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A AUTONOMIA DO CRIME ANTECEDENTE NO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO 1 THIANA BORCHHARDT MÜLLER 2 RESUMO As operações de lavagem de dinheiro possuem dimensões transnacionais. Trata-se um processo detalhado e dinâmico, onde o agente criminoso torna aparentemente lícitos bens, direitos e valores provenientes de crimes antecedentes. Com o objetivo de combater essa atividade criminosa, em 1988, na Áustria, foi criada a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, conhecida como Convenção de Viena. O Brasil ratificou essa Convenção, tornando-se signatário, em 26 de junho de 1991, obrigando-se a tipificar, no ordenamento jurídico nacional, o crime de lavagem de dinheiro. Ao elaborar a lei, o legislador brasileiro optou por uma legislação, de lavagem de dinheiro, de segunda geração, estabelecendo um rol taxativo de crimes antecedentes, que estão elencados no artigo 1º, da Lei 9.613 de 3 de março de 1998. Este rol taxativo excluiu da lista de crimes antecedentes, inúmeros crimes considerados graves e que possuem grande retorno financeiro, exigindo uma modificação e adequação urgente da Lei, para incluir tais delitos. Outro grave problema da Lei de Lavagem de Dinheiros refere-se às questões relativas à prova dos crimes antecedentes para o recebimento da denúncia e do processo e julgamento ação penal proposta, de acordo com o artigo 2º, II, § 1º da referida Lei. Pelo que será demonstrado concluir-se-á que o crime de lavagem de dinheiro mostra-se uma ameaça à estabilidade econômica mundial, por isso a necessidade, urgente, de uma adequação e aperfeiçoamento da legislação vigente, buscando uma maior eficiência no combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. Palavras-chave: Lavagem de Dinheiro. Crime Organizado. Crime Antecedente. Lei 9.613/98. INTRODUÇÃO A criminalidade organizada, mantém suas raízes em épocas distantes, porém recentemente adquiriu proporções jamais imaginadas: é capaz de produzir riquezas e dar ensejo a uma circulação de capitais em torno da Terra maior que o produto interno de diversos países. 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador Prof. Giovani Agostini Saavedra, pelo Prof. Elton Somensi de Oliveira, e pelo Prof. Álvaro Filipe Oxley da Rocha, em 30 de novembro de 2010. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected]

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A AUTONOMIA DO CRIME ANTECEDENTE NO CRIME DE LAVAGEM DE

DINHEIRO1

THIANA BORCHHARDT MÜLLER2

RESUMO

As operações de lavagem de dinheiro possuem dimensões transnacionais. Trata-se um processo detalhado e dinâmico, onde o agente criminoso torna aparentemente lícitos bens, direitos e valores provenientes de crimes antecedentes. Com o objetivo de combater essa atividade criminosa, em 1988, na Áustria, foi criada a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, conhecida como Convenção de Viena. O Brasil ratificou essa Convenção, tornando-se signatário, em 26 de junho de 1991, obrigando-se a tipificar, no ordenamento jurídico nacional, o crime de lavagem de dinheiro. Ao elaborar a lei, o legislador brasileiro optou por uma legislação, de lavagem de dinheiro, de segunda geração, estabelecendo um rol taxativo de crimes antecedentes, que estão elencados no artigo 1º, da Lei 9.613 de 3 de março de 1998. Este rol taxativo excluiu da lista de crimes antecedentes, inúmeros crimes considerados graves e que possuem grande retorno financeiro, exigindo uma modificação e adequação urgente da Lei, para incluir tais delitos. Outro grave problema da Lei de Lavagem de Dinheiros refere-se às questões relativas à prova dos crimes antecedentes para o recebimento da denúncia e do processo e julgamento ação penal proposta, de acordo com o artigo 2º, II, § 1º da referida Lei. Pelo que será demonstrado concluir-se-á que o crime de lavagem de dinheiro mostra-se uma ameaça à estabilidade econômica mundial, por isso a necessidade, urgente, de uma adequação e aperfeiçoamento da legislação vigente, buscando uma maior eficiência no combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. Palavras-chave: Lavagem de Dinheiro. Crime Organizado. Crime Antecedente. Lei 9.613/98. INTRODUÇÃO

A criminalidade organizada, mantém suas raízes em épocas distantes, porém

recentemente adquiriu proporções jamais imaginadas: é capaz de produzir riquezas

e dar ensejo a uma circulação de capitais em torno da Terra maior que o produto

interno de diversos países.

1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a

obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador Prof. Giovani Agostini Saavedra, pelo Prof. Elton Somensi de Oliveira, e pelo Prof. Álvaro Filipe Oxley da Rocha, em 30 de novembro de 2010. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do

Sul – PUCRS. E-mail: [email protected]

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As atividades praticadas por tais organizações criminosas são diversas,

desde a produção e comercialização de drogas, exploração da prostituição, tráfico

de armas, de pessoas e de animais, pirataria, corrupção, até a exploração de jogos

de azar, comércio irregular de madeira, entre outros.

Muitas dessas atividades são apoiadas por parcelas significativas da

sociedade, que através do consumo de produtos ilícitos ou do apoio às ideologias,

acaba consentindo e fomentando tais atuações. Esse consentimento, juntamente

com a corrupção e o ingresso de integrantes dessas organizações criminosas às

estruturas políticas e administrativas governamentais dificulta extraordinariamente o

combate ao crime organizado.

A lavagem de dinheiro mostra-se como a atividade-fim destes grupos que,

após gerarem grandes volumes de bens, direitos e valores, através de suas

atividades ilícitas, dão ao dinheiro “sujo”, uma aparência legal, de forma a evitar

qualquer comprometimento com sua origem criminosa.

Diante deste cenário, tendo em vista a dificuldade em combater os crimes

praticados por tais organizações e sendo a lavagem de dinheiro a responsável pela

validação dos recursos obtidos ilicitamente, viabilizando e garantindo a

sobrevivência e o crescimento da criminalidade, chegou-se à conclusão de que este

fenômeno deve ser estudado e entendido para que possa ser efetivamente

combatido.

O legislador brasileiro optou por uma legislação de segunda geração e, ao

tipificar a conduta de lavagem de dinheiro, no artigo 1º da referida Lei, apresenta de

forma taxativa um rol de crimes antecedentes que seriam os únicos possíveis

geradores dos bens, direitos e valores, objeto da lavagem.

É neste momento que surge a grande discussão acerca da autonomia do

crime e lavagem de dinheiro frente aos crimes antecedentes, já que o inciso II, do

artigo 2º da Lei 9.613/98 dispõe que o processo e o julgamento do crime de lavagem

de dinheiro independem do processo e julgamento dos crimes precedentes. Além

disso, o § 1º do mesmo artigo refere que, para o recebimento da denúncia do crime

de lavagem de dinheiro, basta a demonstração de indícios da existência do crime

antecedente.

Assim, imperiosa faz-se uma análise do alcance destes dispositivos legais,

apreciando a autonomia do crime de lavagem de dinheiro em relação ao crime

antecedente com cautela e de forma relativa, exigindo a comprovação da

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materialidade do crime precedente, para que reste demonstrada a origem ilícita dos

bens, direitos e valores utilizados, ainda que a autoria não seja demonstrada.

