a filosofia da mente de santo tomas de aquino a razao superior e a razao inferior jean cormier

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1 Editorial A razão última, isto é, a principal razão por que Deus criou o homem, é para que o homem tenha conhecimento de Deus e o ame. E a intenção secundária pela qual Deus o criou é para que o homem participe eternamente sem fim na glória com Deus. Raimundo Lúlio. Caros amigos leitores: Permitam-me que me apresente. Chamo-me Hubert Jean-François Cormier. Sou antropólogo e filósofo franco- brasileiro. Sou também católico de tradição, expressão que prefiro a católico tradicionalista por esta última evocar em mim laivos ideológicos de amargas lembranças. O intuito da presente revista é o de dar publicidade aos meus pensamentos e estudos. Gostaria de deixar bem claro que tudo, absolutamente tudo, que lerão nas páginas desta revista é de minha autoria. Alguém, curioso, poderia perguntar: “mas porquê a necessidade de se escrever uma revista inteira sozinho? Vaidade? Egoísmo? Desdém para com os demais intelectuais de nosso país?” Não! Nenhum dos motivos acima numerados moveram-me a uma publicação solitária os motivos que advogo são os seguintes: 1 Todos sabem da situação de indigência intelectual que grassa nos meios universitários e na vida intelectual em geral. Não querendo fazer parte do grupo de pseudopensadores e intelectuais que contribuem cada vez mais para o aprofundamento da atual situação resolvi retirar-me deste meio; 2 Algum leitor, sabedor da inclinação religiosa de meu pensamento, poderia ser levado a crer que minha participação em alguma revista acadêmica ou cultural seria uma espécie de indicação da boa qualidade dos demais artigos, o que seria um lamentável

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TEOLOGIA

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  • 1

    Editorial

    A razo ltima, isto , a principal razo por que Deus criou o homem, para que o homem tenha

    conhecimento de Deus e o ame. E a inteno secundria pela qual Deus o criou para que o homem

    participe eternamente sem fim na glria com Deus.

    Raimundo Llio.

    Caros amigos leitores:

    Permitam-me que me apresente.

    Chamo-me Hubert Jean-Franois Cormier. Sou antroplogo e filsofo franco-

    brasileiro. Sou tambm catlico de tradio, expresso que prefiro a catlico tradicionalista

    por esta ltima evocar em mim laivos ideolgicos de amargas lembranas.

    O intuito da presente revista o de dar publicidade aos meus pensamentos e

    estudos. Gostaria de deixar bem claro que tudo, absolutamente tudo, que lero nas pginas

    desta revista de minha autoria.

    Algum, curioso, poderia perguntar: mas porqu a necessidade de se escrever uma

    revista inteira sozinho? Vaidade? Egosmo? Desdm para com os demais intelectuais de

    nosso pas? No! Nenhum dos motivos acima numerados moveram-me a uma publicao

    solitria os motivos que advogo so os seguintes:

    1 Todos sabem da situao de indigncia intelectual que grassa nos meios

    universitrios e na vida intelectual em geral. No querendo fazer parte do grupo de

    pseudopensadores e intelectuais que contribuem cada vez mais para o aprofundamento da

    atual situao resolvi retirar-me deste meio;

    2 Algum leitor, sabedor da inclinao religiosa de meu pensamento, poderia ser

    levado a crer que minha participao em alguma revista acadmica ou cultural seria uma

    espcie de indicao da boa qualidade dos demais artigos, o que seria um lamentvel

  • 2

    engano. Para evitar que leitores cristos sejam levados a ler idiotices ideolgicas pelo fato

    de verem meu nome em uma publicao qualquer levando o estimado leitor a desviar-se de

    sua busca da verdade preferi abster-me de colaborar com qualquer publicao que seja;

    3 Os inevitveis protestos que ocorreriam pelos fanticos ideolgicos que ao verem

    meu nome em uma publicao acadmica moveriam mundos e fundos para que a revista me

    expulsa-se de seus quadros. Como sou adepto do adgio popular cada macaco no seu

    galho deixo o terreno das publicaes acadmicas e culturais de nosso pas para os

    macacos que as constituram. Da a necessidade de criar uma revista que fosse veculo

    unicamente de meu pensamento;

    4 Mas o motivo que mais pesou em minha deciso de criar uma revista unicamente

    para mim foi o de que para mim a filosofia ser atividade solitria e que convm aos

    solitrios. No existe, no meu ponto de vista, filosofia coletiva, todo e qualquer pensamento

    fruto de um pensamento nico e intransfervel. Da eu preferir uma revista que seja

    reflexo de minhas idias e somente delas.

    No me alinho com aqueles que acham que a situao atual to catica que nada

    pode ser feito para reparar. Sou otimista! Como todo cristo que se preze tambm o , no

    fico carpindo lgrimas diante dos destroos sem nada fazer em uma atitude de covardia

    perante o imenso trabalho que temos pela frente.

    Sou catlico de tradio j o disse, mas gostaria que ficasse claro que no sou do

    nmero que suspira por um passado ideal, que chora por uma pretensa idade de ouro

    situada sem l em que tempo remoto de nossa histria.

    Essa revista ser a minha modesta contribuio para ajudar queles que buscam com

    toda fora de sua inteligncia e de seu corao o caminho que leva a verdade que Deus.

    Cada nmero, que ter periodicidade indefinida, conter cinco artigos versando cada

    um sobre cinco temas diferentes, a saber: filosofia, religio, arte, cincia e mstica. Cinco

    artigos correspondendo s cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, cinco vias

    tradicionais que conduzem verdade nica.

    Com efeito, acredito plenamente na verdade nica e eterna que em ltima instncia

    o prprio Deus. Acredito tambm que existe uma multiplicidade legitima de caminhos, ou

    vias, que nos levam at ele.

  • 3

    A filosofia pelo exerccio de nossa razo. A religio pela f1. A arte pelo

    sentimento. A cincia aplicando a racionalidade ao mundo fsico. A mstica pelo silncio.

    Em cada uma dessas linhas tenho delineado claramente quais os autores e temas que

    abordarei.

    Em filosofia sigo, no somente nem em todos os desenvolvimentos,

    preferencialmente mestres como Aristteles, Toms de Aquino, Francisco Suarez dentre

    outros. No a toa que comeo estudando a filosofia da mente do doutor Anglico posto

    que para mim sua doutrina da mente ainda conserva ensinamentos preciosos para o homem

    contemporneo.

    No artigo dedicado religio, dedico-me ao estudo de uma noo precisa e

    completamente esquecida pela Igreja aps o terrvel conclio Vaticano II a noo de

    Tradio.

    Na arte atenho-me aos delineamentos de uma metafsica da msica sacra catlica

    que podemos inferir da leitura do motu proprio de So Pio X que trata desse tema to

    importante para a correta aplicao e vivncia dos sagrados mistrios da liturgia.

    No artigo sobre cincia comeo relatando os fatos de um triste affaire. O affaire que

    batizei com o nome de seu principal envolvido: Maurice Allais.

    Maurice allais, prmio Nobel de economia (1988) tem seu lado de pesquisador

    diletante em fsica. S que como resultado de suas experincias, o que aconteceu foi uma

    colocao em evidncia de que os resultados da teoria da relatividade de Albert Einstein

    esto todos equivocados! Imaginem, caro leitor, a cincia tem gastado rios de papel para

    glorificar o gnio de Einstein e vem um diletante e coloca abaixo todo o edifcio relativista

    com um s golpe. O fato que em torno de Maurice Allais existe uma conspirao do

    silncio para que o resultado de suas pesquisas no sejam divulgados e levados em

    considerao e que o mito da genialidade do farsante Albert Einstein no venha tona.

    Se Maurice Allais estiver correto a teoria da relatividade ser considerada como o

    maior erro da histria da cincia e Einstein no mais ser visto como gnio mas como um

    incompetente que levou a fsica e com ela toda a cincia por caminhos falsos. Durma-se

    com um barulho desses!

