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RIO DE JANEIRO 2011 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ASPECTOS PROCESSUAIS UMA ANÁLISE SOB O ASPECTO DO CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL GILBERTO SILVEIRA DO CARMO

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

ASPECTOS PROCESSUAIS

UMA ANÁLISE SOB O ASPECTO DO

CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

GILBERTO SILVEIRA DO CARMO

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INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

ASPECTOS PROCESSUAIS

UMA ANÁLISE SOB O ASPECTO DO

CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Monografia apresentada como requisito para a conclusão do curso de Pós Graduação em Direito Processual Civil do Instituto a Vez do Mestre/Universidade Candido Mendes, sob a orientação do Professor JOSÉ ROBERTO.

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Aos meus pa is, pelo exemplo de vida, e a

Ela ine, esposa dedicada e car inhosa, pela

compreensão em todos os momentos , por tal

razão dedico este trabalho.

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Aos mestres e co legas dessa jornada, que em

muito contr ibuíram para o meu cresc imento

pessoal e prof iss ional , pe los ensinamentos,

pac iência e dedicação, meus s inceros

agradecimentos.

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Sumário

Resumo ....................................................................................................................................... 6

Introdução ................................................................................................................................... 7

CAPÍTULO I - A PESSOA JURÍDICA... ............................................................................ 12

Teorias da Afirmação da Pessoa Jurídica .......................................................................... 17

CAPITULO II – A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA............. 19

Conceito e Finalidade ........................................................................................................ 26

Desconsideração e Despersonalização ............................................................................... 28

Capítulo III - A Doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Brasil .......... 29

Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil ............................................ 31

Capítulo IV - Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica ........... 37

Decretação da Desconsideração da Personalidade Jurídica por mero despacho do juiz na

execução ............................................................................................................................. 38

A Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Defesa do

Consumidor ........................................................................................................................ 48

Conclusão ..........................................................................................................................52 Referência Bibliográficas ...................................................................................................58

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R e s u mo

O presente trabalho trata do rito processual adequado para que seja desconsiderada a

personalidade jurídica da sociedade empresária, dando ênfase aos princípios constitucionais

do contraditório e da ampla defesa.

Nesse diapasão, são descritas as teorias que tratam da pessoa jurídica, para que possam

ser entendidas a sua personalização, e a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica,

de sua origem até à letra da lei que hoje se encontra ínsita em nossa legislação.

A aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica foi analisada em três

momentos processuais distintos, a saber: na fase de execução, na de conhecimento e em caso

de ocorrência de fato lesivo superveniente ao processo.

Tópico especial é dedicado à Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Defesa

do Consumidor.

As hipóteses ensejadoras da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica

são atentamente tratadas, à luz de literatura jurídica e legislação pertinente, para demonstrar o

momento processual adequado em que se opere a disregard doctrine, de forma a respeitar o

devido processo legal.

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I n t r o d u ç ã o O presente trabalho busca analisar os aspectos processuais de desconsideração da

personalidade jurídica à luz dos princípios do devido processo legal e do contraditório, face a

verificação de lacuna no ordenamento pátrio acerca da matéria.

Assim, iniciaremos trazendo à baila as teorias referentes à pessoa jurídica, e

analisaremos a Teoria da Desconsideração para adentrarmos na análise do momento

processual adequado para a sua aplicação.

No âmbito geral, a desconsideração da personalidade jurídica tem se tornado cada vez

mais relevante e necessária, eis que inúmeras são as formas de associação das pessoas

jurídicas, tornando cada vez mais complexas as relações. No Direito brasileiro não tem sido

diferente, pois temos nos deparado com o surgimento dos grandes grupos econômicos em

todos os setores da economia. Destarte, a desconsideração da personalidade jurídica visa a

coibir o desvio da função ou o abuso de direito, ainda que praticado momentaneamente pelos

sócios ou administradores das sociedades empresárias.

Ressaltamos que a distinção entre os patrimônios e responsabilidades das pessoas

jurídicas e físicas que constituem uma sociedade empresarial decorre da necessidade de

conferir uma segurança ao empreendedor, limitando os riscos e prejuízos pessoais na

exploração de uma atividade econômica, para proporcionar o desenvolvimento da indústria e

da atividade comercial e gerar empregos e riquezas e, por conseguinte, o desenvolvimento da

sociedade.

Mesmo dotada de fins tão nobres, essa distinção não deve ser dogmatizada, sob o risco

de inverter sua função primordial, qual seja, o bem coletivo. Neste ponto, aludimos, a

disposição legal que apregoa ser mais importante a intenção da lei do que seu sentido literal, a

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fim de mostrar que a interpretação literal da lei, não observando o caso em concreto, o qual

pode estar contaminado pelo desvio de função ou pelo abuso de direito, resulta em vícios que

favorecem o ilícito ao invés de condená-lo.

Daí, resulta o objeto principal da desconsideração da personalidade jurídica, cuja

aplicação ocorre em casos excepcionais e delimitados, sem que se trate de descumprimento da

lei, mas sim de proporcionar o cumprimento da Justiça, com eqüidade. A teoria da

desconsideração cumpre um princípio geral do Direito, segundo o qual o abuso de um

instituto jurídico não pode jamais ser tutelado pelo ordenamento jurídico.

Discorreremos, no Capítulo II, sobre a gênese da Teoria da Desconsideração da

Personalidade Jurídica, destacando sua origem no mundo do direito e os motivos que levaram

a sua formulação. Para tanto, exemplificaremos com o caso Salomon versus Salomon & Co,

ocorrido na Inglaterra em 1898, considerado o leading case da desconsideração, buscando

assim, fazer um apanhado geral sobre esta Doutrina.

No capítulo seguinte, adentraremos no tema objeto do presente trabalho, discorrendo

sobre os aspectos processuais que permeiam a aplicação da Teoria da Personalidade Jurídica.

Em continuidade, o terceiro capítulo será dedicado ao estudo dos aspectos processuais da

aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica, no Direito brasileiro, quando

daremos ênfase à análise das sociedades empresárias, observando o devido processo legal e o

contraditório.

Neste estudo buscaremos, portanto, analisar o momento processual em que se deva

efetivar a desconsideração, cuja possibilidade de ocorrência se dá em três momentos: por

despacho do juiz no curso do processo de execução, durante o processo de conhecimento ou

devido a ocorrência de ato lesivo superveniente ao processo.

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Um tópico à parte será reservado à Desconsideração na Personalidade Jurídica no

âmbito da legislação consumerista, por ser a Lei 8.078/90 o primeiro ato normativo a referir-

se expressamente ao assunto, demonstrando a preocupação do legislador na tutela dos

interesses do consumidor.

Não obstante as críticas que se fazem à Teoria da Desconsideração, ínsita no Código

de Defesa do Consumidor, verifica-se que os parágrafos 2º a 4º do art. 28 trazem hipóteses de

responsabilidade solidária e subsidiária, motivo pelo qual analisaremos apenas a previsão de

desconsideração prevista no art. 5º do referido diploma legal, em seu caput.

Com o desenvolvimento do presente trabalho, vislumbramos o procedimento

processual mais adequado para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em

empresas societárias, dando-se ênfase ao devido processo legal e ao contraditório, de forma a

assegurar às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais, salvaguardando o

processo e possibilitando a segurança jurídica requerida pelas partes e consagrada no plano

constitucional.

Para iniciar este estudo, trazemos uma fábula de Galgano1 - “La Favola Della

Persona Giuridic” - ilustrada por Rachel Sztajn em artigo sobre a Desconsideração da

Personalidade Jurídica. A fábula tem como personagens principais o Criador, o homem e a

pessoa jurídica, figurando como personagens secundários Savigny, Gierke, Kelsen, Ascarelli,

e, também, o Maligno:

“A fábula tem início apontando a soberba do homem, pois, segundo o autor, se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, este não admite nada a menos e cria, também à sua imagem e semelhança, a pessoa jurídica. Dá-lhe uma assembléia que é seu cérebro, e órgãos de administração que devem ser os olhos, orelhas e boca. Mas o Criador deu ao homem um corpo e uma alma e, diz Galgano, como já para os romanos a pessoa jurídica tinha corpo (corpus habere equivale a pessoa jurídica), a idéia que aparece nos Códigos oitocentistas de pessoa jurídica como corpo moral ou místico, e que se mantém no direito anglo-americano na palavra corporation, não é de se estranhar. Prossegue Galgano, dizendo: “Deus disse ao primeiro homem e à primeira mulher, crescei e multiplicai-vos. A pessoa jurídica, mesmo concebida assexuada, também se reproduz : as sociedades-mães geram filhas, e estas outras filhas, de forma a povoar os continentes. O

1 APUD SZTAJN, Rachel in Sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica. Revista dos Tribunais, ano 88, v. 762, p. 81

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crescimento demográfico dessas pessoas em alguns países, como Liechtenstein, Mônaco, Panamá, Ilhas Virgens Britânicas, Ilha de Mann, é superior ao dos homens de carne e osso”. Mas o homem supera o Criador ao criar uma pessoa imortal, que pode ser fundida, incorporada, criando-se uma nova pessoa pela soma de duas ou mais anteriores. E o mais surpreendente: a pessoa jurídica pode ser desincorporada, cindida, dividida em muitas outras, demonstrando que a criatividade do homem supera a de seu Criador. Ora, diz Galgano, a soberba do homem torna o Criador ciumento e, decidindo impor castigo aos homens, encarrrega o Papa Inocêncio IV , cujo nome secular era Sinibaldo de Fieschi, de elaborar uma teoria destinada a convencer os homens de que a pessoa jurídica, nada mais é do que uma persona ficta; depois incumbe a Bartolo di Sassoferrato de convencer os homens que a pessoa jurídica vere et proprie non est persona; segue-o Baldo degli Ubaldi, que completa o ensinamento afirmando que pessoas são apenas os homens, ainda quando possam agir tanto individual quanto coletivamente (uti singuli, uti universi). Assentadas essas idéias, a pessoa jurídica fica esquecida por séculos. Passa a Inquisição e tem início o Iluminismo No período das luzes e da razão, volta-se a falar em pessoa jurídica: elas existem e são sujeitos artificiais, criados pelo legislador, diz Savigny; em outra direção segue Otto Von Gierke, que diz que as pessoas jurídicas são unidades sociais vivas. A primeira posição é a que dá origem à teoria conhecida como da ficção; a segunda, posterior, produz a teoria orgânica ou da realidade. Nesse momento a ira divina se manifesta, continua Galgano, pois os homens são cruéis e, tendo criado a pessoa jurídica à sua imagem e semelhança, conferem-lhe a mesma crueldade que usam contra seus semelhantes. Até discriminação racial se usou contra as pessoas jurídicas! Na Alemanha, no período do nazismo, foram expropriados bens de sociedades ditas “judias”, da mesma forma que se expropriaram bens pertencentes a humanos judeus. Não só na Europa de Hittler essa manifestação racista ocorre, pois nos Estados Unidos discutiu-se a compra de uma gleba de terra em loteamento em que não se admitiam pessoas de cor, por uma sociedade organizada por negros. A questão era: seria a pessoa jurídica negra ou incolor ? Fala-se em nacionalidade das pessoas jurídicas, é verdade, mas como estabelecer-lhes a raça? Aplicam-se-lhes as regras impostas às pessoas naturais? E ,prossegue o jurista italiano, o Criador decide mudar de tática. Volta-se, desta vez, em favor dos perseguidos pelo nazismo e guia Hans Kelsen para que repita, quase literalmente, as palavras de Bartolo e de Baldo. E põe na boca de Ascarelli palavras de sabor bíblico: pessoas são apenas os seres nascidos do ventre de uma mulher. Concluindo a fábula, indaga como se discutirá, no futuro a pessoa jurídica e admite que a qualquer momento o homem fará novo desafio ao Criador, pois quando o homem atua no papel de jurista, é capaz de demonstrar tudo que quer, pois para isso tem a cumplicidade do Maligno, e de que outra coisa se serve se não do contrato?