1 OS CRIMES ANTECEDENTES À LAVAGEM DE DINHEIRO

De acordo com Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003, p. 38) a lavagem de

dinheiro “consiste em ocultar ou dissimular a procedência criminosa de bens e

integrá-los à economia, com aparência de terem origem lícita”. Assim, a lavagem de

dinheiro é consequência de outro ilícito, não ocorre se não houver crime anterior, do

qual é derivado.

Segundo Alexandre Magno Fernandes Moreira (MOREIRA, 2006, p. 1) há três

gerações de legislação a respeito dos crimes antecedentes, onde a primeira define

apenas o tráfico ilícito de entorpecentes como sendo crime antecedente à lavagem

de dinheiro. A segunda seria um pouco mais ampla, abrangendo outras infrações

penais em um rol taxativo. Na terceira hipótese o sistema jurídico impõe qualquer

infração penal como precedente à lavagem de dinheiro.

Nesse sentido, a legislação brasileira faz parte da segunda geração, pois

prevê nos incisos do artigo 1º um rol taxativo de crimes precedentes à lavagem de

dinheiro, levando em consideração para tanto, a gravidade destes e sua relação

direta com a lavagem de dinheiro. Tal critério exige constante atualização da lei, eis

que a todo o momento podem surgir atividades lucrativas o suficiente para exigirem

a lavagem de ativos.3

Assim preceitua o artigo 1º da Lei 9.613/98:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo e seu financiamento; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante sequestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o sistema financeiro nacional; VII – praticado por organização criminosa;

3 MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. Dos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro.

Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2010.

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VIII – praticado por particular contra a administração pública;4

O tráfico ilícito de entorpecentes é um crime que atualmente está previsto no

artigo 33, da Lei n.º 11.343 de 2006, sendo esta infração penal que motivou os

acordos internacionais concernentes à lavagem de dinheiro.

Marco Antônio de Barros destaca a grandiosidade do negócio do narcotráfico

afirmando que, de acordo com cálculos de organismos internacionais, baseados em

estimativas, aproximadamente 500 bilhões de dólares circulam anualmente no

mercado do tráfico de entorpecentes.5

Nota-se que o legislador agiu adequadamente ao seguir os acordos firmados

na Convenção de Viena e tipificar o crime de lavagem de dinheiro e, ao mesmo

tempo, incluir no rol taxativo de crimes antecedentes a prática de tráfico de

entorpecentes, visto tratar-se de um delito altamente lesivo a toda sociedade.

Entretanto, a mesma habilidade não ocorre quando o legislador prevê como

crime antecedente o terrorismo e seu financiamento, visto que ambos não são

tipificados no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que haja uma grande

preocupação mundial com o tema.

Assim, embora inserido no artigo 1º, II, da Lei 9613/98, enquanto o terrorismo

não for tipificado no ordenamento jurídico brasileiro, a opinião da maioria de

doutrinadores é que a efetiva aplicação do artigo, já que estaria ferindo o princípio

da legalidade, constante no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988.

O inciso terceiro da lista de crimes antecedentes é o crime de contrabando ou

tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção.

Sobre este inciso, Rodolfo Tigre Maia (2007) afirma ser dispensável a

inclusão do crime de contrabando no rol taxativo de crimes antecedentes eis que,

não apenas o contrabando de armas, mas todas as variações deste ou de

descaminho configura crime contra a Administração Pública, prevista no inciso V, do

artigo 1º da mesma carta legal.6

4 BRASIL, Presidência da República. Lei n.º 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9613.htm>. Acesso em: 23 jul. 2010.

5 BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de Capitais e obrigações civis correlatas: com comentários, artigo por artigo, à lei 9.613/98, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 86/87.

6 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações

às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 75.

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Contrário a este entendimento Marco Antônio de Barros (2007) afirma que

“altíssimas somas são movimentadas gerando consequências para os sistemas

financeiro e econômico7, tornando-se necessária a punição específica da ocultação

ou dissimulação de bens, direitos ou valores provenientes direta ou indiretamente do

contrabando de armas, munições ou material destinado à sua produção.

A quarta espécie de crime antecedente é a extorsão mediante sequestro,

crime este previsto no artigo 159 e parágrafos do Código Penal Brasileiro, além das

Leis n.º 8.072/90 e 9.269/96, que fazem deste um crime hediondo.

Apesar da importante inclusão do crime de extorsão mediante sequestro ao

rol taxativo de crimes antecedentes, o legislador não demonstrou a mesma

habilidade ao deixar de fora crimes contra o patrimônio, tão ou mais importante,

como é o caso do latrocínio, além também da receptação e a própria extorsão

indireta.

No que tange ao inciso V, do artigo 1º, da Lei 9.613/98, entende-se que, não

tendo o legislador feito nenhuma restrição, estariam incluídos todos os crimes

previstos no Título XI do Código Penal, que abrange os artigos 312 a 359,

demonstrando uma preocupação maior com a corrupção pública.8

Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003) critica a generalidade do inciso

ao afirmar que “só alguns tipos penais, arrolados nesse mare nostrum de crimes

antecedentes, poderão dar causa ao cometimento da lavagem.” 9

Assim, a solução seria o legislador definir especificamente os crimes que

gostaria de incluir no rol taxativo de crimes antecedentes, tornando-o menos vago e

genérico e mais eficaz.

Os crimes contra o sistema financeiro nacional são essencialmente os

previstos na Lei n.º 7.492 de 16 de junho de 1986, abrangendo todas as

movimentações ilegais de valores e dinheiro originados de delitos que compreendam

o mercado financeiro.10

Willian Terra de Oliveira (1998) entende como positiva a intenção do

legislador em incluir os crimes contra o sistema financeiro nacional no rol de crimes

7 BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas: com

comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 106-107. 8 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:

comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 331. 9 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 114. 10

CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 331.

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antecedentes, porém afirma que “O legislador poderia ter incluído outras ordens de

delitos afins, como o abuso de poder econômico ou aqueles que atingem a

economia popular ou a livre concorrência”.11

Contrariamente, Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003), entende que

novamente o legislador foi excessivamente genérico, ampliando em demasia o rol de

crimes antecedentes.12

No que se refere ao inciso VII, novamente o legislador inclui no rol crimes

antecedentes um crime que, assim como o terrorismo, não possui tipificação

específica na doutrina jurídica brasileira. É bem verdade que os crimes praticados

por organização criminosa contam com a Lei 9.034/95 que define e regula os meios

de prova e investigação de crimes praticados por quadrilha, bando, organização ou

associação criminosa de qualquer tipo, porém não há, em todo ordenamento, a

definição legal de organização criminosa, o que tornaria inaplicável tal inciso.13

O inciso VIII foi inserido no artigo 1º da Lei 9.613/98 através da Lei n.º 10.467,

de 11 de junho de 2002, quando o legislador resolveu incluir o crime praticado por

particular contra a Administração Pública Estrangeira no rol taxativo de crimes

antecedentes, demonstrando maior cooperação e compromisso com os estados

estrangeiros.

Vê-se que acertadamente agiu o legislador que, desta forma, contribui para a

contenção da criminalidade organizada, impedindo assim a lesividade ao

desenvolvimento social e econômico do país.

2 DA LAVAGEM DE DINHEIRO E SEU CONCEITO

Segundo Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim

(2008) a expressão “lavagem de dinheiro” foi utilizada judicialmente pela primeira

vez, em 1982, durante um tribunal nos Estados Unidos, e foi chamada money

laundering. O termo era utilizado originalmente por organizações mafiosas que

faziam uso de lavanderias automáticas para investir dinheiro de origem Ilícita. De lá

11

CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 331.

