a genética do crime cabete

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CABETTE, Eduardo Luiz Santos Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341 262 A GENÉTICA DO CRIME: PERIGOS OCULTOS ENTRE FALÁCIAS, REDUCIONISMOS, FANTASIAS E DESLUMBRAMENTOS Eduardo Luiz Santos Cabette Delegado de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-Graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro do Grupo de Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal – Campus de Lorena-SP. Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o dono da luz”. Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23. Nada se sabe, tudo se imagina”. Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107. INTRODUÇÃO O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da genética que descortinam a possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações do homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc. A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse ramo científico. Em um estágio no qual já se reconhece com alguma dose de consenso que as simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a realidade. Quando parece estar compreendido que o todo não é uma singela soma das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos, surge a genética, apresentada quase invariavelmente sobre uma base

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Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341

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A GENÉTICA DO CRIME: PERIGOS OCULTOS ENTRE

FALÁCIAS, REDUCIONISMOS, FANTASIAS E DESLUMBRAMENTOS

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-Graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro do Grupo de

Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal – Campus de Lorena-SP.

“Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o dono da luz”. Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.

“Nada se sabe, tudo se imagina”. Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107.

INTRODUÇÃO

O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da genética que descortinam a

possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações do

homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc.

A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar

imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados

supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse

ramo científico.

Em um estágio no qual já se reconhece com alguma dose de consenso que as

simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a

realidade. Quando parece estar compreendido que o todo não é uma singela soma

das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos,

surge a genética, apresentada quase invariavelmente sobre uma base

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marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentando como palavra de

ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.).

Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas genéticas

pode influenciar os estudos criminológicos, ocasionando uma importante alteração

de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória do

pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente perigosos,

prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana.

Uma inicial incursão acerca da evolução histórica do pensamento criminológico, será

capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da genética no campo criminológico

hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de

velhos paradigmas etiológicos do crime, sustentados sobre bases que se mostraram

equivocadas e ilusórias.

Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder

qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de

alguma maneira atingir a existência humana, ensejando vilipêndios a tudo aquilo que

caracteriza o “ser” do homem.

1 ESBOÇANDO UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CRIMINOLOGIA1

O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estudos criminológicos encontra-se

no surgimento do Positivismo e, mais especificamente, da chamada “Antropologia

Criminal”. Nessa ocasião opera-se uma mudança singular no que diz respeito ao

objeto das preocupações da ciência criminal. Enquanto a Escola Clássica Liberal

preocupava-se com o estudo dos postulados jurídico – penais, procurando

desenvolver uma formulação teórico – dogmática do Direito Penal, o advento da

Antropologia Criminal propicia uma alteração de perspectiva, voltando os olhos da

1 Um desenvolvimento mais aprofundado desta temática já foi por nós levado a efeito em outro trabalho. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A criminologia no século XXI. Revista Forense. Volume 374, jul./ago., 2004, p. 53-78.

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pesquisa científico – criminal para o estudo do fenômeno do crime e, especialmente,

da figura do criminoso.

O Positivismo exerce grande influência na conformação dessa nova postura, pois

que defende a irradiação do método científico para todas as áreas do saber humano,

até mesmo às da filosofia e da religião. Nesse contexto, o Direito e especificamente

o ramo jurídico – criminal, também passaram a sofrer influências importantíssimas

desse referencial teórico então dominante.

O Positivismo Jurídico aproxima o Direito, o quanto possível, ao método das ciências

naturais, objetivando limita-lo àquilo que tenha de concreto, observável, passível de

mensuração e descrição. Por isso é que seu resultado acaba sendo a limitação do

Direito às normas legais, evitando a consideração de fatores axiológicos, metafísicos

etc.

O afastamento rigoroso das questões que não fossem subsumíveis ao método de

experimentação científico, ensejou, no bojo das ciências criminais, o nascimento da

busca de relações e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o

fenômeno da criminalidade.

A Criminologia exsurge dessa efervescência, desse entusiasmo pelo método

científico, dando destaque nunca dantes constatado ao estudo do homem criminoso

e à pesquisa das causas da delinqüência.

Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com

sustentação em dados empíricos ofertados pela demonstração experimental de leis

naturais seguras e imutáveis.

O criminoso passa a ser objeto de estudo, uma fonte de pesquisas e experimentos

com vistas à descoberta científica das causas do fenômeno criminal.

A obstinada busca de causas explicativas do agir criminoso em oposição às

condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negação do “livre arbítrio”,

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apontado até então pela Escola Clássica como verdadeiro fundamento legitimador

da responsabilidade criminal.

É claro que a noção de livre arbítrio não poderia servir a uma concepção positivista,

pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto às práticas

criminosas. A postura positivista não se coaduna com tal insegurança. Deseja

apropriar-se de um conhecimento que propicie o domínio seguro de leis constantes

a regerem o mundo e, por que não, o comportamento humano, inclusive aquele

desviado.

A conseqüência imediata foi a consideração do criminoso como um “anormal”. A

partir daí, bastaria dotar o pesquisador de instrumentos hábeis a selecionar, de

forma científica, os criminosos (anormais), em meio à população humana

aparentemente homogênea ou normal.

O primeiro grande passo dado por um pesquisador nesse sentido foi a doutrina

preconizada por Cesare Lombroso, destacando-se a publicação de sua conhecida

obra “O homem Delinqüente”, em 1876.

Lombroso entendia ser possível detectar no criminoso uma espécie diferente de

“homo sapiens”, o qual apresentaria determinados sinais, denominados “stigmata”,

de natureza física e psíquica. Esses sinais caracterizariam o chamado “criminoso

nato” (v.g. forma da calota craniana e da face, dimensões do crânio, maxilar inferior

procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e

deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura dos braços, mãos e pés, pouca

sensibilidade à dor, crueldade, leviandade, tendência à superstição, precocidade

sexual etc.). Todos esses sinais indicariam um “regresso atávico”, tendo em conta

sua clara aproximação com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso

intentou demonstrar uma ligação entre a epilepsia e aquilo que chamava de

“insanidade moral”.

Percebe-se claramente o conteúdo determinista das teorias lombrosianas, o qual

conduziria a importantes conclusões e conseqüências para a Política Criminal. Ora,

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se o criminoso estava exposto à conduta desviada forçosamente, tendo em vista

uma congênita predisposição, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovação que

fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto à sua conduta, isso pelo simples

motivo de que não atuava por sua livre escolha, mas sim dirigido por forças naturais

irresistíveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sendo, jamais

poderia ser exposto a apenações morais e infamantes. Não obstante, sendo as

práticas criminosas componentes indissociáveis de sua personalidade, estaria a

sociedade legitimada a defender-se, impondo-lhe desde a prisão perpétua até a

pena de morte.2

A doutrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por

estudos ulteriores que comprovaram a inexistência de indícios seguros a

demonstrarem qualquer diferença fisiológica, física ou psíquica entre homens que

perpetraram atos criminosos e indivíduos cumpridores da lei.

Não obstante, deve ser atribuído a Lombroso o mérito de ser o primeiro a

impulsionar os estudos que dariam origem à Criminologia. Ele iniciou, com a sua

Antropologia Criminal, os estudos do homem delinqüente, razão pela qual tem sido

considerado o verdadeiro “Pai da Criminologia”.3 A partir dele começam os mais

diversos campos de pesquisa de elementos endógenos capazes de ocasionarem o

comportamento criminoso.

Inúmeras investigações científicas nos mais variados campos das ciências naturais

e biológicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas do fenômeno

criminal. A esse conjunto costuma-se denominar “Criminologia Clínica”.

Pode-se exemplificar essa corrente criminológica com alguns de seus ramos mais

destacados: Biologia Criminal, Criminologia Genética4, Psiquiatria Criminal,

Psicologia Criminal, Endocrinologia Criminal, Estudos das Toxicomanias etc.

2 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. São Paulo: RT, 1995, p. 75. 3Op. cit., p. 82. 4 O tema presente será melhor desenvolvido em itens posteriores.

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Todas essas linhas de pesquisa têm como traço comum a busca de uma explicação

etiológica endógena do crime e do homem criminoso. Procura-se apontar uma causa

da conduta criminosa que estaria no próprio homem, enquanto alguma forma de

anormalidade física e/ou psíquica. Também todas essas teorias apresentam um

equívoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenômeno da

criminalidade.

Em contraposição à “Criminologia Clínica”, surge a denominada “Criminologia

Sociológica”, tendo como seu mais destacado representante Enrico Ferri.

A “Criminologia Sociológica” propõe uma revisão crítica da “Criminologia Clínica”,

pondo a descoberto que a insistência desta nas causas endógenas da

criminalidade, olvidava as importantes influências ambientais ou exógenas para a

gênese do crime. Aliás, para os defensores da “Criminologia Sociológica”, as

causas preponderantes da criminalidade seriam mesmo ambientais ou exógenas,

de forma que mais relevante do que perquirir as características do homem

criminoso, seria identificar o meio criminógeno em que ele se encontra.

No entanto, a “Criminologia Sociológica” em nada inova no que tange à postura de

procurar uma etiologia do delito. Os criminólogos ainda insistem em encontrar

“causas” para o crime, somente alterando a natureza destas, transplantando-as do

criminoso para o ambiente criminógeno. Em suma, muda o “locus” da pesquisa,

mas não muda a natureza claramente etiológica desta.

Os estudos relativos à atuação do ambiente na criminalidade são variegados,

podendo-se mencionar alguns ramos a título meramente exemplificativo: Geografia

Criminal e Meio Natural, Metereologia Criminal, Higiene e Nutrição, Sistema

Econômico, Mal vivência, Ambiente familiar, Profissão, Guerra, Migração e

Imigração, Prisão e contágio moral, Meios de Comunicação etc.

Ainda no matiz sociológico deve-se dar atenção especial às chamadas “Teorias

Estrutural-Funcionalistas”, as quais podem ser tratadas como item apartado, tendo

em vista suas peculiaridades.

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As Teorias Estrutural-Funcionalistas afirmam que o crime é produzido pela própria

estrutura social, inclusive exercendo uma certa função no interior do sistema, de

maneira que não deve ser visto como uma anomalia ou moléstia social.

A base teórica principal é ofertada por Émile Durkheim que dá ênfase para a

normalidade do crime em toda e qualquer sociedade. Aduz o autor em referência

que “o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente

impossível”. 5 Mas, o autor vai além, chegando a reconhecer que o crime não

somente é normal, mas também “é necessário” para a coesão social, sendo uma

sociedade sem crimes indicadora, esta sim, de deterioração social. Durkheim indica

o fenômeno criminal como reafirmador da ordem social violada e, portanto,

legitimador de sua existência. Toda vez que acontece um crime, a reação

desencadeada contra ele reafirma os liames sociais e ratifica a validade e a vigência

das normas legais. 6

Portanto, o desvio é funcional, somente tornando-se perigoso ao exceder certos

limites toleráveis. Em tais circunstâncias pode eclodir um estado de desorganização

e anarquia, no qual todo o ordenamento normativo perde sua efetividade. Não

emergindo disso um novo ordenamento a substituir aquele que ruiu, passa-se a uma

situação de carência absoluta de normas ou regras, ficando a conduta humana à

margem de qualquer orientação. A isso Durkheim dá o nome de “anomia”, efetiva

causadora de desagregação e deterioração social. 7

O conceito de “anomia” e o reconhecimento da funcionalidade do crime no meio

social produzem uma revolução quanto às finalidades e fundamentos da pena, vez

que estes já não devem mais ser buscados na fantasiosa profilaxia de um suposto

mal.

5 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martim Claret, 2001, p. 83. 6 Op. Cit., p. 86. 7 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 59 – 60.

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Outra formulação teórica relevante de matiz estrutural-funcionalista deve-se a Robert

Merton. Ele se apropria do conceito de “anomia” para demonstrar que o desvio não

passa de um produto da própria estrutura social. Portanto, absolutamente normal,

considerando que esta própria estrutura é que vem a compelir o indivíduo à conduta

desviante. Merton expõe detalhadamente o mecanismo estrutural que conduz o

indivíduo ao crime no seio social: a sociedade apresenta-lhe metas, mas não lhe

disponibiliza os meios necessários para o seu alcance legal. O indivíduo perde suas

referências, sentindo-se abandonado sem possibilidades “normais” de conseguir

seus objetivos. Sem os meios legais, mas pressionado para a conquista de certos

objetivos sociais, o indivíduo precisa preencher esse vácuo (anomia) de alguma

maneira. E a única maneira disponível será a perseguição dos fins colimados por

meios ilegítimos, ilegais e desviantes, uma vez que os legítimos não estão

acessíveis.

De acordo com Merton: “a desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos

como válidos e os meios legítimos à disposição do indivíduo para alcançá-los, está

na origem dos comportamentos desviantes”. 8 E mais: “a cultura coloca, pois, aos

membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um lado,

aqueles são solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem

– estar; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos,

lhes são, em ampla medida, negados”.9

Outro referencial importante é a denominada “Teoria da Associação Diferencial”,

produzida por Edwin H. Sutherland. Segundo essa construção teórica, a

criminalidade, a exemplo de qualquer outro modelo de comportamento humano, é

aprendida conforme as convivências específicas às quais o sujeito se expõe em

seu ambiente social e profissional.10

Essa linha de pensamento possibilitou a formulação da conhecida “Teoria das

Subculturas Criminais”, para a qual o sujeito aprenderia o crime de acordo com sua

convivência em certos ambientes, assumindo as características de determinados

8 Op. Cit., p. 63. 9 MERTON, Robert, apud, Op. Cit., p. 65. 10 Op. Cit., p. 66.

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grupos aos quais estaria preso por uma aproximação voluntária, ocasional ou

coercitiva.

Afirma Sutherland que o processo de “associação diferencial” propicia ao sujeito, de

conformidade com seu convívio, aprender e apreender as condutas desviantes

respectivas. Dessa forma, tal teoria teria a vantagem de poder explicar a

criminalidade das classes baixas tanto quanto a das classes altas. Nesse processo

de convívio – aprendizado os infratores menos privilegiados praticariam usualmente

os mesmos crimes, vez que estariam conectados ao convívio de pessoas de seu

nível social e só teriam oportunidade de aprender essas determinadas espécies de

condutas delitivas, não sendo-lhes possibilitado o acesso a conhecimentos e

condicionamentos que os tornassem aptos a outras condutas mais sofisticadas. De

outra banda, os mais abastados teriam acesso ao aprendizado de outras

modalidades criminosas ligadas naturalmente ao seu meio social. Em razão disso

também dificilmente incidiriam nas condutas afetas às classes mais baixas.

Há certo ponto de contato entre a teoria de Merton e a de Sutherland, pois que a

modalidade de conduta atribuída aos indivíduos das classes pobres e abastadas

apresentaria uma distribuição em conformidade com os meios dispostos aos sujeitos

para desenvolverem seus impulsos criminosos. No entanto, a formulação de

Sutherland tem a pretensão de ser mais ampla, fornecendo uma fórmula geral apta a

explicar a criminalidade dos pobres e das classes altas. Para o autor sob comento,

qualquer conduta desviante seria “apreendida em associação direta ou indireta com

os que já praticaram um comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse

comportamento criminoso não têm contatos freqüentes ou estreitos com o

comportamento conforme a lei”. Dessa forma, uma pessoa torna-se ou não

criminosa de acordo “com o grau relativo de freqüência e intensidade de suas

relações com os dois tipos de comportamento” (legal e ilegal). Isso é o que se

denomina propriamente de “associação diferencial”. 11

Essa maior abrangência da teoria preconizada por Sutherland a teria tornado mais

completa do que aquela defendida por Merton. Segundo a maioria dos críticos, as

11 SUTHERLAND, Edwin H., apud , Op. Cit., p. 72.

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explicações de Merton seriam bastante satisfatórias para a criminalidade dos

pobres, mas não serviriam para esclarecer por que pessoas dotadas de todos os

meios institucionais e legais para a consecução de seus objetivos sociais, mesmo

assim, perpetrariam ações delituosas.12 Portanto, não é sem motivo que o termo

“crime de colarinho branco” ou “white collar crime” foi cunhado e empregado

originalmente por Edwin H. Sutherland, em data de 28.11.1939, durante uma

conferência que se passou na sede da “American Sociological Society”, com a

finalidade de fazer referência a uma espécie de criminalidade praticada por pessoas

de nível social elevado, e em especial na sua atuação profissional.13

Como derradeira representante da linha de pensamento estrutural – funcionalista

pode-se mencionar a chamada “Teoria das Técnicas de Neutralização”, cujos

principais expoentes foram Gresham M. Sykes e David Matza. Trata-se de uma

“correção da Teoria das Subculturas Criminais”, mediante a complementação

implementada pelo acréscimo dos estudos das “técnicas de neutralização”. Estas

seriam maneiras de promover a racionalização da conduta marginal, as quais seriam

apreendidas e usadas lado a lado com os modelos de comportamento e valores

desviantes, de forma a neutralizar a atuação eficaz dos valores e regras sociais, aos

quais o delinqüente, de uma forma ou de outra, adere. 14

Na verdade, mesmo aquele indivíduo que vive mergulhado em uma subcultura

criminal não perde totalmente o contato com a cultura oficial e, de alguma forma,

sobre a influência e presta reconhecimento a algumas de suas regras. É desta

constatação que partem Sykes e Matza para lograrem expor os mecanismos usados

pelas pessoas para justificarem perante si mesmas e os demais, suas condutas

desviantes, infringentes das normas oficiais impostas pela sociedade.

12 Para um aprofundamento e uma discussão dessa crítica, a qual não caberia no presente trabalho, remete-se o leitor a nosso estudo anterior já mencionado: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 69 – 71. 13 A conferência de Sutherland teve o título “White Collar Criminality” e foi publicada pela “American Sociological Review”, em seu número 5, em fevereiro de 1940. KREMPEL, Luciana Rodrigues. O crime de colarinho branco: aplicação e eficácia da pena privativa de liberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 97. 14 BARATTA, Alessandro. Op. Cit., p. 77.

