado brasileiro. Na tentativa de compreensão da estrutura e função da

polícia, Bauer (2009, p. 174) mencionou que:

(...) Ainda que, evidentemente, desde o início do Império a polícia tivesse, além da repressão social, também um papel de repressão política, foi com o regime centralizador e autoritário iniciado em 1930 que ela adquiriu um novo papel e uma reorientação dentro do aparelho do Estado.

Foi fundamental entender como o contexto histórico do Estado Novo alterou a

estrutura da República Brasileira e repercutiu fortemente nas relações políticas e sociais

no Ceará, especialmente, em Fortaleza, constituindo o seu aparato ideológico ao longo da

década de 1930. A cidade de Fortaleza foi espaço de disputas e tensões, nas quais a atuação

das forças policiais foi bastante presente e com grande amplitude, uma vez que esta

instituição regulava diversos segmentos da vida social, política e cultural desta cidade.

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Pretendeu-se compreender a disseminação de um ideal de ordem e do projeto de

construção do Estado baseado nos valores do trabalho e da concórdia entre as classes. A

organização racional do trabalho, na qual foi utilizada mão de obra de presos correcionais e

“desocupados” na construção e reformas de obras públicas na cidade serviu muito bem ao

modelo de sociedade orgânica almejada, pois os presos correcionais passariam por um

processo de “regeneração” através de um trabalho em benefício da sociedade. Esse

mecanismo de controle usado pela polícia era adequado à organização do Estado, na qual

os diversos segmentos sociais deviam exercer as funções e ocupar os espaços que já tinham

sido determinados.

O objetivo central da pesquisa concentrou-se em refletir na medida policial de

determinar o uso do trabalho de presos correcionais e “desocupados” nas obras públicas de

construção e reforma como uma prática social de uma cultura política que, através da

concepção e dos ideais de trabalho racional, visou à construção e organização do Estado e

controle social da cidade de Fortaleza no período de 1935 a 1941.

Os presos e “desocupados” enviados para o trabalho nas construções e reformas de

prédios públicos eram enquadrados, na sua maioria, na modalidade de prisões

correcionais. O registro dessa penalidade imposta, ou seja, o trabalho nas obras públicas foi

encontrado no Registro de Entrada na Cadeia Pública e no Relatório de Cordeiro Neto,

ambos disponíveis no Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC).

Este tipo de registro requer uma análise quantitativa e qualitativa criteriosa, uma

vez que é preciso considerar a linguagem e prática diferenciada no seio social da polícia.

Contudo, encontrou-se um padrão nos registros e uma escrita organizada e ordenada. Esta

reforçou o entendimento de que a gestão de segurança pública em estudo almejou uma

padronização e controle até mesmo nos comportamentos e práticas internos. Entretanto, a

fonte policial exige o esforço de compreender o que existia para além dos registros e

realizar as conexões políticas, religiosas que permeavam as relações policiais com a

sociedade no Ceará.

Na tentativa de compreender os anseios policiais de ordenação da cidade, a pesquisa

foi desenvolvendo questões como o discurso da polícia utilizado na cidade de Fortaleza na

década de 1930 e as suas relações com a política, através da análise da primeira gestão de

Cordeiro Neto na Secretária de Polícia e Segurança Pública do Estado do Ceará, ou seja,

período que compreende os anos de 1935 a 1941.

A visibilidade, organizada através do discurso que se converteu em prática social,

ainda pode ser encontrada nas construções como o “Palácio da Polícia Civil”, anteriormente

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Palácio da Polícia Central, e do Quartel do Complexo Administrativo Operacional da PMCE,

antigo Quartel da Força Policial, colaborando para estabelecer na pesquisa as conexões

entre as instituições, os sujeitos e as relações de poder que se constituem.

As construções e reformas dos prédios públicos formavam as práticas de um projeto

de Estado que se adequavam a cultura política existente e reforçava o intuito de controle

social. Foram perceptíveis as motivações políticas na execução de medidas policiais que

interferiram no espaço da cidade e nas relações sociais, políticas, religiosas nela existentes.

Esse mecanismo de controle social, empregado através de obras públicas, também

foi realizado, alguns anos antes, como uma política de enfrentamento das consequências

negativas no estado do Ceará da situação adversa ocorrida na seca de 1932. Então, os

trabalhos realizados pelos retirantes tinham o objetivo de ocupar tamanha quantidade de

pessoas, resolvendo as consequências da seca que residiam, principalmente, na alteração

da ordem estipulada.

Já o trabalho em obras públicas, na esfera de presos correcionais, contribuiu na

“regeneração” social destes, uma vez que ergueram prédios destinados ao uso do poder

público. Seja os retirantes da seca ou os presos correcionais houve uma tentativa de

controle social através do trabalho em obra pública. Contudo, a análise das fontes policiais

também possibilita encontrar a identidade e estratégias dos transgressores da ordem, ou

seja, presos correcionais e “desocupados”.

Dessa forma, há a intenção de realizar uma interpretação histórica da visibilidade de

uma política de segurança pública, através da análise dos sujeitos históricos a partir das

fontes policiais e jornais que disseminaram o discurso e as obras de construção e reforma

de prédios públicos que formaram a estrutura de uma força policial que almejava uma

administração moralizante e respeitada através de uma gestão ordeira, adepta aos padrões

modernizantes, politicamente engajada e centralizadora. Dessa forma, segue-se a análise de

questões norteadoras nesta discussão historiográfica.

2 A POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA

As inserções policiais no cotidiano da população sempre foram marcadas por

relações sociais demarcadas com situações repletas de questões para análise. A gestão de

Cordeiro Neto imprimiu muitas marcas na cidade e uma delas se concentrou nas

construções e reformas de prédios públicos. Obviamente, a escolha de determinados

prédios e, respectivos, espaços não são desprovidos de uma intencionalidade e,

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provavelmente, estavam em concordância com o projeto de cidade defendido através de

uma modelo de gestão pública racionalizada.

Foi citada cada uma das construções e reformas no Relatório de Cordeiro Neto,

relatando-se algumas especificações e demonstrando os gastos através de Planilhas

Demonstrativas de Gastos. Dentre essas obras públicas de construção estavam: o Quartel

da Polícia Militar de São Bernardo das Russas; o Quartel da Guarda Civil de Fortaleza,

localizada na Rua Jaime Benévolo; a Inspetoria do Trânsito na Rua Antônio Pompeu; o

Grupo Escolar Farias Brito; Polícia Central na Rua do Rosário. Já quanto às reformas

estavam: Escola de Aprendizes Marinheiros no Jacarecanga; e Quartel da Força Policial na

Praça José Bonifácio.

O Quartel da Polícia Militar de São Bernardo das Russas foi construído com uma

intencionalidade política de defender o estado do Ceará da expansão das ideias subversivas

e foi encontrado que:

A manutenção da ordem publica em todo o Estado, mormente nas épocas em que as idéias subversivas vinham encontrando campo aberto á sua propaganda e em que evidentes eram as atividades de seus pregadores, determinou a execução de uma serie de providencias dentro as quais, no setor policial, figura a de localização de uma companhia da Policia Militar, na cidade de Russas, e, com ela, a necessidade de se construir um quartel para seu alojamento. (...) Construída a obra, sem que nenhuma conta se tenha a pagar que lhe diga respeito, quero frizar que se trata de uma medida tão preciosa quanto é certo que a localização de uma companhia da Policia Militar, naquela cidade, representa uma vigilância ás fronteiras do vizinho Estado do Rio Grande do Norte, onde a frutificação das idéias subversivas desencadeou no movimento armado de novembro de 1935. (...) 83

Entende-se que o movimento armado de 1935 foi uma referência a ação comunista

de 1935, organizada por Luís Carlos Prestes. As forças policiais precisavam tomar

providências que combatessem movimentos como o integralismo e comunismo, uma vez

que pregavam ideias subversivas ao regime varguista. Constata-se o posicionamento

político da gestão de segurança pública no Ceará através do seu discurso e de sua prática

social.

Tal prática foi se sedimentando no espaço da cidade com os prédios públicos

erguidos ou reformados sob o comando do Chefe de Polícia; entre os quais estava a Guarda

Civil de Fortaleza que recebeu várias denominações desde sua existência, como a de

83 Relatório do Secretário de Polícia e Segurança Pública, Capitão Manuel Cordeiro Neto, publicado pela Imprensa Oficial, Fortaleza/CE, 1941, com acesso no Arquivo Público do Ceará – APEC. Trata-se de um relato minucioso das atividades da Secretária de Polícia e Segurança Pública do Estado do Ceará, compreendendo o período de 27/05/1935 a 27/01/1941, ou seja, cinco anos e oito meses, que foi apresentado ao Interventor Federal Francisco Menezes Pimentel. Esse documento contém 163 páginas e foi uma fonte fundamental para os trabalhos desenvolvidos nesta pesquisa. Este registro estava na página 115.

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Guarda Cívica, entre os anos de 1928 a 1939. A sua localização encontrava-se na Rua Jaime

Benévolo e foi construída no ano de 1937, em virtude da necessidade de um prédio que

comportasse as necessidades de mais de quatrocentos homens. Assim, foi construído

administrativamente e sob a direção de Cordeiro Neto que empregou nessa obra:

(...) A construção se realizou com a máxima parcimônia, obtida pelo aproveitamento, nos serviços, de diversos elementos da própria Corporação, e de desocupados e presos correcionais, muitos dos quais, além de contribuírem para um trabalho de notávelrelevância, obtiveram, por meio dos conhecimentos ali colhidos, as profissões de carpinteiros, pedreiros, etc (...). 84

Já o prédio, na Av. Bezerra de Menezes, destinado ao Grupo Farias Brito foi uma

resposta do Secretário de Polícia e Segurança Pública ao pedido do Secretário do Interior e

Justiça, José Martins Rodrigues, demonstrando a parceria política desses gestores públicos.

O referido prédio também foi construído com o trabalho dos presos correcionais que foram

sujeitos históricos encontrados nos documentos policiais:

João de Souza Andrade, casado, com 48 anos de idade, filho de José Simons de Souza e Dona Maria de Souza Andrade, Brasileiro, Cearense, residente em Fortaleza, no sitio de José Padre, nº 28, foi apresentado nesta Sub. Delegacia pelo guarda nº 392, por motivo de embriaguez aucoolica e foi recolhido ao xadrez ás 20 horas de hoje. Em 8-2-938. Memesio Gurgel de Oliveira, G. C. nº 451. Permanente. Foi remetido para á construção do predio Grupo escolar Farias Brito. Em 9-2-938. Antero (...) de Lima. sub- delegado de Policia de Farias Brito. 85

No registro acima, João de Souza Andrade foi recolhido ao xadrez por motivo de

embriaguez e, sendo enquadrado na modalidade de prisão correcional. Foi preso em

08/02/1938 e no dia seguinte já remetido ao trabalho na construção do Grupo Escolar

Farias Brito. Entendeu-se a existência de uma postura policial severa quanto à repressão a

embriaguez e comprometida com uma estratégia de disciplinarização através do trabalho

em prédios destinados ao uso da população, direta ou indiretamente, e que poderia ser

visualizado facilmente por fazer parte do cotidiano espacial de muitas pessoas da

comunidade.

A interferência policial em segmentos essências ao funcionamento ordenado de

Fortaleza foi gradativamente ganhando maior expressão junto ao governo do estado e do

povo. O crescimento da cidade trouxe mais áreas para a atuação policial. A maior circulação

de pessoas e veículos no espaço urbano ocasionou a ampliação da necessidade de

organização, melhoria e controle na prestação dos serviços e vigilância do trânsito. Assim,

84 Idem, p. 117. 85 Disponível no Arquivo Público do Ceará - APEC: Grupo Chefatura de Polícia; Série Registro de Entrada da Cadeia Pública; Local Farias Brito e Otavio Bonfim; Data- 1937-1940. Referências encontradas na página 17.

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em 1937, foi empreendida uma reforma das instalações do prédio da Inspetoria de Veículo,

sendo registrado:

Atendendo ás exigências do transito que tem, nestes últimos anos, assumido surpreendentes proporções, não só na capital, como nas principais rodovias do Estado e cidades do interior, e adotando-se as normas já aplicadas nos centros de maior movimentação, foi a extinta Delegacia de Transito substituída, em dezembro de 1937, em razão do decreto nº 30, de 16 daquele mês, pela Inspetoria de Transito, a que ficaram cometidos os serviços de fiscalização e aplicação dos dispositivos regulamentares do transito em geral. (...) 86

A questão do transito foi gradativamente requerendo mais atenção das autoridades

e foi justamente a força policial que atuou em fortaleza no controle e fiscalização de

serviços que envolviam o movimento de deslocamentos de pessoas na cidade nas mais

diversas modalidades empregadas para tal.

E, mais uma vez o trabalho de presos correcionais foi utilizado na reforma do prédio

que abrigava a estrutura de competências relativas à circulação de pessoas. Se há uma

estratégia de disciplinar os comportamentos e conquistar o apoio da população, se efetivou

através da disponibilização de equipamentos de serviço públicos que traziam mais

eficiência e conforto. A atuação policial deveria estar concatenada as forças atuantes no

espaço público. E, a compreensão de como foi exercido pela força policial um papel de

destaque na rede de poderes em Fortaleza na primeira gestão de Cordeiro Neto na

Secretária de Polícia e Segurança Pública do Estado foi possível através de Brescianni

(2010, p. 244):

Pode-se também acompanhar o delineamento de uma estratégia para disciplinar os comportamentos da população através do conforto proporcionado por equipamentos coletivos que foram no decorrer de quase dois séculos multiplicando-se de maneira a fazer dos habitantes das grandes cidades seres domésticos, voluntariamente aprisionados pelas comodidades da água quente, das notícias fornecidas pelos jornais, rádio, televisão, internet, isolados mesmo quando nas ruas em seus automóveis ou coletivamente ensimesmados nos meios de transporte de massa.

As relações cotidianas estabelecidas entre população e força policial permeavam

vários espaços e as ruas se tornaram um local de apreciação da atuação de ambos. A

regulação do trânsito através da subordinação da Inspetoria de Transito a Secretária de

Polícia e Segurança Pública tinha que manifestar contornos visíveis e o prédio daquele foi

reformado na gestão de Cordeiro Neto. Constatou-se que a reforma foi com a força de

trabalho do povo através do registro:

86 Relatório, página 107.

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Francisco Lenhorinha Alves, casado, com 32 anos de idade, filho de Vicente Senhorinha do Nascimento e Dona Maria Neves do Nascimento, brasileiro, natural do Acre, Estado do amazonas, foi apresentado nesta Sub Delegacia, pelos guardas nº 263 e 451, por o mesmo ter forte discussão com sua esposa e seu cunhado os maltratando com palavras obsenas, foi recolhido ao xadrez, ás 21,20 horas de hoje. Em 17-3-938. G.C 224. Permanente. Foi remetido para á construção do prédio da Inspetoria de Veiculos, de ordem do Sr. Sub delegado de Policia de Farias Brito. Em 18-3-938. Autero Alves de Lima. (...) sub-delegado do Dist. de Farias Brito.87

Percebe-se que numa questão cotidiana, briga entre familiares, a polícia estava

presente como uma força reguladora para interferir em situações de desordem. Se a prisão

era enquadrada na modalidade correcional, uma simples permanência no xadrez por uma

noite era insuficiente, exigindo um corretivo exemplar: o trabalho em beneficio da

sociedade. Assim, muitos cidadãos, como Francisco Lenhorinha Alves, foram encaminhados

para o trabalho compulsório por transgredir as regras de uma cidade ambiciosa por

ordenação e construção de um novo estado.

A construção do prédio da Inspetoria de Veículos com a força de trabalho de presos

correcionais apresentava dupla dimensão: prática e simbólica. A primeira função estava em

fortalecer a força policial de uma infraestrutura física que a possibilitasse desenvolver uma

maior vigilância. Já a simbólica residia em aplicar um corretivo de cunho exemplar nos

transgressores da ordem e concretizar uma base física e de poder que provasse a

imponência da força policial.

Sob o comando da Secretária da Polícia e Segurança Pública, a citada construção

pode ser enquadrada na categoria de obras públicas, uma vez que se destinava a realização

de obra com finalidade de atendimento de necessidade pública. A definição de obra pública

consiste em toda a realização material sob a responsabilidade da Administração e de seus

delegados consistentes em construir, reformar ou ampliar imóvel destinado ao público ou

serviço público.

A política de segurança pública em Fortaleza foi representada simbolicamente na

execução de obras públicas, construções e reformas, realizadas na gestão do Capitão

Cordeiro Neto e na sua atuação policial centralizadora. A simbologia das construções era

possivelmente um indicativo de poder e propagador de uma ordenação na cidade.

Em Fortaleza, a força política ambicionava um determinado mapa da cidade que

precisava ser assegurado pela ação policial vigilante e controle das “classes perigosas” no

espaço público da cidade. A política de segurança pública estruturada e executada na

gestão de Cordeiro Neto, na qual utilizou o trabalho de presos correcionais e

87 Disponível no Arquivo Público do Ceará - APEC: Grupo Chefatura de Polícia; Série Registro de Entrada da Cadeia Pública; Local Farias Brito e Otavio Bonfim; Data- 1937-1940. Referências encontradas na página 42.

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“desocupados”, respondia aos anseios políticos de construção do Estado Nacional

sustentado em valores conservadores e no ideal do trabalho racional.

3 O DISCURSO POLICIAL E A CULTURA POLÍTICA

Há a constatação da vasta influência social, política e cultural das práticas e serviços

policiais realizados em Fortaleza e do registro dessas atividades nas fontes policiais que

desempenharam finalidade fundamental na compreensão dos mecanismos de controle,

disciplinarização e de propagação da “ordem” e da “moral” disseminados na década de

1930, mas, também, da descoberta das formas de ruptura principalmente pela população

pobre da cidade.

A análise do Relatório de Cordeiro Neto indicou que possivelmente foi obedecido o

ritual da polícia na tentativa de afirmar seu discurso. Tornou-se evidente a tentativa de

atrelar ao papel já desempenhado pela polícia a outros de interferência nas relações

estabelecidas na cidade e diretamente no cotidiano. E, nesse sentido, a definição de ritual

de Foucault (2011, p. 39) colaborou:

(...) o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte também, políticos não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos.

Tornou-se fundamental entender as forças atuantes e as relações que estavam se

sedimentando. A escolha de Cordeiro Neto para o cargo máximo das forças policiais no

estado foi alicerçada em toda uma cultura política que vigorava no Ceará naquele momento

e o entendimento de Berstein (1998, p. 350 e 351) foi bastante elucidativo:

(...) O objectivo era mostrar que a cultura política constituía um conjunto coerente em que todos os elementos estão em estreita relação uns com os outros, permitindo definir uma forma de identidade do indivíduo que dela se reclama. Se o conjunto é homogêneo, as componentes são diversas e levam a uma visão dividida do mundo, em que entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal, a maior parte das vezes expressa sob a forma de uma vulgata acessível ao maior número, uma leitura comum e normativa do passado histórico com conotação positiva ou negativa com os grandes períodos do passado, uma visão institucional que traduz no plano da organização política do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, uma concepção da sociedade ideal tal como a veem os detentores dessa cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que o vocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas são portadoras de significação,

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enquanto ritos e símbolos desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante.

Então, analisando todos os elementos que compõem a formação de uma cultura

política, perceberam-se vários elos de interlocução na história política e social do Ceará

que se expressa num projeto de Estado e de organização da cidade na década de 1930,

principalmente na gestão de Cordeiro Neto na Secretária de Polícia e Segurança Pública.

Quando foi mencionada a base filosófica ou doutrinal como um dos elementos de

uma cultura política foi possível compreender que a formação de Cordeiro Neto estava

permeada de elementos que correspondiam aos anseios de progresso e ordem que vivia

Fortaleza. Ele seguiu a carreira nas forças armadas, incorporando valores de disciplina e

ordem dessa instituição que foram utilizadas no decorrer de sua trajetória política. A

formação no curso de direito na Faculdade de Direito do Ceará também foi muito influente

e o seu laço de companheirismo de trabalho nesta Faculdade com Menezes Pimentel foi

estendido com o convite para compor a equipe de governo do estado deste em 1935.

Já a leitura do passado estava atrelada as estratégias do governo de Vargas de

propagar a ideia de que o regime vigente estava comprometido a transformar a nação e que

nada deveria ser temido, pois o espírito nacional era a força maior do povo na construção

de sociedade ancorada no desenvolvimento, estabilidade e unidade. E, o estudo sobre a

Revista Cultura Política trouxe bons elementos de reflexão quando Gomes (1999, p. 141 e

142) traz que:

O “espírito nacional” de um país podia muito bem ser encontrado/criado – a ideia é sempre plena dessa ambiguidade constitutiva – nos “costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da memória do passado” do povo. O acordo entre ordem política e social, o equilíbrio entre forças dirigentes e dirigidas que o Estado Novo produzia advinham fundamentalmente dessa adequação cultural profunda, causa e produto de sua legitimidade. Toda a política do pós-37 era uma reação ao “materialismo” anterior, que segundo os editoriais, romantizava o futuro, hipervalorizava o presente e condenava o passado. 125 (...) “Espírito nacional” e “passado” eram, nesse sentido, categorias independentes, devendo ser examinadas com atenção. (...) Não temer o passado transformava-se numa espécie de primeiro mandamento para a política cultura do Estado Novo(...).