Com esta fábula temos a ilustração da criação da pessoa jurídica, em que o autor faz

um paralelo à criação do homem. Se continuássemos a narrativa constante na fábula,

poderíamos então supor que o Criador, visando mitigar a atuação do Maligno e preservar a

pessoa jurídica, nos levaria ao desenvolvimento da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica como meio de impedir o uso da pessoa jurídica para fim diverso

daquele para o qual foi concebida.

Passaremos, então, a analisar as diversas teorias que buscam explicar a pessoa jurídica,

cujo entendimento acerca desta “criação humana” no presente trabalho visa ilustrar a origem e

demonstrar os conceitos básicos acerca do instituto da pessoa jurídica, para analisarmos a

desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das sociedades empresárias e por fim, os

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aspectos processuais para a sua aplicação e ainda, sua aplicação no âmbito do Código de

Defesa do Consumidor.

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CAPÍTULO I - A PESSOA JURÍDICA Inicialmente, para que possamos entender a teoria da desconsideração da

personalidade jurídica, faremos um breve estudo sobre a pessoa jurídica, por ser esta, por

assim dizer, o objeto de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Buscamos na Idade Média a concepção de pessoa jurídica, que era considerada

persona ficta, em que fictio significava criação da mente humana. No século XIX, o conceito

de fictio da pessoa jurídica passa a se relacionar à falsidade. Segundo a tradição romanista,

somente as entidades que tinham vida independente de seus membros e eram de interesse

público eram reconhecidas como pessoas. Assim, a noção de pessoa jurídica restringia-se às

entidades que transcendessem a individualidade. A personificação e a assimilação ao ser

humano daqueles corpus - e aí entendia-se a pessoa jurídica - se mantinham duradouramente

na sociedade, inconfundíveis com as circunstâncias dos homens que as integrava ao longo da

história. Assim sendo, reconheciam-se como pessoas a Igreja, a Comuna, a Corporação e a

Fundação.

A generalização do conceito de pessoa jurídica deu-se com a ruptura ocorrida no

século XIX, quando se deixou de exigir a transcendência para admissão da personificação2.

Tal mudança ocorreu conforme necessidade da sociedade e do direito em que, primeiramente,

podemos incluir o surgimento do Estado de Direito, no qual se adota o princípio da separação

dos poderes, que implica a sujeição da conduta imputável ao Estado ao princípio da legalidade

e da universalidade da jurisdição.

Com o Estado de Direito, temos o surgimento também do Direito Público, cuja

concepção não se confunde com a noção de jus publicum, vigente no direito romano. Eis que

o Estado passa a ser não apenas titular de poderes, mas também sujeito de deveres.

Indiretamente, tais mudanças refletem-se no Direito Privado relevando-se a supressão e o

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repúdio a privilégios e monopólios, pois os empreendimentos eram autorizados pelo rei que,

ao fazê-lo, acabava por conceder um verdadeiro privilégio aos investidores bem como o

monopólio sobre o comércio de determinas zonas ou colônias.

Cabe ressaltar que o liberalismo era a filosofia política vigente nesse período, a qual

influencia diretamente na formação do direito privado, uma vez que, no liberalismo, a

segurança jurídica era tida como função precípua do Estado, visando tão somente garantir

liberdade aos indivíduos para a realização de seus objetivos. Nesse contexto, o direito privado

identificava-se com a realização da pessoa humana, não sendo admitido o estabelecimento de

limites, tanto à pessoa humana quanto a seus direitos.

Destacamos, aqui, o predomínio do movimento pandectístico, também denominado

“Jurisprudência dos Conceitos” voltados para um jusnaturalismo racionalista e para quem o

direito estava fundado na vontade da pessoa humana. Com isso, temos a positivação do direito

e o Estado funcionando como órgão legislativo, emissor de normas jurídicas.

As sociedades anônimas tiveram como precursoras tanto organizações de interesse

público, criadas para emitir títulos lastreados na arrecadação futura de tributos, como as

companhias de colonização, as quais foram organizadas pelos estados para viabilizar a

conquista e a manutenção de colônias, bem como para o desenvolvimento do comércio

ultramarino. Assim, as sociedades anônimas, em sua concepção, foram criadas visando a

exploração de atividades econômicas de grande porte, dependendo, para a sua constituição, de

outorga estatal. Nessa época surgiu o conceito de sociedade como pessoa jurídica, com

obrigações e direitos distintos dos de seus sócios.

A sociedade anônima no século XIX era tida como um corpo que não se identificava

com o interesse e a pessoa dos sócios, ao contrário das sociedades contratuais, de pessoas. A

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da Personalidade Societária no Direito Brasileiro. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 19.

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sociedade anônima foi utilizada como instrumento fundamental ao exercício da atividade

econômica privada, visto a dimensão alcançada quanto à quantidade de sócios, capital,

atividade econômica, bem como quanto à estrutura administrativa autônoma e complexa.

Assim, o capital privado conquista sua liberdade para o exercício da atividade

empresarial, em que a criação, a personificação e o objeto social da sociedade anônima

independiam de prévia escolha arbitrária estatal, pois a outorga do Estado deixa de ser

condição para a formação de sociedades anônimas e, com isto, outros agrupamentos

societários vão surgindo com o fulcro de exercer a atividade econômica. Com a Revolução

Industrial, temos a exigência de concentração de capital para o êxito empresarial, o que

ocasionou a generalização da personificação societária, consagrando-se então a sociedade

anônima (S.A.).

Os estudos são controversos acerca do surgimento do conceito de pessoa jurídica.

Alguns autores consideram que se deu no Direito Romano, e que teria sido retomado na Idade

Média com o trabalho de Sinibaldo Fleschi, que viria a ser o Papa Inocêncio IV, e a pessoa

jurídica era considerada persona ficta.

Segundo Castro Y Bravo, a doutrina, conforme a tradição romanista, só considerava

pessoas as entidades que tinham vida independente de seus membros e eram de interesse

público3. A teoria de Savigny segue a tradição romanística, considerando a pessoa jurídica

uma simples fictio juris, ou seja, uma ficção do Direito. Para Savigny, a fictio juris servia

como um artifício técnico imposto pelas necessidades da vida em comum. A pessoa jurídica

não existe como entidade dotada de existência própria, mas como elemento técnico, uma

conceituação ficta, mediante a qual os juristas podem coordenar normas jurídicas distintas,

para disciplinar a responsabilidade resultante do ato associativo4. Porém, na prática do

3 Op. Cit. JUSTEN FILHO, Marçal, p.19 4 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Ed. Saraiva, São Paulo, 1995, p.230

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Direito, a compreensão da pessoa jurídica como ficção não corresponde à realidade, o que

gerou embaraços e, dessa forma, surgiram novas teorias que apontavam contra a teoria da

ficção.

Podemos, ainda, citar a teoria organicista ou real desenvolvida pelo jurista alemão

Gierke, que sustentava que a reunião de homens para realizar qualquer objetivo seja de

natureza política, comercial, civil, religiosa, etc, constituía-se efetivamente uma nova

entidade, cuja existência é inconfundível com a de seus membros5Outra teoria, que merece

atenção e que busca esclarecer o conceito da pessoa jurídica partindo das teorias supracitadas,

é a doutrina institucionalista, do jurista francês Maurice Hauriou. Está baseada na tese de que

as pessoas jurídicas são instituições, nas quais os homens se reúnem em busca de atingir um

objetivo comum, e é esse o fim maior que confere unidade à entidade.6 Para Kelsen, as

pessoas jurídicas são conjuntos normativos referidos a sujeitos particulares. São entidades

normativas como “centros de imputação” de distintos conjuntos de normas.7

No impasse ficção-realidade, o caráter absoluto da pessoa jurídica se estabelece como

sendo algo existente, ainda que abstratamente. Trata-se a pessoa jurídica como um objeto

cognoscível. Essa tendência é denominada hipostasia da pessoa jurídica, e sua existência

independe da existência de uma instituição, e vice-versa.

Outro aspecto que reforça esse caráter da pessoa jurídica é a identificação que há entre

pessoa jurídica e pessoa física. Pessoa jurídica é a organização de pessoas naturais com

interesse comum ou de massa de bens dirigidos à realização de interesses comuns ou

coletivos, aos quais a ordem jurídica reconhece como sujeito de direito.8 Assim, a pessoa

5 Op. Cit. JUSTEN FILHO, Marçal, p. 27 6 Id. Ibid. p.28 7 Op. Cit. REALE, Miguel., p.234 8 PINHO, Rui Rebello, Instituições de Direito Público e Privado, 20ª ed., Atlas, São Paulo, p. 217

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jurídica é formada para fins determinados, possuindo personalidade distinta dos seus

componentes, tendo capacidade de ter direitos e contrair obrigações reconhecidas por lei.

A personalização dos grupos sociais é contingência inevitável do fato associativo.

Visando fins comuns, vários indivíduos unem esforços e haveres; dessa associação vem a

necessidade de personalizar o grupo, para que possa proceder como uma unidade,

participando do comércio jurídico com a individualidade, e exige a formação de patrimônio

comum constituído pela afetação dos bens particulares dos seus componentes.9 A

individualização se dá quando a ordem jurídica atribui personalidade ao grupo, permitindo

que, em nome próprio, tenha capacidade jurídica igual à das pessoas naturais.

Nesse diapasão, cumpre-nos ressaltar a existência de espécies peculiares de pessoa

jurídica, que não são formadas somente pelo agrupamento de indivíduos, mas pela simples

afetação de bens, como é o caso das fundações. Saliente-se também a existência das

associações, entidades formadas pela união de indivíduos com o propósito de realizarem fins

não-econômicos.

Para Bolze e Ihering10, quando indivíduos se associam visando um fim comum, são

eles próprios os sujeitos de direito, considerados em conjunto, podendo-se admitir que o

conjunto dos indivíduos exerça atividade jurídica diferenciada. Para Brinz e Bekker, o fato

associativo consiste em patrimônio destinado a um fim, patrimônio esse que não teria titular,

de modo que seria direito sem sujeito.11 Outra corrente, defendida por Planiol e Barthélémy,

abstrai o aspecto subjetivo e apresenta uma forma de propriedade coletiva, em que os

associados possuiriam um conjunto de bens em comum, sem individualização das partes.12

9 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.185 10 Id. Ibid. p.107 11 Id. Ibid. p.107 12 Id. Ibid. p.108

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Teorias da Afirmação da Pessoa Jurídica São três as teorias que defendem a afirmação da pessoa jurídica: a Teoria da Ficção,

liderada por Savigny, a qual explica a natureza da pessoa jurídica considerando-a uma

abstração, porém uma ficção legal. A Teoria Realista, que tem à frente Giorgi, Fadda e Bensa,

e Gierke, admitindo a existência real da pessoa jurídica e com ela fazendo um analogismo

com os seres humanos. E Teoria da Realidade Técnica, defendida por Saleilles, Geny,

Michoud, e Ferrara13, sustentando que a realidade das pessoas jurídicas não é objetiva, pois

que a personificação dos grupos é construção técnica jurídica, que lhes dá forma, admitindo

que tenham capacidade jurídica própria. Neste caso, a personificação é uma realidade técnica,

não se tratando de criação artificial da lei.

Teorias da Negação da Personalidade

Ressaltamos, ainda, a existência de Teorias da Negação da Personalidade Jurídica, as

quais defendem a não existência da pessoa jurídica, que apresentaria, assim, valor ilusório.

Negam que as pessoas jurídicas possam ser sujeitos de Direito, pelo entendimento de que só

as pessoas naturais podem ter esse atributo ou, ainda, explicam o fato admitindo a existência

de direitos sem sujeito.

Verificamos, pelo exposto, a existência de diversas teorias que buscam conceituar a

pessoa jurídica: a teoria da ficção, tendo Savigny como seu defensor, que se baseia no direito

subjetivo, e a pessoa jurídica é tida como uma abstração, mera criação da lei. A crítica a esta

teoria está relacionada à ficção da pessoa jurídica, pois que eivada de contradição, ao

reconhecer como ficção um ente que possui existência real.

Em sentido oposto, temos a teoria da realidade objetiva, que admite a existência real

da pessoa jurídica que age como pessoa natural, resultando da junção de dois elementos: o

13 GAGLIANO, Pablo e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 195

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corpus (coletividade ou conjunto de bens) e o animus (vontade do instituidor). O principal

precursor dessa teoria, também orgânica ou da realidade, dentre outros, é Gierke, e entre nós,

Clóvis Beviláqua.

