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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Rodrigo Martins Da Silva A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO: DOGMÁTICA E ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE

SÃO PAULO – PUC/SP

Rodrigo Martins Da Silva

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO

DIREITO TRIBUTÁRIO: DOGMÁTICA E ANÁLISE DA

JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE

SÃO PAULO – PUC/SP

Rodrigo Martins Da Silva

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO

DIREITO TRIBUTÁRIO: DOGMÁTICA E ANÁLISE DA

JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em

Direito Tributário, sob a orientação

da Professora Doutora Julcira Maria

De Mello Vianna.

SÃO PAULO

2015

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Banca Examinadora

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DEDICATÓRIA

À minha amada esposa Keilla,

incansável motivadora.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente à minha orientadora, Professora Julcira Maria De Mello

Vianna, pela rápida acolhida, orientação e pela confiança depositada no

decorrer da elaboração deste trabalho.

Também agradeço enormemente ao Professor Renato Lopes Becho, de quem

tive a honra de ser aluno e que muito me ensinou, com suas palavras e com

seu exemplo, sobre o direito tributário e a carreira docente.

Agradeço, ainda, à Professora Renata Elaine Silva, com quem iniciei o estudo

aprofundado do direito tributário e que me conduziu para a academia e para a

docência.

Preciso agradecer, também, a toda a fiscalização tributária do Município de

São Bernardo do Campo, da qual fiz parte por 8 anos e que também muito me

ensinou.

Da mesma forma, agradeço aos atuais colegas de trabalho, com quem

aprendo, todos os dias, o ofício de ser advogado.

E por fim, agradeço aos meus queridos alunos, pessoas que mais me ensinam

sobre o direito, a docência e a vida.

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO

DIREITO TRIBUTÁRIO: DOGMÁTICA E ANÁLISE DA

JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Rodrigo Martins da Silva

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de aplicação

da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

Partindo de definições básicas, visa demonstrar os principais aspectos e

fundamentos dessa teoria para aplicá-los e testá-los no subsistema do direito

tributário, considerando, para tanto, as particularidades materiais e

processuais desse subsistema. Concluindo pela possibilidade de aplicação

da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário,

após analisar e conjugar diferentes entendimentos doutrinários e

jurisprudenciais sobre o tema, visa oferecer, por fim, uma análise crítica e

comparativa entre a desconsideração da personalidade jurídica e institutos

semelhantes. É um trabalho multidisciplinar, que agrega institutos e

conceitos doutrinários pertencentes a diversos subsistemas do direito, como

o civil, comercial, empresarial, processual e, principalmente, o tributário,

confrontando-os com decisões dos tribunais brasileiros, principalmente os

superiores.

Palavras-chave: personalidade jurídica, desconsideração, direito tributário,

doutrina, jurisprudência.

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LIFTING OF THE CORPORATE VEIL IN THE

TAX LAW: DOCTRINES AND ANALYSIS

OF THE BRAZILIAN JURISPRUDENCE

Rodrigo Martins da Silva

ABSTRACT

This paper intends to analyse the possibility of applying the lifting of the

corporate veil theory to the tax Law. Starting at the basic definitions, the paper‟s

objective is to demonstrate the main aspects and fundaments of this theory in

order to apply and test them in the subsystem of tax Law, considering its

material and procedural particularities. Concluding that it is possible to apply the

lifting of the corporate veil to the tax Law, after analysing and conjugating

various doctrinaire and jurisdictional understandings, this paper finally aims at

offering a critical and comparative analysis between the lifting of the corporate

veil and similar institutions. It constitutes a multidisciplinary paper that

aggregates institutions and doctrinaire concepts belonging to various Law

subsystems, such as the civil, the commercial, the procedural, and mainly, the

tax Law, confronting them with decisions taken by Brazilian courts, specially the

Superior Court of Justice.

Keywords: corporate veil, lifting, tax Law, doctrine, jurisprudence.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA ................................................................................................... 4

AGRADECIMENTOS ......................................................................................... 5

RESUMO ............................................................................................................ 6

ABSTRACT ........................................................................................................ 7

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

1 DEFINIÇÕES FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA .............................. 13

1.1 A empresa ............................................................................................................ 13

1.2 O empresário ....................................................................................................... 14

1.3 O sócio ................................................................................................................. 15

1.4 O administrador ................................................................................................... 17

1.5 A pessoa jurídica .................................................................................................. 19

1.6 O início da personalidade jurídica ....................................................................... 20

1.7 O princípio da autonomia patrimonial ................................................................ 21

1.7.1 Os tipos societários alcançados pelo princípio ................................................. 24

2 ASPECTOS GERAIS ACERCA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ......................................................................... 26

2.1 Definição .............................................................................................................. 27

2.2 Origem ................................................................................................................. 30

2.3 A recepção brasileira da teoria ............................................................................ 32

2.4 A positivação no direito brasileiro ....................................................................... 36

2.5 O artigo 50 do Código Civil: cláusula geral do sistema jurídico ........................... 40

2.6 Os pressupostos legais de aplicação .................................................................... 42

2.6.1 O desvio de finalidade ....................................................................................... 51

2.6.2 A confusão patrimonial ..................................................................................... 55

2.7 Os pressupostos são exemplificativos? ............................................................... 58

2.8 As duas teorias brasileiras: a teoria maior e a teoria menor .............................. 60

2.9 A natureza jurídica do vínculo obrigacional ......................................................... 64

2.10 Os limites subjetivos e objetivos da desconsideração ...................................... 67

2.11 A desconsideração inversa ................................................................................ 76

3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO .................................................................................................... 80

3.1 Os diferentes entendimentos sobre o tema ....................................................... 80

3.2 A natureza não negocial do crédito tributário como fundamento legitimador da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica .......................................... 87

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3.3 O prazo para requerer a desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário ..................................................................................................................... 90

3.4 Desconsideração, grupos econômicos e as obrigações tributárias ................... 104

3.5 Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário ................................................................................................................... 120

3.5.1 O devido processo legal .................................................................................. 120

3.5.2 A reserva de jurisdição .................................................................................... 132

3.5.3 O instrumento processual apropriado ............................................................. 136

3.5.3.1 A desconsideração em execução fiscal ........................................................ 139

3.5.3.2 A desconsideração em cautelar fiscal .......................................................... 147

4 DIFERENÇAS ENTRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SÓCIO OU ADMINISTRADOR ......................................................................................... 150

4.1 Quanto à natureza do vínculo obrigacional ...................................................... 154

4.2 Quanto aos pressupostos de aplicação ............................................................. 155

4.3 Quanto aos limites objetivos ............................................................................. 160

CONCLUSÃO ................................................................................................. 163

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 167

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10

INTRODUÇÃO

Há tempos, as questões referentes à responsabilização (essa palavra

está sendo aqui empregada em sentido amplo, isto é, referindo-se a todas as

relações obrigacionais em que figura, no polo ativo da relação, o Estado-fisco)

por débitos tributários vêm despertando especial interesse dos estudiosos e

aplicadores do direito.

Um dos interessantes temas acerca dessa responsabilização (em

sentido amplo) é a discussão doutrinária em torno da possibilidade de

aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito

tributário. Essa questão tem fomentado elevadíssimos debates teóricos,

principalmente diante das diversas decisões judiciais em matéria tributária que

têm sido proferidas aparentemente fundamentadas nessa teoria.

Objetiva-se, assim, com o presente estudo, investigar se a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica é compatível com as obrigações de

direito tributário. A depender das primeiras conclusões, objetiva-se investigar,

também, como tal teoria pode ser aplicada, traçando, para isso, seus principais

contornos, pressupostos e limites de aplicação.

Com vistas a elucidar aparentes imprecisões, também analisaremos as

diferenças existentes entre a desconsideração da personalidade jurídica no

direito tributário e outros institutos que, apesar de também implicarem na

responsabilização (em sentido amplo) patrimonial de terceiros, com ela não se

confundem.

Analisaremos, dessa forma, inicialmente, algumas definições

fundamentais à compreensão do tema, como a de empresa, empresário, sócio,

administrador, pessoa jurídica, personalidade jurídica e separação patrimonial,

já que tais categorias serão mencionadas no decorrer de toda a construção do

trabalho. Além de estabelecer premissas acerca do que se entende acerca de

tais institutos, a exposição dessas definições permitirá a melhor compreensão

do nosso raciocínio.

Somente após, partiremos para o estudo da desconsideração da

personalidade jurídica em si, investigando sua origem, definição, evolução,

teorias, recepção pela doutrina e pela jurisprudência brasileira e a sua

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positivação em diversos diplomas normativos, com especial destaque para o

artigo 50 do Código Civil, considerado cláusula geral do direito.

Evidenciaremos, em seguida, os seus pressupostos, os limites objetivos

e subjetivos de sua aplicação e, principalmente, a natureza do vínculo

obrigacional estabelecido entre o credor e aqueles sobre quem recaem os

efeitos patrimoniais decorrentes da aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica.

Depois de traçado esse panorama, enfrentaremos a problemática central

eleita no presente trabalho: há possibilidade jurídica de aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário? Em busca de

respostas, analisaremos as principais correntes doutrinárias sobre o assunto,

perpassando a análise da natureza não negocial do crédito tributário, o que é

fundamental à compreensão da matéria.

Investigaremos, em seguida, a natureza do prazo – e o próprio prazo –

para requerer a desconsideração da personalidade jurídica em direito tributário,

bem como a questão da desconsideração nos grupos empresariais.

Por sua máxima importância à matéria, as questões processuais

envolvidas também serão devidamente analisadas quanto aos aspectos mais

polêmicos, como a necessidade de se contemplar o devido processo legal e a

reserva de jurisdição a que se submete o instituto, bem como os instrumentos

processuais adequados para se promover a desconsideração da personalidade

jurídica no direito tributário.

Por fim, serão analisadas as diferenças entre a desconsideração da

personalidade jurídica e a responsabilidade tributária prevista no inciso III do

artigo 135 do Código Tributário Nacional, cotejando-se os elementos

caracterizadores da distinção.

Como o direito possui inquestionável caráter sistemático, a pesquisa

será marcada pela interdisciplinaridade, com a tentativa de se congregar

institutos pertencentes a diferentes subsistemas do direito, como o do direito

civil, empresarial, comercial e especialmente o tributário, assim como fazem

nossos tribunais ao analisar e decidir um caso concreto.

A análise crítica da jurisprudência também será uma constante no

presente trabalho, mediante a comparação do quanto decidido pelos nossos

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tribunais, especialmente os superiores, com os ensinamentos doutrinários

sobre a matéria.

Certamente não se pretende, com este breve estudo, esgotar todas as

possibilidades de análise do tema. A afirmação pode parecer um clichê, mas,

apesar dos mais que cinquenta anos da publicação do Código Tributário

Nacional e dos mais que sessenta anos das primeiras decisões judiciais

brasileiras que aplicaram a teoria da desconsideração da personalidade

jurídica, a doutrina e a jurisprudência nacional ainda não consolidaram um

entendimento coerente e pacífico acerca da desconsideração no âmbito do

direito tributário. Ademais, o direito é marcado pela magia de sempre deixar a

“porta aberta” para outras infinitas reflexões.

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1 DEFINIÇÕES FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Como o presente trabalho tem por finalidade analisar a aplicabilidade –

ou não – da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito

tributário, delimitando seus eventuais contornos e limites, com a intenção

precípua de oferecer uma análise crítica da doutrina e da jurisprudência

dominante nos tribunais brasileiros, mormente os superiores, entendemos ser

imprescindível expor algumas definições fundamentais de institutos jurídicos

que serão exaustivamente mencionados em nossas ponderações. Além de

estabelecer premissas, a exposição dessas definições auxiliará o

desenvolvimento e a compreensão do nosso raciocínio.

1.1 A empresa

A empresa é um instituto intrinsecamente multidisciplinar, pois é

composta por fatores econômicos, sociais e jurídicos que resultam em uma

organização econômico-social de fatores de produção. De acordo com Rubens

Requião (2013, p. 85), a empresa é uma realidade abstrata, na medida em que

se realiza como o conjunto organizado de fatores de produção, postos para

funcionar por um empresário.

Após ter realizado amplo estudo sobre o tema, Maria Rita Ferragut

(2013, p. 2) também explica a empresa como uma atividade econômica

organizada, acrescentando, ainda, que tal atividade visa a obtenção de lucro

mediante o oferecimento, ao mercado, de bens e serviços gerados a partir da

organização de fatores de produção, tais como força de trabalho, matéria-

prima, capital e tecnologia.

Logo, a empresa pode ser resumidamente definida como o exercício de

uma atividade organizada dos fatores de produção, congregados por um

empresário. É possível depreender, assim, que o desaparecimento do exercício

da atividade organizada implica no desaparecimento da própria empresa.

A referida autora adverte, porém, que a definição em destaque não é

unânime na doutrina, pois alguns doutrinadores definem empresa como

sinônimo de pessoa jurídica, estabelecimento, empreendimento, instituição,

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etc. (FERRAGUT, 2013, p. 2). Ela explica, logo em seguida, que a divergência

é justificada na medida em que o Código Civil, nas raras referências que faz à

empresa, trata-a tanto como estabelecimento (artigo 978) quanto como pessoa

jurídica (artigo 1.172).

Em que pese a polissemia do termo, faremos como fez a autora em

questão: adotaremos a definição acima proposta, de empresa como atividade

organizada de fatores de produção, pois tal definição coaduna-se perfeitamente

com o nosso trabalho. Considerando, assim, que empresa é uma atividade,

torna-se necessário estudar, então, o executor dessa atividade: o empresário.

1.2 O empresário

O artigo 966 do Código Civil prescreve que “Considera-se empresário

quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a

produção ou a circulação de bens ou de serviços.” Empresário, portanto, é

quem toma a iniciativa de organizar a atividade econômica de produção ou

circulação de bens ou serviços, isto é, a empresa, constituindo, assim, o seu

elemento subjetivo.

Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 123) destaca, com o senso crítico que lhe

é peculiar, que, em diversas referências, o direito positivo brasileiro ainda

organiza a disciplina normativa da atividade empresarial a partir de uma pessoa

física, mas que a figura do empresário pode ser tanto uma pessoa física, que

emprega seus recursos e organiza a empresa individualmente, quanto uma

pessoa jurídica, nascida da união de esforços de seus integrantes.

Apesar da obviedade dessa afirmação, às vezes deixamos de considerar

que o empresário, figura que exerce a atividade organizada de produção ou

circulação de bens ou serviços, pode ser uma pessoa física ou uma pessoa

jurídica. Quando a atividade econômica de produção ou circulação de bens ou

serviços for organizada por uma pessoa natural, dá-se a ela o nome de

empresário individual, e quando for organizada por uma pessoa jurídica, dá-se

a ela o nome de sociedade empresária, conforme nos ensina Fábio Ulhoa

Coelho (2012, p. 123):

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A empresa pode ser explorada por uma pessoa física ou

jurídica. No primeiro caso, o exercente da atividade econômica

se chama empresário individual; no segundo, sociedade

empresária. Como é a pessoa jurídica que explora a atividade

empresarial, não é correto chamar de “empresário” o sócio da

sociedade empresária.

Ocorre que o legislador frequentemente considera a pessoa física como

o núcleo conceitual das normas sobre a atividade empresarial. Acaba dando

ensejo, por isso, a confusões entre a figura do empresário pessoa jurídica e a

figura dos sócios que a compõem, como se empresário fosse sinônimo de

sócio.

De fato, enquanto a pessoa jurídica empresária é constantemente

chamada de empresa (expressão essa que, tecnicamente, corresponde à

atividade), os seus sócios são frequentemente chamados de empresários

(expressão essa que corresponde, por sua vez, à pessoa física ou jurídica

exercente daquela atividade).

Contudo, empresa é atividade, e não a pessoa que a explora, e

empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas a própria sociedade,

conforme nos ensina Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 123). Empresa, empresário

e sócio são, pois, institutos jurídicos totalmente distintos, e não trazem em si,

tecnicamente, o significado de seus usos correntes.

1.3 O sócio

Sócio é a pessoa física ou jurídica que integra uma sociedade empresária

mediante sua participação na formação do respectivo capital social. Todos os

tipos societários admitem sócios na formação da sociedade, exceto a

sociedade por ações (os tipos societários, dos quais a sociedade por ações é

espécie, serão analisados adiante).

Partindo do pressuposto já firmado, de que o sócio (integrante de uma

sociedade empresária) não é o empresário (na acepção técnica do termo), é

possível concluir que ele – o sócio – não está sujeito às normas jurídicas que

definem os direitos e deveres da sociedade empresária.

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Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 124) destaca que o direito positivo

certamente disciplina as relações jurídicas do sócio, garantindo-lhe direitos e

imputando-lhe responsabilidades em razão da exploração da atividade

empresarial pela sociedade de que faz parte (com isso, destaca que a atividade

é exercida pela sociedade empresária, e não pelo sócio). Tais relações são,

contudo, as mesmas que a legislação atribui ao empresário (enquanto pessoa

física ou jurídica exercente daquela atividade); são outros direitos e obrigações

estritamente reservados pela lei aos que se encontram na condição de sócio.

Portanto, os direitos e responsabilidades do empresário ou da sociedade

empresária não são, em regra, naturalmente extensíveis aos sócios.

Dentre as responsabilidades do sócio, destaca-se o dever de participar

da formação do capital social e das perdas sociais até o limite da sua

correspondente responsabilidade, que pode ser limitada ou ilimitada, a

depender do tipo societário adotado (que será visto adiante) ou de alguma

outra circunstância juridicamente relevante, como na desconsideração da

personalidade jurídica, que constitui o objeto do presente trabalho. Por outro

lado, o sócio tem direito de participação nos resultados sociais da sociedade,

de acordo com o quanto estipulado nas disposições contratuais pertinentes.

Fábio Ulhoa Coelho (2012b, p. 175) destaca, ainda, que o sócio pode

intervir na administração da sociedade, mediante sua participação na escolha

do administrador (figura que será analisada a seguir) ou na definição da

estratégia geral dos negócios, tendo o direito, ainda, de fiscalizar os atos de

administração, por meio do exame dos livros e documentos da sociedade

empresária e pela tomada das contas que devem ser prestadas pelos

administradores, na forma legal ou contratual.

Muito embora o sócio possa intervir na administração e fiscalização da

sociedade, ele não possui, pela simples condição de sócio, o poder de

gerência. Esse poder é reservado ao administrador.

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1.4 O administrador

Define-se administrador como a pessoa física que, segundo os poderes

que lhe são outorgados pelo empresário, pratica, em nome desse, atos de

gestão. São os administradores, portanto, que contratam pessoal, fornecedores

e prestadores de serviço, que cuidam das contas a pagar e a receber, que

representam o empresário perante entidades públicas e privadas, que alienam

bens, que contraem obrigações, etc.

A administração pode ser atribuída a uma ou mais pessoas, sócias ou

não, designadas no contrato social ou em ato separado. Importa reiterar, a

propósito, que a administração pode ser feita por quem é sócio ou por quem

não é sócio. A mera condição de sócio não garante, per si, o direito de

administrar diretamente, muito embora garanta o direito de indiretamente

intervir na administração e na fiscalização.

Maria Rita Ferragut (2013, p. 8) destaca que o Código Civil em vigor

extinguiu a figura do sócio-gerente, que é a designação outrora atribuída ao

sócio que era investido no mandato legal de administrador e representante

legal (SILVA, 2003, p. 770), passando a adotar as figuras do administrador

sócio (que, além de participar do capital da sociedade, a administra) e do

administrador não-sócio (que é nomeado tão somente para gerir os negócios

sociais, sem que possua quotas da sociedade).

Renato Ventura Ribeiro (2005, p. 278) explica que o termo administrador

usado no Código Civil em vigor substituiu a palavra gerente, utilizada nos

diplomas legais anteriores, e que, apesar de a expressão ser sinônimo de

bacharel em Administração, não se exige, em regra, tal formação. Esclarece,

contudo, que, embora não se exija, em regra, formação específica, o

administrador deve ter um mínimo de preparo para o exercício de tal função:

(...) não há qualquer impedimento para qualquer pessoa

participar da administração da sociedade. Mas se pode

entender como falta de diligência a assunção de cargo sem

que a pessoa tenha a mínima capacidade para exercê-lo, pois

uma pessoa cuidadosa não se responsabilizaria por uma

obrigação ou tarefa que não tenha condições de cumprir

(RIBEIRO, 2005, p. 277).

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Somente de forma excepcional a legislação delimita qual o

conhecimento técnico ou experiência exigidos para o exercício da função de

administrador, como no caso de administração de instituições financeiras

privadas (inciso XI do artigo 10 da Lei Federal nº 4.595/64) e do administrador

judicial na falência ou recuperação de empresas (artigo 21 da Lei Federal nº

11.101/05).

O termo diligência provém do latim diligere, que significa zelar ou cuidar,

considerando-se inerente ao dever de gestão, portanto, o agir com cuidado e

zelo. Assim como o sócio, o administrador possui direitos e obrigações quando

investido em tal função, conforme se observa em diversos dispositivos do

Código Civil, como, e.g., no artigo 1.011, segundo o qual “O administrador da

sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência

que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus

próprios negócios.”

Apesar de o dispositivo legal em questão estar inserido num capítulo que

trata especificamente das sociedades simples, corroboramos o entendimento

defendido por Maria Rita Ferragut (2013, p. 10), de que seu mandamento deve

ser tomado como referência para todos os tipos societários.