    1 Ainda que no s por ela, j que a religio catlica advogando a necessidade da f no relega em momento algum a necessidade da razo. Pensar o contrrio seria cair em fidesmo posio indefensvel segundo o ponto de vista catlico.

  • 4

    O artigo sobre mstica trata sobre a devotio moderna, movimento espiritual do final

    da idade mdia, e quer com isso mostrar que a modernidade longe de ser s idiotices pode

    sim ter como base o amor a Deus.

    Cada artigo no esgotando os temas abordados ser retomado em nmeros

    posteriores, assim fica inteligvel a numerao em romanos que precede cada artigo. Mas o

    leitor que por ventura ler o artigo de nmero II, por exemplo, de uma determinada srie de

    estudos no perder com isso a inteligibilidade do artigo em questo, pelo menos o que

    espero.

    Como no disponho de tempo suficiente para orientao em pesquisas

    particulares que nossos estimados leitores por ventura estejam desenvolvendo tenho por

    regra no me deter em longas correspondncias com leitores e isso com o maior sentimento

    de gratido e reverncia por todos aqueles que se relacionam comigo de uma determinada

    maneira.

    Os leitores no vero meu nome em lista de simpsios, congressos, palestras,

    entrevistas jornalsticas ou programas televisivos. No me encaixo no perfil do intelectual

    miditico.

    Que Deus Nosso Senhor abenoe meus caminhos.

    Um grande abrao a todos

    Hubert Jean-Franois Cormier.

  • 5

    A filosofia da mente de Santo Toms de Aquino I

    Quaestiones disputatae de veritate

    Questo XV

    A razo superior e a razo inferior2

    A perfeio de uma natureza espiritual consiste no conhecimento da verdade.

    Santo Toms de Aquino.

    O problema da razo superior e da razo inferior antigo no cristianismo. Com esta

    nomenclatura a questo foi colocada por Agostinho no seu magistral livro A Trindade. A

    partir de ento muita tinta correu e com ela muitas doutrinas, algumas de vis

    marcadamente gnsticas, que tentavam a partir desta distino legtima operada pelo bispo

    de Hipona justificar as mais descabidas interpretaes.

    O problema da diferenciao entre razo superior e razo inferior comporta

    basicamente duas questes:

    1 Se existe no homem uma potncia diferente e superior razo denominada

    intelecto. o que trataremos na primeira parte de nosso artigo;

    2 Para este estudo utilizamos a traduo francesa da Questo Disputada sobre a Verdade Questo XV: Questions Disputes sur la vrit Questions XV, XVI, XVII. ditions Vrin. Paris. 1991.

  • 6

    2 Se podemos subdividir a razo em superior e inferior. Dada a resposta afirmativa,

    o que seria a razo superior e inferior? Quais os seus objetos de conhecimento? So

    questes que trataremos na segunda parte de nosso artigo.

    A polmica sobre o intelecto e razo no acabou com a interveno de Santo Toms

    de Aquino, ao contrrio, muitos dos dominicanos que tentavam completar a obra do mestre

    no sentido de dar-lhe um acabamento mstico3 claramente retomam a concepo de que a

    alma humana possusse o que eles denominavam a ponta fina da alma que seria

    precisamente por onde se operaria a presena divina em ns, e que corresponderia

    precisamente quilo que denominamos aqui de intelecto, que se diferenciaria claramente da

    razo por ser incriada e por no operar de maneira discursiva dividindo e compondo como

    prprio da faculdade racional.

    Santo Toms aborda essa delicada questo com sua costumeira clareza e o seu

    ponto de vista que esboaremos nas linhas que se seguem.

    I

    A razo est para o intelecto como o movimento para o repouso.

    Santo Toms de Aquino.

    Para Toms de Aquino, toda criatura espiritual, e nessa categoria encaixa-se o

    homem que cidado do mundo material, por seu corpo, e cidado do mundo espiritual,

    por sua alma, e os anjos que so seres puramente espirituais, j que no possuem corpo,

    dotada, necessariamente, da faculdade cognoscitiva. Dentre as inteligncias das criaturas

    espirituais a menos desenvolvida , precisamente, a dos homens, e pelo fato de esta ser to

    infirma se comparada com a inteligncia anglica, deve-se ao fato de que a origem e

    processamento do conhecimento nos homens e nos anjos serem diferentes.

    Com efeito, para Toms, as realidades humanas e anglicas no podem ser

    confundidas. O conhecimento anglico obtido por uma via que j no aquela que nos

    prpria, mas que nos ser restituda na ptria celestial. Da a recusa de Toms de Aquino de

  • 7

    admitir qualquer recurso iluminao divina quando do processo cognitivo humano em sua

    presente situao ontolgica.

    Mas se a inteligncia humana diferencia-se claramente da inteligncia anglica isso

    no quer dizer que no possam existir correspondncias entre elas. Mas sejamos bem claros

    aqui. O mestre Toms de Aquino no admitindo ao homem conhecimento por iluminao

    divina, conhecimento este prprio aos anjos somente, nos lembra que a criao de Deus no

    foi feita por acaso nem opera de maneira catica. Todos os seres criados por Deus

    encontram-se analogados por uma imensa cadeia hierrquica onde cada elo da cadeia

    recebe o influxo do grau superior e passa esse mesmo influxo para o grau imediatamente

    inferior. Decorre da que o homem, ser naturalmente inferior aos anjos, participa de

    maneira pequena, mas no nula, da natureza anglica. Quanto doutrina da inteligncia

    isso fica claro, segundo o Aquinate, pelo fato de possuirmos intuitivamente a noo de

    princpios primeiros do conhecimento, que, inatos, possuem, precisamente, a natureza dos

    dados recebidos por intuio como proprio das inteligncias superiores ao homem.

    Assim, a razo humana participa um pouco da operao cognitiva que encontramos

    nos anjos, mas no fazemos isso em todos os nossos atos cognitivos, seno seramos anjos e

    no homens. Mas segundo a doutrina da hierarquia das criaturas que Toms de Aquino

    retira do livro dos nomes divinos de Dionsio Areopagita o que temos o seguinte quadro

    no que compete s inteligncias das criaturas:

    Anjos Intelecto

    Intelecto

    Homem Razo discursiva

    A faculdade intelectual prpria ao homem a razo, mas participamos, de uma certa

    maneira, das operaes do intelecto, sobretudo atravs dos primeiros princpios do

    conhecimento percebido de maneira intuitiva4.

    Razo

    Animais Superiores Sagacidade Natural

    3 o caso preciso dos autores dominicanos da escola da mstica renana tais como Suso, Tauler e principalmente Mestre Eckart. 4 A participao a uma natureza superior no quer dizer que a possuamos em sua perfeio em nossa natureza anmica, ao contrrio, Santo Toms categrico quando nos diz: a mesma potncia em ns que conhece a simples qididade das coisas, que forma as proposies e constri os raciocnios. Op. Cit. P. 43. Do que fica

  • 8

    Os animais no possuem, propriamente falando, nenhuma operao intelectual. O

    que constatamos em algumas espcies aquilo que Toms denomina sagacidade natural, ou

    capacidade de estimao, e isso devido pequenina participao que estes animais possuem

    na racionalidade humana o que se apresenta como capacidade de estimar determinadas

    situaes em que se encontram.

    Devemos sublinhar que quem participa de algo no detm a perfeio daquilo em

    que participa. Deste modo, a razo humana no detm, com toda a sua perfeio, a

    faculdade intelectual dos anjos, o mesmo devendo ser dito dos animais em relao a ns.

    o que ele claramente nos diz:

    No existe no homem uma faculdade especial que lhe d simples e absolutamente, de maneira

    no discursiva, o conhecimento da verdade, se este conhecimento existe nele, segundo um hbito

    natural que chamamos inteligncia dos princpios.

    No existe no homem uma potncia distinta da razo, potncia esta que se chamaria intelecto,

    a prpria razo que chamamos de intelecto5.

