transtorno de estresse pós-traumático

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Tese de I. Cardinalli com fundamentação fenomenológico-existencial

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  • 1

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA

    PUC/SP

    IDA ELIZABETH CARDINALLI

    TRANSTORNO DE ESTRESSE PS-TRAUMTICO: UM ESTUDO

    FENOMENOLGICO-EXISTENCIAL DA VIOLNCIA URBANA

    Doutorado em Psicologia Clnica

    SO PAULO

    2011

  • 2

    IDA ELIZABETH CARDINALLI

    TRANSTORNO DE ESTRESSE PS-TRAUMTICO: UM ESTUDO

    FENOMENOLGICO-EXISTENCIAL DA VIOLNCIA URBANA

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Clnica, sob a orientao da Prof Dr Marlise Aparecida Bassani.

    SO PAULO

    2011

  • 3

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

  • 4

    Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total e parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrnicos.

    Assinatura:

    So Paulo, _____/_____2011

    (colocar atrs da folha anterior e tirar este recado)

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Na finalizao do trabalho percebemos o grande nmero de pessoas que

    participaram, diretamente e indiretamente, e tornaram-no possvel, pois vemos que ele

    fruto de uma longa caminhada pessoal e profissional e a todos sou muito grata.

    Agradeo ao Durval pela sua compreenso com a minha pouca disponibilidade e

    seu apoio nos momentos de dvidas e aflies.

    Aos meus irmos e amigos por entenderem a minha ausncia e torcerem para

    que desse tudo certo.

    Marlise, por aceitar prontamente a proposta e possibilitar a realizao do

    trabalho com sua orientao cuidadosa.

    Aos Drs. Marcos Colpo, Maria Helena Pereira Franco e Maria Julia Kovcs,

    pelas sugestes que possibilitaram o aprimoramento do trabalho.

    Aos amigos e colegas da Associao Brasileira de Daseinsanalyse e da Equipe

    de Fenomenologia-existencial da PUC/SP pelos anos de convivncia, de troca e

    aprendizagem mtua.

    Bel, Bia, Edu e Felcia, pelo interesse e disponibilidade de conversar sobre

    minhas dvidas no andamento do trabalho.

    Ao Vitor, Myrna e Karen pela grande ajuda no levantamento das pesquisas e nas

    transcries das sesses.

    Marisa Penna, pelo apoio pessoal e institucional para a resoluo dos

    percalos administrativos.

    PUC/SP, pelo apoio para a realizao deste trabalho com a concesso de

    Bolsa Dissdio e Bolsa Capacitao Docente.

    Aos participantes da pesquisa, em especial, ao Joo, por expor seu sofrimento de

    modo verdadeiro, o que permitiu o desenvolvimento desse trabalho.

  • 6

    Quando, de manh cedo, um fsico sai de casa para ir

    pesquisar no laboratrio o efeito de Comton e sente brilhar nos

    olhos os raios de sol, a luz no lhe fala, em primeiro lugar, como

    fenmeno de uma mecnica quntica ondulatria. Fala como

    fenmeno de um mundo carregado de sentido para o homem,

    como integrante de um cosmos, na acepo grega da palavra,

    isto , de um universo cheio de coisas a perceber, de caminhos a

    percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a realizar.

    Carneiro Leo

  • 7

    CARDINALLI, Ida Elizabeth. Transtorno de Estresse Ps-Traumtico: um estudo fenomenolgico-existencial da violncia urbana. So Paulo, 2011. 146p. Tese (Doutorado). Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Orientadora: Prof Dr Marlise Aparecida Bassani.

    RESUMO

    A violncia urbana uma problemtica complexa e preocupante na atualidade,

    tanto que os organismos internacionais e nacionais tm solicitado estudos da suas

    diversas facetas. O desenvolvimento da presente pesquisa focalizou o impacto da

    violncia urbana na sade e adoecimento em suas vtimas, pautado pela questo

    norteadora: explicitar e esclarecer o sentido e os significados da experincia de quem

    sofreu violncia urbana como assalto e/ou sequestros relmpago ou de curta durao.

    A metodologia foi baseada no pensamento fenomenolgico-existencial, em

    particular, de Martin Heidegger, que entende o existir humano como ser-a e ser-no-

    mundo, buscando compreender a experincia da vtima de violncia urbana em sua

    totalidade. Os mtodos utilizados foram entrevistas de trs participantes e a psicoterapia

    focal de um deles, com 23 sesses de 50 minutos cada uma. Os participantes foram dois

    homens e uma mulher, todos casados, entre 48 a 53 anos. A anlise dos resultados foi

    organizada em dois eixos: temticos e temporais.

    Os resultados sugerem que as vtimas de assalto e sequestros relmpago ou de

    curta durao mostram sofrimento significativo, quando a experincia de violncia

    permanece aprisionada no sentido de risco, ameaa e perigo. O impacto da violncia

    pode abalar, ainda, a compreenso de si mesmo, do outro e do mundo com a

    aproximao abrupta das dimenses de imprevisibilidade, precariedade e

    vulnerabilidade abertas pela situao de violncia. A discusso dos resultados

    ampliada para possveis aplicaes no Servio Pblico de Sade. So indicados tambm

    temas para futuras pesquisas que articulem a Psicologia Clnica e a violncia urbana.

    (Apoio CEPE/PUC-SP)

    Palavras-chave: violncia urbana, assalto, sequestro de curta durao, TEPT,

    fenomenologia-existencial, Martin Heidegger.

  • 8

    CARDINALLI, Ida Elizabeth. Post-Traumatic Stress Disorder: an existential-phenomenological study of urban violence. So Paulo, 2011. 146p. Thesis (PhD). Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Advisor: Prof Marlise Aparecida Bassani, Ph.D.

    ABSTRACT

    Urban violence is currently a complex and worrying issue so much so that

    national and international organizations have been calling for studies in its various

    aspects. This research was developed with a focus on the impact of urban violence on

    the health and illness of its victims, based on an overriding concern: explaining and

    clarifying the meaning and significance of the experience of those who suffered urban

    violence, such as hold-up and/or express kidnapping.

    The methodology was based on the existential-phenomenological thinking, in

    particular Martin Heideggers, who understands human existence as being-there and

    being-in-the-world, seeking to understand the experience of victims of urban violence in

    its entirety. The methods used included interviews with three participants and focal

    psychotherapy with one with 23 sessions of 50 minutes each. The participants were two

    men and one woman, all married, and aged between 48 to 53 years. The analysis of the

    results was organized along two axes: thematic and temporal.

    The results suggest that the victims of hold-up or express kidnapping show

    significant distress, when the experience of violence remains trapped in the sense of

    risk, threat and danger. The impact of violence can also affect the understanding of

    oneself, of others and the world with the sudden approach of the dimensions of

    unpredictability, precariousness and vulnerability resulting from a situation of violence.

    The discussion of the results is extended to possible applications in the Public Health

    Service. Topics for future research that articulate Clinical Psychology and urban

    violence are also listed. (Supported by CEPE/PUC-SP).

    Key words: urban violence, hold-up, express kidnapping, PTSD, existential

    phenomenology, Martin Heidegger.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................... 11

    1. VIOLNCIAURBANAEOESTRESSEPSTRAUMTICO............................................. 18

    1.1. Violncias e a violncia urbana .................................................................. 20

    1.2. A violncia urbana e o adoecimento .......................................................... 26

    1.3. Assalto e adoecimento ............................................................................... 30

    1.4. Seqestro e adoecimento ............................................................................ 34

    2. HEIDEGGER: O EXISTIR HUMANO COMO SER-A ............................. 39

    2.1. O pensamento filosfico de Martin Heidegger .......................................... 41

    2.2. O mtodo de pesquisa da Cincia Natural e as proposies para a

    compreenso e o estudo dos fenmenos humanos.................................... 48

    3. OS MODOS DE EXISTIR SADIOS E PATOLGICOS ............................. 54

    3.1. A caracterizao dos modos de existir sadios e patolgicos ...................... 54

    3.2. A compreenso do fenmeno patolgico: Transtorno de Estresse Ps-

    Traumtico ............................................................................................... 57

    4. MTODO .......................................................................................................... 60

    4.1. Consideraes metodolgicas .................................................................... 60

    4.2. Local da pesquisa ....................................................................................... 64

    4.3. Participantes ............................................................................................... 65

    4.4. Cuidados ticos .......................................................................................... 67

    4.5. Instrumentos................................................................................................ 68

    4.5.1. Entrevitas clnicas .......................................................................... 68

    4.5.2. Psicoterapia focal .......................................................................... 69

    4.5.3. Observao clnica......................................................................... 72

    4.6. Procedimentos ............................................................................................ 73

    5. SNTESE DOS ATENDIMENTOS ................................................................. 74

    5.1. Descrio dos participantes ........................................................................ 74

    5.2. Sntese das entrevistas de ngelo e Mariana .......................................... 75

  • 10

    5.3. Snteses da entrevista inicial, das sesses de psicoterapia e follow up de

    Joo........................................................................................................... 80

    6. ANLISE DE DISCUSSO DOS RESULTADOS ....................................... 106

    6.1. Apresentao dos resultados ...................................................................... 107

    6.2. Discusso ................................................................................................... 124

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................ 131

    REFERNCIAS .................................................................................................... 136

    ANEXO .................................................................................................................. 142

  • 11

    INTRODUO A arte de pensar dada por um modo extraordinrio de sentir e escutar o silncio do sentido, nos discursos das realizaes. (CARNEIRO LEO, 1988, p. 13)

    Minha produo em pesquisa, nos ltimos anos, tem focalizado a questo da

    sade e da doena, utilizando o referencial fenomenolgico-existencial, em especial o

    pensamento heideggeriano, desenvolvendo questionamentos sobre as concepes

    tradicionais do adoecimento, e procurando explicitar as maneiras especficas do adoecer

    e tambm estratgias mais adequadas de interveno psicoterpica para a problemtica

    humana que se me apresenta.

    O meu interesse, no presente trabalho, em estudar o impacto da violncia na vida

    das pessoas surgiu por volta de 2005, quando muitas pessoas do meu crculo de

    convivncia foram assaltadas ou sofreram sequestro relmpago"1. Nesta poca

    observei que algumas pessoas, aps sofrer violncia urbana como assalto ou sequestro,

    sentiam muito medo, no queriam passar pelo local em que sofreram o ato violento e/ou

    evitavam sair de casa noite, quando o evento ocorrera neste perodo.

    No incio de 2006, dois pacientes me procuraram para atendimento psicoterpico

    em consultrio particular e mostraram sofrimento em decorrncia de situaes de

    violncia urbana.