Ocorre, porém, que o conteúdo semântico das expressões cuidado e

diligência possui certa carga subjetiva, na medida em que a compreensão do

que seja cuidado e zelo pode variar de pessoa para pessoa. Por isso, o

legislador decidiu por bem amenizar a subjetividade, estabelecendo alguns

critérios normativos que fixam o mínimo de cautela e diligência necessários ao

exercício da administração.

De fato, o fez no artigo 1.020 do Código Civil, segundo o qual os

administradores estão obrigados a prestar aos sócios contas justificadas de

sua administração, e a apresentar-lhes, anualmente, o inventário, o balanço

patrimonial e o balanço de resultado econômico.

Com o mesmo escopo, o caput do artigo 1.017 do mencionado codex

prescreve que o administrador que aplicar créditos ou bens pertencentes à

pessoa jurídica em proveito próprio ou de terceiros sem consentimento

expresso e escrito dos sócios terá de restituí-los à sociedade ou pagar o

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equivalente, em pecúnia, com todos os lucros resultantes, respondendo, ainda,

por todos os prejuízos que houver causado.

Ao analisar as disposições do Código Civil e da Lei das Sociedades

Anônimas, Renato Ventura Ribeiro (2005, pp. 292-299) constatou os seguintes

deveres do administrador, explícitos e implícitos: informar-se, qualificar-se,

participar, vigiar, buscar informações, investigar, intervir e não praticar erros

graves no exercício de sua função.

Neste trabalho, adotaremos a expressão administrador para indicar

aquele que possui o poder de gestão da sociedade sem ostentar, porém, a

condição de sócio. Nas situações em que o administrador for sócio,

adotaremos a expressão sócio-administrador, distinguindo, assim, as figuras do

sócio, do administrador e do sócio administrador, de modo a empregar maior

rigor metodológico ao nosso discurso.

1.5 A pessoa jurídica

Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 436-457) explica que existem,

basicamente, quatro teorias científicas acerca da pessoa jurídica. De acordo

com a teoria da ficção, a pessoa jurídica seria algo irreal, imaginária,

desprovida de objetividade existencial. Segundo essa concepção, o direito

concebe a pessoa jurídica como uma criação artificial, cuja existência, por isso

mesmo, é uma simples ficção.

Para a teoria da equiparação, a pessoa jurídica não tem personalidade

própria, surgindo em razão de certas massas de bens, isto é, de patrimônios

que são equiparados, no seu tratamento jurídico, às pessoas naturais.

De acordo com a teoria orgânica ou da realidade objetiva, é possível

haver, paralelamente às pessoas físicas, sujeitos que, apesar de não serem

constituídos pelo direito, são por ele reconhecidos. O direito os declara

existentes e lhes atribui personalidade jurídica própria, reconhecendo,

paralelamente, que essas pessoas podem fazer emanar sua vontade própria.

Seus partidários entendem, assim, que a pessoa jurídica é uma realidade viva,

análoga à pessoa física. Segundo essa teoria, as pessoas jurídicas possuem

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tanto um corpus, que administra e mantém a entidade em contato com o

mundo, como um animus, que é sua vontade dominante.

A teoria da realidade das instituições jurídicas defende, por sua vez, que

o direito pode criar suas próprias instituições e seus entes personificados,

colocando a pessoa jurídica, assim, como produto da técnica jurídica. Ao

rejeitar a tese ficcional (teoria da ficção), essa teoria considera os entes

coletivos uma realidade que não seria objetiva (teoria orgânica ou da realidade

objetiva), pois a personificação se opera por construção eminentemente

jurídica, ou seja, o ato de atribuir personalidade não seria arbitrário, mas à vista

de uma situação jurídica.

Tomando por base o artigo 45 do Código Civil, segundo o qual a

existência legal das pessoas jurídicas de direito privado tem início com a

inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, a doutrina majoritária tem

defendido, como fazem Heleno Tôrres (2003, p. 436-457) e Fábio Ulhoa

Coelho (2012b, pp. 144-145), que a personificação da pessoa jurídica é, de

fato, uma construção da técnica jurídica, o que justifica, inclusive, a suspensão

legal de seus efeitos, por meio da desconsideração da personalidade jurídica

nas situações excepcionais admitidas igualmente por lei.

Igualmente ao mencionado jurista, adotaremos a teoria da realidade no

presente estudo, porquanto é a que melhor se coaduna com as nossas

premissas. A sociedade empresária, desde que esteja constituída nos termos

da lei, adquire o status de pessoa jurídica, tornando-se capaz, por

consequência, para contrair direitos e obrigações.

1.6 O início da personalidade jurídica

A personalidade jurídica pode ser definida como a aptidão genérica para

adquirir direitos e contrair obrigações. É um atributo de que se reveste toda

pessoa, seja ela física (ou natural) ou jurídica. O já mencionado artigo 45 do

Código Civil prescreve que a existência legal das pessoas jurídicas de direito

privado tem início, em regra, com a inscrição de seu ato constitutivo no

respectivo registro.

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21

Portanto, de acordo com a lei civil, a pessoa jurídica passa a ter

personalidade jurídica a partir de sua regular constituição. Como ente distinto

dos sócios que a compõem, sua personalidade jurídica é independente da

personalidade dos mencionados sócios. A pessoa jurídica terá, assim,

enquanto sujeito de direitos e obrigações, o seu próprio nome e o seu próprio

patrimônio.

Muito embora o artigo 45 do Código Civil prescreva que a personalidade

das pessoas jurídicas de direito privado tem início, em regra, com a inscrição

de seu ato constitutivo no respectivo registro, as sociedades em conta de

participação constituem a exceção, pois o artigo 993 do mencionado codex

prescreve que seu contrato social produz efeitos somente entre os sócios, e

que a eventual inscrição de seu instrumento em qualquer registro não lhe

confere personalidade jurídica.

Dessa forma, excepcionando-se as sociedades em conta de

participação, a personalidade jurídica da pessoa jurídica, isto é, sua aptidão

para adquirir direitos e contrair obrigações, lhe será reconhecida quando o seu

respectivo ato constitutivo for registrado no órgão competente.

Dentre todas as consequências advindas do início da personalidade da

pessoa jurídica, a que mais nos interessa – por força dos fins objetivados neste

trabalho – é justamente a mencionada separação patrimonial entre os bens da

entidade personalizada e os bens dos sócios que a compõe, que a doutrina

designa como princípio da autonomia patrimonial.

1.7 O princípio da autonomia patrimonial

Ao prescrever que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos

seus membros, o artigo 20 do Código Civil de 1916 previa, nas dobras de sua

redação, em regra considerada instituidora de princípio jurídico, a separação

patrimonial entre os bens dos sócios e os bens da pessoa jurídica. Insta

destacar que essa separação patrimonial também podia ser depreendida a

partir dos artigos 22 e 23 do mesmo diploma legal, que tratavam do destino dos

bens da pessoa jurídica em caso de sua extinção.

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22

Muito embora o atual Código Civil não tenha reproduzido dispositivo

idêntico aos artigos 20, 22 ou 23 do codex anterior, Maria Rita Ferragut (2013,

pp. 23-24) observou que:

As regras veiculadas nos artigos 22 e 23 da legislação anterior

encontram-se atualmente previstas, ainda que com redação um

pouco diversa, no parágrafo 1º do artigo 61 do Código Civil. Tal

enunciado tem por pressuposto a distinção patrimonial, ao

permitir que os associados deliberem restituir-se das

contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da

associação.

A referida autora assevera, logo em seguida, que o artigo 50 do Código

Civil em vigor, que regula o instituto da desconsideração da personalidade

jurídica (sobre o qual versa o presente trabalho), também confirma a distinção

e a autonomia patrimonial existentes entre o sócio e a pessoa jurídica, na

medida em que uma das causas para a desconsideração da personalidade é

exatamente a confusão patrimonial.

De fato, se os bens devem permanecer separados, sob pena de

desconsideração da personalidade jurídica, é porque a propriedade desses

bens pertence a pessoas diversas. Como observa a referida autora, se fossem

todos da pessoa jurídica, ou da física, a confusão seria impossível e o

dispositivo legal em questão não teria qualquer utilidade.

Outros dispositivos do Código Civil preveem, de forma pontual, a mencionada

separação patrimonial ao tratar de tipos societários específicos. De fato, ao

tratar das sociedades limitadas, o artigo 1.052 do Código Civil prescreve que a

responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, e que todos

respondem solidariamente pela integralização de seu capital social.

O artigo 1.065 do mesmo código também expressa a separação

patrimonial existente nas sociedades limitadas, ao prescrever que, ao término

de cada exercício social, deve ser elaborado o inventário, o balanço patrimonial

e o balanço de resultado econômico da pessoa jurídica, demonstrando, com

isso, que ela é titular de seu próprio patrimônio.

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Tais dispositivos, por nós colhidos a título exemplificativo, demonstram a

clara distinção existente entre o patrimônio social e o patrimônio dos sócios que

compõem a pessoa jurídica que, no caso de tais dispositivos pontuais,

corresponde à sociedade limitada.

Ocorre que a segregação patrimonial em questão passou a projetar seus

efeitos além dos lindes do direito civil, tendo recebido, por isso, pela doutrina

pátria, conforme já se mencionou, o status de princípio jurídico. Trata-se do

princípio da autonomia patrimonial, que é explicado por Fábio Ulhoa Coelho

(2012, p. 80) da seguinte forma:

Em razão da autonomia patrimonial, os bens, direitos e

obrigações da sociedade, enquanto pessoa jurídica, não se

confundem com os dos seus sócios. A principal implicação

deste princípio é a impossibilidade de se cobrar, em regra, dos

sócios, uma obrigação que não é deles, mas de outra pessoa,

a sociedade.

Em outro estudo, o mesmo autor (COELHO, 2012b, pp. 144-145)

esclarece que:

(...) a sociedade terá patrimônio próprio, seu, inconfundível e

incomunicável com o patrimônio individual de cada um de seus

sócios. Sujeito de direito personalizado autônomo, a pessoa

jurídica responderá com o seu patrimônio pelas obrigações que

assumir. Os sócios, em regra, não responderão pelas

obrigações da sociedade. Somente em hipóteses excepcionais

(...) poderá ser responsabilizado o sócio pelas obrigações da

sociedade.

Portanto, as obrigações contraídas pelos sócios a eles pertencem, e por

elas responderão com seu próprio patrimônio, e as obrigações contraídas pela

pessoa jurídica a ela pertencem, e por elas responderá com seu próprio

patrimônio.

Tanto a doutrina civilista (GONÇALVES, 2011, p. 249) quanto a

comercialista (COELHO, 2012, p. 142) afirmam que a autonomia patrimonial da

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pessoa jurídica constitui um dos mais importantes princípios do direito, de

fundamental importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, na

medida em que limita eventuais prejuízos decorrentes do possível insucesso

àqueles que se propõem a empreender.

Ao lado das prescrições classificadas como de direito material, acima

vistas, a legislação processual civil brasileira também contempla,

expressamente, a separação patrimonial em questão, ao prescrever, no artigo

596 do Código de Processo Civil em vigor, que os bens particulares dos sócios

não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei.

O denominado Novo Código de Processo Civil, instituído por meio da Lei

Federal nº 13.105, de 16 de março de 2015, ainda em vacatio legis no

momento da conclusão do presente trabalho, reproduz essa mesma regra no

caput de seu artigo 719, ao igualmente prescrever que os bens particulares dos

sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos

em lei.

A separação patrimonial em questão foi reafirmada, ainda, no § 4º desse

dispositivo, que impõe a observância do incidente de desconsideração da

personalidade jurídica previsto nos artigos 133 a 137 do mesmo código para

que se possa responsabilizar os sócios por obrigações contraídas pela

sociedade.

Portanto, por expressa previsão normativa, tanto de direito material

quanto de processual, é regra que a pessoa jurídica responderá com o seu

próprio patrimônio pelas obrigações que assumir. Tais regras limitam a

possibilidade de os sócios virem a comprometer seu patrimônio pessoal em

decorrência do fracasso da pessoa jurídica por eles constituída. Contudo,

excepcionalmente, poderá haver a responsabilização de sócio pelas

obrigações da pessoa jurídica, mas somente e tão somente nos casos

previstos em lei, como no caso da desconsideração da personalidade jurídica.

1.7.1 Os tipos societários alcançados pelo princípio

Há diversas formas de se organizar uma pessoa jurídica exercente de

atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços. De

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acordo com o ordenamento jurídico em vigor, a pessoa jurídica pode ser

constituída como sociedade limitada, sociedade anônima, empresa individual

de responsabilidade limitada (EIRELI), sociedades simples, em nome coletivo,

em comum, em conta de participação, em comandita simples, etc. Em cada um

desses tipos societários, a legislação atribuiu diferentes formas de atribuição de

responsabilidade aos sócios.

O Código Civil prescreve não haver limitação de responsabilidade

patrimonial nas sociedades simples, em nome coletivo, em comum, em conta

de participação e em comandita simples. Dessa forma, por razões óbvias, a

teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pode ser aplicada a

esses tipos societários, na medida em que o respectivo sócio já responde com

seu patrimônio pelas obrigações da sociedade.

Como o princípio da autonomia patrimonial se aplica, por força das

disposições do ordenamento jurídico em vigor, somente à sociedade limitada, à

sociedade anônima e à empresa individual de responsabilidade limitada

(EIRELI), são esses, pois, os únicos tipos societários sobre os quais pode ser

aplicada a mencionada teoria da desconsideração. Assim, toda a pesquisa e as

conclusões a seguir acerca da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica terão como objeto somente e tão somente esses três tipos societários.

Leonardo Netto Parentoni (2014, p. 62) observa, porém, que não é

necessária a existência de pessoa jurídica e nem sequer de personalidade

jurídica para a aplicação da desconsideração (o que coloca em dúvida,

inclusive, a própria nomenclatura dada à teoria), na medida em que a limitação

da responsabilidade de um determinado patrimônio – e, por consequência, a

possibilidade de romper tal limitação – pode ser conferida por lei a qualquer

centro de imputação de direitos e deveres, ainda que despersonificado, como

ocorre em relação à massa falida, o espólio, etc.

Se o direito cria sua própria realidade, conforme já afirmamos linhas

acima, não há porquê discordarmos das considerações feitas pelo referido

autor. Contudo, reiteramos que nosso estudo se volta à limitação da

responsabilidade patrimonial – e à possibilidade de superação dessa limitação

– relativamente à sociedade limitada, sociedade anônima e empresa individual

de responsabilidade limitada (EIRELI).

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2 ASPECTOS GERAIS ACERCA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO

DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Fábio Ulhoa Coelho (2012b, pp. 144-145) explica que a personalidade

jurídica, isto é, a capacidade de contrair direitos e obrigações, é uma criação da

lei, sendo, por consequência, uma permissão do Estado, que o faz, no caso

das pessoas jurídicas, objetivando o desenvolvimento de atividades

econômicas.

Assim como Heleno Tôrres (2003, p. 436-457), Fábio Ulhoa Coelho

também parece adotar a teoria da realidade para explicar a pessoa jurídica (já

elucidada linhas acima), teoria essa que também adotamos, segundo a qual o

direito pode criar suas próprias instituições, como a pessoa jurídica, sua

personalidade e a separação patrimonial entre os seus bens e os bens de

sócio.

Por outro lado, Rubens Requião (2013, p. 457) doutrina que a

personalidade jurídica é um reconhecimento do ordenamento jurídico brasileiro.

O mencionado autor parece adotar a teoria orgânica, pois defende que a

personalidade jurídica não é constituída pelo direito, mas simplesmente

reconhecida.

Seja com base na teoria da realidade ou com base na teoria orgânica,

nada mais legítimo do que reconhecer ao Estado, então, a faculdade de

verificar se o direito por ele criado ou concedido está sendo licitamente

utilizado, atribuindo-lhe competência para reprimir o mau uso. Uma das formas

que ao Estado foi outorgada para reprimir o mau uso é pela desconsideração

da personalidade jurídica.

Etimologicamente, o vocábulo desconsiderar (des, prefixo latino,

corresponde a oposição, e considerar corresponde a levar em conta) significa

não considerar, desatender, desprezar, etc. Assim, como a personalidade

jurídica – e, por decorrência, todos os seus efeitos, como o da autonomia

patrimonial – pode ser desconsiderada, isto e, desprezada, desatendida, é

possível concluir, ab initio, que ela é um direito relativo, razão pela qual

corroboramos a tese de que ela é uma permissão do Estado (teoria da

realidade).

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Conforme adverte Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 263), ela não é uma

teoria contra a separação subjetiva entre a sociedade empresária e seus

sócios: “Muito ao contrário, ela visa preservar o instituto, em seus contornos

fundamentais, diante da possibilidade de o desvirtuamento vir a comprometê-

lo.” Contudo, como no modelo jurídico brasileiro, o Estado pode fazer somente

e tão somente o que estiver expressamente permitido em lei, cremos que deve

ser buscada na lei, então, todos os pressupostos, meios e limites para a

aplicação dessa reprimenda denominada desconsideração da personalidade

jurídica.

2.1 Definição

Luís da Câmara Cascudo (1986, p. 244) ensina que, na Grécia e na

Roma Antigas, os atores representavam peças teatrais usando máscaras. Não

se via, dessa forma, o rosto do artista. O artifício da máscara servia para

induzir o público ao entendimento de que ali havia uma personagem com “vida

própria”, que não se confundia, em absoluto, com a pessoa do ator.

A máscara dava, portanto, além de vida, personalidade própria àquela

personagem. Porém, quando o ator desempenhava mal o seu papel, podia-se

exigir que tirasse a máscara, exibindo, assim, sua verdadeira fisionomia, isto é,

sua verdadeira personalidade, para que pudesse receber do público todos os

ônus de sua má ou falsa atuação, isto é, as vaias decorrentes do desagrado

coletivo.

As lições de Câmara Cascudo serviram à construção da definição de

desconsideração da personalidade jurídica criada por Alexandre Alberto

Teodoro da Silva (2007, p. 69), que prega que “(...) desconsiderar a

personalidade jurídica seria como arrancar a máscara da pessoa jurídica com o

fim de revelar sua legítima expressão, escondida pelo abuso de

personalidade.”

Fazendo uma comparação com o teatro antigo, o referido autor explica

que a máscara seria a personalidade jurídica; o artista seria o sócio; e sua

união para a atividade artística, a pessoa jurídica personificada. Conclui, com

base nisso, que, ao abusar “da máscara” para a prática de uma “interpretação”

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abusiva ou desastrosa, surgiria o direito ao lesado de exigir do Estado a

providência de retirar a máscara da pessoa jurídica personificada para que

sofra os ônus de sua má interpretação.

Tal providência é a desconsideração da personalidade, que revela,

assim, as pessoas que se mantinham encobertas sob a proteção da pessoa

jurídica, permitindo ao lesado buscar a satisfação de seus direitos no

patrimônio do sócio ou do administrador (relembrando, aqui, que nosso estudo

se volta à sociedade limitada, anônima, e à empresa individual de

responsabilidade limitada) que sofreu a desconsideração.

A propósito, Mary Elbe de Queiroz (2005, p. 132) ensina que:

A desconsideração de atos, negócios ou personalidade jurídica

é uma forma de se desprezar (levantar o véu) o ato, negócio ou

personalidade jurídica que se apresenta sob forma lícita e de

acordo com o Direito Privado, mas que no seu âmago encerra

abuso e prejuízo a terceiro de boa-fé, em decorrência da

utilização de pessoa jurídica, para alcançar os sócios como

verdadeiros beneficiários dos resultados da sociedade, a fim de

responsabilizá-los para que eles assumam o ônus dos danos

causados a esses terceiros. A desconsideração tem por

objetivo proteger terceiros de boa-fé de abusos ou tentativas de

limitar a responsabilidade dos sócios, por meio do emprego ou

constituição de pessoa jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica pode ser vista, assim, tanto

como uma tentativa de prevenir e dar segurança aos terceiros de boa-fé,

quanto uma punição àquele que se utiliza da personalidade jurídica para

acobertar interesses pessoais e fugir à respectiva responsabilidade (QUEIROZ,

2005, p. 132).

Importa destacar, por outro lado, que a desconsideração da

personalidade jurídica não se confunde com a despersonalização da pessoa

jurídica. A distinção é muito bem explicada por Carlos Roberto Gonçalves

(2011, p. 250), ao ensinar que a despersonalização acarreta a dissolução da

pessoa jurídica ou a cassação de sua autorização de funcionamento, enquanto

na desconsideração subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa

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coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes, mas essa

distinção é afastada, episodicamente, e tão somente para um determinado

caso in concreto.

Nesse sentido, destacam-se os ensinamentos de Maria Helena Diniz

(2012, p. 348), para quem, na aplicação da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica:

(...) subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa

coletiva, distinta da pessoa de seus sócios, mas tal distinção é

afastada, provisoriamente, para um dado caso concreto. Há

uma repressão ao uso indevido da personalidade jurídica,

mediante desvio de seus objetivos ou confusão do patrimônio

social para a prática de atos abusivos ou ilícitos, retirando-se,

por isso, a distinção entre bens do sócio e da pessoa jurídica,

ordenando que os efeitos patrimoniais relativos a certas

obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos

administradores ou dos sócios, recorrendo, assim, à superação

da personalidade jurídica porque os seus bens não bastam

para a satisfação daquelas obrigações, visto que a pessoa

jurídica não será dissolvida, nem entrará em liquidação.

Referindo-se à mesma teoria, Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 288)

também ensina que:

Imputa-se responsabilidade aos sócios e membros integrantes

da pessoa jurídica que procuram burlar a lei ou lesar terceiros.