    Maior clareza, impossvel. Santo Toms categrico: o homem no pode receber e

    processar o conhecimento a no ser por via sensitiva e, a partir da, ir subindo por uma

    escalada abstrativa at chegar ao conhecimento qiditativo, estando vedada nossa

    inteligncia a apreenso simples e direta da qididade dos seres, ato esse prprio da

    potncia intelectual anglica. Os atos racionais e os atos intelectuais so diferentes e

    precisam, para serem exercidos, de potncias distintas que o homem no possui: o ato da

    razo que consiste em circular e o do intelecto que o da simples apreenso da verdade

    esto relacionados entre si como est a gerao e a existncia, o movimento e o repouso6.

    Seria angelismo procurarmos dotar ao homem daquilo que somente os anjos

    possuem. O repouso prprio das operaes exclusivamente imateriais, espirituais, o

    conhecimento racional humano no capaz disso, ao menos imediatamente7. Para

    dito acima, clarssimo que Toms de Aquino no admite uma outra potncia anmica no homem que no seja a da racionalidade. 5 Op. Cit. P. 37. 6 Op. Cit. P. 39. 7 Uma das diferenas mais gritantes entre intelecto e razo precisamente o fato de: o intelecto designa um conhecimento simples e absoluto. Com efeito, no dizemos de algum que ele intelige porque l, de alguma maneira, a verdade, no interior da essncia mesma da coisa? Pelo contrrio, a razo designa uma espcie de movimento discursivo pelo qual a alma humana se aplica ou passa a um conhecimento. Op. Cit. P. 33. O

  • 9

    chegarmos ao conhecimento das qididades dos seres temos que comear por alguma

    informao sensitiva existente, portanto, se faz necessrio para nosso conhecimento um

    espao a ser percorrido e um tempo a ser executado, j que no temos conhecimento por

    simpatia, no possumos acesso imediato as qididades dos seres que, fato sabido,

    ignoramos8.

    Na perspectiva tomista, o homem conhece atravs do movimento de seus sentidos e

    de sua razo, juntando peas distintas, sensaes dispares, e concebendo conceitos

    correlativos as sensaes percebidas9.

    Teramos ento, para Toms de Aquino, a seguinte escalaridade cognitiva:

    1 Os sentidos que conhecem as formas na matria;

    2 A imaginao que conhece as formas imateriais, desmaterializando, por assim

    dizer, a sensao, mas no as determinaes da matria. Neste nvel no temos informaes

    materiais, por estarmos na imaginao, faculdade imaterial. O que temos so as species das

    coisas conhecidas sensorialmente e que agora esto contidas na imaginao, mas esta, no

    abstrai os acidentes, ou as determinaes materiais com as quais os seres se revestem

    inevitavelmente, da que na imaginao conhecemos os seres imaterialmente, mas no

    desprovidos de suas determinaes materiais;

    3 A razo humana que conhece a forma essencial dos seres, sem matria alguma,

    sem nenhum trao de individualidade, da dizermos que conhecer conhecer o universal e

    que no existe cincia do particular.

    Assim, seguindo o esquema traado acima, no temos a possibilidade de conferir ao

    homem uma potencialidade que exterior sua natureza decada e, portanto, no

    possumos em ns o intelecto e suas operaes.

    Mas aqui uma objeo poderia aparecer. No momento final da escalada cognitiva

    ns homens, tambm no chegamos, por uma via tortuosa, certo, ao conhecimento

    qiditativo dos seres? E isso no seria precisamente afirmar que tambm possumos o

    intelecto no precisa de informaes sensitivas, vai direto as qididades, a razo discursiva, move-se do mais grosseiro ao mais sutil, do individual ao universal e assim por diante. 8 o que textualmente ele nos diz quando afirma que: prprio ao conhecimento humano a particularidade de comear pelos sentidos e imagens. Op. Cit. P. 45. 9 O que no , de maneira alguma, o caso dos anjos. Com efeito, os anjos possuem uma inteligncia deiforme e por isso conhecem os seres e suas verdades por participao na divina sabedoria. Os anjos conhecem sem movimento algum, de maneira exttica, precisamente por serem substncia espiritual. O homem conhece por movimento, compondo e dividindo, por ser uma substncia racional.

  • 10

    intelecto anglico que conhece, ainda que imediatamente, as qididades dos mesmos seres?

    Respondo dizendo que para Toms todo conhecimento intelectual conhecimento imaterial

    de uma qididade e, portanto, assemelha-se como resultado final tanto ao conhecimento

    humano quanto ao anglico, o que no significa que conheamos da mesma forma nem que

    utilizemos o mesmo processo e a mesma fonte de informao.

    Tratamos acima da posio de Toms a respeito da presena em ns da potncia

    intelectual e de suas operaes10, passemos agora a esmiuar se, para ele, podemos dizer

    que a razo superior e a razo inferior so duas razes que possumos em nossa mente ou

    no.

    II

    A natureza da alma racional possui poderes no tocante ao domnio da natureza sensitiva ou

    vegetativa, mas no sobre o que diz respeito natureza intelectual que lhe superior.

    Santo Toms de Aquino.

    Vimos claramente, no tpico anterior, que no existe no homem, ao menos como

    potncia anmica, o intelecto, cabendo a ns apenas a razo discursiva. Discutiremos agora

    se a razo pode, na perspectiva tomista, subdividir-se em razo superior e razo inferior.

    No segredo algum que Toms dialoga o tempo inteiro com Agostinho. No que

    tange ao problema da razo superior e inferior o Aquinate, conservando a terminologia

    proposta pelo mestre de Hipona, posiciona-se a seu modo diante desta questo to

    importante.

    Para ele existe uma nica potncia cognitiva no homem, que pode desdobrar-se

    segundo os objetos visados por ela: evidente que razo superior e inferior no designam

    potncias diferentes, mas uma nica e mesma potncia que se presta diversamente em

    10 No se engane o estimado leitor que lendo em Toms em variados trechos de seus escritos o termo intelecto que Toms de Aquino em algum momento de seu pensamento tenha abandonado a posio aqui anunciada. Para ele quando usamos a palavra intelecto razo que estamos referindo como que a um sinnimo.

  • 11

    situaes diversas.11 As situaes diversas referidas nas palavras de Toms so,

    precisamente, a diversidade de seres e de suas respectivas gradaes na hierarquia da

    criao que faz com que nossa razo se desdobre. Com efeito, ao exercermos a nossa

    faculdade cognitiva para os seres inferiores ao homem, no precisamos mais que a razo

    que compe e divide para conhecer imaterialmente aquilo que nos inferior. J quando nos

    reportamos a seres superiores a ns, como o caso expresso de Deus, com a razo

    superior que o fazemos. Trata-se aqui muito mais de uma diferenciao de objetos de

    conhecimento de uma mesma potncia que duas potncias cognitivas operando no interior

    da mente humana.

    Mas o que seria precisamente a razo superior e a razo inferior? Quais suas

    caractersticas? Quais suas operaes? o que tentaremos responder a seguir.

    Em primeiro lugar, tentemos abordar o fato de que se temos uma nica potncia

    racional, o que faz com que ela se bifurque em seu exerccio? Para Toms isso muito

    simples de ser resolvido. Basta levarmos em conta que uma potncia para passar do estado

    de potncia ao ato tem que se conformar ao seu ato como a seu termo e quando este ato

    dirige-se a seres inferiores ao homem suas funes adaptam-se a tais atos:

    Toda potncia da alma quer seja ela ativa ou passiva, relaciona-se ao seu ato como a seu fim.

    [...] Por conseguinte, cada potncia possui sua maneira de ser especfica, em funo das possibilidades

    de adaptao a tal ato. Da o porque de as potncias se diversificarem na proporo que a diversidade

    dos atos exigirem princpios diversos em vista de emiti-los. De outra parte, o objeto sendo para o ato

    como que um termo e os atos sendo especificados pelos seus termos segundo o livro V da fsica,

    necessrio que os atos se distingam tambm segundo os objetos e, por conseguinte, a diversidade dos

    objetos determine a das potncias12.