    Em um deles, a relao do sofrimento com a violncia estava explcita. O

    paciente relatou que seu irmo mais novo, do qual era muito prximo, fora assassinado

    durante um assalto e aps este evento no conseguia parar de pensar sobre o

    acontecimento e a perda do irmo. No conseguia trabalhar ou cuidar dos filhos, estava

    muito triste e deprimido, sentia-se pssimo e, quando me procurou, j estava medicado

    e com acompanhamento psiquitrico.

    O segundo paciente, quando me procurou, estava um pouco deprimido e

    relacionava isto com as enormes dificuldades que passava em seu trabalho. Algum

    tempo depois, ele mencionou que 10 anos atrs sofrera um sequestro relmpago, e,

    posteriormente, pudemos perceber que este acarretou um grande impacto na sua vida.

    1 Ferreira-Santos (2007) esclarece que sequestro relmpago a denominao comumente atribuda modalidade de assalto mo armada, na qual a vtima permanece em poder dos assaltantes por certo perodo. Em geral, durante este intervalo de tempo, so praticados furtos em caixas automticas bancrias e, frequentemente, ocorrem violncias fsicas contra a vtima.

  • 12

    Aps o sequestro, o paciente sentia medo de sair noite e, s vezes, ficava um

    pouco deprimido. Naquela poca, terminou um namoro longo, por uma srie de

    motivos, entre eles porque no conseguia ir casa da namorada, uma vez que a casa

    dela era prxima ao local do sequestro e tambm porque no conseguia sair noite para

    fazer qualquer atividade.

    Havia iniciado uma primeira psicoterapia e conseguiu retomar sua vida afetiva e

    cuidar da sua carreira profissional at que novamente sentia-se deprimido, ao se

    defrontar com muita dificuldade no trabalho. Neste momento, decidiu-se por uma

    segunda terapia, desta vez comigo. No decorrer do trabalho psicoterpico, ele muda de

    emprego e nos primeiros dias do novo trabalho fica apavorado porque achou que um

    dos seguranas do prdio, do novo trabalho, era a pessoa que o havia sequestrado e que

    poderia reconhec-lo. Seu medo se intensificava porque esta pessoa trabalhava como

    segurana e poderia ter acesso aos seus dados pessoais. No trabalho, sentia muita

    dificuldade em se concentrar nas atividades ao pensar que o segurana estava na entrada

    do prdio. Ao mesmo tempo, como era um emprego novo, achava que no poderia

    comentar com ningum a sua suspeita, o que tornava a vivncia mais difcil e pesada.

    interessante destacar como o medo no se apresenta de modo lgico ou racional porque

    seria mais razovel que o segurana, se fosse efetivamente o sequestrador, sentisse

    medo de ser reconhecido e no ele que tinha sido a vtima. Posteriormente, percebemos

    que o paciente, desde o sequestro, permaneceu com alguns comportamentos decorrentes

    da violncia, como preferir ficar em casa e evitar sair noite no momento de lazer.

    A partir destas situaes fiquei intrigada ao observar como o impacto de um

    evento violento pode ser grande na vida de uma pessoa, uma vez que, em alguns casos,

    ele perdura por muito tempo, sendo at incorporado na maneira de viver. Mesmo

    quando as decorrncias da violncia no so percebidas, elas se apresentam na

    dificuldade de realizar o trabalho, em desenvolver atividades de lazer que eram

    prazerosas, no humor depressivo, na intensidade dos sentimentos de medo ou na

    lembrana constante da situao de violncia.

    A violncia uma problemtica complexa, uma vez que envolve a interao de

    diversos fatores: individuais, sociais, histricos, econmicos, culturais e intersubjetivos.

    Assim, o estudo da totalidade deste fenmeno requer o exame de seus vrios ngulos,

    como as causas da violncia, o impacto em suas vtimas, proposies interventivas no

    mbito individual, grupal e coletivo, entre outros.

  • 13

    Neste trabalho, ser estudado o impacto da experincia de violncia urbana em

    suas vtimas, o que poder ser uma oportunidade para discutir o adoecimento decorrente

    da violncia urbana e tambm as intervenes psicoterpicas mais adequadas a esta

    problemtica. Ser focalizado, especificamente, o roubo, o sequestro relmpago e

    tambm outro tipo de sequestro, que ser denominado de curta durao, pois a vtima

    fica em poder dos assaltantes por algumas horas at que o roubo seja efetivado, mas no

    ocorre saque de dinheiro atravs de carto de crdito. Deste modo, o objetivo principal

    desta pesquisa o esclarecimento do sentido e dos significados da experincia das

    vtimas de violncia urbana por meio de interveno psicoterpica focal fenomenolgica

    existencial.

    Considerando, portanto, a questo norteadora: explicitar e esclarecer o sentido e

    os significados da experincia de quem sofreu violncia urbana como assalto e/ou

    sequestros relmpago ou de curta durao, esto descritos, abaixo, os objetivos

    especficos da tese.

    1- Apresentar estudos sobre as consequncias da violncia urbana no existir

    humano, a fim de contribuir para a discusso da noo da psiquiatria atual de

    Transtorno de Estresse Ps-Traumtico.

    2- Apresentar os principais elementos tericos da abordagem fenomenolgico-

    existencial que circunscrevam a compreenso do ser humano como uma

    totalidade, para fundamentar o mtodo e a metodologia da pesquisa.

    3- Descrever e caracterizar os significados da experincia de uma pessoa que viveu

    situao de violncia, buscando compreender o sentido desta experincia na

    totalidade do seu existir.

    4- Identificar e discutir as contribuies da abordagem fenomenolgico-existencial

    para o esclarecimento e compreenso do sofrimento experienciado por quem

    viveu uma situao de violncia.

    O aumento da violncia na atualidade e suas consequncias na sade humana

    tm sido objeto de preocupao. Em 1996, a Assembleia Mundial da Sade2 declara que

    a violncia um problema de sade pblica fundamental e crescente em todo o

    mundo (p.2), e prope estudo sobre a violncia e a sua relao com a sade. O

    249 Assembleia Mundial da Sade, organizada pela Organizao Mundial da Sade, assume a resoluo WHA49.25, que considera a violncia mundial como um problema de sade pblica e prope seu estudo em escala mundial, focalizando as suas diversas facetas.

  • 14

    resultado desse trabalho foi publicado em 2002, intitulado World report on violence and

    health, pela Organizao Mundial de Sade (OMS).

    Esse relatrio constitui o primeiro estudo exaustivo do problema da violncia em

    escala mundial. Ele descreve a magnitude e o impacto da violncia no mundo, examina

    as suas causas principais, descreve diferentes modalidades de interveno e apresenta

    algumas recomendaes para a adoo no plano local, nacional e internacional.

    No Brasil, em 2005, a Secretaria de Vigilncia do Ministrio da Sade e a

    Organizao Pan-Americana da Sade publicam o livro Impacto da violncia na sade

    dos brasileiros, mostrando seu compromisso com a problemtica da violncia, ao

    seguir as orientaes da Organizao Mundial da Sade sobre a inter-relao violncia e

    sade. Esse documento destaca tambm que a violncia urbana, denominada de

    violncia coletiva pela OMS, um dos tipos de violncia que se destacam na realidade

    brasileira, conforme descrito abaixo:

    No caso brasileiro, sobretudo nas regies metropolitanas e nos grandes centros urbanos, a violncia coletiva tende a vicejar persistente e vigorosamente na sua expresso instrumental, como recurso usado por muitas pessoas e grupos para conquistar mercados de bens e de poder. (MINAYO, 2005, p. 29)

    Nesta mesma perspectiva, Andreoli et al. (2009), Ribeiro et al. (2009), Ferreira-

    Santos (2007), Carbonell e Carvajal (2004) e Vieira Neto (2004) ressaltam que a

    violncia urbana constitui um tema importante na atualidade em funo das suas

    consequncias, tanto no campo da sade fsica e mental, quanto em relao s perdas

    econmicas no s para as prprias vtimas, mas tambm para o estado e as empresas.

    Carbonell e Carvajal (2004) destacam tambm que os assaltos s pessoas nas

    vias pblicas e os sequestros geram uma percepo de perigo iminente e falta de

    proteo. Ao sofrer estes atos de violncia, as vtimas apresentam uma srie de reaes

    psicolgicas e fisiolgicas, pois vivenciam a ameaa sua integridade pessoal, risco de

    perder a vida ou sofrer leses fsicas e, posteriormente, apresentam uma resposta

    emocional que se caracteriza por sensao de horror e vulnerabilidade.

    As consequncias da violncia no ser humano so, na atualidade, denominadas

    como Transtorno de Estresse Ps-Traumtico (TEPT) no Manual Diagnstico e

    Estatstico de Transtornos Mentais (DSM-IV) e na Classificao Internacional das

    Doenas (CID-10).

  • 15

    O DSM-IV e o CID-10 descrevem as reaes das pessoas aps a exposio a um

    evento estressor ou traumtico extremo. Nesses manuais so considerados muitos

    eventos como desencadeadores do TEPT, isto , esto contempladas situaes violentas

    decorrentes da ao humana, interpessoal ou coletiva, ou de eventos da natureza; estes

    podem, por sua vez, ser vividos diretamente ou apenas testemunhados. Aps o evento, a

    reao das vtimas envolve muito medo, impotncia ou horror. Os sintomas incluem re-

    vivncia, esquiva de situaes que relembrem o evento, embotamento da responsividade

    geral e excitao aumentada.

    Houve uma transformao do conceito de neurose traumtica at a descrio

    atual de Transtorno de Estresse Ps-Traumtico pelo DSM e CID. Estudiosos desta

    temtica se basearam em diferentes pressupostos tericos, que incluem uma dada

    concepo de homem modelos especficos de interveno, como o mdico ou

    psicoterpico, para pesquisar e definir esta patologia. Assim, os trabalhos discutem, por

    exemplo, se a causa seria orgnica ou psquica ou mesmo a posio dos elaboradores

    dos DSM, que evitam uma discusso epistemolgica e etiolgica, quando priorizam a

    descrio detalhada dos critrios diagnsticos.

    Os estudos sobre TEPT tm suscitado uma srie de questes importantes, como

    menciona Schestatsky et al. (2003): se a sua etiologia orgnica ou psicolgica; se o

    que traumtico o prprio evento ou a interpretao subjetiva do mesmo; ou ainda, se

    o prprio trauma que causa o transtorno ou so vulnerabilidades prvias do prprio

    sujeito. Ao mesmo tempo, pode-se observar que quando as discusses sobre os

    fenmenos traumticos e/ou estressores esto voltados para questes etiolgicas ou ao

    estabelecimento de critrios diagnsticos fidedignos, no h a preocupao com o

    esclarecimento efetivo de como estas situaes so vividas.

    Assim, acompanhando as ideias de Mello Filho (1986), que assinala que a

    tendncia mais atual dos estudos psicossomticos abandonar os conceitos de

    psicognese ou somatognese e encarar o fenmeno doena de forma sempre global,

    gestltica e em funo da pessoa que a apresenta, e em sua forma especial de viver em e

    com o mundo (p. 18), destaca-se a importncia da realizao de estudos que priorizem

    o esclarecimento da experincia de vtimas de violncia.

