a estratégia do crime

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  Psicol ogia U SP, 200 3, 14(3 ), 195-20 0 195 P ONTO DE V ISTA  A E STRATÉGIA DO CRIME Adriano Schwartz 1   Folha de S ão Paulo O escritor Ricardo Piglia já disse mais de uma vez que não há nada além de livros de viagens ou histórias policiais. “Narra-se uma viagem ou um crime. Que outra coisa se pode narrar?”. A afirmação é intensificada em “Formas Breves”, há pouco lançado no Brasil, no qual ele diz que “o gênero  pol icia l é o gra nde gên ero mod ern o (. ..) , in und a o m und o co nte mpo rân eo” . Ao contrário do que normalmente se pensa, então, os herdeiros de investigação de Dupin, Sherlock Holmes, padre Brown, Maigret, Poirot, Marlowe, Spade ocupariam um lugar nobre numa potencial e sempre controversa hierarquia do valor literário. A própria produção do autor argentino - textos como “Respiração Artificial” ou “Nome Falso”- confirma que a hipótese pode ser correta. Os inúmeros títulos policiais de qualidade bastante questionável publicados mensalmente, infestados de convenções e temas estereotipados, parecem desmenti-la. Como a intenção aqui não é criar um enigma insolúvel à espera de mais um improvável detetive, e sim tentar entender um pouco melhor o  pap el q ue esse tipo de n arra tiva exerce atu alm ent e - e po r qu e ele, ao mes mo tempo, consegue ser atacado e defendido de modos tão peremptórios -, vale 1 Adriano Schwartz é editor do Caderno  Mais! (  Folha de São Paulo ) e doutor em teoria literária pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O artigo acima foi publicado, originalmente, no  Mais!, em 8 de fevereiro de 2004. Endere ço eletr ônico: aschwart@u ol.com.br

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A estratégia do crime

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  • Psicologia USP, 2003, 14(3), 195-200 195

    PONTO DE VISTA

    A ESTRATGIA DO CRIME

    Adriano Schwartz1 Folha de So Paulo

    O escritor Ricardo Piglia j disse mais de uma vez que no h nada

    alm de livros de viagens ou histrias policiais. Narra-se uma viagem ou um crime. Que outra coisa se pode narrar?. A afirmao intensificada em Formas Breves, h pouco lanado no Brasil, no qual ele diz que o gnero policial o grande gnero moderno (...), inunda o mundo contemporneo.

    Ao contrrio do que normalmente se pensa, ento, os herdeiros de investigao de Dupin, Sherlock Holmes, padre Brown, Maigret, Poirot, Marlowe, Spade ocupariam um lugar nobre numa potencial e sempre controversa hierarquia do valor literrio.

    A prpria produo do autor argentino - textos como Respirao Artificial ou Nome Falso- confirma que a hiptese pode ser correta. Os inmeros ttulos policiais de qualidade bastante questionvel publicados mensalmente, infestados de convenes e temas estereotipados, parecem desmenti- la.

    Como a inteno aqui no criar um enigma insolvel espera de mais um improvvel detetive, e sim tentar entender um pouco melhor o papel que esse tipo de narrativa exerce atualmente - e por que ele, ao mesmo tempo, consegue ser atacado e defendido de modos to peremptrios -, vale

    1 Adriano Schwartz editor do Caderno Mais! (Folha de So Paulo) e doutor em

    teoria literria pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP. O artigo acima foi publicado, originalmente, no Mais!, em 8 de fevereiro de 2004. Endereo eletrnico: [email protected]

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    a pena retomar brevemente a sua origem e lembrar algumas das modificaes pelas quais passou.

    O norte-americano Edgar Allan Poe, com Auguste Dupin, personagem de trs de seus contos, cria na primeira metade do sculo 19 (em 1841, com Os Crimes da Rua Morgue) o primeiro detetive de fato da literatura policial e estabelece alguns padres que foram seguidos por vrios autores: o narrador um amigo/discpulo do investigador; a reflexo predomina sobre a ao; o final precisa surpreender o leitor.

    Inventado pelo ingls Conan Doyle, Sherlock Holmes, o mais famoso dos detetives, segue a frmula. Suas histrias so contadas por um mdico e admirador, o dr. Watson, e ele se vale de sua mente poderosa e de uma minuciosa busca de indcios e pistas que a outros haviam passado despercebidos para solucionar os mais difceis crimes, sempre de modo inesperado. E tambm, para muitos, de modo irritante, uma vez que muitas das concluses de Holmes so extradas esotericamente, sem que o texto tivesse possibilitado ao leitor chegar mesma soluo por sua conta: como se a narrativa fosse desonesta.