    Do acima dito fica claro que o ato cognitivo humano voltado para os seres que lhe

    so inferiores determina a maneira como utilizaremos a nossa potncia cognitiva. Da

    denominarmos a operao cognitiva desta operao como sendo realizada pela razo

    inferior. Mas se a natureza dos objetos pode diferenciar uma operao cognitiva ad extra, o

    mesmo no ocorre ad intra j que no nvel puramente imaterial a diferenciao no

    determinada pelos objetos, mas por suas formas. Com efeito, Toms de Aquino nos ensina

    11 Op. Cit. P. 67. 12 Op. Cit. P. 61.

  • 12

    que podem existir diferentes tipos de atos: os atos podem ser fsicos tais como os de ouvir,

    cheirar, degustar etc. ou formais que se destinam no matria, mas s suas determinaes

    formais e a precisamente onde aparece a diviso das potncias em intelectual e volitiva

    dado que para o conhecimento da verdade o ato formal requerido o da potncia intelectual

    e para a realizao do bem o ato formal requerido o da potncia volitiva:

    Quanto parte da alma que em suas operaes no se utiliza de rgos corporais, ela

    permanece indeterminada e de uma certa maneira infinita, na medida em que imaterial, sua

    competncia estende-se ao objeto comum a todos os seres. por isso que dizemos que o objeto da

    inteligncia essa qualquer coisa (esse quid) que se encontra em todo gnero de ser o motivo pelo

    qual o filsofo declara: o intelecto aquilo pelo qual somos capazes de tudo fazer e de transformar-se

    em tudo. No , portanto, possvel, na parte intelectiva, de se fundar uma distino de potncias sobre

    uma diferena de natureza entre os objetos, mas somente sobre uma diviso formal dos objetos, na

    medida precisa em que o ato da alma pode direcionar-se para uma s e mesma realidade sob pontos de

    vistas diversos. por isso que na parte intelectual a verdade fundamenta a diferena da inteligncia e

    da vontade. Com efeito, a inteligncia dirige-se ao verdadeiro inteligvel como para uma forma, visto

    que a inteligncia deve ser informada do que o objeto de inteleco, enquanto a vontade dirige-se ao

    bem como a um fim, o que fez dizer o filsofo, Metafsica livro VI, que a verdade encontra-se no

    esprito e o bem nas coisas a forma sendo intrnseca e o fim extrnseco13.

    Sendo assim, para atos formais diferentes, potncias anmicas diferentes so

    requeridas. Enquanto no seio da mesma potncia, no caso a potncia cognitiva humana,

    podemos dizer que existe uma diferenciao de acordo com as distines dos objetos.

    Cada ato determinado pela fora de seu objeto e o objeto do intelecto :

    Essa qualquer coisa, como dito no livro III da alma, e, por conseguinte, o intelecto estende

    sua ao to longe quanto pode estender. Ora, precisamente o caso dos primeiros princpios que

    primeiramente tornam-se conhecidos: isso adquirido continuamos o raciocnio e chegamos ao

    conhecimento das concluses. Aristteles denomina cientfico este poder que o mesmo de concluir

    resolutivamente a qididade. Mas existem realidades que no permitem uma resoluo chegue a

    qididade e isto por causa de sua indeterminao ontolgica o caso das realidades contingentes

    enquanto contingentes14.

    13 Op. Cit. P. 63. 14 Op. Cit. P. 69.

  • 13

    No podemos ter um conhecimento cientfico das realidades particulares, da no

    podermos ter um conhecimento qiditativo dos contingentes enquanto contingentes. Neste

    caso nosso conhecimento opinativo, no cientfico.

    Tendo clarificado de vez a posio de Toms de Aquino no tocante razo superior

    e inferior resta-nos sublinhar que, para ele, as operaes cognitivas que cabem ao homem,

    foram afetadas pela queda, conseqncia direta do pecado de nosso primeiro pai. Assim:

    Se bem que a razo superior no esteja em contato imediato com a carne, entretanto, a

    corrupo da carne a atinge na medida onde as potncias superiores recebem das potncias

    inferiores.15 o erro supremo dos platonismos de todos os matizes, o de recusarem-se a

    ver o homem em sua presente condio, que se encontra ferida, e com ela enfraquecida em

    todas as suas potncias e operaes.

    O realismo do diagnstico nos leva a um realismo de nossa situao e de nossas

    possibilidades deixando de lado toda e qualquer referncia a utopias e desvarios to

    prprios do homem contemporneo. um recado precioso e direto de um santo e sbio

    medieval para o homem de todos os tempos.

    15 Op. Cit. P. 123.

  • 14

    A noo de Tradio no cristianismo (I)

    O que foi desde o princpio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que miramos, e

    palparam nossas mos do verbo da vida. Porque a vida foi manifestada e ns a vimos, e damos dela

    testemunho, e ns vos anunciamos esta vida eterna, que estava no Pai e que nos apareceu a ns outros, o que

    vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que tambm vs tenhais comunho conosco, e que a nossa

    comunho seja com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo. E essas coisas vos escrevemos para que vos alegreis,

    e a vossa alegria seja completa.

    1 Joo 1-4.

    Na recente eleio de Sua Santidade o Papa Bento XVI vimos a imprensa torcer o

    nariz por sua eleio simplesmente pelo fato dele ser a garantia da manuteno do depsito

    da f catlica. Com Bento XVI a chance da Igreja modernizar-se" em sua doutrina so

    quase que nulas o que, evidentemente, mal visto por uma imprensa vida por novidades e

    que incapaz de compreender minimamente as realidades religiosas, seus contextos, seu

    tipo de pensamento e suas conseqncias prticas para os fiis que a ela aderem com toda

    firmeza e sinceridade de que so capazes.

    Tendo em vista esse quadro desolador achamos por bem explorar um conceito

    completamente esquecido pelo mundo ps-moderno, o conceito de Tradio. O que

    Tradio? Qual a sua importncia para o cristianismo? O que implica esta noo? E o que

    tentaremos desenvolver nesse artigo.

    I

    Carssimos, eu no vos escrevo um mandamento novo, mas sim os mandamentos velhos, que vs

    recebestes desde o princpio: este mandamento velho a palavra que ouviste desde o princpio.

    1 Joo 2, 7.

  • 15

    As palavras transcritas acima e que servem de epgrafe para a presente reflexo so

    a base mesma da noo de tradio para o cristianismo. Com efeito, no versculo jonico

    supracitado, salta aos olhos a importncia do princpio, no qualquer princpio, mas "aquilo

    que era desde o princpio", a prpria fonte da vida e do ser que est para alm de toda vida

    e de todo ser, eis o "princpio" a partir do qual toda e qualquer noo de tradio autntica

    apoia-se no cristianismo.

    A fidelidade ao princpio essencial a pensamento religioso, no se entende nada de

    religio se no se tem em mente essa noo. O pensamento religioso cristo fruto de uma

    revelao, e por isso recepo de algo que transcende a simples capacidade humana de

    produzir uma tal doutrina. Assim, a tradio comea a desvelar todo o seu contedo e

    importncia.

    Com efeito, s podemos falar de tradio no cristianismo quando nos atemos a um

    fato que trs as seguintes caractersticas:

    1 Trata-se de uma doutrina de origem no humana, que existe desde o princpio, que

    fonte da vida e do ser, obtida por revelao e que contm ensinamentos preciosos para a

    perfeio do homem16;

    2 Trata-se de uma doutrina essencial, atemporal, que no pode ser modificada em

    seu ncleo17 sob pena de falsificao no s da doutrina, mas do prprio homem que deixa

    de poder realizar-se plenamente como homem;

    3 Se uma doutrina de origem no humana nos comunicada para que ela seja

    guardada e retransmitida o que pressupe a fidelidade dos guardies da doutrina recebida

    prpria doutrina.

    Das trs caractersticas enumeradas acima podemos depreender algumas concluses

    importantes.