E a teoria da realidade técnica, que se apresenta como um meio termo entre as

anteriores, em que a pessoa jurídica possui existência real, embora sua personalidade seja

conferida pela técnica jurídica, e admitida a sua capacidade jurídica.

Aliamo-nos, pois, à teoria da realidade técnica, por entendermos que a pessoa jurídica

realmente se constitui em uma técnica jurídica, que visa a atender aos anseios tanto de ordem

econômica, social e religiosa quanto política, outorgando dessa forma personalidade jurídica

aos entes interessados em assim se agruparem.

Temos aí, tanto o Estado, associações, fundações e sociedades, como grupos

constituídos para um determinado fim que conjugam esforços para a consecução de objetivos

comuns ou de interesses sociais, fazendo com que haja uma organização de pessoas naturais

com interesse comum ou de massa de bens dirigidos à realização de interesses comuns ou

coletivos aos quais a ordem jurídica reconhece como sujeito de direito14.

14 PINHO, Rui Rebello. Instituições de Direito Público e Privado. 20ª ed., São Paulo: Atlas, 1997, p.217

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CAPÍTULO II – A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Os institutos jurídicos foram criados para facilitar a atividade econômica. Destarte,

esses mesmos institutos não devem servir de escudo para que se possam obter vantagens

indevidas sobre sua proteção. A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica busca

justamente isso, detectar a burla à lei, que porventura possa ocorrer sob o manto de uma

pessoa jurídica. A necessidade de uma Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica

surgiu do advento e expansão dos grupos econômicos, cuja composição, muitas vezes, pode

apresentar subordinação de empresas, umas pelas outras, com conseqüências na gestão das

unidades participantes.

No presente capítulo, daremos enfoque à aplicação da Desconsideração da

Personalidade Jurídica no âmbito das sociedades empresárias, elencadas no art. 982 e

seguinte, do Código Civil. Sociedades empresárias são aquelas que têm por objeto o exercício

de atividade própria de empresário sujeito à registro, consoante art. 967 do referido

dispositivo legal. Neste passo, trazemos a conceituação de sociedade empresária, que,

conforme preceitua Amador Almeida15, “é aquela estruturada de forma empresarial, reunindo

todos os elementos fundamentais da empresa, consubstanciados na atividade econômica

organizada.” Ressaltamos que, em determinadas circunstâncias e casos específicos, a

jurisprudência de vários países tem excepcionalizado o princípio legal que separa a pessoa

jurídica e seus membros.

Segundo Verrucoli, a teoria da soberania foi considerada como sendo precedente da

Disregard Doctrine, mas na prática não teve repercussão. Elaborada pelo alemão Haussmann,

foi desenvolvida na Itália por Mossa e baseava-se na afirmação de princípios considerados de

maior importância histórica. Visava imputar ao controlador de uma sociedade as obrigações

15 ALMEIDA, Amador Paes de.

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assumidas pela sociedade controlada e por esta não satisfeitas, tendo a substância das relações

relevada em detrimento da sua estrutura formal.16

O desenvolvimento efetivo da desconsideração da personalidade jurídica, embora

muitos autores não considerem, mas que abriu precedentes, ocorreu no âmbito da common

law americana, marcado pelo caso ocorrido em 1809, que envolveu o Banco dos Estados

Unidos (Bank of United States v. Deveaux), no qual o juiz, com a intenção de preservar a

jurisdição das cortes federais sobre as corporações, considerou as características dos sócios

individuais. Tal caso vem refutar as referências ao famoso caso londrino (Salomon v. Salomon

& Co.), ocorrido em 1897, citado como sendo o “verdadeiro e próprio leading case da

Disregard Doctrine”, sendo, todavia, considerado o primeiro caso do Direito inglês.17

O clássico Salomon v. Salomon18, como retrocitado, constitui-se um dos primeiros

casos que apontam no sentido de transpor a barreira criada pela separação patrimonial,

cabendo aqui o seu estudo com maior detalhamento:

O comerciante Aaron Salomon havia constituído uma “Company”, em conjunto com

outros seis componentes de sua família, cedido o seu fundo de comércio à sociedade

assim formada, recebendo 20.000 ações representativas de sua contribuição ao

capital, enquanto para cada um dos outros membros foi distribuída uma ação

apenas; para a integralização do valor do aporte efetuado, Salomon recebeu ainda

obrigações garantidas de dez mil libras esterlinas. A companhia logo em seguida

começou a atrasar os pagamentos, e um ano após, entrando em liquidação, verificou-

se que seus bens eram insuficientes para satisfazer as obrigações garantidas, sem que

nada sobrasse para os credores quirografários. O liquidante, no interesse desses

últimos credores sem garantia, sustentou que a atividade da “company” era ainda a

atividade pessoal de Salomon, para limitar a própria responsabilidade; em

conseqüência, Aaron Salomon devia ser condenado ao pagamento dos débitos da

company, vindo o pagamento de seu crédito após a satisfação dos demais credores

quirografários.

16 Id. Ibid. p.40 17 REQUIÃO, Abuso de Direito e Fraude Através da Personalidade Jurídica. Revista dos Tribunais, p. 410/12, Dezembro 1969. 18. Id. Ibid. p.410/12

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Destacamos que, em primeira instância, o juiz entendeu que a sociedade se confundia

com a pessoa física de Salomon e que, dessa forma, seu crédito não deveria ser privilegiado,

sendo bens particulares arrecadados pelo liquidante. A rejeição da defesa, baseou-se na

incomunicabilidade do patrimônio pessoal, decisão esta que foi facilitada pelo sistema legal

inglês.

Não obstante ter sido desconsiderada a personalidade jurídica da Salomon & Co, a

sentença foi reformada pela House of Lords, sob o argumento de que as formalidades legais

de constituição da sociedade haviam sido observadas e que Salomon e a companhia eram

pessoas distintas. Esse fato influenciou negativamente o desenvolvimento da Disregard

Doctrine no Direito inglês, fazendo com que seu desenvolvimento e aplicação ocorressem

amplamente no Direito norte-americano.

Ilustramos abaixo, com trecho da lavra de Rubens Requião19, proferido na Faculdade

de Direito da Universidade Federal do Paraná, acerca da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica, cabendo ressaltar que Requião foi um dos primeiros juristas a discorrer

sobre a matéria no direito brasileiro:

(...) em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre pessoa jurídica e os

membros que a compõem, se coloca o problema de verificar como se há de enfrentar aqueles

casos em que essa radical separação conduz a resultados completamente injustos e contrários

ao direito.

Outro caso de destaque é o caso Deep Rock, em que uma companhia constituiu

sociedade subsidiária, vendeu ações preferenciais e manteve em seu poder as ordinárias e o

controle. A seguir, efetuou adiantamentos (mútuos) à controladora e, no decorrer do

procedimento de reorganização, a controladora habilita seus créditos, pretendendo recebê-los

antes mesmo que os preferencialistas fossem pagos. O Tribunal apenas admitiu a participação

19APUD MARIANI, Irineu. A Desconsideração da Pessoa Jurídica, AJURIS nº 43, Julho 87.

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da controladora no processo com a subordinação de tais créditos ao pagamento dos

preferencialistas. Desconsiderou-se a pessoa jurídica da controladora para não reduzir ou

limitar os direitos dos acionistas externos.

Ao caso em comento, foi aplicado o teste da fairness, ou seja, da justiça, da eqüidade

de tratamento, que teve por base a insuficiente capitalização da subsidiária pela controladora.

Dessa forma, o prejuízo que levariam os sócios prefencialistas ou minoritários serviu de

paradigma para a decisão. Frisamos que os princípios do common law - fundado em equity e

em stare decisis, diferentemente dos países que adotam a lei, como é o nosso caso, negam de

pronto, eficácia ao ato jurídico que tenha objeto ilícito, por exemplo, o de sociedades, que

sendo incompatíveis com certa atividade econômica ou jurídica, passam a exercê-la.

Abrimos aqui um parênteses para discorrer algumas linhas acerca da eqüidade,

princípio basilar do common law, e que vem tomando força no Direito brasileiro, face a

existência de normas de caráter principiológico, que permitem ao julgador aplicar a norma

jurídica com maior liberdade, verificado o caso em concreto, fazendo com que as decisões

sejam baseadas na eqüidade, visando a realização integral da justiça, com igualdade e

proporcionalidade.

Consoante nos ensina Amaral20, “a eqüidade é um conceito multissignificativo, uma

verdadeira cláusula geral, uma hipótese legal de ampla generalidade que se faz presente em

todas as experiências jurídicas do mundo ocidental, interessando à filosofia e à teoria do

direito, particularmente no que tange à interpretação jurídica”. O autor ressalta, ainda, que se

trata de procedimento excepcional, requerendo, também, previsão legal para sua aplicação. O

conceito de eqüidade está relacionado ao critério de interpretação, trazido por que se trata da

justiça do caso concreto. Sendo assim, é considerada eqüitativa a decisão que leva em conta as

20 ALVIM, Arruda et al. Op. cit. p.199

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especiais circunstâncias do caso sub análise e a situação pessoal dos interessados, é a forma

de realização do direito do caso concreto.21

Cabe ressaltar que, ainda no século XIX, intensificou-se o uso da pessoa jurídica para

fins diversos daqueles considerados pelos legisladores, o que gerou preocupação dos

aplicadores do direito, levando-os a buscar formas idôneas de repressão. Assim, a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica consolidou-se entre os operadores do direito como

mecanismo de coibir a utilização da pessoa jurídica para fins diversos daqueles para a qual foi

criada.

A desconsideração da pessoa jurídica no direito pátrio, inicialmente carente de base

normativa, era adotada no contexto do nosso sistema jurídico por meio de estudos

doutrinários e aplicação jurisprudencial. O primeiro texto legal a prever expressamente a

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica foi a Lei 8.078/90, batizada como

Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Outras duas leis também incluíram tal previsão: a Lei 8.884/94 (Lei Antitruste), que

dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica; e a Lei

9.605/98, que disciplina a responsabilidade por lesões ao meio ambiente22. Com a edição do

novo Código Civil, ficou consignada, no art. 50, a previsão normativa para a desconsideração

da personalidade jurídica para os demais ramos do Direito.

Conforme tratado anteriormente, a função geral da pessoa jurídica consiste na criação de

um centro de interesses autônomos em relação às pessoas que lhe deram origem, de modo que a

estas não possam ser imputadas as condutas, os direitos e os deveres daquela. O vínculo dessas

pessoas e bens deve objetivar sempre finalidades socialmente relevantes.

21 Id. Ibid. p. 208 22 Lei 9.605/98, art. 4º estatui: “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.

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Como o instituto jurídico, no intuito de limitar os riscos empresariais, estimula o

desenvolvimento de atividades econômicas que levem ao desenvolvimento social e reconhece

a existência da pessoa jurídica distinta da existência de seus membros. Todavia, podem

ocorrer desvios de função, que consistem na não correspondência entre o fim perseguido pelas

partes e o conteúdo.

Saliente-se que a existência de uma sociedade não pode servir a propósitos ilícitos, visando

fraudar as normas e as obrigações que dizem respeito a seus sócios ou a uma das sociedades

coligadas; a doutrina e a jurisprudência de vários países passaram a não considerar incontestável o

princípio da separação entre a sociedade e sócios. Assim, um dos meios mais utilizados pelo

ordenamento jurídico como reação ao desvio de função do instituto jurídico é a desconsideração

da personalidade jurídica, pela qual se supera a pessoa jurídica, desvalorizando-se a distinção entre

ela e seus componentes.

Em se tratando desse desvio de função, podemos fazer alusão ao negócio indireto, onde as

partes se propõem alcançar uma finalidade que não é a típica do negócio jurídico escolhido; que

pode ser lícito ou ilícito e, neste caso, nulo, em que a nulidade se encontra no fim perseguido pelas

partes. Mais uma vez podemos demonstrar a relevância da doutrina de desconsideração da

personalidade jurídica como recurso a essas formas burlosas.