Foram, assim, empreendidas ações policiais com o propósito de combater qualquer

manifestação que disseminava um modelo que deveria ser deixado para trás, pois não se

temia, mas se enfrentava as causas que retardava o avanço do progresso. Manifestações

entendidas com o cunho de fanatismo ou desordem que colocavam em perigo a ordem

social e política não podiam ser toleradas. Assim, Bretas (2007, p. 32) reflete sobre o papel

da repressão e controle exercidos na sociedade:

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É neste processo que ganha relevância o papel da repressão e do controle como mecanismos essenciais na construção da classe trabalhadora. Através da imposição e da violência o ator burguês cria o seu outro, obrigado a incorporar os valores do trabalho e da disciplina essenciais para a dominação capitalista (...).

A ordem era mantida através do trabalho empregado em construções ou reformas

de prédios públicos que colaboraram na propagação da concepção de trabalho como

dignificante, regenerador e a ideia de disciplina.

O projeto da cidade de Fortaleza, no qual estava inserido o Secretário de Segurança

Pública acreditava em princípios filosóficos e valores como: a construção e defesa do

Estado baseado na ordem e razão; organização da sociedade composta por cidadãos

dignificados pelo trabalho; propagação de cultura política conservadora que era atrelada e

defensora dos valores cristãos na nação brasileira. E, nesse sentido, BERSTEIN (2009, p.

33) esclarece que: “(...) o fundamento filosófico da cultura política conserva uma cultura

política transcendente que faz com que uma cultura política sempre ultrapasse a mera

condição de realidades prosaicas para se inscrever num projeto global”.

Na tentativa de compreensão do projeto global almejado no Ceará, a inserção do

sujeito histórico precisa ser analisada. A prática policial de Cordeiro Neto foi condizente

com sua trajetória e ao projeto político que aderiu, uma vez que nascido numa família

simples do interior do estado, serviu no exército, formou-se na Faculdade de Direito do

Ceará onde trabalhou com Francisco Menezes Pimentel e fundou o Aero clube. A trajetória

de Manuel Cordeiro Neto, duas vezes Secretário de Segurança Pública no estado do Ceará,

foi fundamental para entender as aspirações dos que compartilhavam um projeto de cidade

em Fortaleza na década de 30 e Berstein (2009, p. 39) colabora:

O processo de difusão de uma cultura política na sociedade permanece um problema difícil de resolver. É provável que isso se dê através dos canais numerosos e difusos da socialização política. A família, o sistema de ensino, o serviço militar, os locais de trabalho e sociabilidade, os grupos ou associações e as mídias vão aos poucos incutindo temáticas, modelos, argumentações, criando assim um clima cultural que prepara para aceitar como natural a recepção de uma mensagem de conteúdo político. A força de uma cultura política está em difundir seu conteúdo por meios que, sem serem claramente políticos, conduzem no entanto a uma impregnação política(...).

O processo de difusão de uma cultura política foi realizado através de diversas

relações de poder, como a entre igreja católica e polícia, representada pelo Chefe de

Segurança Pública, e parece razoável a localização da sede da Ação Católica no alto do

edifício do “Nordeste”, localizado na Praça dos Voluntários, pois foi esse mesmo perímetro

urbano escolhido para a construção um dos maiores símbolos da força policial, o Palácio da

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Polícia Central de Fortaleza, sendo necessária a demolição do Liceu do Ceará, com a

mudança deste para o bairro da Jacareacanga.

As obras de construção do prédio que abrigou o Palácio da Polícia Central

ocorreram na gestão de Cordeiro Neto, mas somente foram concluídas em 1942.O

idealizador daquele projeto não estava mais no cargo, porém foi lembrado e elogiado no

discurso do Interventor Menezes Pimentel no ato de inauguração do prédio que foi

noticiado na primeira página do Jornal O Nordeste, tendo como redator-chefe Dr. Andrade

Furtado, em 07/02/1942. Na cerimônia, estavam presentes o Arcebispo Metropolitano,

Dom Antonio de Almeida Lustosa; o Dr. Andrade Furtado, Secretário de Interior e Justiça

que estava respondendo pela Secretária de Polícia e Segurança Pública.

A igreja católica, a política e a polícia compartilhavam de um ideal de cidade

orgânica que pretendia uma moralização para a existência de uma Fortaleza ordenada e

concatenada ao projeto do governo federal para a nação. E, em 1939, a Revista do Instituto

do Ceará publicou artigo intitulado PIOR QUE A IMORALIDADE, no qual defendeu o

cristianismo, configurado pela igreja, como sal da terra e luz da inteligência e a solução

para os problemas enfrentados encontravam-se na orbita da moral. Andrade Furtado

deixou claro que existia uma ordem que não deveria ser invertida e escreveu: “(...) Como

ficar conivente com a inversão dos princípios, em que assenta a ordem espiritual, - base da

própria vida das instituições vigentes? (...)”. 88

Os princípios morais que, muitas vezes, foram rompidos pelos presos correcionais e

“desocupados” precisavam ser resgatados e o trabalho apresentava-se como uma ótima

opção. Foi relatado por Cordeiro Neto que aqueles adquiriram profissões de carpinteiros e

pedreiros através do trabalho de “notável relevância” na construção do Quartel da Guarda

Civil de Fortaleza.

A política de segurança pública, executada por Cordeiro Neto, pretendia sujeitar os

presos correcionais e “desocupados” ao discurso oficial e também estava em sujeição aos

princípios e valores defendidos como ordem, moral e trabalho racional. Na busca por

entender os mecanismos de ação e interação do discurso, encontrou-se que: “(...) A

doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos

aos grupos, ao menos virtual, dos indivíduos que falam” (FOUCAULT, 2011, p. 43). Assim,

na década de 1930, os ideais do discurso que almejava ser hegemônico podiam ser

88 Revista do Instituto do Ceará, 1939.

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executados através da força policial que representava a cultura política de uma sociedade

predominantemente conservadora e católica.

As relações estabelecidas nessa cultura política podiam ser detectadas na gestão de

Cordeiro Neto quando parte das arrecadações feitas com as quotas de jogos foi destinada

para os cuidados com os doentes da malária e flagelados da seca e apoio a instituições para

menores abandonados. Esta atuação paternalista, fruto da aprendizagem e construção

cristã, foi herança destas relações de poder, uma vez que a Igreja Católica desempenhava

funções que seriam da alçada do estado através das “obras de caridade”, mas a polícia ao

executar os tipos de atividades acima descritas demarcava o papel do Estado, tomando

para si estas atribuições. Possivelmente foi uma tentativa de afirmação e estruturação da

liderança do Estado nas decisões de questões sociais e culturais. A polícia, na gestão de

Cordeiro Neto, pretendeu uma modernização desta instituição e também a participação

ativa na engrenagem política e social do Ceará.

O anseio de modernização e o processo de transformação executado no espaço

urbano da cidade também atingiram uma dimensão visual, através de construções e

reformas públicas e da tentativa de controle da circulação das “classes perigosas”,

representados na pesquisa pelos presos correcionais e “desocupados”, no espaço público.

Existia um perímetro urbano que era pertencente a uma determinada parcela da população

e, por isso deveria ser vigiado em razão das forças “subversivas” que poderiam prejudicar a

ordem e os “bons costumes” que atendiam aos preceitos morais de uma sociedade

conservadora e católica.

A cultura política do Ceará pode ser contemplada na trajetória de Manuel Cordeiro

Neto, duas vezes Secretário de Polícia e Segurança Pública no estado e prefeito de

Fortaleza. A sua gestão a frente das forças policiais apresentou elementos na direção da

construção do Estado Republicano que ainda possuía elos com a igreja católica quando

parte das arrecadações feitas com as quotas de jogos é destinado para doentes da malária,

flagelados da seca, apoio a “instituições de caridade”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política de segurança pública do Ceará na década de 1930 foi executada por seu

representante, o Chefe de Polícia e Segurança Pública Manuel Cordeiro Neto. A identidade

pessoal deste confundia-se com a do agente público que aderiu a uma cultura política

diretamente envolvida pelas suas experiências, como militar, adepto do tradicionalismo

católico e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará num momento que se

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estava refletindo as questões da formação do Estado Nacional e do sistema filosófico

jurídico.

Estas experiências são fundamentais no processo de interiorização de uma cultura

política que se tornou elemento constitutivo da identidade do Chefe de Polícia e,

consequentemente, deixou marcas de sua primeira gestão no espaço da cidade de

Fortaleza, na memória popular, nas discussões políticas e filosóficas de grupos que

disputavam o poder no Ceará e na construção de um ideal de Estado Brasileiro.

Portanto, a estratégia policial de controle social foi empreendida através do discurso

do trabalho, mas a Cordeiro Neto foi além desse mecanismo, pois atuou na prática social,

tornando-se uma figura emblemática na história do Ceará que deixou materialmente as

aspirações de uma cultura política demarcada na arquitetura da cidade de Fortaleza com as

obras públicas de construção e reforma em prédios que ainda são existentes e utilizados na

sua maioria com a mesma finalidade estabelecida pelo Chefe de Policia. As fontes policiais

foram fundamentais para alcançar os diversos sujeitos históricos, sejam policiais e presos

correcionais. O desafio consiste em realizar uma analise critica dos documentos policiais,

entendendo a linguagem e jargão da profissão na descrição das prisões dos e mapear quem

eram e onde estavam os “transgressores” no espaço público de Fortaleza.

REFERÊNCIAS

BAUER, C. S.; GERTZ, R. E. Fontes sensíveis da história recente. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R. (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 173-193.

BERSTEIN, S. A Cultura Política. In: RIOUX, J-P; SIRINELLI, J-F. Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

BRESCIANNI, M. S. M. História e Historiografias das Cidades, um percurso. In: FREITAS, M. C. Historiografia brasileira em perspectiva. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

BRETAS, M. L. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

______. Ordem na cidade: O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo, 2011.

______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

GOMES, Â. M. C. História e historiadores. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

NEVES, F. C. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

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A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA DOCÊNCIA POR PARTE DE ALUNOS DA LICENCIATURA EM MATEMÁTICA A PARTIR DE RELATOS DE EXPERIÊNCIA DOCUMENTADOS: TEMPOS E ESPAÇOS TRADICIONAIS (?)

Ricardo da Silva Pedrosa Universidade Estadual do Ceará Resumo:

O presente texto tematiza uma concepção específica do processo educacional em Matemática que é discutida tanto no Projeto Pedagógico do curso de Licenciatura em Matemática de uma instituição de ensino superior de Fortaleza/CE, quanto em Relatórios de Estágio Supervisionado produzidos por alunos desse curso. O termo “tradicional” é utilizado para designar essa concepção. A partir desses documentos, buscamos trazer à tona questões discursivas importantes para a construção da docência por parte de professores iniciantes. Tomamos como objeto de análise Relatórios de Estágio Supervisionado, nos quais os licenciandos são chamados a apresentar à instituição, na forma de um documento, o relato de suas práticas na disciplina, bem como reflexões iniciais a respeito das aulas ministradas em contexto de estágio. Uma análise preliminar dos documentos revela que um enunciado específico aparece com frequência: o “tradicional”. Mas o que é realmente chamado de tradicional, quando se lhe faz referência? Estarão os dois documentos querendo dizer uma mesma coisa? No percurso de formação dos licenciandos, o que eles constroem como sendo o tradicional? É o mesmo que encontramos nos livros de formação para o magistério ou carregam especificidades próprias do lugar e do tempo em que o enunciado é mobilizado enquanto significante que carrega um efeito de significado? Nesse sentido, caracterizamos a abordagem tradicional (MIZUKAMI, 1986) e as críticas que lhe são feitas (D’AMBRÓSIO, 1986) explicitando as questões discursivas surgidas a partir dessa crítica (FOUCAULT, 1996; SILVA, 1994). Os resultados revelaram que, inseridos num contexto tradicional, os estagiários parecem construir discursos ambíguos que não apenas perpetuam um discurso tradicional como também buscam ressignificar esse discurso no sentido de trazer novas possibilidades de desenvolver o seu trabalho enquanto constroem a história de como se tornaram professores. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente texto tematiza uma concepção do processo educacional em matemática

que é discutida tanto no Projeto Pedagógico do curso de Licenciatura em Matemática de

uma instituição de ensino superior de Fortaleza/CE, quanto em Relatórios de Estágio

Supervisionado produzidos por alunos desse curso. O termo “tradicional” é utilizado para

designar essa concepção. A partir desses documentos, buscamos trazer à tona questões

discursivas importantes para a construção da docência por parte de professores iniciantes.

O Projeto Pedagógico organiza e direciona o percurso educacional do licenciando

durante o curso, num sentido mais amplo, definindo uma determinada relação entre o

corpo docente, os conhecimentos a serem trabalhados e os discentes. Os Relatórios de

Estágio, por outro lado, institucionalizam uma resposta particular que o licenciando

precisa dar à instituição, afinal o relato de suas práticas, bem como reflexões iniciais a

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respeito das aulas ministradas em contexto de estágio, ficarão documentadas e irão

constituir um dos quesitos para a obtenção do diploma de licenciatura.

Nesse sentido, a partir do pensamento de Michel Foucault entendemos que a

construção da docência é feita presente através das mediações entre a produção de um

discurso mais geral sobre o que é a educação, qual sua função social e para que estejam

sendo formados os professores, e um discurso específico sobre como as instituições

escolares e acadêmicas devem manter a ordem estabelecida das relações entre professores,

alunos, gestores e funcionários.

Esses discursos não são só impostos unilateralmente, mas administrados e

reproduzidos cotidianamente. Como veremos, o discurso científico que determina o que é

verdade e quais os detentores do poder de estabelecer essa verdade encontra na escola um

espaço de perpetuação, de disseminação e aparecimento. Da mesma forma, o discurso

oficial de como se deve administrar a escola e as relações que lhe compõe (destacando-se

entre estas a relação professor-aluno) encontra na reificação das instituições de ensino um

espaço adequado para tornar mais e mais presente a lógica do discurso tornado verdadeiro

através de relações de poder-saber.

Por um lado, tomamos o discurso como a corporificação de relações de poder

específicas, o veículo e as circunstâncias de aparecimento dessas relações, o próprio

conteúdo pelo qual se luta. Por outro, tentamos seguir a definição de “abordagem

tradicional” até o sentido de abordagem tradicional na forma como ela aparece no discurso

de professores.

Nesse sentido, surge uma série de indagações: Mas o que é realmente chamado de

tradicional, quando se lhe faz referência? No percurso de formação dos licenciandos, o que

eles constroem como sendo o tradicional? É o mesmo que encontramos nos contextos de

formação para o magistério ou carregam especificidades próprias do lugar e do tempo em

que o enunciado é mobilizado enquanto significante que carrega um efeito de significado?

A partir de tais indagações, delimitamos nossos objetivos. Primeiro, analisar a

definição de “tradicional” a que o PCC do curso de Licenciatura se refere. A seguir,

destacamos alguns trechos dos relatórios de estágio nos quais o “tradicional” é citado para

se referir às instituições que mantém esse “contexto tradicional” do ensino de Matemática.

Por fim, discutimos como essas formas de construir discursivamente o que é tradicional

fazem parte da formação dos licenciandos.

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2 O “TRADICIONAL” NO PLANO PEDAGÓGICO DO CURSO DE LICENCIATURA EM

MATEMÁTICA

As disciplinas de Estágio ofertadas pelo curso de Licenciatura em Matemática do

IFCE se apresentam como um momento de reflexão sobre a prática. Estão inseridas numa

proposta curricular norteada pelo pensamento de que é preciso reformular as maneiras

fragmentárias como tem se estruturado o conhecimento no âmbito das licenciaturas.

Assim, o projeto pedagógico do curso de Licenciatura em Matemática (IFCE, 2006, p. 9)

sinaliza que:

O curso tem sua proposta curricular comprometida com a construção de competências, rompendo com a fragmentação dos conteúdos, que atravessa as tradicionais fronteiras disciplinares, segundo as quais se organiza a maioria das escolas de formação de docentes.

Nesse sentido, o curso em questão propõe uma formação de professores reflexivos e

capazes de desenvolver um trabalho diferenciado no qual os alunos sejam chamados a

perceber os conteúdos como parte da vida cotidiana. A relação professor-aluno é também

repensada, sendo vista não como uma via de mão única, indo do professor para o aluno,

mas como interação de ambas as partes. A profissionalização e a construção de uma

identidade docente são salientadas na perspectiva de formar um sujeito capaz de dialogar

com os conteúdos que aborda em sala de aula e, com base nesse diálogo, construir sua

identidade de professor e ter consciência de seu papel de pesquisador.

Para formar esse professor, o documento enfatiza uma metodologia diferenciada,

composta por projetos e situações-problema no decorrer da formação, bem como um

trabalho com competências. Uma metodologia, portanto, que visa “[...] romper com o

modelo pedagógico tradicional, sedimentado sobre os conteúdos, ainda que não possamos,

obviamente, prescindir deles.” (IFCE, 2006, p. 11).

Podemos afirmar, portanto, que mesmo tendo uma organização disciplinar

fragmentada, que se assemelha ao modelo tradicional, na proposta curricular do curso de

licenciatura, pode-se perceber um discurso compromissado com o desenvolvimento

curricular capaz de integrar os conhecimentos necessários à docência. É com esse

pensamento que a ênfase na apreensão de conteúdos dá lugar a uma proposta de trabalho

norteada pela construção de saberes, “[...] os saberes disciplinares, os saberes curriculares,

os saberes das ciências, os saberes experiências e os saberes da ação pedagógica.” (IFCE,

2006, p. 6).

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Em contrapartida à reprodução de uma tradição do ensino de matemática,

encontramos licenciandos inseridos numa realidade cujas disciplinas voltadas à construção

de conhecimentos vistos como necessários à boa atuação docente compõem o contraponto

ao que se chama de tradicional. Dessa forma, pressupostos teórico-filosóficos das

pedagogias são corporificados num discurso que busca colocar os licenciandos em contado

com teorias acerca do processo de ensino-aprendizagem que sejam capazes de ir além do

tradicional.

O ensino se torna, portanto, não uma consequência óbvia da matemática acadêmica,

mas um conhecimento que precisa ser pensado também à luz de teorias acerca da

psicologia do desenvolvimento, do processo de aprendizagem, do que se deve trabalhar

numa determinada etapa, enfim, teorias de como se trabalhava e de como se deveria

trabalhar numa sala de aula.

Além disso, é importante compreender que outros pressupostos teórico-filosóficos

permeiam a licenciatura. Estes são regidos por uma tradição cunhada na autoridade da

matemática acadêmica, que por sua vez, se vê corporificada nos sujeitos portadores de

formação (bacharelado) e de um discurso cientificista de primazia da matemática pura e

exclusão das concepções pedagógicas necessárias ao professor de matemática. A esse

respeito, D’Ambrósio (1986, p. 9) salienta que:

[...] ainda há matemáticos e mesmo educadores matemáticos que veem a Matemática como uma forma privilegiada de conhecimento, acessível apenas a alguns especialistas dotados, e cujo ensino deve ser estruturado levando em conta que apenas certas mentes, de alguma maneira “especiais”, podem assimilar e apreciar a Matemática em sua plenitude.

Essa realidade apresentada por D’Ambrósio (1986) afirma, assim, a “naturalidade”

do processo ensino-aprendizagem, que tem sido fortalecido ao longo da história do ensino

de matemática. Ou seja, ensinar seria consequência direta de um entendimento profundo

da matemática acadêmica, ação natural a ser efetivada na prática de sala de aula apenas

pela experiência, sem nenhum aporte pedagógico. Desenvolve-se, portanto, a ideia de que a

rigorosidade da matemática implica numa ação pedagógica tradicional. Baseado nessa

concepção, em sua maioria, os professores de matemática da licenciatura desenvolvem seu

trabalho de maneira tradicional: expositiva, com ênfase na transmissão de uma verdade

matemática anterior ao processo de ensino-aprendizagem, em que o aluno deve ascender

ao conhecimento próximo ao do professor.

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Ocorre que o licenciando em atuação na educação básica acaba tomando por

referência a atuação dos professores durante sua formação e tende a reproduz um perfil

tradicional.

Assim, pode-se dizer que a licenciatura é arena de tensão entre duas posturas

teórico-filosóficas, tendo em vista os núcleos que regem o currículo do curso de

licenciatura em matemática e a percepção do modo como esse currículo vem se efetivando.

Ou seja, ainda que o currículo apresente uma perspectiva de harmonia entre os

conhecimentos necessários à docência, não podemos esquecer as questões discursivas que

permeiam esse currículo, questões estas que bem configuram as relações de poder-saber. É

isso que nos lembra Silva (1999, p. 16), ao enfatizar a perspectiva pós-estruturalista:

[...] podemos dizer que o currículo é também uma questão de poder [...]. Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder.

Em vista disso, torna-se importante compreender o licenciando em suas formas de

se colocar sobre sua prática e quais discursos está construindo a respeito do ensino-

aprendizagem. Nesse sentido, escolhemos como objetos de investigação os relatórios

apresentados na disciplina de Estágio Supervisionado II, ofertado pelo curso de

licenciatura em questão.

Vale salientar que por meio dessas questões não pretendemos fazer apenas um

estudo acerca da educação tradicional, mas sim enfatizar a reflexão como peça

fundamental à formação do estagiário.