    Se a doutrina de origem no humana e que com a simples utilizao natural de

    nossas potncias anmicas no poderamos obt-la a venerao por tal ensinamento se faz

    necessria, da se explicar o devotamento religioso de populaes inteiras por seus escritos

    16 o que fica claro quando So Joo nos diz "que vossa alegria seja completa". Assim, somente com a fidelidade doutrina tradicional, a alegria do homem, a sua perfeio, poder ser completa. 17 O ncleo da tradio imutvel. O que passvel de mudana aquilo que muda com o tempo e que pode adaptar-se a ele sem nenhuma falsificao da doutrina. Exemplo disso a mudana ao longo do tempo da idade necessria para se receber a primeira comunho, mas no se mudou com isso a verdade sobre a Eucaristia.

  • 16

    sacros, j que sendo de origem divina, contm em si toda a verdade necessria para sermos

    homens em toda plenitude. Podemos agora compreender, em toda sua profundidade, o

    mandamento de se honrar Pai e Me: "honra a teu pai e a tua me, como te mandou o

    Senhor teu Deus, para viveres largo tempo, e para seres bem sucedido na terra que o Senhor

    teu Deus est para te dar.18

    Honrar Pai e Me ser fiel origem, ao princpio, e, sendo assim, seremos bem

    sucedidos na vida eterna que Deus nos prometeu. Mas essa fidelidade a uma doutrina, a um

    princpio, , propriamente, o que torna impossvel o dilogo entre o pensamento religioso e

    o homem moderno e ps-moderno, que desonrando Pai e Me acha que honra melhor a si

    mesmo, que sendo fiel s novidades estar cumprindo plenamente sua liberdade. E que os

    mundos moderno e ps-moderno baseiam-se no mais fidelidade a um princpio

    transmitido fielmente por tradio de gerao em gerao, mas que o mundo moderno,

    como revela sua etimologia o mundo da moda, do efmero, do transitrio e o que se quer

    precisamente poder escolher democraticamente princpios que guiaro o homem

    provisoriamente at que se elejam outros que sero substitudos quando, por sua vez, estes

    caducarem.

    A tradio possui tambm, uma unidade de pensamento, um delineamento preciso

    de caractersticas que a faz profundamente identitria, e, consequentemente faz dos seus

    fiis portadores desta mesma identidade, fato esse abominvel aos olhos do homem

    contemporneo que sente verdadeira ojeriza por qualquer identidade bem definida19.

    A tradio no identificvel com seu portador, no assimilamos uma tradio,

    assimilamos uma ideologia no uma tradio espiritual autntica. O homem vive pela e na

    tradio, no se torna a tradio como ocorre na identificao mimtica a uma ideologia

    poltica, religiosa ou filosfica que pertencem mais propriamente ao domnio das patologias

    psquicas humanas que a um pleno desenvolvimento espiritual do homem20.

    Tradio deste modo identidade na alteridade, no somos a tradio, mas apenas

    orientados por ela. Aqui vemos claramente que uma tradio espiritual autntica est para

    18 Deuteronmio 5, 16. 19 Qualquer fidelidade a uma doutrina religiosa , hoje em dia, simplesmente, rotulada de fanatismo. 20 As ideologias contemporneas so frutos do que poderamos nomear como contra-tradio, fruto do decaimento de uma doutrina espiritual em pseudodoutrinas de cunho psicolgico e sentimental sem nenhum compromisso com a verdade essencial do homem. O homem que se submete a uma ideologia escravo dela, e

  • 17

    alm de todo individualismo, posto que, a tradio remete ao supra individual, a que

    transcende mera subjetividade e ao mesmo tempo desvia-se de todo coletivismo j que a

    adeso mimtica a um modelo totmico qualquer o anverso do pensamento tradicional j

    que a identidade pessoal deve ser preservada e elevada sua perfeio pela tradio21.

    Por fim, a tradio intermediadora. Sim! A tradio elo que liga o homem ao

    princpio, seja atravs de uma doutrina sagrada, seja atravs da objetivao desta doutrina

    em uma instituio que seria a guardi do depsito desta mesma doutrina.

    no Senhor de si mesmo. Um catlico adepto da teologia da libertao muito mais passvel de fanatismo poltico do que portador da paz espiritual herana legtima que o proprio Cristo nos deixou.

  • 18

    A msica sacra segundo So Pio X22

    Ressoe os salmos no sbrio banquete: e, como tens memria tenaz e voz canora, assume esse ofcio

    segundo o costume em moda: a pessoas a ti carssimas ofereces maior nutrimento se da nossa parte houver

    uma audio espiritual, e se a doura religiosa deleitar o nosso ouvido.

    So Cipriano.

    Com a revoluo litrgica operada pelo conclio Vaticano II, o Papa Paulo VI, com

    um nico golpe, destruiu, ao mesmo tempo, o carter sacrificial da santa missa e aboliu

    todo e qualquer sinal de sagrado na mesma liturgia.

    A liturgia catlica, culto sacratssimo e digno dos mais altos louvores, sofreu com

    isso um duro revs, e, como conseqncia desse duro golpe, assistimos a uma verdadeira

    invaso, sem igual em dois mil anos de histria do cristianismo, do profano nos lugares e

    aes sagrados.

    Como efeito vimos o sacerdote reduzir-se a um mero presidente da assemblia e,

    com ele, todo carter transcendente do culto catlico esvair-se. Quanto msica litrgica o

    desastre completo.

    Em primeiro lugar, verificamos que o que ocorre na missa nova que a msica, que

    nem necessrio dizer completamente profana e de um sentimentalismo sem igual,

    comanda a liturgia o que claramente contraria a recomendao de so Pio X no motu

    proprio que hora estudamos: condenvel, como abuso gravssimo, que nas funes

    eclesisticas a liturgia esteja dependente da msica, quando certo que a msica que

    parte da liturgia23.

    21 Liberalismo e socialismo so perverses, conscientemente elaboradas, das verdades crists a ponto de Chesterton ter dito que o mundo moderno ser o resultado das "virtudes crists tornadas loucas". 22 Notas sobre a doutrina da msica sacra referente ao Motu Proprio Tra Le Sollecitudini. 23 So Pio X. Motu Proprio Tra Le Sollecitudini. In: Documentos sobre a msica litrgica. Editora Paulus. So Paulo. 2005. P. 21.

  • 19

    Depois, o carter da msica nada mais possui de sagrado e isso se evidencia tanto

    pela estrutura interna da msica quanto pelos instrumentos musicais utilizados24.

    Mas deixemos de lado as aberraes sadas do conclio Vaticano II e atenhamo-nos

    aos ensinamentos salutares emanado do magistrio eclesistico de antes do malfadado

    conclio.

    So Pio X, o ltimo Papa santo, foi o homem da tradio por antonomsia nos anos

    iniciais do sculo XX. Sua ao benfica em prol da manuteno da doutrina tradicional da

    Igreja certamente uma das glrias de seu pontificado. Neste artigo, no trataremos deste

    assunto, mas vamos nos ater a seu ensinamento especfico sobre a msica sacra.

    Como legtimo bom pastor, So Pio X, comea seu motu proprio sobre a msica

    sacra lembrando que uma de suas principais ocupaes precisamente a de:

    Entre os cuidados do ofcio pastoral, no somente desta Suprema Ctedra, que por

    inescrutvel disposio da Providncia, ainda que indigno, ocupamos, mas tambm de todas as Igrejas

    particulares, e, sem dvida, um dos principais o de manter e promover o decoro da Casa de Deus,

    onde se celebram os augustos mistrios da religio e o povo cristo se rene, para receber a graa dos

    Sacramentos, assistir ao Santo Sacrifcio do altar, adorar o augustssimo Sacramento do corpo do

    Senhor e unir-se orao comum da Igreja na celebrao pblica e solene dos ofcios litrgicos. Nada,

    pois, deve suceder no templo que perturbe ou, sequer, diminua a piedade e a devoo dos fiis, nada

    que d justificado motivo de desgosto ou de escndalo, nada, sobretudo, que diretamente ofenda o

    24 fato conhecido por todos que nas igrejas catlicas, a partir da revoluo litrgica do Vaticano II, vemos, e ouvimos, lamentavelmente, a liturgia ser acompanhada, quando no dirigida, por baterias, guitarras eltricas e outros instrumentos expressamente proibidos por So Pio X em seu motu proprio: proibido, na igreja, o uso do piano bem como de instrumentos fragorosos, o tambor, o bombo, os pratos, as campainhas e semelhantes.

    rigorosamente proibido que as bandas musicais toquem nas igrejas, e s em algum caso particular, com o consentimento do ordinrio, ser permitida uma escolha limitada, judiciosa e proporcionada ao ambiente de instrumentos de sopro, contanto que a composio seja em estilo grave, conveniente e semelhante em tudo s do rgo. So Pio X. Op. Cit. P. 20.