Não se trata de considerar sistematicamente nula a pessoa

jurídica, mas, em caso específico e determinado, não a levar

em consideração. Tal não implica, como regra geral, negar

validade à existência da pessoa jurídica.

Assim, o ato que desconsidera a personalidade jurídica não a

desconstitui; apenas nega eficácia ao efeito da separação patrimonial entre os

seus bens e os bens dos sócios quando se desvendar, por detrás da vontade

manifestada pela pessoa jurídica, a real presença dominante do querer de

terceiros (RAMALHETE, 1984, p. 10).

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Logo, o ato que desconsidera a personalidade não dissolve o ato

constitutivo da pessoa jurídica, isto é, não o invalida, não acarretando, dessa

forma, a dissolução da sociedade. Permite apenas a superação episódica e

momentânea do princípio da autonomia da pessoa jurídica para a satisfação

dos interesses do credor lesado junto ao patrimônio de sócio.

2.2 Origem

Clóvis Ramalhete (1984, p. 10) explica que a desconsideração da

personalidade jurídica nasceu do labor jurisprudencial nos Séculos XIX e XX,

tendo seu primeiro caso (de que se tem registro) em 1987, no julgamento do

célebre litígio Salomon vs. Salomon & Co pela justiça inglesa. O mencionado

autor narra que Aaron Salomon era um comerciante de couros e calçados que

fundou, em 1892, a Salomon & Co., tendo como sócios fundadores ele mesmo,

sua mulher e seus cinco filhos.

A sociedade foi constituída com 20.007 ações. A mulher e os cinco filhos

tornaram-se proprietários de uma ação cada, e as demais 20.001 foram

atribuídas a Aaron Salomon, sendo que 20.000 delas foram integralizadas com

a transferência, para a sociedade, do fundo de comércio que Aaron já possuía,

como detentor único e a título universal. Consta, ainda, que o preço da

transferência desse fundo era superior ao valor das ações subscritas.

Assim, pela diferença, Aaron Salomon tornou-se credor da sociedade de

que fazia parte, isto é, da Salomon & Co., com garantia real constituída em seu

favor. Na realidade, a estratégia de ser tornar credor real da sociedade de que

fazia parte servia como forma de gozar das facilidades e bônus da atividade

econômica sem incorrer nos riscos e ônus a ela inerentes, pois, ao menos

formalmente, acaso houvesse insucesso nessa sociedade, Aaron Salomon

estaria com o seu patrimônio protegido com garantia real constituída em seu

favor.

Ocorre que a sociedade veio a se tornar insolvente e precisou, por isso,

ser dissolvida. Apesar de Aaron Salomon ser credor da sociedade, com

garantia real, o liquidante da massa arrecadou os bens pessoais de Aaron para

atender aos direitos dos demais credores da companhia. Salomon ingressou

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em juízo, sustentando, então, a existência da pessoa jurídica Salomon & Co., e

como sócio, a ele não deveria se transmitir a responsabilidade pessoal pelas

obrigações contraídas pela sociedade.

Contudo, sobreveio decisão reconhecendo a identidade entre Aaron e

sua sociedade mercantil, com confusão patrimonial, sobre o fundamento de

que a pessoa jurídica da Salomon & Co. era apenas uma “extensão” de Aaron

Salomon. Condenaram-no, assim, a pagar à sociedade determinada quantia

em dinheiro, correspondente ao capital social devido, para que fossem

satisfeitos os créditos dos demais credores.

O mencionado autor (RAMALHETE, 1984, p. 10) destaca que a decisão

em questão só foi possível, à época, devido às particularidades do sistema

jurídico anglo-saxão, que adota o direito não escrito e com base na equidade

na construção de sua jurisprudência. Assim, mesmo sem regra jurídica

positivada, foi possível ao Juiz inglês aplicar a teoria da desconsideração da

personalidade jurídica ao referido caso, fundamentando na equidade a sua

decisão.

Rubens Requião (2013, p. 461) destaca que a Casa dos Lordes

posteriormente reformou essa decisão, julgando que a companhia havia sido

validamente constituída de acordo com as leis comerciais, e que não existia,

portanto, a responsabilidade pessoal de Aaron Salomon para com os credores

da Salomon & Co., sendo válido, dessa forma, o seu crédito privilegiado.

Apesar da reforma da decisão, o quanto decidido pela instância inferior

repercutiu em todo o mundo, dando origem à doutrina do disregard of legal

entity (para nós, desconsideração da personalidade jurídica), sobretudo, nos

Estados Unidos da América, onde se formou larga jurisprudência, expandindo-

se, posteriormente, para a Alemanha e para os demais países, inclusive para o

Brasil.

Apesar de ser uma criação jurisprudencial do final do Século XIX, o

estudo doutrinário da mencionada teoria é considerado recente, tendo Rolf

Serick como seu principal sistematizador, na tese de doutorado defendida junto

à Universidade de Tübigen, na Alemanha, em 1953 (COELHO, 2005, p. 261).

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2.3 A recepção brasileira da teoria

O ordenamento jurídico brasileiro possuía, desde 1916 (quase que

contemporaneamente, portanto, ao surgimento da teoria da desconsideração

da personalidade jurídica nas instâncias inferiores da justiça inglesa), por força

do artigo 20 do Código Civil de 1916, regra expressa de que “As pessoas

jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.” Dessa regra, surgiu o

que a doutrina passou a designar como princípio da autonomia patrimonial da

pessoa jurídica, de grande importância no âmbito nacional, conforme já visto no

Capítulo anterior.

Apesar da inequívoca clareza desse mandamento legal, inclusive,

alçado ao status de princípio, o Ministro Edgard de Moura Bittencourt decidiu,

em 11 de abril de 1955, ao julgar o Recurso de Apelação nº 9.247 junto ao

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que é possível, em determinados

casos e por razões de equidade, superar o referido princípio da autonomia

patrimonial da pessoa jurídica, conforme consta no seguinte excerto da

decisão:

Há, no caso, completa confusão do patrimônio da pessoa física

do executado com o do embargante, o que resultou evidente

prejuízo para quem contratou com aquele.

(...)

A assertiva de que a pessoa da sociedade não se confunde

com a pessoa dos sócios – é um princípio jurídico, mas não

pode ser um tabu, a entravar a própria ação do Estado, na

realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude

do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao

direito.

Essa é considerada a primeira decisão judicial brasileira a aplicar a

teoria da desconsideração da personalidade jurídica conforme o modelo

aplicado pelos mencionados tribunais ingleses. A partir dessa, sobrevieram

outras decisões judiciais no mesmo sentido, como a proferido pelo então

Desembargador Oswaldo Aranha Bandeira de Mello no julgamento da

Apelação Cível nº 105.835, em 29 de março de 1962, junto à 4ª Câmara Cível

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do Tribunal de Justiça de São Paulo, citada por Maria Helena Diniz (2012, pp.

256-257).

Fundado na teria do negócio fiduciário, o referido Desembargador

admitiu, em cobrança intentada contra sócios de uma pessoa jurídica, a

penhora de bens da sociedade (verifica-se tratar, em verdade, de

desconsideração inversa da personalidade jurídica, que será abordada

adiante), por entender que essa não passava de uma:

(...) projeção do próprio executado, então seu presidente, a

quem dava poderes de gestão tão ilimitados, como se só por

ele ou por seus haveres fosse constituída, de modo a lhe

atribuir dupla personalidade, e lhe permitir o jogo dúbio com os

seus credores.

Destaca-se, em tais julgados, que, no confronto entre a regra

expressamente positivada no artigo 20 do já ab rogado Código Civil (que

estipulava a separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da

sociedade) e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundada na

defendida equidade, prevaleceu, nitidamente, a mencionada teoria.

Verifica-se, assim, que a jurisprudência pátria começava a adotar

soluções semelhantes àquelas dadas pelos tribunais ingleses, demonstrada no

caso Salomon vs. Salomon & Co. Ao fundamentar suas decisões na equidade,

a jurisprudência pátria estava adotando a ideia, portanto, de que a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica dispensa regras jurídicas

positivadas.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que despontavam as primeiras

decisões judiciais brasileiras fundadas na equidade, o jurista Rubens Requião

(1969, pp. 12-24) escreveu, em ensaio doutrinário pioneiro sobre o tema no

Brasil, que a desconsideração da personalidade jurídica possui inquestionável

viés principiológico. Tudo indica, aliás, que o referido autor também foi

influenciado pelas decisões inglesas sobre a teoria da desconsideração.

O mencionado doutrinador passou a defender, a partir de então, que o

fundamento da desconsideração da personalidade jurídica é principiológico

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34

(REQUIÃO, 1988, p. 70), entendimento esse mantido em toda a sua obra,

inclusive pelo atualizador Rubens Edmundo Requião (2013, pp. 460-462).

Após muito refletir sobre essa teoria, o mencionado autor concluiu que

ela é uma consequência direta da expressão estrutural da sociedade que a

adota, pois, em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre

a pessoa jurídica e os membros que a compõem, ocorre o mesmo problema:

como enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a

resultados completamente injustos e contrários ao direito?

Eis a síntese de suas reflexões:

(...) tanto nos Estados Unidos, na Alemanha, ou no Brasil, é

justo perguntar se o juiz, deparando-se com tais problemas,

deve fechar os olhos ante o fato de que a pessoa jurídica é

utilizada para fins contrários ao direito, ou se em semelhante

hipótese deve prescindir da posição formal da personalidade

jurídica e equiparar o sócio e a sociedade para evitar manobras

fraudulentas. São tais indagações que levam os tribunais norte-

americanos a consagrar e aplicar a doutrina, tal como

aconteceu no julgamento do caso Montgomery Web Company

vs. Dienelt, no qual o tribunal indagou de si próprio “se o direito

há de fechar seus olhos diante da realidade de que a diferença

(entre a pessoa jurídica e o sócio) é um mero jogo de

palavras”. Respondeu, sem vacilações que a solução há de ser

sempre a de que “nada existe que nos obrigue a semelhante

cegueira jurídica” (REQUIÃO, 1998, p. 70).

Conclui, assim, logo em seguida, que, diante de um abuso evidente, o

juiz brasileiro deve indagar-se, na formação de seu livre convencimento, se há

de consagrar a fraude, o abuso, o desvio, a ilicitude ou se deve desprezar

episodicamente a personalidade jurídica para, penetrando em seu âmago,

alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou

abusivos, realizando, assim, a almejada justiça.

Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 60) também parece defender, nas dobras

de sua afirmação, a natureza principiológica do instituto, cuja aplicabilidade

independeria de fundamento legal expresso:

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35

(...) é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a

desconsideração da personalidade jurídica não depende de

qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida em

que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos.

Quer dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de

dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a

fraude.

É possível verificar, assim, que os referidos teóricos entendem, nitidamente

influenciados pela jurisprudência estrangeira (e influenciando, por sua vez, a

jurisprudência nacional firmada no Século passado), que a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica possui natureza principiológica.

Com base nisso, sustentam que ela pode ser aplicada mesmo sem regra

positivada expressa, e inclusive, contra a regra alçada aos status de princípio

que impõe a separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da

pessoa jurídica.

Não se nega o importante papel da doutrina e da magistratura na

formação do direito pátrio, tampouco a função criadora das decisões judiciais,

até mesmo porque a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

prescreve, em seu artigo 4º, que o juiz decidirá o caso, quando a lei for omissa,

de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Contudo, impõe-se uma reflexão: que segurança jurídica pode haver na

aplicação de uma teoria importada do direito estrangeiro de matriz anglo-saxã

(diferente, portanto, da matriz adotada pelo direito pátrio) que permite superar

um princípio basilar de direito já incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro

com base no argumento de que ao juiz cabe aplicar a promover a equidade?

Parece-nos que tal entendimento fragiliza a segurança jurídica que se

espera de um ordenamento das decisões judiciais com base nele proferidas,

razão pela qual nos permitimos entender que qualquer aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica deve ser fundamentada e ter os

seus limites delineados em lei.

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36

2.4 A positivação no direito brasileiro

Ao mesmo tempo em que também reconhece a função criadora do

direito reservada à magistratura, até mesmo porque foi Ministro do Supremo

Tribunal Federal, Clóvis Ramalhete (1984, pp. 9-14), preocupado com a

inexistência de fundamento escrito à aplicação da teoria da desconsideração,

passou a defender que a recusa dos efeitos da personalidade jurídica deveria

ter apoio em lei.

A necessidade de lei também é defendida pelo professor Alexandre

Couto Silva (2000, p. 55), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro, que, tendo por base as teorias que explicam a pessoa jurídica,

assevera o seguinte:

Do ponto de vista da concepção ficcionista, a lei que criou a

pessoa jurídica poderá suspender seus efeitos e desconsiderá-

la, enquanto na teoria realista a desconsideração é enfocada

como instrumento do direito positivo para ajustar as

construções jurídicas a seus efeitos metajurídicos.

Assim, muito embora haja abalizadas vozes defendendo a aplicação

principiológica da mencionada teoria no direito brasileiro, fundada no dever de

promoção da equidade atribuída ao Juiz, deve-se considerar que o nosso

sistema jurídico se filia à tradição do direito escrito, o que não pode ser

simplesmente ignorado.

É razoável supor, então, que o sistema jurídico nacional, que é de direito

escrito, integrado ao grande ramo latino-germânico, exige um fundamento legal

para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Um

texto normativo que reconheça e trate dessa teoria com o devido rigor técnico,

estabelecendo os pressupostos, limites e os precisos efeitos da

desconsideração eliminará uma série de contestações, inconvenientes e

inseguranças quanto à sua aplicação.

De acordo com essa perspectiva, parece frágil, portanto, a posição

daqueles que defendem a aplicação da mencionada teoria com base em

fundamentos unicamente principiológicos, de acordo com a equidade, segundo

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a livre convicção do juiz. E foi contemplando a legalidade que o legislador

pátrio inseriu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em

diversos diplomas normativos, como, e.g., no parágrafo 2º do artigo 2º da

Consolidação das Leis do Trabalho, que prescreve o seguinte:

Art. 2º (...)

§ 2º. Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada

uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a

direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo

industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica,

serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente

responsáveis a empresa principal e cada uma das

subordinadas.

Outra previsão legal pode ser encontrada no artigo 28, § 5º, do Código

de Defesa do Consumidor:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da

sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver

abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato

ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A

desconsideração também será efetivada quando houver

falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da

pessoa jurídica provocados por má administração.

(...).

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica

sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo

ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores

A Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre

sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao

meio ambiente, também passou a prescrever que:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre

que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de

prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

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Assim, aos poucos, setorialmente, o legislador brasileiro passou a

positivar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em

determinados subsistemas do direito, certamente inspirado pela jurisprudência

inglesa, que havia influenciado, como tudo indica, a doutrina e a jurisprudência

pátria.

Ocorre, porém, que, mesmo diante dessas regras legais expressas, os

tribunais brasileiros continuavam a aplicar a teoria em questão por meio de

construção pretoriana fundada na equidade, mormente quando se deparavam

com o uso abusivo da personalidade jurídica em subsistemas jurídicos ainda

não regulamentados.

Mais uma vez, o legislador pátrio foi convocado, então, a eliminar as

dúvidas e os abusos cometidos por parte da jurisprudência na aplicação da

teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Cumprindo o chamado, o

legislador pátrio elaborou a regra constante no artigo 50 do Código Civil em

vigor e, ao contemplar a relatividade do princípio da separação patrimonial

entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, incorporou toda a

doutrinária e jurisprudência brasileira produzidas até aquele momento,

estabelecendo critérios e limites à aplicação da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica,

caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão

patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do

Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que

os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações

sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou

sócios da pessoa jurídica.

A redação final do dispositivo legal em questão foi fruto de emenda

apresentada pelo Senador Josaphat Marinho à redação original do Projeto de

Lei, concebida pelo Ministro Moreira Alves, que possuía o seguinte texto:

A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos

no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à

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prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz,

a requerimento de qualquer dos sócios, ou do Ministério

Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais

sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.

Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções

cabíveis, responderão conjuntamente com os da pessoa

jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante

que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou

abusiva, salvo se norma especial determinar a

responsabilidade solidária de todos os membros.

Ao analisar a redação do artigo 50 em questão, que é bem diferente da

redação originalmente proposta, João Batista Lopes (2003, p. 40) afirmou que

o legislador brasileiro consagrou uma desconsideração da personalidade

jurídica inédita, que não se confunde com as outras prescrições legais até

então existentes, no Brasil ou no exterior, tendo deixado de “confundir” o

instituto da desconsideração com a dissolução da pessoa jurídica ou com a

anulação de seus atos constitutivos, críticas essas existentes à redação do

instituto na Consolidação das Leis do Trabalho e no Código de Defesa do

Consumidor, e que nos permitimos deixar de analisar por não serem

pertinentes aos fins objetivados neste estudo. Por ser diferente do exterior,

deixaremos de analisar para evitar a sabida sincronia irregular.

Após ter estudado a aplicação da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica fundada em integração jurisprudencial, isto é, sem

fundamento legal expresso, Heleno Taveira Tôrres (2005, pp. 55-56) passou a

defender que, a partir da entrada em vigor da regra constante no artigo 50 do

Código Civil, não tem mais cabimento qualquer defesa de aplicação da

mencionada teoria com base em princípio, criticando, assim, expressamente, o

entendimento mantido por Requião. Corroboramos, pois, o entendimento

claramente demonstrado por Heleno Taveira Tôrres.

Apesar da importância histórica dos procedentes jurisprudenciais

estrangeiros e nacionais, expressa e declaradamente fundamentados na

equidade, e que chegaram inclusive a dar status principiológico à teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, segundo abalizadas vozes, o

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legislador brasileiro, fiel às características e fundamentos do nosso sistema

jurídico, que é de direito escrito, integrado ao grande ramo latino-germânico,

condensou os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários até então

produzidos (naturalmente excluindo algumas divergências) na redação do

artigo 50 do Código Civil em vigor, que é considerado, atualmente, o “fio

condutor” da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Contudo, uma dúvida se impõe: qual será a amplitude de aplicação de suas

disposições?

2.5 O artigo 50 do Código Civil: cláusula geral do sistema jurídico

Segundo Miguel Reale (2005, pp. 40-41), Presidente da Comissão

Elaboradora e Revisora do Código Civil em vigor, tal diploma não engloba

apenas um conjunto de regras de direito privado; engloba, também, regras e

institutos de Teoria Geral do Direito, aplicáveis, pois, a todos os ramos da

Ciência Jurídica.

Nas palavras do referido teórico:

(...) não menos relevante é a resolução de lançar mão, sempre

que necessário, de cláusulas gerais, como acontece nos casos

em que se exige probidade, boa-fé ou correção (corretezza)

por parte do titular do direito, ou quando é impossível

determinar com precisão o alcance da regra jurídica.

(...)

Como se vê, o que se objetiva alcançar é o Direito em sua

concreção, ou seja, em razão dos elementos de fato e de valor

que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na

aplicação da norma.

Apresentando uma tendência atual e moderna, a mencionada

codificação civil abandonou aquele modelo rígido que separava,

cirurgicamente, o direito público e o direito privado, para incorporar em seu

texto uma nova proposta filosófica, de modelos abertos, alcançando e regendo

as relações surgidas na sociedade contemporânea e que nem sempre se

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enquadram naquela velha mencionada dicotomia entre o direito público e o

privado.

Interessando-se pelas lições deixadas por Miguel Reale, Judith Martins

Costa e Gerson Luiz Carlos Branco (2012, pp. 126-130) se propuseram a

analisar as diretrizes teóricas do Código Civil em vigor e concluíram que o

artigo 50 do Código Civil é uma dessas cláusulas gerais de Direito, na medida

em que expressões como abuso da personalidade e desvio de finalidade

mostram-se aplicáveis a todos os subsistemas do direito.

De maneira enfática, Tula Wesendonck (2012, p. 361) também sustenta

que o dispositivo legal em questão é uma dessas regras que interpenetram o

direito público e o direito privado, nos seguintes termos:

Esse estudo evolutivo é relevante para definir os contornos da

desconsideração e a fixação dos princípios e das regras

comuns da desconsideração, tendo em conta os requisitos que

são apresentados no art. 50 do CC/2002, que por estar na

Parte Geral do Código Civil, pode ser aplicado a todos os

ramos do direito, inclusive em relação ao direito tributário e

trabalhista (como ocorre também por incidência do art. 187 do

CC/2002).

Ao adotarmos essa premissa como verdadeira, de que a aplicação do

artigo 50 não se restringe ao Direito Civil, somos levados a admitir que a

desconsideração da personalidade jurídica nele positivado emana seus efeitos

sobre os mais diversos subsistemas do direito.

Contudo, será que a mencionada interpenetração do artigo 50 alcança

os lindes do subsistema do direito tributário? Essa questão será analisada com

profundidade no próximo Capítulo, que é dedicado especificamente à análise

da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

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2.6 Os pressupostos legais de aplicação

Partindo da premissa de que o artigo 50 do Código Civil emana efeitos

sobre todos os subsistemas do direito, cumpre-nos analisar, então, quais são

os pressupostos à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Rubens Requião (1969, p. 17), pioneiro no estudo do assunto no Brasil,

defende que (i) a fraude ou (ii) o abuso de direito são os pressupostos

autorizadores da aplicação da mencionada teoria. Assim, subjaz nos

ensinamentos do referido autor que os pressupostos são subjetivos: fraude ou

o abuso de direito, que dependem do elemento anímico.