    Corrigan et al. (2007) e Jacobsen (2004) assinalam que os estudos qualitativos

    baseados na perspectiva fenomenolgica e existencial possibilitam tambm o

    esclarecimento da experincia daqueles que viveram eventos estressantes e/ou

    traumticos, pois oferecem elementos para explicitar como estas situaes afetam o

  • 16

    existir humano. Deste modo, neste trabalho, a abordagem fenomenolgico-existencial

    foi escolhida para o esclarecimento do impacto experienciado por vtimas de violncia,

    com o objetivo de contribuir para a ampliao da compreenso do fenmeno

    denominado Transtorno de Estresse Ps-Traumtico pela psiquiatria atual.

    Do ponto de vista da pesquisa fenomenolgica existencial, inicialmente,

    necessrio elucidar a proposio da questo norteadora da pesquisa, apresentada

    anteriormente, pois ela fornecer a orientao e o caminho da investigao. Esta questo

    no concebida como problema de pesquisa, na concepo mais tradicional da cincia,

    que pretende provar sua tese atravs de hipteses bem formuladas baseadas apenas em

    razes fundadas na evidncia dos fatos e na coerncia do raciocnio lgico

    (SEVERINO, 1978, p.119). Desde seu incio, com Husserl, a fenomenologia apresenta

    outros fundamentos para o processo de conhecimento, baseia-se na relao indissocivel

    homem e mundo (conceito de intencionalidade), e busca o esclarecimento do fenmeno,

    e no dos fatos3, assim como assinala que o fenmeno se mostra a partir de si mesmo.

    Tendo em vista a questo norteadora desta pesquisa: explicitar e esclarecer o

    sentido e os significados da experincia das vtimas de violncia urbana, o trabalho ser

    organizado em seis captulos.

    O primeiro captulo situar a problemtica da violncia na atualidade e possveis

    consequncias na sade e no adoecimento do ser humano. Inicialmente, ser explicitada

    a noo de violncia proposta pela Organizao Mundial da Sade e apresentados os

    dados de roubo e sequestro no Municpio e no Estado de So Paulo, regio em que se

    inserem os participantes da pesquisa e a pesquisadora. Em seguida, sero apresentados

    os estudos sobre consequncias da violncia em suas vtimas e, posteriormente,

    pesquisas sobre violncia urbana, como roubo e sequestro.

    O segundo captulo explicitar, inicialmente, a proposio filosfica de Martin

    Heidegger do existir humano como ser-a (Dasein) e ser-no-mundo, caracterizando a

    abertura e os existenciais como a temporalidade, finitude, angstia e corporeidade. Ser

    apresentada tambm a reflexo do filsofo sobre o Mtodo da Cincia Natural, bem

    como a proposio para o estudo e a compreenso dos fenmenos humanos.

    3 Martins e Bicudo (1994) esclarecem que fato entendido pelo Positivismo como tudo aquilo que pode se tornar objetivo e estudado como objeto da cincia. Esta definio est apoiada no pensamento empirista, segundo o qual todo conhecimento precisa ser provado atravs do sentido de certeza e de observao sistemtica que asseguram a objetividade (p. 22).

  • 17

    No terceiro captulo, baseado no pensamento heideggeriano, sero expostas as

    reflexes sobre sade e doena e a compreenso da experincia e do sofrimento de

    vtimas de violncia.

    O quarto captulo apresentar o mtodo e o procedimento de pesquisa qualitativa

    baseado na fenomenologia existencial, em especial, no pensamento heideggeriano.

    Considerando que a questo norteadora explicitar e esclarecer o sentido e os

    significados da experincia de vtimas de violncia urbana, destacamos que sentido

    um rumo que apela o existir de cada um de ns. Como o sentido no se apresenta de

    forma patente e explcita, o processo de psicoterapia focal permitiria ao participante

    aproximar-se de sua experincia e, assim, tornar possvel explicit-la para poder ser

    analis-la.

    No quinto captulo, sero descritas as snteses das entrevistas dos trs

    participantes e das sesses de psicoterapia focal, do participante que finalizou o

    processo psicoterpico.

    No sexto captulo sero desenvolvidas a anlise e a discusso dos resultados. A

    anlise focalizou os resultados relativos s sesses de psicoterapia do participante que

    deu continuidade psicoterapia, que foi organizada em dois eixos: o temporal e os

    agrupamentos temticos. A discusso retoma estes resultados alm de alguns elementos

    das entrevistas dos outros dois participantes para o esclarecimento do significado e do

    sentido da experincia de violncia.

    Finalmente, sero apresentadas as consideraes finais, as referncias

    bibliogrficas e os anexos.

  • 18

    1. VIOLNCIA URBANA E O ESTRESSE PS-TRAUMTICO

    Vivemos numa poca estranha, singular e inquietante. Quanto mais a quantidade de informaes aumenta de modo desenfreado, tanto mais decididamente se amplia o ofuscamento e a cegueira diante dos fenmenos. (Heidegger, 2009, p. 109)

    O impacto da violncia no comportamento humano , em geral, na atualidade,

    descrito pelos critrios diagnsticos do Transtorno de Estresse Ps-Traumtico (TEPT)

    no Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais (DSM-IV) e na

    Classificao Internacional das Doenas (CID-10).

    Segundo o DSM-IV (2000), a caracterstica principal do Transtorno de Estresse

    Ps-Traumtico o desenvolvimento de sintomas especficos aps a exposio a um

    extremo evento traumtico, que pode referir-se, tanto s experincias prprias e diretas,

    quanto ao fato de ter presenciado um evento real ou ameaador que envolve morte, srio

    ferimento ou outra ameaa prpria integridade fsica ou de outra pessoa; ou o

    conhecimento sobre morte violenta ou inesperada, ferimento srio ou ameaa de morte

    ou ferimento experimentado por um membro da famlia ou uma pessoa prxima do

    indivduo.

    A resposta ao evento envolve muito medo, impotncia ou horror. Os sintomas

    decorrentes da exposio ao evento traumtico incluem re-vivncia, esquiva de

    situaes relacionadas com o evento, embotamento da responsividade geral e sintomas

    de excitao aumentada. O quadro sintomtico completo deve estar presente por mais

    de um ms e a perturbao deve causar sofrimento ou prejuzo significativo na rea

    social, ocupacional ou outras importantes na vida do indivduo.

    Schestatsky et al. (2003) e Kristensen (2005) esclarecem que houve uma

    modificao na definio do trauma na reviso do DSM-III para a elaborao do DSM-

    IV em 1994, uma vez que, no primeiro, o trauma entendido como experincia fora da

    normalidade e excepcional enquanto, no segundo, os eventos desencadeantes podem ser

    eventos habituais na vida cotidiana. Destacam tambm que no DSM-IV foi includa

    outra categoria diagnstica, o Transtorno de estresse agudo (TEA), para contemplar as

    reaes que ocorrem logo aps o evento traumtico, isto , quando os sintomas

    aparecem em at quatro semanas e a durao destes ocorre entre dois dias a quatro

    semanas. Os critrios diagnsticos do TEA se diferenciam do TEPT, alm do aspecto

  • 19

    temporal do aparecimento e da durao dos sintomas, tambm por priorizar os sintomas

    dissociativos4.

    Em relao Classificao Internacional da Doena, CID-10, o paciente pode

    ser diagnosticado com TEPT quando foi exposto a um evento ou situao estressante de

    natureza ameaadora ou catastrfica. H rememorao ou revivncia do estressor em

    flashbacks, memrias vividas, sonhos recorrentes ou sentimento de angstia em

    circunstncias semelhantes ao estressor que a pessoa quer evitar. H dificuldade em

    lembrar-se de alguns aspectos importantes do perodo de exposio ao estressor e

    presena de sintomas como dificuldades em relao ao sono, irritabilidade, dificuldade

    de concentrao, hipervigilncia e resposta de susto exagerada.

    Pode-se verificar que, grosso modo, os critrios diagnsticos descritos no CID-

    10 e no DSM-IV so semelhantes5, com exceo da incluso de sintomas dissociativos

    que no DSM-IV especificam o TEA, enquanto no CID-10 esto includos no TEPT.

    interessante destacar tambm que o evento desencadeador, do TEPT e do TEA, no

    nomeado do mesmo modo em cada um destes trabalhos, pois este evento chamado de

    traumtico no DSM-IV e de estressante na CID-10. O critrio de escolha de cada termo,

    ou sua definio, no esclarecido, pois priorizada a apresentao de ndices

    classificatrios bem estabelecidos para o diagnstico dos transtornos. Ao mesmo tempo,

    a Psicologia e a Psicopatologia apresentam conceituaes especficas para cada um

    destes fenmenos, trauma e estresse, e mostram vrias noes sobre a experincia

    traumtica e estressante de acordo com as vrias abordagens tericas. Como estas

    noes no so consideradas nestes manuais classificatrios, os fenmenos, intitulados

    como trauma e estresse, so veiculados e utilizados, muitas vezes, de maneira indistinta.

    Considerando que este trabalho pretende discutir as decorrncias da violncia

    urbana no existir humano, uma das etapas desta pesquisa foi o levantamento

    bibliogrfico sobre esta temtica. A reviso buscou artigos de pesquisas publicados em

    peridicos, em livros, dissertaes e teses. O levantamento bibliogrfico de artigos

    cientficos publicados em revistas indexadas foi realizado atravs de busca digital no

    perodo de 2005 a 2009. Posteriormente, foi ampliado o perodo em funo da escassez

    4 No DSM-IV, os seguintes sintomas dissociativos so descritos em relao ao TEA: sentimento de anestesia, distanciamento ou ausncia de resposta emocional; reduo da conscincia em relao s coisas ao redor; desrealizao; despersonalizao e amnsia dissociativa, isto , incapacidade de recordar um aspecto importante do trauma. 5 Schestatsky et al. (2003) e Kristensen (2005) apresentam uma discusso detalhada sobre as diferenas e semelhanas do DSM-IV e do CID-10 sobre TEPT e TEA, assim como sobre os problemas presentes nestas formulaes.

  • 20

    de publicaes sobre violncia urbana, especialmente assalto e sequestro, e atualizado

    at 2010, nas seguintes bases de dados: SciELO, BVS/BIREME e PUBMED.

    A apresentao da reviso bibliogrfica foi organizada em quatros itens para

    facilitar a visualizao das questes e temticas pesquisadas, a saber: 1. Violncias e

    violncia urbana, 2. A violncia urbana e o adoecimento, 3. Assalto e adoecimento e 4.

    Sequestro e adoecimento.