    Tal proibio no advm simplesmente de uma mente conservadora que se recusa a dialogar com seu tempo, ao contrrio, fruto da convico de uma mente retamente constituda de que somente deve ser digno de se manifestar no mundo fsico quilo que corresponde a um princpio metafsico quanto mais naquilo que tange s realidades sagradas e, tais princpios metafsicos devem ser apontados pela razo e pelo ensinamento magisterial da Igreja.

    Quando tais normas no so obedecidas, como acontece presentemente um pouco por todo o mundo, o que encontramos o contrrio do pretendido pela Igreja em seu ensinamento. Com efeito, ao adentrarmos em qualquer igreja catlica contempornea o que escutamos uma cacofonia de sons fruto da anterior cacofonia de crenas advindo do abandono da metafsica tradicional da Igreja e substituio arbitrria desta por uma adaptao equivocada ao mundo moderno feita geralmente s pressas e de qualquer maneira.

  • 20

    decoro e a santidade das sacras funes e seja por isso indigno da Casa de Orao e da majestade de

    Deus25.

    E em virtude de sua autoridade apostlica relembra aos fiis do mundo inteiro qual

    seriam os princpios gerais, atravs dos quais, poderamos considerar uma msica como

    sendo sacra:

    1 A msica sacra participando da liturgia participa de seus fins, quais sejam: a glria

    de Deus e a santificao dos fiis26;

    2 A msica sacra deve manter o decoro e esplendor das sagradas cerimnias

    aumentando a eficcia dos textos levando os fiis piedade e preparando-os melhor para os

    frutos da graa27;

    3 A msica sacra deve possuir santidade e delicadeza de forma; 28

    4 A msica sacra deve ser universal29.

    Os critrios so simples e lmpidos e de uma eficcia totalmente comprovada

    quando retamente aplicada. Dados os critrios, So Pio X, indica o canto gregoriano como

    sendo a msica que melhor rene estas caractersticas e prope-na como modelo:

    Estas qualidades encontram-se em grau sumo no canto gregoriano, que por conseqncia o

    canto prprio da Igreja Romana, o nico que ela herdou dos antigos Padres, que conservou

    cuidadosamente no decurso dos sculos em seus cdigos litrgicos e que, como seu, prope

    diretamente aos fiis, o qual estudos recentssimos restituram sua integridade e pureza. Por tais

    motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como modelo supremo da msica sacra, podendo,

    com razo, estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composio religiosa ser tanto mais sacra e

    litrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspirao e sabor da melodia gregoriana, e ser

    tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo30.

    25 Op. Cit. P. 13. 26 Op. Cit. P. 15. 27 Op. Cit. P. 15. 28 Op. Cit. P. 15. 29 Op. Cit. P. 16. 30 Op. Cit. P. 16.

  • 21

    Desta forma, vemos claramente, que tudo na Igreja catlica deve levar em

    considerao o crivo da forma catlica que deve, precisamente, informar31 toda e

    qualquer realidade tocada pelas mos da Igreja.

    Torna-se claro aqui que a Igreja no deve inculturar-se, mas sim, ao contrrio, deve

    ser ela a dirigir a cultura, fato esse completamente invertido contemporaneamente. Com

    efeito, quando a igreja informou a cultura, e a evidentemente incluem-se as artes em

    geral, e a msica em particular, como aconteceu muitas vezes no passado o que vimos foi

    uma elevao do homem a Deus. Quando o contrrio aconteceu, ou seja, quando a Igreja

    fez-se mundana, o homem se rebaixou e a Igreja arca da salvao ao invs de salv-lo

    elevando-o afundou com ele no pntano das mais espantosas vilezas de alma.

    31 Informar aqui entendido no sentido que a filosofia escolstica a toma, qual seja, a de dar formar a uma realidade material que antes dela encontrar-se-ia amorfa. A forma catlica seria, por conseguinte, o esprito que deve animar toda e qualquer ao cumprida sobre sua gide.

  • 22

    O Affaire Maurice Allais

    A experincia demonstra que a opinio dos homens "competentes" est em constante desacordo com

    a realidade, e a histria da cincia a histria dos erros dos homens "competentes".

    Vilfreto Pareto.

    Hoje em dia quando pensamos em um cientista, logo nos vem a mente um senhor

    vestido de jaleco branco, de aparncia meio amalucada, de olhar inteligente e mente aberta.

    De todas as caractersticas acima enumeradas deixemos aquelas que fazem parte do

    inevitvel folclore a que nosso imaginrio ps-moderno recorre quando falamos de uma

    atividade, crena ou pessoa que acederam s instncias do mito, como o caso evidente da

    cincia e dos cientistas contemporneos, e retenhamos apenas a ltima que deveria

    caracterizar a atitude inequvoca do sbio perante o mundo que o cerca e as teorias

    cientficas elaboradas para explic-lo.

    De fato, a cincia moderna caracterizou-se pelo seu combate sem trguas contra os

    dogmas. No seu nascedouro o combate era contra os dogmas religiosos que, segundo os

    cientistas de ento, obnubliavam suas pesquisas engessando-as a priori em dados

    metafsicos incontornveis, o que retratava o famoso dito de Galileu: "no quero saber

    como se vai para o cu, mas como vai o cu" indicando aqui, claramente, qual seria as

    fronteiras legtimas, segundo ele, da pesquisa cientfica dos dogmas da religio.

    Vamos tambm, neste escrito, deixar de lado os problemas suscitados por essa

    demarcao. O que nos interessa nesse artigo no a relao entre cincia moderna e

    religio tradicional, mas a relao interna da perspectiva cientfica contempornea e teorias

    divergentes sobre "como vai o cu" do dito de Galileu.

  • 23

    Com efeito, Galileu pensava que matematizando as cincias naturais poderamos

    traar um caminho seguro de "como vai o cu32" e a mediocridade positivista s acentuou o

    grau de miopia dessa viso.

    Quando comeamos a analisar com maior cuidado a histria da cincia moderna o

    que vemos no essa abertura de esprito que tanto se propaga, muito menos a total

    ausncia de dogmas no domnio das pesquisas cientficas. O contrrio sim o que se

    verifica. A histria da cincia moderna um amontoado inacreditvel de falsos dolos, de

    dogmas inquestionveis e de estreiteza de pensamento que somente podemos encontrar

    paralelo em grupsculos fanticos de fundamentalistas religiosos que a cincia sempre

    condenou e s vezes identificava pejorativamente com o comportamento religioso tout

    court.

    Com essas palavras no queremos cometer com a cincia e cientistas o erro que eles

    cometeram com a religio e religiosos. No jogaremos no mesmo balaio de gatos toda a

    cincia e todos os cientistas pelo fato de haver entre eles pessoas dogmticas e de mente

    obtusa que se recusam a mudar de opinio mesmo quando a realidade teima em lhes

    oferecer dados inequvocos de que suas teorias esto erradas.

    sobre um triste affaire da cincia contempornea que trataremos nas pginas que

    seguem. Trata-se do affaire que envolve um cientista de qualidade excepcional, Maurice

    Allais (1911-), nico francs at a presente data a ser laureado com o prmio Nobel de

    economia, ou seja, no estamos tratando com algum desconhecido ou de competncia

    cientfica duvidosa, mas de algum que reconhecido pelos seus prprios pares como um

    insigne representante do que h de melhor na cincia contempornea.