Por outro lado, lançando suas atenções especificamente sobre as

Sociedades Anônimas, mas com reflexões extensíveis aos demais tipos

societários passíveis sujeitos aos efeitos da desconsideração, Fábio Konder

Comparato e Calixto Salomão Filho (2008, passim) sustentaram que o

pressuposto autorizador da aplicação da mencionada teoria é a confusão

patrimonial entre o titular do controle e a sociedade controlada.

Na visão desses teóricos, a fraude e o abuso de direito apontados por

Requião não contemplam, devido ao caráter subjetivo, todas as possibilidades

de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. É

possível verificar, assim, que Comparato e Salomão Filho, contrariamente a

Requião, prendem-se a pressupostos objetivos.

Essa divergência doutrinária deu surgimento a duas teorias brasileiras

bem distintas acerca da desconsideração da personalidade jurídica: (i) a teoria

subjetiva, defendida por Requião, e que se funda na fraude e no abuso; e (ii) a

teoria objetiva, defendida por Comparato e Salomão Filho, que tem como

fundamento da desconsideração a confusão patrimonial.

Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 139), ao analisar essas duas teorias,

reconhece o mérito de Comparato ao apontar a insuficiência da teoria

subjetiva, mas ressalta, por outro lado, que a confusão patrimonial, que

também justifica a desconsideração da personalidade jurídica, não é a única

hipótese ou o único fundamento para a aplicação dessa teoria, nos seguintes

termos:

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Salienta-se que, inicialmente, a teoria da desconsideração, por

escassez de aplicação, baseava-se principalmente na

ocorrência de fraude e do abuso – concepção subjetivista –, e

com a evolução da teoria e a atuação dos tribunais em casos

práticos pôde-se destacar fundamentos para a sua aplicação,

dando-lhe um enfoque mais objetivista. Entretanto, deve-se

depreender que a teoria não pode e nem deve ser entendida

como de caráter exclusivamente subjetivista ou objetivista,

como quiseram alguns doutrinadores. A coexistência de ambas

as concepções é possível, completando uma à outra, pois a

concepção objetivista não abrange todos os casos possíveis de

aplicação da teoria, devendo-se socorrer da concepção

subjetivista, que pode atingir maior número de hipóteses de

aplicação da teoria.

Conforme consta no trecho acima transcrito, Coelho abandonou o

mencionado “maniqueísmo” até então existente na doutrina e passou a

sustentar o seguinte: devido à concepção objetivista não abranger todos os

casos possíveis de aplicação da teoria da desconsideração, deve-se aplicar,

também, a concepção subjetivista, que fundamenta outras hipóteses de

aplicação.

É preciso destacar, porém, que o enfocado “maniqueísmo” doutrinário

surgiu sob a égide da vigência do Código Civil de 1916 e das diversas decisões

judiciais que, inspiradas pelas decisões proferidas pelos tribunais ingleses (e

posteriormente, americanos) se propuseram a aplicar a mencionada teoria com

base na “equidade”, conforme já destacado.

Ocorre que a regra jurídica que trata da desconsideração da

personalidade jurídica encontra-se atualmente positivada no artigo 50 do

Código Civil (que pode ser considerado uma cláusula geral do direito, sendo

aplicável, assim, a todos os ramos jurídicos, conforme acima visto), segundo o

qual, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de

finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir que os efeitos de

certas e determinadas relações obrigacionais sejam estendidos aos bens

particulares dos administradores ou sócios de pessoa jurídica.

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Eis, então, os atuais pressupostos autorizadores da aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica: o abuso da personalidade jurídica,

caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Tais

pressupostos não foram lançados na lei “por acaso”; foram construídos pela

doutrina e pela jurisprudência nacional durante décadas de aplicação da

mencionada teoria.

Por isso, a doutrina brasileira moderna defende que o artigo 50 do

Código Civil recepcione tanto o principal critério da teoria subjetivista, baseado

no abuso de direito, quanto aquele outro critério da teoria objetivista, que exige

a demonstração da confusão patrimonial (TÔRRES, Heleno Taveira, 2005, p.

54, e COELHO, Fábio Ulhoa, 2012, p. 139).

Não se limitando à polêmica acima destacada, Mary Elbe Queiroz (2005,

p. 137) visualiza, de forma analítica, requisitos implícitos e explícitos para a

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. De acordo com seu

entendimento, deve haver:

i) a existência de uma obrigação legal, isto é, uma relação

obrigacional entre credor e o devedor pessoa jurídica cuja

personalidade será desconsiderada;

ii) a obrigação não tenha sido cumprida;

iii) o não cumprimento esteja relacionado com outro ato ilícito,

ou seja, o abuso de personalidade jurídica, pois não é qualquer

inadimplemento que justifica a medida, o abuso tem que ser a

causa do prejuízo ao credor ou a terceiro;

iv) o abuso da personalidade jurídica decorra de desvio de

finalidade (uso anormal da pessoa jurídica ou desvirtuamento

da sua finalidade institucional) ou confusão patrimonial (mistura

entre o patrimônio da pessoa jurídica e o dos sócios, tendo em

vista que a constituição de sociedade pressupõe a separação

patrimonial entre o patrimônio dela e a dos seus membros);

v) a desconsideração será aplicada e procedida por autoridade

judicial;

vi) a pessoa que está habilitada a requerer a desconsideração:

a parte prejudicada (o credor) ou o Ministério Público quando

lhe couber intervir no processo.

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45

A existência de uma obrigação legal é condição sine qua non, sem a

qual não há porque desconsiderar a personalidade jurídica, dispensando

maiores reflexões. Quanto ao não cumprimento, a mencionada autora

esclarece, porém, que:

Em decorrência da garantia da liberdade e da proteção da

personalidade jurídica, não é qualquer inadimplemento de

obrigação que poderá ensejar a desconsideração, é mister que

seja provada a má-fé, o artifício ou a manobra no sentido de

burlar, fraudar ou criar um escudo ou manto para desviar e

mascarar a realidade em prejuízo de terceiro de boa-fé

(QUEIROZ, 2005, p. 138).

Logo, o simples inadimplemento da obrigação não enseja a aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica: o inadimplemento deve decorrer,

necessariamente, de um ato ilícito caracterizado pela intenção de frustrar a

satisfação do crédito titularizado pelo credor.

O Superior Tribunal de Justiça tem demonstrado esse entendimento em

suas decisões, conforme se depreende do trecho abaixo transcrito, extraído da

Ementa do Acórdão proferido por ocasião do julgamento do Recurso Especial

nº 1.141.447/SP, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti, decidido em 8 de

fevereiro de 2011 pela Terceira Turma do mencionado tribunal:

DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. ART. 50 DO

CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1) DISTINÇÃO DE

RESPONSABILIDADE DE NATUREZA SOCIETÁRIA.

2) REQUISITO OBJETIVO E REQUISITO SUBJETIVO.

3) ALEGAÇÃO DE DESPREZO DO ELEMENTO SUBJETIVO

AFASTADA.

I - Conceitua-se a desconsideração da pessoa jurídica como

instituto pelo qual se ignora a existência da pessoa jurídica

para responsabilizar seus integrantes pelas conseqüências de

relações jurídicas que a envolvam, distinguindo-se a sua

natureza da responsabilidade contratual societária do sócio da

empresa.

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46

II - O artigo 50 do Código Civil de 2002 exige dois requisitos,

com ênfase para o primeiro, objetivo, consistente na

inexistência de bens no ativo patrimonial da empresa

suficientes à satisfação do débito e o segundo, subjetivo,

evidenciado na colocação dos bens suscetíveis à execução no

patrimônio particular do sócio – no caso, sócio-gerente

controlador das atividades da empresa devedora.

III - Acórdão cuja fundamentação satisfez aos dois requisitos

exigidos, resistindo aos argumentos do Recurso Especial que

alega violação ao artigo 50 do Código Civil de 2002.

IV - Recurso Especial improvido. (sic.)

Vejamos um esclarecer trecho do voto do ilustre Ministro Relator:

(...)

7.- A jurisprudência desta Corte chancela o caráter objetivo-

subjetivo dos requisitos da desconsideração, exigindo a

presença de duas facetas: a) a inexistência de ativo patrimonial

do devedor, apto a arcar com as consequências do débito

(“Haftung”) e b) a utilização maliciosa da pessoa jurídica

desfalcada de ativo patrimonial por parte do sócio detentor dos

haveres negados à pessoa jurídica deles exausta.

(...)

Destaca-se, ainda, no mesmo sentido, a decisão proferida pela

mencionada Corte de Justiça no julgamento do Agravo Regimental no Agravo

em Recurso Especial nº 28.612/SP, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes

Maia Filho, realizado pela Primeira Turma em 14 de agosto de 2012:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM

RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE SOCIETÁRIA E RESPONSABILIDADE

PESSOAL DOS SEUS SÓCIOS E ACIONISTAS

CONTROLADORES. INCABIMENTO. AUSÊNCIA DE

COMPROVAÇÃO DE DESVIO DE FINALIDADE OU DE

EXCESSO DE PODER. NECESSIDADE DE REEXAME DO

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47

CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS.

IMPOSSIBILIDADE EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL.

INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL

DESPROVIDO.

(...)

2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem

aplicação no domínio do Direito Obrigacional e se restringe aos

casos em que a entidade originariamente obrigada deixa de

desempenhar a tempo e modo o dever jurídico assumido, em

decorrência ou em face de atos praticados pelos seus

dirigentes, controladores ou acionistas, com desvio de

finalidade ou excesso de poder (art. 50 do Código Civil), pelo

que estes assumem a responsabilidade ilimitada pela solvência

daquele mesmo dever.

3. A insolvência da sociedade, ocorrente quando os seus

recursos são insuficientes para responder pelas obrigações

assumidas, não enseja, por si só, a aplicação da teoria da

desconsideração de sua personalidade, eis que os seus

acionistas e controladores não estão legalmente obrigados a

realizar aportes financeiros emergenciais.

4. Agravo Regimental da COMPANHIA DE SANEAMENTO

BÁSICO DE SÃO PAULO - SABESP desprovido.

Assim, o simples fato de o credor não conseguir receber seu crédito não

implica, necessariamente, na possibilidade de desconsideração da

personalidade jurídica: deve ficar evidenciado dolo, isto é, a intenção de frustrar

a satisfação do crédito.

Em outro esclarecedor julgamento realizado pelo Superior Tribunal de

Justiça em 11 de fevereiro de 2014, de relatoria da ministra Nancy Andrighi,

nos autos do Recurso Especial nº 1.395.288, foi reafirmado esse entendimento

ao se decidir que a dissolução da sociedade não dá ensejo, per si, à aplicação

da desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que se exige a

inequívoca demonstração da intenção de impedir deliberadamente a satisfação

dos interesses dos credores:

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48

Civil. Dissolução irregular da sociedade empresária.

Desconsideração da personalidade jurídica. Ausência de

indícios do abuso da personalidade. Artigo analisado: 50,

CC/2002.

1. Ação de prestação de contas distribuída em 2006, da qual foi

extraído o presente recurso especial, concluso ao gabinete em

05.07.2013.

2. Discute-se se o encerramento irregular da sociedade

empresária, que não deixou bens suscetíveis de penhora, por

si só, constitui fundamento para a desconsideração da

personalidade jurídica.

3. A criação de uma sociedade de responsabilidade limitada

visa, sobretudo, à limitação para os sócios dos riscos da

atividade econômica, cujo exercício, por sua vez, a todos

interessa, na medida em que incentiva a produção de riquezas,

aumenta a arrecadação de tributos, cria empregos e gera

renda, contribuindo, portanto, com o desenvolvimento

socioeconômico do país.

4. No entanto, o desvirtuamento da atividade empresarial,

porque constitui verdadeiro abuso de direito dos sócios e/ou

administradores, é punido pelo ordenamento jurídico com a

desconsideração da personalidade jurídica da sociedade,

medida excepcional para permitir que, momentaneamente,

sejam atingidos os bens da pessoa natural, de modo a

privilegiar a boa-fé nas relações privadas.

5. A dissolução irregular da sociedade não pode ser

fundamento isolado para o pedido de desconsideração da

personalidade jurídica, mas, aliada a fatos concretos que

permitam deduzir ter sido o esvaziamento do patrimônio

societário ardilosamente provocado de modo a impedir a

satisfação dos credores em benefício de terceiros, é

circunstância que autoriza induzir existente o abuso de direito,

consubstanciado, a depender da situação fática delineada, no

desvio de finalidade e/ou na confusão patrimonial.

6. No particular, tendo a instância ordinária concluído pela

inexistência de indícios do abuso da personalidade jurídica

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49

pelos sócios, incabível a adoção da medida extrema prevista

no art. 50 do CC/2002.

7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte,

desprovido.

Voltando suas atenções a outros pressupostos, Maria Helena Diniz

(2012, pp. 347-348) explica que:

Pelo Código Civil, como se vê, quando a pessoa jurídica se

desviar dos fins (objetivo diferente do ato constitutivo para

prejudicar alguém; mau uso da finalidade social) que

determinaram sua constituição, pelo fato de os sócios ou

administradores a utilizarem para alcançar objetivo diverso do

societário, ou, quando houver confusão patrimonial (mistura do

patrimônio social com o particular do sócio, causando dano a

terceiro) em razão de abuso da personalidade jurídica, o órgão

judicante, a pedido do interessado ou do Ministério Público,

estará autorizado, como base na prova material do dano, a

desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica (…).

O desvio de finalidade e a confusão patrimonial são considerados,

portanto, na visão da referida autora, os meios, isto é, as formas pelas quais

deve ocorrer o abuso da personalidade jurídica. Assim, se não houver desvio

de finalidade ou confusão patrimonial, não há que se falar em abuso da

personalidade jurídica para fins de aplicação da mencionada teoria.

Tais pressupostos, caracterizadores do abuso da personalidade jurídica,

também são largamente reconhecidos pela jurisprudência pátria. Destaca-se,

nesse sentido, a decisão proferida pela mencionada Corte Superior de Justiça

no julgamento do Recurso Especial nº 970.635/SP, de relatoria da Ministra

Nancy Andrighi, realizado pela Terceira Turma em 10 de novembro de 2009:

Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de

título judicial. Inexistência de bens de propriedade da empresa

executada. Desconsideração da personalidade jurídica.

Inviabilidade. Incidência do art. 50 do CC/02. Aplicação da

Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

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50

- A mudança de endereço da empresa executada associada à

inexistência de bens capazes de satisfazer o crédito pleiteado

pelo exequente não constituem motivos suficientes para a

desconsideração da sua personalidade jurídica.

- A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é

aquela prevista no art. 50 do CC/02, que consagra a Teoria

Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva

quanto na objetiva.

- Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais,

somente é possível a desconsideração da personalidade

jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior

Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato

intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo

da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão

patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração),

demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de

separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus

sócios.

Após explicar que a desconsideração da personalidade jurídica ostenta

caráter subsidiário, isto é, constitui a ultima ratio do direito obrigacional,

Leonardo Netto Parentoni (2014, p. 70) assevera que os pressupostos em

questão, quais sejam, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, são

cumulativos e constituem o “DNA” da desconsideração da personalidade

jurídica. Aliás, o caráter subsidiário também é defendido por Heleno Taveira

Tôrres (2005, pp. 50-51), para quem:

A desconsideração da personalidade jurídica é instrumento que

somente poderá ser usado em condições excepcionas, quando

presentes seus requisitos, segundo provas muito evidentes,

sob pena de fazer dos tipos societários conceitos relativos e

desprovidos de qualquer segurança jurídica, quanto aos

critérios que os guiam, como separação patrimonial,

responsabilidade etc. Firma-se aqui o princípio da

subsidiariedade para aplicação da teoria da desconsideração,

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51

que só pode ser aplicada como medida extrema em relação a

outros meios ou mecanismos de produção de provas.

Devido à importância de tais pressupostos (desvio de finalidade e

confusão patrimonial) para a aplicação da desconsideração da personalidade

jurídica, e considerando as diversas polêmicas e imprecisões que sobre eles

recaem, entendemos ser pertinente estudá-los com maior grau de

detalhamento.

2.6.1 O desvio de finalidade

Ao consultarmos os léxicos jurídicos, verificamos que o desvio de

finalidade (ou de função) é explicado como abuso de direito:

(...) pode ser definido o abuso de direito como exercício

anormal do direito, sem motivo legítimo, sem justa causa,

unicamente com o intuito de prejudicar a outrem.

Sempre se caracteriza pela evidência de dolo ou má-fé. E

estrutura a lide temerária.

O abuso de direito tanto se revela nos atos do autor, quando

intenta ação com espírito de emulação, mero capricho ou erro

grosseiro, como nos do réu, quando opõe, maliciosamente,

resistência injustificada ao andamento do processo (Cód. de

Proc. Civil, art. 16).

(...)

O direito à liberdade, que é liberdade, é assegurado aos

brasileiros e estrangeiros residentes no país, é

constitucionalmente assegurado dentro dos princípios que as

próprias leis determinam (CF de 1988, art. 5º). E pessoa não

pode usar dessa liberdade para transgredir os princípios

assentados nas leis (SILVA, 2003, p. 7).

O desvio de finalidade ou abuso de direito pode ser praticado, dentre

outras possibilidades, por meio de fraude, conforme também explica De Plácido

e Silva (2003, p. 370):

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(...) a fraude traz consigo o sentido do engano, não como se

evidencia no dolo, em que se mostra a manobra fraudulenta

para induzir outrem à prática de ato, de que lhe possa advir

prejuízo, mas o engano oculto para furtar-se o fraudulento ao

cumprimento do que é de sua obrigação ou para logro de

terceiros. É a intenção de causar prejuízo a terceiros.

(...)

A fraude, assim, firma-se na evidência do prejuízo causado

intencionalmente, pela oculta maquinação.

O vocábulo desvio também é frequentemente empregado pela

terminologia jurídica como sinônimo de uso indevido ou anormal. Assim, para

que ocorra desvio de finalidade mediante o exercício abusivo da personalidade

jurídica, deve ocorrer o uso anormal ou indevido da pessoa jurídica.

Se o objetivo principal de se atribuir à pessoa jurídica personalidade

distinta da personalidade dos membros que a compõem é o de conferir-lhe

maior agilidade, estabilidade, permanência e segurança nas relações sociais,

para que, mediante atividade econômica organizada, ofereça ao mercado bens

e serviços, não pode então essa pessoa jurídica ser utilizada para fins diversos

e escusos, com vistas à dolosa frustração da satisfação dos interesses de

terceiros.

Assim, aproveitando os exemplos dados pelo mencionado dicionarista,

comete abuso de direito (ou desvio da função) quem usa a constitucionalmente

assegurada liberdade de exercício de atividade econômica ou de profissão com

o intuito de locupletar-se ilicitamente em face de outrem (que, em tese, pode

ser o Fisco), frustrando-lhe seus legítimos direitos e causando-lhe intencional

prejuízo.

Leonardo Netto Parentoni (2014, p. 63) afirma que o abuso de direito

ensejador da desconsideração da personalidade jurídica é caracterizado por

um ato formalmente lícito, pois contra o ato formalmente ilícito já existe a

responsabilidade civil prevista no artigo 186 do Código Civil:

A ilicitude que caracteriza a desconsideração da personalidade

jurídica situa-se no plano substancial (no conteúdo da

atividade, na maneira como é exercida ou nos efeitos por ela

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efetivamente visados). Ou seja, se a atividade é formalmente

contrária ao Direito, torna-se possível responsabilizar

civilmente o seu executor, de forma direta, não havendo

necessidade de lifting the corporate veil.”

De acordo com esse entendimento, a desconsideração da personalidade

jurídica será possível apenas se estiver ocorrendo, de forma subjacente, a

partir de uma atividade ou ato aparentemente lícito (ou de ato decorrente dela),

a prática de um abuso de direito, com o intuito de locupletar-se em detrimento

de outrem.

Ao afirmar que não há dúvidas quanto à configuração da fraude como

ilícita, Mary Elbe Queiroz (2005, pp. 96-97) ensina que:

A fraude tributária é um conceito genérico no qual se englobam

todos os procedimentos do contribuinte que encerram

violações, artifícios, manipulações, abusos etc. Todos eles com

o objetivo de burlar a aplicação das leis tributárias, evitar ou

reduzir, disfarçar ou manipular a ocorrência do fato gerador e,

por consequência, o nascimento da obrigação tributária, ou

fazê-la surgir formalmente de modo diverso daquele

efetivamente ocorrido no mundo factual, com a finalidade de

pagar menos tributo.

Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 351) também ensina, por sua vez, que:

Não é fraude à lei em matéria tributária descumprimento direto

de normas tributárias, que são cogentes e imperativas. Assim

pensam muitos, mas se equivocam. Fraude à lei que importa

ao direito tributário é o afastamento de regime mais gravoso ou

tributável por descumprimento indireto de regra imperativa de

direito privado, na composição do próprio ato ou negócio

jurídico.

É possível inferir, assim, que o cumprimento meramente formal de

dispositivos legais, mas em confronto com os valores prestigiados e tutelados

pelo ordenamento jurídico, isto é, se o ilícito estiver situado no plano

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substancial do ato (no seu conteúdo), apesar de formalmente lícito, e se tal ato

for assim praticado com a intenção de obter um fim contrário ao demonstrado

em sua prática, igualmente contrário ao direito, que é o de indevidamente

locupletar-se às custas de outrem, causando-lhe prejuízo ou frustrando-lhe a

satisfação de seus legítimos direitos patrimoniais, poderá ocorrer a

caracterização – em tese – do ato reprimível por meio da desconsideração da

personalidade jurídica.