    Segundo Jorge Luis Borges, grande admirador, crtico e autor do gnero policial, essa uma falha inaceitvel. Declarao de todos os termos do problema: se a memria no me engana (ou sua falta), a variada infrao dessa lei o defeito preferido de Conan Doyle, afirma o autor em um de seus mandamentos da narrao policial. Raymond Chandler reafirmaria o argumento, em suas regras para histrias de mistrio: Elas precisam ser honestas com o leitor. Isso sempre dito, mas o que a frase implica freqentemente no levado em conta.

    De falha desse tipo sofrem muitos dos desfechos dos casos do padre Brown, de Chesterton, apesar de este ser sempre muito elogiado por Borges. Para ele, o ingls dominava a tcnica de transmitir a impresso de que havia algo de irreal por trs do acontecimento criminoso, para logo apresentar uma soluo totalmente racional. O mtodo de Brown? Colocar-se no lugar do adversrio, transformar-se no adversrio. Ainda assim, muito difcil assimilar sem uma ponta de incredulidade a resoluo de O Homem

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    Invisvel, para citar um dos contos mais famosos do autor. O mesmo ocorre com as histrias de dois dos mais prolficos autores policiais, George Simenon e Agatha Christie.

    No final dos anos 20, nos EUA, acontece uma guinada no perfil da fico policial. Dashiell Hammett cria a figura do detetive duro, mulherengo, de humor corrosivo e moral menos rgida, em textos escritos de modo seco e ambientados muitas vezes nos recantos mais pobres e violentos da cidade. Os contos e cinco romances - principalmente O Falco Malts e Sam Spade, seu protagonista - mostram que o universo do crime pode ser sujo.

    Muitos crticos acreditam que, em decorrncia das diferenas entre essa tradio dura e a anterior, elas no devam ser misturadas. O fato que Raymond Chandler, talvez o principal autor dessa segunda linhagem, ataca com insistncia predecessores e contemporneos - Agatha Christie, com especial prazer (voc no engana o leitor escondendo pistas ou tornando falso um personagem, como Christie...) - em seus ensaios.

    com esses escritores que o criador de Philip Marlowe duela: o atrito no significa, portanto, ruptura, e sim modificao. Trata-se ainda de crime, investigao e soluo. S que agora com dvidas, sexo, dinheiro, fracasso, sangue, morte. Com variaes maiores ou menores, o tipo de narrativa desenvolvida por Hammett e Chandler que predomina na maior parte dos romances policiais criminosos que vendem milhares de exemplares anualmente ao redor do planeta.

    Do ponto de vista da tcnica, a soluo apresentada por Poe das mais seguras. Ao centrar o foco narrativo em um personagem secundrio, que acompanha a seqncia de eventos e reflexes do detetive, ele simula a colocao de uma cmera que acompanha por trs os passos do detetive e registra os acontecimentos e discusses, dando ao leitor a sensao de que est jogando limpo e de que a resoluo do problema estaria tambm ao alcance dele.

    Outra via possvel, a de Chandler por exemplo, deixar o investigador contar a prpria histria. O leitor v o que ele v: acrescenta-se a a uma

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    percepo semelhante de honestidade o conhecimento da subjetividade do personagem, de suas impresses, temores, riscos.

    Vida Pregressa, segundo romance de Joaquim Nogueira, lanado h pouco, utiliza esse padro. O mrito do autor torn-lo atrativo pelo uso de um procedimento de reiterao aparentemente banal. O detetive Vencio resolve investigar a morte de um homem. Cada pista que ele descobre o leva a uma nova pessoa. Para cada elemento interrogado, o personagem explica como chegou at ele, repetindo os passos prvios de sua busca. A narrativa cria assim um efeito de eco distorcido, que vai se amplificando de modo a acompanhar a progressiva complexificao da intriga, ao mesmo tempo em que o espao geogrfico da trama, a cidade de So Paulo, tambm vai se tornando mais abrangente.

    A opo mais comum, mais fcil e mais problemtica, no entanto, a do narrador onisciente. Como apresentar no incio da histria os pensamentos do personagem que, se saber ao final, era o misterioso culpado? Talvez a sada mais eficaz para esse dilema seja a de Hammett em O Falco Malts. Apesar de o livro ser narrado em terceira pessoa, o protagonista Sam Spade est sempre em primeiro plano - no h nenhuma cena do romance em que ele no aparea - e, alm disso, em momento nenhum penetra-se no interior de qualquer personagem: o leitor, assim, toma conhecimento apenas do que o detetive v ou ouve. Com isso, o autor inclusive aumenta o suspense, j que nunca se sabe como Spade reagir aos eventos.