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São descritas algumas espécies básicas de “técnicas de neutralização”: 15

a) Exclusão da própria responsabilidade – o infrator se enxerga como vítima das

contingências, surgindo muito mais como sujeito passivo quanto ao seu

encaminhamento para o agir criminoso.

b) Negação da ilicitude – o criminoso interpreta suas atuações apenas como

proibidas, mas não criminosas, imorais ou destrutivas, procurando redefini-las com

eufemismos.

c) Negação da vitimização – a vítima da ação delituosa é apontada como

merecedora do mal ou do prejuízo que lhe foi impingido.

d) Condenação dos que condenam – atribuem-se qualidades negativas às instâncias

oficiais responsáveis pela repressão criminal.

e) Apelo às instâncias superiores – sobrevalorização conferida a pequenos grupos

marginais a que o desviado pertence, aderindo às suas normas e valores

alternativos, em prejuízo das regras sociais normais.

Note-se que a mais destacável “técnica de neutralização” é a própria criação de uma

subcultura. Esta é a maior ensejadora de abrandamentos de consciência e defesas

contra remorsos, na medida em que o apoio e aprovação por parte de outras

pessoas integrantes do grupo, ocasionam uma tranqüilização e um sentimento de

integração que não se poderia obter no seio da sociedade calcada nas normas e

valores oficiais.16

Inobstante os avanços obtidos com as “Teorias Estrutural – Funcionalistas”, uma

alteração verdadeiramente radical do modelo de pesquisa do fenômeno criminal

somente adviria com o surgimento da chamada “Criminologia Crítica”.17 É com ela

15 Op. Cit., p. 78 – 79. 16 Op. Cit., p. 81. 17 Também denominada “Nova Criminologia”, “Criminologia Radical”, “Criminologia Dialética”, “Criminologia Interacionista” ou “Criminologia da reação social”.

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que se leva a efeito o abandono da mais constante premissa da Criminologia

Tradicional, qual seja, aquela de ser o crime uma realidade ontologicamente

reificada.

A partir das idéias trazidas à tona pela revisão criminológica crítica, o crime passa a

ser visto como uma realidade meramente normativa, moldada pelo Sistema Social

responsável pela edição, vigência e aplicação das leis penais.

Por reflexo disso o criminoso deixa de ser encarado como um “anormal” e o crime

como manifestação “patológica”.

A explicação para a criminalidade é agora procurada no desvelar da atuação do

Sistema Penal que a define e reage contra ela, iniciando pelas normas

abstratamente previstas, até chegar à efetiva atuação das agências oficiais de

repressão e prevenção que aplicam as leis. Vislumbra-se que a indicação de alguém

como criminoso é dependente da ação ou omissão das agências estatais

responsáveis pelo controle social. Percebe-se que muitos indivíduos praticantes de

atos desviantes não são tratados como criminosos, até que sejam alcançados pela

atuação das referidas agências, as quais são pautadas por uma conduta e exercem

um papel altamente seletivo. Ser ou não ser criminoso é algo que não está ligado à

presença ou não de alguma doença ou anormalidade, mas sim ao fato de haver ou

não o indivíduo sido retido pelas malhas das agências seletivas que agem

baseadas em orientações normativas e sociais.18

Propõem as Teorias da Criminologia Radical o abandono do velho modelo

etiológico, visando erigir uma inovadora abordagem crítica do Sistema Penal,

inclusive propiciando um sério questionamento de sua legitimidade.

A Criminologia Crítica é caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idéia

de que o Sistema Punitivo é construído e funciona com apoio em uma ideologia da

sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo longe estaria da defesa

social ou da preocupação com a criação ou manutenção de condições para um

18 Op. Cit., p. 86.

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convívio harmônico entre as pessoas. O verdadeiro fim oculto de todo Sistema Penal

seria a sustentação dos interesses das classes dominantes. Qualquer instrumento

repressivo de controle social revelaria a atuação opressiva de umas classes sobre

as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recaindo pesadamente

sobre os pobres e raramente atuando contra os integrantes das classes

dominantes, os quais, aliás, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam. O

Direito é visto como absolutamente despido de qualquer finalidade de transformação

social. Ao contrário, é encarado como um instrumento de manutenção e reforço do

“status quo” social, conservando e alimentando desigualdades pelo exercício de um

poder de dominação e força.19

Impõe-se uma conscientização da gigantesca diferença de intensidade da atuação

do Direito Penal sobre setores desvalidos da sociedade, enquanto apresenta-se

bastante leniente e omisso perante condutas gravíssimas ligadas às classes

dominantes.

É nesse contexto que emerge a “Teoria do Labeling Approach” ou “Teoria da

Reação Social”. Enquanto o pensamento criminológico até então vigente advogava a

tese de que o atributo criminal de uma conduta existia objetivamente, como um ente

natural e até era preexistente às normas penais que o definiam num mero exercício

de reconhecimento, o qual, aliás, consistia em um certo acordo universal, um

consenso social; a “Teoria do Labeling Approach” virá para desmistificar todas essas

equivocadas convicções.

O “Labeling Approach” ou “etiquetamento” indica que um fato só é tomado como

criminoso após a aquisição desse “status” através da criação de uma lei que

seleciona certos comportamentos como irregulares, de acordo com os interesses

sociais. Em seguida, a atribuição a alguém da pecha de criminoso depende

novamente da atuação seletiva das agências estatais.

19 LYRA, Roberto, ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Criminologia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 204 – 205.

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Passa a ser objeto de estudo da Criminologia a descoberta dos mecanismos sociais

responsáveis pela definição dos desvios e dos desviantes; os efeitos dessa definição

e os atores que interagem nessas complexas relações. Deixa-se de lado a ilusão

do crime como entidade natural pré – jurídica e do criminoso como portador de

anomalias físicas ou psíquicas.

Essa nova linha de reflexões produz uma derrocada no mito do Sistema Penal como

recuperador dos desviados. Contrariamente, entende-se que a atuação rotuladora

do Sistema Penal exerce forte pressão para a permanência do indivíduo no papel

social (marginal e marginalizado) que lhe é atribuído. O sujeito estigmatizado ao

invés de se recuperar, ganharia um reforço de sua identidade desviante. Na

realidade, o Sistema Penal assim concebido passa a ser entendido como um criador

e reprodutor da violência e da criminalidade.

Finalmente cabe expor sumariamente a relação entre a “Sociologia do Conflito” e a

“Nova Criminologia”.

Como já visto, a Nova Criminologia põe em cheque a idéia de que as normas de

convívio social derivam de certo consenso em torno de valores e objetivos comuns.

Aí está o ponto de contato com a “Sociologia do Conflito”, que apregoa ser uma tal

concepção uma mera ficção erigida com a finalidade de legitimar a ordem social. Na

realidade, essa ordem social seria produto não de consenso, mas do conflito de

interesses de grupos antagônicos, prevalecendo a vontade daqueles que lograram

exercer maior dominação.

Com o esboço desse quadro evolutivo da ciência criminológica, é possível

determinar dois principais momentos de mudanças conceituais e epistemológicas: o

primeiro deles refere-se à transição do Direito Penal Clássico para o nascimento da

Criminologia, sob a égide do Positivismo, com as inaugurais pesquisas

lombrosianas de Antropologia Criminal. Somente aí é que o homem criminoso

adquire importância central nos estudos, que não mais se reduzem às dogmáticas

jurídicas. O segundo momento relevante foi o da mudança radical do referencial

teórico da Criminologia, propiciado pela emergência da chamada “Criminologia

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Crítica”. Nessa oportunidade abandona-se o modelo de pesquisa etiológico –

profilático, mediante um consistente questionamento de um longo “processo de

medicalização do crime”.20 O fenômeno criminal passa a ser perquirido como criação

da própria organização social e não mais como um ente pré – existente, passível de

compreensão e apreensão pela aplicação isolada do método das ciências naturais.

A virada epistemológica propiciada pela “Criminologia Crítica” não desmerece o

conjunto dos estudos anteriores e nem representa um ponto final para a pesquisa

criminológica. Tão somente faz perceber que são possíveis explicações parciais

para o fenômeno criminal, mas jamais tal questão pode ser devidamente

desvendada de forma simplista e reducionista. A criminalidade e a violência em geral

são problemas complexos que somente permitem uma visão ponderada através de

um conjunto de saberes e métodos de investigação, os quais, isolados, produzem

noções fantasiosas e distorcidas. Não é por outro motivo que atualmente se fala

numa “Criminologia Integrada”.21

Neste item procedeu-se a uma retomada dessa evolução dos estudos criminológicos

já anteriormente levada a efeito em outro trabalho22 com um objetivo bastante

definido: pretendeu-se expor o mais clara e pormenorizadamente possível como se

chegou à ponderada e racional conclusão de que o “crime” em si não existe na

natureza, tratando-se do resultado de normas humanas convencionadas. O

criminoso, portanto, é somente todo aquele que infringe tais normas e não o

portador de anomalias. As pesquisas etiológico-profiláticas, que são o original

impulso da Criminologia, são impregnadas de um determinismo irreal porque

baseadas em uma noção ilusória do crime como ente natural pré-jurídico, que o

Direito Penal somente faz reconhecer e declarar, quando, na verdade, o crime é

uma criação do Direito, podendo inclusive modificar-se ao longo do tempo e das

mudanças sociais.

20 BORELLI, Andréa. Da privação dos sentidos à legítima defesa da honra: considerações sobre o direito e a violência contra as mulheres. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 10. 21 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Op. Cit., p. 617 – 618. 22 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 53 – 78.

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Ainda que certos eventos criminais possam ser validamente explicados por meio de

uma abordagem etiológica (v.g. o homicídio perpetrado por um esquizofrênico que

acredita estar esfaqueando um monstro)23, deve-se ter em mente que se trata de um

critério válido somente de forma eventual e parcial. Além disso, mesmo sua validade

eventual em nada atinge a conclusão inarredável de que o crime é uma criação

normativa, um filho do Direito e das convenções e não um rebento da natureza. O

retorno a uma noção equivocada a este respeito, devido a qualquer espécie de

descoberta científica e novas possibilidades de intervenção, constitui um enorme

retrocesso do pensamento criminológico com riscos de terríveis conseqüências

sociais e individuais.

2 GENÉTICA: A SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E DO

CRIME?

2.1 A REFLEXÃO COMO UMA NECESSIDADE CONSTANTE

Há sempre uma casca envolvendo tudo que se apresenta ao nosso conhecimento e

avaliação. Se nossa análise acerca das coisas contenta-se em deslizar pela

superfície, jamais rompendo essa casca de aparências, corre-se o grave risco de

proceder escolhas absolutamente equivocadas, baseadas em dados e informações

fantasiosas.

Sobre isso nos alerta o literato José Saramago em sua crônica “Jogam as brancas e

ganham”, afirmando que “por baixo ou por trás do que se vê, há sempre mais coisas

que convém não ignorar, e que dão, se conhecidas, o único saber verdadeiro”.24

Muitas vezes o mal encontra fertilidade exatamente na incapacidade de pensar que

propicia a ação ou omissão acrítica ou até mesmo bem intencionada, embora

equivocada. Hannah Arendt chama a atenção para este ponto quando destaca a

23 O exemplo refere-se ao ato de “matar alguém”, tido como criminoso, mas obviamente não se olvida a questão da inimputabilidade sob o ângulo legal. É que o fim da exemplificação consiste na discussão sob o prisma criminológico e não jurídico. 24 A Bagagem do Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 86.

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“banalidade do mal” escancarada no julgamento do medíocre funcionário do

nazismo, Eichmann, responsável por massacres terríveis de seres humanos. À

enormidade do mal produzido não correspondia o homem insignificante em

julgamento: ele não era estúpido, porém era dotado de “uma curiosa e totalmente

autêntica incapacidade de pensar”.25

A capacidade de pensar é um atributo humano que não deve jamais ser desprezado.

Quando isso ocorre, além de configurar uma deturpação do homem, pode ser a via

ideal para sua autodestruição.

Mas, não basta pensar, este pensar precisa ser também livre, não pode estar

amarrado a idéias pré – concebidas pelo próprio pensador ou assimiladas de

terceiros sem um necessário filtro crítico. Não é bom que idéias alheias

simplesmente dominem o homem e o moldem a seu bel prazer. Igualmente não é

adequado que o pensamento de um homem pretenda simplesmente conceber o

mundo a seu talante, vendo apenas aquilo que quer ver e desprezando a

realidade.26 São respectivamente casos de submissão acrítica e esquizofrenia

intelectual, os quais freqüentemente se entrelaçam para conformar ideologias

perniciosas.

A genética na atualidade tem sido apresentada, especialmente na grande mídia,

como uma espécie de panacéia para todos os males. De outra banda, há aqueles

que satanizam as pesquisas genéticas, somente apontando seus danos potenciais e

perigos.

Diante de tal quadro é imprescindível exercitar nossa capacidade de pensar

criticamente, não acatando simplesmente tudo aquilo que é proposto de acordo com

esta ou aquela orientação.

25 Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 226. Ver também sobre o tema: IDEM. Eichmann em Jerusalém. 6ª. ed. Trad. Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, “passim”. 26 Desde antanho alertava Descartes sobre o perigoso erro de julgar que as idéias que estão em nós são semelhantes ou conformes as coisas que estão fora de nós. DESCARTES, René. De Deus, que Ele existe. In: SMITH, Plínio Junqueira. Dez provas da existência de Deus. São Paulo: Alameda, 2006, p. 206.

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No seguimento será abordada a apresentação da genética como possível solução

para a criminalidade, como já tem sido aventado e alardeado pela imprensa na

divulgação de certas pesquisas acerca de supostos “genes da violência” ou “genes

do crime”.

2.2 BASES DA CULPABILIDADE

O Direito Penal sempre esteve em xeque quanto à sua legitimidade. Uma das

discussões mais recorrentes refere-se ao estabelecimento das bases da

imputabilidade subjetiva. Afinal, o que tornaria o homem responsável por seus atos

criminosos ao ponto de legitimar a sociedade a puni-lo? E ainda: seria ele realmente

responsável por sua conduta? Em qualquer caso, o que justificaria a repressão do

criminoso e como ela deveria realizar-se de forma justa e eficaz?

A tradicional fundamentação legitimante do Direito Penal encontra-se na aferição da

presença de “culpabilidade”, significando que determinada ação ou omissão pode

ser subjetivamente imputada ao seu autor, ensejando a reprovação jurídica em

razão de sua conduta ilícita.

Não obstante, a configuração teórica da culpabilidade já formalmente explicitada nos

termos acima mencionados, carecia de uma sustentação material a indicar qual

seria o motivo pelo qual se reprova no sujeito uma prática criminosa.

Neste passo surge a questão do “livre arbítrio” em conflito com uma concepção

determinista do ser humano. Num primeiro plano, aparece o entendimento segundo

o qual a culpabilidade reside na liberdade do autor atuar de modo diverso no

momento do fato. Melhor dizendo, a censurabilidade do comportamento tem lastro

no fato do culpado haver desejado agir de modo contrário ao dever quando podia

atuar em conformidade com este. 27 Se o homem é dotado de certa liberdade para

27 DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade Culpa – Direito Penal. 3ª. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 22. Note-se que o autor defende a tese do livre arbítrio como pressuposto da culpabilidade há bastante tempo em Portugal. Ver no mesmo sentido: IDEM, O Problema da Consciência da ilicitude em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 1969, “passim”.

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agir ao ponto de tornar-se o responsável por suas condutas, solucionada estará a

questão da culpabilidade. Ao reverso, se o homem é, em suas ações e omissões,

apenas o produto de fatores determinantes que o impelem a certo procedimento,

entra em crise a pretensão de responsabilizá-lo por seus atos.

Em “As Viagens de Gulliver”, Swift imagina uma terra em que os cavalos (os

Houyhnhnms) são seres racionais, enquanto os humanos (os Yahoos) agem por

puro instinto. Não diferente do acima narrado é a postura dos Houyhnhnms perante

os Yahoos, conforme se vê pelo seguinte trecho da ficção:

“Se bem que detestasse os Yahoos de sua terra, não os culpava por suas odiosas

qualidades mais do culpava uma gnnayh (ave de rapina) por sua crueldade ou uma

pedra afiada por cortar-lhe o casco”.28

Essa antiga discussão que outrora ganhou novo impulso com o Positivismo e suas

teses deterministas, não teve fim e vem permeando toda a discussão acerca da

legitimidade e eficácia dos instrumentos coercitivos penais.

Agora as afirmações de que talvez a genética possa apontar causas endógenas

para a criminalidade surge como um reacender dessa antiga polêmica.

Nesse diapasão manifesta-se Casabona, aduzindo que “as hipóteses geneticistas

sobre o comportamento humano constituiriam mais um degrau, particularmente

importante, mas não novo, na discussão sobre o fundamento da imposição da pena

no livre arbítrio ou não”.29

O geneticismo que ameaça dominar as pesquisas criminológicas apresenta traços

nitidamente reducionistas e deterministas.

28 SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 278. 29 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do gene ao Direito. São Paulo: IBCCrim, 1999, p. 109.

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O criminólogo passa a assumir um caráter semelhante ao heterônimo de Pessoa,

Ricardo Reis, marcado pela crença “no destino como uma lei indiscutível e imutável

que dirige a vida dos homens”.30 É isso que o leva a produzir versos como estes:

“Nossa vontade e o nosso pensamento São as mãos pelas quais outros nos guiam

Para onde eles querem E nós não desejamos”. 31

“Contenta-te com seres quem não podes Deixar de ser”. 32

Nesse contexto o homem é retratado como um títere passivo, movido por cordas

invisíveis. Essas cordas já foram apontadas como manipuladas por Deus ou pelo

demônio, passando para a crença Positivista nas causas endógenas mais variadas,

e chegam na atualidade às mãos invisíveis ou microscópicas da genética.

Ora, se o crime é determinado pela presença de certos genes, o mal que ele

representa deixa de ser “moral” para configurar um exemplo de “mal natural”. Um

genocídio ou um terremoto passam a ser eventos da mesma espécie. Ao homem

nenhuma responsabilidade pode ser imputada. Qualquer atitude ou solução a ser

aventada deve ter um conteúdo terapêutico e jamais punitivo. Até sob um ponto de

vista teológico as discussões ficariam polarizadas entre argumentos como os de

Bayle, apontando Deus como “um gigantesco criminoso”, em contraposição a uma

“teodicéia” de Leibniz, procurando formular uma defesa do Criador sob o argumento

dos insondáveis mistérios dos desígnios divinos.33

No início do século XIX, o Marquês de Laplace, conhecido físico e matemático

francês, afirmava que a natureza e o homem eram guiados por um conjunto de leis

físicas imutáveis, das quais não seria possível qualquer espécie de evasão. Essas

leis guiariam os destinos das partículas mais ínfimas da matéria até a formação dos

pensamentos humanos. Ele formulou a suposição de que uma vez configurado

inicialmente o universo, “todos os eventos futuros, incluindo os que envolvem

30 PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Porto Alegre: L & PM, 2006, p. 25. 31 Op. Cit., p. 68. 32 Op. Cit., p. 93. 33 NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel, 2003, p. 31.