Mary Elbe Queiroz (2005, pp. 80-81) explica que a distinção e a fixação

do liminar entre o lícito (elisão) e o ilícito (evasão) no âmbito do direito tributário

(e não só no direito tributário) é extremamente difícil e complexa, tornando o

caminho perseguido pelo intérprete e aplicador da norma tributária tortuoso e

cansativo, e que:

Para se proceder ao exame do assunto mister se faz

estabelecer a premissa de que nem todos os comportamentos

dos contribuintes que resultem em um menor ônus fiscal, por

meio da busca de redução ou exclusão do pagamento de

tributo ou, ainda, representem a obtenção de vantagem fiscal,

deverão ser considerados como ilícitas ou ilegais. A ordem

jurídica aceita, como já reconhecido pela maioria da doutrina e

da jurisprudência judicial, que os particulares possam adotar

procedimentos, desde que lícitos e sem manipulações,

artifícios ou subterfúgios, na gestão do seu patrimônio e bens,

no sentido de planejarem a sua vida empresarial com vistas à

economia de tributos. Inclusive, independentemente de haver

ou não outro propósito negocial (business purpose).

O business purpose (propósito negocial) é, portanto, um dos indícios

pelos quais é possível estabelecer a linha divisória entre o lícito e o ilícito, isto

é, entre o abuso e a inexistência de abuso da pessoa jurídica para fins de

aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Todos que conhecem o dia a dia do direito tributário sabem como são

frequentes e variadas as engenharias e os expedientes criados por alguns

contribuintes com o intuito de fugir do ônus financeiro representado pela carga

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tributária. Porém, essa fuga nem sempre é lícita: nem sempre está presente o

business purpose.

Exemplos corriqueiros de abusos nos lindes do Direito Tributário são as

denominadas simulações de estabelecimento ou de operações, com vistas à

transferência de créditos de Imposto sobre Produtos industrializados (IPI) ou de

Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), com vistas a

frustrar os legítimos interesses do Estado-fisco.

As formas utilizadas nesses casos são aparentemente lícitas, como uma

venda e compra interestadual de mercadorias ou fabricação de um produto,

mas, às vezes, subjaz nesses negócios uma ilicitude, que é a simples

transferência de créditos tributários sem a respectiva transferência de

mercadorias, ou seja, um desvio de finalidade.

2.6.2 A confusão patrimonial

Quando alguns indivíduos decidem constituir uma pessoa jurídica, como,

e.g., uma sociedade empresária, e dela se tornarem sócios, presume-se que

concordam com a separação patrimonial decorrente do modelo empresarial

adotado, tendo o dever jurídico, portanto, de observá-la. Dessa forma, a

separação patrimonial entre os bens dos sócios e os bens da sociedade é um

pressuposto do modelo empresarial adotado, e qualquer “mistura” desse

patrimônio, isto é, qualquer confusão patrimonial, descaracteriza o modelo.

Por consequência, se não estão mais vinculados ao modelo escolhido,

devido à sua descaracterização, não há que se falar na limitação patrimonial,

se essa for um dos efeitos do referido modelo. Por isso, Arnold Wald e Luiza

Rangel de Moraes (2005, p. 244) afirmam que:

O critério da confusão patrimonial para desconsideração da

personalidade jurídica externa corporis parte da própria

concepção de separação patrimonial, de que se reveste a

sociedade. Quando os sócios distorcem tal característica, cabe

o levantamento do véu da pessoa jurídica, de modo a viabilizar

a incidência da norma jurídica que teria sido afastada mediante

tal artifício.

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56

Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 252) explica, didaticamente, como

constatar tal confusão:

(...) se pelo exame da escrituração contábil ou das contas

bancárias apurar-se que a sociedade paga dívidas do sócio, ou

este recebe créditos dela, ou o inverso, ou constatar-se a

existência de bens de sócio registrados em nome da

sociedade, e vice-versa, comprovada estará a referida

confusão.

Dessa forma, a escrituração contábil conjunta, ou mesmo o pagamento

de despesas de uma pessoa jurídica por outra, poderá ensejar a confusão

patrimonial caracterizadora do abuso que permite, nos termos do artigo 50 do

Código Civil, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica.

Ocorrerá abuso de personalidade jurídica, portanto, qualificado pela

confusão patrimonial, sempre que os sócios e a pessoa jurídica com

patrimônios distintos por força da lei (modelo societário adotado) vierem a

exercer idênticos direitos de uso, gozo e disposição dos bens pertencentes a

uma e a outra personalidade, escondendo-se, assim, atrás do manto formal da

pessoa jurídica, com o escopo de obter vantagens indevidas, ou mesmo de

frustrar o adimplemento de obrigações particulares ou da própria pessoa

jurídica encoberta.

De acordo com Leonardo Netto Parentoni (2014, p. 64), muito embora o

membro (sócio) de determinada pessoa jurídica possa influenciar a formação

da vontade da entidade (sem que se configure qualquer desrespeito à

autonomia da atividade por ela desenvolvida), não se admite que venha a

substituir essa vontade pela sua própria, assenhorando-se, assim, dos bens

que compõem o patrimônio destacado como se a ele pertencessem

diretamente, e não apenas de forma indireta, como resultado eventual daquela

atividade.

Assim, uma vez contraídas e saldadas as obrigações da pessoa jurídica,

o eventual resultado pode ser disponibilizado aos sócios, mas isso não pode

ser feito antes de se apurar o resultado, o que só é possível após saldadas as

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obrigações. Os sócios de uma pessoa jurídica dotada de patrimônio próprio

devem respeitar o devido distanciamento jurídico dos bens da sociedade, para

que possam usufruir, assim, da garantia legal da limitação de responsabilidade

patrimonial, que, vimos, não é absoluta.

Nesse sentido, o autor em destaque (PARENTONI, 2014, p. 65) explica

que:

Quando tais membros atuam como se fossem titulares de

poder direto de disposição sobre os bens que compõem o

patrimônio destacado, ao invés de simples credores do

resultado da atividade por meio dele exercida, o limite legal da

responsabilidade deixa de ser aplicável, pois passam a se

confundir duas esferas patrimoniais que deveriam ser tratadas

separadamente.

Deve ser estritamente respeitada, portanto, aquela mencionada

“fronteira” entre a autonomia patrimonial da sociedade e do sócio. Quando não

for possível distinguir o que é bem da pessoa jurídica e o que é bem da pessoa

física (sócio) que a compõe, seja de forma pontual ou de forma generalizada,

estará caracterizada a confusão patrimonial.

Contudo, conforme esclarece Alexandre Alberto Teodoro da Silva (2007,

p. 136), a simples ocorrência de confusão patrimonial não legitima, per si, a

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Para o referido autor,

a confusão patrimonial a que se refere o artigo 50 do Código Civil deve

decorrer de um abuso da personalidade jurídica:

Nesse caso, o que o art. 50 do CC quer atingir é a confusão

patrimonial prejudicial, isto é, aquela que é utilidade como

escudo para a obtenção de resultados que contrariem os fins

econômicos e sociais do direito à personalidade jurídica.

Negar esse posicionamento equivale a afirmar – na contramão da

doutrina majoritária, já mencionada – que o direito brasileiro só adotou a teoria

menor da desconsideração da personalidade jurídica, que prescinde do

elemento anímico (intenção).

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2.7 Os pressupostos são exemplificativos?

Após definir a desconsideração da personalidade jurídica como o

eventual e episódico desconhecimento de sua existência em razão de abuso,

com o propósito de estender a responsabilidade ao patrimônio de sócio ou de

administrador, Erik Frederico Gramstrup (2007, p. 63) afirma que não destaca e

nem utiliza, em sua definição, aqueles critérios de confusão patrimonial e de

desvio de finalidade pelos quais o abuso da personalidade jurídica é

manifestado, sob o argumento de que o artigo 50 do Código Civil os menciona

com finalidade meramente didática.

O referido teórico entende que esses pressupostos são espécies do

gênero abuso, e que foram enunciados pelo legislador de forma

exemplificativa, somente e tão somente para facilitar o entendimento da

expressão de maior extensão, que é o abuso. De acordo com sua concepção,

a confusão patrimonial e o desvio de finalidade não exaurem todas as

possibilidades de abuso, sendo, pois, uma enumeração de hipóteses possíveis

e não taxativas. Defende, com base nisso, que “Quem abusa da personalidade

jurídica afasta-a dos objetivos legítimos para as quais foi concebido o ente

moral”, bastando isso, e só, à desconsideração da personalidade jurídica

(GRAMSTRUP, 2007, p. 63).

Ao consultarmos De Plácido e Silva (2003, p. 6), podemos verificar que o

vocábulo abuso é usado na linguagem jurídica para expressar excesso de

poder ou de direito, bem como o mau uso ou má aplicação desse direito. Após

explicar que o termo em questão é utilizado em várias expressões, dentre as

quais, destaca-se o abuso de direito, explica que ele também significa:

Exercício anormal ou irregular do direito, isto é, sem que

assista a seu autor motivo legítimo ou interesse honesto

justificadores do ato, que, assim, se verifica e se indica como

praticado cavilosamente, por maldade ou para prejuízo alheio.

(...)

Em razão disso pode ser definido o abuso de direito como

exercício anormal do direito, sem motivo legítimo, sem justa

causa, unicamente com o intuito de prejudicar a outrem.

Sempre se caracteriza pela evidência de dolo ou má-fé.

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Talvez seja por isso que Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 288) afirma

que os atos escusos, passíveis de ensejar a desconsideração da personalidade

jurídica, podem ser dos mais diversos tipos, não havendo como realizar uma

enumeração apriorística, dependo, assim, do exame da situação in concreto.

Fábio Ulhoa Coelho (1989, p. 13) também compartilha do mesmo

entendimento, isto é, de que o rol positivado no artigo 50 do Código Civil é

meramente exemplificativo, ao afirmar que:

(...) inúmeros são os expedientes de que podem lançar mão

aqueles que desejam locupletar-se ilicitamente utilizando-se da

separação patrimonial característica do instituto da pessoa

jurídica,

parecendo defender que o rol positivado é meramente exemplificativo.

Não há como traçar, portanto, de acordo com essa perspectiva, uma

enumeração apriorística de todas as hipóteses permissivas da aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica, pois seu cabimento dependerá, em

cada caso, da análise quanto ao efetivo desvio de função.

Ao reconhecer que é realmente difícil presumir aprioristicamente todas

as situações, Heleno Taveira Tôrres (2005, p. 53) explica que vários

ordenamentos adotam o uso de uma regra geral para desconsideração da

personalidade jurídica, dentre os quais o Brasil, afirma, por meio do

mencionado artigo 50 do Código Civil, cujas prescrições devem ser aplicadas a

todos os casos não previstos em leis específicas, concluindo que isso

é um modo de evitar qualquer espécie de alegação de lacunas

no sistema, atribuindo ao julgador critérios para que este possa

desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade em certos

casos concretos para os quais não haja disposição expressa.

Basta identificar, portanto, quando a pretexto de se realizar ou exercer

aquelas realidades jurídicas lícitas e preordenadas pelo ordenamento jurídico,

os legítimos fins da personalidade jurídica são elididos (como, e.g., o propósito

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negocial), colocando-se em seu lugar, como real finalidade, o locupletamento

ilícito em face de terceiros (GRAMSTRUP, 2007, p. 63).

Conjugando tais conclusões – com as quais concordamos – às

premissas já traçadas neste trabalho, podemos concluir que o abuso,

genericamente considerado, pode ser entendido como um desvio quanto aos

fins da pessoa jurídica, e que pode ser caracterizado pela confusão patrimonial

ou por qualquer outra forma abusiva, desde que intencional, com o escopo de

frustrar os legítimos direitos de terceiros.

Assim, quando o sócio utilizar a pessoa jurídica com a intenção de

locupletar-se ilicitamente em face de terceiros, haverá um abuso no seu uso,

que pode ser caracterizado pela confusão patrimonial, desvio na finalidade,

fraude, simulação, etc., que legitimarão a aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica.

2.8 As duas teorias brasileiras: a teoria maior e a teoria menor

É de Fábio Ulhoa Coelho (2005, pp. 260-267) a explicação pioneira de

duas teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica: a teoria

menor e a teoria maior. O autor ensina que a teoria menor considera o simples

prejuízo do credor motivo suficiente para a desconsideração da personalidade

jurídica, dispensando, assim, a comprovação do abuso da personalidade

jurídica:

A teoria menor da desconsideração é, por evidente, bem

menos elaborada que a maior. Ela reflete, na verdade, a crise

do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a

sociedades empresárias. O seu pressuposto é simplesmente o

desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em

razão da insolvabilidade ou falência desta.

De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a

sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso

basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A

formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização

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fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou

não abuso de forma (COELHO, 2005, p. 266).

Assim, de acordo com essa teoria, se a pessoa jurídica não possui

patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo pelas

obrigações da pessoa jurídica.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (que reflete o

entendimento dominante em todos os Tribunais brasileiros) entende que a

teoria menor tem aplicação, e.g., nas relações de consumo, conforme consta

no trecho a seguir transcrito, extraído da ementa resultante do julgamento do

Recurso Especial nº 1.111.153/RJ, de relatoria do Ministro Luis Felipe

Salomão, realizado em 10 de maio de 2013:

(...)

1. É possível, em linha de princípio, em se tratando de vínculo

de índole consumerista, a utilização da chamada Teoria Menor

da desconsideração da personalidade jurídica, a qual se

contenta com o estado de insolvência do fornecedor, somado à

má administração da empresa, ou, ainda, com o fato de a

personalidade jurídica representar um “obstáculo ao

ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (art.

28 e seu § 5º, do Código de Defesa do Consumidor). (...)

Por outro lado, a teoria maior pressupõe a efetiva prática de abuso da

personalidade jurídica pelo sócio como requisito indispensável para que se

possa ignorar a autonomia patrimonial em estudo (COELHO, 2005, p. 262).

Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 251) explica, por sua vez, que a teoria

maior se subdivide nas vertentes subjetiva e objetiva, já analisadas no presente

estudo, e que consideram o fator anímico (intenção) presente no abuso de

direito e na confusão patrimonial como elemento de distinção em relação à

teoria menor.

O mencionado teórico entende que a doutrina a e jurisprudência

brasileiras adotam a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica

somente em sua vertente objetiva, sob o argumento de que não basta o

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simples prejuízo do credor (pela mera insolvência do devedor) e que não se

aplica o abuso de direito por ser de difícil comprovação.

Portanto, de acordo com a concepção objetiva da teoria maior defendida

por Carlos Roberto Gonçalves, a desconsideração da personalidade jurídica

pressupõe, sobretudo, a confusão patrimonial intencional, praticada com o

intuito de frustrar os direitos do credor.

Apesar de concordar com a afirmação de que a vertente objetiva da

teoria maior facilita a tutela dos interesses do credor ou de terceiro lesado pelo

uso abusivo da pessoa jurídica, pois o ilícito, nesse caso, é de fácil

comprovação, ante a existência de um pressuposto objeto (confusão

patrimonial), sustenta Fábio Ulhoa Coelho (2012b, p. 67) que essa vertente não

exaure, contudo, todas as hipóteses em que é cabível a desconsideração da

personalidade jurídica, sob o argumento de que nem todas as ilicitudes são

caracterizadas unicamente pela confusão patrimonial:

(…) a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve

ser adotada como o critério para circunscrever a moldura de

situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é a mais ajustada

à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua

vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante.

Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da

autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a

confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus

integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a

personalidade jurídica da sociedade, somente porque o

demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de

confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a

fraude.

Assim, de acordo com Ulhoa Coelho, caracteriza-se o abuso da

personalidade jurídica quando verificada a confusão patrimonial ou quando

verificado o desvio de finalidade (mediante fraude, abuso, etc.), mesmo sem a

existência de confusão patrimonial, nesse caso, desde que a pessoa jurídica

esteja sendo utilizada por sócio ou administrador para se locupletar ilicitamente

em detrimento de terceiros.

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63

Respeitando as abalizadas vozes que se posicionam de forma diferente,

concordamos com Fábio Ulhoa Coelho, cujas lições nos permitem concluir que

as duas vertentes (objetiva e subjetiva) da teoria maior da desconsideração da

personalidade jurídica foram adotadas pelo legislador brasileiro no artigo 50 do

Código Civil, regra geral para a sua aplicação, pois nem toda ilicitude, isto é,

nem todo abuso, implica em confusão patrimonial.

É o que está refletido na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,

conforme se observa na ementa resultante do julgamento do Recurso Especial

nº 970.635/SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, realizado pela Terceira

Turma em 10 de novembro de 2009 e que, apesar de já ter sido citado neste

trabalho, importa repetir:

Processual civil e civil. Recurso especial. Ação de execução de

título judicial. Inexistência de bens de propriedade da empresa

executada. Desconsideração da personalidade jurídica.

Inviabilidade. Incidência do art. 50 do CC/02. Aplicação da

Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

- A mudança de endereço da empresa executada associada à

inexistência de bens capazes de satisfazer o crédito pleiteado

pelo exequente não constituem motivos suficientes para a

desconsideração da sua personalidade jurídica.

- A regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro é

aquela prevista no art. 50 do CC/02, que consagra a Teoria

Maior da Desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva

quanto na objetiva.

- Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais,

somente é possível a desconsideração da personalidade

jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior

Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato

intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo

da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão

patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração),

demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de

separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus

sócios.

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Assim, contemplando os ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho (2012b,

p. 67), a Corte Superior de Justiça reconheceu que o artigo 50 do Código Civil

contemplou as duas vertentes (objetiva e subjetiva) da teoria maior da

desconsideração da personalidade jurídica, o que causou imensa satisfação ao

autor, conforme afirmou (COELHO, 2005, p. 261).

2.9 A natureza jurídica do vínculo obrigacional

A obrigação é um dos institutos mais importantes do direito, mormente

no subsistema do direito tributário. De acordo com Orlando Gomes, em obra

atualizada por Edvaldo Brito (2007, pp. 15-17):

A obrigação pertence à categoria das relações jurídicas de

natureza pessoal.

Na sua definição, tem-se levado em conta, preferencialmente,

o lado passivo, que se designa pelo termo obrigação ou, mais à

justa, dívida. Vista, porém, do lado ativo, chama-se crédito. O

acento pode recair tanto no direito como no dever.

(...)

Encarada em seu conjunto, a relação obrigacional é um vínculo

jurídico entre duas partes, em virtude do qual uma delas fica

adstrita a satisfazer uma prestação patrimonial de interesse da

outra, que pode exigi-la, se não for cumprida

espontaneamente, mediante agressão ao patrimônio do

devedor.

Verifica-se, assim, nessa clássica lição, que o dever de adimplir a

obrigação incumbe – em princípio – ao sujeito que a contraiu, respondendo ele

com seu próprio patrimônio pelas obrigações contraídas. Entretanto, conforme

ressalta o próprio autor logo em seguida (GOMES, 2007, p. 18), a moderna

dogmática jurídica distingue, no conceito de obrigação, os de debitum e

obligatio, pois:

Ao se decompor uma relação obrigacional, verifica-se que o

direito de crédito tem como fim imediato uma prestação, e

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remoto, a sujeição do patrimônio do devedor. Encarada essa

dupla finalidade sucessiva pelo lado passivo, pode-se

distinguir, correspondentemente, o dever de prestação, a ser

cumprido espontaneamente, da sujeição do devedor, na ordem

patrimonial ao poder coativo do credor.

E conclui:

Analisada a obrigação perfeita sob essa perspectiva,

descortinam-se os dois elementos que compõem seu conceito.

Ao dever de prestação corresponde o debitum, à sujeição, a

obligatio, isto é, a responsabilidade. A esta responsabilidade

patrimonial empresta-se grande importância no direito

moderno, a ponto de se afirmar que a obrigação é uma relação

entre dois patrimônios.

De acordo com a doutrina alemã, o debitum corresponde ao schuld e a

obligatio corresponde ao haftung (SCHOUERI, 2015, passim). Preferimos,

contudo, por simples liberalidade, a nomenclatura empregada por Orlando

Gomes.

Em princípio, há inequívoca coexistência de debitum e obligatio numa

mesma relação obrigacional, pois a responsabilidade (obligatio) se manifesta

por consequência de um débito (debitum). Há situações, porém, em que o

debitum e a obligatio se separam, criando diferentes relações obrigacionais

marcadas pela inexistência de coexistência desses “elementos”.

Essa distinção permite perceber, inclusive, que poderá existir, em

determinadas situações, obligatio sem debitum, isto é, a responsabilidade

patrimonial (obligatio) sem que se tenha contraído a relação obrigacional

originária (debitum). Assim, o dever de adimplir a obrigação pode ser imputado

a pessoa diversa daquela que contraiu o vínculo obrigacional, e isso só é

possível pela moderna distinção entre dever de prestação (debitum) e

responsabilidade patrimonial (obligatio).