12 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 115. 13

PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 116.

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pra cá, a expressão tomou diferentes formas de acordo com a linguagem e cultura

de cada país.14

O nomen iuris utilizado no Brasil, está aclarado na Exposição de Motivos da

Lei 9.613/98, vejamos:

A expressão „lavagem de dinheiro‟ já está consagrada no glossário das atividades financeiras e na linguagem popular, em consequência de seu emprego internacional (money laudering). Por outro lado, conforme o Ministro da Justiça teve oportunidade de sustentar em reunião com seus colegas de língua portuguesa em Maputo (Moçambique), a denominação ‘branqueamento’, além de não estar inserida no contexto da linguagem formal ou coloquial em nosso País, sugere a inferência racista do vocábulo, motivando estéreis e inoportunas discussões.

15

Importante ressaltar também, que muito embora se tenha popularizado a

expressão “lavagem de dinheiro”, o nosso ordenamento jurídico inclui, além da

lavagem da moeda em si, outros ativos, como bens, direitos e valores (BARROS,

2003, p. 45).

A lavagem dinheiro pode ser definida como “o processo composto por fases

realizadas sucessivamente, que tem por finalidade introduzir na economia ou no

sistema financeiro, bens, direitos, ou valores procedentes dos crimes previstos no rol

do artigo 1º, caput, da Lei n. 9.613/1998, ocultando essa origem delitiva”. 16

O COAF, Conselho de Controle de Atividades Financeiras17, define a lavagem

de dinheiro da seguinte forma:

O crime de lavagem de dinheiro caracteriza-se por um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita e que se desenvolvem por meio de um processo dinâmico que envolve, teoricamente, três fases independentes que, com frequência, ocorrem simultaneamente.

18

14

BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 28.

15 Exposição de Motivos n. 692, de 18.12.1996. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 10 ago. 2010.

16 BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 28.

17 COAF é a Unidade de Inteligência Financeira do Brasil.

18 COAF. Sobre a lavagem de dinheiro. Disponível em:

<https://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1>. Acesso em: 13 ago. 2010.

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De todas as formas, praticamente todos os autores que analisaram o

fenômeno da lavagem de dinheiro acabam por defini-lo de maneira semelhante,

sempre dando ênfase à ideia de processo ou conjunto de atos, onde o objetivo final

é a reintegração do objeto da lavagem no sistema econômico legal.

Percebe-se que a lavagem de dinheiro é um processo minucioso e de grande

movimentação, onde o agente criminoso, através de um conjunto de ações, torna

aparentemente lícito, o capital proveniente dos crimes elencados no artigo 1º da lei

9.613/98.

3. ETAPAS DA LAVAGEM DE DINHEIRO

Segundo Willian Terra de Oliveira (1998) “a conduta de lavagem de dinheiro

está composta por um complexo de atos, uma pluralidade de comportamentos

geralmente intrincados e fracionados, direcionados à conversão de valores e bens

ilícitos em capitais lícitos e plenamente disponíveis por seus titulares.” 19

Existem diversas denominações e fases descritas em toda doutrina,

entretanto o sistema adotado pela legislação brasileira e pelo COAF é também o

procedimento preferido dos doutrinadores, criado pelo GAFI (Grupo de Ação

Financeira Internacional) e engloba três fases ou etapas. Tais etapas podem,

inclusive, ocorrer simultaneamente já que não há uma separação rígida ou

cronologia entre elas sendo possível, portanto, que haja a consumação do crime de

lavagem de dinheiro sem que estejam concluídas as três fases.

Em suma, atualmente o procedimento da lavagem de capitais tornou-se

particularmente complexo devido à grande organização e sofisticação de seus

agentes criminosos. Assim, faz-se necessária uma análise das três fases na conduta

de lavagem de dinheiro.

A primeira etapa de um clássico processo de lavagem de dinheiro é a

ocultação que segundo André Luís Callegari (2006), “corresponde à colocação de

material proveniente do crime e pode ocorrer através de uma série de operações. É

19

CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 320.

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nesta fase que os criminosos procuram livrar-se materialmente das importantes

somas de dinheiro que geraram suas atividades ilícitas.” 20

A segunda fase, chamada dissimulação, consiste em ocultar a origem dos

produtos ilícitos, através da realização de diversas operações financeiras. 21 Willian

Terra de Oliveira afirma que “o objetivo principal do agente é distanciar ao máximo o

dinheiro de sua origem, apagando os vestígios de sua obtenção”.22

Após a dissimulação, temos a etapa final do esquema da lavagem de

dinheiro, a chamada integração. Trata-se da fase onde, com a aparente licitude do

dinheiro, decorrente do cumprimento das etapas anteriores, este será novamente

incluído na economia legal e no sistema financeiro.23

O entendimento doutrinário em sua maioria afirma que nesta etapa seria muito

difícil distinguir o dinheiro legal do ilegal, causando maior lesão à ordem econômica.

4 CONVENÇÕES E ORGANISMOS INTERNACIONAIS

A transnacionalidade e a gravidade da lavagem de dinheiro exigiram das

autoridades internacionais uma sincronização da legislação internacional, bem como

uma cooperação no sentido de reprimir e prevenir a prática. Diante disso, a união de

esforços internacionais resultou na elaboração de diversas Convenções, Tratados,

Resoluções, Recomendações entre outros.

O primeiro destes documentos foi a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de

Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, conhecida como Convenção de Viena,

aprovada na Áustria em 1988, com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro

das organizações criminosas, principalmente aquelas ligadas ao tráfico de drogas.

A Convenção foi ratificada pelo Brasil em 26 de junho de 1991, através do

Decreto n.o 154. A partir de então o país obrigou-se a tomar as medidas citadas,

tipificando as condutas ligadas ao tráfico internacional de entorpecentes, de acordo

com o artigo 3º da Convenção, que prevê também: a criação de normas processuais

referentes à jurisdição e competência; o confisco de drogas ilícitas e o dinheiro

20

CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 45.

21 CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas de Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 52-53.

22 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 321.

23 BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 48.

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proveniente desta; a erradicação das plantações de substâncias psicotrópicas; a

colaboração com as investigações internacionais; etc.

Em 1989 foi criado, pelo G-7, com o objetivo de combater a lavagem de

dinheiro, o GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional que, em abril de 1990, já

com a adesão de outros Estados, publicou um documento com 40 recomendações,

que regulavam questões penais, financeiras e de cooperação internacional, todas

referentes à lavagem de dinheiro e, embora não tenha caráter obrigatório, é tido

como modelo de ações internacionais. 24

Em 1995 foi criado o Grupo de Egmont, em Bruxelas, com o objetivo de criar

uma rede internacional para congregar as unidades financeiras de inteligência de

cada país para, através do intercâmbio de informações, promover um efetivo

combate à lavagem de dinheiro, descobrindo a rota do dinheiro proveniente de

crime, principalmente o narcotráfico. Em maio de 1999 o Conselho de Controle de

Atividades Financeiras (COAF) passou a integrar o Grupo Egmont.25

5 LEI 9.613/98

Muito embora o Brasil tenha ratificado, através do Decreto n.o 154, a

Convenção de Viena, em 1991, onde se obrigou a tomar as medidas estabelecidas

para o combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro proveniente deste

crime, só cumpriu o compromisso, no âmbito interno, sete anos depois, quando em

03 de março de 1998 editou a Lei n.º 9.613, tipificando o crime de lavagem de

dinheiro.

