a era pós-mídia desenhada nas rádios livres: o pensamento de félix guattari
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7/31/2019 A Era Ps-Mdia Desenhada nas Rdios Livres: o Pensamento de Flix Guattari
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A Era Ps-Mdia Desenhada nas Rdios Livres: o Pensamento de Flix Guattari1
Mgda Rodrigues da Cunha2Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
ResumoFlix Guattari produz uma teoria do rdio a partir de seu pensamento sobre as rdioslivres? O especialista em transversalidade, elementos inconscientes que trabalhamsecretamente especialidades por vezes muito heterogneas vai alm. Fala de umasociedade ps-miditica, conforme aborda este artigo. Os progressos da informticatornariam possvel uma larga difuso de combinaes rizomticas. Guattari pensa asrdios livres como revolues moleculares, criando mutaes na subjetividadeconsciente e inconsciente dos indivduos e dos grupos sociais.
Palavras-chave
Rdios-livres; Flix Guattari; sociedade ps-miditica
Corpo do trabalho
Milhes e milhes de Alices no ar
Perigo iminente. Ateno, a menor linha de fuga pode fazer explodir tudo.
Vigilncia especial aos pequenos grupos perversos propulsando palavras, inventando
frases, atitudes suscetveis de contaminar populaes inteiras. Neutralizar,prioritariamente, todos aqueles que poderiam ter acesso a uma antena. Guetos por toda
parte autogeridos, se possvel microgulags por toda parte, at mesmo na famlia, no
casal e inclusive na cabea, de modo a segurar cada indivduo, dia e noite.
Eles falam, eles falam, tudo bem, eles falam o tempo todo. Eles lanam sinais,
palavras, pedaos de sinais, pedaos de palavras para nos obrigar a aceitar nosso
papel de filho, de mulher, de pai, de operrio, de estudante, para nos ensinar a fazer
bonito, a ser disciplinado, a obedecer, a trabalhar...O terror se enraza no cotidiano, terror da priso e do asilo, da caserna e do
desemprego, da famlia e do sexismo. Terror contra os desejos para reduzir o cotidiano
forma miservel na qual a Igreja, a famlia e o Estado o enclausuraram desde
sempre. Mas a luta de classes rompe com a dominao na fbrica, o compartilhar
1Trabalho apresentado ao NP 06 Rdio e Mdia Sonora, do V Encontro dos Ncleos de Pesquisa da Intercom
2Jornalista, professora de Radiojornalismo da Famecos/PUCRS, Mestre em Comunicao Social, Doutora emLetras. [email protected]
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rompe com a dominao pelo isolamento, o desejo transforma o cotidiano. E a escrita
percorre transversalmente as ordens recompondo-as de maneira criativa.
preciso partir historicamente da crise da extrema-esquerda italiana aps 72,
particularmente um dos grupos mais vivos tanto no plano terico quanto no prtico:
Potere Operaio.
Toda uma esfera de influncia da extrema-esquerda se dispersou por
ocasio desta crise, mas para animar movimentos de revolta em diferentes autonomias
(nome que o vocabulrio italiano d aos setores particulares: mulheres, jovens,
homossexuais, etc.). Criaram-se ento crculos poltico-culturais como, em Bolonha, o
Gatto Selvaggio (gato selvagem), do qual partiu, em 1974, a iniciativa de Rdio Alice.
Aps a fase de disperso esboou-se um processo de recomposio do
movimento (palavra tambm muito importante no novo vocabulrio italiano: Rdio
Alice uma rdio no movimento).
Aps a supresso do Monoplio de Estado, mil rdios independentes se
desenvolveram da extrema-esquerda extrema-direita ou fazendo-se porta-vozes desse
ou daquele setor particular.
Relacionar Flix Guattari e suas manifestaes sobre rdios livres leva,
antes de tudo, necessidade de localizar o pensamento do autor e o fenmeno das rdios
livres dentro de um determinado contexto, como ele mesmo aponta no incio do prefcio
ao livro de Machado, Magri e Masago (1987).
Guattari pode ser considerado um terico do rdio, conforme a proposta
desta obra? No exatamente. Segundo seu prprio pensamento, se tivesse que ser
definido como especialista em alguma coisa, isto seria a transversalidade, os elementos
inconscientes que trabalham secretamente especialidades por vezes muito
heterogneas. Mas por que Guattari pensou sobre as rdios livres? Porque elas
representaram um movimento e Guattari um homem de movimento: o anarquismo, o
trotskismo, o PC, a Guerra da Arglia, o Vietn, maio de 68, o Solidariedade polons,
os autnomos italianos e as Rdios Livres. Rdio no Movimento. Rdio Alice rdio
no / do Movimento.