Essa distinção entre debitum e obligatio é amplamente empregada pelo

subsistema do direito tributário, como, e.g., no artigo 128 do Código Tributário

Nacional, que permite à lei atribuir, de modo expresso, a responsabilidade pelo

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crédito tributário (obligatio) a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da

respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte (que

originariamente contraiu o debitum) ou atribuindo-a a este em caráter supletivo

do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

O que ocorre, então, a partir dessa distinção, ao se desconsiderar a

personalidade de uma pessoa jurídica? Encontramos, junto ao Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo, Decisão afirmando que a desconsideração da

personalidade jurídica não leva ao afastamento completo da pessoa jurídica

desconsiderada do polo passivo da obrigação, que ficaria obrigada a

compartilhar, por solidariedade, da responsabilidade com a pessoa física que

sofreu os efeitos da desconsideração, conforme se observa na ementa

resultante do julgamento do Agravo de Instrumento nº 0096831-

62.2013.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Cesar Ciampolini, realizado

em 16 de dezembro de 2014:

Cumprimento de sentença. Encerramento irregular de

sociedades limitadas. Desconsideração das pessoas jurídicas e

atingimento dos bens particulares dos sócios. Sócia minoritária,

detentora de participação inexpressiva nas sociedades, mas

com poderes para geri-las individualmente. Responsabilidade

solidária que se afirma. Contraditório que não necessita ser

instaurado antes da deliberação de desconsideração. O direito

de defesa da pessoa por ela atingida pode ser exercido, válida

e amplamente, mesmo após a penhora eventual de seus bens.

Decisão de primeiro grau confirmada. Agravo de instrumento a

que se nega provimento.

Assim, amparados na distinção entre obligatio e debitum e nas lições de

Parentoni, entendemos, ao contrário do quanto decidido pelo Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo, que, na desconsideração da personalidade

jurídica, o sujeito sobre o qual foi estendida a responsabilidade patrimonial não

é um simples devedor solidário por responsabilidade, mas um verdadeiro

obrigado direto, atraindo para sua si, portanto e exclusivamente, todas as

consequências patrimoniais decorrentes de sua conduta.

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67

2.10 Os limites subjetivos e objetivos da desconsideração

Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho (2008, passim)

delimitaram o alcance subjetivo da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica ao explicar que seus efeitos devem alcançar somente aquele sócio ou

administrador que detém o poder de controle da sociedade e que agiu, na

fruição desse poder, de forma abusiva, em desrespeito à autonomia da

atividade societária. Dessa forma, os demais sócios ou administradores que

não têm poder de controle não podem ser atingidos pelos efeitos da

desconsideração da personalidade jurídica.

É o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao julgar, em 21 de

agosto de 2008, pela Terceira Turma, o Recurso Especial nº 786.345/SP, de

relatoria do Ministro Ari Pargendler:

COMERCIAL. DESPERSONALIZAÇÃO. SOCIEDADE POR

AÇÕES. SOCIEDADE POR QUOTAS DE

RESPONSABILIDADE LIMITADA. A despersonalização de

sociedade por ações e de sociedade por quotas de

responsabilidade limitada só atinge, respectivamente, os

administradores e os sócios-gerentes; não quem tem apenas o

status de acionista ou sócio.

Há, inclusive, um Projeto de Lei de iniciativa do Deputado Federal

Ricardo Fiúza que objetiva estabelecer que a desconsideração da

personalidade jurídica incide exclusivamente em desfavor do sócio com poder

de controle ou administrador. Trata-se do Projeto de Lei nº 2.426/2003,

arquivado desde 06 de março de 2008, que, em seu artigo 4º, prescreve o

seguinte:

Art. 4º. É vedada a extensão dos efeitos de obrigações da

pessoa jurídica aos bens particulares de sócio e ou de

administrador que não tenha praticado ato abusivo da

personalidade, mediante desvio de finalidade ou confusão

patrimonial, em detrimento dos credores da pessoa jurídica ou

em proveito próprio.

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É interessante observar que o dispositivo em questão vai além daquela

prescrição de que a desconsideração da personalidade jurídica incide

exclusivamente em desfavor do sócio com poder de controle ou administrador:

ele prescreve, complementarmente, que a desconsideração deve incidir

unicamente em desfavor do sócio com poder de controle ou administrador que

tenha praticado o abuso. Apesar da sutileza de sua redação, o emprego do

referido dispositivo eliminaria uma série de problemas, como, e.g., a tentativa

de se responsabilizar aquele que, apesar de sócio ou administrador, não o era

à época da prática do ato abusivo.

Mesmo sem preceito legal expresso em vigor, foi esse o entendimento –

correto, segundo nosso entendimento – firmado pelo Conselho da Justiça

Federal, conforme consta no Enunciado nº 7 da sua I Jornada de Direito Civil:

“Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a

prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que

nela hajam incorrido.”

Contudo, é possível verificar que o Superior Tribunal de Justiça já

aplicou o entendimento, supostamente fundado no artigo 50 do Código Civil, de

que a desconsideração da personalidade jurídica pode atingir os bens de todos

os sócios, inclusive dos que não são administradores, pelo simples fato de

serem sócios:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL.

EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA. SOCIEDADE LIMITADA. SÓCIA MAJORITÁRIA

QUE, DE ACORDO COM O CONTRATO SOCIAL, NÃO

EXERCE PODERES DE GERÊNCIA OU ADMINISTRAÇÃO.

RESPONSABILIDADE.

1. Possibilidade de a desconsideração da personalidade

jurídica da sociedade limitada atingir os bens de sócios que

não exercem função de gerência ou administração.

2. Em virtude da adoção da Teoria Maior da Desconsideração,

é necessário comprovar, para fins de desconsideração da

personalidade jurídica, a prática de ato abusivo ou fraudulento

por gerente ou administrador.

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3. Não é possível, contudo, afastar a responsabilidade de sócia

majoritária, mormente se for considerado que se trata de

sociedade familiar, com apenas duas sócias.

4. Negado provimento ao recurso especial.

Trata-se da ementa resultante do julgamento do Recurso Especial nº

1.315.110/SE, realizado pela Terceira Turma em 28 de maio de 2013, de

relatoria da ministra Nancy Andrighi, cujo voto destacamos:

De fato, em que pese não existir qualquer restrição no

art. 50 do CC/02, a aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica apenas deve incidir sobre os bens dos

administradores ou sócios que efetivamente contribuíram na

prática do abuso ou fraude na utilização da pessoa jurídica,

devendo ser afastada a responsabilidade dos sócios

minoritários que não influenciaram na prática do ato.

No julgamento do REsp 786.345/SP (3ª Turma, Rel. para o

acórdão Min. Ari Pargendler, DJe de 26.11.2008), esta Turma

entendeu que a despersonalização de sociedade por ações e

de sociedade por quotas de responsabilidade limitada só

atinge, respectivamente, os administradores e os sócios-

gerentes, não quem tem apenas o status de acionista ou sócio.

Naqueles autos, houve a desconsideração da personalidade

jurídica de empresa falida e de mais seis empresas

pertencentes ao mesmo grupo empresarial, e a extensão a

todos os quotistas e acionistas dos efeitos da falência.

Entendeu-se, por maioria, que a sócia quotista de sociedade

anônima não poderia ser alcançada pela desconsideração da

personalidade jurídica. Em voto-vista, fundamentei que:

Do ponto de vista do direito material, contudo, a

responsabilidade pessoal da recorrente não pode avançar para

dívidas de sociedades em que não figurou como

administradora em face da ausência de proteção ao abuso ou

excesso de poder.

Com efeito, nos termos dos arts. 9º e 16 do Dec. 3.708/19, em

caso de falência de sociedade por quotas de responsabilidade

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limitada, seus sócios respondem apenas até o limite da

respectiva participação no capital social, salvo se deliberarem

em desconformidade com o contrato social ou a lei. De acordo

com o art. 10 do referido Decreto, somente ficam sujeitos à

responsabilidade ilimitada os administradores da sociedade,

ainda assim em caráter excepcional, quando houver excesso

de mandato ou violação do contrato social ou da lei.

A hipótese dos autos, contudo, é diversa daquela. No presente

processo, a recorrente, juntamente com sua mãe, são as

únicas sócias da sociedade limitada e cada uma detém 50%

das quotas sociais. A recorrente não é, por conseguinte, sócia

minoritária.

Ademais, no seio de uma organização empresarial mais

modesta, mormente quando se trata de sociedade entre mãe e

filha, a titularidade de quotas e a administração são realidades

que frequentemente se confundem. Nesse passo, as

deliberações sociais, na maior parte das vezes, se dão no dia-

a-dia, sob a forma de decisões gerenciais. Logo, é muito difícil

apurar a responsabilidade por eventuais atos abusivos ou

fraudulentos.

Em hipóteses como essa, a previsão, no contrato social, de

que as atividades de administração serão realizadas apenas

por um dos sócios não é suficiente para afastar a

responsabilidade dos demais. Seria necessário, para afastar a

referida responsabilidade, a comprovação de que um dos

sócios estava completamente distanciado da administração da

sociedade.

Nesse ponto, deve ser ressaltado que, na hipótese sob

julgamento, a discussão iniciou-se em exceção de pré-

executividade, que não admite dilação probatória. Assim, nem

ao menos poderia ser produzida prova capaz de demonstrar

que a recorrente não interferiu na administração da sociedade.

Por conseguinte, a adoção da Teoria Maior da

Desconsideração pressupõe a responsabilidade de algum

sócio pela prática de ato fraudulento ou abusivo. Por isso, é

possível limitar a responsabilidade de sócio minoritário,

afastado das funções de gerência e administração, que

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comprovadamente não concorreu para o desvio de finalidade

ou confusão patrimonial.

Não se pode, contudo, afastar a responsabilidade do sócio sem

examinar a natureza jurídica específica da sociedade por

quotas de responsabilidade limitada que se encontra em litígio.

Na hipótese dos autos, tendo em vista que se trata de

sociedade modesta, que tem como únicas sócias mãe e filha, e

considerando que a recorrente detém 50% das quotas sociais,

não é possível afastar sua responsabilidade e o

art. 50 do CC/02 não foi violado.

Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso

especial.

Assim, apesar da expressa previsão, no contrato social, de que as

atividades de administração eram realizadas apenas por um dos sócios, a

decisão em questão considerou que isso não era suficiente para afastar a

responsabilidade dos demais sócios.

Além de ter decidido com base na mera presunção de que o sócio não

administrador praticou ato abusivo, já que supostamente teria praticado a

administração pelo simples fato de ser sócio, apesar da previsão contratual em

contrário, a mencionada decisão ainda se pautou na já discutida “equidade”

para estender os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica a esse

sócio não administrador, o que parece ser um perigoso retrocesso. Somente o

sócio ou administrador que tenha praticado atos abusivos de gestão deve

sofrer os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, e ninguém

mais.

Por outro lado, importa mencionar que a desconsideração da

personalidade pode ser invocada, também, pela própria pessoa jurídica em

face do sócio ou administrador que cometeu o abuso. Além de inexistir

qualquer restrição a isso, tal construção interpretativa mostra-se juridicamente

possível e factível, na medida em que a pessoa jurídica titulariza direitos e

interesses próprios (PARENTONI, 2041, p. 78).

Dessa forma, caso a pessoa jurídica venha a ser lesada por ato de sócio

ou administrador, poderá valer-se da desconsideração da personalidade

jurídica para alcançar os bens patrimoniais privados dessas pessoas em seu

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favor, desde que pressentes os pressupostos prescritos no artigo 50 do Código

Civil.

Contudo, apesar de poder evocar a desconsideração da personalidade

jurídica em seu favor, entendeu o Superior Tribunal de Justiça, por meio do

julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.307.639/MG,

realizado em 17 de maio de 2012, que a pessoa jurídica, quando tiver sua

personalidade jurídica desconsiderada, de modo a estender os efeitos das

obrigações patrimoniais aos sócios ou administradores, não pode recorrer da

decisão:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.

DECISÃO QUE ATINGE A ESFERA JURÍDICA DOS SÓCIOS.

INTERESSE E LEGITIMIDADE RECURSAIS DA PESSOA

JURÍDICA. AUSÊNCIA.

1. De plano, constata-se que a única questão decidida pelo

Tribunal a quo diz respeito ao interesse recursal da pessoa

jurídica para se insurgir contra decisão que incluiu os sócios no

polo passivo da relação processual, em decorrência da

desconsideração da personalidade jurídica. Portanto, não se

pode conhecer da matéria atinente à alegada ausência de

dissolução irregular, sob pena de ofensa às Súmulas 7 e

211/STJ.

2. As razões recursais sugerem equivocada compreensão da

teoria da desconsideração da personalidade jurídica por parte

da recorrente. Essa formulação teórica tem a função de

resguardar os contornos do instituto da autonomia patrimonial,

coibindo seu desvirtuamento em prejuízo de terceiros.

3. Em regra, a desconsideração da personalidade jurídica é

motivada pelo uso fraudulento ou abusivo da autonomia

patrimonial da pessoa jurídica. E essa manipulação indevida é

realizada por pessoas físicas, a quem é imputado o ilícito. Por

meio desse mecanismo de criação doutrinária, o juiz, no caso

concreto, pode desconsiderar a autonomia patrimonial e

estender os efeitos de determinadas obrigações aos

responsáveis pelo uso abusivo da sociedade empresária.

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4. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade

opera no plano da eficácia, permitindo que se levante o manto

protetivo da autonomia patrimonial para que os bens dos

sócios e/ou administradores sejam alcançados. Nesse sentido,

elucidativos precedentes das Turmas da Seção de Direito

Privado do STJ: REsp 1.169.175/DF, Rel. Ministro Massami

Uyeda, Terceira Turma, DJe 4.4.2011; REsp 1.141.447/SP,

Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 5.4.2011;

RMS 25.251/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta

Turma, DJe 3.5.2010).

5. A decisão jurisdicional que aplica a aludida teoria importa

prejuízo às pessoas físicas afetadas pelos efeitos das

obrigações contraídas pela pessoa jurídica. A rigor, ela

resguarda interesses de credores e da própria sociedade

empresária indevidamente manipulada. Por isso, o Enunciado

285 da IV Jornada de Direito Civil descreve que “A teoria da

desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser

invocada pela pessoa jurídica em seu favor”.

6. A ideia de prejuízo e a necessidade de obter provimento

mais benéfico são fundamentais para a caracterização do

interesse recursal (Barbosa Moreira, Comentário ao Código de

Processo Civil, vol. V, 14ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2008,

p. 299). Segundo o art. 499 do CPC, o recurso pode ser

interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo

Ministério Público.

7. Desse modo, não há como reconhecer interesse à pessoa

jurídica para impugnar decisão que atinge a esfera jurídica de

terceiros, o que, em tese, pode preservar o patrimônio da

sociedade ou minorar sua diminuição; afinal, mais pessoas

estariam respondendo pela dívida contra ela cobrada

originalmente.

8. Em casos análogos, a jurisprudência do STJ tem afirmado

que a pessoa jurídica não possui legitimidade nem interesse

recursal para questionar decisão que, sob o fundamento de ter

ocorrido dissolução irregular, determina a responsabilização

dos sócios (EDcl no AREsp 14.308/MG, Rel. Ministro Humberto

Martins, Segunda Turma, DJe 27.10.2011; REsp 932.675/SP,

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74

Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ 27.8.2007, p.

215; REsp 793.772/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki,

Primeira Turma, DJe 11.2.2009).

9. Agravo Regimental não provido.

Quanto aos limites objetivos, a desconsideração da personalidade

jurídica permite que seja atingido todo o patrimônio do sujeito contra o qual for

aplicada, independentemente da coincidência do valor de seu patrimônio com o

valor de sua cota social, conforme muito bem explicado por Parentoni (2014, p.

79):

No caso de desconsideração intentada contra sócio, por

exemplo, o montante que poderá ser cobrado não se restringe

à participação dele no patrimônio social. Até porque, se assim

fosse, haveria brecha para o uso indevido da limitação de

responsabilidade uma vez que o sócio saberia, de antemão,

qual o limite máximo de suas perdas, podendo calcular os prós

e contras de eventual conduta ilícita.

A afirmação do mencionado autor parece justificar-se na medida em que

o instituto da desconsideração restaria ineficaz caso admitida uma limitação no

atingimento do patrimônio de quem sofreu seus efeitos. A pessoa poderia

calcular eventuais vantagens e prejuízos em abusar da personalidade de

pessoa jurídica, o que poderia ser decisivo em sua escolha de fazê-lo.

Contudo, apesar da possibilidade de se atingir todo o patrimônio do

sujeito contra o qual for aplicada, o Superior Tribunal de Justiça sinalizou que,

inclusive nesses casos, deve-se obedecer ao princípio que garante a execução

da forma menos gravosa ao executado, conforme restou decidido no

julgamento do Agravo Regimental em Embargos de Divergência nº 19.142,

decido em 5 de junho de 2012, de relatoria do Ministro Castro Meira:

PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NA

MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO ATIVO.

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

EXECUÇÃO FISCAL. DÍVIDA PARTICULAR DE UM DOS

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75

SÓCIOS. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA SOBRE O

FATURAMENTO. INTERVENÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DE

CONTRATOS COMERCIAIS. PERIGO NA DEMORA.

EXISTÊNCIA. PLAUSIBILIDADE DO APELO. LIMINAR

DEFERIDA. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. Nos autos de execução fiscal ajuizada contra um dos sócios

da sociedade requerente, cujo débito encontra-se parcelado,

determinou-se a penhora sobre o faturamento da empresa, o

afastamento do sócio não executado da gerência da pessoa

jurídica, bem como a intervenção judicial na sociedade. Contra

essa decisão, foi impetrado mandado de segurança pelos

terceiros prejudicados, tendo a presente cautelar o objetivo de

conferir efeito suspensivo ativo ao recurso ordinário interposto

contra a denegação da segurança.

2. As medidas excepcionais deferidas pelo juízo da execução,

tais como a desconsideração inversa da personalidade jurídica,

a penhora sobre o faturamento, a anulação de contratos e

alterações sociais, o afastamento de sócio da sociedade, as

intervenções judiciais apenas são legítimas em situações de

extrema necessidade, após o exaurimento de outros meios

para a satisfação do crédito exequendo.

3. Na espécie, em juízo de cognição sumária, tem-se que as

providências contidas no ato judicial impugnado não são

dotadas de razoabilidade, mormente porque foram

implementadas ex officio pelo magistrado, atingindo direito de

terceiros não executados, em relação a crédito suspenso pelo

parcelamento.

4. Ademais, a penhora sobre o faturamento foi determinada

sem que se observasse a existência de outros bens

titularizados pela empresa para a garantia da dívida. Isso se

confirma pela apresentação pelos impetrantes de uma caução

envolvendo bem imóvel da sociedade empresarial em valor

que, a princípio, seria suficiente para o acautelamento do

débito.

5. O perigo da demora é evidente, uma vez que, sendo

implementadas as medidas contidas na decisão judicial, haverá

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76

profundas modificações no funcionamento da sociedade

empresária, as quais dificilmente serão reparadas, caso seja

acolhido o pleito formulado no processo principal.

6. Agravo regimental não provido.

Parece que, ao sancionar uma ilicitude, o Superior Tribunal de Justiça

evitou cometer outra, pois, com fundamento na razoabilidade, garantiu que a

execução se fizesse da forma menos gravosa ao devedor.

2.11 A desconsideração inversa

A desconsideração inversa da personalidade consiste em imputar à

pessoa jurídica obrigação formalmente contraída por seus sócios. A

nomenclatura decorre do fato de que tal teoria fora inicialmente aplicada, por

obra da jurisprudência, conforme já visto, aos casos em que se atribuiu ao

sócio a obrigação formalmente contraída pela pessoa jurídica. Por isso, diz-se

que a utilização contra a pessoa jurídica constitui aplicação inversa da mesma

regra (PARENTONI, 2014, p. 87).

Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho (2008, passim) são

considerados os precursores dessa teoria no Brasil, que ganhou destaque na

jurisprudência pátria no ano de 2008 com o julgamento do Agravo de

Instrumento n° 1.198.103-0/0, de relatoria do Desembargador Pereira Calças,

da 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo, que restou assim ementado:

Agravo de Instrumento. Cumprimento de sentença

condenatória. Deferimento de penhora “on line” de numerário

existente em contas bancárias/aplicações do devedor.

Frustração da penhora em face da informação da inexistência

de saldo nas contas bancárias. Devedor é sócio controlador de

sociedades empresárias e considerado o maior revendedor de

veículos da América Latina. Pedido de aplicação da

desconsideração inversa da personalidade jurídica para que a

penhora recaia em saldos bancários das sociedades

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77

empresárias controladas pelo devedor. Indeferimento pelo juiz

de primeiro grau. Reconhecimento da possibilidade de se

declarar a desconsideração da personalidade jurídica

incidentalmente na fase de execução da sentença, não se

exigindo ação autônoma, mas, observando-se o contraditório, a

ampla defesa e o devido processo legal. Prova de que o sócio

devedor é, em rigor, “dono” da sociedade limitada e da

sociedade anônima fechada, das quais é o presidente,

controlador de fato, e, apesar da participação minoritária de

sua esposa, ficam elas caracterizadas como autênticas

sociedades unipessoais. Confusão patrimonial entre sócio e

sociedades comprovada. Patrimônio particular do sócio

controlador constituído de bens que, na prática, mesmo que

penhorados, não seriam convertidos em pecúnia para a

satisfação do credor. Oferecimento de bens imóveis à penhora,

que, por se situarem no Estado da Paraíba, distantes mais de

2.600 km de São Paulo, onde tramita a execução, com nítido

escopo de se opor maliciosamente à execução, empregando

ardis procrastinatórios, que configura ato atentatório à

dignidade da justiça. Agravo provido, para deferir a

desconsideração inversa da personalidade jurídica das

sociedades empresárias indicadas (Limitada e S/A fechada),

autorizada a penhora virtual de saldos de contas bancárias.

Verifica-se, assim, que o Desembargador Relator concluiu que havia

confusão patrimonial entra a pessoa física do sócio majoritário e as demais

empresas do grupo, vindo a deferir a desconsideração inversa da

personalidade jurídica das sociedades empresárias indicadas.

