transtorno de estresse pós-traumático
DESCRIPTION
Tese de I. Cardinalli com fundamentação fenomenológico-existencialTRANSCRIPT
-
1
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA
PUC/SP
IDA ELIZABETH CARDINALLI
TRANSTORNO DE ESTRESSE PS-TRAUMTICO: UM ESTUDO
FENOMENOLGICO-EXISTENCIAL DA VIOLNCIA URBANA
Doutorado em Psicologia Clnica
SO PAULO
2011
-
2
IDA ELIZABETH CARDINALLI
TRANSTORNO DE ESTRESSE PS-TRAUMTICO: UM ESTUDO
FENOMENOLGICO-EXISTENCIAL DA VIOLNCIA URBANA
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Clnica, sob a orientao da Prof Dr Marlise Aparecida Bassani.
SO PAULO
2011
-
3
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
-
4
Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total e parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrnicos.
Assinatura:
So Paulo, _____/_____2011
(colocar atrs da folha anterior e tirar este recado)
-
5
AGRADECIMENTOS
Na finalizao do trabalho percebemos o grande nmero de pessoas que
participaram, diretamente e indiretamente, e tornaram-no possvel, pois vemos que ele
fruto de uma longa caminhada pessoal e profissional e a todos sou muito grata.
Agradeo ao Durval pela sua compreenso com a minha pouca disponibilidade e
seu apoio nos momentos de dvidas e aflies.
Aos meus irmos e amigos por entenderem a minha ausncia e torcerem para
que desse tudo certo.
Marlise, por aceitar prontamente a proposta e possibilitar a realizao do
trabalho com sua orientao cuidadosa.
Aos Drs. Marcos Colpo, Maria Helena Pereira Franco e Maria Julia Kovcs,
pelas sugestes que possibilitaram o aprimoramento do trabalho.
Aos amigos e colegas da Associao Brasileira de Daseinsanalyse e da Equipe
de Fenomenologia-existencial da PUC/SP pelos anos de convivncia, de troca e
aprendizagem mtua.
Bel, Bia, Edu e Felcia, pelo interesse e disponibilidade de conversar sobre
minhas dvidas no andamento do trabalho.
Ao Vitor, Myrna e Karen pela grande ajuda no levantamento das pesquisas e nas
transcries das sesses.
Marisa Penna, pelo apoio pessoal e institucional para a resoluo dos
percalos administrativos.
PUC/SP, pelo apoio para a realizao deste trabalho com a concesso de
Bolsa Dissdio e Bolsa Capacitao Docente.
Aos participantes da pesquisa, em especial, ao Joo, por expor seu sofrimento de
modo verdadeiro, o que permitiu o desenvolvimento desse trabalho.
-
6
Quando, de manh cedo, um fsico sai de casa para ir
pesquisar no laboratrio o efeito de Comton e sente brilhar nos
olhos os raios de sol, a luz no lhe fala, em primeiro lugar, como
fenmeno de uma mecnica quntica ondulatria. Fala como
fenmeno de um mundo carregado de sentido para o homem,
como integrante de um cosmos, na acepo grega da palavra,
isto , de um universo cheio de coisas a perceber, de caminhos a
percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a realizar.
Carneiro Leo
-
7
CARDINALLI, Ida Elizabeth. Transtorno de Estresse Ps-Traumtico: um estudo fenomenolgico-existencial da violncia urbana. So Paulo, 2011. 146p. Tese (Doutorado). Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Orientadora: Prof Dr Marlise Aparecida Bassani.
RESUMO
A violncia urbana uma problemtica complexa e preocupante na atualidade,
tanto que os organismos internacionais e nacionais tm solicitado estudos da suas
diversas facetas. O desenvolvimento da presente pesquisa focalizou o impacto da
violncia urbana na sade e adoecimento em suas vtimas, pautado pela questo
norteadora: explicitar e esclarecer o sentido e os significados da experincia de quem
sofreu violncia urbana como assalto e/ou sequestros relmpago ou de curta durao.
A metodologia foi baseada no pensamento fenomenolgico-existencial, em
particular, de Martin Heidegger, que entende o existir humano como ser-a e ser-no-
mundo, buscando compreender a experincia da vtima de violncia urbana em sua
totalidade. Os mtodos utilizados foram entrevistas de trs participantes e a psicoterapia
focal de um deles, com 23 sesses de 50 minutos cada uma. Os participantes foram dois
homens e uma mulher, todos casados, entre 48 a 53 anos. A anlise dos resultados foi
organizada em dois eixos: temticos e temporais.
Os resultados sugerem que as vtimas de assalto e sequestros relmpago ou de
curta durao mostram sofrimento significativo, quando a experincia de violncia
permanece aprisionada no sentido de risco, ameaa e perigo. O impacto da violncia
pode abalar, ainda, a compreenso de si mesmo, do outro e do mundo com a
aproximao abrupta das dimenses de imprevisibilidade, precariedade e
vulnerabilidade abertas pela situao de violncia. A discusso dos resultados
ampliada para possveis aplicaes no Servio Pblico de Sade. So indicados tambm
temas para futuras pesquisas que articulem a Psicologia Clnica e a violncia urbana.
(Apoio CEPE/PUC-SP)
Palavras-chave: violncia urbana, assalto, sequestro de curta durao, TEPT,
fenomenologia-existencial, Martin Heidegger.
-
8
CARDINALLI, Ida Elizabeth. Post-Traumatic Stress Disorder: an existential-phenomenological study of urban violence. So Paulo, 2011. 146p. Thesis (PhD). Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Advisor: Prof Marlise Aparecida Bassani, Ph.D.
ABSTRACT
Urban violence is currently a complex and worrying issue so much so that
national and international organizations have been calling for studies in its various
aspects. This research was developed with a focus on the impact of urban violence on
the health and illness of its victims, based on an overriding concern: explaining and
clarifying the meaning and significance of the experience of those who suffered urban
violence, such as hold-up and/or express kidnapping.
The methodology was based on the existential-phenomenological thinking, in
particular Martin Heideggers, who understands human existence as being-there and
being-in-the-world, seeking to understand the experience of victims of urban violence in
its entirety. The methods used included interviews with three participants and focal
psychotherapy with one with 23 sessions of 50 minutes each. The participants were two
men and one woman, all married, and aged between 48 to 53 years. The analysis of the
results was organized along two axes: thematic and temporal.
The results suggest that the victims of hold-up or express kidnapping show
significant distress, when the experience of violence remains trapped in the sense of
risk, threat and danger. The impact of violence can also affect the understanding of
oneself, of others and the world with the sudden approach of the dimensions of
unpredictability, precariousness and vulnerability resulting from a situation of violence.
The discussion of the results is extended to possible applications in the Public Health
Service. Topics for future research that articulate Clinical Psychology and urban
violence are also listed. (Supported by CEPE/PUC-SP).
Key words: urban violence, hold-up, express kidnapping, PTSD, existential
phenomenology, Martin Heidegger.
-
9
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................... 11
1. VIOLNCIAURBANAEOESTRESSEPSTRAUMTICO............................................. 18
1.1. Violncias e a violncia urbana .................................................................. 20
1.2. A violncia urbana e o adoecimento .......................................................... 26
1.3. Assalto e adoecimento ............................................................................... 30
1.4. Seqestro e adoecimento ............................................................................ 34
2. HEIDEGGER: O EXISTIR HUMANO COMO SER-A ............................. 39
2.1. O pensamento filosfico de Martin Heidegger .......................................... 41
2.2. O mtodo de pesquisa da Cincia Natural e as proposies para a
compreenso e o estudo dos fenmenos humanos.................................... 48
3. OS MODOS DE EXISTIR SADIOS E PATOLGICOS ............................. 54
3.1. A caracterizao dos modos de existir sadios e patolgicos ...................... 54
3.2. A compreenso do fenmeno patolgico: Transtorno de Estresse Ps-
Traumtico ............................................................................................... 57
4. MTODO .......................................................................................................... 60
4.1. Consideraes metodolgicas .................................................................... 60
4.2. Local da pesquisa ....................................................................................... 64
4.3. Participantes ............................................................................................... 65
4.4. Cuidados ticos .......................................................................................... 67
4.5. Instrumentos................................................................................................ 68
4.5.1. Entrevitas clnicas .......................................................................... 68
4.5.2. Psicoterapia focal .......................................................................... 69
4.5.3. Observao clnica......................................................................... 72
4.6. Procedimentos ............................................................................................ 73
5. SNTESE DOS ATENDIMENTOS ................................................................. 74
5.1. Descrio dos participantes ........................................................................ 74
5.2. Sntese das entrevistas de ngelo e Mariana .......................................... 75
-
10
5.3. Snteses da entrevista inicial, das sesses de psicoterapia e follow up de
Joo........................................................................................................... 80
6. ANLISE DE DISCUSSO DOS RESULTADOS ....................................... 106
6.1. Apresentao dos resultados ...................................................................... 107
6.2. Discusso ................................................................................................... 124
CONSIDERAES FINAIS................................................................................ 131
REFERNCIAS .................................................................................................... 136
ANEXO .................................................................................................................. 142
-
11
INTRODUO A arte de pensar dada por um modo extraordinrio de sentir e escutar o silncio do sentido, nos discursos das realizaes. (CARNEIRO LEO, 1988, p. 13)
Minha produo em pesquisa, nos ltimos anos, tem focalizado a questo da
sade e da doena, utilizando o referencial fenomenolgico-existencial, em especial o
pensamento heideggeriano, desenvolvendo questionamentos sobre as concepes
tradicionais do adoecimento, e procurando explicitar as maneiras especficas do adoecer
e tambm estratgias mais adequadas de interveno psicoterpica para a problemtica
humana que se me apresenta.
O meu interesse, no presente trabalho, em estudar o impacto da violncia na vida
das pessoas surgiu por volta de 2005, quando muitas pessoas do meu crculo de
convivncia foram assaltadas ou sofreram sequestro relmpago"1. Nesta poca
observei que algumas pessoas, aps sofrer violncia urbana como assalto ou sequestro,
sentiam muito medo, no queriam passar pelo local em que sofreram o ato violento e/ou
evitavam sair de casa noite, quando o evento ocorrera neste perodo.
No incio de 2006, dois pacientes me procuraram para atendimento psicoterpico
em consultrio particular e mostraram sofrimento em decorrncia de situaes de
violncia urbana.