Rdios livres, rdios piratas, rdios perifricas formam trs frentes diversas
de corroso do monoplio estatal das telecomunicaes, vigente na Inglaterra, na Itlia e
na Frana, at meados do sculo XX. O que leva o conceito de pirataria um fenmeno
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tipicamente ingls. J as perifricas emitem do exterior, no estando subordinadas lei
do monoplio.
O movimento das rdios livres comea na Itlia, em 1975, visando perfurar
o monoplio estatal das telecomunicaes, atravs de emisses de rdio ilegais ou noautorizadas. Nascem no bojo de movimentos polticos contestatrios e estimulam as
pessoas a passar da condio passiva de ouvintes para a de agentes ativos de seus
discursos e a colocar no ar as suas idias, os seus prazeres, as suas msicas preferidas,
sem precisar de autorizao para isso. As faixas de onda so consideradas propriedade
coletiva e cabe coletividade usufruir delas.
A mais importante rdio do movimento a Alice, de Bolonha, que comea a
emitir em janeiro de 1986, como uma das derivaes de um grupo diretamente
mergulhado na ao poltica, o A/Traverso, responsvel por reunies pblicas,
atividades comunitrias, festas, uma revista peridica e encontros dirios e informais na
Piazza Maggiore. Alice se caracteriza pela recusa de assumir uma postura poltico-
partidria definida nos termos convencionais e por trazer discusso pblica temas
considerados malditos como o corpo, o desejo, o prazer e a preguia. Com muita
freqncia, conforme Machado, Magri e Masago (1987), mescla valores estticos com
aes polticas.
Sua primeira emisso comea com as seguintes palavras:
Rdio Alice emite: msica, notcias, jardins amplos,conversaes, invenes, descobrimentos, receitas, horscopos, filtrosmgicos, amor, partes de guerra, fotografias, mensagens, massagens ementiras (Fadul, 1984:161).
A rdio uma combinao de citaes literrias, de msica clssica,dilogos sem estrutura, linguagem desenfreada e reportagens dentro de acontecimentos
diversos, tais como greves, ocupao de lugares, manifestaes e festas. O sentido o
de Alice no pas das maravilhas, no qual cultivado o absurdo.
A originalidade de Alice era a de ultrapassar o carter puramente sociolgico ,
digamos assim, das rdios independentes, e de se assumir como projeto.
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Rdio Alice entrou no olho do furaco cultural subverso da linguagem,
surgimento de um jornal A/traverso. Mas ela tambm estava diretamente mergulhada
na ao poltica que quis transversalizar.
Alice, A/traverso, Rivista per lAutonomia, Potere Operaio, Rosso, Giornale nel
Movimento agenciamento coletivo de enunciao. Teoria tcnica, poesia devaneio
palavra de ordem grupos sexo solido alegria desespero histria sentido
sem sentido.
Em maro de 1977, Bolonha palco de uma crise sem precedentes no
mbito das universidades, cujo resultado um confronto violento com os policiais
enviados pelo prefeito comunista, com saldo de um morto e vrios feridos. A rdio
Alice desempenha papel estratgico no conflito transmitindo notcias ao vivo enviadas
por telefone diretamente pelos estudantes envolvidos. A emissora incita as pessoas a
aderirem s manifestaes e alerta sobre os deslocamentos da polcia e os focos de
represso. O poder de Estado considera intolervel a interveno da rdio e ela
invadida por tropas policiais e seus articuladores presos e processados. A invaso
transmitida ao vivo at o ltimo momento.
Mas, h um fator que deve ser considerado sobre o estgio anterior ao
fenmeno das rdios livres, conforme palavras do prprio Guattari (1986:105). Tanto nombito da TV quanto no do rdio h uma inchao burocrtica incrvel dos rgos de
emisso. Trata-se de uma mquina que um verdadeiro monstro burocrtico. Na fase
inicial, segundo ele, o fenmeno reunia apenas uma minoria. O pessoal das rdios
livres era um bando de loucos, um pouco como D. Quixote atacando o grande
monoplio. O fenmeno ganhou fora rapidamente, produzindo impacto sobre a
grande mdia. Depois esse pequeno grupo de camaradas, diretamente inspirados pelos
italianos, viu sua iniciativa estende-se por toda a Frana.