Podemos incluir também, como desvio de função, o abuso de direito, constituindo-se

fato cabível da aplicação da Disregard Doctrine. O abuso de direito caracteriza-se pelo “mau-

uso” do direito, ou seja, ao exercício normal de um direito, estando o seu titular, todavia,

desviado do fim econômico-social para o qual aquele direito foi criado.

Analisando a aplicação da Disregard Doctrine na common law, Verrucoli concluiu

que a maioria dos casos estudados leva à figura do abuso de direito, ou mais especificamente,

do abuso da personalidade jurídica. Contudo, nem sempre é possível recorrer-se à noção de

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abuso de direito para fundamentar-se a desconsideração. O uso abusivo do direito, conforme

nos ensina Humberto Theodoro Júnior,

é aquele feito com desvio de sua função natural, para transformar-se em veículo do único propósito de lesar outrem, equipara-se ao ato ilícito e, como tal, enquadra-se na hipótese prevista no art. 186 do novel Código Civil, que sucede com maior amplitude a disposição contida no art. 159 do Código Civil de 1916, acarretando para o agente o dever de reparar integralmente o prejuízo injustamente imposto ao ofendido.

Ressaltamos que o ato ilícito constitui obrigação de indenizar ou ressarcir o prejuízo

causado, em decorrência da infração a um dever de conduta, por meio de ação ou omissão

culposa ou dolosa do agente, da qual resulte dano para outrem. Assim, a desconsideração da

personalidade jurídica manifesta-se como mecanismo importante do Direito, para se coibir

fraudes perpretadas por intermédio da pessoa jurídica, fazendo-se valer da autonomia

patrimonial desta, seja pelos sócios ou seus administradores.

Diversas teorias foram elaboradas no sentido de definir a Disregard Doctrine: A teoria

unitarista, se divide em duas vertentes: uma objeto-institucional, defendida por Serick, e outra

intencional, que tem Galgano como seu precursor. Serick23, em estudo acerca da utilização abusiva

da estrutura formal da pessoa jurídica, verificou a insuficiência da noção de abuso de direito,

prevendo a aplicação da Disregard Doctrine em duas situações distintas: quando se utiliza

abusivamente a estrutura formal da pessoa jurídica para fins ilícitos; e para relacionar

determinadas normas com a pessoa jurídica. Galgano24, também, justifica a aplicação da

desconsideração para situações em que a pessoa jurídica é utilizada com intuito de fraudar, ou

seja, quando constatado o exercício doloso da pessoa jurídica.

Outro estudo que versa sobre a desconsideração e o abuso de direito, é o de Dobson25,

para quem a desconsideração não deve basear-se somente no abuso, mas também na

23 DIREITO, Carlos Alberto Menezes. A Desconsideração da Personalidade Jurídica, in Aspectos Controvertidos do Novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 88 24 APUD SZTAJN, Rachel op. cit. p.90 25 Ibidem p.88

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simulação fraudulenta e no interesse público. Não podemos generalizar tais ocorrências, tendo

em vista que, além dos casos citados, outros tantos ocorrem em que se aplica a

desconsideração da personalidade jurídica.

Acatamos a teoria defendida por Rolf Serick, por entender que só se possa dispor da

personalidade jurídica da sociedade quando configurado o abuso por intermédio desta, abuso

este que ocorre quando se intente infringir a lei, descumprir obrigações contratuais ou ainda

prejudicar fraudulentamente terceiros, ressaltando que a desconsideração decorre da prática

dessas ações “sob o véu da pessoa jurídica”, eis que se praticadas de outra forma, deverão ser

tratadas por outro instituto do Direito e não por intermédio da aplicação da desconsideração

da personalidade jurídica.

Conceito e Finalidade

A aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica é bastante ampla,

tendo em vista a sua necessidade de adequação a todo ordenamento, no que se refere à

personalidade jurídica da sociedade como distinta da personalidade dos membros que a

compõem. Um fator de relevada importância na sua aplicação refere-se à realidade em que

está inserida, onde devem ser observados fatores de estrutura e valoração das fontes do

Direito.

Como exemplo podemos citar a sua aplicação na common law ou na família do Direito

romano-germânico. Na primeira, aplica-se a disregard sempre que haja necessidade de evitar

solução anômala ou injusta (sobretudo no Direito norte-americano; o Direito inglês

permanece ligado à decisão do caso Solomon e a meios indiretos, como a fraude), enquanto o

segundo encontra-se voltado ao Direito inglês, buscando justificativas em fórmulas do

passado. No Direito brasileiro, pertencente à família romano-germânica, a aplicação da

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desconsideração da personalidade jurídica necessita de um princípio de alcance geral que

possa ser aplicado no caso em exame.

Para Verrucoli26, no Direito americano pode-se verificar a existência de dois tipos de

desconsideração: a) Disregard própria e verdadeira - que considera diretamente o substrato da

pessoa jurídica social com imediata imputação aos sócios de determinadas relações sociais ou

a todas elas; b) Disregard imprópria ou indireta – quando recorre a figuras e institutos

jurídicos que põem a salvo as distintas subjetividades, sem desconsiderar a personalidade

jurídica. Para o autor, ocorre no segundo caso apenas desconsideração em sentido econômico,

e não no sentido jurídico e econômico, característica da verdadeira e própria Disregard.

No caso do Direito romano-germânico, a separação entre sociedades e sócios é tratada

como dogma; assim, em casos onde ocorrem fraudes e simulações através da pessoa jurídica, a

existência da pessoa jurídica distinta da de seus membros constitui uma barreira para a resolução

de problemas. Serick, todavia, aponta como hipóteses de desconsideração a fraude à lei, a

contrato, contra credores e danos dolosamente causados a terceiros.

Podemos distinguir duas hipóteses em que o uso da Disregard Doctrine configura-se: a

primeira, para que possa ser ignorado o conceito de pessoa jurídica e contornados os esquemas

criados com a sua ajuda, evitando-se assim que simulações e fraudes alcancem suas finalidades

através do recurso à forma societária; e a segunda baseia-se no uso da desconsideração de maneira

direta, sendo essencial a superação da personalidade jurídica, na resolução de questões sem

solução ou injustamente solucionadas.

Devido ao grande número de hipóteses onde caberia a aplicação da desconsideração,

torna-se difícil formular um conceito pronto, fechado. Todavia, podemos considerar que a

Disregard Doctrine

26 APUD STAJN, Rachel. Op. cit. p. 84

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consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir, que, delas se utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico”.

Desconsideração e Despersonalização

Cabe esclarecer a diferença existente entre desconsideração e despersonalização. A

desconsideração, como o nome propriamente diz, pretende desconsiderar a forma da pessoa

jurídica, sem negar sua personalidade, enquanto no caso da despersonalização visa-se à anulação

da personalidade jurídica, e nesse caso desaparece a pessoa jurídica como sujeito autônomo, tendo

em vista a falta de existência, como nos casos de invalidade do contrato social ou de dissolução de

sociedades. A despersonalização é a extinção compulsória, pela via judicial, da personalidade

jurídica e possui caráter definitivo, ao passo que a desconsideração é tópica e temporária,

perdurando apenas no caso concreto, até que os credores tenham sido ressarcidos.

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Capítulo III - A Doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Brasil

O Direito Brasileiro, como integrante da família do direito romano-germânico,

encontra dificuldade na aplicação da Doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica,

dificuldade que vem sendo vencida com a aplicação da eqüidade, como vimos, princípio

muito utilizado na common-law, e que vem sendo aplicado e a doutrina e a jurisprudência

buscam paulatinamente incorporá-lo.

Destacamos aqui os autores que mais contribuíram para o desenvolvimento do estudo da

desconsideração no Brasil: Rubens Requião e Fábio Konder Comparato. Porém, com a

disseminação dessa doutrina, já contamos com outras tantas contribuições de relevada

importância. O primeiro cuidou de divulgar a doutrina no País, enquanto Comparato preocupou-se

em aprofundar-se nesse estudo.

Segundo Comparato27, o efeito jurídico da personalização é a separação de

patrimônios, feito este que não se realiza nas seguintes situações: na ausência do pressuposto

formal estabelecido em lei. No desaparecimento do objeto social específico da exploração de

uma empresa determinada ou do objetivo social de produção e distribuição de lucro; e quando

ambos se confundem com a atividade ou o interesse individual de determinado sócio. Nesse

caso a sanção jurídica a ser aplicada deve ser a ineficácia do ato ou negócio e a suspensão dos

efeitos da separação patrimonial. Assim, a desconsideração da personalidade jurídica, salvo

disposição contrária em lei, não poderá prescindir da prova da intenção de provocar dano à

terceiro, ou da consciência deste dano, por meio de fraude ou do exercício irregular de um

direito (abuso de direito).

27 COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 3ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1983.

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Outra hipótese de desconsideração da personalidade jurídica ocorre quando houver

caracterizado o desvio de função, ou seja, constitui fraude à lei ou ao estatuto, quando a

função da personalidade jurídica for violada. Destaque-se a função do instituto da

personalidade jurídica e uma vez desrespeitada essa finalidade, para se perseguir fins não

previstos contratualmente ou previstos em lei, impõe-se a desconsideração da personalidade

jurídica.

Clóvis Ramalhete, defende a aplicação da doutrina no Brasil, porém remarca sua

preocupação para com o nosso sistema jurídico de lei escrita, onde a recusa aos efeitos da

personalidade jurídica deve ter apoio em lei, mas também se faculta ao juiz a criação do Direito

nos casos de lacuna ou omissão por parte do legislador.

Contudo, podemos encontrar na legislação brasileira hipóteses de aplicação da teoria da

desconsideração legalmente previstas em lei, como o art. 2º, § 2º da Consolidação das Leis do

Trabalho, art. 176, § 1º e art. 222, § 1º da Constituição Federal, Lei n.º 6404/76, art. 28 da Lei

n.º 8.078 de 1990; Lei 8.884/94; Lei 9.605/98; art. 50 do Código Civil; e na Súmula n.º 486, do

Supremo Tribunal Federal.

Na hipótese prevista na Súmula supracitada, a desconsideração da personalidade jurídica

ocorreu em benefício do controlador e decorre de interpretação ampliativa do art. 8º, alínea e, do

Decreto n.º 24.150, ao alargar o conceito de uso próprio do locador; tal decisão foi, depois,

consagrada na Lei n.º 8.245 de 1991.

Não podemos deixar de citar aqui a contribuição da Lei n.º 8.078/90, que foi regulada

visando outorgar a mais ampla e eficaz tutela aos direitos do consumidor. Saliente-se que o art. 70,

da Constituição Federal, consagra a defesa do consumidor como diretriz da ordem econômica e

financeira nacional. Assim, a Lei 8.078 permite a defesa adequada dos consumidores e seus

interesses, visando prevenir e punir as ações de pessoas pouca afetas a um cenário econômico

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equilibrado e evoluído. Dessa forma, quando o interesse ameaçado é valorado pelo ordenamento

jurídico como mais desejável e menos sacrificável do que o interesse colimado através da

personificação societária, abre-se oportunidade para a desconsideração da personalidade jurídica.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi incluída na Lei de Defesa do

Consumidor, em seu art. 28, que assim dispõe:

O juiz poderá desconsiderar a personalidade da sociedade quando, em detrimento do

consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração de lei, fato ou ato ilícito ou

violação dos estatutos ou contrato social.

§ 1º - vetado

§ 2º - As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são

subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 3º - As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações

decorrentes deste Código.

§ 4º - As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5º - Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que a sua personalidade

for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Frisamos que as hipóteses previstas nos parágrafos 2º a 4º constituem situações de

responsabilidade dos administradores, não configurando, portanto, pressupostos para a

desconsideração da personalidade jurídica.

Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código Civil

A previsão de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no novel Código

Civil, após diversas propostas de texto, foi assim sancionada e está disposta no art. 50:

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela

confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público

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quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de

obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa

jurídica.

A redação dada à Desconsideração da Personalidade Jurídica no novo Código Civil,

por ser relativamente recente, ainda não foi discutida detalhadamente por parte da doutrina.