Em um deles, a relao do sofrimento com a violncia estava explcita. O
paciente relatou que seu irmo mais novo, do qual era muito prximo, fora assassinado
durante um assalto e aps este evento no conseguia parar de pensar sobre o
acontecimento e a perda do irmo. No conseguia trabalhar ou cuidar dos filhos, estava
muito triste e deprimido, sentia-se pssimo e, quando me procurou, j estava medicado
e com acompanhamento psiquitrico.
O segundo paciente, quando me procurou, estava um pouco deprimido e
relacionava isto com as enormes dificuldades que passava em seu trabalho. Algum
tempo depois, ele mencionou que 10 anos atrs sofrera um sequestro relmpago, e,
posteriormente, pudemos perceber que este acarretou um grande impacto na sua vida.
1 Ferreira-Santos (2007) esclarece que sequestro relmpago a denominao comumente atribuda modalidade de assalto mo armada, na qual a vtima permanece em poder dos assaltantes por certo perodo. Em geral, durante este intervalo de tempo, so praticados furtos em caixas automticas bancrias e, frequentemente, ocorrem violncias fsicas contra a vtima.
-
12
Aps o sequestro, o paciente sentia medo de sair noite e, s vezes, ficava um
pouco deprimido. Naquela poca, terminou um namoro longo, por uma srie de
motivos, entre eles porque no conseguia ir casa da namorada, uma vez que a casa
dela era prxima ao local do sequestro e tambm porque no conseguia sair noite para
fazer qualquer atividade.
Havia iniciado uma primeira psicoterapia e conseguiu retomar sua vida afetiva e
cuidar da sua carreira profissional at que novamente sentia-se deprimido, ao se
defrontar com muita dificuldade no trabalho. Neste momento, decidiu-se por uma
segunda terapia, desta vez comigo. No decorrer do trabalho psicoterpico, ele muda de
emprego e nos primeiros dias do novo trabalho fica apavorado porque achou que um
dos seguranas do prdio, do novo trabalho, era a pessoa que o havia sequestrado e que
poderia reconhec-lo. Seu medo se intensificava porque esta pessoa trabalhava como
segurana e poderia ter acesso aos seus dados pessoais. No trabalho, sentia muita
dificuldade em se concentrar nas atividades ao pensar que o segurana estava na entrada
do prdio. Ao mesmo tempo, como era um emprego novo, achava que no poderia
comentar com ningum a sua suspeita, o que tornava a vivncia mais difcil e pesada.
interessante destacar como o medo no se apresenta de modo lgico ou racional porque
seria mais razovel que o segurana, se fosse efetivamente o sequestrador, sentisse
medo de ser reconhecido e no ele que tinha sido a vtima. Posteriormente, percebemos
que o paciente, desde o sequestro, permaneceu com alguns comportamentos decorrentes
da violncia, como preferir ficar em casa e evitar sair noite no momento de lazer.
A partir destas situaes fiquei intrigada ao observar como o impacto de um
evento violento pode ser grande na vida de uma pessoa, uma vez que, em alguns casos,
ele perdura por muito tempo, sendo at incorporado na maneira de viver. Mesmo
quando as decorrncias da violncia no so percebidas, elas se apresentam na
dificuldade de realizar o trabalho, em desenvolver atividades de lazer que eram
prazerosas, no humor depressivo, na intensidade dos sentimentos de medo ou na
lembrana constante da situao de violncia.
A violncia uma problemtica complexa, uma vez que envolve a interao de
diversos fatores: individuais, sociais, histricos, econmicos, culturais e intersubjetivos.
Assim, o estudo da totalidade deste fenmeno requer o exame de seus vrios ngulos,
como as causas da violncia, o impacto em suas vtimas, proposies interventivas no
mbito individual, grupal e coletivo, entre outros.
-
13
Neste trabalho, ser estudado o impacto da experincia de violncia urbana em
suas vtimas, o que poder ser uma oportunidade para discutir o adoecimento decorrente
da violncia urbana e tambm as intervenes psicoterpicas mais adequadas a esta
problemtica. Ser focalizado, especificamente, o roubo, o sequestro relmpago e
tambm outro tipo de sequestro, que ser denominado de curta durao, pois a vtima
fica em poder dos assaltantes por algumas horas at que o roubo seja efetivado, mas no
ocorre saque de dinheiro atravs de carto de crdito. Deste modo, o objetivo principal
desta pesquisa o esclarecimento do sentido e dos significados da experincia das
vtimas de violncia urbana por meio de interveno psicoterpica focal fenomenolgica
existencial.
Considerando, portanto, a questo norteadora: explicitar e esclarecer o sentido e
os significados da experincia de quem sofreu violncia urbana como assalto e/ou
sequestros relmpago ou de curta durao, esto descritos, abaixo, os objetivos
especficos da tese.
1- Apresentar estudos sobre as consequncias da violncia urbana no existir
humano, a fim de contribuir para a discusso da noo da psiquiatria atual de
Transtorno de Estresse Ps-Traumtico.
2- Apresentar os principais elementos tericos da abordagem fenomenolgico-
existencial que circunscrevam a compreenso do ser humano como uma
totalidade, para fundamentar o mtodo e a metodologia da pesquisa.
3- Descrever e caracterizar os significados da experincia de uma pessoa que viveu
situao de violncia, buscando compreender o sentido desta experincia na
totalidade do seu existir.
4- Identificar e discutir as contribuies da abordagem fenomenolgico-existencial
para o esclarecimento e compreenso do sofrimento experienciado por quem
viveu uma situao de violncia.
O aumento da violncia na atualidade e suas consequncias na sade humana
tm sido objeto de preocupao. Em 1996, a Assembleia Mundial da Sade2 declara que
a violncia um problema de sade pblica fundamental e crescente em todo o
mundo (p.2), e prope estudo sobre a violncia e a sua relao com a sade. O
249 Assembleia Mundial da Sade, organizada pela Organizao Mundial da Sade, assume a resoluo WHA49.25, que considera a violncia mundial como um problema de sade pblica e prope seu estudo em escala mundial, focalizando as suas diversas facetas.
-
14
resultado desse trabalho foi publicado em 2002, intitulado World report on violence and
health, pela Organizao Mundial de Sade (OMS).
Esse relatrio constitui o primeiro estudo exaustivo do problema da violncia em
escala mundial. Ele descreve a magnitude e o impacto da violncia no mundo, examina
as suas causas principais, descreve diferentes modalidades de interveno e apresenta
algumas recomendaes para a adoo no plano local, nacional e internacional.
No Brasil, em 2005, a Secretaria de Vigilncia do Ministrio da Sade e a
Organizao Pan-Americana da Sade publicam o livro Impacto da violncia na sade
dos brasileiros, mostrando seu compromisso com a problemtica da violncia, ao
seguir as orientaes da Organizao Mundial da Sade sobre a inter-relao violncia e
sade. Esse documento destaca tambm que a violncia urbana, denominada de
violncia coletiva pela OMS, um dos tipos de violncia que se destacam na realidade
brasileira, conforme descrito abaixo:
No caso brasileiro, sobretudo nas regies metropolitanas e nos grandes centros urbanos, a violncia coletiva tende a vicejar persistente e vigorosamente na sua expresso instrumental, como recurso usado por muitas pessoas e grupos para conquistar mercados de bens e de poder. (MINAYO, 2005, p. 29)
Nesta mesma perspectiva, Andreoli et al. (2009), Ribeiro et al. (2009), Ferreira-
Santos (2007), Carbonell e Carvajal (2004) e Vieira Neto (2004) ressaltam que a
violncia urbana constitui um tema importante na atualidade em funo das suas
consequncias, tanto no campo da sade fsica e mental, quanto em relao s perdas
econmicas no s para as prprias vtimas, mas tambm para o estado e as empresas.
Carbonell e Carvajal (2004) destacam tambm que os assaltos s pessoas nas
vias pblicas e os sequestros geram uma percepo de perigo iminente e falta de
proteo. Ao sofrer estes atos de violncia, as vtimas apresentam uma srie de reaes
psicolgicas e fisiolgicas, pois vivenciam a ameaa sua integridade pessoal, risco de
perder a vida ou sofrer leses fsicas e, posteriormente, apresentam uma resposta
emocional que se caracteriza por sensao de horror e vulnerabilidade.
As consequncias da violncia no ser humano so, na atualidade, denominadas
como Transtorno de Estresse Ps-Traumtico (TEPT) no Manual Diagnstico e
Estatstico de Transtornos Mentais (DSM-IV) e na Classificao Internacional das
Doenas (CID-10).
-
15
O DSM-IV e o CID-10 descrevem as reaes das pessoas aps a exposio a um
evento estressor ou traumtico extremo. Nesses manuais so considerados muitos
eventos como desencadeadores do TEPT, isto , esto contempladas situaes violentas
decorrentes da ao humana, interpessoal ou coletiva, ou de eventos da natureza; estes
podem, por sua vez, ser vividos diretamente ou apenas testemunhados. Aps o evento, a
reao das vtimas envolve muito medo, impotncia ou horror. Os sintomas incluem re-
vivncia, esquiva de situaes que relembrem o evento, embotamento da responsividade
geral e excitao aumentada.
Houve uma transformao do conceito de neurose traumtica at a descrio
atual de Transtorno de Estresse Ps-Traumtico pelo DSM e CID. Estudiosos desta
temtica se basearam em diferentes pressupostos tericos, que incluem uma dada
concepo de homem modelos especficos de interveno, como o mdico ou
psicoterpico, para pesquisar e definir esta patologia. Assim, os trabalhos discutem, por
exemplo, se a causa seria orgnica ou psquica ou mesmo a posio dos elaboradores
dos DSM, que evitam uma discusso epistemolgica e etiolgica, quando priorizam a
descrio detalhada dos critrios diagnsticos.
Os estudos sobre TEPT tm suscitado uma srie de questes importantes, como
menciona Schestatsky et al. (2003): se a sua etiologia orgnica ou psicolgica; se o
que traumtico o prprio evento ou a interpretao subjetiva do mesmo; ou ainda, se
o prprio trauma que causa o transtorno ou so vulnerabilidades prvias do prprio
sujeito. Ao mesmo tempo, pode-se observar que quando as discusses sobre os
fenmenos traumticos e/ou estressores esto voltados para questes etiolgicas ou ao
estabelecimento de critrios diagnsticos fidedignos, no h a preocupao com o
esclarecimento efetivo de como estas situaes so vividas.
Assim, acompanhando as ideias de Mello Filho (1986), que assinala que a
tendncia mais atual dos estudos psicossomticos abandonar os conceitos de
psicognese ou somatognese e encarar o fenmeno doena de forma sempre global,
gestltica e em funo da pessoa que a apresenta, e em sua forma especial de viver em e
com o mundo (p. 18), destaca-se a importncia da realizao de estudos que priorizem
o esclarecimento da experincia de vtimas de violncia.