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experiências humanas de passado, presente e futuro, foram especificados de

maneira irreversível”. Tal suposição, como é bastante límpido, não deixa espaço

para o conceito de livre arbítrio e configura “uma forma extrema de determinismo

científico”. Não obstante, não foi preciso mais que um século para que o conceito

determinista de Laplace fosse derrubado por descobertas científicas como as bases

da física quântica e o Princípio da Incerteza do físico Werner Heisenberg.34

É preciso questionar, como faz Casabona, se as investigações genéticas podem

constituir no campo criminológico um verdadeiro “retorno às teorias biológicas sobre

a criminalidade”.35

Não parece restar dúvida alguma quanto a esse retorno, ou melhor dizendo,

retrocesso, às teorias biológicas deterministas sobre a criminalidade, a partir do

momento em que se cogita da descoberta de um ou vários genes responsáveis pelo

agir criminoso ou pelos vícios comportamentais humanos. Quando se verifica esse

claro retrocesso à superada visão do crime como uma entidade natural pré –

jurídica, deve-se temer bastante um retrocesso biologista, reducionista e

determinista, carregado de preconceitos e autoritarismos. Com bem destaca Nuñez,

“el ser humano es plenamente humano cuando es capaz de ir mas allá de onde es

‘impulsado’ y llegar al ámbito en que és ‘libre y responsable’, donde decide. El ser

humano se deshumaniza cuando deja de ser responsable”.36

É bem verdade que por um lado a biologização do crime retira do homem criminoso

o pesado fardo da responsabilidade por seus atos e deslegitima sua punição, que

passa a configurar uma retribuição tão injusta quanto um castigo imposto a um

animal que agiu movido de acordo com suas naturais predisposições. Em

contrapartida, não mais existe a esperança de emenda do homem criminoso, razão

pela qual se não se pode mais legitimamente falar em sua punição, pode-se

conceber um legítimo direito de defesa da sociedade contra ele. E desde que o

34 COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. Trad. Giorgio Cappelli. São Paulo: Gente, 2007, p. 85 – 86. “Esse princípio da incerteza, que leva o nome de Heisenberg, derrubou o determinismo laplaciano de um só golpe, já que demonstrou que qualquer configuração inicial do universo jamais poderia de fato ser determinada com a precisão que seria exigida pelo modelo previsto por Laplace”. 35 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Op. Cit., p. 110 – 114. 36 NUÑEZ, Juan Martín. Sabiduria China. Disponíbel em: <www.farodelautopia.webcindario.com>. Acesso em: 31 mar. 2007.

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infrator não é passível de reforma, seja por sua vontade manifestada

espontaneamente, seja por incentivos externos, essas medidas de defesa social

podem perfeitamente atingir extremos inimagináveis em outro contexto.

Considerando o homem delinqüente como portador de uma anomalia que

inevitavelmente o precipita à conduta desviada, somente três opções podem ser

aventadas: sua cura, sua neutralização ou sua eliminação pura e simples.

Se a cura não era em regra uma hipótese palpável para Lombroso, os novos

biologistas criminais, sustentados na genética, sonham com terapias profiláticas

mediante manipulações tornadas possíveis com o avanço científico. Descoberta a

presença de um “gene criminógeno”, quem sabe sua extração ou sua manipulação

pudesse significar a produção de um novo homem devidamente adaptado às regras

do convívio social? Além disso, a atuação poderia não somente ser repressiva e

preventiva pós – delitual, mas realmente preventiva (pré – delitual), atuando sobre

os potenciais criminosos para evitar que a qualquer momento de suas vidas venham

a enveredar-se pela senda do crime, numa concepção algo parecida com a ficção

cinematográfica de “Minority Report”.

Aparentemente a genética aplicada à Criminologia seria portadora de grandes

esperanças de um mundo melhor, onde a vida seria marcada pela paz e harmonia.

Não obstante, os potenciais da genética nesse e em outros campos têm sido

alargados de maneira fantasiosa, como será exposto no seguimento deste trabalho.

Ademais, a manipulação genética alteradora da personalidade humana pode ser um

instrumento extremamente arbitrário, incompatível com o respeito da dignidade

humana e com as concepções do Estado Democrático de Direito.

A esperança de “recuperação”, “ressocialização”, “reforma”, “readaptação” ou

“reeducação” do delinqüente permeia os sistemas normativos, mas merece

questionamento quando se aventa a autoritária “intervenção estatal na esfera da

consciência” do infrator. Ao Estado não é dado “oprimir a liberdade interna do

condenado, impondo-lhe concepções de vida e estilos de comportamento”. É, pois,

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incompatível com o Estado Democrático a imposição ao condenado dos valores

dominantes na sociedade. Esses valores somente podem ser propostos ao infrator,

o qual reserva o direito de internamente recusa-los, negando-se a adaptar-se às

regras de convívio coletivo.37

É por isso que o moderno pensamento criminológico e penitenciário optou desde

muito tempo pelo afastamento da “pretensão de reduzir o cumprimento da pena a

um processo de transformação científica do criminoso em não criminoso”.38

Entretanto, conforme já exposto, ao criminoso determinado inevitavelmente por

fatores endógenos não é somente o caminho terapêutico imaginável. Resta também,

abandonada a vã esperança em sua mudança, o caminho da neutralização por meio

da prisão perpétua ou da eliminação pela pena de morte.

Sabe-se que tais opções são impraticáveis no ordenamento jurídico brasileiro por

força de normas constitucionais impedientes (art. 5º, XLVIII, “a” e “b”, CF). Mas, a

discussão neste trabalho supera o âmbito estritamente jurídico – normativo razão

pela qual se impõe a análise de todas as hipóteses.

No seio de um regime orientado por preconceitos de qualquer natureza (v.g. raciais

ou genéticos), seria natural o surgimento da idéia da eliminação dos inconvenientes

ou pelo menos sua neutralização.

Arendt, tratando da configuração dos regimes totalitários, bem destaca que o

“crime”, enquanto ação ou omissão deliberada é passível de “castigo”; já o “vício”,

como pecha indelével e determinante do agir “só pode ser exterminado”.39

Citando Proust, a autora lembra que a consideração de uma “predestinação

genética” como motivadora de condutas pode produzir, até certo ponto, uma relativa

tolerância para com os transgressores. Entretanto, “num certo momento essa

37 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 39. 38 Op. Cit., p. 40. 39 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 109.

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tolerância pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os

verdadeiros criminosos, mas todos os que estão ‘racialmente’40 predestinados a

cometer certos crimes, o que pode ocorrer quando a máquina legal ou política,

refletindo a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a

pregarem essa necessidade de libertação social do perigo em potencial. Se for

permitido estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que

liberta o homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vício, ele será mais

cruel e desumano do que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas

respeitam e reconhecem a responsabilidade do homem por sua conduta”.41

É preciso ter em mente que o Direito Penal, embora possa ser concebido como um

ramo científico autônomo de caráter normativo, é altamente influenciado em sua

conformação pelas concepções formuladas pela ciência criminológica. Pode-se

afirmar que “a ciência penal, em data de hoje, é totalmente permeável às propostas

da Criminologia”.42

Como afirma Peláez: 43

La criminología y el derecho penal son dos ciencias autónomas , pero ni opuestas, ni separadas, más bien asociadas. No se resuelve ningún problema penal sin tener en cuenta los resultados de la criminología, convertida en base indispensable de la teoria y la práctica del derecho penal moderno, así como del derecho penitenciario y del derecho procesal.

Cabe agora a seguinte indagação: qual espécie de Direito Penal seria aquele

conformado de acordo com uma criminologia genética?

A resposta evidente a esta relevante questão é a de que seria um modelo de Direito

Penal Autoritário, estruturado como um “Direito Penal do Autor” e não como um

“Direito Penal do Fato”. As pessoas passariam a sofrer uma repressão criminal não

por aquilo que viessem a fazer, mas por aquilo que internamente fossem.

40 Acrescentaríamos ao texto também a palavra “geneticamente”. 41 Op. Cit., p. 103. 42 NASCIMENTO, José Flávio Braga. Curso de Criminologia. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 229. 43 PELÁEZ, Michelangelo. Introducción al studio de la criminología. Buenos Aires: Depalma, 1966, p. 190.

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Ferrajoli44 expõe com absoluta propriedade esse modelo autoritário de Direito Penal:

Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais perversas no esquema penal do chamado tipo de autor, onde a hipótese normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e ‘sem fato ofensivo’. A lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função reguladora, mas constitutiva dos pressupostos da pena; não é observável ou violável pela omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. Está claro que ao faltar, antes inclusive da própria ação ou do fato, a proibição, todas as garantias penais e processuais resultam neutralizadas. Trata-se, com efeito, de uma técnica punitiva que, por isso, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal.

Com referência a uma Criminologia Genética reducionista e determinista, pode-se ir

ainda mais longe com apoio no próprio Ferrajoli, chegando-se à possibilidade da

construção de um “modelo punitivo irracional”. Isso tendo em conta a idéia de uma

prevenção especial pré – delitual, mediante a atuação sobre a pessoa, manipulando

seu código genético para evitar a potencial conduta criminosa, hipótese aventada

por aqueles que fazem uma profissão de fé nos poderes milagrosos da ciência

genética.

É o que o autor sob comento denomina de “Sistema de mera prevenção”, no qual a

punição assume “a natureza de medida preventiva de desvio, em vez de retributiva,

não – tenha-se em conta – a função de ‘prevenção geral’, exercida por sua ameaça

legal preventiva como conseqüência do delito, mas uma função de ‘prevenção

especial’, ligada à sua cominação preventiva, como um prius em vez de um

posterius relativamente ao fato criminoso. É evidente o caráter não igualitário,

ademais de puramente decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De

conformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de

retribuição, dirigido a prevenir fatos delituosos por meio da comprovação e da

punição dos já ocorridos, em sistema de pura prevenção, dirigido a afrontar a mera

suspeita de delitos cometidos, mas não provados, ou o mero perigo de delitos

futuros”. Dessa forma o Direito Penal se desvincula de suas garantias como a

legalidade e a jurisdicionariedade, passando a ser “informado por meros critérios de

44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et. al.” São Paulo: RT, 2002, p. 80 – 81.

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discricionariedade administrativa” e degenerando-se ou pervertendo-se em simples

“procedimento policial de estigmatização moral, política e social”.45

É preciso refletir sobre essas conseqüências deletérias, capazes de deitar por terra

conquistas seculares, antes de ceder às pressões de teorizações pseudo –

científicas tentadoras. Afinal, como adverte Carbonnier, “um manto de ilogicidade, de

absurdo, por intermédio do direito, tem invadido a existência de cada ser humano.

Nenhum cérebro resiste completamente a esta pressão da irracionalidade jurídica”. 46

2.3 O OTALITARISMO OCULTO NA CRIMINOLOGIA GENÉTICA

O retrocesso que pode ocorrer com uma adesão acrítica a uma Criminologia

Genética com pretensões de controle sobre a conduta humana mediante

intervenções pré ou pós – delitivas, aparte estribar-se em concepções superadas do

crime e do criminoso como entes naturais marcados por desvios patológicos,

também apresenta outra faceta ainda mais sombria e obscura. Trata-se de uma

clara tendência para a conformação de uma estrutura totalitarista de poder.

O fenômeno do crime, ampliado muitas vezes de forma artificial pela mídia, com sua

capacidade de comunicação nunca antes historicamente igualada ou sequer

semelhante, mas também inegavelmente configurador de uma justa preocupação

social, tendo em vista a potencialização da violência real nas sociedades modernas,

caracterizadas pela heterogeneidade multiplicadora de desigualdades e conflitos,

ocasiona uma constante demanda por soluções.

Em meio a esse clima de terror, freqüentemente não se ponderam devidamente os

custos e benefícios de certas vias apontadas como soluções para o problema da

criminalidade, em especial a violenta.

45 Op. Cit., p. 81 – 82. 46 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7ª. ed. Paris: LGDJ, 1992, p. 359. No original: “Une nappe de déraison, d’absurdité, par l’intermédiaire du droit, a envahi l’existence de chaque homme. Aucun cerveau ne resiste complétement à cette pression de l’irrationnel juridique”.

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Adverte Nils Christie que o maior risco da criminalidade nas sociedades atuais não é

o crime em si mesmo, mas o perigo de que o encarniçamento na sua repressão

termine por desembocar no totalitarismo.47

A Criminologia Genética nesse contexto emerge caracterizada pela cientificidade de

seus argumentos e demonstrações, o que induz à sua aparente neutralidade.

É justamente essa característica de tal concepção acerca da questão criminal que

pode conduzir a um terrível cientificismo e, num passo seguinte, ao totalitarismo.

O cientificismo é uma “ideologia daqueles que, por deterem o monopólio do saber

objetivo e racional, julgam-se os detentores do verdadeiro conhecimento da

realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa do saber”. 48

Já foi destacado neste trabalho como essa crença no saber científico como único

detentor da verdade, sob a forma do pensamento positivista, influenciou a

Criminologia, erigindo a Antropologia Criminal de Lombroso e as variadas vertentes

etiológicas da Criminologia Clínica.

É interessante notar como o cientificismo, embora critique arduamente a

possibilidade de qualquer contribuição da religião para o saber humano, também

não deixa de erguer-se sobre pilares intocáveis que podem bem ser definidos como

verdadeiros “artigos de fé”: 49

1) a ciência é o único saber verdadeiro; logo, o melhor dos sabedores; 2) a ciência é capaz de responder a todas as questões teóricas e de resolver todos os problemas práticos, desde que bem formulados, quer dizer, positiva e racionalmente; 3) não somente é legítimo, mas sumamente desejável que seja confiado aos cientistas e aos técnicos o cuidado exclusivo de dirigirem todos os negócios humanos e sociais; como somente eles sabem o que é verdadeiro, somente eles podem dizer o que é bom e justo nos planos ético, político, econômico, educacional etc.

47 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del holocausto? Trad. Sara Costa. Buenos Aires: Del Puerto, 1993, p. 24. 48 JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 44. 49 Op. Cit., p. 44.

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Como adverte Étienne Gilson50, os dogmas do cientificismo podem ser tão arbitrários

quanto os religiosos o seriam de acordo com o ponto de vista dos cientistas. Assim

sendo, se há realmente o perigo e exemplos históricos passados e contemporâneos

de regimes totalitaristas influenciados por concepções religiosas, igualmente pode-

se temer e constatar exemplos semelhantes orientados pela crença desmedida nos

atributos do saber científico.

Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky organizam uma coletânea de textos sobre a

questão do fanatismo, chamando a atenção para o fato de que não se deve falar em

“fanatismo” (no singular), mas em “fanatismos” (no plural).51 Dessa forma, a obra

aborda o problema sob várias faces de sua manifestação, dividindo os textos em

blocos que têm por temática comum o problema proposto, mas sob suas

diversificadas “faces” (religiosa, racista, política e esportiva).52

A revelação divina atribuída a alguma entidade superior nos fanatismos religiosos

pode perfeitamente ser substituída pela crença em um suposto saber científico que

acaba sendo “divinizado”, ainda que jamais o admita. Nesse contexto, é a tão

decantada racionalidade científica que, levada a extremos, abre caminho para o

irracionalismo característico dos fanatismos que, invariavelmente, desembocam no

totalitarismo. A irracionalidade é condição para o fanatismo e também para o

totalitarismo a partir do momento em que a contestação não tem espaço.53 Certas

“verdades científicas” acabam desqualificando de tal forma seus opositores que

ganham foros de intangibilidade. Se uma raça é perversa por natureza, que valor

têm seus argumentos e que espécie de pessoas se dá ao trabalho de defendê-la?

Se os portadores de certos genes são maus, criminosos, pode-se dar crédito ao que

dizem ou àqueles que pretendem defender seus direitos?

A precaução contra essa espécie de “discurso científico” não configura um desejo de

opressão à livre pesquisa e à própria liberdade de expressão na sociedade. Na

50 Deus e a Filosofia. Trad. Ainda Macedo. Lisboa: Edições 70, 2002, “passim”. 51 Faces do Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 9. 52 Op. Cit., p. 15 – 282. 53 Op. Cit., p. 10.

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verdade, quando um pensamento (científico ou não) tem a pretensão de naturalizar

o mal moral, selecionando determinadas categorias de pessoas como suas

portadoras, seja por que for (crentes de certa religião, pertencentes a uma raça,

aderentes a um movimento político ou portadores de certos genes); claro está que

tais grupos é que terão seu direito de livre expressão absolutamente desrespeitado,

de acordo com aquilo que Fiss denomina de “efeito silenciador do discurso”. Nessas

circunstâncias o direito à livre expressão é limitado por si mesmo, pois, a partir do

momento em que seu exercício ilimitado implicaria no silenciar de contra –

argumentos, nítida está a necessidade de impor-lhe limites.54

Embora não esteja totalmente seguro de que alguma teoria racista não possa ainda

cativar um número suficiente de incautos, ensejando algo semelhante com o

holocausto 55, penso que devemos crer que a humanidade, pelo menos

genericamente considerada, tenha aprendido alguma coisa com os erros do

passado e não mais se deixe levar por ideologias tão grosseiras.

No entanto, é fato que, como diz Bauman, “nenhuma das condições que tornaram

Auschwitz possível realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada

para evitar que tais possibilidades e princípios gerem catástrofes semelhantes a

Auschwitz”. 56 Talvez o próprio racismo possa ser o ingrediente para o aviltamento

da dignidade humana no século XXI, mas se ele não convencer como antes, quem

sabe uma versão mais sofisticada possa fazer o seu trabalho?