3 O SIGNIFICADO ATRIBUÍDO ÀS INSTITUIÇÕES NO CONTEXTO DO ESTÁGIO

Ofertada pela proposta curricular da Licenciatura em Matemática e obrigatória para

a conclusão do curso, a disciplina de Estágio Supervisionado II se propõe a trabalhar com

futuros professores que, já tendo participado de uma observação em escolas de ensino

fundamental, se preparam para ensinar nessa etapa da educação. Assim, os licenciados são

acompanhados por um professor-orientador, que além de observar suas aulas, também

orienta as articulações que podem ser feitas entre teoria e prática, trazendo textos e

proporcionando momentos de reflexão. Ao final da disciplina é produzido um relatório do

trabalho desenvolvido pelos estagiários.

Os estagiários são orientados a estruturar seus relatórios da seguinte forma:

apresentação, na qual trazem as ideias centrais do estágio e as informações contidas no

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relatório; introdução, em que discorrem sobre suas concepções a respeito da profissão

docente, do ensino de matemática, ou sobre outros aspectos da educação, de maneira

fundamentada e reflexiva; caracterização da escola campo, composto por uma análise do

contexto em que desenvolveram o estágio; diário reflexivo, relatos das práticas

desenvolvidas em sala de aula e as reflexões surgidas a partir de um olhar investigativo a

respeito dessa prática; conclusão, na qual constam as ideias dos alunos sobre as

aprendizagens (ou não) do estágio, críticas e sugestões; e por fim os anexos, compostos

pelos planos de aula, lista de frequência dos estagiários e outros materiais construídos

durantes as atividades de regência.

Os relatórios foram escolhidos por meio de uma análise prévia num universo de 39

Relatórios entregues entre os anos 2006, 2007 e 2008. A análise documental foi

estruturada a partir de uma triangulação dos dados coletados a partir da introdução, dos

diários reflexivos e dos planos de aula.

A escola corporificada em seus sujeitos integrantes, de certa forma, influencia o

trabalho dos professores. Essa é uma percepção expressa pelos estagiários. Se por um lado

estão os alunos, em sala de aula, demandando que o professor estruture suas aulas de

forma a atender suas necessidades, e trazendo conceitos prévios da disciplina que será

trabalhada, também fazem referência ao papel dos pais no processo, seja pela sua ausência

do processo, seja pelas demandas que os pais fazem à escola, e que esta repassa ao

professor.

“As instituições de ensino exigem cada vez mais dos professores. Querem que estes

sejam disciplinadores e muitas vezes polivalentes. Tudo isso sem lhes proporcionar

recursos pra auxiliar na melhoria que as escolas buscam.” (Relatório 6). A colocação do

estagiário exemplifica uma concepção corrente nos relatórios: o da escola como instância

que demanda posturas, formas de se trabalhar que atendam determinados interesses

muitas vezes desvinculados das necessidades de sala de aula.

Ao se referir a aspectos como o controle em sala de aula, a disciplina dos alunos, e a

apreensão dos conhecimentos por parte destes, o mesmo estagiário salienta que “[...] a

escola quer que esses aspectos sejam responsabilidade do professor, e esse geralmente tem

uma vasta carga horária de trabalho e assim, não possui condições para elaborar essas

atividades.” E, por fim, ele salienta a questão dos pais, acima referida: “[...] e os pais por sua

vez se acomodaram com a situação educacional do Brasil.” (Relatório 6).

Outro modo utilizado pelas instituições como forma de orientação da prática

docente, é a demanda por uma formação específica. “Aí entra o caso da especialização, que

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é outro processo que o mundo capitalista nos obriga a obter, pois para se conseguir um

bom emprego numa grande ou pequena escola já é muito exigido que o professor busque

obter esta especialização.” (Relatório 11). No relato desse licenciando, precisamos salientar

dois pontos: primeiro, ele não parece ver a pós-graduação como um espaço onde se deve

aprimorar a prática docente através dos momentos de pesquisa, sendo na verdade uma

exigência, ou um instrumento de seleção e cerceamento do trabalho docente àqueles que

possuem uma formação a mais; segundo, a demanda pela especialização seria uma

demanda externa à prática, exigência das escolas enquanto titulação apenas.

Quando passamos à analise mais detalhada dos relatos, no que se refere ao contexto

de sala de aula, vemos uma séria ausência das questões institucionais e de seus reflexos na

prática, relatada pelos estagiários. No entanto, autores como Foucault (1996) salientam a

presença das instituições nas práticas discursivas dos sujeitos. Para esse autor, haveria

uma vontade de verdade subjacente à produção do discurso, vontade esta que nada mais é

do que um processo histórico de lutas para se estabelecer quem é possuidor do discurso

verdadeiro e de todas as vantagens advindas da posse deste. Luta que acaba também por

excluir outros discursos, atribuindo-lhes o valor de não verdadeiro. Esta vontade de

verdade, segundo Foucault (1996, p. 17): “[...] apoia-se sobre um suporte institucional: é ao

mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas, como a

pedagógica[...]”

A escola passa a ser a mediadora entre professor e aluno, na medida em que precisa

estabelecer critérios de ação para ambos, elidindo a possibilidade de, no processo de

ensino-aprendizagem, serem construídos discursos subversivos. Essa mediação é feita,

inclusive, pela definição do que vem a ser uma disciplina. A disciplina, segundo Foucault

(1996), aparece como um princípio de ordenação, classificação e distribuição. A disciplina é

definida como o conjunto do que pode ser dito sobre um determinado objeto, seguindo um

método específico e bem estabelecido. A disciplina estabelece o universo do verdadeiro, as

exigências para que uma determinada construção teórica seja enquadrada, por exemplo, na

disciplina matemática. Ou seja, para Foucault (1996, p. 33), ocorre que “No interior de seus

limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas [...]” e, além disso, o

autor salienta que “[...] não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo as regras de

uma política discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos.” (ibidem, p.

35).

É papel da escola, portanto, manter esse universo do que pode ou não ser dito no

interior de uma disciplina, e perpetuar “regras”.Como salienta Foucault (1996, p. 44-45):

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Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo [...]. O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

O ensino tradicional sedimenta suas bases não apenas na ação docente, mas também

nas instituições e nos instrumentos de determinação e imposição tanto de posturas frente à

educação, quanto na seleção dos conteúdos mais ou menos adequados para uma

determinada etapa da vida dos alunos. Com a estatização do ensino (então laico, público e

obrigatório) os instrumentos de organização da escolarização de massas ganham um status

que muitas vezes se sobrepuja à ação do professor. Não há mais a supremacia total do

“mestre” sobre o “aprendiz”. A relação professor-aluno acaba sendo mediada: por um

currículo institucional previamente estabelecido pela escola segundo as exigências do

Ministério da Educação (MEC); por uma estrutura física de salas que, se antes apenas

corporificava o ensino tradicional, agora limita o espaço onde poderiam ser desenvolvidas

práticas educativas mais renovadas; e por culturas docentes e discentes na qual tanto o

aluno demanda do professor uma postura tradicional, quanto o professor exige uma

postura tradicional dos alunos.

Podemos ir mais longe e falar em todo um paradigma educacional que vem se

construindo e reconstruindo ao longo dos tempos. Paradigma em que a escola é o local

onde se perpetuam as estruturas sociais e sobre a qual se tenta exercer um controle que

diminua ao máximo o potencial de mudança inerente aos espaços educacionais.

D’Ambrósio (1986, p. 32) salienta este aspecto dizendo:

Não vemos alteração profunda no modo como são conduzidas as escolas. Há uma mudança fundamental, que é a aceitação universal do conceito de educação de massa, mas o ataque à problemática da educação é praticamente o mesmo, baseado num ideal de fazer melhor o que gerações anteriores fizeram.

A sala de aula se torna, portanto, o local de acúmulo, de exposição autoritária (ainda

que se respeite ao máximo o aluno) e submissão silenciosa às construções científicas de

conhecimento. A esse respeito, Mizukami (1986, p. 10) retrata ainda a existência de “[...]

uma visão individualista do processo educacional, não possibilitando, na maioria das vezes,

trabalhos de cooperação nos quais o futuro cidadão possa experienciar a convergência de

esforços.”

Ao caracterizar o papel das instituições na produção do discurso, Foucault (1996)

argumenta que, frente ao receio de se apoderar e se perceber na ordem do discurso, os

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sujeitos passam a se relacionar com as instituições de maneira a ter nelas um suporte para

adentrar na prática discursiva e no que ela tem de “categórica e decisiva”. Aos sujeitos,

conforme Foucault (1996, p. 7), a instituição repetiria a todo o momento:

Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém.

Enquanto instituição, a escola clama a mesma coisa para os sujeitos da educação:

professores e alunos. Tanto a postura destes, de temer se enveredar na ordem discursiva

como as aspirações de controle e determinação no interior das instituições revelam

aspectos de uma mesma “[...] inquietação diante do que é o discurso em sua realidade

material de coisa pronunciada ou escrita [...].” (FOUCAULT, 1996, p. 8).

De acordo com a ideia exposta acima, a instituição não seria o lugar por excelência

no qual se aprende alguma coisa, mas onde se efetivam práticas discursivas e o discurso é

controlado e produzido, bem como cerceado e calado em maior ou menor grau. Ao

perceber a vontade de verdade enquanto sistema de exclusão, Foucault (1996) enfatiza não

apenas a distinção entre o verdadeiro e o falso, necessária à coerência no interior do

discurso. Inerente a essa vontade, o autor percebe o viés histórico de seleção e luta pelo

poder de estabelecer o discurso verdadeiro. Assim, ao estabelecer os ritos e pré-requisitos

necessários para os sujeitos serem vistos como possuidores do discurso verdadeiro,

sempre existe a exclusão dos discursos “falsos”, e as instituições (como a escola) aparecem

dando suporte a essa exclusão. Além disso, para Foucault (1996, p. 17), a vontade de

verdade:

[...] é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia [...] mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.

Acerca do pensamento de Foucault, Pignatelli (1994, p. 129) diz que “[...] o sujeito

obediente é produzido e sustentado por um poder pouco notado e difícil de denunciar: um

poder que circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de instituições sociais tais

como a escola.”

Nessa interpretação do pensamento foucaultiano a escola é um lugar perigoso, pois

se configura como o local em que as relações de saber-poder são veladamente compostas,

transmitidas e retransmitidas. Um contexto em que mentalidades disciplinares são

trabalhadas no intuito de limitar e controlar o surgimento do discurso desviante, das

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formas de ser e estar no mundo, que não as valoradas como corretas tanto de um ponto de

vista das relações do sujeito com o outro (do aluno com o professor, entre os alunos, entre

professores etc.), como também dentro da disciplina (no caso, a matemática).

Nesse sentido, o termo “disciplina” é usado por Foucault (1996, p. 30) também para

caracterizar “[...] um corpus de proposições consideradas verdadeiras, de técnicas e de

instrumentos [...] é aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados.”. O

autor afirma, nesse ponto, de maneira bem clara que, diferentemente do que se pensa num

contexto tradicional: “[...] uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de

verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito,

a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou de

sistematicidade.” (FOUCAULT, 1996, p. 31).

Dessa forma, a visão de que a escola é o espaço em que o aluno é levado à verdade

matemática, sendo, para tanto, conduzido pelo professor dessa disciplina (bem como às de

outras disciplinas), dá lugar a uma visão da escola como instituição cerceadora, em que as

relações de saber-poder são discursivamente estabelecidas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No estágio, o aluno tem oportunidade de se expressar, escrevendo a respeito das

concepções teóricas com as quais teve contato no decorrer de sua formação e, além disso,

mostrar de que maneira ele desenvolve sua prática.

Assim, na introdução de seus relatórios, ao refletir sobre a prática que

desenvolveram, os alunos revelam conhecer a necessidade de renovados conceitos de

escola e de modos como as instituições influem em seu trabalho. Porém, ao confrontarmos

seus textos introdutórios sobre a educação e os relatos de suas experiências em sala de

aula (através dos diários reflexivos) percebemos um estado discursivo híbrido, entre

ensinar tradicionalmente e buscar formas renovadas de ensino. Ou seja, os estagiários

percebem o contexto em que estão inseridos, alguns denominam explicitamente de

“tradicional” enquanto outros apenas o caracterizam como tal. Além disso, sentem a

necessidade de pensar formas de ir além daquelas características que julgam ser

prejudiciais ao aluno e ao trabalho de ensinar.

Podemos inferir que a produção de um discurso mais renovado, que dê subsídios às

práticas menos tradicionais ou diferentes, vem sendo “controlada, selecionada, organizada

e redistribuída”, fortalecendo assim a estrutura tradicional, dando-lhe novas roupagens ou

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não. Uma indagação pertinente é: como isso acontece? Em primeiro lugar, existe um

controle por parte da escola, instituição que estabelece os currículos e as posturas a serem

adotadas por professores e alunos. O papel da instituição é o de selecionar, dentre a

multiplicidade de construções discursivas, aqueles discursos que melhor se ajustam ao

discurso estabelecido, fazendo com os sujeitos percam a noção de que, o que é visto como

verdade é uma construção histórica na qual mesmo as concepções científicas são

atualizadas, revisadas abandonadas em lugar de novas teorias. E, além disso, organiza e

redistribui os discursos que podem ou não ser ditos no interior das disciplinas.

Trazendo esse pensamento para o contexto do estágio, estamos falando na

instituição escola que vem dando suporte à construção de um discurso tradicional através

de critérios de verdade referentes: à definição da relação do professor como aquele que

detém a autoridade para transmitir o discurso científico; à metodologia como um conjunto

de instrumentos de otimização da transmissão depositária de conhecimentos; e à

instituição escolar como aquela que se encarrega de controlar, selecionar, organizar e

redistribuir os discursos.

Uma característica do discurso dominante, é que ele não mobiliza apenas os sujeitos

a ocuparem determinados lugares no sistema, mobiliza também outros discursos e seus

portadores que não precisam ser necessariamente repetições ou reformulações (re-

contextualizações) deste, mas podem ser também discursos que lhe fazem críticas e

buscam fazer-lhe frente (discursos contrários e discordantes). Fazendo isso, os sujeitos

portadores, criadores desses discursos, acabam sendo realocados para os papéis definidos

pelo discurso dominante.

Dessa forma, podemos dizer que existe uma ambiguidade na prática discursiva dos

sujeitos. Se por um lado ocorre certa determinação tanto nas posturas quando

na metodologia que eles utilizam na aula, também existe uma busca por efetivar novas

percepções do fenômeno educativo (trazer mais o aluno para a construção do

conhecimento, utilizar outras metodologias, até mesmo pelo desgaste da mera exposição).

Talvez, nessa ambiguidade, existe uma perspectiva de mudança, de se colocar

enquanto professor frente à instituição escolar e exercer seu poder de falar, de desenvolver

seu de trabalho de uma forma que ele (o docente) julgue realmente correta e válida. Uma

possibilidade de interpretação desse processo fica visível quando percebemos que essa

ambiguidade reflete, na construção do discurso dos professores − o que ocorre no decorrer

do curso. Ou seja, nos sujeitos e em suas singularidades, percebemos indícios do que vem

ocorrendo no universo maior das licenciaturas.

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A partir desse uso discursivo, tais professores constroem nesses relatórios um

determinado discurso sobre o ensino de sua disciplina enquanto constroem seu discurso a

respeito da educação.

REFERÊNCIAS

D’AMBRÓSIO, U. Da realidade à ação: reflexões sobre educação e matemática. São Paulo: Summus; Campinas: Ed. Da universidade Estadual de Campinas, 1986.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso:aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Lyola, 1996.

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA – IFCE. Projeto pedagógico do curso de Licenciatura em Matemática. Fortaleza, 2006.

MIZUKAMI, M. G. N. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986.

PIGNATELLI, F. Que posso fazer?: Foucault e a questão da liberdade e da agência docente. In: SILVA, T. T. (Org.). O sujeito da educação:estudos foucaultianos. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

ANÁLISE DOS RECURSOS DISCURSIVOS DO PROFETA AGEU Shara Lylian de Castro LOPES Universidade Estadual do Piauí Domingos de Sousa MACHADO Universidade Estadual do Piauí Resumo

O presente trabalho propõe-se a analisar o discurso religioso cristão à luz da Análise do Discurso. O corpus da pesquisa é constituído pelo livro do profeta Ageu encontrado na Bíblia Sagrada tanto dos evangélicos quanto dos católicos, além de entrevistas feitas a autoridades de religiões que têm a Bíblia como livro-chave. Pretende-se entender como é dada a produção do discurso desta narrativa, bem como o lugar dos enunciadores e os conceitos de hiperenunciação. Analisa-se também a fórmula discursiva da obra. Estudos desta natureza constituem um campo ainda não muito explorado, haja vista a vastidão de conceitos e implicações referentes ao discurso religioso na sociedade atual. A pesquisa é de cunho bibliográfico e exploratório e está em fase de realização desde 2012, sendo objeto de trabalho de conclusão de curso. O embasamento teórico se fundamenta principalmente com os franceses Maingueneau e Charaudeau (2011). Os resultados parciais apontam que a utilização de diversos elementos da Análise do Discurso, tais como, a hiperenunciação e a fórmula discursiva, são instrumentos de base para a constituição do discurso constituinte, mais precisamente, do discurso religioso.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Partindo da leitura do discurso do profeta Ageu, em seu próprio livro, e fazendo as

devidas referências à Análise do Discurso, podemos perceber como as estruturas de

discurso do enunciador podem ser estudadas à luz da Análise do Discurso e, a partir dos

pressupostos da Análise do Discurso, temos os seguintes problemas a serem estudados:

Como é feita a enunciação do discurso de Ageu e quais os recursos que ele utiliza em seu

discurso para persuadir seu público-alvo?

Os objetivos são, portanto, analisar o discurso feito pelo profeta conforme exposto

em seu livro através do estudo aprofundado de trechos do discurso do mesmo bem como,

descrever os recursos e estratégias utilizadas por Ageu para conquistar o público-alvo,

focando, no presente artigo, dois instrumentos do discurso: a hiperenunciação e a fórmula

discursiva.

Muitas religiões têm usufruído do discurso bíblico como doutrina para os seus

seguidores, tornando-se parte essencial de diversas culturas. Revela-se aí, portanto, o foco

da pesquisa em questão: um cunho sociocultural. Este tema vai mostrar-se original no

momento em que está relacionado à Análise do Discurso, trazendo, por conseguinte, uma

leitura mais científica acerca do discurso religioso.

2 NOÇÕES DE ANÁLISE DO DISCURSO Esta primeira escrita deve-se à necessidade de uma introdução ao arcabouço teórico

referente à AD. Portanto, é mostrada de forma sucinta a trajetória desse estudo, bem como

os conceitos que serão analisados na segunda parte, através de trechos do livro do profeta.

2.1 Esboço histórico da Análise do Discurso

O estudo do termo “discurso” é primordial para o início dessa pesquisa, a fim de que

se entenda a proposta da Análise de Discurso. Portanto, “discurso”, como bem aborda

Orlandi (2005), traz em si e na sua etimologia um sentido de curso, leva-nos a imaginar,

por exemplo, o movimento de um rio, da sua foz ao seu leito. Isto é, há embutido no

significado de “discurso” um quê de movimento das palavras utilizadas na comunicação

verbal entre as pessoas.

Partindo desse pressuposto, temos então o principal foco da Análise de discurso, ou seja:

A Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando,

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considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2005, p. 15-6)

Impende destacar, portanto, o sujeito e sua intenção como os principais elementos

de estudo na Análise discursiva visto que a Análise do Discurso se propõe unir as ciências

Sociais e a Linguística, tendo em vista o interlocutor como agente modificador na sociedade

em que vive e como usuário do discurso para diversos fins, em que todos eles cooperam

para a persuasão.

A Análise de Discurso, no entanto, mesmo sendo uma ciência atual, teve os estudos

de sua base ainda no início do século XIX, com os formalistas russos, os quais propunham

àquela época, uma visão de texto como estrutura lógica. Logo, conforme Orlandi (2005),

após a Análise de conteúdo, que se propunha responder qual o significado do texto, surge a

Análise do Discurso, sugerindo outra visão: responda-se não “o que significa?”, mas sim,

“como significa?”.

Quando nos propomos a analisar o discurso de alguém, segundo Orlandi (2005)

devemos entender o caminho a seguir: sair do produto acabado o qual corresponderia ao

discurso propriamente dito e se dirigir à impressão da “realidade” do pensamento, ou seja,

sair da superfície, onde estão as palavras e as sentenças, partindo para o abstrato, o

pensamento e seu processo até a externacionalização. Isto é, a proposta prima, doravante

AD é desfazer o produto até alcançar o processo.

Um fator importante para a AD é a presença de outros textos para a formação de um

discurso, uma vez que, “as palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre

parte de um discurso, e todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres presentes

e dizeres que se alojam na memória” (ORLANDI, 2005, p.43).

Isto é, nenhum discurso ou texto se constitui puro, visto que todo discurso

apresenta marcas explícitas ou implícitas de outros textos. E nesse contexto, temos a forte

presença das metáforas, como principais afirmadoras da presença de outros textos em um

dado discurso. Por isso tudo intitulamos intertextualidade. Há que se destacar a

importância dessa intertextualidade na formação dos textos, vez que ela possibilita o

diálogo entre os diversos autores, demonstrando ainda que ela pode ser realizada de

diversas formas tais como a paráfrase, a paródia, as citações diretas ou indiretas entre

outros, e com as mais variadas intenções comunicativas e sociais a fim de alcançar o

objetivo almejado pelo enunciador.

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No momento em que a AD vivencia a criação da teoria da enunciação tem-se um

grande valor atribuído aos dêiticos, que são pronomes remissores de algo já dito no texto,

no instante em que se pressupõe que todo ato de fala ou de enunciação evidencia o

trabalho de um determinado falante em transpor do pensamento abstrato para a superfície

da fala, visto que é por meio deles que o enunciador se apresenta no seu texto: através do

“eu”. Assim como, “aqui, agora, lá” são formas de direcionar o texto para a localização e o

tempo, segundo Brandão.