    1.1. Violncias e a violncia urbana

    O fenmeno da violncia complexo e seu estudo amplo, pois compreende a

    investigao de seus diversos ngulos: suas causas, o prprio comportamento violento e

    o impacto da violncia em suas vtimas etc. As causas da violncia e o comportamento

    violento precisam tambm ser considerados em seus componentes sociais, histricos,

    econmicos, culturais e subjetivos. As consequncias da violncia so graves e afetam a

    sade individual e coletiva, exigindo, assim, a formulao de polticas especficas e

    organizao de prticas de interveno e de servios especficos para a preveno e o

    tratamento de suas vtimas.

    A violncia em si no uma questo de sade, mas transforma-se em problema,

    especialmente para a sade pblica, porque afeta a sade fsica e mental de uma grande

    parte da populao mundial, conforme explicita o documento World report on violence

    and health (2002) publicado pela Organizao Mundial de Sade (OMS) e traduzido

    como Informe mundial de la violencia y la saude (2002) pela Organizao Pan-

    Americana da Sade. No Brasil, tambm seguindo as recomendaes da OMS para que

    cada pas estude a problemtica da violncia e sua influncia na sade da populao, a

    Secretaria de Vigilncia do Ministrio da Sade6 publica o livro Impacto da violncia

    na sade dos brasileiros, em 2005.

    No referido livro, Souza e Minayo (2005) mostram as dificuldades da

    conceituao da violncia, destacando que uma das mais importantes o fato de a

    violncia ser um fenmeno da ordem do vivido e cujas manifestaes provocam ou so

    provocados por uma forte carga emocional de quem a comete, de quem a sofre e de

    6 Em parceria com a Organizao Pan-Americana da Sade, o Centro Latino Americano de Estudos da Violncia e Sade Jorge Careli/Claves/ENSP/Fiocruz.

  • 21

    quem a presencia (p. 14). Esclarece tambm que o documento brasileiro mantm a

    definio proposta pela OMS e, assim, a violncia entendida como:

    O uso da fora fsica ou do poder, real ou em ameaa, contra si prprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em leso, morte, dano psicolgico, deficincia de desenvolvimento ou privao. (ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE, 2002, p. 5).

    O fenmeno da violncia, nestes documentos, classificado a partir de suas

    manifestaes empricas, ou seja, as caractersticas do ato violento. Esta categorizao

    distingue a violncia que uma pessoa inflige a si mesma, a violncia dirigida a um

    nmero pequeno de indivduos (violncia interpessoal) e a violncia relacionada a

    grupos maiores (violncia coletiva).

    As violncias autoinfligidas reportam aos comportamentos suicidas, que

    contemplam o suicdio, a ideao suicida e as tentativas de suicdio e o auto-abuso que

    abrange as agresses a si mesmo e as automutilaes.

    As violncias interpessoais so classificadas em dois mbitos: o intrafamiliar e o

    comunitrio. A violncia intrafamiliar a que ocorre entre os parceiros ntimos e entre

    os membros da famlia, principalmente no ambiente da casa. Inclui as vrias formas de

    agresso contra crianas, contra a mulher ou o homem e contra os idosos. A violncia

    comunitria aquela que acontece no ambiente social em geral, tanto entre conhecidos

    como desconhecidos. Consideram-se suas vrias expresses, como violncia juvenil,

    agresses fsicas, estupros, ataques sexuais e at a violncia institucional, que ocorre,

    por exemplo, em escolas, locais de trabalho, prises e asilos.

    As violncias coletivas so os atos violentos que ocorrem nos mbitos

    macrossociais, polticos e econmicos e caracterizam a dominao de grupos e do

    Estado. Nessa categoria, do ponto de vista social, incluem-se os crimes cometidos por

    grupos organizados, atos terroristas e crimes de multides.

    No caso brasileiro, a violncia apresenta altos ndices e envolve grande impacto

    na sade dos brasileiros, ressaltando-se, assim, a sua importncia no quadro complexo

    dos problemas sociais. Segundo o documento da Secretaria de Vigilncia em Sade

    (2005), na realidade brasileira, os tipos de violncia que apresentamos maiores ndices

    nas regies metropolitanas e nos grandes centros urbanos so relativas aos homicdios e

    acidentes de trnsito, sendo que o primeiro est relacionado ao narcotrfico e, assim,

    designado como violncia coletiva:

  • 22

    O homicdio foi a causa que mais contribuiu para o crescimento da mortalidade por violncias e acidentes no Pas. No perodo de 1980 a 1996, as mortes por essa causa cresceram 102% e, a partir da dcada de 80, ultrapassaram o nmero de bitos por acidentes de trnsito (JORGE et al., 1997; PAIM et al., 1999; MINAYO, 1990; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA, 1999). Isso se pode ver para o ano 2000, por exemplo, em que os homicdios representaram 34,3% dos acidentes e violncias, e a mortalidade no trnsito, 25,6%. Em quatro das cinco regies do Pas, eles foram a principal causa externa de bito, com exceo da Regio Sul, onde os acidentes de trnsito ocuparam a primeira posio. (p. 174)

    No entanto, o referido documento no apresenta informaes especficas sobre os tipos de violncia urbana, como assalto e sequestro, que escolhemos estudar. Deste modo, buscamos dados sobre a incidncia destes eventos violentos na divulgao da Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo, realizada pela Coordenadoria de Anlise e Planejamento (CAP), que responsvel pela anlise dos dados de interesse policial, e pela realizao de estudos visando prevenir e reprimir a criminalidade.

    Para compreender os dados estatsticos sobre violncia e criminalidade, foi necessrio consultar o Cdigo Penal Brasileiro7 para esclarecer a terminologia utilizada pela CAP, uma vez que as categorias encontradas foram roubo e extorso mediante sequestro em relao s situaes de violncia que, no presente estudo, foram denominadas assalto e sequestro.

    Segundo o Cdigo Penal, o roubo distingue-se do furto, uma vez que nele a violncia praticada contra a pessoa, enquanto no furto qualificado ela empregada contra a coisa. No roubo (Art. 157), a violncia e a ameaa so cometidas contra a pessoa. Em 1996, foi includo o item que especifica quando o agente mantm a vtima em seu poder, restringindo sua liberdade para a subtrao da coisa. (Lei n 9.426). Assim, o roubo passa a indicar o crime que apresenta violncia ou ameaa, com o objetivo de subtrair algo desta pessoa, mas que pode tambm incluir restrio de liberdade.

    Em geral, o sequestro de pessoas feito com o intuito de extorso, ou seja, de coagir o sequestrado ou outras pessoas por meio de violncia ou ameaa, e com o intuito de obter qualquer tipo de vantagem, seja dinheiro, bens materiais, ou mesmo utilizar o sequestrado como "moeda de troca" a fim de obter a libertao de indivduos presos. No Cdigo Penal, o sequestro denominado de extorso mediante sequestro (Art. 159. Lei n 8.072, 25.7.90) para indicar o ato de sequestrar pessoas com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condio ou preo do resgate.

    7 Cdigo Penal Brasileiro (redao geral de 11.7.1984): http://www.planalto.gov.br.

  • 23

    A partir de 2003, quando o sequestro perdura mais de 24 horas, h aumento da penalidade do infrator conforme a lei n 10.741.

    Assim, o Cdigo Penal no utiliza as expresses sequestro de cativeiro, relmpago ou de curta durao conforme so utilizadas habitualmente para diferenciar as diversas modalidades de sequestro. No entanto, consideramos interessante manter estas distines, pois elas ajudam a especificar as situaes de violncia urbana vividas pelas pessoas.

    Manteremos, portanto, a definio de Ferreira-Santos (2007) para sequestro relmpago, como o tipo de assalto mo armada, na qual a vtima permanece em poder dos assaltantes por certo perodo. Em geral, durante este intervalo de tempo, so praticados furtos em caixa automtica bancria. Neste trabalho, tambm ser considerado o assalto ou roubo com e sem arma, mas sem restrio de liberdade e, finalmente, outro tipo de sequestro, que ser denominado de curta durao, pois a vtima fica em poder dos assaltantes por algumas horas at que o roubo seja efetivado, mas sem a ocorrncia de saque de dinheiro por meio de carto de crdito.

    importante destacar que as mudanas no Cdigo Penal Brasileiro que visavam coibir o aumento dos sequestros com o aumento das penalidades, ao mesmo tempo trazem uma grande dificuldade para a anlise dos dados estatsticos informados pela Coordenadoria de Anlise e Planejamento (CAP) da Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo (SSP/SP), uma vez que as denominaes e os critrios especificados pelo Cdigo Penal nos quais esto baseados os registros de ocorrncia de roubos e sequestros sofreram muitas modificaes, principalmente nos ltimos dez anos. Alm disso, a prpria Coordenadoria de Anlise e Planejamento da SSP/SP alerta que os dados devem ser interpretados sempre com prudncia, pois esto sujeitos a uma srie de limites de confiabilidade.

    Estes seriam mais um retrato do processo social de notificao de crimes do que um retrato fiel do universo de crimes cometidos num determinado local, dado que para um crime fazer parte das estatsticas oficiais, so necessrias trs etapas sucessivas: o crime deve ser detectado, notificado s autoridades policiais e, por ltimo, registrado no boletim de ocorrncia.

    Assim, os dados estatsticos sobre roubo e extorso mediante sequestro precisam ser considerados com muita cautela em funo das modificaes no Cdigo Penal que interferiram no registro e notificao deste tipo de violncia e, consequentemente, nos dados coletados pela CAP, Coordenadoria de Anlise e Planejamento da Secretaria de Segurana Pblica de So Paulo.

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    Mesmo assim, optamos por apresentar as informaes publicadas pela CAP sobre a ocorrncia dos dois tipos de violncia urbana, roubo e sequestro. Os dados foram organizados em duas tabelas, cada uma apresenta a frequncia de um dos crimes: a Tabela 1 apresenta os dados de roubo e a Tabela 2 os de extorso mediante sequestro. No est especificado roubo com ou sem uso de arma ou o tempo de restrio de liberdade seja nos roubos ou sequestros, j que estes dados no esto discriminados na publicao da CAP.

    Foram levantadas as informaes dos ltimos dez anos para permitir a visualizao da frequncia e da variao destes crimes no perodo em que a violncia foi considerada um problema a ser enfrentado pelas diversas instituies pblicas nacionais e internacionais (sade, jurdica, policial etc.) e, concomitantemente, quando ocorreram as modificaes do Cdigo Penal Brasileiro. Finalmente, foi focalizada a cidade de So Paulo, a regio denominada Grande So Paulo8 e tambm o Estado de So Paulo, uma vez que foram consideradas as regies nas quais, mais provavelmente, os participantes da pesquisa sofreram os atos de violncia.

    TABELA 1 Incidncia de roubos no municpio de So Paulo, na Grande So Paulo e no Estado de So Paulo, de 2001 a 2010.