O nazismo se baseava em “verdades reveladas” pela “ciência”. Essas “verdades”

convenceram as pessoas um dia a acreditarem que “o mais imbecil dos ‘arianos

puros’ pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista”. Isso não

resultava de uma “apreensão racional da realidade, mas de uma verdade revelada

pela propaganda nazista”. Tratava-se de um “dogma de fé” legitimado por

argumentos pseudocientíficos.57

54 FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33 – 60. 55 Basta ver o que tem ocorrido na atualidade na África e Europa devido a conflitos étnicos e raciais. 56 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 30. 57 PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Op. Cit., p. 10.

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Ainda antes disso, no século XVIII, Petrus Camper ordenou regularmente uma

sucessão de crânios que ia dos macacos, passando pelos orangotangos até chegar

aos negros e daí, seguindo num suposto processo evolutivo, até chegar à outra

extremidade onde se achavam os asiáticos centrais e os europeus. Tratava-se

também de uma explicação pseudocientífica não só para a classificação das raças,

mas também para justificar “as disparidades de poder, ordenando-os em termos de

superioridade e inferioridade”.58

Hoje a genética, dependendo dos rumos que venha a tomar, tem o potencial de

engendrar uma versão mais sofisticada e sutil do racismo, com alto potencial

genocida e violador da dignidade humana.

Na extensa obra de Hannah Arendt podem-se coletar diversos pontos de contato

entre as características de um totalitarismo racista e segregador operado no

passado, com o potencial modelo calcado no determinismo genético da atualidade.

Uma primeira e importante aproximação encontra-se no fato de que o poder

genético projetado sobre o homem é muito mais profundo e opressivo do que

qualquer outro exemplo de controle político antes existente e executável.

É uma característica inerente aos regimes totalitários não se contentar com a

simples “irradiação do poder”, controlando os destinos exteriores das pessoas, mas

pretender imiscuir-se nas suas vidas espirituais interiores, donde o biopoder torna-se

o sonho de qualquer burocracia totalitária com sua gana de controle absoluto,

podendo interferir “com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior”.59

Não é sem razão que as utopias da biotecnologia têm evocado a memória do

nazismo e de outros regimes totalitários, conforme expõe o jornalista e historiador

José Arbex Júnior em entrevista concedida a Cláudio Tognolli:

58 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 81. 59 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 277.

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“Toda utopia tem uma forte vocação totalitária (a perfeição de um não – lugar que

projeta os desejos e a ideologia de quem a produz). No caso da biotecnologia como

uma ‘nova utopia’, ela me produz uma sensação de desumanização do homem por

um jogo, que tem como um dos componentes a total biologização do corpo

(entendido como máquina produtiva) e como outro componente a erradicação do

desejo, no sentido lacaniano, que só pode existir como resposta ao precário e ao

frágil provisório que constitui a humanidade do homem; o desejo da máquina

biotecnológica é substituído por metas, por ‘vontade de potência’. Isso me cheira a

nazismo”.60

Também Leão Serva61, em entrevista similar manifesta-se no mesmo sentido,

afirmando ver a biotecnologia “como a manifestação contemporânea do modelo de

medicina perseguido pelos nazistas”.

Entretanto, o poder de sedução desta e de outras utopias tendencialmente

totalitárias é muito grande e tem como sustentação dois pilares: o formato “científico”

de apresentação das idéias e a propaganda que difunde a ideologia.

A ciência funciona como um manto de segurança e neutralidade a legitimar o poder

absoluto pretendido. Nas palavras de Arendt:62 “Tanto no caso da publicidade

comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do

poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’

desaparece assim que eles assumem o poder”.

As informações veiculadas pela imprensa, dando conta dos supostos potenciais da

genética para a solução de todos os problemas humanos, colaboram para o reforço

da crença em uma utopia que se projeta para o futuro.

Além do fato de que tais informações nem mesmo retratam a realidade do estágio

das pesquisas e o verdadeiro potencial das técnicas, também ensejam um clima de

60 TOGNOLLI, Cláudio. A falácia da genética. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 233. 61 Op. Cit., p. 238. 62 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 394.

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aposta cega numa “salvação” que a ciência (agora a genética) teria o condão de

propiciar à humanidade, de forma a tornar desinteressantes considerações de ordem

ética sobre os procedimentos e conseqüências.

Bauman63 alerta para o fato de que a ciência costuma ser posta à parte das

considerações morais, mediante a preponderância do foco nos fins, sendo os meios

relegados a segundo plano, pelo menos quanto ao aspecto ético:

(...), mais do que qualquer outra autoridade, a ciência é autorizada pela opinião pública a praticar o princípio, de outra forma eticamente odioso, de que os fins justificam os meios. A ciência é o mais completo exemplo da dissociação entre meios e fins, que é o ideal da organização racional da conduta humana: os fins é que são submetidos a avaliação moral, não os meios.

Essa propaganda calcada no potencial de um conhecimento científico tem sido

freqüentemente utilizada justamente para protelar as discussões, gerando

argumentos incontestáveis no presente, já que seus efeitos promissores são sempre

projetados para o futuro, de modo a justificarem a atuação presente sem maiores

considerações éticas sobre os meios, tendo em vista os fins que se vislumbram à

frente.

Eis a lição de Arendt64:

A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica e absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista demagógico, a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos. Contudo, não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse método e não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um processo durante o qual “a ciência tornou-se um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza do homem”.

63 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 187. 64 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 395.

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Percebe-se, portanto, quão comum é que o totalitarismo se aproprie e aproveite do

cientificismo em sua propaganda como meio de convencimento e ocultação de

propósitos, inclusive sem grande preocupação com a real consistência das teorias

“científicas” preconizadas.

Na atualidade vivenciamos o que Tognolli chama de uma “febre biocrática”65 a

ensejar um poder de caracteres absolutamente inéditos na história da humanidade.

À “biocracia” corresponde a implantação de um “biopoder”, o qual apresenta um

espectro de irradiação muito mais amplo, com potencial de atuar diretamente sobre

os destinos de toda uma população, inclusive de gerações futuras.66

Esse biopoder, exercitado visando uma sociedade livre do crime e da violência, seria

dotado dos instrumentos necessários para atuar sobre os genes a fim de adequar o

comportamento da população às regras sociais consideradas convenientes.

Uma grave questão está em saber a quem seria dado o privilégio de decidir quais

seriam os padrões desejados por tal sociedade.

Talvez a suposta neutralidade científica indique que esse poder não deva

concentrar-se nas mãos de uma pessoa determinada, mas ser exercido de acordo

com o conhecimento técnico – científico devidamente burocratizado. Nesse contexto

o exercício do poder não apresenta um centro de irradiação, tornando-se impessoal,

alicerçado em critérios técnicos praticamente incontestáveis.

Essa diluição do poder, longe de enfraquecê-lo em sua atuação sobre o indivíduo,

torna-o absoluto. A conversão dos governos em “burocracias” faz com que não

pertençam mais ao império da lei ou dos homens, emanando agora de “escritórios

ou computadores anônimos, cuja dominação inteiramente despersonalizada pode vir

a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade sem o qual

65 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 94. 66 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 296.

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nenhuma vida comunitária é concebível, do que jamais foi a mais abusiva

arbitrariedade dos tiranos do passado”.67

Um dos traços que diferenciam as ditaduras dos governos totalitários está na

burocratização do poder tornado impessoal e, por isso, ainda mais arbitrário,

distante e atroz. A burocracia enquanto “mando de ninguém”, torna-se “a forma

menos humana e mais cruel de governo”.68

Essa característica de um “governo de ninguém”, que não significa “ausência de

governo”, como uma das mais “tirânicas e cruéis” versões do exercício do poder é

insistentemente destacada nas obras de Arendt.69

A impessoalidade do exercício do poder sustenta-se também na crença em uma

“ficção comunística”, ou seja, na suposição da existência de um interesse comum da

sociedade, o qual poderia ser assegurado pela força de uma “mão invisível” que

teria o condão de guiar o comportamento humano e produzir a harmonização de

eventuais conflitos de interesses.70

Ora, o que mais convincente e adequado a esse tipo de pensamento do que uma

modalidade de poder exercitável sobre a humanidade, partindo de seu interior, de

códigos genéticos sutilmente manipulados para guiar de forma irresistível o

comportamento e harmonizar a convivência social?

É impossível não fazer a ligação de todo esse contexto com a obra de ficção, hoje

nem tanto futurista, de Huxley, “Admirável Mundo Novo”, na qual um governo

totalitário instrumentaliza homens e mulheres “padronizados em grupos uniformes”,

objetivando a consecução da “estabilidade social”.71

67 ARENDT, Hanna. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 66. 68 Op. Cit., p. 94 – 95. 69 IDEM. A Condição Humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 50. 70 Op. Cit., p. 53 – 54. 71 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 2ª. ed. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2003, p. 14.

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2.4 A DESCONSTRUÇÃO DA AUTENTICIDADE COMO VIOLAÇÃO DA

DIGNIDADE HUMANA

Quando se trata da possibilidade de manipulação genética, especialmente

levantando-se a hipótese de alteração do genoma humano, mediante a exclusão de

características consideradas negativas a critério de quem quer que seja, impossível

não vislumbrar uma flagrante violação da autenticidade do homem em sua natural

diversidade.

Certamente uma das piores violências a serem perpetradas contra a humanidade

seria a exclusão arbitrária da riqueza da diversidade, característica esta, aliás, muito

claramente constatável por meio da própria genética, a qual demonstra a

singularidade de cada ser humano.

Talvez as gerações que não tenham conhecido o que seria viver em um mundo

onde as diferenças se chocavam sim, mas também surpreendiam, se completavam

e libertavam, não tenham noção daquilo que perderam. Entretanto, não é justo que

nós, cientes do que significa essa perda, condenemos nossos pósteros a um mundo

de homogeneidade monótona e arbitrária.

O que nos restaria em um mundo de seres humanos pré – moldados ao sabor de

uma burocracia qualquer, detentora do poder decisório do que seja bom ou mau em

relação à capacidade de conduta e à personalidade?

Possivelmente o mesmo sentimento, ainda mais aprofundado, retratado por

Saramago72 ao ver os pés de oliveira dos campos de sua terra natal expulsos pelo

milho híbrido por força de interesses comerciais. Deixemos falar o artista:

Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Européia pagou um prêmio aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de tocas onde se acoitavam os lagartos, em lugar

72 SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.

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dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos.

Jonas fala em sua obra das utopias do “homem autêntico vindouro”, dentre as quais

menciona o “super – homem” do futuro de Nietzsche, e a superioridade dos homens

criados numa sociedade sem classes, defendida pelos mentores das teorias

socialistas. O primeiro não disse jamais uma palavra sobre o que se poderia

concretamente fazer para o advento de seu “super – homem”. Os segundos

alicerçavam suas crenças nos poderes miraculosos de uma nova sociedade erigida

sobre um modelo econômico revolucionário.73 Mas, ambas as teorizações têm em

comum um projeto de homogeneização do humano, extirpando as diferenças, as

variações, seja sob o ponto de vista social ou mesmo da própria personalidade.

Quem sabe na atualidade a manipulação genética pudesse tornar tais projetos bem

mais palpáveis?

A questão, porém, é saber se é possível falar em um homem autêntico construído na

homogeneidade. Parece que esse quadro, longe de esboçar a autenticidade

humana, a destrói, ao pretender eliminar a diferença, o inesperado e até o ambíguo

que é inerente à humanidade.

Nas palavras de Jonas: 74

Tendremos también que resignarmos a esto, a que no existe una naturaleza unívoca del hombre, a que, por ejemplo, el hombre no es por naturaleza ( en si) ni bueno ni malo; el hombre tiene la capacidad de ser bueno o ser malo, más aún, de ser lo uno con lo outro; y esto forma parte de su esencia. Cierto es que de los grandes malvados se dice que son inhumanos, pero solo los hombres pueden ser inhumanos; y los grandes malvados ponen de manifesto la naturaleza de el hombre no menos que los grandes santos. Habrá de rechazarse también, por tanto, la idea de una riqueza de la naturaleza humana existente, pero dormida, que solo aguarda a ser abierta (des – encadenada) para luego, en virtud de aquella naturaleza mostrarse. Solamente existe la dotación biológico – anímica de esta naturaleza para la riqueza y pobreza del poder – ser; riqueza y pobreza son igualmente

73 JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995, p. 258 – 263. 74 Op. Cit., p. 350 – 351.

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naturales, si bien se da un predomínio de la última, pues la pobreza en humanidad puede ser tanto impuesta por unas circunstancias adversas como elegida – incluso en las circunstancias más favorables – por la pereza y la sobornabilidad (impulsos verdaderamente naturales), mientras que la riqueza del yo, además del favor de las circunstancias, exige esfuerzo (y a el de la lucha contra la pereza).

A extinção dessa potência do “poder – ser” humano convertida em um ser pré –

fabricado é altamente limitadora. Se por um lado, como já visto, a crença em um

determinismo biológico ou genético exime o homem de responsabilidade, também

lhe nega concomitantemente a liberdade. Assim também, a construção de um

homem geneticamente direcionado para o “bem” (ainda que sem entrar em

pormenores sobre a legitimidade desse conceito formulado por alguém ou alguns),

praticamente extermina a noção do mérito da ação moral, juntamente com a

liberdade e a identidade de cada ser humano.

É bem verdade que a grandeza da liberdade não é isenta de riscos, inclusive

altamente negativos. Mas, é preferível viver em um mundo onde a escolha é

possível do que em outro onde tudo é pré – determinado. É de Viktor Frankl75 a

afirmação de que é melhor um mundo no qual seja possível, por um lado, um

fenômeno como o de Adolf Hitler e, por outro, o de tantos santos que já viveram.

Necessário se faz recordar que a singularidade é uma nota característica de toda

existência humana.76

Há um terrível perigo que corre todo aquele que tem a pretensão de aprimorar algo,

qual seja, o risco de que suas mudanças acabem por desnaturar o original,

transformando-o em algo que nada mais tem em comum com aquilo que

inicialmente era.

Um breve conto de Brecht77 muito bem ilustra esse dilema:

75 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em: www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 44. É bom lembrar que Frankl sofreu na pele as agruras do nazismo. 76 Op. Cit., p. 46. 77 BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 33.

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O personagem Sr. Keuner narra, no episódio intitulado “Forma e Conteúdo”, que certa vez trabalhou com um jardineiro. Este lhe entregou uma tesoura e mandou aparar um loureiro, orientando-o a fazer o corte de modo que a árvore ficasse com a forma de uma bola. O Sr. Keuner deu início imediato ao trabalho, cortando os brotos selvagens, mas sentindo sérias dificuldades para atingir o formato de uma bola. Finalmente a árvore tomou em suas folhagens o aspecto de uma bola, mas estava muito pequena. Por isso, quando o jardineiro veio inspecionar seu trabalho, disse decepcionado: “Certo, isto é uma bola, mas onde está o loureiro?”.

O desejo de aprimoramento do homem por meios genéticos revela um anelo de fuga

da “condição humana” que nos é dada para ingressar em um novo estágio no qual o

próprio homem pretende moldar sua condição. Move a humanidade um desejo

incontido de afastamento da natureza, seja pela criação de ambientes artificiais,

seja, agora, pela possibilidade da criação de um “homem artificial”. É esse

desiderato que se manifesta quando se pretende criar a vida em uma proveta ou unir

sob um microscópio o sêmen de pessoas altamente capazes com o fim de produzir

“seres humanos superiores”, mudar-lhes as dimensões, as formas, as capacidades

etc. Também certamente o mesmo desejo de escapar da “condição humana” anime

a “esperança de prolongar a duração da vida humana para além dos cem anos”.

Realmente o homem do futuro, projetado pelos cientistas para menos de um século,

“parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi

dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja

trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para

duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo

para duvidar de nossa capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A

questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento

científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é

uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por

cientistas profissionais nem por políticos profissionais”.78

O que Arendt propõe é que os potenciais e riscos advindos com os novos

conhecimentos científicos não sejam simplesmente “engolidos” por todos em silêncio

respeitoso à figura do “cientista sábio”. A autora convida todos a agirem,

concebendo a ação como a efetiva participação política nas importantes decisões a

78 ARENDT, Hanna. A condição humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 10 – 11.

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serem tomadas. A responsabilidade e o dever de reflexão sobre os rumos a serem

seguidos não são pertencentes a um grupo privilegiado, mas a toda humanidade. 79

E neste ponto podemos retomar com Arendt a questão da singularidade humana

como essencial para a preservação da autenticidade do homem.

Lembrando Santo Agostinho (De Civitate Dei, XII, 21), recupera a pluralidade como

um dos fatores preponderantes na diferença entre o homem e o animal. Isso porque

o primeiro foi criado “unum ac singulum”, enquanto os animais foram ordenados a

existirem “vários de uma só vez” (“plura simul iussit existere”). Para Santo Agostinho,

a criação demonstra que os animais vivem como “espécie”, ao passo que os

homens têm uma existência singular. Resta claro que “a pluralidade é a condição da

ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que

ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido ou venha a

existir”. 80

Note-se que a ação do homem, isto é, sua participação ativa na sociedade, seus

atos próprios, suas manifestações pessoais, só é viável, tendo em conta sua

singularidade; o inesperado que carrega em si cada ser humano. Sem isso, o

homem pode ser o mesmo que o cão eterno vivendo na espécie, com seus latidos e

o rabo a abanar do início ao fim dos séculos, como vislumbra Schopenhauer. 81

Acontece que no homem está ínsita a novidade e “o novo sempre surge sob o

disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode

esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E

isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada

nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”. 82 Pretender evitar essa

originalidade é o mesmo que destruir um milagre.

79 Op. Cit., p. 13. Deve-se dar especial ênfase à importância que Hanna Arendt dá à participação ativa do homem na sociedade (“Vita Activa”). Para a autora o que caracteriza o homem em sua condição humana é a ação, entendida como participação política, manifestação de sua personalidade e identidade no seio da sociedade. O labor e o trabalho também integram o ser do homem, sua condição, mas somente a ação é que o caracteriza realmente como humano. 80 Op. Cit., p. 16. 81 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte, Metafísica do Amor, Do sofrimento do mundo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46. 82 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 191.