Destaque-se que a teoria da desconsideração é inserida no plano da eficácia,

estendendo-se a responsabilidade não somente aos sócios, mas também aos administradores

da sociedade, o que é visto por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona28, como:

Valiosíssimo instrumento para a efetividade da prestação jurisdicional, pois possibilita, inclusive, a responsabilização dos efetivos “senhores” da empresa, no caso – cada vez mais comum – da interposição de “testas de ferro” (vulgarmente conhecidos como laranjas) nos registros de contratos sociais, quando os titulares reais da pessoa jurídica posam como meros administradores, para efeitos formais, no intuito de fraudar o interesse dos credores.

A inovação trazida pelo codex, seguindo a legislação estrangeira, diz respeito à confusão

patrimonial, elencada como sendo motivo ensejador para a efetivação da desconsideração da

personalidade jurídica. Seguindo a orientação de Menezes Cordeiro29, verifica-se a confusão de

esferas jurídicas quando não são observadas as regras societárias, ou por qualquer decorrência

objetiva, não reste claro, na prática, a separação entre o patrimônio social e o patrimônio pessoal

do sócio. Saliente-se que o direito positivo estabelece uma separação específica entre o patrimônio

societário e o patrimônio pessoal de cada um dos sócios que compõem a sociedade empresária,

cabendo aos sócios, não somente concretizar tal separação, como mantê-la efetiva. Assim, em

situações em que a separação patrimonial estabelecida formalmente não é respeitada, o Código

Civil determina a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

28 GAGLIANO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 2004, p.240. 29 CORDEIRO, Menezes. Responsabilidade Civil dos Administradores, Almedina, 1997, p.324.

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Nesse contexto, destacamos duas situações de confusão patrimonial que podem ocorrer: a

mistura de sujeitos de responsabilidade e a mistura das massas patrimoniais. A primeira hipótese

ocorre quando houver a identidade dos membros da administração ou gerência de duas ou mais

sociedades, nos casos de desrespeito às formalidade societárias ou pela utilização de uma única

sede para a atuação de várias sociedades de responsabilidade, com firmas e ramos de atuação

assemelhados, situações essas que podem trazer prejuízos aos credores. A mistura de massas

patrimoniais enseja a perda da responsabilidade limitada de quem lhe dá a causa, o que pode

ocorrer pela inexistência de separação patrimonial na escrituração social.

Alexandre Couto Silva30 aponta, como uma das falhas do art. 50 do Código Civil, a falta de

indicação da fraude em seu sentido amplo (de acordo com a noção do direito norte-americano) e

da busca do ideal de justiça. Entendemos, todavia, que a idéia de fraude está implícita na redação

do art. 50 do novo codex, quando faz referência ao abuso da personalidade jurídica e ao desvio de

finalidade. Da mesma forma, a busca do ideal de justiça está presente em toda a atuação do

Direito, não sendo necessário pontuar este aspecto.

Vale ressaltar o Projeto de Lei 2426/2003, que tramita na Câmara dos Deputados que visa

regulamentar o art. 50 do Código Civil, disciplinando a declaração judicial de desconsideração da

personalidade jurídica. E, conforme podemos verificar na justificação de seu autor, é ressaltada a

aplicação inadvertida da desconsideração da personalidade jurídica, “usurpando as funções do

Poder Legislativo”, citando, sobretudo a legislação trabalhista, tributária e societária, as quais, na

opinião do Nobre Deputado, não cogitam a hipótese da desconsideração e fazem confusão entre

“os institutos da co-responsabilidade e solidariedade”. Ainda, vejamos:

Art. 1 º . As s i tuações juríd icas pass íve is de declaração judic ial de

desconsideração da personal idade jur ídica obedecerão ao disposto no art . 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 e aos precei tos des ta le i .

30 SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro, São Paulo, LTR, 1999, p.90.

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Art . 2º . A parte que se ju lgar pre judicada pe la ocorrência de desv io

de f inal idade ou con fusão pa tr imonial prat icados com abuso da personal idade jur ídica indicará, necessár ia e objet ivamente, em requerimento espec íf ico, quais os a tos abusivos pra ticados e os admin is t radores ou sócios deles bene ficiados, o mesmo devendo fazer o Min istér io Público nos casos em que lhe couber intervir na l ide. Art. 3º . Antes de declarar que os e fe i tos de certas e determinadas

obrigações se jam estendidos aos bens dos admin is t radores ou sóc ios da pessoa jur ídica, o ju iz lhes facul tará o prévio exerc íc io do contradi tór io , concedendo-lhes o prazo de quinze dias para produção de suas defesas. § 1º . Sendo vár ios os sóc ios e ou os admin is t radores acusados de

uso abusivo da personalidade juríd ica, os autos permanecerão em cartór io e o prazo de defesa para cada um deles contar-se-á , independen temente da juntada do respect ivo mandado aos autos, a part i r da respect iva c i tação se não f igurava na l ide como parte e da int imação pessoa l se já in tegrava a l ide, sendo-lhes assegurado o direi to de obter cópia reprográf ica de todas as peças e documentos dos autos ou das que sol ic i tar, e juntar novos documentos . § 2º . Nos casos em que consta tar a ex is tênc ia de f raude à

execução, o ju iz não declarará a desconsideração da personal idade jur ídica antes de declarar a inef icác ia dos a tos de al ienação e de serem excut idos os bens fraudulen tamente al ienados. Art. 4º . É vedada a ex tensão dos e fe i tos de obrigações da pessoa

jur ídica aos bens part iculares de sóc io e ou de admin is t rador que não tenha prat icado a to abusivo da personal idade , mediante desv io de f inal idade ou confusão patr imonial , em detr imento dos credores da pessoa jur ídica ou em prove ito próprio . Art. 5º . O disposto no ar t . 28 da Le i nº 8 .078, de 11 de

se tembro de 1990, somente se apl ica às relações de consumo, obedecidos os prece i tos des ta le i , sendo vedada a sua ap licação a quaisquer outras relações jurídicas. Art. 6 º . O disposto no art . 18 da Le i nº 8 .884 , de 11 de junho de

1994, somente se ap lica às hipóteses de infração da ordem econômica, obedecidos os prece i tos desta le i , sendo vedada a sua aplicação a quaisquer outras relações jurídicas. Art. 7º . O juiz somente pode declarar a desconsideração da

personal idade juríd ica nos casos expressamente previs tos em lei , sendo vedada a sua aplicação por ana logia ou interpre tação extens iva. Art . 8º . As disposições desta le i apl icam-se a todos os processos

judic iais em curso em qualquer grau de jur isdição, sejam eles de natureza cível , f i scal ou traba lhis ta . Art. 9º . Esta le i en tra em v igor na data de sua pub licação.

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JUSTIFICAÇÃO “Embora só recen temente tenha s ido in troduzido na legis lação brasi le ira , o ins t i tu to da desconsideração da personalidade jur ídica vem sendo ut i l i zado com um certo açodamento e desconhecimento das verdadeiras razões que autor izam um magis trado a declarar a desconsideração da personalidade juríd ica. Como é sabido e consab ido o ins t i tu to em re ferência tem por escopo impedir que os sóc ios e ou admin ist radores de empresa que se u t i l i zam abusivamente da personal idade juríd ica, mediante desv io de f inalidade ou con fusão pa tr imonial , pre judiquem os terceiros que com ela contratam ou enr iqueçam seus patr imônios indev idamente. A "disregard doc trine" pressupõe sempre a ut i l i zação f raudulenta da companhia pelos seus con tro ladores, (Ver le i ing lesa art . 332 , Companies Ac t de 1948). Na Ingla terra, essa responsabi l idade dos sóc ios e admin is t radores orig inalmente só era admi t ida no caso de dolo . Atualmente já é extensiva aos casos de negl igênc ia ou imprudência graves na conduta dos negócios (reck less trad ing). De acordo com o ar t . 333 da Companies Ac t , admite-se a proposi tura de ação contra o administ rador (o f f icer), nos casos de culpa grave (misfeasance e breach of t rust ) , mas tão-somente para que se jam ressarcidos os danos causados à soc iedade pelos a tos contra ela pra ticados. Nos Estados Unidos, a doutr ina da transparênc ia tem sido aplicada com reservas e tão-somente nos casos de eviden te in tu i to f raudulento, quando a sociedade é u t i l i zada como simples ins trumento ou a l ter ego do acion is ta con trolador. Em tais h ipóteses de confusão do patr imônio da sociedade com o dos ac ionistas e de indução de terceiro em erro, a jur isprudência dos Estados Unidos tem admi t ido levantar o véu ( judges have p ierced the corporate vei l ) para responsabi l i zar pessoalmente os acion is tas con troladores (v . o comentário Should Shareho lders be Personally Lieb le for the Torts of the ir Corporat ions? In Yale Law Journal , nº 6 , maio de 1967, 76 /1 .190 e segs. e espec ialmente p . 1 .192). Esses casos, entretan to, vêm sendo ampliados desmesuradamente no Brasi l , especia lmente pe la Just iça do Trabalho, que vem de cer ta maneira e inadvert idamente usurpando as funções do Poder Leg is lat ivo, v i s to que enxergam em disposições legais que regu lam outros ins t i tu tos jur ídicos fundamento para decretar a desconsideração da personal idade jur ídica, sem que a le i apontada cogite sequer dessa hipótese, sendo grande a confusão que fazem entre os ins t i tu tos da co-responsabil idade e so l idariedade, prev istos, respec t ivamente, no Código Tribu tário e na legis lação soc ietár ia , ocorrendo a primeira (co-responsabi l idade) nos casos de tr ibutos deixados de ser reco lhidos em decorrência de atos i l íc i tos ou praticados com excesso de poderes por admin is t radores de soc iedades, e a segunda (sol idariedade) nos casos em que genericamente os admin is t radores de soc iedades ajam com excesso de poderes ou prat iquem a tos i l íc i tos, daí porque, não obstan te a semelhança de seus efe i tos, a matér ia es tá a ex igir d iploma processua l próprio , em que se f irme as hipóteses em que a desconsideração da personalidade jur ídica possa e deva ser decretada. Todavia, convém lembrar a inconveniência de se atr ibuir a todo e qualquer sócio ou administ rador, mesmo os que não se ut i l i zaram abusivamente da personal idade jur ídica ou até mesmo daqueles que part ic ipam minori tariamente do capita l de soc iedade sem prat icar qua lquer a to de gestão ou se bene ficiar de a tos fraudulen tos , a responsabi l idade por déb itos da empresa, pois i s to viria a deses t imular a at iv idade empresarial de um modo gera l e a part ic ipação no capita l socia l das empresas bras i le i ras, devendo essa responsab il idade de sóc io ser regu lada pe la legislação socie tária ap licáve l ao t ipo de sociedade esco lhido.

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Essas as razões que me f i zeram apresentar este projeto de le i , que espero mereça a aprovação do Congresso Nacional e venha a ser sancionado como lei pe lo Exce len tí ssimo Senhor Presidente da República. (Deputado Ricardo Fiuza)”

Em que pese a preocupação do legislador com o projeto em comento, verificamos que

o mesmo traz equívocos que, todavia, como ainda se encontra em fase de aprovação, temos a

certeza e esperamos que seu texto sofrerá modificações, as quais poderão vir a sanar as

incompatibilidades ora apontadas.

Verificamos que, em suma, a desconsideração teve seu marco no Brasil pela

introdução no Código de Defesa do Consumidor não obstante este diploma legal trazer em seu

art. 28, as hipóteses constantes nos parágrafos 2º a 4º, como se tratando de desconsideração da

personalidade jurídica, todavia, não passam de situações em que é cabível a responsabilidade

solidária ou subsidiária dos sócios ou administradores. Resta, assim, o caput do artigo, bem

como a hipótese, considerada inovadora à doutrina da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica, que é aquela disposta no parágrafo 5º, a qual prevê a desconsideração

da personalidade jurídica quando também ocorrer óbices ao ressarcimento do consumidor.

Com a promulgação do no novo Código Civil, em 2002, temos a previsão da

desconsideração a ser aplicada aos demais ramos do Direito, trazendo em seu bojo as

hipóteses de aplicação quando configurada fraude, abuso de direito e confusão patrimonial, ou

seja, os verdadeiros pressupostos da disregard doctrine.