Corrigan et al. (2007) e Jacobsen (2004) assinalam que os estudos qualitativos
baseados na perspectiva fenomenolgica e existencial possibilitam tambm o
esclarecimento da experincia daqueles que viveram eventos estressantes e/ou
traumticos, pois oferecem elementos para explicitar como estas situaes afetam o
-
16
existir humano. Deste modo, neste trabalho, a abordagem fenomenolgico-existencial
foi escolhida para o esclarecimento do impacto experienciado por vtimas de violncia,
com o objetivo de contribuir para a ampliao da compreenso do fenmeno
denominado Transtorno de Estresse Ps-Traumtico pela psiquiatria atual.
Do ponto de vista da pesquisa fenomenolgica existencial, inicialmente,
necessrio elucidar a proposio da questo norteadora da pesquisa, apresentada
anteriormente, pois ela fornecer a orientao e o caminho da investigao. Esta questo
no concebida como problema de pesquisa, na concepo mais tradicional da cincia,
que pretende provar sua tese atravs de hipteses bem formuladas baseadas apenas em
razes fundadas na evidncia dos fatos e na coerncia do raciocnio lgico
(SEVERINO, 1978, p.119). Desde seu incio, com Husserl, a fenomenologia apresenta
outros fundamentos para o processo de conhecimento, baseia-se na relao indissocivel
homem e mundo (conceito de intencionalidade), e busca o esclarecimento do fenmeno,
e no dos fatos3, assim como assinala que o fenmeno se mostra a partir de si mesmo.
Tendo em vista a questo norteadora desta pesquisa: explicitar e esclarecer o
sentido e os significados da experincia das vtimas de violncia urbana, o trabalho ser
organizado em seis captulos.
O primeiro captulo situar a problemtica da violncia na atualidade e possveis
consequncias na sade e no adoecimento do ser humano. Inicialmente, ser explicitada
a noo de violncia proposta pela Organizao Mundial da Sade e apresentados os
dados de roubo e sequestro no Municpio e no Estado de So Paulo, regio em que se
inserem os participantes da pesquisa e a pesquisadora. Em seguida, sero apresentados
os estudos sobre consequncias da violncia em suas vtimas e, posteriormente,
pesquisas sobre violncia urbana, como roubo e sequestro.
O segundo captulo explicitar, inicialmente, a proposio filosfica de Martin
Heidegger do existir humano como ser-a (Dasein) e ser-no-mundo, caracterizando a
abertura e os existenciais como a temporalidade, finitude, angstia e corporeidade. Ser
apresentada tambm a reflexo do filsofo sobre o Mtodo da Cincia Natural, bem
como a proposio para o estudo e a compreenso dos fenmenos humanos.
3 Martins e Bicudo (1994) esclarecem que fato entendido pelo Positivismo como tudo aquilo que pode se tornar objetivo e estudado como objeto da cincia. Esta definio est apoiada no pensamento empirista, segundo o qual todo conhecimento precisa ser provado atravs do sentido de certeza e de observao sistemtica que asseguram a objetividade (p. 22).
-
17
No terceiro captulo, baseado no pensamento heideggeriano, sero expostas as
reflexes sobre sade e doena e a compreenso da experincia e do sofrimento de
vtimas de violncia.
O quarto captulo apresentar o mtodo e o procedimento de pesquisa qualitativa
baseado na fenomenologia existencial, em especial, no pensamento heideggeriano.
Considerando que a questo norteadora explicitar e esclarecer o sentido e os
significados da experincia de vtimas de violncia urbana, destacamos que sentido
um rumo que apela o existir de cada um de ns. Como o sentido no se apresenta de
forma patente e explcita, o processo de psicoterapia focal permitiria ao participante
aproximar-se de sua experincia e, assim, tornar possvel explicit-la para poder ser
analis-la.
No quinto captulo, sero descritas as snteses das entrevistas dos trs
participantes e das sesses de psicoterapia focal, do participante que finalizou o
processo psicoterpico.
No sexto captulo sero desenvolvidas a anlise e a discusso dos resultados. A
anlise focalizou os resultados relativos s sesses de psicoterapia do participante que
deu continuidade psicoterapia, que foi organizada em dois eixos: o temporal e os
agrupamentos temticos. A discusso retoma estes resultados alm de alguns elementos
das entrevistas dos outros dois participantes para o esclarecimento do significado e do
sentido da experincia de violncia.
Finalmente, sero apresentadas as consideraes finais, as referncias
bibliogrficas e os anexos.
-
18
1. VIOLNCIA URBANA E O ESTRESSE PS-TRAUMTICO
Vivemos numa poca estranha, singular e inquietante. Quanto mais a quantidade de informaes aumenta de modo desenfreado, tanto mais decididamente se amplia o ofuscamento e a cegueira diante dos fenmenos. (Heidegger, 2009, p. 109)
O impacto da violncia no comportamento humano , em geral, na atualidade,
descrito pelos critrios diagnsticos do Transtorno de Estresse Ps-Traumtico (TEPT)
no Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais (DSM-IV) e na
Classificao Internacional das Doenas (CID-10).
Segundo o DSM-IV (2000), a caracterstica principal do Transtorno de Estresse
Ps-Traumtico o desenvolvimento de sintomas especficos aps a exposio a um
extremo evento traumtico, que pode referir-se, tanto s experincias prprias e diretas,
quanto ao fato de ter presenciado um evento real ou ameaador que envolve morte, srio
ferimento ou outra ameaa prpria integridade fsica ou de outra pessoa; ou o
conhecimento sobre morte violenta ou inesperada, ferimento srio ou ameaa de morte
ou ferimento experimentado por um membro da famlia ou uma pessoa prxima do
indivduo.
A resposta ao evento envolve muito medo, impotncia ou horror. Os sintomas
decorrentes da exposio ao evento traumtico incluem re-vivncia, esquiva de
situaes relacionadas com o evento, embotamento da responsividade geral e sintomas
de excitao aumentada. O quadro sintomtico completo deve estar presente por mais
de um ms e a perturbao deve causar sofrimento ou prejuzo significativo na rea
social, ocupacional ou outras importantes na vida do indivduo.
Schestatsky et al. (2003) e Kristensen (2005) esclarecem que houve uma
modificao na definio do trauma na reviso do DSM-III para a elaborao do DSM-
IV em 1994, uma vez que, no primeiro, o trauma entendido como experincia fora da
normalidade e excepcional enquanto, no segundo, os eventos desencadeantes podem ser
eventos habituais na vida cotidiana. Destacam tambm que no DSM-IV foi includa
outra categoria diagnstica, o Transtorno de estresse agudo (TEA), para contemplar as
reaes que ocorrem logo aps o evento traumtico, isto , quando os sintomas
aparecem em at quatro semanas e a durao destes ocorre entre dois dias a quatro
semanas. Os critrios diagnsticos do TEA se diferenciam do TEPT, alm do aspecto
-
19
temporal do aparecimento e da durao dos sintomas, tambm por priorizar os sintomas
dissociativos4.
Em relao Classificao Internacional da Doena, CID-10, o paciente pode
ser diagnosticado com TEPT quando foi exposto a um evento ou situao estressante de
natureza ameaadora ou catastrfica. H rememorao ou revivncia do estressor em
flashbacks, memrias vividas, sonhos recorrentes ou sentimento de angstia em
circunstncias semelhantes ao estressor que a pessoa quer evitar. H dificuldade em
lembrar-se de alguns aspectos importantes do perodo de exposio ao estressor e
presena de sintomas como dificuldades em relao ao sono, irritabilidade, dificuldade
de concentrao, hipervigilncia e resposta de susto exagerada.
Pode-se verificar que, grosso modo, os critrios diagnsticos descritos no CID-
10 e no DSM-IV so semelhantes5, com exceo da incluso de sintomas dissociativos
que no DSM-IV especificam o TEA, enquanto no CID-10 esto includos no TEPT.
interessante destacar tambm que o evento desencadeador, do TEPT e do TEA, no
nomeado do mesmo modo em cada um destes trabalhos, pois este evento chamado de
traumtico no DSM-IV e de estressante na CID-10. O critrio de escolha de cada termo,
ou sua definio, no esclarecido, pois priorizada a apresentao de ndices
classificatrios bem estabelecidos para o diagnstico dos transtornos. Ao mesmo tempo,
a Psicologia e a Psicopatologia apresentam conceituaes especficas para cada um
destes fenmenos, trauma e estresse, e mostram vrias noes sobre a experincia
traumtica e estressante de acordo com as vrias abordagens tericas. Como estas
noes no so consideradas nestes manuais classificatrios, os fenmenos, intitulados
como trauma e estresse, so veiculados e utilizados, muitas vezes, de maneira indistinta.
Considerando que este trabalho pretende discutir as decorrncias da violncia
urbana no existir humano, uma das etapas desta pesquisa foi o levantamento
bibliogrfico sobre esta temtica. A reviso buscou artigos de pesquisas publicados em
peridicos, em livros, dissertaes e teses. O levantamento bibliogrfico de artigos
cientficos publicados em revistas indexadas foi realizado atravs de busca digital no
perodo de 2005 a 2009. Posteriormente, foi ampliado o perodo em funo da escassez
4 No DSM-IV, os seguintes sintomas dissociativos so descritos em relao ao TEA: sentimento de anestesia, distanciamento ou ausncia de resposta emocional; reduo da conscincia em relao s coisas ao redor; desrealizao; despersonalizao e amnsia dissociativa, isto , incapacidade de recordar um aspecto importante do trauma. 5 Schestatsky et al. (2003) e Kristensen (2005) apresentam uma discusso detalhada sobre as diferenas e semelhanas do DSM-IV e do CID-10 sobre TEPT e TEA, assim como sobre os problemas presentes nestas formulaes.
-
20
de publicaes sobre violncia urbana, especialmente assalto e sequestro, e atualizado
at 2010, nas seguintes bases de dados: SciELO, BVS/BIREME e PUBMED.
A apresentao da reviso bibliogrfica foi organizada em quatros itens para
facilitar a visualizao das questes e temticas pesquisadas, a saber: 1. Violncias e
violncia urbana, 2. A violncia urbana e o adoecimento, 3. Assalto e adoecimento e 4.
Sequestro e adoecimento.