Segundo a Exposição de Motivos n.º 692/MJ o termo “lavagem de dinheiro” foi

assim utilizado pelo legislador brasileiro por se tratar de um vocábulo que denota

limpeza, conduta caracterizada pela transformação do dinheiro sujo em dinheiro

limpo e, também, pela natureza da ação praticada. Além disso, considerou o fato de

que a expressão “lavagem de dinheiro” ser consagrada no rol de expressões das

atividades financeiras e na linguagem popular.26

24

BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 19/20.

25 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006, p. 20/21.

26 Exposição de Motivos n. 692/MJ, de 18.12.1996. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 6 set. 2010.

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11

O artigo 1º da Lei 9.613/98 elenca o rol taxativo de crimes antecedentes.

Sobre a amplitude destes, a Exposição de Motivos n.º 692/MJ dispõe que o

legislador brasileiro optou pela legislação de segunda geração, assim como

Alemanha, Espanha e Portugal, ou seja, um rol taxativo, porém mais amplo que as

legislações de primeira geração, as quais preveem somente o tráfico de drogas

como crime antecedente, mas não tão diversificado quanto Estados Unidos, França,

Bélgica, Itália e Suíça, que admitem como crime antecedente qualquer delito,

formando as legislações de terceira geração.27

A Lei n.º 9.613/98 previu ainda a criação, no Brasil, do Conselho de Controle

de Atividades Financeiras (COAF), uma espécie de unidade de inteligência

financeira, com o objetivo de proteger a economia nacional e também de cooperar

no combate à lavagem de dinheiro a nível internacional, eis que está ligado ao

Grupo Egmont e é membro do GAFI – Grupo de Ação Financeira sobre lavagem de

dinheiro. Em 2005, o COAF elaborou, juntamente com instituições financeiras, um

conjunto de legislações referentes à lavagem de dinheiro e, na apresentação desta

coletânea, o então Presidente do COAF, Antônio Gustavo Rodrigues, coloca o

COAF como uma unidade de gestão com nível de secretaria, uma unidade de

inteligência consolidada. 28

Por fim, sem discutir o mérito de eficácia desta lei, o importante é que o Brasil

está inserido numa política internacional de combate à criminalidade organizada de

natureza econômica e, com o advento da Lei 9.613/98, está atendendo a uma

exigência mundial, tipificando a lavagem de dinheiro, o início de um caminho longo a

ser percorrido.

6 BEM JURÍDICO

6.1 O BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

27

Exposição de Motivos n. 692/MJ, de 18.12.1996. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 6 set. 2010.

28 Lavagem de dinheiro: legislação brasileira/[organizado por] Conselho de Controle de Atividades

Financeiras, Federação Brasileira de Bancos. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/publicacoes/downloads/LivroCoaf2005.pdf>. Acesso em: 6 set. 2010.

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Numa concepção geral de bem jurídico, no que concerne ao crime de

lavagem de dinheiro, é importante destacar a intenção do direito penal que busca,

de alguma forma, proteger bens jurídicos supra-individuais, ou seja, de interesse

social, ainda que haja lesão ao patrimônio pessoal muitas vezes.

Nesse contexto a doutrina também se mostra confusa quanto à definição do

bem jurídico protegido especificamente no crime de lavagem de dinheiro. Entretanto,

a maioria entende que o bem juridicamente protegido pela lei é a segurança da

ordem econômico-financeira, eis que a introdução de dinheiro proveniente de crimes

no sistema financeiro nacional e internacional causaria graves consequências para o

mesmo, impondo a coibição da prática.

Na edição da Lei 9.613/98 o legislador, ao escrever sua ementa, o fez da

seguinte forma: “dispõe sobre os crimes de „lavagem‟ ou ocultação de bens, direitos

e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos

nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá

outras providências.” 29

Da leitura da lei, podemos entender que os bens jurídicos protegidos seriam a

administração da justiça, a ordem socioeconômica, os bens jurídicos tutelados pelos

crimes antecedentes, dentre outros.

Alguns doutrinadores consideram a existência de apenas um bem

juridicamente protegido, entretanto outros admitem a “pluriofensividade”, ou seja, a

lei de lavagem de dinheiro tutelaria diferentes bens jurídicos. Vamos analisar aqui,

as três principais correntes: o mesmo bem jurídico protegido pelo crime antecedente,

a administração da justiça e a ordem socioeconômica.

Na primeira delas, o objeto de proteção no crime de lavagem de dinheiro é o

mesmo tutelado pelo crime antecedente de forma que, reforçando a proteção ao

bem anteriormente vulnerado, estar-se-ia evitando a utilização dos bens.

Essa corrente, inicialmente, estaria ligada apenas ao delito de tráfico ilícito de

entorpecentes, utilizando a tipificação da lavagem de dinheiro somente como mais

29

BRASIL, Presidência da República. Lei n.º 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9613.htm>. Acesso em: 08 set. 2010.

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uma forma de coibir a prática, onde a saúde pública seria o bem juridicamente

tutelado e assim sucessivamente quanto aos demais delitos antecedentes.30

Na opinião de Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003), este

entendimento não é o mais correto, pois pretende criar um supertipo, que atuaria na

ineficácia de outro tipo penal.31

Outros doutrinadores defendem a ideia de que a administração da justiça

seria o bem atingido pela transformação do dinheiro advindo de práticas delituosas

em capital com aparência lícita, como justifica Marcelo Batlouni Mendroni (2006):

[...] na medida em que em que visa suplementar a eficiência na apuração e punição das infrações penais que, reconhecidamente pelo legislador, abalam sobremaneira a ordem pública e não conseguem encontrar, por si sós, a resposta adequada da própria administração de justiça com vistas à

defesa da sociedade.32

Contrariamente, Marco Antonio de Barros (2007) entende que embora os

tipos penais da lavagem de dinheiro contenham elementos das atividades ilícitas

para favorecimento real e pessoal, isto não seria suficiente para incluir a

administração da justiça no rol de bens juridicamente tutelados, eis que estaria a

ferir o princípio da ofensividade33, pois não havendo como mensurar a lesividade do

bem jurídico, não haveria critério delimitador à aplicação do tipo.

A maior parte da doutrina entende, porém, como sendo o bem jurídico

tutelado pela lei 9613/98, a ordem socioeconômica. É o posicionamento aceito pela

maior parte dos doutrinadores e também o mais convincente, visto que, como já

referido, a lavagem de dinheiro movimenta quantias exorbitantes de capital ilícito,

causando impactos descomunais em todas as camadas da economia mundial.

Na opinião de Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003), esta também se

mostra a mais convincente das posições doutrinárias, já que o exercício da atividade

criminosa na lavagem de dinheiro atinge a livre iniciativa, a propriedade, a

concorrência, o consumidor, o meio ambiente, o patrimônio histórico, dentre outros

aspectos da ordem socioeconômica de vários países e do sistema financeiro

30

BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 30.

31 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 74.

32 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006, p. 30.

33 BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55.

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mundial. Além disso, a lavagem de dinheiro seria um obstáculo na atração do capital

estrangeiro para os países latino-americanos, prejudicando o desenvolvimento

econômico.34

Para André Luís Callegari (2008) o problema da teoria que adota a ordem

socioeconômica como sendo o bem jurídico tutela pela lavagem de dinheiro é que

este trata-se de um bem jurídico não tangível e que muitas vezes a ordem

econômica acaba fortalecendo-se com a lavagem de dinheiro, pois os valores

advindos desta fomentariam a economia através dos mercados imobiliários,

aplicações financeiras, bolsas etc.35

Enfim, resta evidente uma dificuldade secular da definição de bem jurídico,

assim como uma situação de difícil entendimento quando o assunto é o bem jurídico

que a lei 9.613/98 pretendeu proteger ao criminalizar a lavagem de dinheiro.