Muitas vezes, duas ou trs pessoas colocavam os equipamentos em uma
cozinha e comeavam a emitir(Guattari, 1986:105). Em 11 de maro de 1977, durante
uma emisso da Rdio Alice, um ouvinte interrompe o programa para descrever, de seu
apartamento, o combate entre a polcia e manifestantes (estudantes). O relato desse
ouvinte, um caricaturista chamado Bonvi, sem vnculo partidrio algum, conforme
descrevem Machado, Magri e Masago (1987:92), lembra o calor do radialista de
futebol quando seu time est em campo.
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Aqui Bonvi, do Sturmtruppen (histria em quadrinhoscujo titulo significa em alemo: Tropas de Assalto). Escutemento. A situao a seguinte: o admirvel, o fantstico, queos camaradas eram comunistas autnticos e que os no-filiadoss federaes se sentavam e combatiam de verdade... Agora, apolicia acaba de disparar gases lacrimogneos que se espalham
por toda Via Rizzoli...Escutem: a situao confusa, porm magnfico que a cidade reaja muito bem contra a provocao.Devolvo o telefone ao Gabriele...
Havia grupos folclricos e insignificantes e outros, desde o incio, muito
importantes. Logo apareceram grupos militantes, no profissionais, depois os militantes
de bairro, aspectos que desencadearam uma represso e, ao mesmo tempo, uma reao
contra a represso, uma intensa mobilizao por parte de juristas e intelectuais. E,
quanto mais as rdios livres eram reprimidas, mais elas se desenvolviam. O fenmeno
que, no incio era insignificante, fez florescer uma srie de contradies entre o aparelho
esclerosado das rdios estatais e as outras rdios. Por outro lado, no nvel que eu
classificaria como molecular, entre um modelo de escuta previsvel e essa coisa que se
comea a ouvir e que era mutante. (Guattari, 1986: 106)
Guattari (1986) entende que a rdio livre uma utilizao inteiramente
diferente da mdia rdio. E neste sentido traa uma teoria no para o rdio, mas para
aquele Rdio no/do Movimento. O autor reflete que no se trata de fazer como a rdiodominante, nem melhor, nem na mesma direo. Trata-se de encontrar um outro uso,
uma outra relao de escuta, uma forma de feedback e de fazer falar lnguas menores.
a promoo de um certo tipo de criao que no poderia acontecer em nenhum outro
lugar.
O pensador, analista e homem de movimentos Flix Guattari polmico e
inovador. Como analista, no incio da dcada de 60, ainda marcado pelo pensamento
lacaniano, inventa a anlise institucional, uma critica progressiva ao lacanismo, que se
radicaliza aps o encontro com Gilles Deleuze levando-o esquizoanlise. Mas seu
trnsito entre os movimentos, a anlise e o pensamento que chega ao que ele batiza de
micropoltica. (Guattari, 1987: 127)
A questo micropoltica ou seja, a questo de umaanaltica das formaes do desejo no campo social dizrespeito ao modo como se cruza o nvel das diferenas sociaismais amplas (que chamei de molar), com aquele de chamei
de molecular. Entre esses dois nveis no h uma oposiodistintiva, que dependa de um princpio lgico de contradio.
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Embora possa parecer difcil, como afirma Guattari, preciso simplesmente
mudar de lgica. O autor cita o exemplo da fsica quntica, onde foi necessrio que um
dia os fsicos admitissem que a matria corpuscular e ondulatria, ao mesmo tempo.
Da mesma forma, as lutas sociais so, ao mesmo tempo, molares e moleculares...
As rdios livres, no pensamento do autor, a contestao do sistema de
representao poltica, o questionamento da vida cotidiana, as reaes de recusa ao
trabalho em sua forma atual so vrus contaminando o corpo social em sua relao com
o consumo, com a produo, com o lazer, com os meios de comunicao e com a
cultura. So o que Guattari considera revolues moleculares criando mutaes na
subjetividade consciente e inconsciente dos indivduos e dos grupos sociais. Segundo
ele, a possibilidade de reapropriao da mdia atravs das rdios livres pode subverter a
modelizao da subjetividade.
A verdadeira obra de arte o corpo infinito do homem que se move atravs das
incrveis mutaes da existncia particular.
Acabar com a chantagem da misria. Valor de desejo valor de uso valor trabalho.
A aristocracia operria, o lmpen...Que misria? Que trabalho? Reapropriao do
tempo. O direito de esquecer da hora.- Eu estava deitado na minha cama.
- Tudo bem, camarada, voc estava cansado e tem o direito de descansar...