1.1. Violncias e a violncia urbana
O fenmeno da violncia complexo e seu estudo amplo, pois compreende a
investigao de seus diversos ngulos: suas causas, o prprio comportamento violento e
o impacto da violncia em suas vtimas etc. As causas da violncia e o comportamento
violento precisam tambm ser considerados em seus componentes sociais, histricos,
econmicos, culturais e subjetivos. As consequncias da violncia so graves e afetam a
sade individual e coletiva, exigindo, assim, a formulao de polticas especficas e
organizao de prticas de interveno e de servios especficos para a preveno e o
tratamento de suas vtimas.
A violncia em si no uma questo de sade, mas transforma-se em problema,
especialmente para a sade pblica, porque afeta a sade fsica e mental de uma grande
parte da populao mundial, conforme explicita o documento World report on violence
and health (2002) publicado pela Organizao Mundial de Sade (OMS) e traduzido
como Informe mundial de la violencia y la saude (2002) pela Organizao Pan-
Americana da Sade. No Brasil, tambm seguindo as recomendaes da OMS para que
cada pas estude a problemtica da violncia e sua influncia na sade da populao, a
Secretaria de Vigilncia do Ministrio da Sade6 publica o livro Impacto da violncia
na sade dos brasileiros, em 2005.
No referido livro, Souza e Minayo (2005) mostram as dificuldades da
conceituao da violncia, destacando que uma das mais importantes o fato de a
violncia ser um fenmeno da ordem do vivido e cujas manifestaes provocam ou so
provocados por uma forte carga emocional de quem a comete, de quem a sofre e de
6 Em parceria com a Organizao Pan-Americana da Sade, o Centro Latino Americano de Estudos da Violncia e Sade Jorge Careli/Claves/ENSP/Fiocruz.
-
21
quem a presencia (p. 14). Esclarece tambm que o documento brasileiro mantm a
definio proposta pela OMS e, assim, a violncia entendida como:
O uso da fora fsica ou do poder, real ou em ameaa, contra si prprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em leso, morte, dano psicolgico, deficincia de desenvolvimento ou privao. (ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE, 2002, p. 5).
O fenmeno da violncia, nestes documentos, classificado a partir de suas
manifestaes empricas, ou seja, as caractersticas do ato violento. Esta categorizao
distingue a violncia que uma pessoa inflige a si mesma, a violncia dirigida a um
nmero pequeno de indivduos (violncia interpessoal) e a violncia relacionada a
grupos maiores (violncia coletiva).
As violncias autoinfligidas reportam aos comportamentos suicidas, que
contemplam o suicdio, a ideao suicida e as tentativas de suicdio e o auto-abuso que
abrange as agresses a si mesmo e as automutilaes.
As violncias interpessoais so classificadas em dois mbitos: o intrafamiliar e o
comunitrio. A violncia intrafamiliar a que ocorre entre os parceiros ntimos e entre
os membros da famlia, principalmente no ambiente da casa. Inclui as vrias formas de
agresso contra crianas, contra a mulher ou o homem e contra os idosos. A violncia
comunitria aquela que acontece no ambiente social em geral, tanto entre conhecidos
como desconhecidos. Consideram-se suas vrias expresses, como violncia juvenil,
agresses fsicas, estupros, ataques sexuais e at a violncia institucional, que ocorre,
por exemplo, em escolas, locais de trabalho, prises e asilos.
As violncias coletivas so os atos violentos que ocorrem nos mbitos
macrossociais, polticos e econmicos e caracterizam a dominao de grupos e do
Estado. Nessa categoria, do ponto de vista social, incluem-se os crimes cometidos por
grupos organizados, atos terroristas e crimes de multides.
No caso brasileiro, a violncia apresenta altos ndices e envolve grande impacto
na sade dos brasileiros, ressaltando-se, assim, a sua importncia no quadro complexo
dos problemas sociais. Segundo o documento da Secretaria de Vigilncia em Sade
(2005), na realidade brasileira, os tipos de violncia que apresentamos maiores ndices
nas regies metropolitanas e nos grandes centros urbanos so relativas aos homicdios e
acidentes de trnsito, sendo que o primeiro est relacionado ao narcotrfico e, assim,
designado como violncia coletiva:
-
22
O homicdio foi a causa que mais contribuiu para o crescimento da mortalidade por violncias e acidentes no Pas. No perodo de 1980 a 1996, as mortes por essa causa cresceram 102% e, a partir da dcada de 80, ultrapassaram o nmero de bitos por acidentes de trnsito (JORGE et al., 1997; PAIM et al., 1999; MINAYO, 1990; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA, 1999). Isso se pode ver para o ano 2000, por exemplo, em que os homicdios representaram 34,3% dos acidentes e violncias, e a mortalidade no trnsito, 25,6%. Em quatro das cinco regies do Pas, eles foram a principal causa externa de bito, com exceo da Regio Sul, onde os acidentes de trnsito ocuparam a primeira posio. (p. 174)
No entanto, o referido documento no apresenta informaes especficas sobre os tipos de violncia urbana, como assalto e sequestro, que escolhemos estudar. Deste modo, buscamos dados sobre a incidncia destes eventos violentos na divulgao da Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo, realizada pela Coordenadoria de Anlise e Planejamento (CAP), que responsvel pela anlise dos dados de interesse policial, e pela realizao de estudos visando prevenir e reprimir a criminalidade.
Para compreender os dados estatsticos sobre violncia e criminalidade, foi necessrio consultar o Cdigo Penal Brasileiro7 para esclarecer a terminologia utilizada pela CAP, uma vez que as categorias encontradas foram roubo e extorso mediante sequestro em relao s situaes de violncia que, no presente estudo, foram denominadas assalto e sequestro.
Segundo o Cdigo Penal, o roubo distingue-se do furto, uma vez que nele a violncia praticada contra a pessoa, enquanto no furto qualificado ela empregada contra a coisa. No roubo (Art. 157), a violncia e a ameaa so cometidas contra a pessoa. Em 1996, foi includo o item que especifica quando o agente mantm a vtima em seu poder, restringindo sua liberdade para a subtrao da coisa. (Lei n 9.426). Assim, o roubo passa a indicar o crime que apresenta violncia ou ameaa, com o objetivo de subtrair algo desta pessoa, mas que pode tambm incluir restrio de liberdade.
Em geral, o sequestro de pessoas feito com o intuito de extorso, ou seja, de coagir o sequestrado ou outras pessoas por meio de violncia ou ameaa, e com o intuito de obter qualquer tipo de vantagem, seja dinheiro, bens materiais, ou mesmo utilizar o sequestrado como "moeda de troca" a fim de obter a libertao de indivduos presos. No Cdigo Penal, o sequestro denominado de extorso mediante sequestro (Art. 159. Lei n 8.072, 25.7.90) para indicar o ato de sequestrar pessoas com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condio ou preo do resgate.
7 Cdigo Penal Brasileiro (redao geral de 11.7.1984): http://www.planalto.gov.br.
-
23
A partir de 2003, quando o sequestro perdura mais de 24 horas, h aumento da penalidade do infrator conforme a lei n 10.741.
Assim, o Cdigo Penal no utiliza as expresses sequestro de cativeiro, relmpago ou de curta durao conforme so utilizadas habitualmente para diferenciar as diversas modalidades de sequestro. No entanto, consideramos interessante manter estas distines, pois elas ajudam a especificar as situaes de violncia urbana vividas pelas pessoas.
Manteremos, portanto, a definio de Ferreira-Santos (2007) para sequestro relmpago, como o tipo de assalto mo armada, na qual a vtima permanece em poder dos assaltantes por certo perodo. Em geral, durante este intervalo de tempo, so praticados furtos em caixa automtica bancria. Neste trabalho, tambm ser considerado o assalto ou roubo com e sem arma, mas sem restrio de liberdade e, finalmente, outro tipo de sequestro, que ser denominado de curta durao, pois a vtima fica em poder dos assaltantes por algumas horas at que o roubo seja efetivado, mas sem a ocorrncia de saque de dinheiro por meio de carto de crdito.
importante destacar que as mudanas no Cdigo Penal Brasileiro que visavam coibir o aumento dos sequestros com o aumento das penalidades, ao mesmo tempo trazem uma grande dificuldade para a anlise dos dados estatsticos informados pela Coordenadoria de Anlise e Planejamento (CAP) da Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo (SSP/SP), uma vez que as denominaes e os critrios especificados pelo Cdigo Penal nos quais esto baseados os registros de ocorrncia de roubos e sequestros sofreram muitas modificaes, principalmente nos ltimos dez anos. Alm disso, a prpria Coordenadoria de Anlise e Planejamento da SSP/SP alerta que os dados devem ser interpretados sempre com prudncia, pois esto sujeitos a uma srie de limites de confiabilidade.
Estes seriam mais um retrato do processo social de notificao de crimes do que um retrato fiel do universo de crimes cometidos num determinado local, dado que para um crime fazer parte das estatsticas oficiais, so necessrias trs etapas sucessivas: o crime deve ser detectado, notificado s autoridades policiais e, por ltimo, registrado no boletim de ocorrncia.
Assim, os dados estatsticos sobre roubo e extorso mediante sequestro precisam ser considerados com muita cautela em funo das modificaes no Cdigo Penal que interferiram no registro e notificao deste tipo de violncia e, consequentemente, nos dados coletados pela CAP, Coordenadoria de Anlise e Planejamento da Secretaria de Segurana Pblica de So Paulo.
-
24
Mesmo assim, optamos por apresentar as informaes publicadas pela CAP sobre a ocorrncia dos dois tipos de violncia urbana, roubo e sequestro. Os dados foram organizados em duas tabelas, cada uma apresenta a frequncia de um dos crimes: a Tabela 1 apresenta os dados de roubo e a Tabela 2 os de extorso mediante sequestro. No est especificado roubo com ou sem uso de arma ou o tempo de restrio de liberdade seja nos roubos ou sequestros, j que estes dados no esto discriminados na publicao da CAP.
Foram levantadas as informaes dos ltimos dez anos para permitir a visualizao da frequncia e da variao destes crimes no perodo em que a violncia foi considerada um problema a ser enfrentado pelas diversas instituies pblicas nacionais e internacionais (sade, jurdica, policial etc.) e, concomitantemente, quando ocorreram as modificaes do Cdigo Penal Brasileiro. Finalmente, foi focalizada a cidade de So Paulo, a regio denominada Grande So Paulo8 e tambm o Estado de So Paulo, uma vez que foram consideradas as regies nas quais, mais provavelmente, os participantes da pesquisa sofreram os atos de violncia.
TABELA 1 Incidncia de roubos no municpio de So Paulo, na Grande So Paulo e no Estado de So Paulo, de 2001 a 2010.