    Ainda onisciente, mas em muitos trechos de maneira seletiva, alternando personagens, o narrador de O Caso dos Dez Negrinhos, o romance mais conhecido de Agatha Christie. O livro provoca admirao pela engenhosidade da autora, em uma primeira leitura, e incmodo na releitura. Nela, ficam evidentes pensamentos do vilo claramente incompatveis com a premissa bsica de que, desde o comeo, ele j era o responsvel por tudo o que ocorreria.

    essa tambm a tcnica de Luiz Alfredo Garcia-Roza em Perseguido, a mais recente aventura do delegado Espinosa. O investigador

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    divide a cena com a famlia do psiquiatra Arthur Nesse - mulher e duas filhas - e com o seu paciente, borgianamente denominado Isidoro Cruz, apesar de ele s aceitar ser chamado de Jonas. Calculada ou no - e esse um dos fulcros do enredo -, a imposio desse segundo nome pelo jovem j indica que, nesta obra, tudo ser mais complicado.

    Para no estragar o prazer dos muitos leitores que o livro ainda ter, no cabe aqui discutir detalhes do enredo e da labirntica tematizao da parania que ele prope. necessrio dizer, no entanto, que, muito por conta da alternncia do foco narrativo, se as concluses de Espinosa no desfecho do texto estivessem corretas, o romance - pelo menos em seu aspecto policial - no se sustentaria. O erro do detetive, contudo, faz parte do jogo, engrandece-o. Uma das mais impressionantes caractersticas de um texto literrio que apenas ele, em sua totalidade, pode desmentir um personagem, um narrador e at mesmo um autor (bem como, alis, ele pode posteriormente desmentir o desmentido...). Em Perseguido, Garcia-Roza parece estar brincando com a lembrana que um memorialista em um conto de Borges tem de um dos projetos de um peculiar escritor, Herbert Quain: ... o leitor, inquieto, procura nos captulos pertinentes e descobre outra soluo, que a verdadeira. O leitor deste livro singular mais perspicaz que o detetive.

    Percebe-se que a suposta contradio entre conveno e grandeza apontada no incio deste texto, a partir do comentrio de Piglia, no irremedivel. Na verdade, ela vem sendo contornada h bastante tempo.

    Em 1955, a norte-americana Patricia Highsmith publica a primeira histria da srie Ripley: O Talentoso Ripley. Qualquer romance policial se equilibra sobre um fato mnimo - o crime - e trs decorrncias lgicas - o investigador, o criminoso e a vtima. Uma das estratgias da autora para manipular a conveno girar o tringulo e centrar a narrativa na segunda delas, em vez de na primeira. Com isso, ela minimiza o suspense e destaca as motivaes de seu anti-heri e as conseqncias de seus atos.

    Ainda mais cedo, em 1941, Borges concebe o primeiro de seus trs contos policiais que remetem genialmente aos trs contos de Poe. Exatos

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    cem anos aps o incio da publicao de Os Crimes da Rua Morgue, O Mistrio de Marie Roget e A Carta Roubada, o autor argentino comea sua homenagem com Os Jardins dos Caminhos Que Se Bifurcam. Os outros dois contos, escritos nos anos seguintes, so A Morte e a Bssola e Abenjacan, o Bokari, Morto em Seu Labirinto. O ltimo no to excepcional quanto os predecessores, mas nele que se l que a soluo do mistrio sempre inferior ao mistrio.

    Os Jardins... e A Morte e a Bssola mostram que a frase nem sempre verdadeira, uma vez que Borges dinamita ainda mais as convenes do gnero e faz com que o leitor ora pense estar lendo uma trama centrada na figura do investigador, ora na do criminoso, para, ao final, descobrir que de fato estivera acompanhando, desde o incio, as vtimas. O desfecho surpreendente - outro dos mandamentos do autor - acontece e duplicado. No toa que Piglia considera o segundo texto o Ulisses do conto policial. Aquele outro mandamento borgiano, o da declarao de todos os termos do problema, por exemplo, cumprido de modo quase manaco: absolutamente tudo o que dito na narrativa exerce um papel preciso e fundamental, e no h nenhum evento ou deduo que no tenha uma justificativa previamente introduzida.

    Para terminar, deve-se notar que, na literatura atual, a contradio mencionada acima muitas vezes resolvida com o ocultamento dos termos que geram a conveno. Assim, em vez de alternar o ngulo de abordagem daquele tringulo - investigador, criminoso e vtima -, o autor esconde ou mascara o prprio fato causador, o crime, que se torna no mais um componente do enredo, e sim um elemento constitutivo da forma narrativa. o que ocorre nos j citados textos de Piglia ou, para lembrar de outro argentino, nos romances de Juan Jos Saer. Talvez seja por isso que, para lidar com esse gnero que inunda o mundo contemporneo, o autor de Nome Falso j tenha afirmado que, em mais de um sentido, o crtico o investigador, e o escritor o criminoso, ou, de outro modo, discutido a representao paranica do escritor que apaga suas pegadas e cifra seus crimes, perseguido pelo crtico, decifrador de enigmas.