- Nada disso, eu estava lendo!
- Voc tem razo, camarada, voc estava lendo para elevar seu nvel terico e para se
preparar para novos combates...
- No sei. Talvez! Eu estava lendo Diabolik...
Acabar com a chantagem da misria, a disciplina do trabalho, a ordem hierrquica, o
sacrifcio, a ptria, os interesses gerais. Tudo isto calou a voz do corpo. Todo o nosso
tempo sempre foi consagrado ao trabalho, 8 horas por dia, duas horas de transporte,
e depois descanso, televiso, refeio em famlia. Tudo que no encaixa no interior
desta ordem obsceno para a polcia e os magistrados.
Alice. Rdio linha de fuga. Agenciamento teoria vida prtica grupo sexo solido mquina ternura carinho. Acabar com a chantagem da cientificidade dos
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conceitos. Os intelectuais orgnicos so os burocratas da teoria. Voc entende,
cara, tudo bem com a batalha semiolgica, mas esse troo um pouco como em
Nanterre, com a sociologia em 68, ou em Ulm, com a epistemologia, ou em Sainte-
Anne com a psicanlise... Reler Marx, Freud, Lnin, Gramsci...Talvez...mas tem
tambm os enunciados, os gestos, o esboo de um mundo que ns mesmos
agenciamos, os desvios maiores que operamos a partir de nossas lnguas menores.
A prtica da felicidade torna-se subversiva quando ela coletiva.
Flix Guattari participou da Rdio Tomate criada por um ncleo de
intelectuais e juristas logo aps a tomada do poder pelos socialistas, que reagrupou
elementos das vrias rdios livres que existiam desde 1977. O grupo incorporou
elementos do movimento autnomo e ocupou ilegalmente um local no centro de Paris.
Diferente das rdios oficiais, eram convidados grupos inteiros de teatro para conversar e
no apenas o lder. Se interessasse conversavam duas horas ou mais com eles. Numa
rdio nos moldes comerciais no h como suportar entrevistas de duas horas, porque
elas dependem de um ndice de audincia, de uma certa suposio de como os ouvintes
vo receber a mensagem. Nas rdios oficiais, as pessoas falam como acham que devem
falar para serem ouvidas. Trata-se realmente de um outro modelo no qual as pessoas nos
bairros, os malandros, pequenos bandidos comeam a vir para o local, numa mistura de
gente do bairro, com intelectuais, militantes e, em alguns momentos, at mendigos.
Se o modelo de programao j era diferente, esteticamente, conforme o
pensamento de Guattari (1986: 109), as rdios livres tambm causaram impacto. A
coisa consiste em varrer as redundncias dominantes. Um fato ainda merece destaque,
segundo ele: dezenas de lnguas comearam a ser faladas na rdio francesa. Algumas
programaes so exclusivamente em idiomas como o espanhol, italiano, alemo,polons, basco ou breto. Outras so bilnges. Outra coisa a maneira de falar essas
lnguas: as formas de sintaxe, de retrica e de argumentao. Nada disso feito dentro
dos moldes dominantes (o que no quer dizer que as rdios livres no criem seus
prprios moldes). Tanto que, quando as rdios livres na Frana sofreram os efeitos das
intervenes do poder de Estado, liberando-as, mas submetendo-as a um estatuto,
algumas poucas, inclusive a rdio Tomate, manifestaram-se contrrias a fim de manter
sua proposta original.
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O que estamos a fim no de fazer grandes rdios livres, masde fazer nossas rdios livres. O que estamos a fim no dedifundir com meios sofisticados, nem de ampliar nosso alcance,mas simplesmente de que parem de encher nosso saco emnossa freqncia de onda. Tambm no estamos preocupadosnem com reconhecimento nem com eventuais julgamentos de
valor; estamos pouco ligando para o ndice de audincia, poisquem quiser que nos escute; se no, basta virar oboto.Queremos ser os nicos a garantir aquilo que nos agrada,aquilo que a nossa produo, sem nos referirmos aos novostipos de julgamento da mdia que se instauraram h mais oumenos um ano. (Guattari, 1987: 115)
Em Bolonha, no comeo, no ramos mais do que uma centena, estvamos um
pouco num crculo vicioso e a Rdio Alice veio catalisar um processo, alguma coisa
que no um trao comum, mas como diz-lo de outra forma, sim, um processo
atravessou as diversas autonomias secundaristas, feministas, homossexuais,
trabalhadores emigrantes do sul... Ento comearam a se ampliar bastante os
movimentos de auto-reduo e de apropriao, a recusa ao trabalho, o absentesmo,
etc. Em 1976, Bifo, um dos principais animadores da Rdio Alice, foi detido por
incitao revolta.