    Roubo por Ano Capital Grande SP Estado

    Total 2010 110.909 47.564 232.907

    Total 2009 123.501 52.423 257.022

    Total 2008 109.637 44.794 217.966

    Total 2007 108.901 40.881 217.203

    Total 2006 105.913 38.748 213.476

    Total 2005 111.064 39.362 221.817

    Total 2004 114.201 36.731 220.261

    Total 2003 132.410 44.513 248.406

    Total 2002 120.655 40.744 223.479

    Total 2001 112.031 42.865 219.601

    FONTE: Dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica por meio da Coordenadoria de Anlise e Planejamento9 (CAP). 8 Segundo SSP/SP a Grande So Paulo no inclui o municpio de So Paulo, sendo constituda por 38 municpios; assim especificados: Aruj, Barueri, Birituba Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuba, Cotia, Diadema, Embu, Embu Guau, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapcecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Maripor, Mau, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Po, Ribeiro Pires, Rio Grande da Serra, Salespolis, Santa Isabel, Santana de Parnaba, Santo Andr, So Bernardo do Campo, So Caetano do Sul, So Loureno da Serra, Suzano, Taboo da Serra, Vargem Grande Paulista, Po. 9 Disponvel em: http://www.ssp.sp.gov.br e http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/default.aspx. Destacamos que os dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica esto baseados nas informaes oferecidas pelo Departamento de Polcia Civil e da Polcia Militar.

  • 25

    Na Tabela 1, verificamos a alta incidncia de roubo no municpio e no Estado de

    So Paulo, pois, considerando-se os ltimos dez anos, os dados mostram que a menor

    incidncia ocorreu em 2006, com 105 913 eventos no municpio de So Paulo e 213 476

    no Estado de So Paulo, assim como que a maior ocorrncia deu-se em 2003, com 132

    410 roubos no municpio de So Paulo e 248 406 no Estado de So Paulo.

    TABELA 2 Incidncia de extorso mediante sequestro no municpio de So

    Paulo, na Grande So Paulo e no Estado de So Paulo, de 2001 a 2010.

    Extorsomediantesequestroporano Capital GrandeSP Estado

    Total 2010 33 17 73

    Total 2009 38 23 84

    Total 2008 27 12 59

    Total 2007 48 23 97

    Total 2006 62 26 123

    Total 2005 68 26 133

    Total 2004 75 16 112

    Total 2003 84 20 118

    Total 2002 184 88 321

    Total 2001 51 48 307 FONTE: Dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica por meio da Coordenadoria de Anlise e Planejamento10 (CAP).

    Na Tabela 2, os eventos notificados como extorso mediante sequestro tm seu

    pico, em 2002, com 184 casos na capital, totalizando 321 no Estado de So Paulo, e

    ainda mantm ndices significativos nos trs anos seguintes. Assim, o levantamento

    confirma a impresso que tnhamos poca da ocorrncia de muitos casos de assalto e

    sequestro no perodo entre 2002 a 2005. Por outro lado, os nmeros so claramente

    menores comparativamente a outras violncias como roubo (Tabela 1), homicdio e

    acidente de trnsito, mesmo considerando perodo temporal anterior (dcada de 1991-

    2000). Conforme as informaes da Secretaria de Vigilncia em Sade:

    As mortes por violncias, juntamente com as provocadas por acidentes que, na Classificao da OMS recebem o nome genrico de causas externas, ocupam o segundo lugar no perfil da mortalidade geral, sendo a primeira causa de bitos nas faixas etrias de 5 a 49 anos. Cerca de 1.118.651 pessoas

    10 Disponvel em: http://www.ssp.sp.gov.br e http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/default.aspx. Destacamos que os dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica esto baseados nas informaes oferecidas pelo Departamento de Polcia Civil e da Polcia Militar.

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    morreram por essas causas de 1991 a 2000. Dessas, 369.068 pessoas foram a bito por homicdios; 62.480, por suicdio e 309.212, por acidentes e violncias no trnsito e nos transportes. (p.13)

    As informaes e dados sobre a violncia mostram a importncia do estudo da

    violncia urbana em contextos especficos e em suas diversas vertentes, como, por

    exemplo, as causas do seu aumento na atualidade e proposies e projetos sociais para a

    conteno do seu aumento. Como a violncia afeta a sade da populao, necessrio

    tambm realizar pesquisas sobre as consequncias da violncia urbana no existir

    humano e propostas de cuidados para suas vtimas. Nesse caso, os servios de sade

    precisaram tambm ser reorganizados, uma vez que as unidades de servios, antes mais

    orientadas para as enfermidades de origem biomdica, hoje so convocadas para cuidar

    das vtimas no apenas de danos fsicos, mas tambm emocionais.

    1.2. A violncia urbana e o adoecimento

    Nesta etapa da reviso, visando esclarecer o impacto da violncia urbana em

    suas vtimas, procuramos artigos que discutissem a influncia da violncia e/ou da

    violncia urbana no adoecimento humano para verificar as dificuldades emocionais e os

    possveis diagnsticos descritos nas pesquisas. Utilizando as palavras-chave violence

    victims foram encontrados 963 artigos (BIREME), 2.341 (PUBMED) e 123 (SciELO)

    e violence and disease foram encontrados 15 na base BIREME, 961 na PUBMED e 7

    na SciELO, no perodo de 2005 ao 1 semestre de 2010.

    Inicialmente, a anlise de parte dos resumos mostrou que a maioria das

    pesquisas est baseada principalmente no critrio diagnstico de Transtorno de Estresse

    Ps-Traumtico, estabelecido no DSM-IV ou CID-10 para caracterizar os efeitos da

    violncia. Este dado pode tambm ser confirmado com o uso da palavra-chave TEPT

    e violncia, quando foram encontrados 465 artigos (BIREME), 1.503 na (PUBMED) e

    16 (SciELO), no mesmo perodo indicado acima.

    A leitura destes resumos mostrou tambm que, apesar da existncia de uma

    grande quantidade de estudos, eles focalizam, em geral, outros eventos traumticos,

    como guerras, campos de concentrao, mortes, doenas, acidentes de trnsito,

    agresso, ataque terrorista, em particular o das Torres Gmeas nos EUA, abuso sexual, e

    so poucos os que tratam de violncia urbana.

  • 27

    Em relao a este aspecto, destacamos ainda que o Transtorno de Estresse Ps-

    Traumtico (TEPT) e Transtorno de Estresse Agudo (TEA) apresentam uma

    peculiaridade, em comparao aos outros transtornos descritos no DSM-IV, pois eles

    descrevem uma relao extensa de eventos estressores e/ou traumticos que esto

    relacionados ao seu desenvolvimento, conforme podemos conferir abaixo:

    Os eventos traumticos vivenciados diretamente incluem, mas no se limitam a, combate militar, agresso pessoal violenta (ataque sexual, ataque fsico, assalto mo armada, roubo), sequestro, ser tomado como refm, ataque terrorista, tortura, encarceramento como prisioneiro de guerra ou em campo de concentrao, desastres naturais ou causados pelo homem, graves acidentes automobilsticos ou receber diagnstico de uma doena que traz risco de vida (...). Os eventos testemunhados incluem, mas no se limitam a, observar srios ferimentos ou morte no-natural de uma outra pessoa devido a ataque violento, acidente, guerra ou desastre, ou deparar-se inesperadamente com um cadver ou partes do corpo humano. (DSM, 2000, p. 404)

    Ao mesmo tempo, os estudos epidemiolgicos demonstram que no so todas as

    pessoas expostas a estes eventos traumticos que desenvolvem os sintomas de TEPT ou

    TEA. Sparrenberger, Santos e Lima (2003) mostram que a prevalncia de distresse

    psicolgico, na amostra pesquisada, foi de 14% na Escala de Faces e 31,8% na Escala

    de Percepo de Nervosismo. Yehuda e Davidson (2000) afirmam que apenas 25% de

    pessoas expostas a um evento traumtico desenvolveram o transtorno, e Breslau et al.

    (1991) relatam que apenas 22,6% de sujeitos expostos a violncia (assault)

    apresentaram TEPT.

    Esta peculiaridade do TEPT e do TEA instigou a produo de muitas pesquisas

    que pretendem esclarecer, entre os eventos descritos, quais realmente esto associados

    aos sintomas estabelecidos nestes quadros patolgicos. Nesta perspectiva, esses estudos

    procuraram identificar as causas do desenvolvimento do TEPT, analisando se as causas

    esto mais diretamente associadas ao tipo e gravidade do evento traumtico e/ou a

    caractersticas individuais, como predisposio gentica ou psicolgica, resilincia,

    repetio de traumas etc.

    Nestas pesquisas, portanto, so problematizadas as seguintes questes: 1- se h

    estratos populacionais mais vulnerveis a certos tipos de violncia como a reviso

    sistemtica de Tolin e Foa (2006) que mostram que as mulheres so mais suscetveis ao

    abuso sexual, enquanto os homens ao homicdio; 2- se a ocorrncia do TEPT mostra

    diferena nos diversos grupos etrios e de acordo os vrios tipos de evento traumtico.

    Kazinski e Margis (2003) concluem que as decorrncias so mais graves quando o

  • 28

    evento traumtico ocorre na infncia do que na idade adulta. 3- quais situaes

    correspondem ao extremo estressor traumtico indicado no DSM-IV ou evento

    estressante de natureza excepcionalmente ameaadora no CID-10, uma vez que h

    diferena de intensidade do impacto sobre as pessoas em relao aos eventos descritos,

    assim como um mesmo evento pode apresentar nveis de violncia diversos, conforme

    destacam Kapczinski e Margis (2003) e Renck (2006).

    Ao procurar selecionar entre os artigos aqueles que estudassem as consequncias

    da violncia em suas vtimas, mas que no as associassem apenas com TEPT,

    percebemos que a maioria dos artigos trata de eventos violentos especficos e/ou

    focalizam um determinado estrato populacional como, por exemplo, os artigos de

    Johnson (2009) e Reuter-Rice (2008) sobre o impacto na sade fsica e psicolgica em

    jovens vtimas de bullying. Em geral, esses estudos focalizavam especialmente a

    problemtica do abuso, sexual ou no, principalmente em mulheres, crianas ou

    adolescentes. Por exemplo, o artigo de Oliveira e Jorge (2007), que tem como objetivo o

    esclarecimento da relao entre o adoecimento e os maus tratos vividos pelas mulheres

    em seu cotidiano e mostra como este tipo de violncia destri a autoestima da mulher e

    aumenta o risco de sofrerem alguns problemas, como a depresso, o estresse ps-

    traumtico, a tendncia ao suicdio e o aumento do consumo de tranquilizantes e lcool.