    O affaire em que ele se envolveu, ao contrrio do que se possa supor no tem

    relao direta, com economia, mas com a fsica relativista e com a cosmologia advinda

    desta teoria. Sim! Maurice Allais, alm de excelente economista tambm um excepcional

    fsico, mas para desespero, ou desprezo, da academia ele fsico autodidata, nunca integrou

    quadro de nenhum departamento de fsica de nenhuma universidade ou instituio de

    32 Um exemplo claro de caminhos divergentes que levam ao mesmo resultado, levando-se em considerao apenas o ponto de vista matemtico, est no clssico exemplo da querela autoral sobre o clculo infinitesimal entre Newton e Leibniz. Provavelmente os dois desenvolveram suas tcnicas de clculo desconhecendo o que o outro fazia e chegaram por meios diferentes a um resultado idntico. Somente a miopia positivista pode postular um acordo inquestionvel sobre resultados e mtodos na cincia.

  • 24

    pesquisa reconhecida, o que por si s j suficiente para torn-lo suspeito aos olhos de uma

    academia enrijecida em seus mtodos e hbitos33.

    Passemos ento para os dados deste triste affaire para que depois possamos retirar

    algumas concluses a respeito das questes envolvidas.

    II

    Status Questionis

    A histria das cincias mostra que o progresso da cincia foi constantemente entravado pela

    influncia tirnica de certas concepes que acabamos por considerar como dogmas. Por essa razo,

    convm submeter, periodicamente, a um exame aprofundado os princpios que acabamos por admitir sem

    maiores discusses.

    Louis de Broglie

    Maurice Allais largamente conhecido do pblico culto como um economista de

    exceo, mas raros so aqueles que conhecem sua atividade bissexta de pesquisador no

    domnio da fsica, sobretudo nos domnios da mecnica e da tica, bem como nos dos

    problemas relativos transmisso das aes distncia e da influncia do movimento da

    terra sobre s fenmenos terrestres.

    Toda a sua pesquisa nos domnios supracitados tem como objetivo aprofundar uma

    intuio originria, qual seja, a de que:

    a propagao das aes de gravitao e das aes eletromagnticas efetuam-se passo a passo e

    que portanto, encontra-se implicada a existncia de um meio intermedirio, o ter de Fresnel e dos

    fsicos do sculo XIX, sem que, portanto, devssemos admitir, como era admitido no sculo XIX, que

    33 A mentalidade acadmica s vezes to refratria ao real que o cientista francs Louis Rougier um dos raros defensores de primeira hora de seu colega Maurice Allais, chegou a dizer o seguinte: "freqentemente perguntei-me, ao longo de minha carreira, se na universidade e nas altas escolas amvamos verdadeiramente a inteligncia.

  • 25

    todas as partes deste meio encontrem-se perfeitamente imvel umas em relao s outras e

    notadamente em relao s estrelas fixas34.

    Para quem conhece minimamente os postulados da fsica relativista, sabe que a

    simples conjetura de que o ter possa existir j se constitui de per si em um afronta grave

    teoria de Einstein que mandou para o depsito de velharias toda e qualquer afirmao neste

    sentido. Mas eis que um pesquisador corajoso, cujo nico compromisso sempre foi o da

    mais estrita obedincia verdade dos fatos, coloca em questo o interdito relativista. O

    resultado no poderia ser outro a recusa a priori de toda e qualquer anlise dos resultados

    obtidos pela pesquisa feita sob tal pressuposio. De fato, para muitos cientistas colocar em

    dvida alguma afirmao de Einstein significaria mais que erro cientfico crime de lesa

    majestade.

    Mas voltemos aos dados da pesquisa. Partindo da convico afirmada acima

    Maurice Allais arquitetou o seguinte raciocnio: se existe tal meio intermedirio um campo

    magntico pode corresponder rotao local de tal meio. E se tal suposio fosse

    verdadeira ele poderia estabelecer uma ligao inequvoca entre gravitao e magnetismo.

    Para tanto observou a ao do campo magntico sobre o movimento de um pndulo de dois

    metros que terminava em uma bola de vidro. Tal movimento foi estudado, a princpio, na

    ausncia de toda a influncia de campo magntico que no o terrestre e para grande

    surpresa de Allais:

    Constatei que este movimento no se reduzia ao efeito de Foucault, mas que apresentava

    anomalias muito importantes e variaes com o tempo relativamente a este efeito. o estudo destas

    anomalias imprevistas que constituiu o objeto essencial de minhas experincias de 1954 a 196035.

    E sobre estes efeitos que se apiam todo o affaire Maurice Allais. Os dados so

    impressionantes; a periodicidade diurna lunar obtida pelo experimento era da ordem de 24

    h 50 mn, a ordem da diferena com as teorias admitidas era de simplesmente entre 20 e 100

    milhes de vezes. Tal dado no pode ser desconsiderado pelas teorias vigentes, mas o

    foram por puro dogmatismo terico.

    34 Allais, Maurice. L'anisotropie de l'espace. Les donnes de l'experience. Editins Clement Juglar. Paris. 1997. P. 44. 35 Allais. Op. cit. P. 44.

  • 26

    Mas como Allais explica esta gigantesca anomalia? Ele o faz respondendo que "as

    experincias realizadas sugeriam a existncia a cada momento de uma direo de

    anisotropia do espao36". Postular a anisotropia do espao simplesmente colocar a baixo

    todo o edifcio relativista e precisamente por esse fato que suas experincias foram

    negadas a priori.

    Na repetio da experincia quando dos eclipses totais do sol ocorridas em 30 de

    junho de 1954 e em 2 de outubro de 1959 novamente resultados surpreendentes foram

    obtidos que levaram Allais a constatar a: "existncia de uma direo de anisotropia do

    espao varivel com o tempo deduzida das observaes do pndulo paracnico de suporte

    isotrpico37". O resultado era evidente, a periodicidade lunisolar era totalmente disparatada

    com a da at ento admitida.

    Os resultados das observaes de Maurice Allais foram todos remetidos academia

    de cincia da Frana na forma de oito notas apresentadas a Albert Caquot e duas notas

    apresentadas a Joseph Kamp de Friet38. Como resultado prtico destas notas varias visitas

    de eminentes cientistas franceses foram realizadas aos dois laboratrios onde ocorriam as

    experincias de Allais, tendo ele sido convidado a proferir trs conferncias sobre suas

    investigaes no Cercle Alexandre Dufour39.

    Outro sinal significativo da seriedade das pesquisas foi o fato de Allais ter ganhado

    os prmios Galabert de 1959 conferido pela sociedade francesa de astronutica e o prmio

    americano da Gravity Research Foundation tambm em 1959.

    Mas quem pensar que com tantos sinais notrios de seriedade das pesquisas

    efetuadas e que a promessa de resultados ainda mais surpreendentes estariam por vir

    facilitasse a vida desse sbio cometeu um erro crasso. Allais foi instigado a abandonar suas

    36 Op. Cit. P. 49. 37 Op. Cit. P. 49. 38 Allais. Op. cit. P. 51. 39 As trs conferncias pronunciadas por Allais foram: 1 "Faut-il reconsidrer les lois de la gravitation? Sur une nouvelle exprience de Mcanique". Proferida no dia 22 de fevereiro de 1958 no anfiteatro Henri Poincar da escola politcnica; 2 "Faut-il reconsidrer les lois de la gravitation? Nouveaux rsultats, bilan et perspectives". Proferida em 7 de novembro de 1959 na sociedade dos engenheiros civis da Frana; 3 "Les priodicits constates dans le mouvement du pendule paraconique sont-elles relles ou non? Gneralisation du test de Schuster au cas de sries temprelles autocorrles'. Proferida no dia 18 de maro de 1967*. *Fonte Allais, op. cit. P. 52.

  • 27

    pesquisas em 1960, pois todos os institutos de pesquisas franceses recusaram-se a financiar

    a continuidade das experincias to carregadas de promessas.

  • 28

    Uma outra modernidade possvel?