Roubo por Ano Capital Grande SP Estado
Total 2010 110.909 47.564 232.907
Total 2009 123.501 52.423 257.022
Total 2008 109.637 44.794 217.966
Total 2007 108.901 40.881 217.203
Total 2006 105.913 38.748 213.476
Total 2005 111.064 39.362 221.817
Total 2004 114.201 36.731 220.261
Total 2003 132.410 44.513 248.406
Total 2002 120.655 40.744 223.479
Total 2001 112.031 42.865 219.601
FONTE: Dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica por meio da Coordenadoria de Anlise e Planejamento9 (CAP). 8 Segundo SSP/SP a Grande So Paulo no inclui o municpio de So Paulo, sendo constituda por 38 municpios; assim especificados: Aruj, Barueri, Birituba Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuba, Cotia, Diadema, Embu, Embu Guau, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapcecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Maripor, Mau, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Po, Ribeiro Pires, Rio Grande da Serra, Salespolis, Santa Isabel, Santana de Parnaba, Santo Andr, So Bernardo do Campo, So Caetano do Sul, So Loureno da Serra, Suzano, Taboo da Serra, Vargem Grande Paulista, Po. 9 Disponvel em: http://www.ssp.sp.gov.br e http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/default.aspx. Destacamos que os dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica esto baseados nas informaes oferecidas pelo Departamento de Polcia Civil e da Polcia Militar.
-
25
Na Tabela 1, verificamos a alta incidncia de roubo no municpio e no Estado de
So Paulo, pois, considerando-se os ltimos dez anos, os dados mostram que a menor
incidncia ocorreu em 2006, com 105 913 eventos no municpio de So Paulo e 213 476
no Estado de So Paulo, assim como que a maior ocorrncia deu-se em 2003, com 132
410 roubos no municpio de So Paulo e 248 406 no Estado de So Paulo.
TABELA 2 Incidncia de extorso mediante sequestro no municpio de So
Paulo, na Grande So Paulo e no Estado de So Paulo, de 2001 a 2010.
Extorsomediantesequestroporano Capital GrandeSP Estado
Total 2010 33 17 73
Total 2009 38 23 84
Total 2008 27 12 59
Total 2007 48 23 97
Total 2006 62 26 123
Total 2005 68 26 133
Total 2004 75 16 112
Total 2003 84 20 118
Total 2002 184 88 321
Total 2001 51 48 307 FONTE: Dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica por meio da Coordenadoria de Anlise e Planejamento10 (CAP).
Na Tabela 2, os eventos notificados como extorso mediante sequestro tm seu
pico, em 2002, com 184 casos na capital, totalizando 321 no Estado de So Paulo, e
ainda mantm ndices significativos nos trs anos seguintes. Assim, o levantamento
confirma a impresso que tnhamos poca da ocorrncia de muitos casos de assalto e
sequestro no perodo entre 2002 a 2005. Por outro lado, os nmeros so claramente
menores comparativamente a outras violncias como roubo (Tabela 1), homicdio e
acidente de trnsito, mesmo considerando perodo temporal anterior (dcada de 1991-
2000). Conforme as informaes da Secretaria de Vigilncia em Sade:
As mortes por violncias, juntamente com as provocadas por acidentes que, na Classificao da OMS recebem o nome genrico de causas externas, ocupam o segundo lugar no perfil da mortalidade geral, sendo a primeira causa de bitos nas faixas etrias de 5 a 49 anos. Cerca de 1.118.651 pessoas
10 Disponvel em: http://www.ssp.sp.gov.br e http://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/default.aspx. Destacamos que os dados fornecidos pela Secretaria da Segurana Pblica esto baseados nas informaes oferecidas pelo Departamento de Polcia Civil e da Polcia Militar.
-
26
morreram por essas causas de 1991 a 2000. Dessas, 369.068 pessoas foram a bito por homicdios; 62.480, por suicdio e 309.212, por acidentes e violncias no trnsito e nos transportes. (p.13)
As informaes e dados sobre a violncia mostram a importncia do estudo da
violncia urbana em contextos especficos e em suas diversas vertentes, como, por
exemplo, as causas do seu aumento na atualidade e proposies e projetos sociais para a
conteno do seu aumento. Como a violncia afeta a sade da populao, necessrio
tambm realizar pesquisas sobre as consequncias da violncia urbana no existir
humano e propostas de cuidados para suas vtimas. Nesse caso, os servios de sade
precisaram tambm ser reorganizados, uma vez que as unidades de servios, antes mais
orientadas para as enfermidades de origem biomdica, hoje so convocadas para cuidar
das vtimas no apenas de danos fsicos, mas tambm emocionais.
1.2. A violncia urbana e o adoecimento
Nesta etapa da reviso, visando esclarecer o impacto da violncia urbana em
suas vtimas, procuramos artigos que discutissem a influncia da violncia e/ou da
violncia urbana no adoecimento humano para verificar as dificuldades emocionais e os
possveis diagnsticos descritos nas pesquisas. Utilizando as palavras-chave violence
victims foram encontrados 963 artigos (BIREME), 2.341 (PUBMED) e 123 (SciELO)
e violence and disease foram encontrados 15 na base BIREME, 961 na PUBMED e 7
na SciELO, no perodo de 2005 ao 1 semestre de 2010.
Inicialmente, a anlise de parte dos resumos mostrou que a maioria das
pesquisas est baseada principalmente no critrio diagnstico de Transtorno de Estresse
Ps-Traumtico, estabelecido no DSM-IV ou CID-10 para caracterizar os efeitos da
violncia. Este dado pode tambm ser confirmado com o uso da palavra-chave TEPT
e violncia, quando foram encontrados 465 artigos (BIREME), 1.503 na (PUBMED) e
16 (SciELO), no mesmo perodo indicado acima.
A leitura destes resumos mostrou tambm que, apesar da existncia de uma
grande quantidade de estudos, eles focalizam, em geral, outros eventos traumticos,
como guerras, campos de concentrao, mortes, doenas, acidentes de trnsito,
agresso, ataque terrorista, em particular o das Torres Gmeas nos EUA, abuso sexual, e
so poucos os que tratam de violncia urbana.
-
27
Em relao a este aspecto, destacamos ainda que o Transtorno de Estresse Ps-
Traumtico (TEPT) e Transtorno de Estresse Agudo (TEA) apresentam uma
peculiaridade, em comparao aos outros transtornos descritos no DSM-IV, pois eles
descrevem uma relao extensa de eventos estressores e/ou traumticos que esto
relacionados ao seu desenvolvimento, conforme podemos conferir abaixo:
Os eventos traumticos vivenciados diretamente incluem, mas no se limitam a, combate militar, agresso pessoal violenta (ataque sexual, ataque fsico, assalto mo armada, roubo), sequestro, ser tomado como refm, ataque terrorista, tortura, encarceramento como prisioneiro de guerra ou em campo de concentrao, desastres naturais ou causados pelo homem, graves acidentes automobilsticos ou receber diagnstico de uma doena que traz risco de vida (...). Os eventos testemunhados incluem, mas no se limitam a, observar srios ferimentos ou morte no-natural de uma outra pessoa devido a ataque violento, acidente, guerra ou desastre, ou deparar-se inesperadamente com um cadver ou partes do corpo humano. (DSM, 2000, p. 404)
Ao mesmo tempo, os estudos epidemiolgicos demonstram que no so todas as
pessoas expostas a estes eventos traumticos que desenvolvem os sintomas de TEPT ou
TEA. Sparrenberger, Santos e Lima (2003) mostram que a prevalncia de distresse
psicolgico, na amostra pesquisada, foi de 14% na Escala de Faces e 31,8% na Escala
de Percepo de Nervosismo. Yehuda e Davidson (2000) afirmam que apenas 25% de
pessoas expostas a um evento traumtico desenvolveram o transtorno, e Breslau et al.
(1991) relatam que apenas 22,6% de sujeitos expostos a violncia (assault)
apresentaram TEPT.
Esta peculiaridade do TEPT e do TEA instigou a produo de muitas pesquisas
que pretendem esclarecer, entre os eventos descritos, quais realmente esto associados
aos sintomas estabelecidos nestes quadros patolgicos. Nesta perspectiva, esses estudos
procuraram identificar as causas do desenvolvimento do TEPT, analisando se as causas
esto mais diretamente associadas ao tipo e gravidade do evento traumtico e/ou a
caractersticas individuais, como predisposio gentica ou psicolgica, resilincia,
repetio de traumas etc.
Nestas pesquisas, portanto, so problematizadas as seguintes questes: 1- se h
estratos populacionais mais vulnerveis a certos tipos de violncia como a reviso
sistemtica de Tolin e Foa (2006) que mostram que as mulheres so mais suscetveis ao
abuso sexual, enquanto os homens ao homicdio; 2- se a ocorrncia do TEPT mostra
diferena nos diversos grupos etrios e de acordo os vrios tipos de evento traumtico.
Kazinski e Margis (2003) concluem que as decorrncias so mais graves quando o
-
28
evento traumtico ocorre na infncia do que na idade adulta. 3- quais situaes
correspondem ao extremo estressor traumtico indicado no DSM-IV ou evento
estressante de natureza excepcionalmente ameaadora no CID-10, uma vez que h
diferena de intensidade do impacto sobre as pessoas em relao aos eventos descritos,
assim como um mesmo evento pode apresentar nveis de violncia diversos, conforme
destacam Kapczinski e Margis (2003) e Renck (2006).
Ao procurar selecionar entre os artigos aqueles que estudassem as consequncias
da violncia em suas vtimas, mas que no as associassem apenas com TEPT,
percebemos que a maioria dos artigos trata de eventos violentos especficos e/ou
focalizam um determinado estrato populacional como, por exemplo, os artigos de
Johnson (2009) e Reuter-Rice (2008) sobre o impacto na sade fsica e psicolgica em
jovens vtimas de bullying. Em geral, esses estudos focalizavam especialmente a
problemtica do abuso, sexual ou no, principalmente em mulheres, crianas ou
adolescentes. Por exemplo, o artigo de Oliveira e Jorge (2007), que tem como objetivo o
esclarecimento da relao entre o adoecimento e os maus tratos vividos pelas mulheres
em seu cotidiano e mostra como este tipo de violncia destri a autoestima da mulher e
aumenta o risco de sofrerem alguns problemas, como a depresso, o estresse ps-
traumtico, a tendncia ao suicdio e o aumento do consumo de tranquilizantes e lcool.