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A singularidade necessariamente se imbrica com a liberdade, pois somente sendo

livre poderá o homem ser o que desejar ser e não aquilo a que seja obrigado a ser

por forças naturais ou por outros homens. Não é sem razão que Max Frisch define a

identidade como “a rejeição daquilo que os outros desejam que você seja”. 83

A tentativa de levar adiante a metáfora da identidade humana como um quebra –

cabeças a ser montado com peças pré – determinadas é vã e inadequada. Esse

quebra – cabeças somente seria aceitável se fosse assumido como sempre

incompleto e imprevisível, deixado nas mãos de cada homem singular para criar sua

identidade livre da opressão ou limites externos.84

O homem jamais pode ser concebido como uma espécie de massa de moldar.

Somente a crueldade profunda e a megalomania ou uma inocência pueril podem

levar a crer ser possível direcionar vidas humanas como brinquedos de crianças.

Arendt chama a atenção para o fato de que a expressão “material humano” não

deve ser percebida simplesmente como uma metáfora inofensiva.

Ao seu lado seguem “inúmeras experiências científicas modernas no campo da

engenharia social, da bioquímica, da cirurgia cerebral etc., todas visando a

manipular e modificar o material humano como se se tratasse de qualquer outro

material”. Essa é uma postura “mecanicista” característica da modernidade. Na

antiguidade, visando os mesmos objetivos, o homem era concebido “como um

animal selvagem que devia ser domado e domesticado”. O que importa é que em

qualquer caso, esse tratamento implica na “morte do homem”, talvez não como

“organismo vivo, mas enquanto homem”.85

Ratzinger também alerta para o perigo inerente à tentação do homem “criar o

homem”. Nada mais que uma recente “forma de poder, que aparentemente pode até

parecer benéfica e digna de aprovação, mas que na realidade poderia tornar-se uma

nova ameaça para o homem”. É sabido ser possível produzir homens em tubos de

83 Apud, BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 45. 84 Op. Cit., p. 54 – 55. 85 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 201.

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ensaio, mas com isso o humano “torna-se um produto”, alterando drasticamente seu

relacionamento consigo mesmo. Perde a característica de um “dom da natureza ou

do Deus criador” para tornar-se “produto de si mesmo”, numa descida até as

profundezas “da fonte de poder, até as nascentes de sua própria existência”. Daí

conclui-se que “a tentação de construir o homem perfeito, a tentação de fazer

experiências com o homem, a tentação de considerar como lixo os homens e livrar-

se deles já não são mais fantasias de moralistas hostis ao progresso”.86

É imperativo rechaçar qualquer visão reducionista do humano capaz de

instrumentalizá-lo, violando sua dignidade e produzindo sua reificação. Viktor Frankl

advoga a urgência de superar qualquer espécie de reducionismo. E há reducionismo

na visão biologista, no condutivismo, no psicologismo, no sociologismo e até no

antropologismo. Todas essas visões reducionistas levam ao niilismo e constroem

uma falsa imagem do homem, pois o concebem como um “homúnculo”, um artefato.

Dessa forma não se pode compreender o homem, mas sim estabelecer-lhe uma

imagem distorcida e mutilada, extremamente pobre, a que se pode denominar de

“homunculismo”, na qual o ser humano é visto como um autômato de reflexos e

instintos, como um mero produto de impulsos, herança e meio ambiente.87

Para trabalhar com o que é humano é preciso acostumar-se com o imprevisível e

não pretender eliminá-lo das equações; é preciso tolerar e, mais que isso, valorizar a

diversidade do gênero humano. Caso contrário, o que ocorre é uma tendência ao

“genocídio”, entendido como “um ataque à diversidade humana enquanto tal, isto é,

a uma característica do ‘status humano’ sem a qual a simples palavra ‘humanidade’

perde o sentido”.88 Não é porque a forma de eliminação da diversidade é praticada

com maior sutileza, através de manipulações microscópicas, e não por meio de

massacres de milhares de pessoas em câmaras de gás, a golpes de facão ou por

fuzilamento, que o ato genocida é menos gravoso ou inexiste. Ao reverso, quanto

mais sutil, mais imperceptível e insidiosa a ação, maior o seu potencial destrutivo.

86 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Bento XVI questões de fé, ética e pensamento na obra de Joseph Ratzinger. Trad. Roberto Cattani. São Paulo: Claridade, 2005, p. 107 – 108. 87 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 38. 88 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. 6ª.ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 291.

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A tal ponto pode chegar a atuação da ciência por meio da genética, alterando

arbitrariamente o genoma humano, que caracteres podem simplesmente deixar de

existir de forma irrecuperável, atingindo irreversivelmente futuras gerações.

Este é um dos novos desafios da ética contemporânea, o qual produz uma

“densificação da noção de responsabilidade”. A responsabilidade requerida nos dias

atuais se apresenta muito mais complexa e geradora de maior comprometimento.

Na ética tradicional a responsabilidade do ator se adstringe ao que é previsível,

àquilo que é controlável no espaço do cognoscível, do imediato ou, no máximo, do

próximo. Mas, esse paradigma se alterou muito drástica e rapidamente, de modo

que hoje “somos também responsáveis por tudo aquilo que, muito embora não seja

imediatamente previsível é já expectável”. Não é à toa que se firma atualmente uma

chamada “Fernethik”, ou seja, uma ética de responsabilidade que “carrega em si o

elemento novo da distância longínqua”. Dessa maneira, vivemos o futuro no

presente, um futuro que se mostra “não como simples e encantatória evanescência,

mas como uma realidade densa que condiciona toda e qualquer decisão de hoje”.

Opera-se, em verdade, uma “contração temporal” a que não estavam familiarizadas

as construções éticas tradicionais. 89

Retomando a especificidade do objeto deste trabalho, deve-se considerar que a

diversidade humana não se manifesta somente nas diferenças entre os homens,

mas também na impermanência do homem em relação a si mesmo; no fato de que

todo ser humano jamais pode ser tomado como acabado, pronto ou definitivo. O

homem é sempre um projeto, um contínuo porvir, como bem retratam as palavras do

poeta: 90

“Quem és não o serás, que o tempo e a sorte”. Te mudarão em outro”.

Portanto, é absurda a pretensão de prever ou prognosticar quem será o homem que

hoje se apresenta à nossa frente, seja com base em que espécie de conhecimento

89 COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de Filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 200 – 201. 90 PESSOA, Fernando. Op. Cit., p. 141.

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for inclusive no genético. Não há como cortar fatores e simplificar arbitrariamente a

complexa e caótica equação humana. Certamente aqui se pode falar com segurança

de uma “complexidade irredutível”. Quando essa simplificação é levada a efeito,

reduz-se o homem a um ou alguns de seus aspectos isolados, mutilando-o e

convertendo-o no “homúnculo” caricato de que fala Viktor Frankl.

No ano de 1959, Roberto Rosselini produziu um filme chamado “O General Della

Rovere”. Segundo consta, a história é baseada em fatos reais. Conta o filme haver

um homem mal caráter, um baixo vigarista, capaz de tirar dinheiro do luto alheio, da

dor e da aflição das pessoas, sem pesar-lhe um momento sequer a consciência.

Frente às suas vítimas, procura iludi-las a elas e a si mesmo, argumentando haver

agido movido pela piedade. Ora, desde que um tal sentimento possa render

dinheiro, tudo bem. Seu nome é Brandone e segue obtendo dinheiro em troca de

vãs promessas de ajuda “a presos políticos, resistentes, guerrilheiros, em poder dos

alemães”. É um homem sedutor, de fala macia “por natureza e necessidade do

ofício”, um enganador medíocre que seguiria nessa toada até o fim de seus dias ou

até um golpe de monta que o fizesse enriquecer e poder, finalmente, ingressar no

grupo das pessoas que vivem honestamente. No entanto, está este homem

destinado a outra conquista: “a da dignidade”.

Quando suas artimanhas são descobertas a Gestapo lhe oferece a chance de

salvar-se e ainda locupletar-se com uma gorda recompensa em dinheiro. Ele aceita.

Sua missão é ocupar na prisão o lugar do General Della Rovere (o qual morreu no

desembarque clandestino na Itália, quando deveria encontrar-se com Fabrizio, um

líder da resistência). Brandone deveria agir para denunciar o líder Fabrizio, o qual

também estava preso, mas cuja identidade era ignorada pela Gestapo. No

seguimento natural das coisas Brandone iria fechar sua carreira de imoralidades

como “o grande denunciante”, “o grande traidor”. Ele que nunca passara de um

estelionatário medíocre, poderia terminar na riqueza e, quem sabe, ainda usufruindo

alguma “honra”, como um comendador ou coisa semelhante ao final da guerra.

Acontece que “as oportunidades e as situações é que fazem e desfazem os

homens”. Disfarçado como o general, recolhido a uma cela “cujas paredes

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conservam ainda as palavras de despedida dos resistentes fuzilados, forçado pelos

acontecimentos a mostrar-se firme e valente – acorda nele pouco a pouco um outro

homem”. É confrontado com a tortura, a coragem real e um respeito que nunca

merecera e nem recebera de ninguém. Tudo isso o converte profundamente no

General Della Rovere, “tomando atitudes e dizendo palavras que do general se

esperavam”. Ao final, quando tudo se perde e ele é submetido a torturas, mas ainda

lhe acena a oportunidade de salvar a própria vida delatando Fabrizio, ele opta

livremente por caminhar com os outros detentos para o poste da execução. “São

dele as palavras corajosas que honram a pátria e reclamam a derrota dos inimigos.

Aos olhos de todos é o General Della Rovere que morre”. No entanto, os

espectadores sabem que “quem vai morrer é um pobre homem, fraco, burlão,

jogador sem sorte, chamado Brandone, que aprendeu a ser corajoso, honrado e

digno. Esta morte é uma vitória”.

Novamente é José Saramago quem nos brinda com sua sensibilidade ao captar e

descrever a mensagem de um filme que chega à profundidade da alma humana

mutável e surpreendente, acrescentando ainda que “talvez a fraqueza de cada um

de nós não seja irremediável. A vida está aí à nossa espera, quem sabe se para tirar

a prova real do que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?”. 91

A eventual intervenção ou influência exercida sobre o homem, visando seu

aprimoramento moral não pode basear-se na alteração arbitrária de sua

personalidade, acomodando-a a padrões alheios. Isso seria uma forma de

padronizar os seres humanos, instrumentalizando-os e tratando-os como coisas e

não como pessoas. Também seria desconsiderar sua diversidade e impermanência,

sua liberdade de expressão e pensamento, que merecem respeito sempre, somente

comportando limitações quando por condutas exteriores venham a prejudicar os

direitos correlatos dos outros.

O homem vive em relação contínua com as coisas e com os outros homens no

mundo. Esses “entes” são tudo aquilo que “existe concretamente”, “designando tudo

o que nos encontra, nos cerca, nos conduz, nos constrange, nos enfeitiça e nos

91 A Bagagem do Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 133 – 135.

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preenche, nos exalta e nos decepciona”. 92 No entanto, a relação do homem para

com os “entes – envolventes”, ou seja, “a presença simples e objetivada” das coisas

e da natureza não é a mesma que mantém com o “ser – aí” (“Dasein”) dos outros

(homens). “Estes entes não são jamais meros objetos ou entes – envolventes; ao

contrário, são como é o verdadeiro ser – aí que os desvela, ‘são aí também’ e ‘aí

com’”.93

O “eu” do homem em relação aos “outros” não deve ser compreendido

isoladamente. Esses “outros” não são todas as demais pessoas com exceção de

mim mesmo. Na verdade, “esses ‘outros’ são aqueles de quem, na maioria das

vezes, alguém não pode se distinguir – aqueles no meio dos quais alguém também

está”. Dessa forma, não se trata de mera presença objetivada junto com os outros.

Trata-se de um “ser – lá – também – com eles dentro do mundo”, de tal maneira que

“o mundo é sempre algo que eu partilho com os outros”.94

Observe-se que a nossa maneira de atuar perante os “entes – envolventes” pode ser

definida como o “cuidar”. Não obstante, o “cuidar” não serve para descrever a

relação entre o “Dasein” e o “ser – aí – com”, ou seja, entre as pessoas. Os outros

“com os quais o ser – aí como ser – com se comporta não têm o mesmo modo de

ser que pertence à ‘totalidade dos entes – envolventes’”, pois eles próprios são ser –

aí e não mera presença objetivada. Assim, a eles não está reservado o “cuidar”, mas

sim a “solicitude”. Os entes com que o “ser – aí é com, não são objetos de cuidado,

mas de solicitude”.95

Entretanto, a própria solicitude pode desvirtuar-se no extremo do “tomar conta do

outro”, aproximando-se de um modo de “cuidar”, como se faz com as coisas.

Assume-se o encargo do outro que é o de cuidar de si mesmo. Isso produz uma

retirada do outro de seu lugar próprio, podendo torná-lo alguém dominado e

dependente. Nesse contexto ocorre um “saltar sobre o outro” que, na realidade, é

próprio de nossa relação de cuidado para com os entes – envolventes (coisas).

92 HEIDEGGER, Martin, Apud, JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Op. Cit., p. 82. 93 HEIDEGGER, Martin. Todos nós...ninguém. Trad. Dulce Maria Critelli. São Paulo: Moraes, 1981, p. 34. 94 Op. Cit., p. 34 – 35. 95 Op. Cit., p. 40.

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Resta claro que essa atuação sobre o outro o reifica e instrumentaliza. Portanto, a

relação não deve ser esta, não se deve “saltar sobre o outro”, “mas antecipar-se a

ele em sua existencial possibilidade – para – ser” de forma a salvá-lo para “torná-lo

transparente a si mesmo em seu cuidar e para torná-lo livre para si”.96

A relação entre os homens não deve ser orientada pelo salto sobre o outro que o

domina, mas sim pelo salto “diante do outro, que o liberta”.97

Percebe-se que a genética tem o potencial de invalidar o existencialismo, que

descreve a vida humana como “um projeto de realização pessoal, de

‘transformação’” (grifo nosso), de maneira que quem somos vai mudando de acordo

com o desenrolar do referido projeto. 98 Segundo Sartre, “o homem é apenas uma

situação” ou “nada mais do que aquilo que ele faz de si mesmo (...) o ser que se

lança para o futuro e que tem consciência de se imaginar como ser no futuro”. Para

ele “a modelagem de si mesmo” é um ato afirmativo da humanidade que não se

sujeita a qualquer espécie de determinismo, “o homem é livre, o homem é

liberdade”.99

É claro que essa liberdade não é isenta de perigos e responsabilidades. Em anexo à

obra de seleção de textos de Heidegger antes examinada, tratando do tema da

educação, Dulce Critelli bem destaca que o “saltar sobre o outro” o alivia e alija “da

responsabilidade de seu próprio ser” na medida em que lhe tolhe a liberdade. De

outra banda, o “libertador”, que “salta diante do outro” e lhe entrega “à sua própria

transparência e responsabilidade”, permite-lhe tomar as rédeas do próprio destino,

com todos os prazeres e dores daí advindos. Parece muito claro que o “outro”,

enquanto ser humano dotado de dignidade, somente poderia ser tratado com essa

autonomia. No entanto, é fato que uma das mais duras dificuldades que

encontramos em nossa relação com os outros “é a de sermos capazes de confiar ao

outro o seu destino, de confiar no destino que ele descobre, de confiarmos na

96 Op. Cit., p. 41. 97 Op. Cit., p. 42. 98 FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 151. 99 SARTRE, Jean – Paul, Apud, Op. Cit., p. 151 – 152.

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possibilidade do outro responsabilizar-se por ele mesmo, pela possibilidade desse

destino escapar à nossa determinação”.100

Este é um dos fortes motivos que tornam tão tentadora a eventual possibilidade da

programação genética de seres humanos, em especial no âmbito criminológico.

Nossa tendência a pretender dominar os outros nos impele ao objetivo e à crença da

determinação e controle absoluto das personalidades e condutas alheias.

Quando a ciência e a técnica nos acenam com a possibilidade prática desse projeto,

o agir parece correr adiante do pensar, deixando no caminho, desprezados,

aspectos sumamente relevantes para a preservação (ou conquista paulatina) da

dignidade da pessoa humana.

Infelizmente, a dinâmica veloz da sociedade contemporânea vem ocasionando com

freqüência essa perversão da ordem entre o pensar e o agir, na qual o segundo se

antecipa ao primeiro que resta simplesmente abandonado. Afinal, “a uma civilização

que se consuma e se consome ao nível exclusivo do ‘fazer’, o compreender torna-se

obsoleto e sem sentido”.101

É preciso perceber o quanto essa perversão pode ser deletéria e recuperar o pensar

como pressuposto do agir, especialmente quando se trata de questões que

envolvem o “status dignitatis” do humano. Aí se destaca a missão da bioética e da

filosofia como veículos do pensar. O pensamento ético – filosófico não remete

somente ao pragmatismo de um agir, mas também o abrange e supera. Conforme

afirma Critelli, “o fazer e o pensar, enquanto possibilidades existenciais e

eqüiprimordiais do homem, imbricam-se mutuamente. Muito embora fazer e pensar

não sejam excludentes um do outro, a recuperação da ação de pensar implica que,

num primeiro momento, possamos nos entregar à ação de pensar o pensamento,

independendo do vasculhar a que tipo de fazer ele nos possa conduzir. Precisamos

pensar o pensamento e permitir que o fazer pragmático não catalise nossas

atenções. Precisamos permitir que um novo fazer emerja de um novo horizonte. O

100 CRITELLI, Dulce Mara. Para recuperar a educação. In: HEIDEGGER, Martin. Op. Cit., p. 70 – 71. 101 Op. Cit., p. 60.

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pensar abre o fazer, mas só se confiarmos no vigor do próprio pensamento. Se a

única coisa que podemos querer é a prontidade das respostas, das fórmulas, das

regras, nesse querer o pensar não pode se presentificar como sendo fundamental.

A difícil tarefa dos que querem ir mais além de um fazer pragmático sem se sentirem

sufocados pela ‘incerteza imediata’ de um ‘o que’ fazer e pela segurança do já

convencionado, é poder deixar o fazer no ‘vazio’, abandonar sua prioridade e,

concomitantemente, poder abandonar-se à verdade de um fim ainda não dado”.102

Em suma, é preciso compreender que a ciência e a técnica podem nos dizer

claramente tudo aquilo que “podemos” fazer, mas nada podem esclarecer quanto

àquilo que “devemos ou não devemos” fazer.