    Trs artigos encontrados, que consideramos importante para o nosso estudo,

    referem-se a pesquisas epidemiolgicas, mais atuais, sobre a violncia e adoecimento

    em pases em desenvolvimento. O primeiro, Ribeiro et al. (2009), apresenta uma reviso

    de literatura com o objetivo de encontrar dados epidemiolgicos sobre a exposio

    violncia e a associao desta com problemas de sade mental em pases em

    desenvolvimento. Ela foi baseada em estudos de corte transversal encontrados em bases

    de dados eletrnicas (Medline, Psycinfo, Embase, SciELO e Lilacs) at o ms de julho

    de 2009.

    Ribeiro et al. (2009) concluram que a exposio violncia em pases em

    desenvolvimento bastante frequente e est significativamente associada a problemas

    de sade mental. Eles selecionaram apenas pesquisas empricas, sendo que 233 artigos

    preencheram os critrios de incluso. A maioria dos artigos era de pases desenvolvidos

    e os 32 artigos escolhidos, por estudar os pases em desenvolvimento, foram baseados

    em 25 estudos transversais realizados em 19 pases.

    Os dados foram organizados segundo os seguintes estratos populacionais:

    crianas, mulheres e populao em geral. Os resultados encontrados foram os seguintes:

  • 29

    em crianas, a maior associao encontrada foi entre violncia domstica e problemas

    de externalizao (OR = 9,5; IC 95% = 3,4-26,2), e entre ideao suicida e abuso sexual

    (OR = 8,3; p < 0,05); entre as mulheres, sintomas de depresso e ansiedade esto

    correlacionados a violncia conjugal psicolgica (OR = 3,2; IC 95% = 1,8-5,8) e

    violncia sexual (OR = 9,7; 95% IC = 1,9-51,2). Na populao geral, as maiores taxas

    de prevalncia de Transtorno de Estresse Ps-Traumtico esto associadas com

    violncia sexual e domstica, sequestro, e exposio a mltiplos eventos traumticos. A

    violncia tambm est associada com transtornos mentais comuns na populao geral,

    mas em comparao a outros eventos traumticos, a violncia apresenta o risco mais

    alto de desenvolvimento de TEPT entre aqueles que foram expostos a eventos

    traumticos.

    Andreoli et al. (2009) descrevem a metodologia de um estudo epidemiolgico

    sobre sade e doena mental nas cidades de So Paulo e do Rio de Janeiro, que ainda

    est em andamento. Os resultados desse trabalho, que apenas tem dados preliminares

    publicados, podero esclarecer os efeitos da violncia urbana na populao brasileira,

    especialmente nas duas maiores cidades do pas. A pesquisa apresenta como seus

    objetivos principais detectar a relao entre a violncia urbana e o desenvolvimento de

    doena mental como depresso, ansiedade, suicdio, uso de drogas e/ou lcool ou

    Transtorno de Estresse Ps-Traumtico.

    Viana et al. (2009) tambm descrevem a metodologia de uma pesquisa

    epidemiolgica sobre a morbidade psiquitrica em uma amostra probabilstica da

    populao geral, residente na regio metropolitana de So Paulo, com 18 anos ou mais,

    que ainda no tem seus resultados publicados. A amostra total corresponde a 2.942

    respondentes, que receberam os mdulos de avaliao de transtornos de humor, de

    ansiedade, de controle de impulso, decorrentes do uso de substncias psicoativas e

    comportamentos suicidas, que foram considerados transtornos nucleares. Mdulos

    complementares, no clnicos e clnicos, relativos aos transtornos obssessivo-

    compulsivo, estresse ps-traumtico, jogo patolgico, alimentares, pr-menstruais,

    neurastenia, sintomas psicticos e rastreio de personalidade, foram aplicados queles

    que tiveram pelo menos um dos transtornos nucleares e a uma amostra aleatria de 25%

    dos negativos.

    Portanto, vemos que muitos pesquisadores brasileiros esto empenhados em

    esclarecer o impacto da violncia urbana no adoecimento da populao e que os

    resultados das duas ltimas pesquisas oferecero informaes importantes para mapear

  • 30

    os transtornos psiquitricos da realidade urbana relativos cidade de So Paulo e do Rio

    de Janeiro, que possivelmente ajudaro esclarecer a relao da violncia com a sade

    mental e, assim, aguardamos com muito interesse os seus resultados.

    1.3. Assalto e adoecimento

    Ao procurar artigos especificamente sobre assalto ou roubo observamos que

    existem poucos estudos sobre esta temtica. importante lembrar que no Cdigo Penal

    Brasileiro a palavra utilizada roubo, e em ingls, a palavra mais utilizada robbery,

    pois assault significa agresso, ataque e violao sexual. Quando foram utilizadas as

    palavras-chave post traumatic stress and robbery e post traumatic stress and armed

    robbery, no foi encontrado nenhum trabalho publicado nos ltimos 5 anos e, assim,

    foi ampliado o perodo da busca, quando foram encontrados 5 artigos na base PUBMED

    e BSV/BIREME, mas nenhum na SciELO. Dos cinco encontrados, apenas quatro, que

    podem contribuir para nosso trabalho, sero apresentados.

    Vieira Neto (2004) realizou uma pesquisa, visando identificao das

    consequncias psicolgicas e do desenvolvimento do Transtorno de Estresse Ps-

    Traumtico em bancrios, vtimas de assalto ou sequestro, no exerccio de sua atividade

    profissional. O autor desenvolve tambm uma compreenso dos sintomas do TEPT

    baseada nos conceitos tericos psicanalticos. A pesquisa foi realizada com trs

    bancrios que sofreram assalto e apresentavam muito sofrimento. Para o

    desenvolvimento da pesquisa, os bancrios foram selecionados entre os que procuraram

    o Programa de Assistncia s Vtimas de Assalto ou Sequestro (PAVAS) de um banco.

    Os participantes foram escolhidos por apresentar dificuldade em permanecer no mesmo

    local de trabalho em que ocorreu o assalto.

    A partir da anlise dos dados colhidos em entrevistas semidirigidas, foi realizado

    o levantamento dos sintomas apresentados pelos trs participantes. Depois, o

    pesquisador descreveu os sintomas levantados, comparando com os critrios

    diagnsticos de TEPT do DSM-IV: aps sofrer ameaas ou testemunhar risco de perder

    a vida e/ou da integridade fsica, os entrevistados apresentaram ideaes intrusivas e

    ansiedade associada aos estmulos do trauma. O medo mostra que a situao traumtica

    no terminou e, assim, a sensao de perigo ainda continua presente. Eles mostraram

    tambm falta de interesse, isolamento e evitavam lugares ou pessoas que lembrassem o

  • 31

    trauma; foi este sintoma que acarretou a solicitao de mudana do local de trabalho. Os

    trs apresentavam alm de sofrimento significativo, prejuzo social e ocupacional. No

    apenas a produtividade no trabalho ficou afetada, mas tambm os relacionamentos

    afetivos e sexuais. Finalmente, o autor afirma que o assalto provocou sofrimento

    clinicamente significativo, assim como prejuzo social ou ocupacional aos entrevistados,

    o que confirma o diagnstico de TEPT.

    Carbonell e Carvajal (2004), inicialmente, situam alguns aspectos que eles

    consideram importantes para compreender o desenvolvimento do Transtorno de

    Estresse Ps-Traumtico em vtimas de violncia, salientando que as respostas

    imediatas diante de um evento traumtico so diferentes em cada indivduo e dependem

    tambm da natureza e das consequncias da agresso. A primeira reao, a do choque,

    que pode durar alguns minutos ou dias, caracteriza-se pela ativao do sistema

    defensivo do sujeito diante do perigo, o que pode facilitar ou entorpecer o

    enfrentamento da situao e da reao emocional posterior. A resposta ao trauma

    depender da percepo de ameaa e do significado do evento traumtico para o sujeito.

    A percepo no depende apenas da situao em si, mas tambm das caractersticas da

    vtima, assim como as respostas individuais dependem tambm da existncia de leses

    fsicas e de cuidados mdicos.

    Na pesquisa os autores estudaram o perfil clnico e evolutivo dos pacientes com

    o objetivo de detectar fatores como: sexo, leses fsicas, caractersticas de personalidade

    e a influncia do tratamento na evoluo dos sintomas. Eles revisaram, com base nos

    critrios do DSM-IV, 450 fichas clnicas de pacientes com o diagnstico de TEPT, que

    ingressaram no Servio de Sade Mental do HTS em Santiago do Chile, entre os anos

    de 1987 a 2000. Foram selecionadas aquelas em que o acontecimento traumtico

    referia-se a violncia (asalto, em espanhol) em vias pblicas, que no indicavam abuso

    sexual, acidentes de automvel ou no local de trabalho. A amostra resultou em 140

    pacientes, constituda por 88 mulheres com idade entre 34,9 + 10,9 anos e escolaridade

    de 11,7 + 2,6 anos: 61,4% das pacientes estavam casadas no momento da violncia e

    trabalhavam em atividades de servio (71,4%). necessrio salientar que esse estudo

    focaliza os eventos violentos em vias pblicas, incluindo roubos, mas no descrimina os

    diversos tipos de eventos violentos vividos pelos participantes da pesquisa.

    Da amostra selecionada, 59,09% dos pacientes receberam atendimento inicial no

    Servio de Sade Mental no primeiro ms da ocorrncia do evento traumtico, sendo

    que 20,7% foram atendidas na primeira semana aps o assalto. Os sintomas de TEPT

  • 32

    mais frequentes foram: os sintomas invasores e de evitao (100% dos pacientes),

    ansiedade (97,9%), insnia (88,6%), pesadelos com o acontecimento traumtico

    (71,4%), sintomas de hipervigilncia (78,6%) e ativao exagerada do sistema nervoso

    autnomo diante de qualquer estmulo relacionado com o assalto (73,6%). O tratamento

    em sade mental teve uma durao aproximada de 70 dias: 98,6% dos casos foram

    medicadas com benzodiazepinicos (97,1%), antidepressivos (47,1%) e neurolpticos

    (17,9%). As mulheres receberam mais antidepressivos (59,1% vs 28,8%) e mais

    neurolpticos (23,9% vs 7,7%). A psicoterapia foi indicada para 80,0% da amostra. As

    mulheres necessitaram mais tempo de tratamento do que os homens, uma vez que aps

    trs meses de tratamento 61,6% das mulheres tiveram alta e 71,2% dos homens.

    A fim de obter um perfil especfico dos pacientes vtimas de violncia, os

    pesquisadores compararam algumas caractersticas dos pacientes vtimas de violncia

    com TEPT com as dos pacientes com diagnstico de TEPT, mas em funo de outro

    evento estressor. As caractersticas consideradas foram: demogrficas, clnicas e

    tambm a evoluo dos pacientes. O grupo que sofreu violncia teve uma porcentagem

    maior de mulheres 62,9% contra 50,3% homens, apresenta um predomnio de trabalho

    em atividades de servio, 71,4% contra 55,2% em comparao ao grupo com TEPT e

    outros eventos estressores. As leses fsicas e o emprego de antidepressivo foram mais

    frequentes. Os resultados demonstraram que as vitimas de violncia com TEPT so

    geralmente mulheres jovens e com bom nvel de escolaridade. Portanto, o estudo mostra

    que as mulheres tm maior risco de exposio violncia do que a outro tipo de fato

    traumtico.