Tudo isto desembocou nos motins de maro de 1977. A se deu o racha: toda a
vitrine do comunismo new look em pedaos! Trinta anos de boa conduta e de leaisservios, perdidos, desconsiderados aos olhos da burguesia.
Acreditava-se at ento que o PCI e os sindicatos saberiam controlar o povo
melhor do que ningum! Dizia-se por exemplo: in Cile i carri armati, in Italia i
sindicati. Mas Zangheri, o prefeito comunista de Bolonha, apelou para as foras
repressivas em suas formas mais violentas. Invadir a cidade com carros blindados.
Exortou pessoalmente a poltica ao combate com o lema: Avante, a guerra, essas
pessoas tm de ser eliminadas, elas mesmas se excluram da comunidade... ramos 15mil na rua. Nunca se tinha visto isto em Bolonha! Alice nos informava a cada instante
sobre tudo que estava acontecendo, por intermdio dos companheiros que telefonavam
e que iam diretamente ao ar. Todos os processos e as prises que se seguiram foram
justificadas por este papel militar de Alice.
Conspirar quer dizer respirar junto, e disso que somos acusados; eles querem
nos impedir de respirar porque ns nos recusamos violentamente a respirar em seuslocais de trabalho asfixiantes, em suas relaes individuais, familiares, em suas casas
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atomizantes. H um atentado que confesso ter cometido, o atentado contra a
separao da vida e do desejo, contra o sexismo nas relaes interindividuais, contra a
reduo da vida a uma prestao de salrio.
Alice, figli di puttana. Todos estes pequeno-burgueses safados, nojentos,
todos esses drogados, essas bichas, esses depravados, esses vagabundos, pirados, que
querem sujar o corao de nossa bela Emlia. Mas eles no conseguiro, porque, aqui,
h trinta anos que todo mundo adquiriu altas conscincias de classe. At os pequenos
patres tm sua carteirinha do partidoE nossa juventude trabalhadora no se deixa
levar por essas maquinaes diablicas. o prprio povo que recusar esta aventura.
E no me venham acusar o PCI de prticas antidemocrticas! Por toda parte nas
fbricas, nos bairros, nas escolas, ns favorecemos a implantao de comisses
populares, de conselhos de delegados. E so eles, hoje em dia, que tendem a tornar-se
os melhores guardies da ordem.
Por toda parte nossas necessidades devem ser representadas pelos porta-vozes
delegados em troca de promessa de falar amanh. Miniparlamentos e conselhos de
colgio, conselhos de bairro, descentralizao cultural, mil lugares delegados, nos
quais as relaes reais no mudam, que no nos do poder algum; os patres enviam
para a um socilogo, um psiclogo, um antroplogo, um reformador, no final das
contas um policial com seu cassetete.
O erro histrico. Fomos a eles com a mo estendida, queramos explicar-lhes a
linha justa de nosso partido. Na Universidade de Roma, Lama veio dar-lhes o ponto de
vista dos trabalhadores. Expulsaram-no a pedradas. Eles no respeitam nada. I Lama
stanno nel Tibet. Imaginem se o Partido Comunista Italiano, o partido dos
trabalhadores e de todo o povo, se deixar intimidar muito tempo por um punhado de
excitados, de agitadores irresponsveis que se intitulam, a si prprios, os ndios
metropolitanos?!Nossa nica fraqueza ter sido nossa pacincia demasiado longa. Alegitimidade do poder de Estado hoje em dia repousa sobre ns. E, em ltima instncia,
cabe a nosso partido apreciar aquilo que bom para as massas, aquilo que no .
Em Bolonha e em Roma acenderam-se focos de uma revoluo sem relao alguma
com aquelas que haviam sacudido a histria at hoje. Focos de uma revoluo que
varrer no somente os regimes capitalistas, mas tambm os baluartes do socialismo
burocrtico quer eles se digam do eurocomunismo, de Moscou ou de Pequim. Seus
fronts imprevisveis incendiaro talvez os continentes, mas algumas vezes seconcentraro tambm num bairro, numa rua, numa fbrica, numa escolaSuas
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implicaes tero a ver tanto com as grandes opes econmicas, ou tecnolgicas,
quanto com atitudes, relaes com mundo, singularidades de desejo. Por mais que os
patres, os policiais, os polticos, os burocratas, os professores, os psicanalistas
conjuguem seus esforos para paralisar, canalizar, recuperar isso. Por mais que eles
sofistiquem, diversifiquem, miniaturizem suas armas ao infinito, eles no conseguiro
mais recuperar a tremenda virada, o imenso movimento de fuga, a pluralidade de
mutaes de desejo que j se desencadeou. A ordem econmica, poltica e moral do sc.