2.5 CRIMINOLOGA GENÉTICA: UMA PERIGOSA MISTURA DE

FANTASIAS, INTOLERÂNCIA E EXCLUSÃO

É comum deparar com a divulgação de “estudos científicos” que afirmam poder

detectar “genes da esquizofrenia, genes sensíveis aos poluentes industriais e a

condições insalubres de trabalho, genes da criminalidade, genes da violência, genes

do divórcio e genes dos marginais”. Para Daniel Kleves103, citado por Cláudio

Tognolli, “o racismo dos nazistas agora se converte em clínicas genéticas”.

O grande problema relacionado a essas ilusões reducionistas é que elas podem

fomentar toda uma mentalidade destrutiva, a qual, depois de posta em movimento,

torna-se muito difícil de conter.

Questões como alcoolismo, desagregação familiar, violência e criminalidade são

extremamente complexas e esse reconhecimento (da complexidade) não é

alentador. Ele nos joga muitas vezes em meio à indeterminação, a um universo de

perguntas sem respostas ou com respostas sujeitas a inúmeras variáveis. A

sensação é desagradável e então se tende a buscar alguma solução simplista ou

102 Op. Cit., p. 60 – 61. 103 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 84.

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simplificada, ainda que isso implique na mutilação da verdade com todas as suas

terríveis conseqüências.104

A pretensão de descobrir algo que guia o agir humano, obliterando a

intencionalidade, não é novidade. O inconsciente em Freud, a “vontade de

representação” como um “querer cego e irracional” em Schopenhauer, são exemplos

desse intento levado a efeito anteriormente. De acordo com essas concepções

somente conhecemos o agir humano como uma “casca” de algo oculto que o

determina e que não está no domínio do “querer” livre do homem. As teorias

genéticas, sem inovar muito no cerne do pensamento, apenas apresentam algo mais

concreto como explicação. Ao invés da “vontade” ou do “inconsciente” como fatores

extremamente imateriais e intangíveis, a ciência agora apresenta, sob as lentes

microscópicas, a materialização daquilo que determina e conduz o homem, ou seja,

os genes.105

Sem negar o fato de que a genética pode oferecer respostas e benefícios, é

necessário perceber que ela, como qualquer outro ramo do saber, somente pode

deter parte da verdade.

Invariavelmente, quando a verdade é atribuída exclusivamente a algum ramo do

saber, da atividade humana ou do pensamento, advém a intolerância, a arrogância e

a exclusão.

Os exemplos, inclusive ligados ao tema discutido, não são difíceis de encontrar.

Sabe-se que em 1907, no Estado de Indiana, nos EUA, promulgou-se a “primeira lei

de esterilização compulsória”, que visava impedir a procriação de “criminosos,

idiotas, estupradores e imbecis”. O Estado passava então, de forma arbitrária, a

decidir quem podia ou não ter filhos, e pior, quem podia ou não nascer. Por esta

razão a legislação chegou a ser contestada na Justiça. Mas, em 1927, a Suprema

Corte confirmou lei similar do Estado de Virgínia, dando ênfase ao pragmatismo do

104 BURTT, Edwin. As bases metafísicas da ciência moderna. Trad. José Viegas Filho e Orlando Araújo Henriques. Brasília: UNB, 1984, p. 195. 105 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 85 – 86.

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procedimento seletivo – preventivo. Foram as seguintes as palavras do relator da

decisão, Oliver Wendell Holmes:106

“Será melhor para o mundo inteiro que, em vez de esperar para executar uma prole degenerada pelos crimes que cometeu ou deixá-la morrer à míngua por sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os manifestamente inaptos de perpetuarem a própria espécie (...). Três gerações de imbecis é o suficiente”.

É impossível deixar de fazer o elo entre a realidade do fato histórico acima exposto e

a obra de ficção satírica de Swift107, que toca a ferida da exclusão e da indiferença:

“Algumas pessoas de espírito desalentado estão bastante preocupadas com o grande número de pobres, idosos, doentes e mutilados e tenho sido solicitado a empregar meu pensamento para encontrar alguma possível solução que alivie a nação de tão pesado fardo. Mas essa questão não me preocupa nem um pouco, pois é bem sabido que eles estão a cada dia morrendo e apodrecendo, de frio e de fome, e de sujeira e de vermes, tão rapidamente como se possa razoavelmente esperar. E, quanto aos trabalhadores mais jovens, eles estão agora em situação quase tão promissora: não conseguem trabalho e, conseqüentemente, estão desfalecendo por falta de alimento, a tal ponto que, se fossem, por acaso, contratados para algum serviço ordinário, não teriam forças para executá-lo, estando assim o país e eles próprios, felizmente, livres dos males que estão por vir”.

É dessa lógica exclusiva cruel que devemos nos precaver, e é ela que ameaça

conduzir os rumos de uma Criminologia Genética desatenta (intencionalmente ou

não) para com a complexidade do ser humano.

Collins108 bem destaca essa premente necessidade frente aos potenciais da

genética, asseverando que, “embora contenha uma promessa estimulante no

aprimoramento de intervenções em doenças psiquiátricas, a pesquisa genética

sobre comportamentos humanos, de algum modo, é perturbadora, pois parece trilhar

perto demais como uma ameaça ao nosso livre arbítrio, a nossa individualidade e

talvez mesmo a nossa espiritualidade”.

106 WATSON, James D., BERRY, Andrew. DNA o segredo da vida. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 40 – 41. 107 SWIFT, Jonathan. Modesta proposta e outros textos satíricos. Trad. José Oscar de Almeida Marques e Dorothée de Bruchard. São Paulo: UNESP, 2005, p. 29. 108 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 262.

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Mister se faz “confrontar a promessa e a ameaça da genética”.109 É bem verdade

que as potencialidades vislumbradas com o seu advento produziram um “efeito

inebriante”, levando os mais entusiasmados a aventar a hipótese de que os genes

poderiam fornecer explicações seguras para vários ou mesmo a totalidade do

comportamento humano e que este poderia ser controlado mediante intervenções e

manipulações precisas do código genético.110

A tentação de aperfeiçoar a natureza é inerente ao espírito humano e não é

apanágio da ciência. Na arte já se pretendeu superar o mero retrato do mundo, de

modo que “todo artista era um idealista” que pretendia superar a natureza. Na

ciência e na técnica os esforços para o aperfeiçoamento da natureza, especialmente

tendo em vista os fins humanos, têm pelo menos “dez mil anos de história atrás de

si”. Esse esforço tem suas origens nas técnicas de acasalamento de animais de

diferentes espécies, visando obter espécimes mais dóceis no trato, de carne melhor

e mais saborosa etc. Também a botânica pode ser apontada como uma das

atividades pioneiras desse intento humano, logrando produzir vegetais comestíveis,

ornamentais etc. 111

Nenhum susto pode provocar que essa perspectiva se espraiasse e chegasse à

intenção de aperfeiçoar os próprios seres humanos. Esse objetivo é antigo, podendo

ser constatado já no pensamento de Platão, e possivelmente tais idéias não eram

originais dele, mas resultado de observações comuns em sua época. Encontramos

nele o ideal da busca de uma sociedade perfeita constituída de homens perfeitos,

os quais deveriam ser incentivados a reproduzir, enquanto os imperfeitos deveriam

ser exterminados. Nota-se que muito antes dos conhecimentos genéticos

sofisticados estarem disponíveis a idéia da hereditariedade determinista já produzia

seus frutos.112

Vejamos o que o filósofo fala pela boca de Sócrates113 em “A República”:

109 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 134. 110 Op. Cit., p. 135. 111 Op. Cit., p. 140. 112 Op. Cit., p. 141. 113 PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 162.

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“De acordo com os nossos princípios, é necessário tornar as relações muito freqüentes entre os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário, bastante raras entre os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além do mais, é necessário educar os filhos dos primeiros, e não os dos segundos, se quisermos que o rebanho atinja a mais elevada perfeição; e todas estas medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistrados, a fim de que, tanto quanto possível, a discórdia não se insinue entre os guerreiros”.

O ideal de Platão estava na harmonia que impregnava suas concepções desde a

cosmologia até a política. Ele pretendeu desconsiderar as irregularidades dos

movimentos dos corpos celestes, idealizando sua movimentação em círculos

regulares. Intentou comprovar sua tese com um misto de matemática e teologia que

poderia comprovar o caráter divino dos corpos celestes pela inalterável regularidade

de seus movimentos circulares e perfeitos. Com isso pretendia banir as alterações e

irregularidades dos céus. De forma análoga, idealizará em sua República uma utopia

“totalitária, puritana e inquisitorial” da qual serão banidos todos os desviados,

irregulares ou dissonantes. 114

Uma nova roupagem para as mesmas idéias surge no século XIX na Europa e na

América do Norte sob o signo do racismo. Francis Galton, primo de Darwin, em

1885, faz a proposta indecente da “eugenia”, segundo a qual “a espécie humana

poderia ser aperfeiçoada pela eliminação de qualidades mentais e morais

indesejáveis”, o que poderia ser levado a efeito por meio de “uma fertilidade

seletivamente controlada”. 115 É de Galton a seguinte manifestação entusiasmada,

datada de 1865:

“Se a vigésima parte dos custos e esforços que são despendidos para o aperfeiçoamento da reprodução de cavalos e gado fosse gasta em medidas para o aperfeiçoamento da raça humana, que galáxia de gênios não poderíamos criar!” 116

Essa ideologia dominou o pensamento de uma época, reforçada pelo racismo. A

Rússia Soviética, em seus primórdios, e certas regiões dos EUA adotavam a

proibição do casamento para pessoas “oficialmente classificadas como débeis

mentais, criminosos e até (em alguns casos) alcoólatras”. No ano de 1926, em

114 PRADE, Péricles. Revoluções Culturais. São Paulo: Escrituras, 2004, p. 16 – 17. 115 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 141. 116 Apud, Op. Cit., p. 141. Parece que Galton “apenas” esqueceu que homens não são gado e que a humanidade não é um rebanho.

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algumas regiões dos EUA (quase metade) adotou-se a “esterilização compulsória”

dessas categorias de pessoas. 117 Nem é preciso dizer que a eugenia foi

recepcionada com o mais vivo entusiasmo na Alemanha Nazista, onde atingiu o seu

ápice de desumanidade. Ali não só o controle da procriação foi adotado, mas

também, e principalmente, o extermínio de todos aqueles considerados

geneticamente inferiores (judeus, ciganos e até os homossexuais). Por outro lado,

buscava-se o aprimoramento da “raça ariana pura”, através da reprodução seletiva

entre pessoas supostamente portadoras de caracteres considerados excelentes.118

A crueldade do regime nazista acabou emprestando à eugenia um estigma

extremamente repulsivo. No entanto, deparamos hoje com o seu retorno sob vestes

bem mais sutis. A engenharia genética pode tomar rumos muito similares aos das

ideologias eugênicas do passado.

Deparamos nos dias de hoje com manuais de Direito Penal publicados anualmente e

alegadamente “atualizados”, nos quais podemos encontrar verdadeiros resquícios

de uma eugenia preconceituosa e cruel. Mirabete119, ao comentar os fundamentos

do chamado “aborto sentimental, humanitário ou ético”, afirma que, além do respeito

à dignidade humana da mulher, justificaria essa espécie de aborto a prevenção

quanto à transmissão de certos traços criminosos pela hereditariedade.

Textualmente: “Além disso, freqüentemente o autor do estupro é uma pessoa

degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade”.120

Assim como já se falou em “raça pura” ou do “super – homem”, tem-se detectado

aquilo que Francis Fukuyama121 denominou de “um futuro pós–humano”. 122 E se

falamos em algo “pós – humano”, falamos em algo “não – humano”, relegando o

“humano” ao passado, como uma peça de museu ou um conceito obsoleto. Por isso

117 Para maior aprofundamento sobre a eugenia norte – americana, ver: BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003, “passim”. 118 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 142. 119 Trata-se, como sabido, do aborto legal previsto na legislação brasileira quando a gravidez é resultante de estupro (art. 128, II, CP). 120 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 69. 121 Apud, FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 143. 122 Nosso futuro pós – humano. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, “passim”.

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o autor em comento alega que “a biotecnologia vai fazer que de algum modo

percamos a nossa humanidade (...). Ainda pior, poderíamos fazer essa mudança

sem reconhecer que havíamos perdido algo de grande valor. Poderíamos assim

aparecer do outro lado de uma grande divisória entre a história humana e pós –

humana, sem sequer perceber que o divisor de águas fora rompido”.

Portanto, é de extrema relevância tomar consciência dos problemas éticos e

políticos relativos à manipulação genética e, principalmente, às concepções

genéticas reducionistas. Também é imprescindível firmar um núcleo duro de direitos

e garantias referentes à contínua proteção e preservação da dignidade humana.

Pressuposto disso é, certamente, a conceituação segura daquilo em que consiste a

humanidade do homem, sob pena de realmente nem nos darmos conta de a

havermos perdido. 123

Efetivamente, o insidioso desgaste do conceito de “humano” e de “humanidade” tem

propiciado um correlato risco de seu desvanecimento, permitindo sua perda nas

veredas do relativismo, com nefastas conseqüências no presente e, especialmente,

para o futuro.

Armesto Fernández124 bem destaca a paradoxal situação do atual estágio da

humanidade, que tanto esforço despendeu e despende para preservar o humano,

mas vai, aos poucos, perdendo a noção daquilo por que tem lutado ao longo de

tanto tempo:

Aqui está um paradoxo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos investido muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que chamamos de valores humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade humana e da vida humana. Ao longo do mesmo período, silenciosa, mas devastadoramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência do nosso entendimento do que significa ser humano está agora em discussão. E se o termo ‘humano’ é incoerente, o que acontecerá com os valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça conceitual.

123 Op. Cit., p. 143. 124 Op. Cit., p. 9.

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Debatendo-nos em densas trevas e trilhando caminhos tortuosos, podemos ao

menos entrever um norte a indicar o traço comum que revela um início ou

pressuposto para a construção de uma atuação ética perante a humanidade. Esse

traço é o fato de que somos todos “humanos”, independentemente das variadas

diversidades. Somos desiguais sim, mas temos sempre de nos lembrar do laço

comum a unir-nos. É a nossa “humanidade” que, em primeiro plano, consiste em

que somos todos (brancos, negros, católicos, judeus, pobres, ricos, deficientes,

criminosos ou santos) “humanos”, que configura o primeiro fundamento para que as

pessoas não possam ser categorizadas, selecionadas e excluídas. O atributo da

humanidade, inerente a todo homem ou mulher, independente de sua condição, não

permite gradações. Em suma, jamais uns podem ser mais humanos que outros.

Pode parecer que esse pressuposto seja algo por demais óbvio, mas é preciso

atentar que por boa parte da história da humanidade e ainda hoje, as pessoas

sentem certa dificuldade para admitir esse traço comum de humanidade em todos os

seres humanos indistintamente. 125 E mesmo quando em dada sociedade isso é

admitido, em teoria, sem muita contestação, a aplicação prática do conceito não se

perfaz sem grandes obstáculos.126

A verdade é que existe sempre uma tendência a selecionar certas categorias, por

meio de critérios diversos (v.g. origem, religião, posição social e, quem sabe, código

genético), as quais acabam integrando a categoria dos humanos ou “mais

humanos”, enquanto outras parcelas são simplesmente excluídas, tratadas como

“outsiders”, marginais, pertencentes a alguma outra classe que acaba reduzida a

“status” semelhantes aos de coisas ou animais, sofrendo ainda um verdadeiro

processo de demonização127

A partir da identificação de certas pessoas como pertencentes a determinadas

categorias, opera-se uma poderosa “estratificação” a atribuir diferentes tratamentos

a camadas consideráveis da população. No cerne desse mecanismo diferenciador

125 Op. Cit., p. 14. 126 Por que outra razão seria necessário que nossa Constituição Federal mande, por exemplo, reprimir com rigor a prática do racismo e a lei ordinária regule essa repressão? 127 Op. Cit., p. 14.

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encontra-se o fato de que alguns podem livremente escolher sua própria identidade

individual e social, enquanto outros são simplesmente compelidos a assumir uma

certa identidade imposta de fora para dentro. Normalmente essas espécies de

identidades impostas são daquelas que “estereotipam, humilham, desumanizam,

estigmatizam...”128 Mas, ainda não é o fato mais grave essa falta de direito de

escolha, essa imposição. Há ainda quem possa ser impelido para um degrau ainda

mais baixo. Tratando-se de pessoas que, uma vez estigmatizadas, perdem total e

definitivamente o direito de “reivindicar” uma nova identidade. “Pessoas cuja súplica

não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos, ainda que pleiteiem a anulação

do veredicto”. Estas estão destinadas a formar aquilo que Bauman129 denomina de

“subclasses”, ou seja, o conjunto de todas aquelas pessoas “exiladas nas

profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do

qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade)

podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas”.

A partir do momento em que alguém é destinado à composição de uma subclasse

(devido à baixa escolaridade, à pobreza, vício de drogas, falta de moradia,

mendicância ou outras categorias inadequadas, agora, talvez, aqueles portadores de

um código genético indesejável), ocorre uma negação apriorística de qualquer

identidade aceitável, em suma, fecham-se as portas. “O significado da ‘identidade da

subclasse’ é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, do

‘rosto’ – esse objeto do dever ético e da preocupação moral”. Opera-se uma

exclusão “do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas,

construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”.130

Giorgio Agamben, citado por Bauman, chama a atenção para que a subclasse é um

“grupo heterogêneo de pessoas” que sofreram a redução de seu “bios” (vida como

“sujeito socialmente reconhecido”) a mero “zoë" (vida somente animal, “com todas

as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas”).131

128 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 44. 129 Op. Cit., p. 45. 130 Op. Cit., p. 46. 131 Op. Cit., p. 46.

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Note-se que quase nada pode ser mais conveniente para exacerbar um quadro

como este ora apresentado do que uma ciência genética seletiva e determinista,

inclusive e muito especialmente, no que tange às suas irradiações para o campo

criminológico.