Conclui-se que a maioria dos autores defende uma posição de

pluriofensividade, destacando a administração da justiça e a ordem socioeconômica

como sendo os bens jurídicos tutelados. Certo é que todas as posições têm prós e

contras e que o mais correto é, diante da forma como se apresenta a atividade

criminosa da lavagem de dinheiro, a proteção supraindividual de bens jurídicos aqui

exposta.

Entretanto, diante dos posicionamentos aqui mencionados, a ordem

socioeconômica realmente nos parece a mais afetada com a prática da lavagem de

dinheiro, sendo capaz de abalar o sistema financeiro mundial.

7. O TIPO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

Com a intenção de combater a lavagem de dinheiro e com base nas

recomendações e normas estabelecidas na Convenção de Viena em 1988, em 3 de

março de 1998 o Brasil editou a Lei 9.613, onde tipificou a lavagem de dinheiro em

seu artigo 1º, in verbis:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

34

PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 77-80.

35 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre:

Livraria do advogado, 2008, p. 84.

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I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo e seu financiamento; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante sequestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o sistema financeiro nacional; VII – praticado por organização criminosa. VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira; Pena: reclusão de três a dez anos e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo: I – os converte em ativos lícitos; II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. § 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem: I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo; II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei. § 3º A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal. § 4º A pena será aumentada de um a dois terços, nos casos previstos nos incisos I a VI do caput deste artigo, se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa. § 5º A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.

36

Willian Terra de Oliveira (1998) afirma que a estrutura do artigo primeiro

poderia ser definida da seguinte forma:

a) em um primeiro plano está o caput, complementado pelos incs. I a VII, descrevendo a principal forma de lavagem; b) em seguida temos as formas especiais ou derivadas descritas nos §§ 1.º e 2.º; c) além disso a lei se ocupa em descrever causas ou circunstâncias relacionadas à dosimetria da pena, que irão influenciar no cômputo da resposta penal, quer por representarem institutos como o da tentativa (§ 3.º) que por descreverem situações de especial reprovabilidade (como o conceito de habitualidade - §

36

BRASIL, Presidência da República. Lei n.º 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9613.htm>. Acesso em: 18 set. 2010.

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4.º), ou finalmente por possibilitarem a diminuição da pena ante o reconhecimento do instituto da delação premiada (§ 5.º).

37

O caput do artigo 1º descreve as modalidades de condutas que traduzem a

ideia principal do tipo e indicam a razão do injusto, qual seja: “punir os processos de

atribuição de aparência de licitude a bens, direitos ou valores cuja origem deita

raízes em fatos ilícitos anteriores”.38

7.1 SUJEITOS DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

7.1.1 Sujeito Ativo

Certos tipos penais não indicam diretamente o sujeito ativo do delito, ou seja,

qualquer pessoa pode ser autora do crime, eis que “o legislador não dispôs uma

restrição em relação ao sujeito ativo e, tampouco, exigiu deste alguma

qualificação”.39 Tais tipos penais são chamados de crimes comuns, categoria em

que se encaixa o crime de lavagem de dinheiro.

Nesse sentido, o crime de lavagem de dinheiro pode ser cometido por

qualquer pessoa, sem qualquer condição ou qualificação pessoal ou especial, basta

que pratique qualquer das condutas previstas no caput ou incisos dos parágrafos do

artigo 1º da Lei 9.613/98.

Importante ressaltar que o autor do crime de lavagem de dinheiro não se

confunde com o autor do crime antecedente ou que para ele tenha concorrido, ainda

que não exista previsão expressa na lei, “quando o sujeito do delito prévio realiza

condutas que constituem um novo delito autônomo, tipificado numa lei especial para

penalizar precisamente condutas dirigidas a evitar o descobrimento por parte das

autoridades do delito prévio cometido, não tem aplicação o autofavorecimento

previsto no artigo 349 do Código Penal Brasileiro”.40

37

CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 318/319.

38 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:

comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 319. 39

CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 87.

40 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2008, p.91.

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Ao contrário do Brasil, que seguiu uma tendência internacional, alguns países

como Argentina, Itália, Alemanha, Áustria e Suécia proíbem que o responsável pelo

crime antecedente seja também o sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro.

7.1.2 Sujeito Passivo

O sujeito passivo de um crime, de acordo com Cezar Roberto Bitencourt

(2002), é o titular do bem juridicamente tutelado41. Como vimos, a questão do bem

jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro é bem controversa, assim sujeito

passivo varia de acordo com bem jurídico escolhido.

Marcelo Batlouni Mendroni (2006) afirma que o sujeito passivo é “a sociedade

ou a comunidade local, pelo abalo das estruturas econômicas e sociais, além da

segurança e da soberania dos Estados”.42

Rodolfo Tigre Maia (2007) entende que o sujeito passivo principal é o Estado,

pois a ele cabe a administração da justiça, bem jurídico que, na concepção do autor,

é de imediato lesado pela lavagem de dinheiro, entretanto afirma que poderão existir

outros lesados, de acordo com a natureza do crime antecedente.43

Por fim, visto que o entendimento da grande maioria doutrinária coloca a

ordem econômica como o bem jurídico protegido pela lavagem de dinheiro, conclui-

se ser a sociedade o sujeito passivo deste delito.

7.2 NÚCLEOS DO TIPO

Segundo Cezar Roberto Bitencourt (2002), tipo é “o conjunto dos elementos

do fato punível descrito na lei penal”, com a função de limitar e individualizar as

condutas humanas relevantes para o direito penal, onde o legislador define

exatamente as ações que ele considera delitivas.44

O caput do artigo 1º da Lei 9.613/98 criminaliza, essencialmente, duas

condutas, que representam o núcleo do tipo, quais sejam ocultar e dissimular. De

41

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 163.

42 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006, p. 33.

43 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime –

Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 90. 44

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 197.

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acordo com Willian Terra de Oliveira (1998, p. 329) nessas condutas estão inseridas

as finalidades do agente, ou seja, a conduta tem o objetivo de “converter ou

transformar, bens direitos ou valores ilícitos em respectivos correspondentes lícitos”.

O autor refere ainda que ocultar é o processo básico do qual faz uso o autor

para converter os proventos obtidos ilicitamente, com o objetivo de esconder a

origem, natureza, localização, propriedade e movimentação ou disposição dos

ativos. Já dissimular seria o segundo passo, onde o objetivo do sujeito ativo é

garantir a ocultação através de manobras e muita atenção por parte do agente, pois

o objetivo aqui é diminuir a visibilidade dos bens ilícitos, tornando mais difícil a

investigação e a fiscalização do Estado, de forma que o agente possa dispor

tranquilamente desses bens (OLIVEIRA, 1998, p. 329).

O caput trata, então, de um tipo penal pluriofensivo misto (comissivo ou

omissivo) alternativo, ou seja, a realização de quaisquer das ações citadas no

núcleo do tipo (ocultar e dissimular), caracteriza o ilícito, sendo que, ocorrida a

subsunção dos dois núcleos do tipo, não estará configurada a pluralidade de crimes.