XX est com rachaduras por todos os lados. E hoje os homens do poder no sabem
mais o que fazer primeiro. O inimigo se faz s vezes imperceptvel, alguma coisa
arrebenta bem do seu lado, seu filho, sua mulher, seu prprio desejo que trai sua
misso de guardio da ordem estabelecida! A polcia liquidou Alice seu animadores
tm sido perseguidos, aprisionados, condenados, suas sedes foram saqueadas -, mas
seu trabalho de desterritorializao revolucionria continua incansavelmente at
mesmo nas fibras nervosas de seus perseguidores. Nada de construtivo em tudo isto!
Talvez nem seja esse o problema! O ponto de vista dos alicianos sobre a questo o
seguinte: o movimento que conseguir destruir a gigantesca mquina capitalista-
burocrtica ser a fortiori capaz de construir um outro mundo a competncia coletiva
no assunto vai sendo adquirida no caminho, sem que seja necessrio, na etapa atual,
arquitetar projetos de sociedade sobressalentes.
O texto Milhes e milhes de Alices no ar pode ser considerado representativo
sobre o pensamento e a participao de Flix Guattari no movimento das rdios livres
na Europa. Na forma de textos apresentados pelas rdios, o autor tambm revela suas
teorias sobre revoluo molar e molecular. Outro texto de Guattari, no entanto, faz
uma reflexo sobre o contexto de existncia das rdios livres. Ao mesmo tempo, traa
uma perspectiva que o autor entende como em direo a uma era ps-mdia, tendo as
rdios livres como embrio. O texto, prefcio da obra Rdios livres, a reforma agrriano ar (Machado, Magri, Masago, 1987) fala das revolues mdiaticas preparadas pelas
novas tecnologias da informtica, o que representa uma viso de futuro sobre o que, em
parte, comea a ocorrer quase 20 anos depois da publicao do texto, cujas condies
merecem uma reflexo mais profunda.
As rdios livres em direo a uma era ps-mdia
O fenmeno das rdios livres s toma seu sentido verdadeiro se orecolocamos no contexto das lutas de emancipao materiais e subjetivas. Na Itlia e
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na Frana, ele foi um dos ltimos flores das revolues moleculares que se sucederam
aos movimentos de contestao dos anos 60. Nos ltimos anos, a situao europia foi
submetida a um congelamento social, poltico e cultural, para no dizer a uma onda de
glaciao. Isso tem a ver com o esforo desse continente em manter seu lugar entre as
grandes potncias econmicas e militares que dele se distanciam cada vez mais. As
diferentes categorias sociais que o compem se apertam friorentamente umas nas
outras, agarrando-se s suas conquistas e s suas iluses. S uma minoria de
marginais consegue se manter fora do consenso reacionrio. Nessas condies, a
maior parte dos grandes movimentos de emancipao de encontram abatidos ou
jogados para escanteio.
A situao muito diferente no continente latino-americano e em particular no
Brasil, onde centenas de milhes de pessoas se encontram marginalizadas em relao
economia dominante. E como nada autoriza esperar que elas possam vir a se integrar
docemente em uma sociedade de tipo norte-americano, europeu ou japons, possvel
supor que elas s podero afirmar seu direito existncia atravs da reinveno de
novas formas de luta e de expresso. Novas: porque manifestamente no se pode mais
dar credibilidade aos mtodos polticos obtusos e corporativos dos velhos partidos e
sindicatos de esquerda. Sem dvida, as lutas clssicas no campo do trabalho e na arena
poltica tradicional continuaro a desempenhar um papel importante para o
estabelecimento de relaes de fora globais com as classes conservadoras, mas elas
no podero mais dar um contedo verdadeiramente emancipador a essas lutas se as
diferentes composies da esquerda permanecerem impregnadas de valores
conservadores. A interveno de uma inteligncia alternativa, de prticas sociais
inovadoras, como o caso das rdios livres, parece portanto indispensvel sade de
centenas de milhes de explorados desse continente. Essa recusa parcial das prticas
da esquerda tradicional no impede de maneira nenhuma que se estabelea com elaalianas por exemplo, nessa questo das rdios livres. No implica, portanto, um
fechamento sectrio sobre os grupsculos de extrema-esquerda que, de maneira mais
velada, so tambm incapazes, na maioria das vezes, de entender as profundas
mutaes que se operam na sociedade contempornea. Novas e mais amplas alianas
podem ser criadas para reinventar novas formas de vida talvez de sobrevivncia e
de luta. Penso, por exemplo, em certos setores da Igreja ligados teologia da
libertao.