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Capítulo IV - Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Não obstante a matéria esteja disposta no Código de Defesa do Consumidor desde

1990 e, mais recentemente, no Código Civil sua decretação não parece tão tranqüila, haja

vista a verificação da aplicação do dispositivo legal para casos concretos. É que, para a

decretação da desconsideração da personalidade jurídica, torna-se imprescindível a

observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, aliados aos princípios da

celeridade e segurança e, ainda à luz do princípio da proporcionalidade, analisando-se o caso

em concreto, tendo em vista que, a depender da medida processual adotada, poderá postergar

ou mesmo inviabilizar o ressarcimento do prejuízo causado ao demandante.

Com o fulcro de verificarmos as medidas processuais aplicáveis à desconsideração da

personalidade jurídica, analisaremos os diversos aspectos relacionados às hipóteses que

ensejam a desconsideração, partindo dos seguintes pressupostos:

• Durante o curso do processo de execução, em que reste configurado o abuso da

personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão

patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público,

pela desconsideração da pessoa jurídica, de forma que os efeitos de determinadas

relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores

ou dos sócios da pessoa jurídica? Assim o fazendo, o cerne da questão é: estaria

sendo cerceado o princípio do contraditório e da ampla defesa?

• Outra questão que não podemos deixar de considerar refere-se ao momento em que

ocorre a fraude, que pode ser preexistente ao ajuizamento da ação ou ainda

superveniente ao curso do processo, de forma a verificarmos quais os

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procedimentos processuais deverão ser adotados de forma a se preservar o devido

processo legal e o contraditório.

A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em momento apropriado, desde

que, para tanto, seja preservado o contraditório e a ampla defesa, tem o condão de permitir que a

empresa se perpetue, eis que a desconsideração é excepcional e só ocorre para o caso em comento

e permite garantir tanto a satisfação do credor (terceiro prejudicado) em tempo hábil de se ver

ressarcido do prejuízo causado pela empresa na pessoa de seus sócios ou administradores, quanto

em relação a estes, a garantia de que o processo foi eivado de lisura, atendendo assim, aos

preceitos constitucionais.

Decretação da desconsideração da personalidade jurídica por mero despacho do juiz na execução

Inicialmente analisaremos a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no

curso do processo de execução, por meio de simples despacho judicial. Tal forma é a que está

expressa no art. 50 do Código Civil, in verbis:

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela

confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público,

quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de

obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa

jurídica.

Destacamos que a desconsideração vem positivada como forma de repressão ao abuso

na utilização da personalidade jurídica das sociedades, abuso este que deve ser provado pelo

desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Temos, assim, como pressuposto

inafastável para a aplicação da disregard doctrine, o uso fraudulento ou abusivo da pessoa

jurídica que dependem de instrução probatória.

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A jurisprudência mais recente tem se posicionado no sentido de, reconhecido o abuso

ou fraude na gestão da sociedade jurídica, eis as condições para a decretação da

despersonalização da sociedade, conforme podemos auferir na decisão abaixo:

SOCIEDADE EMPRESARIAL – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA –

INADIMPLEMENTO CONTRATUAL – ATO ILÍCITO – PENHORA DE BEM DE SÓCIO

Agravo de Instrumento. Execução por título judicial. Condenação da sociedade empresária a

indenizar os danos causados a seus franqueados, em razão de ilícito contratual.

Inadimplemento voluntário e culposo do contrato ao qual aderiram os autores, em

decorrência de má-gestão do negócio e do desrespeito às cláusulas do ajuste. Sociedade

limitada simples. Responsabilidade que se origina da prática eventuais atos irregulares ou

fraudulentos. Alegação de uso abusivo da empresa. Desconsideração da personalidade

jurídica da pessoa jurídica. Teoria maior e Teoria menor. Elementos constantes dos autos que

revelam a plausibilidade jurídica das alegações dos exequentes. Sociedade empresária que é

constituída com a finalidade exclusiva de franquear determinada marca, cujas atividades

foram aparentemente paralisadas, após a rescisão dos contratos. Inexistência de patrimônio

capaz de garantir as indenizações decorrentes da condenação e capital social insignificante já

integralizado. Despersonalização da sociedade para que a constrição judicial alcance os bens

particulares do sócio majoritário e administrador, cujo nome serviu de aval à propaganda

difundida com o objetivo de captar clientela. Desnecessidade de propositura de ação

autônoma para tanto, cabendo ao Juiz, uma vez constatada a probabilidade da presença dos

pressupostos autorizadores da medida, determinar, incidentalmente, no processo de execução

(singular ou coletivo) a constrição judicial, sem que se possa alegar ofensa ao contraditório

ou ao direito de defesa. Os sócios que tenham seus bens alcançados pela desconsideração

poderá valer-se das medidas judiciais disponíveis, inclusive como terceiro prejudicado para

defender-se e ao seu patrimônio.

PROC.:0016323-71.2006.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 1ª Ementa – Des.

Fernando Cabral – Julg. 11/07/2006 – QUARTA CÂMARA CÍVEL – TJ/RJ

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Entretanto a doutrina mais conservadora, já discorda de tal posicionamento, pois Fábio

Ulhoa Coelho31 comenta a impossibilidade da desconsideração por simples despacho no

processo de execução, salientando que o juiz não pode desconsiderar a separação entre a

pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial própria. E defende o

ajuizamento de nova ação pelo credor, observando-se o procedimento cognitivo, a fim de ver

responsabilizados os sócios ou controladores pela conduta fraudulenta. Em sua teoria maior

da desconsideração, assevera que não pode o magistrado declarar a quebra do princípio da

autonomia patrimonial, em despacho no processo de execução: “A desconsideração não pode

ser decidida pelo juiz por simples despacho em processo de execução; é indispensável a

dilação probatória através do meio processual adequado.”

A título de esclarecimento, conceituamos aqui a desconsideração da personalidade

jurídica maior ou menor, conforme ensinamento de Fábio Ulhoa32, cuja diferenciação se dá

em razão do grau de aplicação da desconsideração. Na teoria maior, o credor que, no processo

de conhecimento, obtém a condenação da sociedade e, ao promover a execução, constata a

conduta fraudulenta dos sócios da pessoa jurídica, frustrando seu direito reconhecido em

juízo, eis que não possui título executivo contra o sócio ou administrador, devendo fazê-lo

para obter o título.

Assim, a efetivação da disregard decretada pelo juiz no processo de execução, tem

sido criticada por cercear o contraditório e a ampla defesa, em função do que preconiza o art.

472 do CPC: “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando

nem prejudicando terceiros.” No que tange aos limites subjetivos da coisa julgada material,

trazemos o ensinamento de Cândido Dinamarco, que afirma: “a imutabilidade dos efeitos da

31 COELHO, Fábio Ulhoa, op. cit., 2004, p. 55.

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sentença vincula somente os sujeitos que figuraram no processo e aos quais se dirigiu

aquela”.

Acrescenta o autor33 duas razões pelas quais a coisa julgada não extrapola os limites

dos sujeitos processuais: a primeira delas é a garantia constitucional do contraditório, que

ficaria maculada se um sujeito, sem ter gozado das oportunidades processuais inerentes à

condição de parte, ficasse depois impedido de repor em discussão o preceito sentencial. A

segunda consiste no desinteresse dos terceiros pelos resultados do processo, que não lhes

afetam diretamente a esfera de direitos e obrigações, cuja prática deve ser provada.

Na opinião de Elisabeth Cristina Freitas34, para a harmonização da aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica com os princípios constitucionais do contraditório

e da ampla defesa, deve-se invocar o princípio da proporcionalidade. A propósito, autora tece

o seguinte comentário:

Princípios constitucionais como do contraditório e da ampla defesa não podem ser

feridos, pois são imprescindíveis, mesmo que, em decorrência deles, o processo demore

ainda mais para ser solucionado. O conflito entre celeridade e segurança deve ser

analisado caso a caso, para que a solução encontrada seja a mais equânime possível. O

princípio da proporcionalidade deve embasar esse exame.

Devida vênia, a desconsideração da personalidade jurídica enquanto medida

excepcional, requer, para ambas as partes decisão célere, resguardando-se contudo, a

segurança jurídica.

Neste sentido temos também na jurisprudência temos alguns defensores, conforme

podemos denotar no arresto jurisprudencial abaixo transcrito, data vênia:

32 Ibidem. p.55/56 33 Op. cit., 2004, p. 317. 34 FREITAS, Elisabeth Cristina , 2002, p. 165.

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EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL – DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA – INDEFERIMENTO – E PRESSUPOSTO

INAFASTÁVEL PARA A DESPERSONALIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA

A despersonalização da pessoa jurídica não é possível no processo de conhecimento,

mas, apenas, em processo de execução. A verificação dos pressupostos necessários à

desconsideração da pessoa jurídica não pode ocorrer de forma perfunctória, por se

tratar de matéria de prova, e, consequentemente, medida excepcional. Logo, por ser

medida extrema, que sabidamente apenas opera no campo da ineficácia, a

desconsideração da personalidade jurídica há de ser fundamentado, com apoio nas

regras impostas pelo devido processo legal, sob pena de se tornar nula.

PROC.:0039116-48.1999.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 1ª Ementa – Des.

Luis Odilon Bandeira – Julg. 12/12/2000 – OITAVA CÂMARA CÍVEL – TJ/RJ

Em sentido contrário, Cristiano Chaves35, afirma a desnecessidade da citação pessoal

dos sócios, seja no processo de conhecimento ou de execução, a fim de integrar formalmente

a lide, alegando, outrossim, a total observância do devido processo legal, tendo-se em vista

que a parte supostamente responsável estaria acompanhando o trâmite processual, por meio

do escudo protetor da pessoa jurídica. Senão, vejamos: “Equivale a dizer, a parte que será

atingida pelos efeitos da sentença já estaria acompanhando, o procedimento, estando

protegida pelo manto societário, estando ciente de todo o seu andamento.”

Todavia, o autor ressalta a necessidade de que seja demonstrada a conduta fraudulenta

em processo de conhecimento, a fim de se decretar a desconsideração na fase de execução.

35 CHAVES, Cristiano, 2003, p 227.

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No entendimento de que é indispensável o prévio processo de conhecimento,

contrapondo-se, assim, ao pensamento dos autores retrocitados, trazemos a contribuição da

Min. Nancy Andrighy36, que se assim se posicionou:

(...) deve-se observar que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Este entendimento exsurge da

própria lógica conceitual inerente à formulação da da Doctrine of Disregard of Legal

Entity.

Verificados os pressupostos de sua incidência (uso abusivo da personificação societária

para fraudar a lei ou prejudicar terceiros ... poderá o Juiz, incidentalmente no próprio

processo de execução (singular ou coletiva, como in casu), levantar o véu da

personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus

sócios.

Também se contrapondo à posição de Ulhoa Coelho, quanto à necessidade de se

ajuizar ação autônoma para que se processe a desconsideração, buscamos os ensinamentos de

Gustavo Bandeira37, que defende a desconsideração da personalidade jurídica no curso do

processo de execução, por intermédio da penhora dos bens pessoais dos sócios, sem, contudo,

configurar violação ao devido processo legal, à ampla defesa ou aos princípios regentes do

processo de execução. Com efeito, a desconsideração se daria ainda na fase de execução, com

fulcro na inteligência dos arts. 568 e 592 do CPC, os quais tratam, respectivamente, da

legitimidade passiva na execução e da chamada responsabilidade patrimonial secundária.

Art. 568: São sujeitos passivos na execução:

I – o devedor, reconhecido como tal no título executivo.

Art. 592: Ficam sujeitos à execução os bens:

36 Apud BANDEIRA, Gustavo. Relativização da Pessoa Jurídica. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 149 37 Ibidem p. 138/139

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I – do sócio nos termos da lei.