Trs artigos encontrados, que consideramos importante para o nosso estudo,
referem-se a pesquisas epidemiolgicas, mais atuais, sobre a violncia e adoecimento
em pases em desenvolvimento. O primeiro, Ribeiro et al. (2009), apresenta uma reviso
de literatura com o objetivo de encontrar dados epidemiolgicos sobre a exposio
violncia e a associao desta com problemas de sade mental em pases em
desenvolvimento. Ela foi baseada em estudos de corte transversal encontrados em bases
de dados eletrnicas (Medline, Psycinfo, Embase, SciELO e Lilacs) at o ms de julho
de 2009.
Ribeiro et al. (2009) concluram que a exposio violncia em pases em
desenvolvimento bastante frequente e est significativamente associada a problemas
de sade mental. Eles selecionaram apenas pesquisas empricas, sendo que 233 artigos
preencheram os critrios de incluso. A maioria dos artigos era de pases desenvolvidos
e os 32 artigos escolhidos, por estudar os pases em desenvolvimento, foram baseados
em 25 estudos transversais realizados em 19 pases.
Os dados foram organizados segundo os seguintes estratos populacionais:
crianas, mulheres e populao em geral. Os resultados encontrados foram os seguintes:
-
29
em crianas, a maior associao encontrada foi entre violncia domstica e problemas
de externalizao (OR = 9,5; IC 95% = 3,4-26,2), e entre ideao suicida e abuso sexual
(OR = 8,3; p < 0,05); entre as mulheres, sintomas de depresso e ansiedade esto
correlacionados a violncia conjugal psicolgica (OR = 3,2; IC 95% = 1,8-5,8) e
violncia sexual (OR = 9,7; 95% IC = 1,9-51,2). Na populao geral, as maiores taxas
de prevalncia de Transtorno de Estresse Ps-Traumtico esto associadas com
violncia sexual e domstica, sequestro, e exposio a mltiplos eventos traumticos. A
violncia tambm est associada com transtornos mentais comuns na populao geral,
mas em comparao a outros eventos traumticos, a violncia apresenta o risco mais
alto de desenvolvimento de TEPT entre aqueles que foram expostos a eventos
traumticos.
Andreoli et al. (2009) descrevem a metodologia de um estudo epidemiolgico
sobre sade e doena mental nas cidades de So Paulo e do Rio de Janeiro, que ainda
est em andamento. Os resultados desse trabalho, que apenas tem dados preliminares
publicados, podero esclarecer os efeitos da violncia urbana na populao brasileira,
especialmente nas duas maiores cidades do pas. A pesquisa apresenta como seus
objetivos principais detectar a relao entre a violncia urbana e o desenvolvimento de
doena mental como depresso, ansiedade, suicdio, uso de drogas e/ou lcool ou
Transtorno de Estresse Ps-Traumtico.
Viana et al. (2009) tambm descrevem a metodologia de uma pesquisa
epidemiolgica sobre a morbidade psiquitrica em uma amostra probabilstica da
populao geral, residente na regio metropolitana de So Paulo, com 18 anos ou mais,
que ainda no tem seus resultados publicados. A amostra total corresponde a 2.942
respondentes, que receberam os mdulos de avaliao de transtornos de humor, de
ansiedade, de controle de impulso, decorrentes do uso de substncias psicoativas e
comportamentos suicidas, que foram considerados transtornos nucleares. Mdulos
complementares, no clnicos e clnicos, relativos aos transtornos obssessivo-
compulsivo, estresse ps-traumtico, jogo patolgico, alimentares, pr-menstruais,
neurastenia, sintomas psicticos e rastreio de personalidade, foram aplicados queles
que tiveram pelo menos um dos transtornos nucleares e a uma amostra aleatria de 25%
dos negativos.
Portanto, vemos que muitos pesquisadores brasileiros esto empenhados em
esclarecer o impacto da violncia urbana no adoecimento da populao e que os
resultados das duas ltimas pesquisas oferecero informaes importantes para mapear
-
30
os transtornos psiquitricos da realidade urbana relativos cidade de So Paulo e do Rio
de Janeiro, que possivelmente ajudaro esclarecer a relao da violncia com a sade
mental e, assim, aguardamos com muito interesse os seus resultados.
1.3. Assalto e adoecimento
Ao procurar artigos especificamente sobre assalto ou roubo observamos que
existem poucos estudos sobre esta temtica. importante lembrar que no Cdigo Penal
Brasileiro a palavra utilizada roubo, e em ingls, a palavra mais utilizada robbery,
pois assault significa agresso, ataque e violao sexual. Quando foram utilizadas as
palavras-chave post traumatic stress and robbery e post traumatic stress and armed
robbery, no foi encontrado nenhum trabalho publicado nos ltimos 5 anos e, assim,
foi ampliado o perodo da busca, quando foram encontrados 5 artigos na base PUBMED
e BSV/BIREME, mas nenhum na SciELO. Dos cinco encontrados, apenas quatro, que
podem contribuir para nosso trabalho, sero apresentados.
Vieira Neto (2004) realizou uma pesquisa, visando identificao das
consequncias psicolgicas e do desenvolvimento do Transtorno de Estresse Ps-
Traumtico em bancrios, vtimas de assalto ou sequestro, no exerccio de sua atividade
profissional. O autor desenvolve tambm uma compreenso dos sintomas do TEPT
baseada nos conceitos tericos psicanalticos. A pesquisa foi realizada com trs
bancrios que sofreram assalto e apresentavam muito sofrimento. Para o
desenvolvimento da pesquisa, os bancrios foram selecionados entre os que procuraram
o Programa de Assistncia s Vtimas de Assalto ou Sequestro (PAVAS) de um banco.
Os participantes foram escolhidos por apresentar dificuldade em permanecer no mesmo
local de trabalho em que ocorreu o assalto.
A partir da anlise dos dados colhidos em entrevistas semidirigidas, foi realizado
o levantamento dos sintomas apresentados pelos trs participantes. Depois, o
pesquisador descreveu os sintomas levantados, comparando com os critrios
diagnsticos de TEPT do DSM-IV: aps sofrer ameaas ou testemunhar risco de perder
a vida e/ou da integridade fsica, os entrevistados apresentaram ideaes intrusivas e
ansiedade associada aos estmulos do trauma. O medo mostra que a situao traumtica
no terminou e, assim, a sensao de perigo ainda continua presente. Eles mostraram
tambm falta de interesse, isolamento e evitavam lugares ou pessoas que lembrassem o
-
31
trauma; foi este sintoma que acarretou a solicitao de mudana do local de trabalho. Os
trs apresentavam alm de sofrimento significativo, prejuzo social e ocupacional. No
apenas a produtividade no trabalho ficou afetada, mas tambm os relacionamentos
afetivos e sexuais. Finalmente, o autor afirma que o assalto provocou sofrimento
clinicamente significativo, assim como prejuzo social ou ocupacional aos entrevistados,
o que confirma o diagnstico de TEPT.
Carbonell e Carvajal (2004), inicialmente, situam alguns aspectos que eles
consideram importantes para compreender o desenvolvimento do Transtorno de
Estresse Ps-Traumtico em vtimas de violncia, salientando que as respostas
imediatas diante de um evento traumtico so diferentes em cada indivduo e dependem
tambm da natureza e das consequncias da agresso. A primeira reao, a do choque,
que pode durar alguns minutos ou dias, caracteriza-se pela ativao do sistema
defensivo do sujeito diante do perigo, o que pode facilitar ou entorpecer o
enfrentamento da situao e da reao emocional posterior. A resposta ao trauma
depender da percepo de ameaa e do significado do evento traumtico para o sujeito.
A percepo no depende apenas da situao em si, mas tambm das caractersticas da
vtima, assim como as respostas individuais dependem tambm da existncia de leses
fsicas e de cuidados mdicos.
Na pesquisa os autores estudaram o perfil clnico e evolutivo dos pacientes com
o objetivo de detectar fatores como: sexo, leses fsicas, caractersticas de personalidade
e a influncia do tratamento na evoluo dos sintomas. Eles revisaram, com base nos
critrios do DSM-IV, 450 fichas clnicas de pacientes com o diagnstico de TEPT, que
ingressaram no Servio de Sade Mental do HTS em Santiago do Chile, entre os anos
de 1987 a 2000. Foram selecionadas aquelas em que o acontecimento traumtico
referia-se a violncia (asalto, em espanhol) em vias pblicas, que no indicavam abuso
sexual, acidentes de automvel ou no local de trabalho. A amostra resultou em 140
pacientes, constituda por 88 mulheres com idade entre 34,9 + 10,9 anos e escolaridade
de 11,7 + 2,6 anos: 61,4% das pacientes estavam casadas no momento da violncia e
trabalhavam em atividades de servio (71,4%). necessrio salientar que esse estudo
focaliza os eventos violentos em vias pblicas, incluindo roubos, mas no descrimina os
diversos tipos de eventos violentos vividos pelos participantes da pesquisa.
Da amostra selecionada, 59,09% dos pacientes receberam atendimento inicial no
Servio de Sade Mental no primeiro ms da ocorrncia do evento traumtico, sendo
que 20,7% foram atendidas na primeira semana aps o assalto. Os sintomas de TEPT
-
32
mais frequentes foram: os sintomas invasores e de evitao (100% dos pacientes),
ansiedade (97,9%), insnia (88,6%), pesadelos com o acontecimento traumtico
(71,4%), sintomas de hipervigilncia (78,6%) e ativao exagerada do sistema nervoso
autnomo diante de qualquer estmulo relacionado com o assalto (73,6%). O tratamento
em sade mental teve uma durao aproximada de 70 dias: 98,6% dos casos foram
medicadas com benzodiazepinicos (97,1%), antidepressivos (47,1%) e neurolpticos
(17,9%). As mulheres receberam mais antidepressivos (59,1% vs 28,8%) e mais
neurolpticos (23,9% vs 7,7%). A psicoterapia foi indicada para 80,0% da amostra. As
mulheres necessitaram mais tempo de tratamento do que os homens, uma vez que aps
trs meses de tratamento 61,6% das mulheres tiveram alta e 71,2% dos homens.