Isso significa que, havendo a lavagem de inúmeros bens provenientes de um único

crime, haverá apenas uma violação penal, se efetuada concomitantemente.45

O § 1º, do artigo 1º, da Lei 9.613/98 apresenta formas especiais de agir na

prática da lavagem de dinheiro. No referido parágrafo constam os incisos I a III, os

quais descrevem condutas utilizadas para legalizar os bens, direitos ou valores

resultantes dos crimes antecedentes elencados nos incisos I a VIII do caput.

O inciso I do referido parágrafo, “estabelece como delito a conversão dos

ativos dos ativos ilícitos em lícitos. Essa pode ser considerada a operação mais

frequente nesse tipo de crime”.46 Entretanto, nem toda conversão será considerada

crime como, por exemplo, a simples utilização dos ativos oriundos dos crimes

antecedentes, visto que o tipo exige a consciência do agente da origem ilícita e a

sua intenção na ocultação ou dissimulação (CALLEGARI, 2008, p. 111).

Em relação ao inciso II assim refere André Luís Callegari (2008):

O inciso II pode dar a impressão de que em alguns casos ocorre o delito de favorecimento real ou de receptação, previstos no Código Penal brasileiro. O favorecimento e a receptação não estão previstos como delitos prévios ao

45

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 65.

46 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto

Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.110.

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de lavagem. Assim, aquele que adquire ou recebe os bens que sabe que são produtos de crime não comete o delito de lavagem. Mas aquele que recebe bens, direito ou valores que sejam produtos dos crimes precedentes previstos na Lei de Lavagem, é dizer, aquele que os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda ou tem em depósito, move ou transfere com o objetivo de ocultar ou dissimular sua utilização, comete o delito de „receptação específica‟, previsto na Lei de Lavagem (art. 1º, § 1º, II) (CALLEGARI, 2008, p. 111, grifos originais).

O inciso III refere-se à importação ou exportação de bens com valores não

correspondentes aos verdadeiros, com objetivo de ocultar ou dissimular a utilização

de ativos provenientes dos crimes precedentes. Esta seria uma das condutas mais

utilizadas para enviar ativos ilícitos para o estrangeiro.47

Importante ressaltar que, como vimos, para que haja a consumação do

descrito no § 1º, é necessário que o agente tenha praticado as condutas dos incisos

com o dolo específico de ocultar ou dissimular bens, direitos ou valores provenientes

dos crimes antecedentes previstos nos incisos do caput do artigo 1º, “pouco

importando se sucesso ou êxito econômico, ou que os valores venham a alcançar

uma efetiva situação de segurança fática ou jurídica”.48

Finalmente, o parágrafo 2º, do artigo 1º, da Lei 9.613/98, em seu inciso I,

estabelece que incorre na mesma pena quem utilizar, na atividade econômica, bens,

direitos ou valores provenientes dos delitos previstos no rol de crimes antecedentes.

Trata-se de um comportamento localizado em fases mais avançadas da lavagem de

dinheiro, onde o agente deve ter consciência da origem ilícita dos ativos, ou seja, o

tipo exige o dolo direito do sujeito ativo.49

No inciso II, do mesmo parágrafo e artigo mencionados trata de uma forma de

ampliar a participação ou autoria do delito de lavagem, ou seja, estabelece que

incorre na mesma pena quem participa de grupo, associação ou escritório, sabendo

ser local destinado à prática dos crimes previstos na lei.

7.3 OBJETO MATERIAL

47

CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.112.

48 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:

comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 336. 49

CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 336.

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O objeto material do delito de lavagem de dinheiro é o objeto corpóreo,

pessoa ou coisa, sobre a qual recaia ação passível de punição. Deve encontrar-se

direta ou indiretamente apontado no tipo penal, mas não pode ser confundido com o

bem juridicamente tutelado.50

O artigo 1º da Lei 9.613/98 define expressamente seus objetos materiais,

quais sejam, “bens, direitos e valores”. Tais objetos são considerados pela doutrina

como sendo genéricos.

Porém, esta definição ampla dos objetos materiais busca incluir não só o

produto imediato do delito, mas também os ativos que sofreram mutações devido

aos procedimentos da lavagem de dinheiro.51 Podemos notar esta autorização no

caput do artigo 1º da Lei 9.613/98, quando este refere “bens, direitos ou valores

provenientes, direta ou indiretamente, de crime”.

Com relação à procedência indireta do objeto material, há divergência

doutrinária, eis que haveria uma contaminação infinita do objeto.

Sobre a expressão utilizada pelo legislador no caput do artigo 1º da Lei

9.613/98, Rodolfo Tigre Maia (2007) faz uma crítica ao referir que “a utilização de

expressões desta ordem enfraquece a função de garantia do tipo penal, por remeter

a conceitos valorativos, que culturais (e.g., “mulher honesta”), quer jurídicos (e.g.,

“coisa alheia móvel”).52 O autor define ainda dois requisitos essenciais a serem

preenchidos pelos objetos materiais da lavagem de dinheiro, quais sejam: a)

caracterizar-se como produto de crime; b) ser possível sua individualização ou

especialização no caso concreto. Dessa forma, não se incluem no rol de bens

passíveis de legitimação os instrumentos utilizados na prática do crime antecedente,

eis que se trata de meios para sua efetivação e não produtos de sua prática (MAIA,

2007, p. 61-62).

7.4 O TERMO CRIME COMO ELEMENTO NORMATIVO DO DELITO DE LAVAGEM

DE DINHEIRO

50

BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 41.

51 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:

comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 325. 52

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 61.

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21

A doutrina brasileira oferece um conceito de crime entendido, pela maioria

como uma ação ou omissão típica e antijurídica, excluindo a culpabilidade,

pressuposto da aplicação da pena e não de crime.

O artigo 1º da Lei 9.613/98 prevê nos incisos I a VIII um rol taxativo de crimes

antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro, que sem este não existe. Ou seja,

embora a lavagem de dinheiro seja um crime autônomo, depende de outro delito

prévio para se configurar, o que faz dele um crime acessório. Assim, o termo crime é

elemento normativo do tipo penal.

O rol de delitos antecedentes é amplamente criticado pela doutrina, visto que

não constam no catálogo de infrações prévias crimes considerados importantes.

Alguns dos crimes excluídos do rol de crimes antecedentes podem ainda ser

considerados delito se praticados por organização criminosa. Entretanto, note-se

que o termo “crime” utilizado pelo legislador exclui a possibilidade de contravenções

penais serem consideradas delito prévio, ainda que praticadas por organização

criminosa, visto que o Direito Penal brasileiro faz clara distinção entre as duas

expressões.

O tráfico internacional de seres humanos foi colocado em terceiro lugar na

lista de crimes que mais obtém lucros ilícitos. Entretanto, tal delito não se enquadra

nos crimes antecedentes elencados pela Lei 9.613/98.

Nelson Jobim, em audiência pública perante a Comissão de Finanças e

Tributação da Câmara dos Deputados, defendeu a exclusão da sonegação fiscal do

rol de crimes antecedentes, conforme informa Ela Wiecko V. de Castilho (2004),

alegando que a pessoa que sonega apenas não se desfaz do seu patrimônio para

cumprir obrigação fiscal, portanto um aumento do seu patrimônio do indivíduo, não

havendo lavagem de dinheiro.53

Em verdade, ativos considerados lícitos podem ser eticamente reprováveis. A

investigação e comprovação de ativos ilícitos tornam-se cada vez mais difíceis. A

cooperação internacional de combate à lavagem de dinheiro é complemente

antagônica aos paraísos fiscais e aos centros off shore e a proteção dos

possuidores de grandes fortunas. Ainda que a lei brasileira seja de grande

importância, ainda possui lacunas a serem preenchidas com urgência, para não

tornar-se obsoleta.