Ao relatar o Recurso Especial nº 948.117, em 22 de junho de 2010, a

Ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,

demonstrou o mesmo raciocínio:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL.

EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

INVERSA. POSSIBILIDADE.

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78

(...)

III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica

caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da

sociedade, para, contrariamente do que ocorre na

desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o

ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a

responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio

controlador.

IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é

combater a utilização indevida do ente societário por seus

sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio

controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na

pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do

art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da

personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade

em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador,

conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.

V – A desconsideração da personalidade jurídica configura-se

como medida excepcional. Sua adoção somente é

recomendada quando forem atendidos os pressupostos

específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito

estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem

verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no

próprio processo de execução, “levantar o véu” da

personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os

bens da empresa.

VI – À luz das provas produzidas, a decisão proferida no

primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa

fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e

abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar

indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso

particular.

(...).

Leonardo Netto Parentoni (2014, p. 90) adverte, porém, que a

desconsideração inversa segue o mesmo regime da tradicional, variando

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79

apenas quanto ao limite objetivo de sua aplicação, porquanto a modalidade

inversa deve restringir-se aos limites da participação do sócio “desconsiderado”

no capital social. Dessa forma, no caso da desconsideração inversa, o limite

objetivo será a participação do sujeito atingido no patrimônio social, não

prejudicando, assim, com a mencionada desconsideração, os demais sócios.

Além de evitar a brusca descapitalização da pessoa jurídica, impede-se, com

isso, e imposição de indevido ônus aos demais sócios que não violaram os

pressupostos da limitação de responsabilidade (PARENTONI, 2041, p. 79).

Como a desconsideração inversa, objetiva-se alcançar o devedor que

assume vultosa obrigação, mas que não possui qualquer bem que possa ser

alcançado pelo credor. Desde que seja detentor de cotas sociais de uma

pessoa jurídica e desde que estejam presentes os pressupostos autorizadores,

como, e.g., a confusão patrimonial, é possível concluir que tal modalidade não

é aplicável ao administrador não-sócio.

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3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

A desconsideração da personalidade jurídica de que trata o artigo 50 do

Código Civil pode ser aplicada ao direito tributário? Esse é um tema polêmico,

que tem sido analisado por ópticas distintas e, por isso, está cercado por várias

divergências.

3.1 Os diferentes entendimentos sobre o tema

De acordo com Luciano Amaro (2004, p. 236), a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica não pode ser aplicada no direito

tributário, em razão do princípio da estrita legalidade que rege as relações

tributárias:

Resta examinar a desconsideração da pessoa jurídica

(propriamente dita), que seria feita pelo juiz, para

responsabilizar outra pessoa (o sócio), sem apoio em prévia

descrição legal de hipótese de responsabilização do terceiro, à

qual a situação concreta pudesse corresponder. Nessa

formulação teórica da doutrina da desconsideração, não vemos

possibilidade de sua aplicação em nosso direito tributário. Nas

diversas situações em que o legislador quer levar a

responsabilidade tributária além dos limites da pessoa jurídica,

ele descreve as demais pessoas vinculadas ao cumprimento

da obrigação tributária. Trata-se, ademais, de preceito do

próprio Código Tributário Nacional, que, na definição do

responsável tributário, exige norma expressa de lei (arts. 121,

parágrafo único, II, e 128), o que, aliás, representa decorrência

do princípio da legalidade. Sem expressa disposição de lei, que

eleja terceiro como responsável em dadas hipóteses descritas

pelo legislador, não é lícito ao aplicador da lei ignorar (ou

desconsiderar) o sujeito passivo legalmente definido e imputar

a responsabilidade tributária à terceiro.

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É possível observar, contudo, ao menos quatro correntes doutrinárias

que reconhecem – diferentemente – a possibilidade de aplicação da

mencionada teoria no direito tributário. Uma delas defende que a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica pode ser adotada no direito

tributário mesmo diante da inexistência de regra jurídica positivada a respeito,

bastando, para tanto, o entendimento jurisprudencial.

Corroboramos, porém, o entendimento de Alexandre Couto Silva (1999,

p. 119), para quem a formulação jurisprudencial da desconsideração da

personalidade jurídica, que é baseada na equidade e na justiça, conforme já

analisamos, é plenamente incompatível com a legalidade estrita exigida pelo

ordenamento constitucional tributário.

A segunda corrente sustenta que a desconsideração da personalidade

jurídica só pode ser aplicada no direito tributário se provir de lei complementar,

conforme defende Edmar Oliveira Andrade Filho (2005, p. 77):

Um limite material incontornável é o princípio da legalidade.

Portanto, a rega não pode, sem recepção por intermédio de

outra, ser aplicada no campo do direito tributário. Nesta seara,

as relações envolvem o emprego de poder heterônomo no que

difere da natureza paritária das relações privadas. Não fosse

por esta razão seria pelo fato de que, em face do art. 146 da

Constituição Federal, esta matéria só poderia ser veiculada por

Lei Complementar.

José Eduardo Soares de Melo (2004, p. 166) parece compartilhar desse

entendimento, ao afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica

prevista no artigo 50 do Código Civil não pode ser aplicada nos lindes

tributários porque não provém de lei complementar. Discordamos desse

entendimento, pois, nos termos das alíneas a e b do inciso III do artigo 146 da

Constituição Federal, cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em

matéria de legislação tributária, especialmente sobre contribuintes e obrigação

tributária. Contribuinte e obrigação tributária, portanto, dentre outros assuntos

não pertinentes para este estudo, estão sob reserva de lei complementar.

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Cumprindo a função que lhe foi constitucionalmente outorgada, o Código

Tributário Nacional prescreve, no inciso I do artigo 121, que o sujeito passivo

da obrigação tributária principal diz-se contribuinte quando tenha relação

pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador. O

inciso II do mesmo dispositivo prescreve, por sua vez, que o sujeito passivo da

obrigação tributária principal também pode ser o responsável, quando, sem

revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição

expressa de lei. Também prescreve, no § 1º do artigo 113, que a obrigação

principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento

de tributo ou penalidade pecuniária, e extingue-se juntamente com o crédito

dela decorrente.

No caso da desconsideração da personalidade jurídica, vimos que a

extensão da responsabilidade patrimonial ao sócio ou administrador não

decorre da prática do fato gerador de um tributo, mas de um abuso da

personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela

confusão patrimonial, não podendo tais pessoas serem consideradas, portanto,

tecnicamente, contribuintes, nos termos do inciso I do artigo 121 do referido

codex tributário.

Também não podem ser consideradas responsáveis tributários, pois,

apesar de sua obrigação provir de expressa de lei, já vimos que, na

desconsideração da personalidade jurídica, o sujeito sobre o qual recaem os

efeitos patrimoniais não é um simples responsável, mas verdadeiro obrigado

direto (PARENTONI, 2014, p. 57).

A terceira corrente, embasada no Princípio da Estrita Legalidade

Tributária, sustenta que a aplicação da mencionada teoria no direito tributário

depende, necessariamente, da edição de dispositivo legal específico e pontual.

Dentre os teóricos que sustentam essa corrente, encontra-se Ives Gandra da

Silva Martins (2011, p. 313), para quem:

No Direito Tributário, p. ex., a desconsideração da pessoa

jurídica apenas ocorre havendo hipótese legal, como é o caso

da distribuição disfarçada de lucros, visto que tal ramo da lei

positiva é regido pelos princípios da estrita legalidade, da

tipicidade fechada e da reserva absoluta da lei formal.

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83

Ele está se referindo ao artigo 51 da Lei Federal nº 7.450/85, segundo o

qual:

Art. 51. Ficam compreendidos na incidência do imposto de

renda todos os ganhos e rendimentos de capital, qualquer que

seja a denominação que lhes seja dada, independentemente

da natureza, da espécie ou da existência de título ou contrato

escrito, bastando que decorram de ato ou negócio, que, pela

sua finalidade, tenha os mesmos efeitos do previsto na norma

específica de incidência do imposto de renda.

Para o mencionado autor, o dispositivo legal em questão corresponde a

uma positivação específica da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica no direito tributário.

Ives Gandra da Silva Martins (2011, p. 315) explica, em seguida, que a

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica nos lindes do direito

privado é muito mais flexível do que possa ser no direito tributário, sob o

argumento de que ela pode decorrer – no direito privado – de criação

jurisprudencial ou normativa, de integração analógica, de interpretação

extensiva ou de flexibilidade exegética, que estão à disposição do intérprete

para a busca do “real desenho” dos fatos ocorridos naquele universo do direito,

concluindo, com base nisso, que:

(...) a teoria da desconsideração foi estalajada pelo Direito

Fiscal brasileiro apenas e enquanto decorrente de hipótese

normativa, vedada sua aplicação a partir da construção

pretoriana, posto que tal concepção implicaria, se adotada,

ofertar elasticidade exegética à norma, que os princípios da

tipicidade fechada, reserva absoluta e estrita legalidade vedam.

A quarta corrente defende, por sua vez, que a desconsideração da

personalidade jurídica só pode ser admitida no direito tributário se houver regra

jurídica de cunho geral que estabeleça os pressupostos de sua aplicação.

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Parecendo filiar-se tanto à terceira quanto à quarta correntes, Heleno Taveira

Tôrres (2003, p. 470) afirma que:

A desconsideração da personalidade jurídica, para os fins de

aplicação da legislação tributária, poderá ser praticada tanto

quando se esteja em presença de leis especiais quanto na

hipótese de aplicação de uma regra geral que a autoriza, à luz

de determinados pressupostos. Por esse motivo, em lei

específica que a previna, quanto ao cabimento de

desconsideração em certos casos concretos, ou regra geral

seus pressupostos, mediante prova da ausência de causa

(dolo) e demais elementos suficientes para isolar a conduta

elisiva, nenhuma desconsideração poderá ser admitida como

instrumento válido para imutar aos sócios efeitos que se

deveriam atribuir diretamente à pessoa jurídica.

E prossegue:

Se é certo que não se tem qualquer dúvida sobre a aplicação

de leis especiais que assim possam dispor em determinado

caso específico, as chamadas regras gerais antielisivas, que

trazem a previsão de um dado pressuposto (abuso de direito,

fraude à lei, abuso de formas ou equivalente), para obter o

efeito de lifiting the corporate veil ou disregard of the legal

entily, sofrem muitas resistências e precisam respeitar limites

que o próprio ordenamento contempla, mormente no direito

brasileiro, em vista da analiticidade da Constituição em matéria

tributária.

Apesar das divergências acima apontadas, evidencia-se ao menos um

ponto em comum: doutrinadores de escol admitem a aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

De acordo com as premissas estabelecidas no presente trabalho,

entendemos que a estrutura do Código Civil em vigor foi idealizada por Miguel

Reale (2005, pp. 40-41) como instrumento normativo instituidor de cláusulas

gerais de direito. Disso decorre a afirmação, pode-se sustentar, de que o

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Código Civil não institui somente um conjunto de regras de direito privado.

Muitas de suas disposições podem ser aplicadas, portanto, por serem

cláusulas gerais de direito, a todos os subsistemas do direito, inclusive ao

tributário. O artigo 50 do mencionado codex – já vimos – é considerado uma

dessas cláusulas gerais.

Assim, ao adotarmos a premissa em questão como verdadeira, podemos

concluir que a desconsideração da personalidade jurídica nele positivada

emana seus efeitos sobre as relações obrigacionais de direito tributário, o que

nos aproxima das lições de Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 470), para quem a

desconsideração da personalidade jurídica, no direito tributário, pode ser

praticada quando houver leis especiais ou quando houver uma regra geral que

a autorize, a qual, para nós, é o artigo 50 do Código Civil.

É o que também entende o Ministro José Augusto Delgado (2005, p.

192), do Superior Tribunal de Justiça, para quem o artigo 50 do Código Civil

possui forte influência sobre o direito tributário, uma vez que a construção

doutrinária e jurisprudencial existente antes do advento de tal dispositivo

oscilava, pois era aplicada sob critérios materiais e formais diversos,

dependendo exclusivamente das convicções do julgador.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem admitido a

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário,

fundamentada, claramente, no artigo 50 do Código Civil em questão, conforme

se observa na ementa abaixo transcrita, resultante do julgamento do Agravo

Regimental em Agravo no Recurso Especial nº 441.231/RJ, julgado em 6 de

fevereiro de 2014, de relatoria do Ministro Og Fernandes:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL.

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO

ESPECIAL. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA

JURÍDICA. ART. 50 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. AFERIÇÃO DA

PRESENÇA DOS ELEMENTOS AUTORIZADORES DA

MEDIDA. REEXAME DE MATÉRIA DE FATO.

IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica,

medida excepcional prevista no art. 50 do Código Civil de 2002,

pressupõe a ocorrência de abusos da sociedade, advindos do

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desvio de finalidade ou da demonstração de confusão

patrimonial.

2. O Tribunal de origem, com base no contexto fático-

probatório dos autos, afastou os elementos fáticos

autorizadores da medida. Desse modo, infirmar as conclusões

a que chegou o acórdão recorrido – investigação acerca da

ocorrência de abusos da personificação jurídica advindos do

desvio de finalidade ou da demonstração de confusão

patrimonial – demandaria a incursão na seara fático-probatória

dos autos, tarefa essa soberana às instâncias ordinárias, o que

impede o reexame na via especial (Súmula 7 deste Superior

Tribunal).

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Ao julgar, em 5 de junho de 2012, o Agravo Regimental na Medida

Cautelar nº 19.142/PR, de relatoria do Ministro Castro Meira, a referida Corte

Superior de Justiça deu outra demonstração da possibilidade de aplicação do

artigo 50 do Código Civil no direito tributário, mas desde que presentes os seus

pressupostos, conforme se observa na ementa abaixo transcrita:

PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NA

MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO ATIVO.

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

EXECUÇÃO FISCAL. DÍVIDA PARTICULAR DE UM DOS

SÓCIOS. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA SOBRE O

FATURAMENTO. INTERVENÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DE

CONTRATOS COMERCIAIS. PERIGO NA DEMORA.

EXISTÊNCIA. PLAUSIBILIDADE DO APELO. LIMINAR

DEFERIDA. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. Nos autos de execução fiscal ajuizada contra um dos sócios

da sociedade requerente, cujo débito encontra-se parcelado,

determinou-se a penhora sobre o faturamento da empresa, o

afastamento do sócio não executado da gerência da pessoa

jurídica, bem como a intervenção judicial na sociedade. Contra

essa decisão, foi impetrado mandado de segurança pelos

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terceiros prejudicados, tendo a presente cautelar o objetivo de

conferir efeito suspensivo ativo ao recurso ordinário interposto

contra a denegação da segurança.

2. As medidas excepcionais deferidas pelo juízo da execução,

tais como a desconsideração inversa da personalidade jurídica,

a penhora sobre o faturamento, a anulação de contratos e

alterações sociais, o afastamento de sócio da sociedade, a

intervenção judicial, apenas são legítimas em situações de

extrema necessidade, após o exaurimento de outros meios

para a satisfação do crédito exequendo.

3. Na espécie, em juízo de cognição sumária, tem-se que as

providências contidas no ato judicial impugnado não são

dotadas de razoabilidade, mormente porque foram

implementadas ex officio pelo magistrado, atingindo direito de

terceiros não executados, em relação a crédito suspenso pelo

parcelamento.

(...)

6. Agravo regimental não provido.

Parece não haver dúvida, portanto, que a jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça admite a aplicação da desconsideração da personalidade

jurídica no direito tributário, com supedâneo no artigo 50 do código Civil.

3.2 A natureza não negocial do crédito tributário como fundamento legitimador da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica

Há diversos diplomas normativos que, de forma geral, permitem invadir o

patrimônio dos sócios por dívidas da sociedade (Código de Defesa do

Consumidor, Consolidação das Leis do Trabalho etc.). Fábio Ulhoa Coelho

(2005, p. 268) explica que é possível observar certa tendência do direito

brasileiro em restringir ao campo das relações estritamente negociais os efeitos

advindos da personalização da pessoa jurídica, como ocorre, e.g., na

separação patrimonial entre os seus bens e os dos sócios:

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Assim, quando os credores são bancos, fornecedores ou, de

modo geral, outros empresários, os sócios da sociedade

devedora não são normalmente responsabilizados pelas

obrigações sociais, tendo plena eficácia o princípio da

separação patrimonial da pessoa jurídica e de seus membros.

Quando, no entanto, os credores não são empresários, o

princípio tem sido paulatinamente desprestigiado.

Distinguindo obrigações negociáveis (dívidas sociais originadas de

tratativas negociais desenvolvidas com maior ou menor grau liberdade entre as

partes de um negócio jurídico) e obrigações não negociáveis (que têm sua

existência e extensão definidas em lei, como, e.g., o crédito tributário), o

mencionado autor explica (COELHO, 2005, pp. 270-271) que a

desconsideração da personalidade jurídica (com a consequente superação do

princípio da autonomia patrimonial) está relacionada à possibilidade, existente

apenas para o credor de obrigação negociável, de se preservar

economicamente contra os riscos da insolvência da pessoa jurídica devedora:

Um banco, ao descontar títulos de sociedade empresária, pode

incluir, em sua remuneração, a partir de dados estatísticos, a

taxa de risco, isto é, uma importância que compense eventuais

perdas, motivadas por insolvabilidade da pessoa jurídica; e os

empresários, em geral, têm meios de condicionar a concessão

de crédito à outorga de garantias pessoais dos sócios (aval ou

fiança). Assim, o princípio da autonomia patrimonial tem sido

relativizado, pela ordem jurídica, para atendimento,

basicamente, dos direitos de titulares de créditos não

negociáveis. Sua pertinência, desse modo, limita-se às

obrigações da sociedade disciplinadas pelo direito civil e

comercial.

Dessa forma, de acordo com o entendimento construído pelo referido

autor, o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica deve ser

superado somente em favor da tutela dos credores com direitos e interesses

não provenientes de negociação, na hipótese de uso abusivo da personalidade

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jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial,

nos termos do artigo 50 do Código Civil. Quando os direitos dos credores forem

provenientes de negociação, não há que se aplicar, portanto, com base nesses

argumentos, a desconsideração da personalidade jurídica.

Especificamente quanto ao crédito tributário, o autor afirma, em

arremate, que:

O credor fiscal, pelo que se falou até aqui, integra a categoria

dos não negociais. O crédito público não provém de nenhuma

negociação entre fisco e contribuinte, mas de aplicação do

previsto em normas gerais. A obrigação tributária é ex lege.

Naturalmente por isso, se costuma enquadrar o credor fiscal

entre os não negociais (COELHO, 2005, p. 272).

Não obstante defenda que o crédito tributário é não negocial, o que

justifica, assim, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, o

mencionado autor lança a seguinte reflexão:

Mas cabe questionar se as margens de inadimplemento com

que trabalha a administração tributária não teriam, sob o ponto

de vista da diluição do risco, as mesmas funções dos spreads

praticados pelos credores negociais. O volume da arrecadação

é preservado porque os adimplentes pagam o suficiente para

compensar as inadimplências. Pois bem, se tais margens têm a

mesma função dos spreads, então a administração tributária se

encontra numa situação muito mais próxima dos credores

negociais e talvez devesse ser tratada como tal. Em suma,

para o credor fiscal o princípio da autonomia da pessoa jurídica

não deveria experimentar a relativização que tem sido feita em

benefício de consumidores e empregados por via da teoria

menor da desconsideração (COELHO, 2005, pp. 272-273).

Ousamos discordar dessa reflexão, pois o direito tributário é regido pelos

princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da vedação ao confisco,

dentre outros, ao contrário das relações negociais, normalmente regidas pelo

direito privado e, assim, pelo princípio da autonomia da vontade. Os princípios

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90

tributários em questão impedem o Estado-fisco de cobrar um “sobretributo”

como forma de compensar eventual inadimplência.

3.3 O prazo para requerer a desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário

Os civilistas ensinam que a decadência corresponde à extinção do

direito pelo seu não exercício dentro de um determinado lapso temporal,

definição essa que é largamente utilizada pela doutrina (SANTOS, p. 123) e

pela jurisprudência (decisão monocrática proferida pelo Ministro Hamilton

Carvalhido no Recurso Especial nº 1.134.425/SP, julgado em 12 de maio de

2010).

A definição em referência foi objeto de estudo por Agnelo Amorim Filho

(2005, p. 735), que afirmou, em seu célebre artigo denominado “Critério

científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações

imprescritíveis”, que os critérios que levam a essa definição carecem de base

científica, sendo, portanto, absolutamente falhos e inadequados, uma vez que

pretendem explicar a decadência sob a perspectiva de seus respectivos efeitos

ou consequências.

Em que pese tal censura, não vislumbramos qualquer inadequação na

busca da significação de um instituto a partir de seus efeitos, já que,

etimologicamente, o vocábulo “decadência” denota o estado de tudo aquilo que

cai, perece, expira, acaba ou cessa, ou seja, exprime, em seu significado de

base, exatamente uma consequência.

A apontada ausência de precisão científica motivou Agnelo Amorim Filho

a buscar outro critério de definição, que foi encontrado na teoria da

classificação dos direitos subjetivos. Direitos subjetivos são aqueles que

decorrem da incidência de uma norma jurídica sobre um fato. A norma veicula

a descrição de uma hipótese (caso ocorra o fato “F”) e a cominação de uma

consequência (deve ser a consequência “C”), caracterizando-se o direito

subjetivo como a faculdade de exercer essa conduta “C” diante da ocorrência

do fato “F”.