    Os autores afirmam tambm que as leses fsicas no constituram um elemento

    relevante em relao s vtimas de violncia e, assim, consideram que a percepo de

    ameaa pode estar associada ao significado subjetivo que a pessoa atribui ao fato

    traumtico e que as caractersticas da agresso podem estar relacionadas com a

    intencionalidade da agresso, uma vez que estes elementos exacerbariam a vivncia de

    dano e desamparo que a violncia provoca no indivduo.

    O trabalho de Richards (2000) tem como objetivo investigar as variveis

    pessoais e sociais presentes na recuperao dos sintomas ps-traumticos em vtimas de

    roubo com arma. Esse estudo replica em parte a pesquisa de Joseph et al. (1991), que

    verifica as atribuies causais iniciais, o enfrentamento da situao e o suporte social

    em vtimas de roubo com armas que apresentavam sintomas de TEPT para esclarecer a

    importncia dessas variveis na recuperao dos sujeitos. O pesquisador avaliou 51

  • 33

    vtimas de roubo com arma, poucos dias aps o evento. Os sujeitos da pesquisa foram

    selecionados entre as vtimas de 24 eventos de roubo mo armada ocorridas no UK

    Building Society durante seis meses. Foram selecionados 31 sujeitos que sofreram

    violncia com arma, mas que no apresentavam machucados fsicos. Os 31 sujeitos

    participaram de um procedimento interventivo de apoio que teve como objetivo ajudar

    as pessoas a gerenciar o estresse decorrente de incidentes crticos. Aps um ms, foram

    reavaliados os 51 sujeitos da amostra em relao aos sintomas de TEPT, suas

    atribuies causais, enfrentamento e manuteno da crise. No follow up, aps 6 meses,

    os 31 participantes foram novamente reavaliados. Os resultados mostraram um nmero

    significativo de participantes com sintomas clinicamente indicativos de TEPT como

    intruso e evitao logo aps o assalto. Aps um ms, estes sintomas diminuram nos

    31 sujeitos estudados e, aps 6 meses, nenhum deles apresentava sintomas de TEPT.

    Estes dados indicaram que a estratgia utilizada foi eficaz ao tratar os casos que

    apresentam sintomas de TEPT logo aps o incidente. O esclarecimento deste estudo

    importante para a presente pesquisa, pois mostram que vtimas de roubo podem

    desenvolver sintomas indicativos de TEPT, como intruso e evitao.

    Kushner et al. (1992) desenvolveram uma pesquisa para verificar a associao

    entre a percepo de domnio ou controle e o desenvolvimento de sintomas de TEPT em

    43 mulheres que sofreram violncia criminal, como roubo, agresso simples e grave, na

    qual ocorreu contato fsico, mas no violncia sexual. Elas foram recrutadas por meio

    de um anncio no quadro da sala de emergncia e da delegacia policial, e as pessoas que

    apresentaram transtornos como esquizofrenia e parania foram excludas. Os

    procedimentos utilizados foram: uma entrevista inicial, quando foi respondido um

    questionrio (The Structured Initial Interview) com 143 questes sobre as caractersticas

    da violncia sofrida, a histria de abuso fsico e sexual, o estilo de vida e o uso de

    drogas. Posteriormente, foram aplicadas duas escalas: Perceived Controllability Scale

    (PCS), com questes sobre a percepo de domnio ou controle durante o ataque de

    violncia, num futuro ataque e em relao a eventos em geral; e PTSD Symptom Scale

    com 17 questes baseadas nos critrios diagnsticos de TEPT do DSM III-R.

    Os resultados da pesquisa sugerem que a percepo de controle independente

    das caractersticas da violncia em relao severidade do TEPT. A falta de percepo

    de controle sobre uma situao especfica no resulta em uma psicopatologia mais

    severa. Entretanto, quando a percepo de falta de controle generalizada alm da

    situao de violncia para outros eventos negativos, as reaes psicopatolgicas se

  • 34

    mostram mais severas. Estes dados indicam que os problemas psicolgicos surgem de

    uma violncia criminal, quando a vtima experiencia uma mudana em suas

    pressuposies bsicas de justia e segurana no mundo em geral.

    Os autores tambm destacam que, embora a metodologia do estudo no permita

    concluir sobre como tal percepo interage com as experincias traumticas, possvel

    levantar duas hipteses: 1- A percepo de falta de controle em geral pode ocorrer como

    resultado de repetidas experincias de falta de controle antes da situao de violncia.

    Ou, em outras palavras, a violncia ativa e confirma o modelo de que o mundo

    incontrolvel e perigoso, resultando em aumento de sintomas patolgicos; 2- Os

    indivduos que percebem o mundo como totalmente controlvel (sentimentos de

    invulnerabilidade) mesmo antes da violncia podem vivenciar uma queda abrupta

    patolgica na percepo de falta de controle, acarretando o trauma, pois o mito da

    invulnerabilidade destrudo.

    Um aspecto importante a ser destacado nos estudos apresentados refere-se

    amostra escolhida, pois todos selecionaram vtimas de violncia ou roubo que

    apresentavam sintomas de TEPT. Deste modo, entendemos que estes artigos mostraram

    que os sujeitos das pesquisas, vtimas de roubo, tinham sintomas de TEPT, e talvez seja

    possvel inferir que este tipo de violncia pode contribuir para o desenvolvimento de

    sintomas de TEPT, mas nenhuma das pesquisas tinha como objetivo mostrar a relao e

    frequncia de desenvolvimento de sintomas caractersticos de TEPT ou TEA em vtimas

    de roubo com ou sem uso de arma. Consideramos, portanto, que esta relao ainda

    precisa ser pesquisada.

    1.4. Sequestro e adoecimento

    Artigos e pesquisas sobre sequestro foram pesquisados com as palavras-chave

    TEPT e sequestro e PTSD and kidnapping, sendo encontrados nas bases PUBMED,

    1.619 artigos, na BSV/BIREME, 43 e na SciELO, 2, publicados nos ltimos 5 anos. No

    entanto, a leitura de parte dos resumos mostrou que a maioria das publicaes tratava de

    Transtorno de Estresse Ps-Traumtico em ex-prisioneiros de guerra. Assim, visando

    focalizar a temtica de nossa pesquisa, utilizamos, posteriormente, as palavras-chaves

    TEPT e sequestro e violncia urbana e PTSD and kidnapping and urban violence. A

    anlise dos resumos dos artigos encontrados, 68 na PUBMED, 4 na BSV/BIREME e 1

  • 35

    na SciELO, prioritariamente, versavam sobre o sequestro de filhos de pais separados ou

    de ex-prisioneiros de guerra e sobre a problemtica da tortura.

    Deste modo, inicialmente, foi encontrado apenas um artigo baseado em uma

    pesquisa desenvolvida por Navia (2008), na Colombia. Posteriormente, foram

    localizadas trs outras pesquisas, duas dissertaes de mestrado e uma tese de doutorado

    sobre sequestro realizadas no Brasil, especificamente no municpio de So Paulo; no

    entanto, descreveremos apenas trs, pois so as que apresentam elementos que podem

    contribuir para o nosso trabalho.

    Navia (2008) relata uma pesquisa sobre o enfrentamento familiar em situaes

    de sequestro extorsivo. O estudo visa detectar os mecanismos de enfrentamento que

    favoreceriam a adaptao entendida como ausncia de sintomas de TEPT de todos os

    integrantes das famlias.

    Na atualidade, o sequestro, com a manuteno do refm em cativeiro at que a

    famlia pague o resgate, uma modalidade frequente de violncia utilizada pela

    guerrilha na Colombia. Neste estudo foram enfocados dois momentos: enquanto o

    refm mantido em cativeiro e o perodo posterior libertao do refm, para obter

    dados comparativos destes dois momentos. A autora estudou os mecanismos de

    enfrentamento de 18 famlias, no perodo em que elas tiveram um membro sequestrado,

    e o enfrentamento de outras 54 famlias em que o sequestrado j tinha sido libertado. A

    pesquisa se restringiu s famlias nas quais o refm fora libertado com vida.

    Os resultados da pesquisa mostraram, inicialmente, que as estratgias cognitivas

    e comportamentais familiares esto relacionadas situao estressante enfrentada. Neste

    sentido, foi observado que as estratgias de enfrentamentos se apresentam mais

    adequadas em funo de situaes especficas. Na referida pesquisa, foram considerados

    dois perodos distintos enfrentados pelas famlias que sofreram sequestro de um de seus

    membros e foram destacados os mecanismos de enfrentamento favorveis a uma boa

    adaptao para as famlias que sofreram este tipo de violncia, conforme descreveremos

    a seguir.

    Durante o cativeiro, perodo caracterizado pela incerteza do que ocorrer com o

    sequestrado, quando a famlia concebe um futuro positivo, por exemplo, que o refm

    suportar as condies impostas pelo cativeiro e ele poder ser libertado vivo, estes

    pensamentos ajudaram a famlia a manter a esperana e criar uma noo de futuro.

    Tambm buscar informaes permitia famlia ter uma viso realista da situao e

    ajudava ter certo controle dela. Aps a libertao do refm, manter a esperana e ter

  • 36

    informaes passa a ser irrelevante, por outro lado, a tendncia de redefinir a situao,

    diminuindo a carga negativa do trauma e buscando os aspectos positivos de toda a

    situao, auxilia no seu enfrentamento. No nvel comportamental, o enfrentamento da

    situao estava relacionado sensao de vulnerabilidade, pois, muitas vezes, as

    famlias das vtimas se sentem desprotegidas e percebem que o estado incapaz de

    proteg-las.

    Os resultados indicaram que, tanto durante o cativeiro, quanto aps a libertao,

    o enfrentamento focado no manejo da situao, no sentido de consider-la manejvel,

    favorece a adaptao aps o trauma. Do mesmo modo, poder ver os aspectos positivos

    da situao do sequestro e poder dar um sentido experincia tambm favorecem a

    adaptao ps-trauma. Por outro lado, a pesquisa tambm indica que a evitao, o

    isolar-se e bloquear a expresso de sentimentos pode estar associada s dificuldades de

    adaptao.