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As primeiras rdios livres do Brasil foram acolhidas com uma certa reserva.
Alguns recearam que sua apario pudesse servir de pretexto para uma represso
violenta; outros s conseguiram ver nelas um replay dos movimentos dos anos 60.
bom que esteja claro, antes de mais nada, que o movimento das rdios livres pertence
justamente queles e eles so uma legio que sabem que no podero jamais se
exprimir de maneira convincente nas mdias oficiais. No se trata, portanto, de um
movimento esquerdista, mesmo se so os esquerdistas os primeiros a se engajar
corajosamente nessa perspectiva. Isso quer dizer, no meu modo de ver, que os seus
atuais representantes deveriam evitar todo sectarismo e toda rigidez. Parece-me
evidente que em uma etapa ou outra do processo atual devero ser estabelecidas
negociaes com as autoridades. Parece-me absurdo e irresponsvel proclamar que as
negociaes sobre as condies de exerccio das novas mdias sero recusadas por
princpio. A questo toda est em fazer essas negociaes nas melhores relaes de
fora possveis para os movimentos de emancipao dos jovens, das mulheres, dos
negros, dos trabalhadores, das minorias sexuais, dos ecologistas, dos pacifistas, etc.
As rdios livres no nasceram de um fantasma da belle poque dos meia-oitos,
como escreveu um jornalista da Folha de So Paulo. Trata-se, pelo contrrio, de um
movimento que se instaurou, nos anos 70, como reao a uma certa utopia abstrata dos
anos 60. As rdios livres representam, antes de qualquer outra coisa, uma utopia
concreta, suscetvel de ajudar os movimentos de emancipao desses pases a se
reinventarem. Trata-se de um instrumento de experimentao de novas modalidades de
democracia, uma democracia que seja capaz no apenas de tolerar a expresso das
singularidades sociais e individuais, mas tambm de encorajar sua expresso, de lhes
dar a devida importncia no campo social global. Isso quer dizer que as rdios livres
no so nada em si mesmas. Elas s tomam seu sentido como componentes de
agenciamentos coletivos de expresso de amplitude mais ou menos grande. Elasdevero se contentar em cobrir pequenos territrios; podero igualmente pretender
entrar em concorrncia atravs de redes, com as grandes mdias: a questo fica aberta.
O que, no meu modo de ver, a resolver a evoluo as novas tecnologias. As rdios
livres, e amanh as televises livres, so apenas uma pequena parte do iceberg das
revolues miditicas que as novas tecnologias da informtica nos preparam. Amanh,
os bancos de dados e a ciberntica colocaro em nossas mos meios de expresso e
concertao por enquanto inimaginveis. Basta que esses meios no sejamsistematicamente recuperados pelos produtores de subjetividade capitalista, ou seja, as
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7/31/2019 A Era Ps-Mdia Desenhada nas Rdios Livres: o Pensamento de Flix Guattari
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Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005
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mdias globais, os manipuladores de opinio, os detentores dos star system poltico.
Trata-se, em suma, de preparar a entrada dos movimentos de emancipao numa era
ps-mdia, que acelerar a reapropriao coletiva no apenas dos meios de trabalho,
mas tambm dos meios de produo subjetivos.
Berardi (2002) escreve que enquanto o sistema miditico tornava-se o agente
central da colonizao mental e do autoritarismo poltico, Guattari falava da sociedade
ps-miditica. Os progressos da informtica tornariam possvel uma larga difuso de
combinaes rizomticas. Segundo ele, relaes bidimencionais e multidirecionais
entre coletivos de enunciao ps-miditica". Estas combinaes, assim como seus
modelos relacionais, iriam infectar o sistema televisivo centralizado, para depois
perturbar e desestruturar todas as formas hierrquicas estatais e econmicas.
Guattari descreve a utopia da rede, rizoma proliferante de crebros e de mquinas.