Esse conjunto de fatores que alimentam a exclusão e a estratificação social, conflui

para a tendência do processo neoliberal de globalização econômica, com sua

interminável “produção de lixo humano” ou, melhor dizendo, de “pessoas rejeitadas”,

que se tornam desnecessárias e até disfuncionais para o bom andamento do “ciclo

econômico”. O Capitalismo Contemporâneo troca o modelo de “exploração” pelo da

“exclusão”, e esse modelo é bem mais cruel do que o anterior, constituindo

atualmente a “base dos casos mais evidentes de polarização social, de

aprofundamento da desigualdade e de aumento do volume de pobreza, miséria e

humilhação”.132

Não há dúvida de que o modelo econômico tem enorme influência na conformação

do paradigma de Direito Penal e, principalmente, na construção do discurso

referente à finalidade da pena. Em um contexto no qual a mão de obra humana é um

valor na dinâmica do processo econômico, é fácil reconhecer a pertinência do

discurso “ressocializador”. A coisa muda de figura quando essa mesma mão de obra

passa a ser muito abundante frente à mecanização proporcionada pela tecnologia, a

substituir com vantagens a força de trabalho humana. Nessas circunstâncias um

indivíduo desgarrado não é mais considerado uma peça relevante na sociedade.

Seu descarte passa a ser uma solução e até um objetivo a ser perseguido em prol

da funcionalidade do sistema. Este é certamente um efeito daquela substituição das

relações exploradores/explorados pelas relações incluídos/excluídos. Agora, já não

há valor algum, nem mesmo comercial ou econômico, atribuído pelos ocupantes do

topo da escala social aos que estão em sua base. Se a relação vertical

anteriormente se processava como uma opressão que visava o domínio das massas

exploradas, hoje tal domínio não é tão atraente e a relação vertical tende a ser

transmudada para uma pressão no sentido de “esmagar” e descartar os excluídos, já

132 Op. Cit., p. 47.

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que eles não interessam ao sistema e até constituem entraves que precisam ser

expurgados por vias diretas e indiretas.133

Tudo isso é um caldeirão onde pode muito bem ser preparado o prato amargo de um

novo holocausto, com bem adverte Arendt: 134

Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes. Ao contrário, a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido a sua emergência inicial. As razões particulares que falam pela possibilidade de repetição dos crimes cometidos pelos nazistas são ainda mais plausíveis. A assustadora coincidência da explosão populacional moderna com a descoberta de aparelhos técnicos que, graças à automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos setores da população até mesmo em termos de trabalho, e que, graças à energia nuclear, possibilitam lidar com essa dupla ameaça com o uso de instrumentos ao lado dos quais as instalações de gás de Hitler pareciam brinquedos de uma criança maldosa – tudo isso deve bastar para nos fazer tremer”. 135 [E mais adiante, na mesma obra, a autora acrescenta:] É bem concebível que na economia automatizada de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determinado nível.

Para que isso ocorra, ao contrário do que comumente se imagina, não seria

necessário o surgimento de um novo Hitler ou algo parecido. Basta que cada um de

nós permita esvaecer o conceito de humanidade, “pois é perfeitamente concebível e

mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma

humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática –

isto é, por decisão da maioria - à conclusão de que, para a humanidade como um

todo, convém liquidar certas partes de si mesma”.136

Também Zaffaroni137 faz essa constatação, dissertando especificamente sobre os

efeitos da globalização econômica na América Latina:

133 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, nov., 1999, p. 4. 134 Op. Cit., p. 312. E que instrumento seletivo não seria a genética (mal direcionada) para tal desiderato. 135 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jersualém. 6ª. Ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 296. 136 IDEM. Origens do Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 332. E para aqueles que pensam que esse dia esteja muito longe, basta meditarem um pouco sobre o rumo que têm tomado as discussões sobre as questões previdenciárias no mundo moderno. 137 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y Sistema Penal en América Latina: de la seguridad nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, out./dez, 1997, p. 22.

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El fenômeno tiene a crear en los paises latinoamericanos una massa excluída que no responde a la dialética explotador/explotado, sino a una no relation entre excluído/incluído. El explotado contaba, era tenido en cuenta y estaba dentro del sistema, como explotado pero dentro, el excluído no cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, solo molesta. La lógica de este esquema, si no se le interrumpe, es el genocídio.

Neste contexto o Direito Penal pode surgir como um instrumento direto de seleção e

destruição dos excluídos, servindo a contento aos desígnios inconfessáveis do novo

modelo. É notável que o discurso da recuperação vai cedendo espaço para as

soluções extremas, como a pena de morte e a redução da menoridade penal. 138

Bem pode encaixar-se aqui a concepção de uma Criminologia Genética seletiva e

determinista, tendente a eliminar arbitrariamente caracteres presentes na

constituição genética das pessoas, seja em sua geração ou posteriormente

mediante intervenções forçadas a desconfigurarem suas personalidades. Isso sem

falar no reforço que teses deterministas concedem às hipóteses anteriormente

mencionadas da pena de morte e da redução da menoridade penal. Quem sabe até

mesmo se cogite um dia a completa eliminação da questão da imputabilidade, já que

mesmo em um feto poder-se-ia encontrar e abrir a caixa – preta onde se ocultam os

segredos do futuro criminoso.

Mas, não é só no Sistema Penal que se pode constatar a insidiosa e perigosa

influência do Capitalismo Globalizado. Ela se faz sentir, por exemplo, no crescente

abandono das questões previdenciárias, de saúde e educação públicas. Tudo isso

empurra a massa excluída para as garras do Sistema Penal ou diretamente para a

morte devido ao mais absoluto abandono e falência do Estado como entidade

assistencial e promotora da igualdade.139

Retomando a perspectiva criminal, percebe-se que na sociedade a infração penal é

concebida como um mal, a criminalidade como uma doença infecciosa e o infrator

como um ser daninho. Isso fomenta uma tomada de posição belicosa em relação ao

138 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 4. 139 Op. Cit., p. 4. Relembremos neste ponto o texto satírico de Jonathan Swift, exposto linhas volvidas, “Modesta Proposta”.

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crime, a qual influi na construção de toda a política referente ao “combate” à

criminalidade.140

Este é um campo fértil para as divisões e polarizações, a tal ponto que já se cogita a

formulação do que se convencionou chamar de um “Direito Penal do Inimigo”, em

oposição ou contraste com um “Direito Penal do Cidadão”, conforme teorizado por

Jakobs.141

Hoje pode-se constatar um processo razoavelmente generalizado daquilo que se

poderia chamar de “paradigma do inimigo”, pelo qual a pessoa é julgada em virtude

do que é ou do que acredita ser; com base em sua periculosidade supostamente

inerente à sua personalidade, muito mais do que por aquilo que efetivamente tenha

cometido. 142

No seio desse paradigma a tendência é que se consolide um modelo de Direito

Penal que empreste gradativamente mais e mais destaque à prevenção,

configurando um inovador e mais sofisticado “panoptismo social” marcado pela

descoberta seletiva da figura do “inimigo”.143

Acontece que agora a idéia original de Bentham 144 não precisa mais da parafernália

arquitetônica por ele concebida e nem fica restrita aos ambientes prisionais. A

tecnologia permite uma vigilância muito mais ampla e invasiva, cogitando-se não só

o controle absoluto da conduta humana exteriorizada, mas, quem sabe, de suas

tendências ou potencialidades internas por meio dos conhecimentos genéticos.

140 MUÑOZ CONDE, Francisco, HASSEMER, Winfried. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1995, p. 37. 141 JAKOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2003, p. 142 – 143. 142 APONTE, Alejandro. Derecho penal de enemigo versus derecho penal del ciudadano. Günther Jakobs y los avatares de un derecho penal de la enemistad. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 51, nov./dez, 2004, p. 16. 143 Op. Cit., p. 17. 144 BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Trad. Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, “passim”.

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Para Tognolli145, “a nova ideologia do DNA lastrearia, em longo prazo, a idéia dos

‘novos inimigos’ da saúde perfeita: os portadores de genes ‘deficientes’. (...). O

mesmo processo que movimenta a sociedade em torno dos ‘novos inimigos’

geopolíticos é o que agrega, (...), a todos na busca e encontro dos ‘genes

culpados’”.

Acontece que, para além de que essa seleção dos “inimigos” através da genética

configure um arbitrário, totalitário e desumanizante “Direito Penal do Autor”, lastreia-

se em um referencial teórico há muito tempo superado. Nada mais, nada menos do

que aquilo que com razão se poderia denominar, como o fez José Nêumanne146, de

um “neolombrosianismo”.

Seguiria dizendo que se ressuscita a tese do “determinismo biológico”, mas parece

mais adequado constatar que ela jamais feneceu realmente, sendo mais correto

admitir que dormitasse sempre latente nos meandros do imaginário popular e até

dos cientistas.

Conforme alerta Lewontin147, “tudo isso é um grande nonsense”, que se baseia

numa terrível confusão entre fantasias e realidade, ocasionada por uma mistura

entre aquilo que é representado em uma simples metáfora com o objeto ou fato real.

Em suas palavras:

A ideologia do determinismo biológico usa muitas metáforas retiradas do modelo de máquina de Descartes e agora dos modelos computacionais. Essas metáforas permitem então ‘jogos de linguagem’ porque elas são levadas a sério e assim as conseqüências lógicas de se levar metáforas a sério são levadas à última instância. Todos os cientistas empregam metáforas, mas as metáforas podem ser os maiores inimigos de se compreender adequadamente o mundo material. As pessoas confundem as metáforas com os objetos reais. Norbert Wiener e Arturo Rosenblith escreveram que ‘ o preço da metáfora é a eterna vigilância.148

Realmente, o fato de que alguém se utilize da imagem de um “chip” de computador

em comparação com os genes, falando no código genético como uma espécie de

145 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 215. 146 Apud, Op. Cit., p. 265. 147 Op. Cit., p. 265. 148 LEWONTIN, Richard. Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. cit., p. 267.

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“programação”, não pode ser acatado além do mero sentido metafórico para levar à

conclusão de que o homem pode, na realidade, ser equiparado a uma máquina pré

– programada. Da mesma forma a metáfora não pode extravasar para reabilitar a

absurda e superada crença de que o crime possa ser considerado como um ente

natural e não como um conceito normativo criado pela sociedade humana, produto

de seus artifícios.

Com bem observa Karam149, é comum o equívoco de falar “genericamente em crime

como se tal expressão pudesse traduzir um conceito natural, que partisse de um

denominador comum, presente em todo tempo ou em todo lugar. Mas, na realidade,

crimes são meras criações da lei penal, não existindo um conceito natural que os

possa genericamente definir. O que é crime em um determinado lugar, pode não ser

em outro; o que hoje é crime, amanhã poderá não ser”.

A Criminologia Genética reducionista e determinista parte, portanto, de duas

premissas equivocadas: nem o homem é um sistema fechado (é, na verdade,

caracterizado pela constante abertura); nem o crime é um conceito natural,

independente da normatização da conduta humana operada pelas leis penais.

Mesmo considerando isoladamente o conhecimento genético, não se pode afirmar a

existência de consenso quanto a serem os genes em si “estruturas fechadas”. Para

Richard Lewontin150, os genes são passíveis de alterações pelas “condições de

trabalho, psicológicas, sociais, antropológicas” etc., e defini-los como sistemas

fechados não passaria de mera ideologia. Lembra o autor que a ciência não é tão

objetiva como se costuma apregoar, ela, “como outras atividades produtivas, como o

Estado, a família, o esporte, é uma instituição social completamente integrada e

influenciada pela estrutura de todas as nossas outras instituições sociais. O

problema com o qual a ciência lida, as idéias que ela usa para investigar esses

problemas, até mesmo os resultados científicos, tão alardeados, decorrentes da

investigação científica, são todos profundamente influenciados por predisposições

que derivam da sociedade na qual vivemos. Os cientistas não começam as suas

149 KARAM, Maria Lúcia. Sistema Penal e publicidade enganosa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 52, jan./fev., 2005, p. 159 – 160. 150 Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 137 – 138.

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vidas como cientistas e sim como seres sociais imersos na família, no Estado, na

estrutura produtiva, e suas visões da natureza são feitas através das lentes que

foram moldadas por suas experiências sociais. Acima do nível pessoal da

percepção, a ciência é moldada pela sociedade porque ela é uma atividade

produtiva humana que demanda tempo e dinheiro. A ciência usa dinheiro e

‘comodities’. Muitas pessoas ganham dinheiro e sobrevivem da ciência, e como

conseqüência as forças sociais econômica e socialmente dominantes determinam

em larga medida o que a ciência faz e como ela faz. Mais que isso, tais forças têm a

força de se apropriar das idéias científicas que são particularmente úteis para a

manutenção e continuidade da prosperidade das estruturas sociais das quais elas

são parte. Então outras instituições sociais têm um ‘imput’ sobre a ciência, tanto

sobre o que é feito como sobre o que é pensado, eles tiram da ciência conceitos e

idéias que suportem as suas instituições e façam-nas parecer legitimamente

naturais. É um processo duplo – por um lado, da influência social e controle do que

os cientistas fazem e dizem para mais à frente apoiarem as instituições da

sociedade – o que é explicado quando falamos da ciência como ideologia”.

Não é sustentável a tese de que “a seqüência do Genoma Humano seja o ‘Graal’

que irá revelar tudo o que é o ser humano”. Mas, é fácil de compreender como essa

tese reducionista encontra tanto eco na sociedade capitalista globalizada. Ela

permite ocultar as reais causas dos problemas sociais (alcoolismo, drogas,

criminalidade, violência, desequilíbrio nervoso, desagregação familiar etc.),

satanizando os genes e os seus portadores, como é interessante para perpetuar o

“status quo”. Lewontin compara a atual condenação dos genes anti-sociais com a

satanização ocorrida no século XIX contra o “Bacilo de Koch”, levada a efeito,

evitando a discussão sobre as condições sociais (moradia, higiene, condições

insalubres de trabalho) que realmente levavam à proliferação da tuberculose. 151

Trata-se verdadeiramente de um “marcador substituto”, ou seja, uma variável

relacionada com outra que é a causa real.

Fato é que tal concepção, se levada a sério, inobstante partindo de premissas

insustentáveis, vai nos conduzir à intolerância ou ao preconceito para com pessoas

151 Op. Cit., p. 140.

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portadoras de códigos genéticos que apontem para certas “tendências” negativas.

Mais uma vez veremos a segregação, o preconceito e a exclusão sendo

chancelados pela idoneidade e neutralidade (altamente contestáveis) da ciência. 152

Afinal, o próprio Diretor do Projeto Genoma Humano, Francis S. Collins153, não

corrobora qualquer concepção determinista ou premonitória da genética, no que

tange ao comportamento humano. Segundo suas palavras:

Para muitas características comportamentais humanas, existe um componente da hereditariedade do qual não se pode escapar. Em praticamente nenhuma delas a hereditariedade chega perto do profético. O ambiente, em especial as experiências da infância, e o papel de destaque das chances do livre – arbítrio individual têm sobre nós um efeito profundo. Os cientistas descobrirão um nível crescente de detalhes moleculares sobre os fatores herdados que se encontram subjacentes à nossa personalidade. Isso, porém, não deve nos levar a superestimar sua contribuição quantitativa. Sim, a todos nós foi dado um conjunto de cartas com as quais lidar, e essas cartas serão, enfim, reveladas. Contudo, a forma como jogamos com elas depende de nós.

E mais adiante o autor afasta qualquer possibilidade real de uma programação

infalível da genética acerca da personalidade e agir humanos: 154

A importância crucial da criação, da instrução e da disciplina na infância não seria evitada por um lance de dados levemente aprimorado. O casal narcisista que insistiu no uso dessa tecnologia genética para produzir um filho que poderia ser zagueiro de um time de futebol, tocar violino na orquestra da escola e tirar A+ em matemática poderia muito bem encontra-lo, em vez disso, em seu quarto, jogando videogame, queimando uma erva e escutando heavy metal.

Outro fator que não pode passar despercebido é o papel representado pela mídia,

em especial a imprensa na divulgação das notícias sobre as descobertas e

potencialidades da genética.

Como salienta Cláudio Tognolli155, em sua grande maioria as notícias sobre genética

veiculadas pela imprensa são contaminadas por ideologia e carentes de um maior

embasamento científico.

152 Op. Cit., p. 302. 153 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 266. 154 Op. Cit., p. 273. 155 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 174.

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Pesquisando as notícias veiculadas sobre o tema, num período de sete anos (de

1994 a 2000), constatou o autor que menos de 3% delas trazia algum conteúdo

crítico quanto às descobertas biotecnológicas.156A tendência da imprensa tem sido,

infelizmente, reforçar o caráter estigmatizante das descobertas genéticas, bem como

acoroçoar o paradigma reducionista, determinista e simplista de encarar o ser

humano, mediante o abuso de expressões características como: “isolamento de

genes” (juntamente com a metáfora cibernética); além da suposta descoberta de

“qualidades”, “disfunções”, “defeitos” e “tendências” individuais e indeléveis “que

cada um traz dentro de si”.157

Leão Serva158, em entrevista a Cláudio Tognolli, chama a atenção para o fato de que

a sociedade passa a depositar sua fé em um mundo melhor pela intervenção de um

novo “deus moderno que é a biotecnologia”. E arremata, afirmando que a imprensa

reflete esse ideário de forma acrítica, sendo que “o material jornalístico nunca nos

leva a supor que alguém esteja pensando diferentemente dessas novidades

biotecnológicas. Isso é vendido como se fosse pura técnica despida de uma

ideologia na sua condução. É uma carga muito grande de informações sobre

biotecnologia, mas em nenhum momento isso vem para permitir uma visão mais

completa ou mais complexa do que está acontecendo”. Enfim, o biologismo, seja por

razões ideológicas ou por pura desinformação ou pressa no fechamento de edições,

acabou ganhando campo na imprensa em detrimento de uma visão crítica e realista

dos fatos.159 Isso certamente empobrece ou até inviabiliza o cumprimento daquilo

que Fiss refere como “a missão democrática da imprensa”160, enquanto legítimo

veículo possibilitador de que as pessoas formem informada e livremente as suas

opiniões, e não sejam simplesmente conduzidas ou influenciadas tendenciosamente

por determinada corrente ideológica.