    Mauro (2007) estudou duas famlias, que tiveram um dos membros sequestrados

    em cativeiro e apresentavam diagnstico de TEPT. O instrumento utilizado para a

    obteno dos dados foi o Sociodrama familiar sistmico com oito encontros semanais

    com cada famlia. A anlise das sesses de terapia permitiu observar que as famlias

    necessitavam expressar seus sentimentos de dor, raiva, culpa e indefinio do que

    aconteceu. Elas mostravam dvidas, temores, expectativas e, especialmente, medo de

    que acontecesse novamente algo de ruim com a famlia. As famlias viveram, em funo

    do sequestro de um de seus membros, um cativeiro virtual, mesmo sem ser privadas de

    sua liberdade. Apresentaram tambm sintomas de TEPT, como reviver o trauma em

    sonhos e pensamentos, evitar falar sobre a situao, fechar-se diante dos

    relacionamentos pessoais, alm de passar a duvidar de tudo e de todos.

    As famlias comearam a perceber a sua prpria vulnerabilidade, uma vez que

    suas crenas em relao ao mundo, aos outros e a si mesmas foram abaladas e passaram

    achar, com o sequestro, que coisas ruins tambm poderiam acontecer com elas. Notou-

    se que uma boa adaptao depende em grande medida da posio que a famlia assume

    diante da prpria vulnerabilidade, ou seja, poder aceitar a vulnerabilidade e aprender a

    manejar as ameaas favoreceu a readaptao da famlia e permitiu-lhe reassumir a

    rotina. Assim, observa-se a importncia da reconstruo das situaes que apresentam

    vulnerabilidade, pois mesmo que no se tenha controle desses acontecimentos

    possvel encontrar formas de manejar as situaes de vulnerabilidade.

  • 37

    Alm disso, a pesquisadora destacou algumas dificuldades de funcionamento das

    famlias estudadas aps o evento traumtico, como a irrupo de vrios sentimentos, em

    especial, de culpa por no ter evitado o sequestro, dificuldade de estabelecer limites

    claros e falhas na comunicao, o que despertou a necessidade da famlia de se rever,

    reorganizar-se e reestruturar seus vnculos.

    Focalizando outros aspectos, o estudo de Ferreira-Santos (2006) teve como

    objetivo principal mostrar o grau de magnitude de TEPT em vtimas de sequestro em

    cativeiro e sequestro relmpago. Para a pesquisa, selecionou 81 indivduos vtimas das

    modalidades de sequestro acima indicadas, de ambos os sexos, maiores de 18 anos. A

    amostra foi escolhida entre mais de 300 vtimas que procuraram espontaneamente, entre

    os anos de 2002 e 2005, o Servio de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do

    Hospital das Clnicas (IPQ-HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de So

    Paulo, por apresentarem alterao psquica aps o evento. Foram excludas da amostra

    as pessoas que apresentavam transtornos psiquitricos anteriores ao trauma. Foi

    constitudo tambm um grupo controle com 41 pessoas recrutadas na populao em

    geral, utilizando os seguintes critrios de excluso: no terem sido vtimas de sequestro,

    no possuir diagnstico psiquitrico e no ter sofrido nenhum dos vinte mais

    significativos estressores na escala de Homes e Rahe11.

    Os instrumentos utilizados foram uma entrevista clnica psiquitrica baseada no

    DSM- III-R e a aplicao das quatro escalas de avaliao: 1. SCID - Entrevista clnica

    estruturada para o DSM-IV (Structured clinical interview for DSM-IV); 2. PCL-C -

    Escala de rastreamento de TEPT (Pos-traumatic stress disorder checklist) ; 3. IES

    Escala de impacto de evento (Impact of event scale) e 4. ISSL Inventrio de sintomas

    de estresse de Lipp.

    Analisando os dados da entrevista e a anlise estatstica dos dados obtidos com a

    aplicao das escalas, os resultados da pesquisa so: as vtimas de sequestro com

    cativeiro e relmpago apresentaram um tipo de transtorno psquico compatvel com o

    diagnstico de TEPT, cuja magnitude elevada. Esse transtorno prejudica as funes

    psquicas ligadas ansiedade e ao medo, e pode perdurar por longo perodo, e tambm

    afetar o trabalho, o lazer e a vida afetiva. O estudo revelou ainda que no houve

    diferena significativa no desenvolvimento de sintomas de TEPT entre as vtimas de

    sequestro com cativeiro e relmpago e, tambm, que no houve variao significativa na

    11 Cf. Holmes e Rahe. The social readjustment rating scale. Journal of Psychosomatic Research, n 2, 1967, pp. 213-8.

  • 38

    magnitude do TEPT entre homens e mulheres. O resultado, que as vtimas de sequestro

    relmpago tambm apresentaram sofrimento significativo interessante para o nosso

    estudo, uma vez que selecionamos, alm de vtimas de roubo, apenas as de sequestro

    relmpago e de curta durao para a nossa pesquisa.

    Finalmente, ressaltamos que a nossa pesquisa bibliogrfica mostrou que a

    violncia urbana preocupante porque traz consequncias srias para a sade da

    populao em geral, tanto que os organismos internacionais e nacionais tm

    recomendado estudos sobre sua incidncia, suas consequncias e formas de tratamento

    adequadas, uma vez que este problema grave para a sade pblica na atualidade. Nesta

    direo, vimos que esto sendo desenvolvidas pesquisas epidemiolgicas importantes,

    que focalizam as cidades de So Paulo e Rio de Janeiro, pois estas so as duas maiores

    cidades brasileiras e apresentam alto ndice de violncia.

    Destacamos tambm que, apesar da violncia urbana ser uma questo importante

    na atualidade, estudos especficos sobre violncia urbana como assalto e sequestro so

    poucos, especialmente, quando comparados com os outros eventos violentos descritos

    pelo DSM e CID, conforme j mostramos no incio deste captulo.

  • 39

    2. HEIDEGGER: O EXISTIR HUMANO COMO SER-A

    Na gravidade do pensamento, sentimos o peso de nossa prpria realizao de ser no tempo. (CARNEIRO LEO, 1988, p. 18)

    No presente captulo sero apresentadas as ideias principais de Martin

    Heidegger, em Ser e Tempo [1927] (1988 e 1989)12 e os seus desdobramentos expostos

    no livro os Seminrios de Zollikon13 [1987] (2009), tendo em vista esclarecer os

    aspectos mais relevantes da explicitao heideggeriana do existir humano. No entanto,

    inicialmente, faz-se necessrio tecer alguns esclarecimentos para situar o pensamento

    filosfico relativo compreenso do ser humano como ser-a (Dasein) e as suas

    indicaes para o estudo e a compreenso das experincias sadias e patolgicas, assim

    como da prtica psicoterpica.

    A questo que perpassa a trajetria do pensamento heideggeriano o

    esclarecimento do que significa a palavra Ser. No livro Ser e Tempo, o filsofo d

    incio s suas reflexes sobre o sentido de Ser. Afirma que sua anlise precisa focalizar

    primeiramente o ser do homem, uma vez que ele quem poder responder a esta

    questo, pois, este ente14, que em cada caso somos ns mesmos, e que tem entre outras

    possibilidades de ser, a do perguntar, quem pode responder a esta questo.

    Deste modo, Heidegger inicia a sua analtica do ser-a15 (Daseinsanalitik) por

    meio de uma interpretao ontolgica do ser do ser-a. Neste livro, elabora tambm a

    Daseinsanalyse, que ainda pertence analtica do ser-a, pois ela o desdobramento

    dos temas indicados na analtica, ou seja, o desenvolvimento de uma interpretao do

    ser-a. O mtodo de anlise utilizado pelo pensador considerado uma Fenomenologia

    hermenutica, pois ele retoma o mtodo fenomenolgico husserliano e o reinterpreta

    luz da hermenutica.

    12 Ser utilizada a primeira edio de Ser e Tempo em portugus, que foi publicada em dois volumes: Parte I (2008) e Parte II (2009). 13 A partir do convite de Medard Boss, psiquiatra suo, Heidegger proferiu durante 10 anos seminrios (1959 a 1969) para um grupo de mdicos psiquiatras e psicanalistas. Estes seminrios foram publicados com o titulo de Seminrios de Zollikon (1987); nesta obra, tambm foram includas as cartas e dilogos entre os dois estudiosos, tanto sobre questes filosficas, quanto reflexes sobre a possibilidade de elaborar uma compreenso da psicopatologia e da psicoterapia baseada no pensamento heideggeriano. No presente trabalho, usaremos a ltima edio revisada. 14 Ente aquilo que existe: coisa objeto, matria, substncia ou ser. Filosofia: tudo que de maneira concreta, fctica ou atual independemente de, em qualquer nvel, tornar-se objeto de reflexo. (Novo Dicionrio Aurlio) 15 Grifo nosso.

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    Em Ser e Tempo, o filsofo desenvolve a Ontologia fundamental por meio de

    uma descrio detalhada dos existenciais. Estes so estruturas interpretativas, que

    segundo Nunes (1986), se resumem na idia de que o homem, como Dasein um ser-

    no-mundo, e como ser-no-mundo temporal e histrico. (p. 10). Assim, do ponto de

    vista heideggeriano, a explicitao ontolgica desvela uma estrutura de realizao, isto

    , aquilo que possibilita as vrias maneiras de algo tornar-se manifesto, enquanto a

    dimenso ntica mostra tudo o que percebido, entendido ou conhecido de imediato

    pelo homem.

    No livro Seminrios de Zollikon, o filsofo sugere tambm outros dois sentidos

    para a palavra Daseinsanalyse, conforme j destacamos em trabalho anterior16. O

    primeiro que denominamos Daseinsanalyse Clnica, uma vez que corresponde

    descrio dos fenmenos fatuais, que se mostram em cada caso na relao entre o

    analista e o analisando; contudo, ao mesmo tempo, segundo Heidegger (2009), a anlise

    destes fenmenos necessariamente orientada pelos existenciais descritos na analtica

    do ser-a.

    O filsofo prope, tambm, a elaborao de uma disciplina daseinsanaltica que

    intitula de Antropologia ntica daseinsanaltica17, isto , os estudos dos fenmenos

    humanos situados num contexto histrico-social especfico e orientados pela

    compreenso do existir humano como ser-a. Indica, por sua vez, a subdiviso da

    Daseinsanalyse Antropolgica em Antropologia Normal e Patologia

    Daseinsanaltica. Todavia, importante assinalar que a elaborao destas proposies

    ainda no foi plenamente desenvolvida por seus seguidores.

    Tendo em vista apresentar as ideias mais importantes do filsofo presentes

    nestas duas obras, na primeira seo do presente captulo sero explicitados os

    existenciais heideggerianos, descritos, em especial, no livro Ser e Tempo [1927] (1988 e

    1989). Outros livros do filsofo, assim como de estudiosos de sua obra, sero

    mencionados quando estes favorecerem a elucidao das ideias contidas neste livro.

    Na seo seguinte, ser exposto o pensamento do filsofo presente no livro

    Seminrios de Zollikon [1987] (2009), desde a sua discusso da Cincia Na