Aquela utopia se encarnou na tecnologia, na cultura, inclusive na imprensa. Mas como
todas as utopias, naturalmente, no pacfica, afirma Berardi (2002). Trava-se uma
guerra interminvel entre o domnio e a liberdade. No transcorrer dos anos 90, o rizoma
desenvolveu-se, mas foi contaminado por vrus semiotizantes de natureza centralizadora
e hierarquizadora. A penetrao da publicidade, do business, da televiso na rede
telemtica foi um dos aspectos dessa infiltrao. A profecia pos-miditica de Flix
Guattari segue sendo desmentida e confirmada a cada dia pela dinmica incessante do
domnio e da liberdade.
Mas o ponto filosoficamente mais importante da profecia pos-miditica de Flix
Guattari, conforme pensa Berardi, refletir sobre o que quer dizer midiatizao, e em
que medida isto envolve, incomoda, reprime, apaga a singularidade corprea. Os
indivduos esto presos no emaranhado miditico porque isto torna possvel uma
expanso da experincia, mas este emaranhado corre o risco de continuamente paralisar,
imbecilizar, destruir a sua singular sensibilidade.Se Guattari, como terico do movimento das rdios livres e de tantos outros, foi
capaz de antever a sociedade em rede, estes conceitos encontram-se hoje no centro de
um grande debate, onde convivem liberdade e domnio, possibilidade de existncia
global e aprisionamento da expresso. Os rizomas se ramificam e se reticulam, num
intenso processo de desterritorializao e reterritorializao das relaes sociais,
conforme pensam Guattari e Deleuze(1997). Nesse sentido h muitas correntes de
pensamento.
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Lvy (2001:12), com otimismo, entende que o mundo que se edifica hoje no
perfeito, tranqilizador ou protetor. Est incessantemente entre o caos e a
desorganizao. Mas nessa borda da ordem e do caos, segundo o autor, que se situam
a inveno e a energia espiritual mxima. Na grande roda da vida, os dois movimentos,
nascimento e morte, so complementares. A comunicao virtual, em que todos esto
interessados nas mesmas coisas, como afirma Lvy (2001), num mundo pela primeira
vez mundial, pode representar, segundo Virilio (1993) um desequilbrio freqente entre
a informao direta e a informao indireta, fruto do desenvolvimento de diversos
meios de comunicao. Isto tende, pensa ele, a privilegiar indiscriminadamente toda
informao mediatizada em detrimento da informao dos sentidos, fazendo com que o
efeito real parea suplantar a realidade imediata. Virilio (1993) afirma ainda que a
abolio das distncias de tempo leva perda de significado de vrias referncias
simblicas e histricas.
Estas so apenas algumas reflexes entre tantas sobre a era pos-miditica.
Evidenciam, antes de qualquer coisa, o perfil provocador do pensamento de Flix
Guattari, enxergando possibilidades futuras ainda no fenmeno das rdios livres.
Perspectivas que permitem hoje, pelo espao virtual, a produo de todos para todos,
sem uma emisso centralizada para uma recepo dispersa. Boa parte da produo na
internet, especialmente blogs que se expandem a cada momento, obedece ao desejo
embrionrio das rdios livres de fazer o seu espao e no de difundir por meios
sofisticados, sem pensar na ampliao do alcance j existente na rede. Em alguns casos,
renem uma combinao de citaes literrias, de msica clssica, dilogos sem
estrutura, linguagem desenfreada e reportagens dentro de acontecimentos diversos. So
dirios ntimos e pblicos. No h preocupao com ndices de audincia ou eventuais
julgamentos de valor. Querem garantir aquilo que os agrada. Quem quiser acessar que
acesse, seno, basta clicar em outro espao.
Referncias bibliogrficas
BERARDI, Franco. "Postmedia" in MEDIA ACTIVISM; Strategie e pratiche dellacomunicazione indipendente; mappa internazionale e manuale duso; Matteo Pasquinelli (org).Roma, DeriveApprodi, 2002.DELEUZE, Gilles e GUATTARI. Mil Plats. vol. 1. So Paulo: Ed. 34, 1997.
GUATTARI, Flix. Revoluo molecular: pulsaes polticas do desejo. So Paulo: Brasiliense,
1987._______________ e ROLNIK, Suely. Micropoltica, cartografias do desejo. Petrpolis: Vozes,
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1986.
LVY, Pierre. A conexo planetria. O mercado, o ciberespao, a conscincia. So Paulo:Ed.34, 2001.
MACHADO, Arlindo; MAGRI, Celso; MASAGO, Marcelo (Orgs.). Rdios livres. A reforma
agrria no ar. So Paulo: Brasiliense, 1987.
VIRILIO, Paul. O espao critico. Rio de Janeiro: Ed.34,1993.