É em meio à enunciação que as marcas do social, dos textos já conhecidos, da região,

da cultura, entre tantos outros aspectos formadores de um ser falante, vêm à tona, se

mostrando, principalmente, através de seu discurso. Não obstante a função de evidenciar a

cultura do sujeito, o discurso ainda pode ser visto como principal instrumento de

externacionalização da ideologia, e em um nível maior, fator necessário ao estabelecimento

da comunicação.

A Análise do discurso nasce no seio da mistura ente a Linguística e o Marxismo, e vai

tomar a proposta inicial da primeira como principal fonte para a abordagem da política,

conforme aponta Maldidier (apud BRANDÃO, 2003). A formação discursiva e a formação

ideológica são então de extrema importância para se entender as regras do discurso, como

o que pode ou não, o que deve ou não ser dito em um dado momento, e em determinado

local.

É, portanto, neste âmbito que residirá o paradoxo da AD, visto que, ao mesmo tempo

em ela se propõe ir contra as falhas da dicotomia saussureana da separação entre

“língua/fala” e todo aquele padrão rígido da fala, ela institui a formação discursiva – FD, a

qual vai sugerir exatamente regras para a composição do discurso. Contudo, a chegada de

outros estudos tais como a pragmática, a análise da conversação e a filosofia da linguagem

trazem referências novas para a AD, principalmente em relação à noção da FD.

A ideologia é fator determinante na AD, visto que não existe sentido sem

interpretação e, em contrapartida, levando em consideração que o sentido se mostra como

uma evidência, interpreta-se ao mesmo tempo em que, nega-se a interpretação, segundo

Orlandi. É, portanto, com base nesse pressuposto, que entendemos a ideologia como

condição para a constituição do sentido e dos sujeitos.

Sobre o breve comentário feito acerca das origens da Análise do Discurso,

verificamos a função primeira de tal ciência qual seja a contribuição para a comunicação e

suas práticas profissionais como bem destaca Krieg-Planque, no obra Fórmulas discursivas

(2011).

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2.2 Noções de hiperenunciação e fórmula discursiva

O discurso religioso é assim intitulado pelo seu caráter moralista e divinal, na

medida em que está sempre a utilizar-se da imposição de conceitos e valores para reger a

vida e o cotidiano de seus fiéis e da comunidade na qual estão inseridos. Portanto, é

necessário que tratemos de conceitos como hiperenunciador e discurso constituinte a fim

de entendermos como se dá a formação de tal discurso. Destacamos, contudo, que o

discurso estudado aqui é situado no âmbito cristão, portanto, monoteísta. Daí a utilização

do termo “Deus”.

Sobre o conceito de hiperenunciador temos que, em uma verdade solidificada no

meio de uma sociedade e que é tomada sempre pelos falantes com o intuito de embasar

seus discursos relativos, principalmente, à moral, é necessariamente evocado um

enunciador máximo, que se dirigenão apenas a um referente específico, mas a um auditório

que, acredita ele, já ter conhecimento de alguns costumes e conceitos para realizar o

entendimento da tal verdade que lhe é dita.

Esta hiperenunciação de que tratamos é encontrada em discursos solidificados na

sociedade tais como os provérbios, os quais são tomados por qualquer sujeito daquela

comunidade a fim de dar sustento a certa argumentação. Sobre isso, Maingueneau, em

Fórmulas discursivas, traz:

Quando se trata de aforizações por natureza, como é o caso dos provérbios, não há um Sujeito particular que está na fonte do ponto de vista expresso na enunciação, mas o locutor ganha autoridade porque põe em cena, na sua fala, uma outra instância a que chamamos hiperenunciador, com quem ele mostra estar de acordo. (2011, p. 43)

No entanto, destacamos que no discurso religioso o hiperenunciador tem uma

identidade, ainda que divina, divergindo neste sentido, do hiperenunciador, que não pode

ter identidade atribuída a um só ser.

Ao estudarmos os discursos de tom proféticos, percebemos a dimensão da carga que

há na utilização do recurso discurso da “hiperenunciação”, haja vista a necessidade da

instituição profética em passar a realidade da palavra emitida ser de origem divina, e por

isso mesmo, inquestionável. É neste momento em que reconhecemos o encaixe do discurso

profético (religioso) como um tipo de discurso constituinte, segundo a classificação feita

por Maingueneau.

Não se pode deixar de destacar que outros instrumentos discursivos além da

hiperenunciação são usados no discurso religioso para legitimar o enunciador, como a

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intertextualidade. No caso do profetismo bíblico, o diálogo com outros profetas são fonte de

sustentação paradiscurso em questão.

É importante também no estudo desse discurso, o conhecimento da cadeia de

chamamentos que é feita em cujos extremos situam-se o enunciador momentâneo e o

próprio “Deus”.

À medida que absorvemos o conceito de “fórmula” para o discurso, fica mais claro o

entendimento da sua utilização na constituição do dado discurso. Portanto, segundo

Charaudeau & Maingueneau,

Uma fórmula caracteriza-se por seu uso maciço e repetitivo, sua circulação em um espaço público em uma conjuntura dada. Ela é o objeto de conhecimentos amplamente partilhados, mas sempre conflituosos, observados particularmente nos comentários metadiscursivos e polêmicos que acompanham frequentemente a fórmula. […] A fórmula dá lugar a um número significativo de transformações e de variações parafrásticas (2012, p. 244-5).

Esta noção de fórmula transpassa, por conseguinte, o nível linguístico para tomar

forma, principalmente, no âmbito discursivo, haja vista sua corriqueira utilização nos

discursos em contraposição à já existência de tal palavra. Conquanto, certa palavra ou

expressão tornar-se-á fórmula à medida que seu recorrente uso caracteriza fundamento e

argumento para a constituição do discurso.Impende trazer à tona outra característica da

fórmula, qual seja o seu teor referencial, visto que a mesma torna-se sempre um referente

social, como bem diz Silva (2011), no momento que toma notoriedade no espaço discursivo

em que é utilizada.

Outra característica da fórmula que deve ser abordada no presente trabalho é o seu

teor referencial, visto que ela se torna sempre um referente social, como bem diz Silva

(2011), no momento que toma notoriedade no espaço discursivo em que é usada além de

se constituir forma sólida de identificação cultural e social da comunidade que a utiliza,

superficializando a formação ideológica.

3 O HIPERENUNCIADOR E A FÓRMULA DISCURSIVA NO DISCURSO DE AGEU

Este capítulo faz, a priori, um apanhado do contexto histórico e cultural do profeta,

ressaltando pontos das condições de produção dos enunciados e, a seguir, faz uma breve

análise dos recursos discursivos: hiperenunciação e fórmula discursiva. Neste sentido, a

segunda parte traz as evidências da importância do hiperenunciador para a legitimação do

discurso profético.

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3.1 Referencial histórico do profeta Ageu Judeus, primeiro povo monoteísta de que se tem conhecimento, são os fundadores

das maiores religiões monoteístas da atualidade. A eles é atribuída a autoria da primeira

parte da Bíblia, livro-chave, o antigo testamento, também conhecido como Torah pelos

mulçumanos. É sabido, também, que este povo passou por inúmeros cativeiros sendo um

dos maiores o da Babilônia, cujo foi executado pelo rei Nabucodonosor.

Durante o cativeiro, os filhos de Israel, como são conhecidos os judeus, foram

impedidos de cultuarem seu Deus e tiveram o templo destruído pelos babilônios. Porém,

por volta do século V a.C., já sob o domínio persa, o rei atual, Ciro, decretou o fim do

cativeiro judeu bem como a reconstrução de seu templo, como pode ser verificado no livro

de Esdras, contido também na Bíblia.

No entanto, após a morte e sucessão do rei Ciro por Artaxerxes (Cambises), a

reconstrução do templo é proibida pelo próximo rei persa e o povo judeu acomoda-se com

o decreto de suspensão, voltando-se para a construção de suas próprias casas. É nesse

momento que aparece Ageu, como profeta, trazendo uma palavra divina ao governador de

Judá e ao sumo sacerdote89, respectivamente, Zorobabel e Josué.

O livro do profeta Ageu é dividido em dois capítulos, os quais se subdividem em

versículos, divisão feita na Bíblia inteira. No primeiro capítulo, a palavra trazida pelo

profeta ao povo judeu é de exortação à reconstrução do templo divino e, ao final do

capítulo, fica registrada a mudança de atitude do povo por conta da palavra dita pelo

profeta.

No segundo e último capítulo, a palavra do profeta Ageu ao povo retorna, desta vez,

com caráter de consolação e retribuição divina pelo trabalho empreendido na reconstrução

do referido templo. Segundo está escrito, o tempo que separa os dois discursos é um mês e

vinte dias.

Temas como interdiscursividade, dialogismo, formação ideológica, constituição do

sujeito e participação do outro no discurso, os efeitos de sentidos produzidos entre tantos

outros temas do discurso podem ser analisados nos discursos religiosos proféticos, no

entanto, nos deteremos na análise mais aguçada da realização da hiperenunciação e na

utilização das fórmulas discursivas pelo profeta Ageu, na enunciação registrada em seu

livro.

89 É o nome dado ao mais ao posto religioso do povo de Israel. O sumo sacerdote fazia o oferecimento de holocausto a Deus em nome do povo. Era, portanto, um mediador.

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3.2 Hiperenunciação no livro do profeta Ageu Como já discutido anteriormente, a hiperenunciação se constitui na atribuição de

determinado discurso a um enunciador que está acima do próprio receptor da mensagem,

no caso do discurso religioso este hiperenunciador é o próprio Deus. O profeta faz-se,

portanto, somente o porta-voz da Verdade Suprema e inquestionável, já transmitida a ele

pelo SENHOR90.

Esta hiperenunciação é verificada já nos dois primeiros versículos no texto, a saber:

No segundo ano do rei Dario, no sexto mês, no primeiro dia do mês, veio a palavra do SENHOR, por intermédio do profeta Ageu, a Zorobabel, filho de Sealtiel, governador de Judá, e a Josué, filho de Jozadaque, o sumo sacerdote, dizendo: Assim fala o SENHOR dos Exércitos, dizendo: Este povo diz: Não veio ainda o tempo, o tempo em que a casa do SENHOR deve ser edificada(Ag. 1: 1-2).

Fica clara a hiperenunciação já no início do livro de Ageu no momento em que lemos

que “veio a palavra do SENHOR, por intermédio do profeta Ageu”, visto que a atribuição da

palavra que seguirá por todo o livro é dada a Deus, o ser divinizado pelo povo judeu,

residindo aí, portanto, uma verdade soberana e inquestionável do que será dito logo a

seguir através do profeta.

Evidenciamos, com isso, uma função máxima da hiperenunciação no discurso

religioso: a de respaldar a fala dos profetas através da citação do hiperenunciador a fim de

anular qualquer forma de questionamento sobre a veracidade e a efetividade da palavra

que será dita, ainda que essa palavra demonstre cunho político ou de interesse que não o

coletivo. No entanto, no caso estudado, o profeta levantou, segundo as escrituras, para

trazer uma palavra de repreensão/advertência, seguida de uma palavra de consolo.

O fenômeno da hiperenunciação se segue por todo o texto destacado pelas

reiteradas aparições de excertos como “Assim fala o SENHOR dos exércitos”, “Diz o

SENHOR”, “Veio a palavra do SENHOR”, “Disse o SENHOR dos exércitos” que embasam a

todo instante o discurso do profeta. Há momentos em que, num só versículo91, apreciamos

até três expressões do tipo descrito acima as quais remetem ao hiperenunciador.

Ao utilizar essas expressões, torna inquestionável a assertiva, pois não se discute

com o Senhor. Não é Ageu quem fala, mas o Senhor. Nesse sentido, percebemos a presença

constante da hiperenunciação como elemento fundamental para a legitimação do discurso

90 “Senhor” é escrito em caixa alta em todo o antigo testamento da Bíblia, provavelmente, para evidenciar a supremacia e a excelência de Deus sobre os homens, segundo a Bíblia. 91 Menor constituinte na divisão da Bíblia, seguida dos capítulos e dos livros.

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profético, haja vista a consolidação da figura divina na comunidade para qual se dirige o tal

discurso.

Por essa recorrência de expressões que trazem a todo instante a figura máxima do

discurso, entendemos a ênfase e o valor dados ao hiperenunciador no discurso de cunho

religioso visto seu caráter impositivo de verdade absoluta e inquestionável, como já

discutido anteriormente ao tratarmos dos conceitos de hiperenunciação e seus derivados

para a Análise discursiva.

Ligado ao conceito de hiperenunciação temos o de fórmula discursiva, o qual

tambémnos conduz às formas de recurso utilizadas na constituição de discursos como o

religioso. Dessa forma, abordaremos como ela se constrói no enunciado em questão.

3.3 Fórmulas discursivas no livro do profeta Ageu Sobre fórmulas discursivas no presente trabalho, necessário se faz que entendamos

o discurso religioso como uma espécie de discurso constituinte visto que este tem como

característica o não reconhecimento de outra verdade que não a proposta e divulgada por

ele, bem como a não aceitação de qualquer discurso acima do dele, segundo bem propõe

Maingueneau apud Silva (2011).

Partindo do pressuposto que fórmula discursiva caracteriza qualquer elemento

linguístico recorrente o qual se torna base para o discurso do enunciador, e entendendo,

por conseguinte, que a evidência da fórmula se dá no seu uso de várias formas tais como,

na oralidade da comunidade em que o discurso analisado está inserido, temos que as

expressões referenciais da enunciação divina através de Ageu podem ser encontradas

facilmente nas orações dos religiosos seguidores da Bíblia.

Neste sentido, termos de remissão tais como “diz o SENHOR”, ao mesmo tempo em

que se constituem emergências textuais da hiperenunciação, são também, em certos

aspectos, fórmulas discursivas próprias do discurso religioso. Por assim dizer, o texto

religioso do livro do profeta Ageu apresenta uma fórmula que tomará tal aspecto no

instante em a comunidade do discurso em que se situa toma a referida fórmula e a insere

recorrentemente em suas orações a Deus (SENHOR).

Destacamos a noção de fórmula relacionada à sua notoriedade adquirida no

momento da partilha social do signo em questão, como é o caso das remissões à autoria do

“SENHOR” que é compartilhada por uma parcela considerável e quase totalizadora dos

seguidores religiosos, destacando ainda que são envolvidas nesta comunidade discursiva,

diversas e distintas religiões.

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Sobre o assunto, Heine afirma:

É importante ressaltar também que a noção de fórmula tem um caráter essencialmente polifônico fazendo ecoar diversas vozes que retomam discursos prévios, instaurando, por isso, a polemicidade. Sendo assim, é possível notar em uma fórmula a heterogeneidade constitutiva de todo e qualquer enunciado e de todo e qualquer signo linguístico, quando colocados em uso efetivo no discurso (2012, p.04).

A polifonia, bem como a heterogeneidade constitutiva dos enunciados linguísticos,

como disse a autora acima, são parte fundamental do caráter linguístico das fórmulas

discursivas, portanto, o corpus do presente trabalho serve como exemplo para a afirmação

ao atribuir a todo instante a palavra do profeta a outra voz que não a dele.

Somado ao recurso polifônico, temos outro fenômeno típico do discurso bastante

evidenciado no corpus em questão, a participação do outro. Neste sentido, ao alisarmos o

livro do profeta, não há como questionar a importância do povo hebreu, representado

principalmente por Josué e Zorobabel, na constituição do discurso profético de Ageu, visto

que nessa cenografia o sumo sacerdote e o governador são escolhidos para enunciatários

principais desse discurso. Destacamos ainda, a importância de se pensar a escolha dos dois

nomes citados não aleatório, mas sim pensada, uma vez que a posição de ambos representa

forte influência sobre o povo em questão.

Grosso modo, temos a citada polifonia demonstrada em nosso corpus ao passo que

devemos esclarecer a ocorrência do fenômeno de polifonia em todo o velho testamento,

principalmente nos livros dos profetas maiores e menores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos estudos feitos até o dado momento sobre os instrumentos e recursos da

Análise do Discurso que podem ser encontrados no livro do profeta Ageu, fomos capazes de

perceber a evidência de alguns desses recursos sendo bastante explorados no corpus em

questão, assim como, em todo o texto de onde o referido material foi extraído, a saber, a

Bíblia Sagrada.

Considerando, destarte, a recorrência do uso dos dados instrumentos discursivos,

entender-se-á o valor de tal pesquisa com o fim de compreender as intenções do

enunciador tanto no discurso escrito quanto na oralidade da comunidade que o utiliza. O

trabalho nos levou à assimilação do caráter de discurso constituinte no discurso religioso,

visto que os usuários desse discurso o entendem como sua verdade absoluta e indiscutível,

segundo Maingueneau (2011), na obra Fórmulas discursivas.

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Estudos desse caráter têm, essencialmente, a função de entender as intenções do

enunciador e do discurso em que este se classifica, utilizando para tanto os instrumentos

da produção discursiva.

O estudo de instrumentos próprios da Análise discursiva, como intertextualidade e

condições de produção, são de grande valia, principalmente, para desvendá-lo do que está

implícito por trás das entrelinhas do texto, no entanto, somente dois deles foram

explorados no presente trabalho de forma especial, fórmulas discursivas e

hiperenunciação. Além de destacarmos de forma bastante sucinta sobre a importância

dada à participação do outro na constituição de um discurso desse tipo.

Reside aí, a necessidade do empreendimento de estudos como este explorando,

tanto os recursos já abordados inicialmente nesta escrita, como outros tantos que a Análise

do Discurso em todas as suas vertentes forneça aos pesquisadores.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, H. H. N. Análise do Discurso: um itinerário histórico. In:PEREIRA, H. B. C.; ATIK, M. L. G. (Org.). Língua, Literatura e Cultura em Diálogo. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2003.

______. Introdução à análise do discurso. 8. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.

BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida, rev. e atual. no Brasil.

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 15. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

FRANCISCO, C. T. Introdução ao Velho Testamento. Tradução de Antônio Neves de Mesquita. 3. ed. Rio de Janeiro, 1985.

HEINE, P. V. B. Reflexões sobre a fórmula discursiva baianidade à luz da Análise do Discurso. Disponível em:<http://anais.jiedimagem.com.br/pdf/2085.pdf>. Acesso em: 12 abr.2013.

LOPES, S. L. C. O profetismo bíblico e a enunciação: Uma análise do discurso do profeta Ageu. Teresina: 2013. Monografia (Graduação) – UESPI.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

______. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

______Doze conceitos em análise do discurso: organização Sírio Possenti, Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

MOTTA, A. R; SALGADO, L. (Org.). Fórmulas discursivas. São Paulo: Contexto, 2011.

ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas – SP: Pontes, 2005. p.75-85.

______. Discurso e leitura. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

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DISCURSOS DA GUERRA FRIA EM “A ESPINGARDA” (1966) DE ANDRÉ CARNEIRO Vitor Vieira Ferreira Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo Conhecido já desde Thomas Morus ou ainda Platão em sua República, o conceito de utopia, materializado em diversas obras literárias, em especial naquelas consideradas como pertencentes ao gênero da Ficção Científica, descortina um novo tempo, um novo caminho, crítico quanto ao presente e no qual ideais positivos teriam sua plena realização. Já seu contraponto, a distopia, sem esperanças e com olhar pessimista, também se concretiza em obras literárias. Exemplo disto, “A Espingarda” (1966), conto de André Carneiro, num cenário de destruição, em uma melancólica harmonia com todos os temores causados pela ameaça nuclear em tempos de Guerra Fria, traz consigo em sua projeção futura distópica todo um complexo de discursos, ideologias e atitudes responsivas, considerando a noção bakhtiniana, por parte do autor. Pois o texto literário, para além de seu componente estético e como qualquer outro discurso, é atravessado por questões de natureza histórica: sociais, políticas, de poder; servindo ele mesmo de fonte para estudos sobre seu tempo. Pretende-se assim com o trabalho, situado na área da Análise Crítica do Discurso, estabelecer uma relação entre os discursos vigentes à época da Guerra Fria e suas representações no conto; reafirmando assim o necessário diálogo entre os estudos linguísticos e a disciplina da História. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“A espingarda” foi publicada inicialmente em uma coletânea de contos por André

Carneiro, um dos principais nomes da Ficção Científica (doravante FC) no Brasil e

pertencente à chamada “geração GRD92”, considerada pela historiografia do gênero como

um dos momentos mais profícuos da FC brasileira.

Em sua narrativa, o conto traz um protagonista sem nome nem muitos predicativos

claramente expressos no texto. Em meio a um ambiente urbano de completa destruição, vê-

se ele obrigado a lutar por sua própria sobrevivência num cenário de carros destruídos,

postes tombados e corpos expostos pela rua. A princípio, temos o que parece ser um dia

comum em suas andanças neste caos em busca de mantimentos, água, abrigo, ou ainda

cigarros. Por entre construções infestadas por baratas e com forte odor de cadáveres, ou

ainda pouco seguro pela frágil proteção de automóveis, o autor descreve sua caminhada

quase que como a esmo, numa angustiante esperança de encontrar outro ser humano. Após

chegar a uma casa e abrir uma de suas janelas, ele se depara com uma luz vermelha ao

92 Gumercindo Rocha Dorea, a partir do qual temos as iniciais, foi um editor que se empenhou no início da década de 60 em reunir autores brasileiros de literatura de ficção científica e publicar suas obras através do lançamento de antologias de contos. Com ele, pôde ocorrer então a “primeira reunião de contos nacionais de FC em um único volume, a Antologia Brasileira de Ficção Científica, de 1961, e a segunda, Histórias do Acontecerá, no mesmo ano” (CAUSO, 2007, p. 16).