53

CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Crimes antecedentes e lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 47, p. 46-59, mar./abril 2004, p. 50.

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7.5 TIPO SUBJETIVO

O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral chamado dolo, que é a

consciência (elemento cognitivo) e a vontade (elemento volitivo) de realizar a

conduta descrita em um tipo penal.54

A Lei 9.613/98, seguindo recomendação da Convenção de Viena, admite

somente a forma dolosa nas condutas elencadas em seu artigo 1º, já que a norma

não fez referência à forma culposa (PITOMBO, 2003, p. 135).

Neste sentido, é necessário que o agente tenha consciência e intenção de

ocultar ou dissimular bens, direitos ou valores que tenham origem delitiva prevista

como crime antecedente. Somente desta forma, o agente terá aplicadas as penas

previstas no tipo.

De modo sintético, integra o dolo típico da lavagem de dinheiro: conhecer os bens; a ocorrência de crime antecedente; e a relação entre tais bens e crime antecedente (PITOMBO, 2003, p. 137-138).

A Exposição de Motivos n.º 692/MJ prevê o dolo eventual em seu artigo 40.

Vejamos:

41. O projeto também criminaliza a utilização, ‘na atividade econômica ou financeira, de bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes...’ (art. 1

o, § 2

o, I). Neste caso, a mera

utilização, sem ter por objetivo a ocultação ou a dissimulação da origem dos bens, direitos ou valores, uma vez que o agente saiba de tal origem, caracteriza a prática do ilícito. Tal hipótese o projeto buscou no direito francês (art. 324-1, 2ª alínea, introduzida pela Lei n

o 96-392, de 1996).

55

Ainda que o dolo seja eventual, é fundamental identificar se o agente possuía

uma mínima consciência da ilicitude da conduta e da origem ilícita dos ativos

movimentados. Os requisitos do crime (conhecimento da ilicitude, intenção do

agente e as finalidades do comportamento) devem ser identificados de acordo com

as circunstâncias objetivas de cada caso concreto. Assim, Willian Terra de Oliveira,

somente aceita o dolo eventual no caso de o agente estar em posição de garantidor

da evitabilidade do resultado como, por exemplo, o diretor de uma instituição

54

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207-208.

55 Exposição de Motivos n. 692/MJ, de 18.12.1996. Disponível em:

<http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 29 set. 2010.

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financeira, que tem obrigação de comunicar operações suspeitas ao COAF, ao

saber de uma operação de lavagem de dinheiro, não cumpre com sua obrigação ou

avisa seu cliente que tomou determinada atitude (OLIVEIRA, 1998, p. 327).

8 DESDOBRAMENTOS ALUSIVOS AO ELEMENTO NORMATIVO

8.1 DESDOBRAMENTOS PROBATÓRIOS ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA:

ART. 2º, § 1º DA LEI 9.613/98

Nos crimes de lavagem de dinheiro, a denúncia deve, além de atender aos

requisitos expostos no artigo 41 do Código de Processo Penal – no que tange à

ação penal pública – atentar para as regras específicas dispostas no § 1º do artigo

2º da Lei 9.613/98, in verbis:

Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:

[...] § 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência

do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime.

Para o oferecimento da denúncia no crime de lavagem de dinheiro é

obrigatória a existência de um crime antecedente, assim como um suporte

probatório da ocorrência deste que possibilite o recebimento da denúncia. Para tanto

a lei exigiu somente indícios suficientes da existência de crime antecedente.

O § 1º, do artigo 2º, da Lei 9.613/98, declara expressamente que é

desnecessário o conhecimento da autoria do crime antecedente, bastando que haja

indícios suficientes da ocorrência do delito, o que será demonstrado pela

materialidade.

Alguns doutrinadores não concordam com o disposto na Lei brasileira, sob o

argumento de que a lavagem de dinheiro seria condicionada pelo crime

antecedente, motivo pelo qual a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro só

iria dar-se com a certeza da realização do crime antecedente.

8.2 DESDOBRAMENTOS PROBATÓRIOS RELATIVOS AO PROCESSO E AO

JULGAMENTO

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O procedimento descrito na Lei 9.613/98, para a averiguação e o julgamento

dos crimes de lavagem de dinheiro, após a reforma do Código de Processo Penal,

será o procedimento comum ordinário, previsto no artigo 394, § 1º, inciso I, visto que

sua pena máxima cominada é superior a 4 anos.

O artigo 2º, inciso II da Lei 9.613/98 dispõe que o processo e julgamento do

crime de lavagem de dinheiro independe do processo e julgamento do crime

antecedente, ainda que este seja praticado no exterior.

Este inciso, juntamente com o disposto no § 1º, do artigo 2º da Lei, demonstra

a autonomia e independência dos crimes e processos de lavagem de dinheiro em

relação ao crime precedente e seu processo.

Ressalte-se que, como vimos, para o oferecimento da denúncia basta que

existam indícios suficientes da existência de crime antecedente. Entretanto, o maior

questionamento seria se tais indícios seriam suficientes para ensejar uma decisão

condenatória por crime de lavagem de dinheiro.

A Exposição de Motivos nº 692/MJ, embora não autorize a condenação

baseada somente em indícios, também não diz qual comportamento ensejaria um

juízo condenatório. Acredita-se que um “suporte probatório mínimo” da ocorrência do

crime antecedente, referido por alguns doutrinadores, seria o mecanismo utilizado,

mas, ainda assim, sem a exigibilidade da verificação de autoria.

A doutrina, quando se trata de aceitar “indícios” de crime precedente como

prova para um édito condenatório no crime de lavagem de dinheiro, defende,

substancialmente, que não se estaria admitindo uma condenação em provas frágeis,

mas sólidas e capazes de formar o convencimento do juiz.

Todavia, nos termos do artigo 2º, da Lei 9.613/98, para o julgamento do crime

de lavagem de dinheiro, não se faz necessária a condenação de agentes pela

prática do crime antecedente, bastando a prova da materialidade e da antijuricidade,

dispensando-se a demonstração da autoria, nem sendo necessário que esta esteja

aparente ou mesmo que seu agente seja culpável.

Ressalte-se que não se confunde a prova indiciária, exigida para o

recebimento da denúncia, com a desnecessidade de condenação de agentes pela

prática do crime precedente. Entende-se que, ainda que não haja condenação, a

existência de fato típico e antijurídico que originou os bens, direitos ou valores

objetos da lavagem, deve estar devidamente comprovada no processo, caso

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contrário o agente do crime de lavagem de dinheiro deve ser absolvido por

atipicidade de conduta.

Note-se que tal comprovação não é mais a prova indiciária, suficiente para o

recebimento da denúncia, mas uma prova robusta e convincente, caso contrário

deve prevalecer o princípio do in dubio pro reu.

9 OUTRAS CONSIDERAÇÃO IMPORTANTES ACERCA DO CRIME DE

LAVAGEM DE DINHEIRO

9.1 A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

O artigo 4º, § 2º da Lei 9.613/98, prevê que ao denunciado se impõe o ônus

de provar licitude da origem de seus bens que foram objeto de apreensão ou

sequestro. Tal disposição constitui alvo de diversas controvérsias na doutrina.