Assim, temos que a execução visa a atingir aquele sujeito reconhecido como devedor

no titulo executivo. Dessa forma, na execução contra a pessoa jurídica, não obstante o sócio

não tenha participado da relação jurídica e não conste expressamente no título executivo, o

devedor pode ter seu patrimônio constrito em razão da responsabilidade que tem perante

aquela dívida. Neste entendimento, o autor busca a teoria da dualidade das obrigações,

defendida por Alois Brinz38, e que diferencia débito (Shuld) e responsabilidade (Haftung):

O débito é daquele que integra a relação jurídica e que assume a obrigação originária

dela decorrente, enquanto que a responsabilidade, além do próprio devedor, pode atingir

também terceiro que não integrou àquela relação jurídica originária e que, portanto, não

possui débito, mas somente responsabilidade.

Como exemplo clássico dessa situação, temos a relação locatário e fiador, na qual o

primeiro possui débito e responsabilidade e o segundo, responsabilidade. Não honrando o

locatário com seu débito, o fiador pode ter seu patrimônio atingido pela dívida daquele.

Bandeira ressalta que essa dicotomia, débito versus responsabilidade, no campo processual,

foi denominada por Liebman39 de “responsabilidade secundária”, a qual está prevista no art.

592 do Código de Processo Civil, já citado.

A responsabilização é denominada patrimonial secundária em razão de

atingir o patrimônio daquele que não é o devedor originário, consoante a lei, sendo

considerada qualquer legislação que consigne a imputação de responsabilidade, como ocorre

na desconsideração da personalidade jurídica, em que, verificados os pressupostos para sua

aplicação, o patrimônio dos sócios ou administradores pode responder pela dívida da

sociedade.

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Destacamos que o art. 591 do mesmo diploma legal prevê a responsabilidade

patrimonial primária, a qual atinge o devedor: “O devedor responde, para o cumprimento de

suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas

em lei.”

Assim, com fulcro no art. 592 do CPC, é possível aplicar-se a desconsideração da

personalidade jurídica no processo de execução, mesmo que a matéria não tenha sido

discutida na fase de conhecimento, requerendo, portanto, que a penhora recaia sobre os bens

do sócio ou administrador da pessoa jurídica executada. Ressalte-se que tal medida preserva o

princípio do contraditório e da ampla defesa, uma vez que o mesmo poderá se defender,

utilizando como remédio, os embargos do devedor.

Frise-se que o procedimento se dá com base na disposição contida no art. 592 de que

os bens do sócio ficam sujeitos à execução, e não pela inclusão do sócio no pólo passivo, o

que constituiria, sim, violação aos preceitos contidos no arts. 568, I, e 472 do CPC, e por

conseguinte, o devido processo legal.

Em julgado, cujos trechos abaixo transcrevemos, da 4ª Turma do STJ, o princípio da

responsabilidade patrimonial foi adotado na solução do conflito, tendo a Turma, por

unanimidade, acatado o entendimento do Relator, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira: “de que

o terceiro não constante do título executivo judicial, objeto da execução, pode ter seu

patrimônio pessoal atingido por débito do executado, sem que isso caracterize qualquer

violação ao devido processo legal ou à coisa julgada.”40 Importante frisar que, julgando

agravo de instrumento no mesmo processo, a Min. Nancy Andrighy defendeu a tese da

dualidade – débito e responsabilidade, posteriormente, também esposada pelo e. Relator.

38 Apud BANDEIRA, Gustavo. Relativização da Pessoa Jurídica. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 139 39 Ibidem.

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I - O princípio da responsabilidade patrimonial, no processo de execução origina-se da

distinção entre débito (Shuld) e responsabilidade (Haftung), admitindo a sujeição dos

bens de terceiro à excussão judicial, nos limites da previsão legal.

II – A responsabilidade pelo pagamento do débito pode recair sobre devedores não

incluídos no título judicial exeqüendo e não participantes da relação processual de

conhecimento, considerando os critérios previstos no art. 592, CPC, sem que haja, com

isso, ofensa à coisa julgada.

III – O processo de conhecimento e o de execução têm autonomia, cada qual com seus

pressupostos de existência e validade. Enquanto no primeiro se apura a obrigação, no

segundo se permite ao credor exigir a satisfação do seu direito.

Comentamos: o acórdão supracitado, muito embora não houvesse sido suscitada

qualquer hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, laborou no sentido de que a

teoria da desconsideração da personalidade jurídica caracteriza também, hipótese de

responsabilidade secundária patrimonial do sócio, permitindo, portanto, a penhora de bens

pessoais dos sócios ou administradores em decorrência de dívidas da sociedade.

A disregard doctrine não envolve a anulação da personalidade jurídica, em toda a

extensão, mas a sua mitigação, em casos concretos, ante a ocorrência de fraude contra

o direito dos credores ou abuso de direito. É o que se extrai do trabalho, pioneiro entre

nós de Rubens Requião... Mais de duas décadas após a elaboração deste trabalho, a

desconsideração veio a incorporar-se no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 28 do

CDC (Lei 8.078/90). Por um lado, é certo que essa doutrina não se aplica à espécie,

seja porque não se cogitou de fraude, nem de abuso de direito, seja por não se tratar de

relação de consumo. De outro lado, contudo, exemplifica a ampliação da

responsabilidade patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de proteger o credor

contra eventuais abusos e/ou ofensas ao sistema jurídico, perpetrados por pessoas

jurídicas. Ou em situações anômalas, retratadas na multifária riqueza da vida.

40 Ibidem p.144

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Por oportuno, trazemos à baila, a doutrina de Araken Assis41 que, no mesmo sentido,

trata acerca da responsabilidade patrimonial primária e secundária:

Responsabilidade patrimonial primária e secundária – Tanto que contraída a dívida, o

obrigado expõe seu patrimônio aos meios executórios, como natural conseqüência do

princípio da responsabilidade patrimonial. Neste caso, o executado é, a um só tempo,

obrigado e responsável. Designa-se esta regra geral de responsabilidade primária.

No entanto, além do obrigado, outras pessoas físicas ou jurídicas, e seus respectivos

patrimônios, se sujeitam, eventualmente, à operação dos meios executórios. Isto

constitui simples desdobramento da dissociação entre responsabilidade e obrigação.

Embora ambas, em geral, coincidam subjetivamente, não se afigura incomum a

hipótese de a Lei atribuir a pessoas diversas do obrigado responsabilidade pelo

cumprimento da obrigação.

A posição defendida por Fábio Ulhoa, se mostra por demais conservadora, criando

entraves para que seja aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que para

aquele autor, a desconsideração dependerá sempre, da ocorrência de ação autônoma com tal

finalidade.

Entendemos, dessa forma, que a solução que adota a teoria do débito e

responsabilidade defendida por Bandeira - consoante a teoria de Brinz - na qual se aplica a

disposição contida no art. 592, para que se proceda a constrição do patrimônio de sócio ou

administrador, cuja sociedade, verificados os pressupostos desconsiderantes, mostra-se

salutar como medida processual na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

41 Ibidem, p. 145

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Ademais, tal procedimento atende aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal e

impende a celeridade requerida à disregard doctrine.

Destaque-se que o mencionado rito, prevê, em sede de embargos do devedor, que o

sócio ou administrador possa exercer seus direitos constitucionais do contraditório e ampla

defesa, sem prejuízo do devido processo legal, podendo assim, discutir a matéria que envolve

os pressupostos da desconsideração (fraude ou abuso de direito) e defender seu patrimônio.

A Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de

Defesa do Consumidor

Analisando as disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que o

legislador, ao demonstrar preocupação na defesa dos direitos do consumidor, introduziu a

desconsideração da pessoa jurídica no art. 28, que tem nesse dispositivo a garantia de que o

patrimônio, daqueles que possam ser beneficiados com o ato danoso praticado na relação de

consumo, poderá ser afetado. Este artigo reflete a pura teoria da desconsideração, que se afasta da

autonomia patrimonial até que se obtenha a inteira satisfação do dano sofrido e reclamado numa

relação de consumo, subsistindo a pessoa jurídica para os demais atos.

Destaque-se aqui a segunda parte do art. 28, que estabelece a possibilidade de

desconsideração nos casos de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da

pessoa jurídica, quando provocados por má administração, cujo ônus da prova recairia sobre o

consumidor, não obstante a regra do art. 6º, VIII do CDC, que trata da inversão do ônus da prova,

mas cujo convencimento do juiz para a aplicação da desconsideração, requer a prova por parte do

consumidor de que tenha ocorrido uma das hipóteses para a desconsideração, o que para o caso de

má administração, por tratar-se de um conceito abstrato. É, todavia, de difícil demonstração.

Podemos salientar que as hipóteses de desconsideração relacionadas à falência e estado de

insolvência foram muito criticadas por não corresponderem aos motivos previstos pela disregard

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doctrine, mas sim aos casos de responsabilidade dos sócios, gerentes e administradores. Deveriam,

pois, estar relacionados à Lei das Sociedades Anônimas ou das Sociedades Limitadas e seriam

solucionadas por medidas propostas pela teoria dos atos próprios, adotadas pelas leis que regulam

as diversas espécies de sociedades, ou pela teoria do Ultra Vires, excesso e desvio de poder. Vale

destacar que o Código do Consumidor priorizou o aspecto do pólo ativo das ações, deixando de

tratar da legitimidade passiva, quando necessária a desconsideração da personalidade jurídica.

Verificando a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, disposta no § 5º do

art. 28 do CDC, temos: “poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica sempre que sua

personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos

consumidores”. Da simples leitura do mencionado artigo, levantamos as seguintes questões: a

aplicação da desconsideração, conforme preconiza o § 5º, permite que se afastem os princípios

constitucionais da ampla defesa e do contraditório e, ainda, a disposição contida no art. 472, do

Código de Processo Civil?

Em estudo elaborado por Flávia Guimarães42, a resposta é negativa, chegando ela a tal

conclusão por meio de interpretação sistemática e finalística, na qual confrontou os principais

dispositivos legais relativos à pessoa jurídica, dispositivos estes que atribuem obrigações para os

responsáveis pelos atos lesivos; e, ainda, àqueles de natureza processual, que visam a garantir os

princípios constitucionais (ampla defesa e due process of law). Além disso, na busca da

harmonização entre as disposições do art. 4º e seus incisos, do Código de Defesa do Consumidor,

e o Código Civil.

Analogamente, foi também considerada a legislação trabalhista que, assim como a

consumerista, busca a proteção da parte mais fraca da relação jurídica, chegando ela, assim, ao

seguinte entendimento: “a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser aplicada de

forma irrestrita e sem medida, mesmo que em nome da garantia do direito da parte mais frágil na

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relação de consumo, devendo ser respeitados os princípios da ampla defesa e o limite do alcance

da coisa julgada.” Em sua análise, considera que o consumidor deve buscar, no momento de

ajuizar a ação, nos órgãos públicos competentes, documentos relativos à pessoa jurídica contra a

qual pretende litigar, de forma a vincular os possíveis responsáveis ao resultado da sentença,

utilizando-se para tanto dos institutos processuais que regulam o litisconsórcio, de forma a

alcançar a segurança jurídica do processo.

Tal medida, porém, não se mostra razoável, sendo um tanto tortuosa ao consumidor que,

além de já estar lesado pela ação ou omissão daquela pessoa jurídica, ainda tem o ônus de

peregrinar pelos órgãos competentes em busca dos possíveis responsáveis pela pessoa jurídica.

Ademais, nos dias de hoje, em que estamos diante de toda sorte de agrupamento societário, fusões,

cisões, incorporações, holdings, situações estas em que a matriz se encontra inclusive fora do

território nacional, é difícil ao consumidor a indicação dos eventuais responsáveis.

No entendimento de Fábio Ulhoa43, quando verificada a insolvência da empresa, a

melhor medida é aquele que o autor denominou de “teoria menor da desconsideração”, cujo

requisito principal é a insatisfação do crédito, conforme podemos observar nas palavras do

próprio autor:

Para os juízes que adotam a teoria menor da desconsideração, como o desprezo da forma da

pessoa jurídica depende, para eles, apenas da insolvabilidade desta, ou seja, da mera

insatisfação de crédito perante ela titularizado, a discussão dos aspectos processuais, é por

evidente, mais simplista. Por despacho no processo de execução, esses juízes determinam a

penhora de bens de sócio ou administrador e consideram os eventuais embargos de terceiro o

local apropriado para apreciar a defesa deste. Como não participaram da lide durante o

processo de conhecimento e não podem rediscutir a matéria alcançada pela coisa julgada,

acabam os embargantes sendo responsabilizados sem o devido processo legal, em claro

desrespeito aos seus direitos subjetivos constitucionais.