A fim de obter um perfil especfico dos pacientes vtimas de violncia, os
pesquisadores compararam algumas caractersticas dos pacientes vtimas de violncia
com TEPT com as dos pacientes com diagnstico de TEPT, mas em funo de outro
evento estressor. As caractersticas consideradas foram: demogrficas, clnicas e
tambm a evoluo dos pacientes. O grupo que sofreu violncia teve uma porcentagem
maior de mulheres 62,9% contra 50,3% homens, apresenta um predomnio de trabalho
em atividades de servio, 71,4% contra 55,2% em comparao ao grupo com TEPT e
outros eventos estressores. As leses fsicas e o emprego de antidepressivo foram mais
frequentes. Os resultados demonstraram que as vitimas de violncia com TEPT so
geralmente mulheres jovens e com bom nvel de escolaridade. Portanto, o estudo mostra
que as mulheres tm maior risco de exposio violncia do que a outro tipo de fato
traumtico.
Os autores afirmam tambm que as leses fsicas no constituram um elemento
relevante em relao s vtimas de violncia e, assim, consideram que a percepo de
ameaa pode estar associada ao significado subjetivo que a pessoa atribui ao fato
traumtico e que as caractersticas da agresso podem estar relacionadas com a
intencionalidade da agresso, uma vez que estes elementos exacerbariam a vivncia de
dano e desamparo que a violncia provoca no indivduo.
O trabalho de Richards (2000) tem como objetivo investigar as variveis
pessoais e sociais presentes na recuperao dos sintomas ps-traumticos em vtimas de
roubo com arma. Esse estudo replica em parte a pesquisa de Joseph et al. (1991), que
verifica as atribuies causais iniciais, o enfrentamento da situao e o suporte social
em vtimas de roubo com armas que apresentavam sintomas de TEPT para esclarecer a
importncia dessas variveis na recuperao dos sujeitos. O pesquisador avaliou 51
-
33
vtimas de roubo com arma, poucos dias aps o evento. Os sujeitos da pesquisa foram
selecionados entre as vtimas de 24 eventos de roubo mo armada ocorridas no UK
Building Society durante seis meses. Foram selecionados 31 sujeitos que sofreram
violncia com arma, mas que no apresentavam machucados fsicos. Os 31 sujeitos
participaram de um procedimento interventivo de apoio que teve como objetivo ajudar
as pessoas a gerenciar o estresse decorrente de incidentes crticos. Aps um ms, foram
reavaliados os 51 sujeitos da amostra em relao aos sintomas de TEPT, suas
atribuies causais, enfrentamento e manuteno da crise. No follow up, aps 6 meses,
os 31 participantes foram novamente reavaliados. Os resultados mostraram um nmero
significativo de participantes com sintomas clinicamente indicativos de TEPT como
intruso e evitao logo aps o assalto. Aps um ms, estes sintomas diminuram nos
31 sujeitos estudados e, aps 6 meses, nenhum deles apresentava sintomas de TEPT.
Estes dados indicaram que a estratgia utilizada foi eficaz ao tratar os casos que
apresentam sintomas de TEPT logo aps o incidente. O esclarecimento deste estudo
importante para a presente pesquisa, pois mostram que vtimas de roubo podem
desenvolver sintomas indicativos de TEPT, como intruso e evitao.
Kushner et al. (1992) desenvolveram uma pesquisa para verificar a associao
entre a percepo de domnio ou controle e o desenvolvimento de sintomas de TEPT em
43 mulheres que sofreram violncia criminal, como roubo, agresso simples e grave, na
qual ocorreu contato fsico, mas no violncia sexual. Elas foram recrutadas por meio
de um anncio no quadro da sala de emergncia e da delegacia policial, e as pessoas que
apresentaram transtornos como esquizofrenia e parania foram excludas. Os
procedimentos utilizados foram: uma entrevista inicial, quando foi respondido um
questionrio (The Structured Initial Interview) com 143 questes sobre as caractersticas
da violncia sofrida, a histria de abuso fsico e sexual, o estilo de vida e o uso de
drogas. Posteriormente, foram aplicadas duas escalas: Perceived Controllability Scale
(PCS), com questes sobre a percepo de domnio ou controle durante o ataque de
violncia, num futuro ataque e em relao a eventos em geral; e PTSD Symptom Scale
com 17 questes baseadas nos critrios diagnsticos de TEPT do DSM III-R.
Os resultados da pesquisa sugerem que a percepo de controle independente
das caractersticas da violncia em relao severidade do TEPT. A falta de percepo
de controle sobre uma situao especfica no resulta em uma psicopatologia mais
severa. Entretanto, quando a percepo de falta de controle generalizada alm da
situao de violncia para outros eventos negativos, as reaes psicopatolgicas se
-
34
mostram mais severas. Estes dados indicam que os problemas psicolgicos surgem de
uma violncia criminal, quando a vtima experiencia uma mudana em suas
pressuposies bsicas de justia e segurana no mundo em geral.
Os autores tambm destacam que, embora a metodologia do estudo no permita
concluir sobre como tal percepo interage com as experincias traumticas, possvel
levantar duas hipteses: 1- A percepo de falta de controle em geral pode ocorrer como
resultado de repetidas experincias de falta de controle antes da situao de violncia.
Ou, em outras palavras, a violncia ativa e confirma o modelo de que o mundo
incontrolvel e perigoso, resultando em aumento de sintomas patolgicos; 2- Os
indivduos que percebem o mundo como totalmente controlvel (sentimentos de
invulnerabilidade) mesmo antes da violncia podem vivenciar uma queda abrupta
patolgica na percepo de falta de controle, acarretando o trauma, pois o mito da
invulnerabilidade destrudo.
Um aspecto importante a ser destacado nos estudos apresentados refere-se
amostra escolhida, pois todos selecionaram vtimas de violncia ou roubo que
apresentavam sintomas de TEPT. Deste modo, entendemos que estes artigos mostraram
que os sujeitos das pesquisas, vtimas de roubo, tinham sintomas de TEPT, e talvez seja
possvel inferir que este tipo de violncia pode contribuir para o desenvolvimento de
sintomas de TEPT, mas nenhuma das pesquisas tinha como objetivo mostrar a relao e
frequncia de desenvolvimento de sintomas caractersticos de TEPT ou TEA em vtimas
de roubo com ou sem uso de arma. Consideramos, portanto, que esta relao ainda
precisa ser pesquisada.
1.4. Sequestro e adoecimento
Artigos e pesquisas sobre sequestro foram pesquisados com as palavras-chave
TEPT e sequestro e PTSD and kidnapping, sendo encontrados nas bases PUBMED,
1.619 artigos, na BSV/BIREME, 43 e na SciELO, 2, publicados nos ltimos 5 anos. No
entanto, a leitura de parte dos resumos mostrou que a maioria das publicaes tratava de
Transtorno de Estresse Ps-Traumtico em ex-prisioneiros de guerra. Assim, visando
focalizar a temtica de nossa pesquisa, utilizamos, posteriormente, as palavras-chaves
TEPT e sequestro e violncia urbana e PTSD and kidnapping and urban violence. A
anlise dos resumos dos artigos encontrados, 68 na PUBMED, 4 na BSV/BIREME e 1
-
35
na SciELO, prioritariamente, versavam sobre o sequestro de filhos de pais separados ou
de ex-prisioneiros de guerra e sobre a problemtica da tortura.
Deste modo, inicialmente, foi encontrado apenas um artigo baseado em uma
pesquisa desenvolvida por Navia (2008), na Colombia. Posteriormente, foram
localizadas trs outras pesquisas, duas dissertaes de mestrado e uma tese de doutorado
sobre sequestro realizadas no Brasil, especificamente no municpio de So Paulo; no
entanto, descreveremos apenas trs, pois so as que apresentam elementos que podem
contribuir para o nosso trabalho.
Navia (2008) relata uma pesquisa sobre o enfrentamento familiar em situaes
de sequestro extorsivo. O estudo visa detectar os mecanismos de enfrentamento que
favoreceriam a adaptao entendida como ausncia de sintomas de TEPT de todos os
integrantes das famlias.
Na atualidade, o sequestro, com a manuteno do refm em cativeiro at que a
famlia pague o resgate, uma modalidade frequente de violncia utilizada pela
guerrilha na Colombia. Neste estudo foram enfocados dois momentos: enquanto o
refm mantido em cativeiro e o perodo posterior libertao do refm, para obter
dados comparativos destes dois momentos. A autora estudou os mecanismos de
enfrentamento de 18 famlias, no perodo em que elas tiveram um membro sequestrado,
e o enfrentamento de outras 54 famlias em que o sequestrado j tinha sido libertado. A
pesquisa se restringiu s famlias nas quais o refm fora libertado com vida.
Os resultados da pesquisa mostraram, inicialmente, que as estratgias cognitivas
e comportamentais familiares esto relacionadas situao estressante enfrentada. Neste
sentido, foi observado que as estratgias de enfrentamentos se apresentam mais
adequadas em funo de situaes especficas. Na referida pesquisa, foram considerados
dois perodos distintos enfrentados pelas famlias que sofreram sequestro de um de seus
membros e foram destacados os mecanismos de enfrentamento favorveis a uma boa
adaptao para as famlias que sofreram este tipo de violncia, conforme descreveremos
a seguir.
Durante o cativeiro, perodo caracterizado pela incerteza do que ocorrer com o
sequestrado, quando a famlia concebe um futuro positivo, por exemplo, que o refm
suportar as condies impostas pelo cativeiro e ele poder ser libertado vivo, estes
pensamentos ajudaram a famlia a manter a esperana e criar uma noo de futuro.
Tambm buscar informaes permitia famlia ter uma viso realista da situao e
ajudava ter certo controle dela. Aps a libertao do refm, manter a esperana e ter
-
36
informaes passa a ser irrelevante, por outro lado, a tendncia de redefinir a situao,
diminuindo a carga negativa do trauma e buscando os aspectos positivos de toda a
situao, auxilia no seu enfrentamento. No nvel comportamental, o enfrentamento da
situao estava relacionado sensao de vulnerabilidade, pois, muitas vezes, as
famlias das vtimas se sentem desprotegidas e percebem que o estado incapaz de
proteg-las.
Os resultados indicaram que, tanto durante o cativeiro, quanto aps a libertao,
o enfrentamento focado no manejo da situao, no sentido de consider-la manejvel,
favorece a adaptao aps o trauma. Do mesmo modo, poder ver os aspectos positivos
da situao do sequestro e poder dar um sentido experincia tambm favorecem a
adaptao ps-trauma. Por outro lado, a pesquisa tambm indica que a evitao, o
isolar-se e bloquear a expresso de sentimentos pode estar associada s dificuldades de
adaptao.