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longe, um possível indicativo de presença humana. Depois de tentar sinais com um lampião

sem qualquer tipo de resposta, decide então dirigir-se até a construção de onde vinha a luz.

Com muros altos e portas sólidas, ela é intransponível. Ao tentar estabelecer algum contato

através de gritos, um homem (o antagonista) com uma espingarda apontada para ele

ordena-o para que desapareça de lá. Ao tentar argumentar, tem como resposta um tiro, e

vai correndo buscar abrigo. Ele encontra um lugar para ficar e descansar e decide no dia

seguinte tentar novo contato. Ele chega até a escrever uma mensagem num papel, que é

lida pelo tal homem com a espingarda quando o personagem se aproxima dele novamente.

Em seguida, ocorre entre os dois um tenso diálogo, e o antagonista não aceita

qualquer tipo de cooperação mútua em benefício de ambos, conforme proposto pelo outro

personagem, argumentando aquele que este estaria de alguma forma contaminado.O

diálogo se encerra com um tiro que atinge o protagonista no ombro. Transtornado, ele

retorna à casa que lhe serviu de abrigo na noite passada e pega também uma espingarda,

encontrada anteriormente em um armário de armas. Retornando ao local, efetua diversos

disparos contra o homem e a construção em que ele se encontrava. Não satisfeito, recolhe

cadeiras e caixas, empilha-os em frente ao portão e neles ateia fogo com álcool, encontrado

numa farmácia. O fogo consome parte da estrutura e o portão pode então ser aberto. Indo

adiante, ele encontra por fim seu inimigo já morto, após ter se arrastado alguns metros.

Vasculhando o local, toma para si alguns mantimentos e recarrega sua arma, pegando

também mais munição. Encontra-se o protagonista no fim da cidade, junto a uma estrada

em direção às montanhas, rumo ao norte. Para lá ele parte, encerrando-se assim o texto.

2 “A ESPINGARDA”, UMA FICÇÃO CIENTÍFICA DISTÓPICA BRASILEIRA

O conto foi posteriormente publicado em 2007 em outra coletânea, desta vez

trazendo outros autores e intitulado “Os melhores contos brasileiros de Ficção Científica”.

Inicialmente, nos questionamos sobre os aspectos que justificam a inserção do conto na

literatura de FC, para além de um aspecto editorial.

Dois fatores podem ser levados em consideração quanto à narrativa. Em primeiro

lugar, a importância dentro da economia do texto que o elemento da espingarda possui.

Ampliando sua significação primeira, isto é, um armamento como qualquer outro, o que

temos aqui é o resultado de uma complexa imbricação entre estudos científicos, aplicação

de conhecimentos tecnológicos e um aparato industrial que dê conta da produção deste

tipo de artefato. Neste sentido, trata-se mais de um simples objeto, mas de sua relação

entre estes elementos.

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Em seguida, cabe verificarmos a importância que a espingarda adquire na economia

do texto. A observação mais imediata nos aponta para o título. Há de se atentar ainda para

o fato de que tanto protagonista quanto antagonista possuem na narrativa o mesmo

armamento e é graças a ele que o confronto pode se intensificar. Mais do que isto, o

desfecho da narrativa depende diretamente do que uso que se faz da espingarda por parte

do protagonista.

Daí conclui-se que, na esfera da narrativa, o que está sendo representado como uma

das questões centrais é a relação do homem diante de seu semelhante e a tecnologia por ele

produzida; seja para o bem ou para o mal.

Feitas estas reflexões iniciais, passemos então para algumas já consagradas

definições de FC. L. David Allen considera que a

(...) ficção científica é um subgênero da ficção em prosa que é distinguida de outros tipos de ficção pela presença de uma extrapolação dos efeitos humanos de uma ciência extrapolada, definida em termos gerais, assim como pela presença de “engenhos” produzidos pela tecnologia resultante de ciências extrapoladas (ALLEN, 1974, p. 213).

Hugo Gernsback, fundador da revista Amazing Stories, que, em 1926, representou “a

primeira real tentativa de pôr a FC diante do público leitor como um gênero distinto por

seus próprios méritos93” (MANN, 2001, p.12), define ainda a FC como

(...) texto ficcional em que a ficção se mistura com fatos científicos e visão profética, dando-lhe um caráter didático e a função de ensinar numa forma de fácil absorção, (...) o que hoje é definido como ficcional nesse tipo de literatura pode realizar-se amanhã (CARDOSO, 1998, p. 5).

Raul Fiker também nos apresenta mais uma definição, desta vez por parte de John

W. Campbell Jr., figura-chave em um dos períodos mais produtivos da FC por estar à frente

da revista Astounding Science Fiction, que publicou diversos autores posteriormente

consagrados no gênero:

John W. Campbell Jr. (…) definia FC como um meio literário análogo à própria ciência: enquanto esta explica fenômenos conhecidos e prediz fenômenos ainda não conhecidos, a FC colocaria em forma de histórias como seriam os resultados da pesquisa científica quando aplicados tanto às máquinas como à sociedade humana (FIKER, 1985, p. 12).

Neste sentido, poderíamos então dizer que a FC preocupa-se, dentre outras coisas,

em refletir sobre o progresso produzido pelo homem a partir do desenvolvimento de sua

tecnologia baseado no avanço constante de seu conhecimento científico, em especial no 93 No original: “the first real attempt to put SF before the reading public as a distinct genre in its own right”.

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campo das chamadas ciências da natureza, considerando com isto suas implicações na

sociedade humana e no meio ambiente.

Retomemos então os primeiro e segundo fatores anteriormente abordados. O conto

realiza dois movimentos: 1) o de ampliar metonimicamente a significação da espingarda

como um elemento que traga consigo a relação entre homem, ciência e tecnologia e 2) o de

atribuir-lhe considerável importância na estrutura narrativa e na economia textual. Uma

vez que esta relação em muito se assemelhe àquelas propostas pelas descrições

supracitadas, e, considerando tal relação como sendo central tanto em aspecto formal

quanto de conteúdo, nos parece clara a inserção do conto no gênero da FC.

Um terceiro fator esta classificação. A ambientação num cenário de completa

destruição nos leva ao conceito da distopia, conceito registrado pela primeira vez em 1868

por John Stuart Mill em um discurso parlamentar, e que, aplicado ao âmbito da FC, significa

uma superação negativa do status quo. Sobre tal, nos fala Carolina Dantas de Figueiredo:

O século XX vê os projetos utópicos serem colocados em cheque. As revoluções do século anterior não se mostraram suficientes para mudar a humanidade, do mesmo modo, as melhorias prometidas pela tecnologia mostram-se efêmeras e parciais. O homem mostra que não é capaz de dominar a natureza e a vida dos sujeitos não se parecia em nada com as propostas de esclarecimento iluministas, ou de racionalidade positivista. Pelo contrário, a tecnologia se radicaliza de tal forma que parece converter-se em portadora dos medos e temores dos homens. Com base nestes medos e temores as distopias aparecem como crítica à ordem vigente e às promessas utópicas feitas até a virada do século (DE FIGUEIREDO, 2009, p. 356).

Destarte, o conto se insere ainda no que poderíamos caracterizar como FC distópica,

uma vez que sugere uma projeção histórica alternativa em que a vida humana se veja em

uma determinada condição tal em que problemas sociais, econômicos, ecológicos, etc.

sejam extrapolados; na maioria das vezes por conta de seu próprio descontrole diante de

seu conhecimento e progresso.

3 ARCABOUÇO TEÓRICO E OBJETIVOS

Nosso trabalho se situa na área da Linguística Aplicada e tem por norte teórico a

Análise Crítica do Discurso, nos apoiando precisamente na concepção tridimensional do

discurso de Norman Fairclough (2001). Quanto a uma definição inicial de discurso:

Ao usar o termo “discurso”, proponho considerar o uso de linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. (...) [Isto] implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. (...) implica uma relação dialética entre o discurso a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação

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entre a prática social e a estrutura social: a última é tanto uma condição quanto o efeito da primeira. Por outro lado, o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário, pelas relações específicas em instituições particulares como o direito ou a educação, por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza discursiva como não discursiva, e assim por diante (Ibid, p. 90-1).

Adiante em sua teoria, Fairclough propõe, para fins meramente didáticos e de

análise, uma divisão ao ato discursivo em níveis. Ou seja, nele, três “camadas” se

sobrepõem uma à outra: a esfera do texto, a da prática discursiva e a da prática social. Isto

nos leva a considerar o fenômeno do uso concreto da linguagem, histórica e socialmente

situado, como não estando restrito à esfera textual, mas trazendo ainda consigo elementos

de produção, distribuição e consumo, e de ideologia, poder e hegemonia. Desta forma, o

texto não é entendido somente em suas estruturas internas de coesão e coerência, mas

como sendo perpassado por questões sociais, históricas e ideológicas, em um ambiente

concreto e real de uso que com ele estabelece uma relação dialética: ao mesmo tempo em

que o possibilita e em alguma instância o determina, este ambiente também é por ele

modificado. Ou seja, os textos não podem ser desvinculados de uma análise histórica e

social do contexto em que foram produzidos, consumidos e distribuídos, visto que diante

deste não permanecem neutros: eles engendram práticas sociais de natureza não

discursiva e se posicionam quanto a outros discursos, seja reproduzindo e legitimando

estes ou os contestando.

Justifica-se este modelo de análise por nos dar subsídios teóricos para que se

estabeleça uma relação entre os discursos presentes a um determinado recorte histórico e

uma obra literária nele produzido, como é o caso de nosso objeto. Com isto, o trabalho

discute em que medida determinados discursos que circulavam à época da Guerra Fria se

veem representados em “A Espingarda”. Ademais, consideramos que esta representação

também é entendida como uma forma de ação, isto é, como dito, ela, traz consigo uma

atitude axiológica por parte do autor diante daquilo que discursiva e não discursivamente o

cercava à sua época.

Quanto a isto, nos é relevante a noção de atitude responsiva, conforme proposto por

Batem (2003). Trata-se da relação entre o autor e os discursos presentes ao seu momento

histórico, no qual se dá um posicionamento do primeiro quanto aos últimos, seja sob a

forma de discordância ou concordância, legitimação ou contestação. Descarta-se assim toda

e qualquer forma de neutralidade ou uma compreensão passiva das significações ─ o que

ocorre tanto no mais simples diálogo cotidiano quanto em uma forma mais complexa de

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representação literária. Logo, é objetivo de nossa análise, estabelecendo as relações

devidas entre texto e contexto, trazer à tona o posicionamento do autor diante de questões

de seu tempo com base nas formas de representação pertencentes ao texto narrativo

ficcional em questão.

Visto que o aspecto formal, isto é, o componente estético do texto, é de grande

importância, ainda que não o objeto central de nossa análise, nos apoiaremos ainda,

quando necessário, em outros autores do campo da Teoria e Análise Literária, de modo a

complementar nossa análise quando nos debruçarmos no nível textual do conto.

4 DISCURSOS DA GUERRA FRIA A Guerra Fria foi “um novo referencial para as sociedades dessa segunda metade do

século, de uma nova condição que justificaria muitas políticas e níveis de atuação - a Guerra

Fria era uma ‘realidade’ a ser discutida e vivida, pois havia sido criada, inventada,

instituída.” (BIAGI, 2001, p. 62). Tratou-se de uma época em que uma complexa e

penetrante amálgama de significações, ideologias e imagens contribuiu para a formação de

um imaginário social (idem) extremamente peculiar e com implicações que se davam nas

mais distintas esferas da sociedade: desde relações políticas internacionais ao consumo de

obras literárias, revistas e jornais que se apropriavam deste imaginário para produzir e

reproduzir discursos. Por conta da importância no contexto histórico e por poderem ser

identificados como estando representados de alguma forma no texto, selecionamos três

discursos da Guerra Fria: a bipolaridade política, a ameaça nuclear e o discurso

anticomunista. Trataremos deles um a um.

4.1 A bipolaridade política O conflito em potencial que marcou o período histórico da Guerra Fria foi travado

entre as duas grandes potências que emergiram no cenário político mundial após a

Segunda Guerra Mundial como duas forças opostas e auto-excludentes. De um lado,

estavam os Estados Unidos da América (EUA) e seu modelo capitalista de produção, e do

outro, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que, após a Revolução

Bolchevique de 1917, instaurou uma estrutura de base socialista. O poderio bélico do qual

dispunha cada uma das potências colaborava para o clima de tensão e a incompatibilidade

entre as formas de vida social capitalista e socialista tornava ainda mais latente a ideia de

um conflito. A bipolaridade política marcou a Guerra Fria e nos cabe perguntar em que

medida esta tensão entre opostos se encontra representada em nosso conto.

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A narrativa atinge o seu ápice quando se dá o embate entre protagonista e

antagonista. De um lado, temos o primeiro em busca de outro ser humano em meio à

tétrica desolação em que ele se encontrava, e do outro, o último que, por sua vez, não

desejava qualquer forma de cooperação mútua. Neste sentido, podemos dizer que o motor

da narrativa, isto é, aquilo que motiva a tensão ao momento do clímax, se baseia no conflito

entre os personagens. O motivo para este conflito é apresentado pelo texto, na voz do

antagonista: “Você veio do sul, está contaminado. ─ Levantou o braço, com odio: ─ Veja, a

cidade inteira morreu contaminada. Vinham os do sul, morreram todos. Vá embora, não

quero ninguém aqui” (CARNEIRO, 2007, p.86). Desta forma, consideramos que a relevância

da bipolaridade para o conflito latente no período da Guerra Fria equivale àquela presente

no conto entre os habitantes do norte (antagonista) e os habitantes do sul (protagonista).

Um segundo aspecto a ser considerado é o componente da extrapolação presente no

conto. Neste sentido, se a ideia de um conflito iminente acabou por não ser levado a cabo,

no contexto ficcional de nossa narrativa o mesmo não ocorre. Como visto no fragmento

anterior, a bipolaridade entre norte e sul teve suas consequências levadas ao extremo, visto

a ocorrência de um conflito levado a cabo em momentos anteriores àqueles sobre o qual a

narrativa se debruça. Isto é, na linearidade histórica do conto está implícito que um ataque

tenha de fato se realizado. Reafirma-se com isto não somente a inserção do conto na ficção

científica distópica como a atitude responsiva do autor diante da ordem mundial vigente: o

confronto presente na trama histórica da narrativa não é de todo fictícia, ele se comporta

como uma verossímil e plausível antecipação. E, ao antecipá-lo, e, concedendo-lhe assim

uma materialidade inscrita na unidade narrativa, mas não menos relevante, o autor

posiciona-se contra a lógica do conflito, reafirmando-o assim através de sua extrapolação.

Por fim, cabe destacar a presença textual dos pares azul e vermelho. O par acentua

ainda mais a ideia de uma polaridade. O adjetivo azul aparece somente uma vez, quando o

protagonista ateia fogo à entrada do local no qual se encontrava seu antagonista: “O fogo

pegou com um estouro, cobrindo tudo com chamas azuis e vermelhas” (idem, p. 88). Na

passagem, podemos interpretar o fogo ateado pelo protagonista como estabelecendo uma

relação de equivalência com o ataque ocorrido anteriormente na narrativa. Isto é, o

protagonista representaria as forças azuis, vindas da do sul, em sua incursão contra os

inimigos vermelhos, os do norte. No conflito, contudo, as chamas, entendidas como o

elemento da destruição, acabam por abarcar a ambos os lados, inevitavelmente.

A separação na forma de polos engendraria então algo maior que a

incompatibilidade entre sistemas políticos: trata-se agora da ameaça nuclear.

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4.2 A ameaça nuclear A ideia de que a qualquer momento poderia ocorrer um confronto de proporções

nunca dantes experienciadas pela humanidade não se tratou de uma simples paranoia, ou

excesso por parte de um ou outro temeroso. Pelo contrário, a expectativa de que o

potencial bélico das duas grandes potências fosse colocado à prova foi um elemento

extremamente presente à época. Como afirma Hobsbawn:

Gerações inteiras se criaram à sombra e batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade. (...) à medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar errado, política e tecnologicamente, num confronto nuclear permanente baseado na suposição de que só o medo da "destruição mútua inevitável" (...) impediria um lado ou outro de dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. Não aconteceu, mas por cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária (HOBSBAWN, 2012, p. 224).

Foi durante a Guerra Fria que o ser humano dispôs de um desenvolvimento

tecnológico e científico sem precedentes. Este progresso do conhecimento também acabou

por motivar a produção em escala industrial de armas com incrível poder de destruição.

Desenvolveu-se aquilo que se chamou de corrida armamentista, em que ambas as

potências viam-se em uma disputa entre quem seria capaz de ter em seu poder o arsenal de

maior destruição. Isto funcionou como um significante elemento no jogo de disputa por

influências no cenário político internacional de ambas as partes, sendo especialmente

relevante para a economia norte-americana. Nesta medida, pode-se ainda afirmar que a

peça-chave para a compreensão deste momento histórico foi mais o componente bélico em

si do que a dualidade excludente entre os dois blocos, visto que era este primeiro quem

alimentava o conflito de fato. Para além de poderosos armamentos, as armas atômicas e

termonucleares funcionavam como

um “lubrificante” espalhado nos mecanismos de toda a “máquina” da “Guerra Fria”, são, na verdade, um elemento vital daquele mecanismo, aquele que imprime sentido ao medo e a (sic) angústia, aos orçamentos bilionários de defesa e ao temor seja do comunismo ou do capitalismo (ROLIM, 2012, p. 18).

Outro aspecto relevante para entendermos o que representou a ameaça nuclear foi

a ideia da Mutual Assured Destruction (MAD) que se vincula à administração do presidente

Dwight D. Eisenhower em meados dos anos 50, reforçada pelo secretário de defesa Robert

McNamara (TUCKER, 2008, p. 1423) e pode ser entendida como a

anoção de que cada lado tinha um mesmo poder de fogo e que, se um ataque ocorresse, a retaliação seria em igual medida ou ainda maior que a do ataque

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inicial. Daí que nenhuma das duas nações daria um primeiro golpe pois seu adversário poderia garantir uma sobrepujante resposta imediata e automática consistindo de um sinal de alerta, também conhecido como fail deadly. O resultado final seria a destruição de ambos os lados (ARNOLD, 2012, p. 147) [tradução própria94].

Citando Weart (2012, p. 123), “com o advento de bombas de hidrogênio, cidadãos

começaram a suspeitar que o fim da humanidade não era uma história de ficção científica,

mas uma possibilidade iminente” [tradução própria95].

Não por menos, será neste contexto histórico que a FC distópica contará com a

produção de uma vasta quantidade de obras que abordem em alguma medida a questão da

ameaça nuclear, sendo nosso conto um claro exemplo. Destacamos uma de suas passagens

para mostrarmos como nosso segundo discurso da Guerra Fria é representado:

Silêncio. Até onde sua vista alcançava, centenas de carros parados, na avenida. Esgueirava-se por entre eles, a mão roçando carrocerias cobertas de poeira. Pneus murchos, manchas de óleo feitas gota a gota, no chão de asfalto. Inclinou-se sobre um para-choque cheio de barro ressequido. Pequenas folhas cresceram ali, as raízes descobertas se esgueirando entre a ferrugem que avançava. Continuou a andar para a frente, parando de vez em quando. A paisagem era a mesma, de um tempo muito diferente. Estava ao lado de um carro conversível, a chave de partida no lugar, porta aberta, o estofamento se estragando ao vento, vidros sujos e opacos. Encostou-se em sua frente, a carcaça fez um ruído de juntas enferrujadas. Em ambos os lados, casas de luxo, com jardins isolados. O mato invadia as passagens, verde misturado com folhas secas, transformando as construções em ilhas tristes e esquecidas (CARNEIRO, 2007, p. 76).

A passagem denota claramente o aspecto da destruição e do perecimento de

elementos que se associam ao progresso científico e tecnológico do homem em sua esfera

de produção de bens de consumo, neste caso, o automóvel. Podemos perceber também um

contraponto entre as forças da natureza e a força criadora do homem, cuja perda de

controle acabou por causar a arrasamento de si mesmo.

Esta passagem, conforme transcrita, corresponde integralmente ao primeiro

parágrafo do texto, o que faz com que ela ganhe importância estrutural ímpar. Por se tratar

contato inicial do leitor com o texto, percebe-se por parte do autor uma intenção clara de

destacar o cenário em que o conto de desenrola. Não por menos, o recurso da descrição e

da predominância de adjetivos dá o tom formal ao momento. A primazia pelo aspecto

objetivo ao invés de um aprofundamento psicológico da personagem reforça sua 94 No original: “the notion that each side had equal nuclear firepower and that if an attack occurred, retaliation would be equal to or greater than the initial attack. It followed that neither nation would launch a first strike because its adversary could guarantee an immediate, automatic, and overwhelming response consisting of a launch on warning, also known as a fail deadly. The final result would be the destruction of both sides”. 95 No original: “with the coming of hydrogen bombs, citizens began to suspect that the end of humanity was not a science-fiction story, but an imminent possibility”.

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importância na construção do ambiente da narrativa, ou seja, do “(...) espaço carregado de

características socioeconômicas, morais, psicológicas, em que vivem os personagens. Neste

sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes

dois referenciais, acrescidos de um clima” (GANCHO, 2002, p. 23).