Como se sabe, o ônus da prova pertence a quem alega, além disso, a licitude

é presumida. Entretanto, o legislador brasileiro seguiu a recomendação prevista no

artigo 5º, número 7, da Convenção de Viena Contra o Tráfico Ilícito de

Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas56, aduzindo que seria dificultoso para o

Estado provar a origem ilícita dos bens apreendidos ou sequestrados.

9.2 A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 366 DO CPP

O artigo 2º, § 2º, da Lei de Lavagem de Dinheiro veda, expressamente, a

suspensão do processo e do curso da prescrição ocorridas quando o acusado,

citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, previsão exposta no

artigo 366 do CPP.

O artigo é considerado pela maioria dos doutrinadores inaplicável, vez que

fere o devido processo legal e os princípios do contraditório e da ampla defesa,

todos com status constitucional. Além disso, o artigo 2º, § 2º da Lei de lavagem de

capitais, contraria o disposto no artigo 4º, § 3º da mesma Lei, que dispõe que

“nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento pessoal do

56

Convenção de Viena Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/convencao-de-viena>. Acesso em: 16 out. 2010.

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acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de

bens, direitos ou valores, nos casos do artigo 366 do Código de Processo Penal”

(Lei 9.613/98, artigo 4º, parágrafo 3º).

9.3 PROIBIÇÃO DE FIANÇA E PROIBIÇÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA

O artigo 3º da Lei de Lavagem de Dinheiro prevê que, nos casos de prisão em

flagrante ou preventiva, esta será mantida, visto que os crimes disciplinados na lei,

não são suscetíveis a fiança ou liberdade provisória. A intenção do legislador foi

manter uma voz firme frente à criminalidade organizada, entretanto, mais uma vez

feriu princípios constitucionais, tais como: presunção de inocência e devido processo

legal.

O referido artigo prevê ainda que caberá ao juiz decidir se o condenado

poderá recorrer em liberdade, fundamentando somente nos casos em que admitir a

liberdade para recorrer, por caracterizar a exceção, sendo que, quando decretada a

prisão, dispensa-se a fundamentação, por consubstanciar a regra. 57

9.4 DELAÇÃO PREMIADA

É permitida pelo artigo 1º, § 5º da Lei 9.613/98, podendo a pena ser reduzida

de um a dois terços, além de, inicialmente, ser fixado o regime aberto. A lei prevê

ainda, nos casos de colaboração espontânea do acusado com as autoridades,

prestando esclarecimentos sobre o crime, autoria e localização dos bens, direitos ou

valores, a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de diretos,

podendo o juiz, inclusive, deixar de aplicar a pena (perdão judicial). Note-se que a

delação pode ser realizada durante o inquérito ou na fase processual, desde que

seja até a sentença, momento em que o acusado será contemplado com o benefício.

CONCLUSÃO

Desde o século XVI, por meio de diversas atividades criminosas, já se

verificavam certos procedimentos efetuados com intenção de “lavar” dinheiro com

57

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 126-127.

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origem ilícita. Entretanto, a preocupação com o fenômeno da lavagem de dinheiro

teve início somente na década de 1920, nos Estados Unidos da América.

A criminalidade organizada desenvolveu-se e atingiu proporções

astronômicas em um cenário socioeconômico globalizado e de expansões

tecnológicas que possibilitam uma grande facilidade e agilidade nas operações e

transações ilícitas, assim como na circulação, ocultação e reinserção dos ativos

financeiros decorrentes de tais atuações criminosas.

Some-se a isso o fato de que inúmeras das atividades ilícitas praticadas por

organizações criminosas contam com o respaldo de parte considerável da

sociedade, que compra e utiliza indistintamente os produtos dessas atividades,

como, por exemplo, produtos piratas, prostituição, drogas e até armas.

Com isso, os bens, direitos e valores obtidos através do crime organizado

acabam sendo, depois de lavados, reinseridos na economia mundial, passando a

integrar, novamente, o sistema econômico mundial.

Através destes procedimentos as organizações criminosas obtêm um grande

acúmulo de capital, o que lhes contempla um grande poder, capaz de patrocinar o

ingresso de seus agentes nas diversas camadas administrativas e estruturas dos

Estados, incluindo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Há de se levar em

consideração também, que, mundialmente, diversas empresas privatizadas

encontram-se sob o controle de organizações criminosas, além de influenciar

diretamente na produção legislativa e nas atividades de investigações criminais.

De tudo isso, o que se vê são organizações criminosas transformando-se em

um poder paralelo às estatais, acontecimento sem precedentes ou similaridades na

história da humanidade, sendo que todo e qualquer método de combate até o

momento utilizado, se tem mostrado quase ou absolutamente ineficaz.

Atualmente, o objetivo é evitar a lavagem dos bens, direitos e valores obtidos

ilicitamente pelas organizações criminosas, através da criminalização de condutas e

rastreamento, identificação e resgate dos ativos de origem delitiva.

Este tem-se mostrado o grande desafio no combate ao crime organizado em

nível mundial, visto que tais organizações criminosas não se limitam a fronteiras

geopolíticas, assim como não mantém nenhum tipo de subordinação ou mesmo

respeito às burocracias e normas estatais, utilizando recursos tecnológicos cada vez

mais modernos e mantendo uma estrutura de circulação de ativos transnacional.

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A Lei 9.613/98 foi editada com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro

e o crime organizado em território nacional e, ao mesmo tempo, colaborar com

organismos internacionais e outros países visto o caráter globalizado que assumiu a

criminalidade organizada, porém ainda necessita de ajustes e modificações em seu

texto legal.

É de suma importância que alguns dispositivos desta Lei sejam reputados

inconstitucionais. São exemplos: a vedação à fiança, à liberdade provisória e ao

direito de apelar em liberdade. A vedação à suspensão do processo, no caso do réu

revel citado por edital, o que prejudica o direito ao contraditório e à ampla defesa.

A questão do crime antecedente, tanto as discussões referentes ao rol

taxativo, quanto os debates sobre sua autonomia em relação ao crime antecedente

impõem uma análise crítica e uma solução por parte do legislador, visto que, crimes

importantes e que movimentam quantias vultosas, como o tráfico de pessoas e o

jogo do bixo, não estão foram elencados no artigo 1º da Lei e, contrariamente,

expressões vagas e demasiadamente abrangentes como “crimes contra a

administração pública” e, delitos não tipificados no ordenamento jurídico brasileiro

como “terrorismo”, são considerados crimes antecedentes.

Igualmente necessário é uma adequação da legislação em relação à

autonomia do crime antecedente frente ao crime de lavagem de dinheiro, vez que é

inaceitável qualquer condenação baseada em “indícios”, impondo-se uma maior

objetividade e fidelidade ao princípio garantista da legalidade, visto que não pode o

cidadão assumir os encargos pertencentes ao Estado e pagar pela ineficácia deste

no combate ao crime organizado e na aplicação do direito penal.

Contudo, acreditamos que somente a criação de tipos penais não é suficiente

para tornar eficaz este combate, sendo necessário o fortalecimento do sistema

punitivo estatal, além de uma ampliação e melhora dos programas sociais, evitando

a atuação social destas organizações criminosas em comunidades carentes, o que

angaria sua simpatia.

REFERÊNCIAS

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