Não se pretende apregoar uma satanização da genética, mas apenas uma visão

equilibrada que também não a divinize ou lhe atribua poderes milagrosos, passando

156 Op. Cit., p. 183. 157 Op. Cit., p. 186. 158 Op. Cit., p. 239. 159 Op. Cit., p. 290. 160 FISS, Owen M. Op. Cit., p. 99.

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por cima de valores inalienáveis do ser humano e construindo teorias mirabolantes

sustentadas em falsas premissas.

A genética pode muito bem ser veículo para grandes conquistas, inclusive quanto à

solidariedade humana, a tolerância e a convivência pacífica entre as pessoas.

Poucos aspectos do saber e da atividade humana podem contribuir e já contribuíram

de forma tão valiosa para tornar o racismo algo visivelmente indefensável. A biologia

comprovou que não só não existem “raças inferiores” como sequer há “raças”, pois

que “não há praticamente nenhuma diferenciação racial entre os humanos”. As

diferenças físicas constatáveis não se refletem em diferenças genéticas, já que

“entre os humanos mais amplamente separados é minúscula” a variação genética

em cotejo com outras espécies.161

No campo penal certamente a genética pode dar sua contribuição, a qual não é

desprezível. É claro que, em parte, certas condutas criminosas admitem uma

explicação etiológica, que bem pode ser explorada no campo genético. Deve-se,

porém, ter o cuidado de não assentar conclusões sobre fantasias e de não procurar

simplificar o complexo a qualquer custo, apenas para tranqüilizar nossa perturbação

diante dos mistérios da humanidade.

Procedendo a uma breve digressão em relação ao tema central deste trabalho,

considera-se oportuno lembrar que a ciência genética pode colaborar imensamente

e já o faz, na apuração da autoria de crimes. Trata-se de sua aplicação em outro

campo das ciências criminais, qual seja, o da “criminalística”.

Zarzuela162 conceitua a criminalística como:

o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos, artísticos etc., destinados à apreciação, interpretação e descrição escrita dos elementos de ordem material encontrados no local do fato, no instrumento do crime e na peça de exame, de modo a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de presumível ou de evidente interesse judiciário.

161 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 88. 162 ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística. Porto Alegre: Sagra – Luzzatto, 1996, p. 15.

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Os exames de DNA em vestígios deixados em locais e instrumentos de crime,

vestes e corpos de vítimas e suspeitos, colaboram muitas vezes decisivamente para

o esclarecimento de eventos criminosos, especialmente no que tange à sua autoria.

Watson cogita a possibilidade da criação de um banco de dados genéticos, a

exemplo do que já existe com relação às digitais, a fim de facilitar a atuação da

investigação criminal. É claro que a amplitude informativa dos códigos genéticos

pode gerar questionamentos quanto a essa invasão estatal da privacidade. Isso

porque, diversamente das digitais, o código genético contém muito mais informações

sobre uma pessoa do que sua simples identificação (v.g. doenças congênitas).163 No

entanto, pensamos que algumas precauções legais e práticas, impondo um controle

rígido do uso das informações genômicas restrito aos fins de investigação criminal,

poderiam promover um saudável equilíbrio entre as garantias individuais e o

interesse social na apuração dos crimes e punição dos criminosos.164 Oportuno,

portanto, transcrever a observação de Watson: 165

Embora a legislação não deva atrapalhar nossa ambição de explorar o pleno potencial do DNA em aliviar o sofrimento humano, em explicar quem somos e de onde viemos, ou em identificar quais dentre nós são culpados de algum crime, ela deve no mínimo assegurar que nenhum cidadão seja privado de seus direitos civis ou humanos com base no que porventura estiver inscrito em seus genes.

Conclusão

No decorrer deste trabalho foi discutida a questão da viabilidade da construção de

um saber criminológico calcado nas modernas pesquisas genéticas.

Por intermédio de um esboço da evolução histórica da Criminologia, logrou-se

demonstrar como esta passou de um estágio em que se buscava uma explicação

etiológica do fenômeno criminoso, entendendo este como um ente natural e o

infrator como portador de uma anomalia, até chegar às questionadoras concepções

da Criminologia Crítica, e o ponto de equilíbrio que vem a ensejar a compreensão da

163 WATSON, James D. Op. Cit., p. 296. 164 Neste sentido: Op. Cit., p. 314. 165 Op. Cit., p. 383.

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complexidade do tema pesquisado, propondo-se o paradigma da Criminologia

Integrada.

Finalmente, abordou-se o ponto sensível deste estudo, ou seja, o papel da genética

na Criminologia contemporânea. Principiou-se pela defesa da importância da

reflexão como pressuposto para a tomada de qualquer decisão, especialmente

daquelas que se referem à intervenção no “status” do homem no mundo e na

sociedade. A seguir, foram expostas as discussões acerca da legitimação da

culpabilidade como pressuposto da punição, fazendo-se notar que a

responsabilidade está atrelada de forma inseparável à liberdade. Por outro lado,

afastada a responsabilidade por influência de teses deterministas, não se pode mais

legitimamente falar em punição. Não obstante, resta viável a tese da defesa social,

que pode tornar defensáveis os usos de medidas extremas de contenção ou mesmo

de eliminação daqueles aos quais é atribuída, por algum critério, a pecha da

periculosidade.

Analisou-se também a questão do totalitarismo oculto na conformação de uma

criminologia genética reducionista e determinista. Em seu contexto parece inevitável

uma constante intervenção sobre o indivíduo, controlando profundamente não só as

suas condutas, mas também aquilo que ele seja ou pretenda ser. Isso certamente

conflui para uma desconstrução da autenticidade, extremamente violadora da

dignidade humana. Há numa Criminologia ou em qualquer teoria ou ideologia que

apregoe a intervenção profunda no “ser” do homem um intento de recriar

(destruindo) o humano, que é essencialmente “abertura”, para transforma-lo em um

sistema fechado, moldado ao bel prazer de alguma elite ilegitimamente detentora do

poder de decidir como deve ser o “ser” do homem.

Por derradeiro, foram apreciadas as fantasias e falsas bases que dão sustento a

uma Criminologia Genética reducionista e determinista, bem como suas naturais

confluências com a conformação intolerante, excludente e cruel de um Capitalismo

Globalizado. Verifica-se muito claramente que aquilo que hoje se apresenta como

uma novidade capaz de revolucionar os estudos criminológicos, não passa de uma

repristinação, acrescida de certa sofisticação e sutileza, de antigas teorias

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etiológicas do crime, configurando nada mais do que um “neolombrosianismo” tosco,

mal disfarçado na pele sedutora da suposta vanguarda científica.

É fato incontestável que a ciência pode ou poderá em breve alterar o patrimônio

genético da humanidade. Mas, o fato de ser detentor de um poder ou conhecimento,

nada diz a respeito da conveniência de seu uso. Em primeiro lugar deve-se saber

“quem, de que modo e com que finalidade pode levar a cabo tais alterações”. Depois

é preciso ir ainda mais fundo e decidir se essas mudanças devem sequer ser

levadas a efeito. 166

A história nos ensina que sempre que alguma mudança pode operar-se, ainda que

seja perigosa e sofra resistências, acaba acontecendo. Neste caso, considerando

que a decisão seja pela intervenção modificadora do genoma humano, ainda nos

resta discutir a legitimidade das alterações porventura pretendidas. Mister se faz

“encontrar a vontade consensual que possa dar um rumo límpido, claro e

transparente à via ou caminho que se quer prosseguir”. É aqui que reside a missão

do Direito. A ele não é dado dominar e oprimir a pesquisa científica, pretendendo

impor uma verdade normativa em oposição à verdade aferível pela dialética própria

da atividade da ciência. Afinal, como consta da célebre frase ora atribuída a Francis

Bacon, ora a Galileu Galilei, “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”.

Portanto, o Direito, aliado à ética, deve regular com bom senso os limites da

aplicação dos conhecimentos científicos, sem contudo constituir uma barreira

autoritária à livre pesquisa. Caberá, portanto, ao Direito (Biodireito) a árdua missão

de encontrar um consenso, orientado por valores éticos, legitimando os

comportamentos altamente relevantes da aplicação da genética sob os prismas

comunitário e individual.167

Note-se, porém, que o caminho a ser trilhado, passando pela discussão ética para

chegar à normatização jurídica, não pode ser produto de uma ou outra categoria de

pessoas (juristas, cientistas, religiosos etc.). Muitas vezes os cientistas se arrogam o

direito de apropriação do discurso acerca da genética, isso com base no fato de

166 COSTA, José de Faria. Op. Cit., p. 103. 167 Op. Cit., p. 103 – 104.

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serem detentores do conhecimento técnico. Não obstante, como já se disse, o

domínio de um conhecimento ou poder nada significa a respeito do bom ou mau uso

que se fará dele. Para a discussão de questões de alta indagação que suplantam

em muito o mero saber técnico – científico, exigindo decisões informadas não

somente pelo conhecimento, mas, principalmente, pela sabedoria, torna-se

imprescindível a confluência democrática e pluralista. Cabe ao cientista a

manifestação e até o esclarecimento sobre as questões técnicas, mas devem ser

chamados à baila o sociólogo, o criminólogo, o jurista, o filósofo, o teólogo, em

suma, a sociedade representada da forma mais ampla e esclarecida possível. Afinal,

como aduz Gilson, a ciência pode fornecer muitas respostas no que diz respeito ao

mundo dos fenômenos, mas, afora isso, nem sequer sabe fazer as perguntas. 168

Diverso não é o entendimento de um cientista esclarecido e equilibrado como

Collins169, que afirma:

Sobre esses assuntos que representam desafios éticos verdadeiros, que não são situações artificiais e irreais, como nossa sociedade poderá tirar conclusões? Primeiramente, seria errado simplesmente deixar os cientistas tomarem essas decisões. Eles têm uma função crucial nesses debates, já que sua especialidade pode permitir uma distinção clara do que é e do que não é possível. No entanto, os cientistas não podem ser os únicos nesse debate. Por sua própria natureza, eles têm fome de explorar o desconhecido. Seu senso moral, geralmente, não é nem mais nem menos desenvolvido do que o de outros grupos, e eles não conseguem evitar sua aflição diante de um conflito de interesses que pode fazer com que fiquem indignados com os limites estabelecidos por quem não é da comunidade científica. Portanto, uma ampla variedade de outras perspectivas deve ser representada nesse debate.

Eis onde emerge a importante função da bioética. O termo foi cunhado em 1970 pelo

cancerologista Van Rensselaer Potter, em um artigo intitulado “Bioethics, the

Science of Survival” e corroborado em um livro de título “Bioethics, Bridge to the

future”. 170 A “Encyclopedia of Bioethics” a define como o “estudo sistemático da

168 GILSON, Etienne. Op. Cit., p. 98. 169 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 273 – 274. 170 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 275.

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conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de

valores e princípios morais”.171

A Bioética não é uma ideologia reacionária que pretende atravancar os avanços

científicos, mediante sutilezas morais e/ou teológicas. Na verdade, ela é portadora

de uma clara mensagem de que a ciência e a técnica não prescindem de uma

“razão reguladora” que deve pautar-se por princípios éticos. 172

Afirma Ratzinger que “a ciência pode servir à humanidade, mas pode também se

tornar instrumento do mal, dando-lhe os meios para desenvolver plenamente sua

terribilidade; ela pode realizar sua verdadeira essência somente se for sustentada

pela responsabilidade moral”. No entanto, “a força moral não cresceu junto com o

desenvolvimento da ciência; pelo contrário, até diminuiu, porque a mentalidade

técnica relega a moral ao âmbito subjetivo, enquanto seria justamente necessária

uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que pairam sobre a

existência de todos nós”. Efetivamente, “a questão moral é hoje, mais do que nunca,

manifestamente uma questão de sobrevivência para a humanidade. Na civilização

tecnicista, que já se estendeu ao mundo contemporâneo todo, as antigas certezas

morais, que sustentavam as várias grandes culturas, foram amplamente destruídas.

A visão tecnicista do mundo dispensa os valores, e se questiona sobre a

possibilidade prática, não sobre o que é lícito. Para muitos, a questão do que é lícito

parece até ultrapassada, não mais compatível com a emancipação do homem de

todos os vínculos. O que é possível fazer é também lícito fazer: é assim que se

pensa hoje, cada vez mais.

Mas o verdadeiro problema coloca-se em um nível mais profundo ainda.

Defrontadas com a certeza indiscutível que caracteriza as matérias técnicas, todas

as certezas morais parecem algo frágeis e discutíveis. Muitos acham que só é

razoável o que posso verificar de forma tão incontrovertível quanto às fórmulas

matemáticas ou técnicas. Mas onde encontrar essa verificabilidade nas realidades

tipicamente humanas, nas questões da moral e do reto viver humano? O fato de as

171 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Volume I. 2ª. ed. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2002, p. 43. 172 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 274.

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grandes culturas, apesar dos importantes elementos comuns, darem nesse contexto

resposta diferentes faz com que o relativismo se torne cada vez mais a opinião

dominante. No âmbito da moral e da religião, não há nenhuma certeza partilhável;

cada um deve achar por si mesmo como solucionar o problema. Cada um deve

seguir suas próprias convicções”. Esse relativismo tem até certa coerência no cotejo

com a realidade plural, mas destrói a segurança de qualquer critério ético e deixa o

homem sem limites ao seu arbítrio. Nesse quadro, “a ciência se torna patológica e

perigosa para a vida, quando se desobriga do contexto da ordem moral própria do

ser – homens, e permite-se admitir unicamente suas próprias possibilidades como

único critério admissível”. A pergunta crucial, porém, não é aquela que se refere ao

que se “pode fazer”, mas aquela que se volta para o que se “deve fazer”, abrindo-se

para a “voz da verdade e a seu chamado”.173

Um dos aspectos que a Bioética deve preservar no que tange à dignidade humana

perante as descobertas científicas é a vedação absoluta à instrumentalização, sob

quaisquer pretextos.

É neste ponto que uma genética determinista, seja em sua aplicação criminológica

ou em geral, é problemática. Isso porque ela reduz o homem a uma espécie de

marionete guiada por mãos invisíveis, que seriam agora os genes. 174

Quando se perde de vista a noção básica de que somos sistemas abertos e não

fechados abre-se campo para uma reificação do humano, que passa a confundir-se

com as coisas e animais incapazes de autoconsciência e de contínua abertura para

um “ser” que se constrói em processo sempre inconcluso.

A liberdade e a responsabilidade são traços fundamentais da existência humana. O

homem escolhe sua existência e toma posição frente aos valores. Por isso é o

responsável pela escrita de sua própria história, a qual não é o mero resultado da

preponderância dos instintos sobre o agir consciente, já que o homem tem a

173 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Op. cit., p. 101 – 102. 174 Ver neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. Cit., p. 408. “Não somos meros marionetes cujos cordões são manipulados por nossos genes”.

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capacidade de superar os impulsos mais poderosos, a não ser que esteja sofrendo

de alguma patologia psíquica.175

Desse modo, desde que não se perca de vista essa noção básica da liberdade,

responsabilidade e dignidade humanas, as pesquisas sobre genética para aplicação

médica ou criminológica não devem ser descartadas ou impedidas.

Trata-se de uma tecnologia de altíssimo potencial para o mal e para o bem, de modo

que os povos que virarem as costas para o seu estudo criteriosamente pautado pela

ética, correm o risco de serem surpreendidos pelo seu uso descontrolado por parte

de pessoas mal intencionadas e pouco ou nada preocupadas com princípios

éticos.176

O aprimoramento dos conhecimentos ligados à genética traz em si terríveis riscos,

sempre que não for pautado por princípios éticos e uma visão antropológica que

preserve a dignidade humana. No entanto, não se deve satanizar a genética e

somente antever em seu desenvolvimento conseqüências catastróficas para a

humanidade. A precaução é sempre uma virtude, mas o medo irracional nunca foi

um bom conselheiro.

É preciso regular os potenciais da genética, mas não se pode crer que um

instrumento como esse somente possa ser utilizado com fins egoístas e destrutivos.

Mister se faz dar algum crédito à capacidade humana para o altruísmo e o

sentimento comunitário, que podem tornar os potenciais dessa ciência altamente

produtivos para o bem da humanidade.177

A mesma ambivalência pode ser constatada num dos fatores capazes de fomentar

uma aplicação até mesmo genocida e excludente do conhecimento genético, qual

seja, a globalização.

175 PASCUAL, Fernando. Op. Cit., p. 42. 176 Neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 429. 177 Neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 426.

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Embora pululem por todo o mundo os chamados “movimentos antiglobalização”,

sabe-se o quanto quixotesco é ser “contra a globalização”. Essa postura assemelha-

se a ser contra, por exemplo, uma tempestade. A globalização é um fenômeno

inevitável no atual estágio da humanidade, de modo que a questão não está em

impedi-la, mas em controlar seus processos “selvagens” e converte-los “de ameaça

em oportunidade para a humanidade”.178

Assim como a genética pode ser usada com vistas ao sentimento de solidariedade e

solicitude para com o outro, também a globalização pode ser um elemento de

aproximação e de união da humanidade em torno de um projeto solidário. Ela

permite uma visão do “outro” que jamais existiu. Desde que esse “outro” em face do

qual nos colocamos seja tomado como sujeito de nossas obrigações éticas e não

como inimigo ou obstáculo, a globalização pode produzir bons frutos.

Nas palavras de Bauman179:

Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela primeira vez na história da humanidade o auto – interesse e os princípios éticos de respeito e atenção mútuos de todos os seres humanos apontam na mesma direção e exigem a mesma estratégia. De maldição, a globalização pode até transformar-se em benção: a ‘humanidade’ nunca teve uma oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se a chance será aproveitada antes que se perca, é, porém, uma questão em aberto. A resposta depende de nós.

Enfim, uma lição deve ser aprendida por todos, em especial com a questão dos

errôneos fundamentos de uma Criminologia Genética determinista, a reviver um

lombrosianismo, cujo valor é atualmente somente histórico:

Um dos cuidados que devemos sempre tomar, cientes de que errar é inevitável em

nossa condição humana, é, pelo menos, evitar repetir os erros passados, ainda que

sob novas roupagens.

178 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 94. 179 Op. Cit., p. 95.

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Afinal, como bem lembrava Paulo César da Silva em sua fala final na Reunião do

Grupo de Pesquisas de Bioética e Biodireito da Unisal180: “o erro sempre é velho, só

a verdade é nova”.

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