Relacionam-se assim o clima construído na narrativa e o ambiente de tensão por

conta do temor de uma guerra nuclear. O autor no texto em questão passa então a atuar

como um arauto, num claro posicionamento de questionamento quanto à legitimidade de

um conflito que poderia ter como consequência uma destruição de proporções inéditas.

4.3 O anticomunismo Conforme apresentado anteriormente, ao final da segunda guerra mundial o mundo

se viu dividido por dois sistemas políticos antagônicos. Neste sentido, iniciou-se no

contexto político internacional uma luta de influências em que o expansionismo de um

passou a ser visto como uma ameaça para o outro. Justificava-se assim a difusão e

propaganda de discursos de ataque por parte de ambos os polos. Quanto aos EUA, a

construção discursiva de um inimigo atendia às suas necessidades políticas internas, sobre

o que nos fala Hobsbawn:

(...) o governo soviético, embora também demonizasse o antagonista global, não precisa preocupar-se com ganhar votos no Congresso, ou com eleições presidenciais e parlamentares. O governo americano precisava. Para os dois propósitos, um anticomunismo apocalíptico era útil, e portanto tentador, mesmo para políticos não e todo convencidos de sua própria retórica(...). Um inimigo externo ameaçando os EUA não deixava de ser convincente para governos americanos que haviam concluído, corretamente, que seu país era agora uma potência mundial – na verdade, de longe a maior – e que ainda viam o “isolacionismo” ou protecionismo defensivo como seu grande obstáculo interno. (...) E o anticomunismo era genuína e visceralmente popular num país construído sobre o individualismo e a empresa privada, e onde a própria nação se definia em termos exclusivamente ideológicos (“americanismo”) que podiam na prática conceituar-se como o polo oposto do comunismo (HOBSBAWN, 2012, p. 232).

Quanto ao expansionismo da URSS, suas motivações podem ser questionadas, e,

ademais, podemos dizer que suas reais proporções foram muito mais graças à propaganda

ideológica por parte dos EUA do que as suas ações políticas externas de fato ─ em especial

se considerarmos sua condição após a segunda guerra: “em ruínas, exaurida e exausta, com

a economia de tempo de paz em frangalhos, com o governo desconfiado de uma população

que, em grande parte fora da Grande Rússia, mostrara uma nítida e compreensível falta de

compromisso com o regime” (HOBSBAWN, 2012, p. 230).

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A despeito disto, fato é que diversos setores da sociedade acabavam por produzir e

difundir sob diferentes meios (televisão, revistas, jornais) discursos que reafirmavam os

perigos de uma expansão comunista, justificando-se assim uma ação mais efetiva diante de

tal ameaça. De acordo com Ricardo Mendes:

No plano mundial, pode-se afirmar que o século XX assinala a presença de diferentes matizes de inspiração anticomunista. As principais são: a democrática, que condena o seu caráter autoritário; a fascista, que centra as suas atenções no combate ao caráter desagregador que o comunismo provoca na sociedade; a conservadora, que visa a manutenção do status quo; a anticlerical, dada a antireligiosidade do comunismo; e, por último, a liberal, em função da condenação à propriedade privada e da livre iniciativa que o marxismo apresenta. Em muitos momentos da história esses matizes apresentam-se interligadas e mescladas (MENDES, 2004, p. 81).

No Brasil, o discurso anticomunista encontrou grande repercussão, e não poucos

foram os grupos sociais que o reproduziram, conclamando a todos para uma campanha

contra o “perigo vermelho”. Isto ganhou materialidade na forma de livros, caricaturas,

jornais, revistas, além de todo um aparato institucional que fomentava este tipo de

conduta, especialmente os setores militares e a Igreja Católica. Outro aspecto a ser

destacado é o alinhamento do Brasil com os EUA, o que já ocorria desde a Segunda Guerra

Mundial e que se manteve no período da Guerra Fria. Nas palavras de Monica Ellen Seabra

Hirst:

As opções de política internacional na América Latina estiveram fortemente condicionadas pela Guerra Fria a partir de 1946. A identificação da região como área de influência norte-americana determinou seus vínculos externos nos campos econômico, político e militar, com importantes efeitos sobre a diplomacia brasileira. (...) A política econômica brasileira, no imediato pós-guerra, caracterizou-se pela implementação de medidas norteadas pelos princípios liberais que dominavam o contexto internacional. Ao mesmo tempo, expandiam-se as relações comerciais com os Estados Unidos; nos anos 1947-50 60% das exportações brasileiras destinavam-se ao mercado norte- americano, enquanto o café era o produto responsável por mais de 60% das vendas externas (HIRST, 2011, p. 24).

Em nosso cenário nacional convém ainda citarmos a repressão ao Partido

Comunista, iniciada no governo Dutra, culminando em maio de 1947 com sua cassação

(FAUSTO, 1995, p. 402), o que podemos apontar como um marco histórico simbólico da

campanha anticomunista no Brasil.

Se a configuração social e cultural brasileira à época não trazia em si integralmente

uma forma mais enérgica de apoio a uma postura anticomunista, certamente defensores

das propostas políticas e sociais oriundas do bloco soviético estavam em um número

muitíssimo reduzido. É de se esperar com isso que encontremos em nosso conto um

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posicionamento por parte do autor em que se possa fazer reverberar esta aversão; o que,

não obstante, não se faz presente textualmente.

Em primeiro lugar, consideremos o não-dito no texto, isto é, aquilo que durante a

seleção referente à forma e ao conteúdo foi deixado de lado. Não há textualmente uma clara

apreciação negativa na representação do bloco soviético.

Na narrativa, o espaço geográfico narrativo em que protagonista e antagonista se

encontram é o do norte. Retomando o que apresentamos anteriormente quanto à

bipolaridade, a dicotomia norte e sul equivale, respectivamente, aos polos soviético e

norte-americano. Uma vez que seja a região do norte que sofreu um ataque tal para que a

destruição descrita no conto ocorresse, como vimos na passagem supracitada no tópico

anterior sobre a ameaça nuclear, conclui-se que o autor opta por representar o bloco norte-

americano como sendo o que realiza o ataque. Neste sentido, se durante a corrida

armamentista EUA e URSS mantinham-se num mesmo nível bélico, a representação

distópica presente no conto atribui especificamente ao primeiro a responsabilidade pelo

golpe inicial. A isto podemos ainda somar a postura soviética que não dava sinais de

interesse em uma guerra nuclear de tais proporções, sobre o que nos caberia recorrer às

palavras de Kruschiov, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS)

entre 1953 e 1964:

(...) se existe uma ameaça à coexistência pacífica dos países com diferentes sistemas político-sociais, essa ameaça não parte de forma alguma da União Soviética, do campo socialista. Tem o Estado socialista o menor motivo para desencadear uma guerra agressiva? Existem, por acaso, em nosso país classes e grupos interessados na guerra como um meio de enriquecimento? Não. Foram há muito suprimidos em nosso país. Teremos nós pouca terra e riquezas naturais, carecemos de fontes de matérias-primas ou mercados de venda para nossas mercadorias? Não, temos tudo isso de sobra. Para que necessitamos, então, da guerra? Não precisamos da guerra, rechaçamos por princípio a política que arrasta à guerra milhões de seres em holocausto aos interesses egoístas de um punhado de multimilionários. Sabem de tudo isto os que gritam sobre os "propósitos agressivos" da URSS? Sim. Naturalmente o sabem. Para que continuam, então, com sua velha flauta rachada, o estribilho da suposta "agressão comunista"? Unicamente para turvar as águas, para encobrir seus planos de dominação mundial, de "cruzada" contra a paz, a democracia e o socialismo (KRUSCHIOV, 1956).

Concluindo, excluindo-se qualquer possibilidade uma atitude responsiva neutra,

consideramos a escolha por esta forma de representação do polo soviético ─ na condição

de vítima do ataque ─ como um claro não-alinhamento por parte do autor ao discurso

anticomunista vigente à época.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos brevemente em nosso trabalho três discursos que são fundamentais

para compreensão do período da Guerra Fria, tanto no que tange às produções textuais

produzidas e consumidas à época, quanto no que diz respeito a seus desenrolar dos fatos e

desdobramentos. Há de ser dito, nossa seleção aqui realizada tem intuito meramente

analítico. Isto significa dizer que não se pode pensar a ideia de uma bipolaridade política

em âmbito global sem que se considerem os avanços tecnológicos e científicos que

possibilitaram a produção em escala industrial de armas de destruição em massa que

deram um novo sentido ao conflito. Ademais, é preciso ainda destacar o papel da

propaganda ideológica dos EUA e sua respectiva construção discursiva de um inimigo ─

construção esta difundida no Brasil materialmente e imaterialmente, através de

instituições e ações políticas. Justificativas sólidas para uma ameaça factível de

expansionismo soviético, contudo, não nos parece ter havido à época.

Sobre o conto, apresentamos alguns pontuais elementos que podem ser

considerados como representações específicas destes discursos e que expressam a maneira

como o autor deles se posiciona: reproduzindo o antagonismo dos polos sob a forma dos

pares norte x sul e azul x vermelho, reafirmando os temores da ameaça nuclear através da

construção de um cenário de completa destruição e não legitimando o discurso

anticomunista por situar na esfera da narrativa o polo soviético como tendo sofrido

efetivamente um ataque por parte daqueles que vinham do sul, isto é, os norte-americanos.

Julgamos ainda de extrema relevância que se considerem as obras literárias à época

da Guerra Fria como fontes historiográficas alternativas para que possamos compreender

melhor o período, cujas implicações reverberam até os dias atuais. Para nossa

contemporaneidade, a experiência soviética representou a primeira grande tentativa de

implantação de um sistema alternativo ao capitalismo. Com o fim da URSS, marcado

simbolicamente pela queda do muro de Berlin, e a derrocada do comunismo, o pensamento

liberal pôde então dispor de uma justificativa historicamente embasada para poder se

justificar sua expansão a nível global, interligando as nações e deixando-as à mercê das leis

do mercado ─ a mão invisível de Adam Smith toma então as rédeas do devir histórico

humano e não há qualquer horizonte que nos faça ver outros caminhos. O conceito da

distopia, servindo de matéria para a produção literária da FC, destaca-se então na medida

em que projeta situações de caos e extrapola problemas ─ vistos somente como ameaças

em potenciais ─ e, com isto, exerce uma ação de contestação, isto é, o leitor será “chamado

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a buscar saídas na sua realidade, “despertado” para um horror futuro, procurando evitar

que ele se realize” (NUNES, 2012, p. 130). Ademais, se a máxima de que a história é contada

pelos vencedores, revistar o passado através de narrativas outras nos parece ser uma

tarefa fundamental para entender um atual estado de coisas.

Por fim, reafirmamos a interdisciplinaridade proposta pela Linguística Aplicada ao

estabelecermos em nosso trabalho um diálogo entre as disciplinas da História, dos Estudos

Literários e da Análise Crítica do Discurso; buscando também salientar a relevância da FC

para estudos acadêmicos ou como um convite à reflexão sobre questões sociais, culturais e

políticas, estejam elas relacionadas a um período histórico anterior ou à nossa própria

contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, M. Gêneros do Discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BIAGI, O. L. O imaginário da Guerra Fria.Revista de História Regional 6, p. 61-111, 2001.

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DE FIGUEIREDO, C. D. Da utopia à distopia: política e liberdade. Revista Eutomia, Ano II, v.1, p. 324-362, 2009.

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FAUSTO, Boris. História do Brasil. Sao Paulo, SP, Brasil: Edusp: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1994.

GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo, Ática, 2004.

HIRST, M. E. S. As relações Brasil-Estados Unidos desde uma perspectiva multidimensional: Evolução contemporânea, complexidades atuais e perspectivas para o século XXI. 2011. 201f. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Porto Alegre, 2011.

HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XXI, 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

KRUSCHIOV, N. S. Informe Sobre a Atividade do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética ao XX Congresso do Partido.Problemas - Revista Mensal de Cultura Política, n. 73 - Mar-Jun de 1956. Disponível em:www.marxists.org/portugues/khrushchev/1956/congresso/cap01.htm

MENDES, R.As direitas e o anticomunismo no Brasil: 1961-1965.Lócus, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, p. 79-97, 2004.

NUNES, D. C. Da literatura como (particip)ação política: modernidade, utopia e ficção distópica. Revista da História Comparada 6.2, p. 113-137, 2012.

TUCKER, S. C.Cold War: A Student Encyclopedia. Santa Barbara: ABC-CLIO, Inc., 2008.

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GT 4: Linguística de Corpus e Linguística Computacional

A POLIDEZ LINGUÍSTICA NAS RELAÇÕES DE GÊNERO MASCULINO E FEMININO NAS CARTAS PORTUGUESAS DE MARIANA ALCOFORADO Laís Aline Nascimento Fahel Evangelista Universidade Estadual do Ceará Resumo O artigo tem como objetivo apresentar resultados acerca do desenvolvimento de Bolsa de Iniciação Científica, concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto teve como finalidade identificar as estratégias sociointeracionistas de preservação ou não das faces (GOFFMAN, 1967), aliadas ao uso das estratégias de polidez linguísticas (BROWN; LEVINSON, 1987) em cartas de amor (cartas portuguesas de Mariana Alcoforado), com o propósito de procurar entender os significados, em um contexto europeu, que permeiam a produção escrita de mulheres do século passado com interlocutores masculinos. A metodologia utilizada é basicamente qualitativa, através da análise das cartas portuguesas, comparando atitudes linguísticas, o trabalho com as faces e as principais estratégias de polidez linguística utilizada por Mariana Alcoforado na produção das cartas. Nossa pesquisa tem como critérios o método de raciocínio hipotético-dedutivo, é comparativa, qualitativa e quantitativa, com método de procedimentos também estatístico. Estamos estudando a polidez linguística nas relações de gênero masculino e feminino, sob uma perspectiva comparatista, nas Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, levando em consideração a preservação ou não das faces (GOFFMAN, 1967). Verificamos como Mariana interage com um oficial francês, através das cartas coletas para o corpus da pesquisa, fazendo o trabalho com as faces, e como ela utiliza o fenômeno da polidez linguística. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O artigo apresentado tem como objetivo apresentar os resultados obtidos com a

realização do projeto de Iniciação Científica, concedida pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com vigência de agosto de 2012 a julho

de 2013. A referida bolsa teve com título de projeto de pesquisa: A polidez linguística nas

relações de gênero masculino e feminino nas Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado.

Além de apresentar o referencial teórico utilizado durante a pesquisa, apresenta a análise

do corpus, as Cartas Portuguesas, escolhido para estudo, bem como a metodologia adotada.

As Cartas Portuguesas consistem em cinco cartas de amor que a freira Mariana

mandava para seu amado, o oficial francês. Foram publicadas em sua tradução francesa em

1669. Mariana expõe seu amor ao oficial, mas aos poucos as cartas vão perdendo o tom de

esperança e tornam-se pedidos agonizantes de notícias de seu amado. Com a análise do

corpus percebi que o oficial DeChamilly não correspondia ao amor da freira Mariana.

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2 METODOLOGIA O método indutivo, segundo Lakatos (2005, p. 106) é aquele “cuja aproximação dos

fenômenos caminha geralmente para planos cada vez mais abrangentes, indo das

constatações mais particulares às leis e teorias (conexão ascendente)”.

Diante do pressuposto da diferença entre os métodos de abordagem indutivo,

dedutivo – que, partindo das teorias e leis, na maioria das vezes, prediz a ocorrência dos

fenômenos particulares (conexão descendente) – e hipotético-dedutivo, achamos que o

método que mais se adequará à finalidade da nossa pesquisa, às etapas de investigação e ao

momento em que se situa, é, o método de caráter hipotético-dedutivo “que se inicia pela

percepção de uma lacuna nos conhecimentos acerca da qual formula hipóteses e, pelo

processo de inferência dedutiva, testa a predição da ocorrência de fenômenos abrangidos

pelas hipóteses”.

Adotaremos alguns passos desse método: detecção de um problema e elaboração de

hipóteses. Mas a corroboração ou refutação de nossas hipóteses estará também sujeita à

observação empírica. A nossa pesquisa terá um viés teórico de uma abordagem

sociodiscursiva. Trabalharemos com a polidez linguística nas mensagens de amor da freira

Mariana Alcoforado, sem deixar de levar em conta os contextos situacionais na hora de

analisar o corpus selecionado.

Faremos, inicialmente, o estudo de trabalhos teóricos que trataram de temas

relacionados à polidez, ao trabalho com as faces, com o intuito de levantarmos uma

bibliografia consistente e considerável para analisar esses textos em diversos gêneros.

Essas leituras servirão de base para fundamentar a nossa pesquisa que terá como critérios

o método de raciocínio hipotético – dedutivo.

A pesquisa bibliográfica servirá para saber em que estado da arte se encontra,

atualmente, os problemas relacionados ao nosso foco de estudo; que trabalhos já foram

realizados a respeito e quais são as opiniões sobre o assunto. Além disso, “permitirá que se

estabeleça um modelo teórico inicial de referência, da mesma forma que auxiliará na

determinação das variáveis e elaboração do plano geral da pesquisa” (...) devemos, assim,

determinar as técnicas que serão empregadas na coleta de dados e na determinação da

amostra, que deverá ser representativa e suficiente para apoiar as conclusões.

Essas técnicas, consoante Lakatos (2005, p. 107), “são consideradas um conjunto de

preceitos ou processos de que se serve uma ciência; é, também, a habilidade para usar

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esses preceitos ou normas, na obtenção de seus propósitos. Correspondem, portanto, à

parte prática de coleta de dados”.

O corpus usado para este trabalho consistirá de mensagens de amor selecionadas

nas cartas portuguesas da sóror Mariana Alcoforado, conforme já mencionamos que serão

divididas em três categorias: fazendo contato para iniciar uma relação amorosa; trocando

mensagens de amor, e em conflito.

A metodologia adotada será, portanto, dividida em três momentos interligados:

aprofundaremos, no primeiro momento, as referências teóricas relativas ao Fenômeno da

Polidez Linguística e ao Trabalho com as Faces. No segundo momento, faremos a coleta e a

seleção das mensagens de amor nas cartas mencionadas. O terceiro momento será

dedicado à análise dessas mensagens, identificando o fenômeno da polidez nelas aplicados.

3 ANÁLISE DO CORPUS

Como resultados esperados, acreditávamos que homens e mulheres quando estão

apaixonados usam estratégias de polidez linguística de forma diferenciada. Eles usam a

polidez linguística positiva quando estão em momentos de comunhão, de sintonia, de amor

e, dependendo do grau da paixão, são totalmente alienados aos acontecimentos e às

significações ideológicas e aos eventos sociais e culturais que envolvem as suas vidas.

No caso de Mariana Alcoforado, por ser freira e viver em uma época em que a

mulher era submissa aos homens, era de se esperar que ela não fosse capaz de expor sua

face negativa, como também não ser capaz de ser rude com o homem amado. Entretanto,

uma de nossas hipóteses levantadas no início da pesquisa foi refutada quando realizada a

análise das cartas de amor.

Nossa meta é de mostrar que as relações humanas de homens e mulheres são presas

aos contextos socioculturais, mas, quando um deles está apaixonado, poderá romper com

as regras de polidez universais. Em outros termos, eles (homens e mulheres) podem até ter

estratégias de polidez diferenciadas, contudo são polidos ou não quando querem ser ou

não são polidos quando a emoção pode influenciar as suas vidas.

Apresentaremos nossa análise cujo objetivo é avaliar quais as principais estratégias

de polidez linguística usada por Mariana Alcoforado. Para isso, nossa análise será norteada

a partir, principalmente, segundo o quadro de categorias de estratégias. São elas:

1. Inclusão e manutenção do ouvinte na interação;

2. Simpatia do falante em relação ao ouvinte;

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3. Geração de expectativas do ouvinte em relação às ações do falante;

4. Geração de expectativas do falante em relação às ações do ouvinte;

5. Busca pela harmonia interacional;

6. Redução do peso e da responsabilidade com o ato ameaçador de face (FTA).

Começaremos pela categoria de Polidez linguística “inclusão e manutenção do

ouvinte na interação” que se deu pela estratégia “use marcadores de identidade e de grupo

no discurso”, que representa a busca por uma afinidade com o oficial francês por parte de

Mariana Alcoforado. Essa estratégia ocorre nos exemplos 1, que demonstra a proximidade

que o casal tinha anteriormente, uma vez que representa a manifestação do sentimento da

freira pelo oficial.

Exemplo 1:

Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência.

Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma

paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal,

só comparável à crueldade da ausência que o causa.

[...]

(primeira carta)

Além disso, o uso desse marcador de identidade e de grupo funciona para delimitar

o território do casal, sinalizando, para um elo que existia anteriormente entre a freira e o

oficial, mas que depois a freira descobriu que era uma ilusão.

Por meio desse recurso linguístico, é possível delinear a qualidade do

relacionamento que eles viveram, e, pelo contexto a interação que a freira estabelece com o

oficial, percebemos que ela adquire um caráter de discordância entre o que ela esperava

dele e o que realmente aconteceu entre o casal.

Através desse discurso, uma de nossas hipóteses foi nega, pois pelo contexto que

Mariana vivia era de se esperar que ela não fosse capaz de demonstrar a face negativa de

seu receptor, mas não foi isto que ocorreu no exemplo supracitado, e nem do exemplo 2 e 3

que seguem abaixo.