    A Devotio Moderna

    Florent Radewijns

    O mundo moderno comeou no dia em que os idiotas descobriram que eram a maioria.

    Nelson Rodrigues.

    Falar mal da modernidade tornou-se lugar comum40. Nada mais fcil, para um

    esprito religioso, do que constatar que o mundo moderno , de certa forma, uma aberrao

    em meio a todas as culturas de todos os povos, e isso em qualquer tempo. No mistrio

    para ningum, que todas as culturas at hoje constitudas, salvo a precisa exceo da cultura

    moderna, o foram por meio de princpios metafsicos41.

    Essas culturas retiravam no do mundo material, e muito menos do homem em sua

    dimenso meramente corporal, seus princpios norteadores, mas todas elas em seus mitos

    fundadores tinham em comum o fato de que os princpios sob os quais elas se apoiavam

    referirem-se no ao hic et nunc, mas a atemporalidade ou, como muito bem ressaltou

    Mircea Eliade42, seus princpios referiam-se a um in illo tempore, tempo mtico, das origens

    no qual o que contava no era o mundo em sua espessura material, mas, ao contrrio, a

    revelao do esprito.

    Nada de similar aconteceu com a cultura e o mundo modernos, posto que este j em

    seu nascedouro advogava sua auto-suficincia, sua revolta e fechamento a qualquer

    referncia ao transcendente, estabelecendo-se contra tudo e todos que representassem algo

    40 Existem primorosas anlises do mal que afligem o mundo moderno, de sua inanio metafsica e espiritual e dos remdios salutares a serem aplicados para sua cura e restabelecimento em princpios slidos e sadios. Tais anlises foram feitas por espritos argutos e no se restringiram a autores catlicos, se bem que a eles que nos reportamos nestas linhas. De fato, autores dos mais diversos matizes levantaram sua voz contra o mundo moderno basta citar o caso de Ren Guenon. 41 esta precisamente a tese advogada pelo filsofo tomista belga Marcel de Corte (1905-1994) no seu belo e fundamental livro: essai sur la fin dune civilization. ditions Remi Perrin. Paris. 2001.

  • 29

    de superior deusa razo, e isso a priori. E nesse sentido que podemos entender a revolta

    do homem moderno contra a Igreja catlica, precisamente, por esta representar a seus

    olhos, a instituio mais visvel e palpvel que ligaria o homem ao invisvel e impalpvel

    que Deus e o prprio esprito humano.

    Desta forma, fica muito fcil atacar, ao menos na perspectiva da metafsica perene,

    um mundo concebido no sob os slidos fundamentos metafsicos das culturas tradicionais,

    mas improvisado sobre os caprichos, sonhos e iluses do homem e do mundo.

    Feita a constatao, gostaramos de sublinhar que est no ser a nossa perspectiva

    nessa srie de artigos sobre a devotio moderna, ao contrrio, partirei da constatao de que

    se a moeda falsa existe, sinal seguro de que a moeda verdadeira tambm existe e,

    portanto, se o mundo moderno falso isso no significa que toda e qualquer modernidade

    tambm o seja.

    precisamente este o caso que estudaremos a seguir, mostrando que tambm existe

    uma certa modernidade, no caso a advogada pela devotio moderna, que pode sim estar

    firmemente ancorada na tradio da Igreja catlica.

    I

    A Devotio Moderna

    S verdadeira a cincia que abraamos para agir.

    Santo Agostinho

    A devotio moderna nasceu nos pases do norte europeu em pleno sculo XIV,

    sculo de decadncia moral impressionante. surpreendente saber que os devotos

    modernos nascem precisamente para se contraporem a essa decadncia da alma ocidental.

    E como eles julgavam que poderiam fazer frente a esta decadncia? Combatendo-a

    pela via da denncia, pelo dio perseguidor, instaurando um terror religioso qualquer? No!

    O carter da devotio moderna repousa muito mais em um desejo ardente de autenticidade

    42 Antroplogo e historiador das religies romeno, naturalizado norte americano. 1906-1986.

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    interior e de pureza de corao do que em fanfarronices persecutrias to presente nos

    espritos pseudotradicionalistas e de pendores farisaicos de todos os tempos.

    Os devotos modernos43, tinham como ideal de vida no o engajamento religioso

    atravs da profisso de votos, mas sim pela imitao da vida dos apstolos e da Igreja

    primitiva para se chegar de uma maneira mais rpida e segura fonte nica da verdadeira

    santidade, Jesus Cristo. Para tanto, escolheram uma vida de profunda pobreza exterior a

    ponto de serem confundidos pela populao com os mendigos que deambulavam pelas ruas

    do norte da Europa de ento. Mas esta pobreza exterior estava firmemente ancorada na

    humildade interior, sem a qual qualquer exerccio de virtude degenera-se em bufonaria.

    Praticavam tambm as mais austeras mortificaes corporais a ponto de Florent

    Radewijns ter perdido a faculdade do gosto e de outro irmo, Geraldo Zerbolt de Zutphen

    ter sido, por vrias vezes advertido, pelo prprio Florent, para que minorasse seus rigores

    ascticos a fim de que no comprometesse de vez sua j frgil sade. Que contradio com

    um certo mundo moderno dominado no pelo ideal da humildade e pureza de corao, mas

    pela grandeza orgulhosa de um candidato a Fausto qualquer!

    A correo fraterna era outro expediente espiritual largamente utilizado em seu

    meio, e era vista como meio seguro de se progredir nas virtudes. Tal expediente era levado

    to a srio por estes pobres irmos, que seu prior Florent Radewijns chegou a ser

    cognominado de Strenuus Exercitator44.

    Thomas de Kempis, autor da imitao de Cristo, que conheceu Florent quando ainda

    era um jovenzinho, conta-nos deste rigoroso instrutor que:

    Certo dia encontrava-me perto de Florent Radewijns no coro. Ele virou-se em minha direo

    para poder seguir o canto em nosso livro. Postou-se por trs de mim apoiando suas mos sobre meus

    ombros. Esse gesto fez com que eu casse no cho, com dificuldade consegui mover-me, enregelado

    que estava por tal honra ter-me cabido.45

    Estes irmos tinham tambm em alta conta o trabalho manual, j que segundo um

    antigo adgio por eles sempre repetido o homem ocioso batalha contra uma multido de

    43 A devotio moderna foi fruto da prtica espiritual dos irmos da vida comum, comunidade religiosa fundada por inspirao dos ensinamentos e do testemunho de vida de Geraldo Grote (1340-1384). 44 Instrutor severo. 45 Radewijns, Florent. Petit Manuel pour le dvot moderne. Introduo de Thom Mertens. Brepols. Bruxelas. 1999. P. 7.

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    demnios, o trabalhador luta apenas contra um e para tanto, escolheram como forma ideal

    de trabalho, que servia ao mesmo tempo como ganha po e exerccio espiritual o de

    copistas.

    neste contexto que viveu o holands Florent Radewijns (1350-1400), que teve

    uma fama de santidade to grande em seu tempo que vrias pessoas, algumas eminentes,

    vinham aconselharem-se consigo. Sua obra literria no foi extensa e constitui-se de parcos

    escritos e umas poucas cartas. Seu estilo fruto de sua atividade de copista posto que

    escrevia resumidamente o que lia e copiava dos mestres espirituais. Suas obras objetivavam

    muito mais o bem da comunidade dos irmos da vida comum, que deste modo encontravam

    alimento espiritual substancioso, do que se destinavam para um pblico externo.

    Seu sistema de composio e escritura de uma tocante simplicidade, consistindo-

    se em agrupar citaes e pensamentos edificantes em torno de um tema determinado

    precedido de um ttulo que sempre indica o sujeito tratado e isso de maneira sistemtica. O

    fio condutor , precisamente, o da perfeio crist to ardentemente almejada. Esse

    procedimento era tido por eles como o mais fiel e capaz de relig-los aos cristos dos

    tempos apostlicos.

    Passemos agora anlise da doutrina contida nesses escritos.