Mauro (2007) estudou duas famlias, que tiveram um dos membros sequestrados
em cativeiro e apresentavam diagnstico de TEPT. O instrumento utilizado para a
obteno dos dados foi o Sociodrama familiar sistmico com oito encontros semanais
com cada famlia. A anlise das sesses de terapia permitiu observar que as famlias
necessitavam expressar seus sentimentos de dor, raiva, culpa e indefinio do que
aconteceu. Elas mostravam dvidas, temores, expectativas e, especialmente, medo de
que acontecesse novamente algo de ruim com a famlia. As famlias viveram, em funo
do sequestro de um de seus membros, um cativeiro virtual, mesmo sem ser privadas de
sua liberdade. Apresentaram tambm sintomas de TEPT, como reviver o trauma em
sonhos e pensamentos, evitar falar sobre a situao, fechar-se diante dos
relacionamentos pessoais, alm de passar a duvidar de tudo e de todos.
As famlias comearam a perceber a sua prpria vulnerabilidade, uma vez que
suas crenas em relao ao mundo, aos outros e a si mesmas foram abaladas e passaram
achar, com o sequestro, que coisas ruins tambm poderiam acontecer com elas. Notou-
se que uma boa adaptao depende em grande medida da posio que a famlia assume
diante da prpria vulnerabilidade, ou seja, poder aceitar a vulnerabilidade e aprender a
manejar as ameaas favoreceu a readaptao da famlia e permitiu-lhe reassumir a
rotina. Assim, observa-se a importncia da reconstruo das situaes que apresentam
vulnerabilidade, pois mesmo que no se tenha controle desses acontecimentos
possvel encontrar formas de manejar as situaes de vulnerabilidade.
-
37
Alm disso, a pesquisadora destacou algumas dificuldades de funcionamento das
famlias estudadas aps o evento traumtico, como a irrupo de vrios sentimentos, em
especial, de culpa por no ter evitado o sequestro, dificuldade de estabelecer limites
claros e falhas na comunicao, o que despertou a necessidade da famlia de se rever,
reorganizar-se e reestruturar seus vnculos.
Focalizando outros aspectos, o estudo de Ferreira-Santos (2006) teve como
objetivo principal mostrar o grau de magnitude de TEPT em vtimas de sequestro em
cativeiro e sequestro relmpago. Para a pesquisa, selecionou 81 indivduos vtimas das
modalidades de sequestro acima indicadas, de ambos os sexos, maiores de 18 anos. A
amostra foi escolhida entre mais de 300 vtimas que procuraram espontaneamente, entre
os anos de 2002 e 2005, o Servio de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clnicas (IPQ-HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de So
Paulo, por apresentarem alterao psquica aps o evento. Foram excludas da amostra
as pessoas que apresentavam transtornos psiquitricos anteriores ao trauma. Foi
constitudo tambm um grupo controle com 41 pessoas recrutadas na populao em
geral, utilizando os seguintes critrios de excluso: no terem sido vtimas de sequestro,
no possuir diagnstico psiquitrico e no ter sofrido nenhum dos vinte mais
significativos estressores na escala de Homes e Rahe11.
Os instrumentos utilizados foram uma entrevista clnica psiquitrica baseada no
DSM- III-R e a aplicao das quatro escalas de avaliao: 1. SCID - Entrevista clnica
estruturada para o DSM-IV (Structured clinical interview for DSM-IV); 2. PCL-C -
Escala de rastreamento de TEPT (Pos-traumatic stress disorder checklist) ; 3. IES
Escala de impacto de evento (Impact of event scale) e 4. ISSL Inventrio de sintomas
de estresse de Lipp.
Analisando os dados da entrevista e a anlise estatstica dos dados obtidos com a
aplicao das escalas, os resultados da pesquisa so: as vtimas de sequestro com
cativeiro e relmpago apresentaram um tipo de transtorno psquico compatvel com o
diagnstico de TEPT, cuja magnitude elevada. Esse transtorno prejudica as funes
psquicas ligadas ansiedade e ao medo, e pode perdurar por longo perodo, e tambm
afetar o trabalho, o lazer e a vida afetiva. O estudo revelou ainda que no houve
diferena significativa no desenvolvimento de sintomas de TEPT entre as vtimas de
sequestro com cativeiro e relmpago e, tambm, que no houve variao significativa na
11 Cf. Holmes e Rahe. The social readjustment rating scale. Journal of Psychosomatic Research, n 2, 1967, pp. 213-8.
-
38
magnitude do TEPT entre homens e mulheres. O resultado, que as vtimas de sequestro
relmpago tambm apresentaram sofrimento significativo interessante para o nosso
estudo, uma vez que selecionamos, alm de vtimas de roubo, apenas as de sequestro
relmpago e de curta durao para a nossa pesquisa.
Finalmente, ressaltamos que a nossa pesquisa bibliogrfica mostrou que a
violncia urbana preocupante porque traz consequncias srias para a sade da
populao em geral, tanto que os organismos internacionais e nacionais tm
recomendado estudos sobre sua incidncia, suas consequncias e formas de tratamento
adequadas, uma vez que este problema grave para a sade pblica na atualidade. Nesta
direo, vimos que esto sendo desenvolvidas pesquisas epidemiolgicas importantes,
que focalizam as cidades de So Paulo e Rio de Janeiro, pois estas so as duas maiores
cidades brasileiras e apresentam alto ndice de violncia.
Destacamos tambm que, apesar da violncia urbana ser uma questo importante
na atualidade, estudos especficos sobre violncia urbana como assalto e sequestro so
poucos, especialmente, quando comparados com os outros eventos violentos descritos
pelo DSM e CID, conforme j mostramos no incio deste captulo.
-
39
2. HEIDEGGER: O EXISTIR HUMANO COMO SER-A
Na gravidade do pensamento, sentimos o peso de nossa prpria realizao de ser no tempo. (CARNEIRO LEO, 1988, p. 18)
No presente captulo sero apresentadas as ideias principais de Martin
Heidegger, em Ser e Tempo [1927] (1988 e 1989)12 e os seus desdobramentos expostos
no livro os Seminrios de Zollikon13 [1987] (2009), tendo em vista esclarecer os
aspectos mais relevantes da explicitao heideggeriana do existir humano. No entanto,
inicialmente, faz-se necessrio tecer alguns esclarecimentos para situar o pensamento
filosfico relativo compreenso do ser humano como ser-a (Dasein) e as suas
indicaes para o estudo e a compreenso das experincias sadias e patolgicas, assim
como da prtica psicoterpica.
A questo que perpassa a trajetria do pensamento heideggeriano o
esclarecimento do que significa a palavra Ser. No livro Ser e Tempo, o filsofo d
incio s suas reflexes sobre o sentido de Ser. Afirma que sua anlise precisa focalizar
primeiramente o ser do homem, uma vez que ele quem poder responder a esta
questo, pois, este ente14, que em cada caso somos ns mesmos, e que tem entre outras
possibilidades de ser, a do perguntar, quem pode responder a esta questo.
Deste modo, Heidegger inicia a sua analtica do ser-a15 (Daseinsanalitik) por
meio de uma interpretao ontolgica do ser do ser-a. Neste livro, elabora tambm a
Daseinsanalyse, que ainda pertence analtica do ser-a, pois ela o desdobramento
dos temas indicados na analtica, ou seja, o desenvolvimento de uma interpretao do
ser-a. O mtodo de anlise utilizado pelo pensador considerado uma Fenomenologia
hermenutica, pois ele retoma o mtodo fenomenolgico husserliano e o reinterpreta
luz da hermenutica.
12 Ser utilizada a primeira edio de Ser e Tempo em portugus, que foi publicada em dois volumes: Parte I (2008) e Parte II (2009). 13 A partir do convite de Medard Boss, psiquiatra suo, Heidegger proferiu durante 10 anos seminrios (1959 a 1969) para um grupo de mdicos psiquiatras e psicanalistas. Estes seminrios foram publicados com o titulo de Seminrios de Zollikon (1987); nesta obra, tambm foram includas as cartas e dilogos entre os dois estudiosos, tanto sobre questes filosficas, quanto reflexes sobre a possibilidade de elaborar uma compreenso da psicopatologia e da psicoterapia baseada no pensamento heideggeriano. No presente trabalho, usaremos a ltima edio revisada. 14 Ente aquilo que existe: coisa objeto, matria, substncia ou ser. Filosofia: tudo que de maneira concreta, fctica ou atual independemente de, em qualquer nvel, tornar-se objeto de reflexo. (Novo Dicionrio Aurlio) 15 Grifo nosso.
-
40
Em Ser e Tempo, o filsofo desenvolve a Ontologia fundamental por meio de
uma descrio detalhada dos existenciais. Estes so estruturas interpretativas, que
segundo Nunes (1986), se resumem na idia de que o homem, como Dasein um ser-
no-mundo, e como ser-no-mundo temporal e histrico. (p. 10). Assim, do ponto de
vista heideggeriano, a explicitao ontolgica desvela uma estrutura de realizao, isto
, aquilo que possibilita as vrias maneiras de algo tornar-se manifesto, enquanto a
dimenso ntica mostra tudo o que percebido, entendido ou conhecido de imediato
pelo homem.
No livro Seminrios de Zollikon, o filsofo sugere tambm outros dois sentidos
para a palavra Daseinsanalyse, conforme j destacamos em trabalho anterior16. O
primeiro que denominamos Daseinsanalyse Clnica, uma vez que corresponde
descrio dos fenmenos fatuais, que se mostram em cada caso na relao entre o
analista e o analisando; contudo, ao mesmo tempo, segundo Heidegger (2009), a anlise
destes fenmenos necessariamente orientada pelos existenciais descritos na analtica
do ser-a.
O filsofo prope, tambm, a elaborao de uma disciplina daseinsanaltica que
intitula de Antropologia ntica daseinsanaltica17, isto , os estudos dos fenmenos
humanos situados num contexto histrico-social especfico e orientados pela
compreenso do existir humano como ser-a. Indica, por sua vez, a subdiviso da
Daseinsanalyse Antropolgica em Antropologia Normal e Patologia
Daseinsanaltica. Todavia, importante assinalar que a elaborao destas proposies
ainda no foi plenamente desenvolvida por seus seguidores.
Tendo em vista apresentar as ideias mais importantes do filsofo presentes
nestas duas obras, na primeira seo do presente captulo sero explicitados os
existenciais heideggerianos, descritos, em especial, no livro Ser e Tempo [1927] (1988 e
1989). Outros livros do filsofo, assim como de estudiosos de sua obra, sero
mencionados quando estes favorecerem a elucidao das ideias contidas neste livro.
Na seo seguinte, ser exposto o pensamento do filsofo presente no livro
Seminrios de Zollikon [1987] (2009), desde a sua discusso da Cincia Na