Exemplo 2:

Mas não posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora

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sem força com que o sinto, que não devias maltratar-me assim, com um

esquecimento que me desvaria e chega a ser uma vergonha para ti. É justo

que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que previ ao ver-te

decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que

procederias com mais lealdade dos que é costume: o excessos do meu amor

parece que devia pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma

fidelidade que não é vulgar encontrar-se. Mas a tua disposição para me

atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti.

[...]

(segunda carta)

Exemplo 3:

A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o receio de arruinar

inteiramente o que me resta da saúde com tanta vigília e tanta aflição, as

poucas possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus sentimentos e da tua

despedida, a tua partida justificada com falsos pretextos, e tantas outras

razões, tão boas como inúteis, prometiam ser-me ajuda suficiente, se viesse a

precisar dela. Não sendo, afinal, senão eu própria o meu inimigo, não podia

suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o sofrimento de agora.

[...]

(terceira carta)

Essa negativa, possivelmente, ocorreu porque a posição social que cada participante

ocupa parece não ser um fator que estimule relações de poder ou desequilíbrio na

interação (SILVA, 2002). Ela se coloca em posição de igualdade, pois o que se espera da

mulher naquela época é que ela fosse submissa e não fosse capaz de ameaçar a face

positiva de seu receptor.

Por outro lado, a influência familiar parecia ser algo de muita valia para Mariana,

mas, em alguns momentos, pareceu que ela não se importou com tal influência, como

podemos observar nos exemplos 4, 5 e 6 que seguem abaixo.

Exemplo 4:

Não sei porque te escrevo: terás, quando muito, piedade de mim, e

eu não quero a tua piedade. Contra mim própria me indigno, quando penso

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em tudo o que te sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me à cólera de minha

família, expus-me à cólera de minha família, a severidade das leis deste país

para com as freiras, e à tua ingratidão, que me parece o maior de todos os

males.

[...]

(terceira carta)

Exemplo 5:

Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para

regressar a frança. Um navio patia – porque não o deixaste partir? Tua

família havia-te escrito – não sabias quanto a minha me tem perseguido?

Razões de honra levavam-te a abandonar-me – fiz eu algum caso da minha?

[...]

(quarta carta)

Exemplo 6:

Que horror! Que loucura! Que vergonha tão grande para minha

família, a quem quero tanto, depois que deixei de o amar!

[...]

(quinta carta)

Já em outro momento podemos observar que a freira é submissa às ordens de seus

familiares que podemos comprovar tal afirmativa com o exemplo 7.

Exemplo 7:

Porém, quando meu irmão me permitiu que te escrevesse, confesso

que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que suspendeu por

momentos o desespero em que vivo.

[...]

(primeira carta)

Assim, podemos verificar que, independentemente das imposições sociais, o

sentimento é que vai mover a interação e manter o sentimento de Mariana pelo oficial.

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Além do vocativo, outros marcadores de identidade que observamos são as formas

de tratamento realizadas através dos pronomes tu, te, lhe. Percebemos que o uso mais

frequente dos pronomes nas cartas de Mariana Alcoforado se explicaria, possivelmente,

por tratar-se de um parâmetro utilizado com relevância na época da freira. Como

poderemos ver nos exemplos 8 e 9 que seguem abaixo.

Exemplo 8:

De mim, nada receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber

apenas que estávamos no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei lá se não serás

mais sensível à crueldade e à frieza que gostes de quem te faça mal? Mas

antes de te enleares numa grande paixão, reflecte bem no horror do meu

sofrimento, na incerteza dos meus planos, na contradição dos meus

impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha confiança, e aflição,

e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado! Suplico-te que tires ao menos

proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu sofrimento não

seja inútil.

[...]

(quarta carta)

Exemplo 9:

Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de

termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que

já me ama e que devo, portanto, deixar de o amar. Mandar-lhe-ei, pelo

primeiro meio, o que me resta ainda de si.

[...]

(quinta carta)

Em outras palavras, Mariana Alcoforado mostrava grande domínio da norma culta

escrita, possivelmente, por ser freira e ter bom contato com a língua. Observamos nas cinco

cartas que Mariana fez escolhas linguísticas que nos permite perceber os efeitos de

sentidos pretendidos por ela. Dentre esses efeitos, verificamos que a freira buscar mostrar

um caráter formal, típico da época. Com isso, inferimos que as cartas tinham uma escrita

mais formal, visto que elas poderiam não ser algo do cotidiano e necessitava de alguns

cuidados.

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Outra categoria que percebemos é “simpatia do falante em relação ao ouvinte”, que

ocorre através da estratégia “exagere”, além de “incluir o ouvinte na interação” que é outra

estratégia desta mesma categoria. Que podemos ver nos exemplos 10, 11 e 12 que seguem

abaixo.

Exemplo 10:

Nunca reflectiu na maneira como me tem tratado? Nunca pensou que

me deve mais obrigações do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma

louca, tudo desprezei! O seu procedimento não é de um homem de bem. É

preciso que tivesse por mim uma aversão natural para me não ter amado

apaixonadamente. Deixei-me fascinar por qualidades bem medíocres.

[...]

(quinta carta)

Exemplo 11:

Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te

por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem sinais da

minha má fortuna, que cruelmente não me consente qualquer engano e me

diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e

de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te

fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante

nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe

agradecer-to.

[...]

(primeira carta)

Exemplo 12:

Ao teu lado era demasiado feliz para poder imaginar que um dia te

encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas

vezes que farias de mim uma desgraçada; mas tais temores depressa se

desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao encanto, e à

falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual é o remédio para o meu mal, e

depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que remédio...

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[...]

(segunda carta)

Mariana Alcoforado expõe a face negativa do receptor quando ela fala que ele não

cumpriu sua promessa. Como podemos ver no exemplo 13 que segue abaixo.

Exemplo 13:

Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me

fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal

pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma

conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te em toda parte.

[...]

(primeira carta)

E ao mesmo tempo ela utiliza neste exemplo supracitado a categoria “geração de

expectativas do falante em relação às ações do ouvinte” que utiliza a estratégia “seja

otimista” quando fala que iria o procurar, o seguir e o amar em qualquer parte sem guardar

nenhuma conveniência.

Uma categoria que não observamos em nossa análise foi a “busque harmonia

interacional” que tem as estratégias “procure concordar”, “distancie-se da discordância” e

“acerte uma troca recíproca”. Pois Mariana Alcoforado, pelo contrário, mostra toda sua

indignação por não ter seu sentimento correspondido e por ter sido enganada pelo oficial

francês.

A categoria “redução do peso e da responsabilidade com o ato ameaçador da face

(FTA)” com a estratégia “desculpe-se” ocorre em quase todas as cartas escritas por Mariana

para o oficial francês. A freira rompe com todas as atitudes que se espera dela, mostra sua

face negativa, ainda, ameaça à face positiva do receptor. Como podemos ver nos exemplos

14, 15, 16 e 17 abaixo.

Exemplo 14:

De ti só quero o que te vier do coração, e recuso todas as provas de

amor que tu próprio te possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for

agradável não te dares ao trabalho de me escrever; sinto uma profunda

disposição para te perdoar seja o que for.

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[...]

(primeira carta)

Exemplo 15:

Adeus, mais uma vez. Escrevo-te cartas tão longas! Não tenho cuidado

contigo! Peço-te que me perdoes, e espero que terás ainda alguma

indulgência com uma pobre insensata, que o não era, como sabes, antes de te

amr. Adeus; parece-me que te falo de mais do estado insuportável em que me

encontro; mas agradeço-te, com toda a minha alma, o desespero que me

causas, e odeio a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer Adeus. O

meu amor aumenta a cada momento. Ah, quanto me fica ainda por dizer...

[...]

(terceira carta)

Exemplo 16:

O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para ser

tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro

país? Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me

reduziu o meu destino. Adeus.

[...]

(quarta carta)

Exemplo 17:

Ingrato! E a minha loucura é tanta ainda, que desespero por já não

poder iludir-me com a ideia de não chegarem aí, ou de não lhe terem sido

entregues.

[...]

(quinta carta)

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desta discussão, podemos concluir que apesar de a polidez linguística ser

um fenômeno universal, Mariana romper linguísticamente com um comportamento que se

é esperado de uma mulher que viveu nenhuma época em que a mulher era totalmente

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submissa ao homem, e por ser freira, ela demonstra que é psicologicamente dependente do

oficial, pois mesmo com sua rispidez nas cartas ela deixa transparecer que na realidade

nunca irá deixar de amá-lo e que ela prefere viver com esta desilusão a nunca o ter

conhecido.

Algumas de nossas hipóteses levantadas para a realização da pesquisa foram validas

e outras refutadas, como seguem nos três pontos levantados no inicio da realização da

pesquisa.

1. Dependendo da época que uma mulher viveu, quanto mais distante for o período da

contemporaneidade, mais elas utilizam os atos que não ameaçam a face positiva do

receptor, tais como a agressividade, a crítica, a reprovação e o insulto;

Hipótese refutada a partir da análise do corpus coletado.

2. Na medida em que interagem, os apaixonados expõem mais suas faces positivas e

negativas, utilizando tanto estratégias de polidez positiva como negativa. Assim, o tipo

de sentimento que Mariana tinha pelo oficial francês, no momento em que escrevia as

cartas, interferia de forma significativa no uso da polidez linguística. Em conflito, ela

usava mais os atos que ameaçavam a face positiva do oficial francês.

Hipótese validada a partir da análise do corpus coletado.

3. Mariana utilizava mais as estratégias de polidez de modo on-record e off-record

quando estava no auge de sua paixão, em que as interações exerciam um maior poder

de preservação da face positiva do seu amor e as de modo bald-on-record quando

estava em conflito com o oficial, em que as interações são mais próximas e,

possivelmente, mais tensas.

Hipótese validada a partir da análise do corpus coletado.

REFERÊNCIAS

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HOLMES, J.; REID, E. Women, men and politeness.New York: Longman, 1995

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia Científica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

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LEECH, G. Principles of Pragmatics. New York: Longman, 1983.

KERBRAT-ORECCHIONI. C. Polidez: aspectos teóricos. In: Análise da conversação:princípios e métodos. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

PAIVA, A.R. F; PINTO, M. P. Uma visão feminina do amor em Mariana Alcoforado e Florbela Espanca. Disponível em: <http://www.cesjf.br/cesjf/documentos/revista_letras_docs/art_alunos/LIT_LING_PORT/Uma_visao_feminina_do_amor_em_Mariana_Alcoforado_e_Florbela_Espanca.pdf>. Acesso em: 12ago. 2012.

SIMOSAS, M.M.P.M. A fluida Arte da Descosura: Filosofias de Liberdade em Cartas Portuguesas e Novas Cartas Portuguesas. 2007. Dissertação (Mestrado em Literatura e Culturas Comparadas). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

TEIXEIRA, L. A. P. A polidez na conversa de pessoas esquizofrênicas: cognição, figuratividade, estratégias e faces. 2011. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Ceará.

NEVES, L. E. S. Amor ou paixão? Que sentimento movia Mariana? Disponível em: <http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/artigos_revistas/129.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2012.

CORPUS DE RELATÓRIOS DA COMPANHIA PAULISTA DE VIAS FERREAS E FLUVIAES (1885 A 1897): LEVANTAMENTO DA TERMINOLOGIA FERROVIÁRIA COM O PROGRAMA WORDSMITH TOOLS

Ivanir Azevedo Delvizio Universidade do Estado de São Paulo Eduardo Romero de Oliveira Universidade do Estado de São Paulo

Resumo Esta pesquisa faz parte de um projeto maior, intitulado Memória ferroviária (1869-1971): inventário de patrimônio industrial ferroviário paulista, que tem como objetivo realizar um levantamento integral do patrimônio ferroviário paulista, contando com uma equipe multidisciplinar de pesquisadores. Esse projeto dispõe de um grande acervo de documentos de companhias de estradas de ferro paulistas, que foram restaurados e digitalizados. A contribuição desta pesquisa, especificamente, consiste no levantamento dos termos contidos nesse material, suas frequências e contextos e posterior organização em um sistema de conceitos. Nesta primeira etapa, trabalhamos com um corpus composto por dez relatórios da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, datados de 1885 a 1897, com o objetivo de desenvolver uma metodologia de trabalho para a equipe. O programa de análise lexical utilizado foi o WordSmith Tools. Em relação aos pressupostos teóricos, o estudo alinha-se à Teoria Comunicativa da Terminologia de Cabré (1993; 1999) e aos

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procedimentos metodológicos propostos por Barros (2004). Foram selecionadas 270 unidades terminológicas, que foram organizadas em um sistema conceptual, e os contextos e definições foram registrados em fichas terminológicas. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O propósito deste artigo é apresentar resultados parciais de uma pesquisa em

desenvolvimento sobre a tecnologia e engenharia ferroviária em uma empresa ferroviária

brasileira (Companhia Paulista de Estradas de Ferro e Vias Fluviais) durante o período de

1885 a 1897. Esta pesquisa faz parte de um projeto mais amplo dedicado a aprofundar

investigações históricas sobre companhias ferroviárias que atuaram no estado de São

Paulo (Brasil) entre 1868 e 1930, relacionando a história das empresas, os espaços de

trabalho nas oficinas ferroviárias e os aspectos da tecnologia ferroviária. Uma linha de

trabalho é a realização de um estudo sobre a terminologia ferroviária com base em um

corpus de documentos (os relatórios das empresas ferroviárias) específicos de um período

em que ocorreu a maior expansão das empresas ferroviárias em São Paulo (1868 a 1930).

O corpus completo da pesquisa é formado por um conjunto de relatórios de cinco

companhias de estradas de ferro que foram formadas e operavam nesse período.96A

pesquisa terminológica está sendo realizada com cópias digitais dos relatórios, cujos

originais estão depositados nos acervos do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Nesta primeira etapa da pesquisa, trabalhamos com um corpus composto por dez

relatórios da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, datados de 1885 a 1897, com o

objetivo de desenvolver uma metodologia de trabalho para a equipe.

2 TERMINOLOGIA FERROVIÁRIA O desenvolvimento de uma nova tecnologia, como a do transporte ferroviário, vem

sempre acompanhado do desenvolvimento de um léxico especializado, ou seja, de um

conjunto de termos para designar novos conceitos tecnologias e dinamizar a comunicação

dentro de um domínio específico do conhecimento. Resgatar a terminologia do âmbito da

atividade ferroviária em documentos antigos é uma forma de compreender o seu

desenvolvimento tecnológico e sua forma de funcionamento, visto que os termos técnicos

refletem o grau de evolução de uma técnica ou ciência.

96 Relatório da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro (1873-1930); Relatório da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e Vias Fluviais (1869-1971); Companhia Ituana de Estradas de Ferro (1871-1890); Companhia Sorocabana (1873-1887); Companhia União Sorocabana e Ituana (1892-1903); Sorocaba Railway Company (1908-1918); Estrada de Ferro Sorocabana (1919-1930).

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As unidades lexicais que compõem a terminologia ferroviária fazem parte de

diversos domínios de especialidade, conferindo-lhe um caráter multidisciplinar. Em

relação a esse aspecto, Cabanes e Cuéllar (2012) afirmam que:

A técnica ferroviária assenta seus pilares sobre os pressupostos científicos e técnicos de múltiplos campos do conhecimento, a engenharia, a arquitetura, a informática ou a economia; de todas essas ciências foram adotados princípios teóricos, bases práticas e, além disso, em muitos casos, foram utilizados termos e palavras com essa origem.

Em nosso levantamento terminológico, de fato, foram encontrados termos de

variados domínios: engenharia ferroviária (apparelho registrador de velocidade, bitola,

bitola estreita, bitola larga, chave, desvio, dormente, dormente de madeira, lastro, cancela),

arquitetura (aterro, boeiro, boeiro de arco, boeiro duplo, canal, corte, dique, dóca, poço,

valeta), economia (acção, accionista, apólice, balancete, bond, titulo de obrigação

preferencial, cambio, cessionário, custeio, fusão, zona privilegiada).

Cabanes e Cuéllar (2012) também apontam que “é um vocabulário que inclui termos

derivados de distintos idiomas, especialmente do inglês e do francês, já que nesses idiomas

foi gerada uma parte importante do conhecimento teórico da tecnologia ferroviária”.

Grande parte das primeiras companhias de estrada de ferro, inauguradas no Brasil a

partir da década de 1850, foi projetada por engenheiros estrangeiros (ingleses, norte-

americanos ou franceses). Também vinham de outros países o material rodante e demais

equipamentos de operação e de manutenção – normalmente de origem inglesa, norte-

americana, alemã, francesa ou belga. Consequentemente, no conjunto terminológico

estudado, é comum encontrarmos termos em inglês, tais como: trolly, bogie, grid-iron, staff,

tender; ou em francês: touer.

Também observamos, em relação à terminologia ferroviária estudada, a ocorrência

de epônimos, ou seja, “termos formados em parte por um nome próprio” (BARROS, 2004, p.

98). Podemos citar, por exemplo, o termo trilho Vignole. Segundo Muniz da Silva (2002, p.

330), Vignole é o “nome do Engenheiro inglês que o idealizou”. Há outros casos de

epônimos no corpus analisado, como freio Westinghouse, que se refere a um freio a ar

comprimido desenvolvido pelo engenheiro americano George Westinghouse. Em nosso

corpus também encontramos os termos freio de vacuo automatico de Gresham e freio de

vacuo simples de Gresham, referente ao engenheiro inglês James Gresham.

Dessa forma, conforme se desenvolvia a atividade ferroviária no Brasil, foi sendo

consolidado um léxico especializado. Gradualmente, novos termos foram acrescentados,

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conforme a tecnologia e as técnicas avançavam, e outros caíram em desuso ou foram

substituídos por outros. Neste trabalho, interessa-nos observar os termos contidos nos

antigos relatórios da Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

3 LEVANTAMENTO DOS TERMOS

As empresas ferroviárias paulistas estudadas no âmbito do projeto Memória

Ferroviária foram construídas entre 1872 e 1930, originariamente em cidades do interior

(Sorocaba, Campinas, Bauru): Estrada de Ferro Sorocabana, Companhia Paulista de

Estradas de Ferro, Companhia Mogiana de Estrada de Ferro e Estrada de Ferro Noroeste do

Brasil.

Em relação à Companhia Paulista de Estradas de Ferro, objeto de nossa pesquisa,

dispomos de um corpus textual que conta com um conjunto de 82 relatórios, de 1869 a

1930. Com vistas a desenvolver uma metodologia para o levantamento dos termos,

selecionamos desse corpus apenas dez relatórios, datados de 1885 a 1897, aos quais

tivemos acesso primeiramente. Esses relatórios referem-se ao período de um ano ou ao

primeiro ou segundo semestre contábil.

Esses documentos foram convertidos do formato pdf. para o formato txt. (somente

texto) e armazenados no programa de análise lexical WordSmith Tools. A seguir, podem ser

visualizadas duas páginas de um dos relatórios.

Fig. 1 e 2 – Páginas de Relatório da Companhia Paulista de Estradas de Ferro

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Com o auxílio do programa WordSmith Tools, geramos listas das palavras contidas

nesse corpus, em ordem alfabética e de frequência (wordlist), listas de agrupamentos de

palavras (clusters) para levantamento de termos complexos, linhas de concordância

(concord), também para levantamento de termos complexos, e fizemos a extração de

contextos.

Os termos selecionados e respectivos contextos foram registrados em fichas

terminológicas. As fichas contêm as seguintes informações: termo, outras designações,

campo, termo genérico (T.G.), termo específico (T.E.), termo relacionado (T.R.), contexto,

definição, nota, responsável pelo preenchimento da ficha (inserido por), data da inclusão e

da revisão. A seguir, a título de ilustração, seguem as fichas do termo genérico bitola e do

termo específico bitola larga.

Entrada principal Bitola

Outras designações

-

Campo engenharia ferroviária

T.G.: - T.E.: bitola larga, bitola estreita

T.R.: trilho

Contexto “Em poucos dias ficará, pois, a nossa rede geral de viação composta de 990 kilometros de linhas em trafego, dos quaes 790 kilometros de vias ferreas de differentes bitolas e 200 de via fluvial, todas as quaes se desenvolvem, como é notorio, pelas mais ricas regiões do Estado.” (Relatório 1893)

Definição “BITOLA: - É a distância entre as faces internas dos boletos dos trilhos, tomada na linha normal a essas faces, 16 mm abaixo do plano constituído pela superfície superior do boleto.” (BRASIL)

Nota -

Inserido por Ivanir Azevedo Delvizio Inclusão: 09/03/13 Revisão:

Quadro 1 – Ficha terminológica de do termo genérico bitola

Entrada principal bitola estreita

Outras designações

-

Campo engenharia ferroviária

T.G.: bitola T.E.: - T.R.: bitola larga

Contexto 1 “A pequena relação das despezas para com a receita, embora seja a nossa estrada de bitola larga, nossos trens tem a velocidade de 30 % mais do que os das estradas de bitola estreita; isto prova suficientemente que não sendo ella privada dos seus direitos, sempre poderá concorrer vantajosamente com qualquer estrada de bitola estreita e pelas mesmas tabellas prestar melhores serviços ao publico, encurtando as distancias pela sua rapidez e pouca desviação da linha recta.” (Relatório 1886/1)

Definição “BITOLA ESTREITA: - Aquela inferior a 1,435m.” (BRASIL)

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Nota -

Inserido por Ivanir Azevedo Delvizio Inclusão: 09/03/13 Revisão:

Quadro 2 – Ficha terminológica de do termo específico bitola estreita

Além disso, com o uso de recursos do programa, também pudemos observar e

registrar a ocorrência de determinado termo em cada texto, dado relevante visto que os

textos estão organizados cronologicamente, como podemos visualizar na tabela a seguir,

que mostra o termo, a frequência do termo no corpus de dez relatórios, o número total de

textos em que ocorreu e as frequências em cada texto.