42 GUIMARÃES, Flávia Lefèvre. Op. cit, pg. 148

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Para Ulhoa Coelho, qualquer que seja o pressuposto para desconsideração da

personalidade jurídica, sua aplicação deve ser dar por meio de processo de conhecimento. A

crítica a essa teoria firma-se na ofensa ao devido processo legal, uma vez que verificada a

insuficiência patrimonial da sociedade no processo de execução, o magistrado, por via de

conseqüência, determina a penhora de bens do patrimônio dos sócios, que não figuraram no

antecedente processo de conhecimento.

Buscamos mais, uma vez, no ensinamento de Bandeira, in casu, em que a discussão

acerca da pertinência da medida excepcional, incidirá no âmbito dos embargos à execução ou

de terceiros, o que acarretará a inversão do ônus da prova, cabendo aos sócios, e não ao

demandante, demonstrar a inexistência dos requisitos da desconsideração.

Outra crítica considera o momento inapropriado para o exame da disregard, uma vez

que, pela própria natureza de ambas as ações, não permite o extenso debate acerca da matéria.

Evidencia-se a flagrante ofensa aos consagrados princípios constitucionais do contraditório e

ampla defesa, uma vez que os sócios não teriam a oportunidade de impugnar amplamente a

medida no processo, impossibilitado de trazer todos os elementos, diga-se provas, em prol de

suas defesas.

Para que sejam penhorados bens da pessoa física, enquanto sócia de pessoa jurídica, é

preciso primeiro desconsiderar a personalidade jurídica, atendidos os seus pressupostos,

em procedimento à luz do contraditório judicial.(2ªTACivSP, Ag. De Instru. Nº

688.209-00/2, 10ª Câm., Rel. Juiz Marcos Martins, 27/06/2001)

Aduz, ainda, Fábio Ulhoa que, para a situação em comento, se o juiz aplicar a teoria

menor da desconsideração, não pode, todavia, simplesmente dispensar o prévio título

43 ULHOA, Fábio, op. Cit. p. 56

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executivo judicial, para fins de tornar efetivo qualquer tipo de responsabilidade contra sócio

ou administrador de sociedade empresária.

Entretanto, nos parece que o CDC busca a proteção da pessoa do consumidor, tal qual

instituiu a Constituição Federal, e o julgado abaixo nos parece a perfeita interpretação do

Código de Defesa do Consumidor face a despersonalização da pessoa jurídica. Vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO EXTRAJUDICIAL –

DECISÃO DE 1º GRAU QUE INDEFERE O PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE DA PESSOA JURÍDICA – FALÊNCIA DO DEVEDOR – RELAÇÃO DE

CONSUMO – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 28, CAPUT E §5º DA LEI 8.078/90(CDC)

TEORIA MAIOR(SUBJETIA) E TEORIA MENOR(OBJETIA)

Situação que se amolda à disposição do §5º do art. 28 do CDC, que positiva a teoria menor da

despersonalização. Dispensa da proa da utilização fraudulenta da pessoa jurídica, exigindo-

se tão-somente a comprovação do efetivo obstáculo ao ressarcimento de prejuízos do

consumidor. Proteção do vulnerável. Princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Decisão

agravada que se reforma. Agravo provido. 1ª Ementa – Des. Fernando Cabral – Julg.

11/07/2006 – QUARTA CÂMARA CÍVEL – TJ/RJ

PROC.:0034637-94.2008.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 1ª Ementa – Des.

Cristina Tereza Gaulia – Julg. 07/04/2009 –DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL – TJ/RJ

C O N C L U S Ã O

O desenvolvimento da sociedade industrial e comercial, em que a polarização de

atividades, intencionando obter ganhos em produtividade e qualidade, resultou na agregação

de pessoas ou de patrimônios em busca de um fim comum, provocando no Direito a criação

do instituto da pessoa jurídica, com vida própria e distinta dos seus membros, capaz de

exercer direitos e obrigações.

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As pessoas jurídicas, conforme o interesse a que visavam, seja o interesse coletivo ou

entre particulares, classificam-se em pessoas jurídicas de direito público e de direito privado.

O trabalho restringiu-se à análise da pessoa jurídica de direito privado, por ser esta o objeto da

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, particularmente das sociedades

empresárias, que são aquelas estruturadas de forma empresarial, reunindo os elementos

fundamentais de uma empresa, consubstanciados na atividade econômica organizada.

Destacamos que, com o surgimento e expansão dos grupos econômicos, ocorre a

criação de empresas subordinadas entre si, como é o caso das subsidiárias, controladoras,

holdings etc. e, a partir daí, também se verifica a utilização da pessoa jurídica para fim

distinto daquele previsto pelo legislador, quando concedeu à pessoa jurídica a prerrogativa da

separação patrimonial.

Frisamos que, em algumas situações, a pessoa jurídica transformou-se em mera

fachada, servindo de meio para que seus controladores agissem, desviando a finalidade para a

qual foi criada. Na busca de obstruir essa prática, observado o princípio segundo o qual o

abuso de um instituto não pode ser tutelado pelo ordenamento jurídico, surge a Teoria da

Desconsideração da Personalidade Jurídica, como vimos nos casos Salomon versus. Salomon

& Co, Banco e Deveux, dentre outros. Não se pode dogmatizar, todavia, a separação

patrimonial sob o risco de permitir o uso da legislação contra a sociedade e em proveito ilícito

dos sócios e administradores, requerendo, portanto, que o direito se previna de instrumentos

contra tais atos.

A desconsideração da personalidade jurídica constitui-se, assim, em medida

excepcional e possui aplicação restrita, que deve ser aplicada quando do uso de forma

fraudulenta da pessoa jurídica, permitindo que, analisando-se o caso em concreto, o

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Magistrado possa autorizar o avanço sobre a delimitação da fronteira que separa a pessoa

jurídica da pessoa física de seus sócios ou administradores, sancionando o desvio da função e

o abuso de direito.

Salientamos que a desconsideração não nega a existência da personalidade jurídica

nem a distinção e a separação entre o patrimônio desta e o dos sócios, mas despreza e supera

tais conceitos se a pessoa jurídica for usada como escudo, bloqueando a responsabilidade civil

por ato ilícito, prática de fraudes, abuso de poder ou patrimonial. Para a aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica devem ser observados alguns pressupostos. O

primeiro é que deve ser usada em casos de má gestão ou responsabilização dos

administradores que exerceram suas atividades com excesso de poder, contrários à lei ou ao

contrato social, havendo o ordenamento pátrio legislação específica para tais casos, sendo

assim, incabível o uso da desconsideração da personalidade jurídica.

O segundo pressuposto, decorre da incompatibilidade entre o comportamento da

pessoa jurídica e a sua finalidade primordial, o denominado desvio de função, ou seja, a

utilização da forma da pessoa jurídica acompanhada de um elemento subjetivo (intenção de

fraude à lei), pois sem a sua utilização, os fins pretendidos não seriam alcançados ou se o

fossem, seriam considerados ilícitos.

Outro pressuposto para o uso da desconsideração da personalidade jurídica é o abuso

de direito. Entendemos por abuso de direito o uso regular de um direito, porém, com intenção

divergente daquela para o qual foi criado. Tais condições que autorizam a aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica não devem ser tomadas isoladamente, mas de

forma a se complementarem. Se o ponto de partida foi o abuso do direito, ela deve basear-se

também no desvio da função.

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Os atributos necessários para o uso da desconsideração da personalidade jurídica, além

de ressaltar seu caráter de exceção, demonstram também a preocupação com a existência e

sobrevivência da personalidade jurídica. A desconsideração não visa a dissolução da pessoa

jurídica, pelo contrário, uma de suas finalidades é justamente a manutenção dela.

Assim, encontrados pressupostos suficientes para a efetivação da desconsideração em

um caso em particular, a sua efetivação produzirá efeitos somente para aquela situação de

fato. Todavia, mantém-se a personalidade para os demais atos, eis que a desconsideração tem

como base a resolução do ilícito sem que se desfaça a pessoa jurídica.

No direito pátrio verifica-se a previsão normativa para a desconsideração da

personalidade jurídica nos seguintes instrumentos legais: art. 28 da Lei 8.078/90 , Código de

Defesa do Consumidor, art. 50 do novo Código Civil, Lei Antitruste, Lei Ambiental, art. 2º, §

2º da Consolidação das Leis do trabalho,

Em apreciação à jurisprudência nacional, concernente à aplicação da desconsideração

da personalidade jurídica no direito brasileiro, que pertence ao ramo latino-germânico do

direito, o uso da desconsideração da personalidade jurídica exige fundamentação legal.

Assim, quando verificado que os sócios ou administradores se valem dos instrumentos legais

para infligir a própria lei, faz-se necessária a respectiva adequação jurídica, de forma

harmoniosa.

Um tópico à parte foi reservado para tratar da desconsideração da personalidade

jurídica no Código de Defesa do Consumidor, cuja previsão no art. 28, foi o primeiro ato

normativo a dispor expressamente acerca da desconsideração da personalidade jurídica na

legislação brasileira. Todavia, percebe-se nesse dispositivo uma grande confusão juntamente

com um distanciamento enorme da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

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Destaque-se que sua utilização é tão abrangente no caso de ressarcimento do

consumidor, que as limitações, bem como as especificações que autorizam o seu uso, tornam-

se irrelevantes. Há uma inversão da desconsideração da personalidade jurídica, passando-a de

exceção à regra. Ademais, não é a impossibilidade de ressarcimento que motiva a

desconsideração, mas a extrapolação do objeto social ou o ocultamento da conduta ilícita ou

abusiva.

O ponto basilar do presente trabalhou pretendeu verificar qual o momento processual

adequado para a desconsideração da personalidade jurídica, demonstrando assim, os aspectos

processuais para a sua efetivação, atendendo-se ao princípio constitucional do contraditório e

da legítima defesa.

O estudo prendeu-se apenas às sociedades empresárias e baseou-se em três hipóteses,

a saber:

1 - Na aplicação da desconsideração por mero despacho do juiz, não pode o doutrinador

olvidar-se do fato de que sócios e a pessoa jurídica, são pessoas autônomas, dotadas de

personalidade jurídica própria, vindo a titularizar direitos e obrigações na esfera jurídica. Data

vênia, a desconsideração nesta fase, infringe não apenas o processo legal, mas também o valor

constitucional da personalização.

2 - Com relação à hipótese de decretação da disregard por mero despacho na fase executória,

aliando-se à teoria da dualidade das obrigações - defendida por Brinz, e entre nós, Araken de

Assis - cujo princípio repousa na distinção entre débito e responsabilidade, demonstra-se ser a

mais plausível, acolhendo as garantias constitucionais do contraditório e do devido processo

legal.

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3 – O condicionamento da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica por meio

de ação autônoma, requerendo decisão em processo de conhecimento, mostra-se inoperante,

haja vista a eficiência e efetividade requeridas, quando da aplicação da doutrina.

Não obstante, entendemos ser passível de aplicação o rito processual que invoca a tese

do litisconsórcio facultativo eventual, para que se inclua já no início da demanda os sócios da

empresa, possíveis responsáveis pela insolvabilidade da pessoa jurídica, os quais já estariam

submetidos à aplicação da disregard, observando, portanto, o devido processo legal. Todavia,

tal procedimento, além de imputar um ônus a mais ao autor, na indicação dos supostos

responsáveis, também não impulsiona o processo com a agilidade e eficiência requerida para

que se opere a desconsideração.

A tese ora esposada não se esgota em si mesma, uma vez que a matéria carece de

legislação e está sendo construída paulatinamente pela doutrina e jurisprudência, de forma que

esperamos que o presente trabalho possa contribuir na disseminação da aplicação da

despersonalização da pessoa jurídica, observados os princípios da ampla defesa e do

contraditório.

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