Termo freq textos 1885/2

1886/1

1887/2

1888/1

1888/2

1889/1

1893/0

1894/0

1896/0

1897/0

bitola 13 05 02 - - 04 03 - 01 - 03 - bitola estreita

17 07 - 04 - 05 - 02 01 01 02 02

bitola larga

21 07 - 01 - 02 02 01 03 - 06 06

Tab. 1 – Frequência dos termos no corpus

Com base nas informações coletadas, esses termos foram organizados em um

sistema conceptual, etapa que descrevemos no próximo tópico.

4 ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA CONCEPTUAL A Terminologia pode ser definida como o “estudo científico dos conceitos e dos

termos em uso nas línguas de especialidade” (ISO 1087, 1990, p. 12). O termo, unidade

básica da Terminologia, é definido como sendo a “designação, por meio de uma unidade

linguística, de um conceito definido em uma língua de especialidade” (ISO 1087, 1990, p. 5).

Um dos procedimentos metodológicos fundamentais do trabalho terminológico é a

organização dos termos em um sistema estruturado chamado sistema de conceitos

(também conhecido como árvore de domínio, mapa conceptual, sistema conceptual ou

sistema de noções). O sistema de conceitos refere-se a um “conjunto estruturado de

conceitos construído com base nas relações estabelecidas entre esses conceitos e no qual

cada conceito é determinado por sua posição nesse conjunto” (ISO 1087, 1990, p.4).

Segundo Barros (2004, p. 129-130), a organização dos termos em uma lista

sistemática é um dos modos mais utilizados para a estruturação do mapa conceptual,

colocando em evidência, por meio da diferença de tabulação e pela numeração (símbolo de

classificação), as relações semânticas mantidas entre os termos.

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Essas relações, conforme explica Cabré (1993, p. 248), podem ser de três tipos: de

equivalência, de subordinação e de associação.

A relação de equivalência se refere ao que Cabré (1993, p. 248) chama de sinônimos

e quase sinônimos97, como o que ocorre entre os termos estrada de ferro e ferro-via

(ferrovia), por exemplo. Em nosso corpus, referindo-se ao sistema de transporte sobre

trilhos, encontramos os termos estrada de ferro e ferro-via. O termo estrada de ferro (A)

apresentou maior ocorrência nos documentos analisados; o termo ferro-via (B) ocorreu em

escala bem menor (vide tabela abaixo), apesar de atualmente ser o mais utilizado (com a

grafia ferrovia).

Termo

freq.

textos

1885/2

1886/1

1887/2

1888/1

1888/2

1889/1

1893/0

1894/0

1896/0

1897/0

(A) (B)

71 08

10 03

07 -

15 01

02 -

16 -

13 06

07 01

02 -

01 -

02 -

06 -

Tab. 2 – Frequência dos termos estrada de ferro (A) e ferro-via (B) no corpus

Os termos sinônimos ou quase sinônimos, ou seja, que designam o mesmo conceito,

foram inseridos no sistema conceptual um ao lado do outro, separados por vírgulas e por

ordem de frequência. Segue exemplo:

1. estrada de ferro, ferro-via

A relação de subordinação, por sua vez, refere-se à hiperonímia, que é “relação

estabelecida entre um vocábulo de sentido mais genérico e outro de sentido mais

específico” (HOUAISS, 2009), e hiponímia, refere-se à relação contrária. Nesses casos, os

termos são ordenados em níveis, por meio de tabulação diferente, e numerados

hierarquicamente.

1. estação 1.1 estação de primeira classe 1.2 estação de segunda classe 1.3 estação de terceira classe

97 A designação quase sinônimos deve-se ao fato de as unidades lexicais, na maioria das vezes, não serem “permutáveis em todos os contextos” e não terem “a mesma distribuição, nem os mesmos sentidos cognitivos e afetivos” (BARROS, 2004, p. 221).

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No exemplo anterior, estação é o termo genérico (hiperônimo) e estação de primeira

classe, estação de segunda classeeestação de terceira classe, são os termos específicos

(hipônimos), estabelecendo-se uma relação de gênero-espécie.

Barros (2004, p. 115) também fala das relações de subordinação partitiva (todo e

parte), como ocorre, por exemplo, entre os termos trilho Vignole, alma, boleto e patim.

Vejamos a sua representação no sistema de conceitos, também em níveis:

1. trilho Vignole 1.1 cabeça 1.2 alma 1.3 sapata

Segundo definição de Picanço (1891, p. 305), o trilho Vignole é “formado de alma,

cabeça e sapata”. Picanço (1891, p. 305) ainda acresce o comentário de que “actualmente é

o typo mais empregado”. No exemplo dado, portanto, trilhoVignole é a noção

superordenada ou integrante e cabeça, alma e sapata são as noções partitivas.

Ainda em relação a esse exemplo, vale destacar que, em uma das obras

contemporâneas consultadas, foram encontrados outros termos para designar as partes do

trilho Vignole. Segundo Muniz da Silva (2002, p. 330), trilho é o “elemento da via

permanente que constitui a superfície de rolamento das rodas dos veículos ferroviários.

Sua geometria atual, predominante em quase todo o mundo, é o tipo Vignole (...), composto

por patim, alma e boleto”.

Observemos que tanto Picanço (1891) quanto Muniz da Silva (2002, p. 330), em

épocas diferentes, citam o trilho Vignole como o mais utilizado, trazendo, porém,

designações distintas para duas das três partes. Vejamos as ilustrações que comprovam a

relação de (quase) sinonímia entre esses termos:

Fig. 3 – partes do trilho Fonte: Semprebone (2005)

Fig. 4 – A, sapata; B, alma; C, cabeça Fonte: Picanço (1891, p. 306)

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O termo alma, estrutura do meio do trilho, é utilizado pelos dois autores.A parte

superior do trilho é chamada de cabeça por Picanço (1891) e de boleto por Muniz da Silva

(2002, p. 330). A parte inferior do trilho é chamada de sapata e patim, respectivamente.

A organização dos termos em um sistema de conceitos, como vimos, permite a

visualização dos diferentes tipos de relações mantidas entre as unidades terminológicas:

(quase) sinonímia, hiperonímia/hiponímia e relação partitiva.

Além de levar em conta esses tipos de relações semânticas, no sistema conceptual,

os termos são organizados em campos. Na obra de Picanço (1891), por exemplo, são

indicados nove campos temáticos para os termos: administração, arquitetura, construção,

estrada de ferro, ferramenta, locomotiva, máquinas, pontes e técnico.

Até o momento, identificamos em nosso corpus cerca de 270 termos (que nem

sempre correspondem aos termos indicados por Picanço). Dentre eles, destacam-se termos

facilmente reconhecíveis como do campo estrada de ferro: armazém de carga, bitola, carro,

freio, oficina de reparação de locomotiva, longarina. Observamos a ocorrência intensa de

termos administrativos: ações, acionista, assembleia geral de acionistas. Contudo, há outros

que não têm qualificação exata, mas que estão ligados à manutenção ou operação da

empresa: azeite, lancha a vapor, telégrafo. E outros de difícil classificação: bilhete de

passagem, botequim, bueiro duplo – sendo esses três últimos termos inseridos no campo

Estrada de Ferro, segundo Picanço (1891).

O sistema conceptual dos termos constantes dos relatórios da Companhia Paulista

de Estradas de Ferro encontra-se, atualmente, dividido nos seguintes campos: engenharia

ferroviária, equipamentos, instalações, materiais e combustíveis, serviços, arquitetura,

telégrafo, navegação, administração e pessoal e economia.

Para a seleção e sistematização dos termos que compõem cada um desses campos e

análise das relações mantidas entre eles, foi essencial o estudo dos contextos contidos nos

relatórios e das definições encontradas em obras especializadas.

4 CONTEXTOS E DEFINIÇÕES

Segundo Barros (2004, p. 109), “termos e conceitos são identificados, delimitados e

estudados em contexto”. Por contexto, compreende-se “o enunciado que exprime uma idéia

completa, no qual o termo estudado se encontra atualizado”. Em vista disso, para coleta e

estudo dos termos ferroviários, previmos na ficha terminológica, já apresentada, o campo

contexto, que foi preenchido com excertos dos relatórios analisados. Vejamos, a seguir, um

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contexto que traz informações importantes sobre o conceito designado pelos termos

estação de primeira classe, estação de segunda classe e estação de terceira classe:

De três classes são as estações. As deprimeira classe constam de dois edifícios; uma casa de sobrado, tendo no pavimento térreo o escriptorio e mais dependências do serviço, com morada em cima para o chefe, e um armazém de cargas medindo 15mX7m'—105 metros quadrados. São d'este tipo as estações de S. Carlos, Araraquara e Jahú. As estações de segunda classe compõem-se de um só edifício, comprehendendo escriptorio, armazém de cargas com 15X7=105 metros quadrados e morada do chefe. Pertencem a este typo as estações do Visconde do Rio Claro, Brotas e Dous Córregos. As demais estações, que chamamos de terceira classe, differem das precedentes, quanto ao armazém de cargas, pelo facto de medir este apenas 7X 7=49 metros quadrados. Os edifícios em geral se acham bem conservados, precisando alguns apenas de pequenos reparos. (Relatório 1888/1, negrito nosso)

Como pudemos observar, o contexto acima traz informações preciosas acerca da

estrutura dos três tipos de estações existentes na Companhia Paulista de Estradas de Ferro,

contribuindo para a compreensão e diferenciação de cada um desses termos e conceitos.

Por meio dos contextos e dos termos, podemos observar também a trajetória do

desenvolvimento tecnológico ferroviário, como, por exemplo, no excerto abaixo, em que é

narrada a substituição do freio de vácuo simples pelo freio de vácuo automático e freio

Westinghouse e a introdução de uma nova tecnologia, o apparelho registrador de velocidade.

Concluiu-se a substituição dos apparelhos do freio de vacuo simples pelos de vacuo automatico em todo o material dos trens de passageiros da bitola larga. Os novos apparellos são de acção muito mais segura e efficaz, tanto nos casos de accidentes como no serviço corrente. O mesmo systema aperfeiçoado de freios está sendo applicado aos vagões de carga da linha larga. Nas linhas de bitola estreita concluiu-se a montagem do freio Westinghouse em todos os carros de passageiros e trata-se de applicar o mesmo apparelho em todos os vagões de cargas. Como o fim de fiscalisar a marcha dos trens e impedir que os machinistas excedam em qualquer momento as velocidades prescriptas nas respectivas tabellas, estão sendo experimentados alguns apparelhos registradores de velocidade, systema Haushalter, tanto em locomotivas de bitola larga como nas de bitola estreita.(Relatório 1896/0, negrito nosso)

Outro exemplo similar refere-se aos termos trilho de ferro e trilho de aço, ponte de

madeira e ponte de ferro e poste de madeira e poste metallico:

Tambem foram substituidos, por acharem-se estragados, os ultimos trilhos de ferro, dos primitivamente assentados, no trecho de Cordeiros a Pirassununga, por trilhos novos de aço, achando-se agora todas as linhas da Companhia providas de material d'esta qualidade. (Relatório 1896/0)

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Foram substituidas duas pontes de madeira por duas de ferro, uma no kilometro 32 e outra no kilometro 80. Fez se um boeiro duplo no kilometro 84 e augmentou-se o do kilometro 43. (Relatório 1886/1) Feita a exploração da linha, ficou averiguado que, para facilidade e economia de sua conservação, de preferencia a postes de madeira, deviam ser adoptados postes metallicos, feitos de trilhos velhos, embora o custo d'este material e seu transportetivessem de encarecer a obra.” (Relatório 1888/2, negrito nosso)

Pelos contextos podemos acompanhar a evolução dos materiais empregados no

sistema ferroviário. Isso também ocorre em relação ao termo rancho. No dicionário de

língua geral Houaiss (2009), a segunda acepção de rancho refere-se ao “grupo de

trabalhadores contratados para qualquer serviço, esp. agrícola”, e a oitava acepção, ao

“acampamento onde se alojam os ranchos” (ou seja, grupo de trabalhadores). No dicionário

de Picanço (1891, p. 238), rancho é definido como “casa de palha, feita no matto, para

morada de engenheiros e trabalhadores durante o serviço da construção da estrada de

ferro”. No entanto, conforme pudemos verificar nos contextos de relatórios anteriores à

obra de Picanço, os ranchos já eram construídos também com tijolos e telhas, embora ainda

houvesse aqueles mais simples:

Construiu-se a estação de S. Bento, tambem um rancho de tijolos no kilometro 60, e começou-se o armazem em Araras; fizeram-se dous poços em Cordeiro, e em S. Bento; fizeram-se os concertos precisos nas estações de Louveira, Santa Barbara, Limeira, Cordeiro, Araras e Pirassununga. (Relatório 1886/1, negrito nosso) Foram construidos: um armazem de cargas feito de tijolos e coberto de telhas no Porto Amaral e em Porto Ferreira um rancho para os empregados, tambem feito de tijolos e coberto de telhas francezas. (1887/2, negrito nosso) RANCHOS.—A estrada ainda não possue ranchos definitivos para os trabalhadores da conservação da linha; os que existem são feitos de páu a pique, e, na maior parte, cobertos de sapé. (Relatório 1888/1, negrito nosso)

Além dos contextos, inserimos nas fichas terminológicas definições coletadas de

obras contemporâneas e uma de época, dentre elas o glossário do Departamento Nacional

de Infraestrutura de Transportes (BRASIL), o dicionário Houaiss (2009) e o Diccionario de

Estradas de Ferro do engenheiro Francisco Picanço (1891), respectivamente. A

confirmação, por exemplo, de que obra d’arte se tratava de um termo, foi obtida por meio

da consulta a essas obras. Vejamos contexto, definições atuais e definição de época

coletados:

O projecto acha-se locado na extensão de cerca de 20 kilometros, estando feitos os estudos das obras d'arte na extensão de 10.600 metros. A ponte sobre o rio Mogy-guassú foi já projectada, tendo sido feita a encommenda do respectivo vigamento metallico. Os trilhos e accessorios já estão no paiz e contractado tambem se acha o fornecimento dos dormentes necessarios. (Relatório 1889/1)

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OBRA DE ARTE: - Constam de: bueiros, pontilhões, pontes, viadutos, passagens superiores e inferiores, túneis, galerias, muros de arrimo, revestimento, etc. (BRASIL) 3 Rubrica: urbanismo. obra viária de grande porte (p.ex., viaduto, túnel, ponte) (HOUAISS, 2009)

As obras d’arte, nas estradas de ferro, constam de boeiros, pontilhões, pontes, viaductos, passagens superiores, passagens inferiores, tunneis, galerias de abrigo contra-neve, contra a areia, etc. Os muros de arrimo e os de revestimento também são considerados obras d’arte. (PICANÇO, 1891, p. 158-159)

Os contextos e as definições auxiliaram também no processo de desambiguização de

possíveis casos de polissemia, ou seja, “multiplicidade de sentidos de uma palavra ou

locução” (HOUAISS, 2009). É o que ocorreu, por exemplo, com o termo plataforma, usado

no âmbito ferroviário para designar dois conceitos diferentes: 1) “Abrigo construído na

estação, ao longo da linha principal, para embarque e desembarque de passageiros e

serviço de bagagem e encomendas” (BRASIL) e 2) “(Veículo): - Peças principais: estrado,

rodeiros ou truques, caixas de graxa, molas, engates, pára-choque e caixa (ou caixas)”

(BRASIL).

Outro caso foi o termo assentamento, que, de modo geral, refere-se à “colocação em

seu devido lugar das peças de qualquer construção ou aparelho” (HOUAISS, 2009), mas

que, nos documentos analisados, aplica-se tanto ao assentamento da linha de trilhos,

conforme verificado no dicionário de Picanço e no glossário do DNIT (BRASIL), quanto ao

assentamento de linhas telegráficas, conforme verificado nos contextos dos relatórios.

Vejamos:

Assentamento da linha (E. de F.) – Pose de la voie. – Laying the line. – Oberbaulegung. – Operação que tem por fim assentar o material fixo de uma estrada de ferro, observando-se todos os preceitos de solidez e segurança. Compõem-se das seguintes operações parciais: Distribuir os dormentes ao longo da plata-forma. Fixar os trilhos sobre os dormentes. Altear a linha, colocando-a de accordo com as declividades estabelecidas para cada trecho. Socar o lastro junto aos dormentes, nas extremidades d’estes. Puchar a linha, dando-lhe os alinhamentos marcados no projecto. Ligar os trilhos por meio das talas de juncção. Lastrar a linha de acordo com o perfil typo. Sobrelevar o trilho exterior nas curvas. Dar alargamento nas curvas. (PICANÇO, 1891, p. 89-90) ASSENTAMENTO: - Efeito ou a ação de assentar o trilho na via. (BRASIL) Em toda a linha de bitola larga e no trecho mais importante da secção Rio-Claro ficou concluido o assentamento de linhas telegraphicas destinadas exclusivamente ao aviso de movimento de trens, como de ha muito se fazia mister, para maior regularidade do serviço. (Relatório 1897)

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Foram coletadas também as unidades utilizadas para designar cargos existentes na

Companhia Paulista de Estradas de Ferro, sendo possível verificar, inclusive, por meio dos

contextos, a criação de determinadas funções, tais como chefe do escriptorio central e chefe

da locomoção.

Engenheiro Auxiliar. Reconhecendo a Directoria a necessidade de ter em seu escriptorio um profissional habilitado para ser ouvido em todas as questões technicas e outras concernentes aos variados serviços sujeitos á sua gerencia e para simultaneamente exercer as funções de Chefe do Escriptorio Central, em data de 9 de Junho ultimo deliberou criar o referido lugar, com o vencimento de 4:000$000 annuaes, nomeando para preenche-lo o Sr. Engenheiro Adolpho A. Pinto. Tendo algum tempo depois, a 3 de Julho seguinte, se exonerado do cargo de Secretario da Companhia o Sr Dr. Alonso G. da Fonseca, a Directoria resolveu suprimir o lugar, anexando suas funções ás do Chefe do Escriptorio Central. (Relatório 1888/1, negrito nosso) Julgando de conveniencia ter á frente dos serviços da tracção e officinas engenheiro especialista na materia, resolveu a directoria crear o logar de chefe da locomoção, para o qual convidou o engenheiro civil sr. Gustavo Adolpho da Silveira, actualmente na Europa, um dos poucos brazileiros que tem estudos especiaes e longa pratica d’este serviço, attestada por brilhante tirocinio na ferro-via D. Pedro II e ultimamente na chefia da locomoção de importante estrada de ferro. (Relatório 1889/1, negrito nosso)

Desse modo, por meio da análise dos contextos dos relatórios, das definições

contemporâneas e das definições de época, pudemos não somente levantar e organizar a

terminologia da atividade ferroviária da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, mas

também compreender um pouco da sua estrutura, funcionamento e desenvolvimento.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O desenvolvimento da técnica ferroviária, como todo advento tecnológico, foi

acompanhado da criação de termos para designar as novas técnicas e conceitos. A partir de

relatórios da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, fizemos um primeiro levantamento

terminológico de 270 termos. Observamos que, como se trata de um estudo de cunho

histórico, não se considera que o resultado final resulte num glossário de termos com

aplicação atual no transporte ferroviário. O estudo do conjunto terminológico contido nos

documentos da companhia ferroviária paulista contribui, entretanto, para a compreensão

do seu funcionamento, do seu desenvolvimento tecnológico e da terminologia que já se

utilizava naquela época. Além disso, a sistematização dos termos pode auxiliar na

ordenação e classificação do conjunto de documentos das companhias ferroviárias, sendo

uma ferramenta para organizar o conhecimento desse domínio de especialidade.

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REFERÊNCIAS

BARROS, L. A. Curso Básico de Terminologia. São Paulo: Edusp, 2004.

BRASIL. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Glossário de termos ferroviários. Disponível em: <http://www.antf.org.br/pdfs/glossario.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2013.

CABANES MARTÍN, A.; CUÉLLAR, D. La conceptualización del Patrimonio Histórico Ferroviario: un proyecto de tesauro. p. 4.Anais do 3º Seminário de Patrimonio Ferroviário do TICCIH, 2012.

CABRÉ, M. T. La terminologia: teoria, metodologia, aplicaciones. Barcelona: Antártida/Empúries, 1993.

________. Terminología: Representación y comunicación. Elementos para uma teoria de base comunicativa y otros artículos. Sèrie Monografies, 3. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, Institut Universitari de Lingüística Aplicada, 1999.

HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009.

ORGANISATION INTERNATIONALE DE NORMALISATION. Terminologie – Vocabulaire. Genebra, ISO, 1990 (Norme Imternationale ISO 1087, 1990).

PICANÇO, F. Diccionário de Estradas de Ferro. Rio de Janeiro: H. Lombaerts $ Comp., 1891.

SEMPREBONE, P. S. Desgastes em Trilhos Ferroviários – um estudo teórico. 2005. 137 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Civil) - Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo – FEC, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005.

MUNIZ DA SILVA, L. F. Fundamentos teórico-experimentais da mecânica dos pavimentos ferroviários e esboço de um sistema de gerência aplicado à manutenção da via permanente. 2002. 333 f. Tese (Doutorado em Engenharia Civil) - COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.