Agnelo Amorim Filho (2005, p. 736) explica com excepcional clareza a

teoria de Chiovenda dos direitos subjetivos:

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(...) os direitos subjetivos se dividem em duas grandes

categorias: A primeira compreende aquêles direitos que têm

por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma

prestação, positiva ou negativa, de outrem, isto é, do sujeito

passivo. Recebem eles, de Chiovenda, a denominação de

“direitos a uma prestação”, e como exemplos poderíamos citar

todos aquêles que compõem as duas numerosas classes dos

direitos reais e pessoais. Nessas duas classes há sempre um

sujeito passivo obrigado a uma prestação, seja positiva (dar ou

fazer), como nos direitos de crédito, seja negativa (abster-se),

como nos direitos de propriedade. A segunda grande categoria

é a dos denominados “direitos potestativos”, e compreende

aquêles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de

influírem, com uma declaração de vontade, sôbre situações

jurídicas de outras, sem o concurso de vontade destas. (sic.)

Ao desenvolver a conceituação dos direitos subjetivos potestativos,

esclarece, logo em seguida, que:

Esses podêres (que não se devem confundir com as simples

manifestações de capacidade jurídica, como a faculdade de

testar, de contratar e semelhantes, a que não corresponda

nenhuma sujeição alheia), se exercitam e atuam mediante

simples declaração de vontade, mas, em alguns casos, com a

necessária intervenção do juiz. Têm tôdas de comum tender à

produção de um efeito jurídico a favor de um sujeito e a cargo

de outro, o qual nada deve fazer, mas nem por isso pode

esquivar-se àquele efeito, permanecendo sujeito à sua

produção. A sujeição é um estado jurídico que dispensa o

concurso da vontade do sujeito, ou qualquer atitude dêle. São

podêres puramente ideais, criados e concebidos pela lei (...); e,

pois, que se apresentam como um bem, não há excluí-los de

entre os direitos (...) (AMORIM FILHO, 2005, p. 737). (sic.)

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92

Depreende-se dessas lições que a mais marcante característica dos

denominados direitos potestativos é o estado de sujeição que o seu exercício

cria para outra pessoa, independentemente ou até mesmo contra sua vontade.

Esse estado de sujeição foi explicado por Agnelo Amorim Filho (2005, p. 738)

como:

(...) a situação daquele que, independentemente da sua

vontade, ou mesmo contra sua vontade, sofre uma alteração

na sua situação jurídica, por fôrça do exercício de um daqueles

podêres atribuídos a outra pessoa e que receberam a

denominação de direitos potestativos. (sic.)

Estado de sujeição é, portanto, uma implicação jurídica em benefício de

uma pessoa e ao encargo de outra, que não pode, segundo sua particular

vontade, esquivar-se àquele efeito. O estado de sujeição não se confunde,

portanto, com meras faculdades jurídicas, que se caracterizam por afetar a

esfera jurídica de terceiros somente e tão somente se houver a sua

aquiescência, como ocorre, e.g., num negócio jurídico de venda e compra,

quando o proprietário de um bem tem o exercício do poder de vendê-lo, mas só

efetua a compra quem quiser. Verifica-se, nesse caso, que o exercício do

poder de venda não cria um estado de sujeição para terceiros, sendo tal poder,

portanto, uma faculdade jurídica, diferenciando-se, por isso, dos direitos

potestativos.

A teoria de Agnelo Amorim Filho chegou à contemporaneidade e hoje

encontramos alguns civilistas explicando a decadência como “(...) o

perecimento do direito potestativo, em razão do seu não-exercício em um prazo

predeterminado”, a exemplo do que ensina Celina Bodin de Moraes (2007, p.

689), responsável pela atualização da obra de Caio Mário da Silva Pereira.

Elpídio Donizetti e Felipe Quintanella (2012, p. 192) também ensinam,

por sua vez, em moderna obra, que a “Decadência é o fato jurídico

consubstanciado no decurso de um prazo dentro do qual um direito potestativo

não é exercido cujo efeito é a extinção desse direito”, enquanto a prescrição

“(...) esvazia a eficácia da pretensão correspondente a um direito subjetivo.”

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93

A teoria de Agnelo Amorim Filho também ressoou no subsistema do

direito tributário, conforme se verifica nas lições de Hugo de Brito Machado

Segundo (2008, p. 86), para quem “O direito de a Fazenda Pública efetuar o

lançamento é de natureza potestativa, na medida em que pode ser exercitado

independentemente da colaboração de terceiros (...).” Verifica-se que Hugo de

Brito Machado (2011, p. 238) compartilha o mesmo entendimento:

Entende-se como decadência a extinção de um direito

potestativo causada pela inércia de seu titular. O direito de

lançar é um direito potestativo da Fazenda Pública. Fixa a lei

um prazo para o seu exercício. Decorrido esse prazo sem que

o direito seja exercido, consuma-se sua decadência.

O referido teórico afirma, ainda, em outro importante trabalho de sua

lavra, que:

O direito de constituir o crédito tributário, pelo lançamento, é

um direito potestativo, que alguns preferem chamar de poder-

dever da Administração Tributária. É um direito potestativo

porque o seu exercício independe da colaboração de quem

quer que seja. Mesmo o lançamento dos tributos em relação

aos quais a lei impõe ao sujeito passivo da obrigação tributária

o dever de declarar os fatos geradores respectivos, e daqueles

em relação aos quais a lei impõe ao sujeito passivo o dever de

apurar o valor correspondente e fazer o pagamento antecipado,

é sempre possível o lançamento de ofício nos casos em que

tenha havido o inadimplemento daqueles deveres pelo sujeito

passivo da obrigação tributária. Em outras palavras, o direito de

constituir o crédito tributário pelo lançamento pode sempre ser

satisfeito mediante conduta da própria Fazenda Pública, tenha

havido, ou não, a colaboração do sujeito passivo da obrigação

tributária (2005, p. 538).

No mesmo sentido, importa destacar o entendimento de Marco Aurélio

Greco:

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94

Quando os atos qualificados pelos ordenamentos, aos quais

está conectada a fixação do prazo, corresponderem a atos de

exercício de potestades diretas ou indiretas (ou direitos

potestativos), o prazo respectivo corresponde ao que a doutrina

e a jurisprudência conhecem por decadência.

Mesmo sem afirmá-lo expressamente, Regina Helena Costa (2009, p.

268) demonstra parecer compartilhar desse mesmo entendimento, pois, ao

doutrinar que no direito tributário “(...) a decadência refere-se à extinção do

direito da Fazenda Pública – traduzido em poder-dever – de efetuar o

lançamento, em razão de sua inércia pelo decurso do prazo de cinco anos”,

nos revela, por meio do enfatizado poder-dever, que subjacente está a

potestividade do direito, claramente realizada num estado de sujeição.

A natureza potestativa, assim como explicada pelos teóricos em

questão, tem sido reconhecida pela jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça, conforme excerto abaixo, extraído da ementa resultante do julgamento

do Agravo nº 1.171.776/SP, de relatoria do Ministro Hamilton Carvalhido,

realizado em 30 de novembro de 2009:

(...)

2. É que a decadência ou caducidade, no âmbito do Direito

Tributário, importa no perecimento do direito potestativo de o

Fisco constituir o crédito tributário pelo lançamento, e,

consoante doutrina abalizada, encontra-se regulada por cinco

regras jurídicas gerais e abstratas, entre as quais figura a regra

da decadência do direito de lançar nos casos de tributos

sujeitos ao lançamento de ofício, ou nos casos dos tributos

sujeitos ao lançamento por homologação em que o contribuinte

não efetua o pagamento antecipado. (Eurico Marcos Diniz de

Santi, “Decadência e Prescrição no Direito Tributário”, 3ª ed.,

Max Limonad, São Paulo, 2004, págs. 163/210).

(...)

Qual a relação da teoria em questão com a desconsideração da

personalidade jurídica? Vimos que, em caso de abuso da personalidade

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95

jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial,

os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações podem ser

estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa

jurídica, nos termos do artigo 50 do Código Civil, que adotamos como cláusula

geral de direito, aplicável, assim, inclusive nas relações tributárias.

Já vimos, também, que, na desconsideração da personalidade jurídica, o

sujeito que sofre os ônus da desconsideração não é simplesmente um

responsável tributário (obligatio), mas um verdadeiro “devedor direto” por débito

próprio (debitum), pois aquele que abusa da personalidade jurídica cria para si

uma obrigação própria (reitera-se, o debitum), conforme nos ensina Parentoni

(2014, p. 57).

Remanesce, porém, a dúvida acerca da existência de algum prazo para

pleitear-se e aplicar-se a desconsideração, bem como, e especialmente, a

natureza desse prazo. Nos termos do artigo 50 em questão, uma vez

verificados os pressupostos ensejadores da desconsideração da personalidade

jurídica, surge para o credor o direito de, querendo, afastar as limitações

patrimoniais impostas pelo modelo social adotado, de modo a atingir

diretamente o patrimônio da pessoa natural subjacente (sócio ou

administrador).

É possível depreender, assim, à luz dos ensinamos acima,

principalmente os de Agnelo Amorim Filho, que, ao se pleitear a

desconsideração da personalidade jurídica, exerce-se um verdadeiro direito

potestativo de ingerência na esfera jurídica de terceiros. De fato, o pedido de

desconsideração reclama do juízo uma tutela constitutiva positiva, constitutiva

de uma nova relação jurídica entre o credor e o sócio ou administrador.

Ao tudo indica, devido à constatação de que o pedido de

desconsideração da personalidade jurídica consubstancia-se no exercício de

direito potestativo a reclamar uma tutela de natureza constitutiva, pode-se

concluir, com base nas mencionadas lições, que tal pedido se sujeita a um

prazo de natureza decadencial. Pode-se concluir, portanto, que o prazo para

requerer a desconsideração da personalidade jurídica possui natureza

decadencial. Vejamos, então, como a decadência é tratada no Código Civil em

vigor.

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96

Com exceção da prescrição contida no artigo 179 do Código Civil,

segundo o qual “Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem

estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar

da data da conclusão do ato”, o Código Civil de 2002 não estabeleceu um

prazo geral e amplo para a decadência. De fato, salvo no caso do artigo 179

em questão, o legislador pátrio preferiu discriminar, pontualmente, todos os

direitos potestativos cujo exercício está sujeito a um prazo decadencial

determinado (VENOSA, 2012, p. 575).

Ocorre que a única regra geral estabelecida quanto ao prazo

decadencial, consistente no artigo 179 acima citado, parece não se aplicar à

desconsideração da personalidade jurídica, pois, conforme já visto, essa não

implica na anulação, isto é, na dissolução da pessoa jurídica ou na cassação

de sua autorização de funcionamento (GONÇALVES, 2011, p. 250).

Na desconsideração subsiste o princípio da autonomia subjetiva da

pessoa jurídica, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes, mas essa

distinção é afastada, episodicamente, e tão somente, para um determinado

caso in concreto. Não se trata, portanto, de anulação de seu ato constitutivo ou

algo semelhante, sendo inaplicável, por isso, o mencionado artigo 179, que é a

única regra geral e ampla a instituir um prazo decadencial no Código Civil.

Por outro lado, o Código Tributário Nacional também não estipula

qualquer prazo decadencial específico para operar-se a desconsideração da

personalidade jurídica. Quando não há regra geral e específica estabelecendo

prazo decadencial para o exercício de determinado direito potestativo, Agnelo

Amorim Filho (2005, p. 743) ensina que tal exercício não estará sujeito a prazo

algum.

De acordo com o referido autor, em relação aos direitos potestativos

para cujo exercício a lei não tenha vislumbrado a necessidade de prazo

especial, prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade,

segundo a qual tais direitos não irão se extinguir pelo não-exercício.

Tal entendimento também é defendido por Yussef Said Cahali (2008, p.

76), em estudo sobre prescrição e decadência:

(...) os direitos potestativos são insuscetíveis de violação.

Porém, o exercício desses direitos, judicial ou extrajudicial,

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97

pode ou não estar condicionado a um prazo de decadência,

dependendo do grau de perturbação social que o não exercício

pode causar. Por consequência, para os direitos potestativos

subordinados a prazos, o seu decurso sem o exercício implica

a extinção do próprio direito; já para aqueles não vinculados a

prazo prevalece o princípio geral da inesgotabilidade ou da

perpetuidade, ou seja, direitos que não se extinguem pelo não

uso.

E conclui, em seguida, que “(...) os direitos potestativos sem prazo fixado

em lei são perpétuos, podendo, desse modo, ser exercidos a qualquer tempo,

seja por meio de simples declaração de vontade, seja via ação constitutiva.”

Pode-se deduzir, assim, a princípio, que a desconsideração da

personalidade jurídica se enquadra nessa hipótese em que não há prazo –

decadencial, segundo sua aparente natureza – para o exercício desse direito

potestativo. Por isso, os civilistas reconhecem que, ante a inexistência de prazo

legal, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, quando

preenchidos os pressupostos, poderá ser realizado a qualquer momento.

Aliás, ao prescrever que “O incidente de desconsideração é cabível em

todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e

na execução fundada em título executivo extrajudicial” (artigo 134), o

denominado Novo Código de Processo Civil, aprovado por meio da Lei Federal

nº 13.105/2015, do qual nos ocuparemos com maior detalhamento adiante,

parece ter acolhido essa lógica.

O mesmo entendimento pode ser verificado, ainda, no âmbito do

Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida em 5 de abril de 2011 pela

Quarta Turma nos autos do Recurso Especial nº 1.180.714/RJ, de relatoria do

Ministro Luis Felipe Salomão, que tratou de matéria não tributária, cumpre

advertir:

DIREITO CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. SEMELHANÇA COM AS

AÇÕES REVOCATÓRIA FALENCIAL E PAULIANA.

INEXISTÊNCIA. PRAZO DECADENCIAL. AUSÊNCIA.

DIREITO POTESTATIVO QUE NÃO SE EXTINGUE PELO

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98

NÃO-USO. DEFERIMENTO DA MEDIDA NOS AUTOS DA

FALÊNCIA. POSSIBILIDADE. AÇÃO DE

RESPONSABILIZAÇÃO SOCIETÁRIA. INSTITUTO DIVERSO.

EXTENSÃO DA DISREGARD A EX-SÓCIOS. VIABILIDADE.

1. A desconsideração da personalidade jurídica não se

assemelha à ação revocatória falencial ou à ação pauliana,

seja em suas causas justificadoras, seja em suas

consequências. A primeira (revocatória) visa ao

reconhecimento de ineficácia de determinado negócio jurídico

tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato

praticado em fraude a credores, servindo ambos os

instrumentos como espécies de interditos restitutórios, no

desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os bens

necessários ao adimplemento dos credores, agora em

igualdade de condições (arts. 129 e 130 da Lei 11.101/05 e art.

165 do Código Civil de 2002).

2. A desconsideração da personalidade jurídica, a sua vez, é

técnica consistente não na ineficácia ou invalidade de negócios

jurídicos celebrados pela empresa, mas na ineficácia relativa

da própria pessoa jurídica – rectius, ineficácia do contrato ou

estatuto social da empresa –, frente a credores cujos direitos

não são satisfeitos, mercê da autonomia patrimonial criada

pelos atos constitutivos da sociedade.

3. Com efeito, descabe, por ampliação ou analogia, sem

qualquer previsão legal, trazer para a desconsideração da

personalidade jurídica os prazos decadenciais para o

ajuizamento das ações revocatória falencial e pauliana.

4. Relativamente aos direitos potestativos para cujo exercício a

lei não vislumbrou necessidade de prazo especial, prevalece a

regra geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, segundo a

qual os direitos não se extinguem pelo não-uso. Assim, à

míngua de previsão legal, o pedido de desconsideração da

personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos da

medida, poderá ser realizado a qualquer momento.

5. A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente

processual e não como um processo incidente, razão pela qual

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99

pode ser deferida nos próprios autos da falência, nos termos da

jurisprudência sedimentada do STJ.

6. Não há como confundir a ação de responsabilidade dos

sócios e administradores da sociedade falida (art. 6º do

Decreto-Lei 7.661/45 e art. 82 da Lei 11.101/05) com a

desconsideração da personalidade jurídica da empresa. Na

primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente

identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios

deveres de sócio/administrador, ao passo que na segunda,

supera-se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia

a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-la como

verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos. Ou seja, a ação

de responsabilização societária, em regra, é medida que visa

ao ressarcimento da sociedade por atos próprios dos

sócios/administradores, ao passo que a desconsideração visa

ao ressarcimento de credores por atos da sociedade, em

benefício da pessoa oculta.

7. Em sede de processo falimentar, não há como a

desconsideração da personalidade jurídica atingir somente as

obrigações contraídas pela sociedade antes da saída dos

sócios. Reconhecendo o acórdão recorrido que os atos

fraudulentos, praticados quando os recorrentes ainda faziam

parte da sociedade, foram causadores do estado de

insolvência e esvaziamento patrimonial por que passa a falida,

a superação da pessoa jurídica tem o condão de estender aos

sócios a responsabilidade pelos créditos habilitados, de forma

a solvê-los de acordo com os princípios próprios do direito

falimentar, sobretudo aquele que impõe igualdade de condição

entre os credores (par conditio creditorum), na ordem de

preferência imposta pela lei.

8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.

No mesmo sentido, colaciona-se a seguinte decisão da mesma Corte,

proferida em 11 de junho de 2013 no julgamento dos Embargos em Recurso

Especial nº 1.312.591, de relatoria do mesmo Ministro, e que também não

versa sobre matéria tributária:

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100

DIREITO CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. DIREITO POTESTATIVO QUE

NÃO SE EXTINGUE PELO NÃO-USO. PRAZO

PRESCRICIONAL REFERENTE À RETIRADA DE SÓCIO DA

SOCIEDADE. NÃO APLICAÇÃO. INSTITUTOS DIVERSOS.

REQUISITOS PARA A DESCONSIDERAÇÃO. REVISÃO.

SÚMULA 7/STJ.

1. A desconsideração da personalidade jurídica é técnica

consistente na ineficácia relativa da própria pessoa jurídica –

rectius, ineficácia do contrato ou estatuto social da empresa –,

frente a credores cujos direitos não são satisfeitos, mercê da

autonomia patrimonial criada pelos atos constitutivos da

sociedade.

2. Ao se pleitear a superação da pessoa jurídica, depois de

verificado o preenchimento dos requisitos autorizadores da

medida, é exercido verdadeiro direito potestativo de ingerência

na esfera jurídica de terceiros – da sociedade e dos sócios –,

os quais, inicialmente, pactuaram pela separação patrimonial.

3. Correspondendo a direito potestativo, sujeito a prazo

decadencial, para cujo exercício a lei não previu prazo

especial, prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da

perpetuidade, segundo a qual os direitos não se extinguem

pelo não-uso. Assim, à míngua de previsão legal, o pedido de

desconsideração da personalidade jurídica, quando

preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado a

qualquer tempo.

4. Descabe, por ampliação ou analogia, sem qualquer previsão

legal, trazer para a desconsideração da personalidade jurídica

os prazos prescricionais previstos para os casos de retirada de

sócio da sociedade (arts. 1003, 1.032 e 1.057 do Código Civil),

uma vez que institutos diversos.

5. “Do encerramento irregular da empresa presume-se o abuso

da personalidade jurídica, seja pelo desvio de finalidade, seja

pela confusão patrimonial, apto a embasar o deferimento da

desconsideração da personalidade jurídica da empresa, para

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se buscar o patrimônio individual de seu sócio” (REsp

1259066/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 28/06/2012).

6. Reconhecendo o acórdão recorrido que a ex-sócia, ora

recorrente, praticou atos que culminaram no encerramento

irregular da empresa, com desvio de finalidade e no

esvaziamento patrimonial, a revisão deste entendimento

demandaria o reexame do contexto fático-probatório dos autos,

o que é vedado em sede de recurso especial ante o óbice da

Súmula 7/STJ.

7. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão,

não provido.

Contudo, importa considerar que o subsistema do direito tributário possui

uma particularidade: as relações obrigacionais decorrentes das relações

tributárias extinguem-se tanto pela decadência quanto pela prescrição, nos

termos dos artigos 150, § 4º, 173 e 174 do Código Tributário Nacional.

Como conciliar, então, a inexistência de prazo legal para o exercício do

direito potestativo do pedido de desconsideração da personalidade jurídica com

as disposições do Código Tributário Nacional que determinam a extinção da

obrigação após o decurso de certo prazo (seja ele decadencial ou

prescricional)?

Uma vez que a decadência prevista no Código Tributário Nacional é

especifica para a constituição do crédito tributário, e não para a

desconsideração da personalidade jurídica, e uma vez que partimos da

premissa de que essa desconsideração pressupõe a existência de obrigação

tributária devidamente constituída em nome de quem sofrerá os seus efeitos,

conforme inferimos do artigo 50 do Código Civil, já que compartilhamos da tese

de Paulo de Barros Carvalho (2008, pp. 431-432), de que a obrigação é

constituída pelo crédito tributário, podemos concluir, então, que o direito

potestativo de sujeitar o sócio ou administrador ao cumprimento das obrigações

tributárias em decorrência da desconsideração da personalidade jurídica,

apesar de não contar com um prazo específico, deve ser exercido enquanto

existente a obrigação surgida para a pessoa jurídica.

Apesar de confundir o instituto da desconsideração da personalidade

jurídica com a responsabilidade tributária da qual trata o artigo 135, inciso III,

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102

do Código Tributário Nacional (o que se mostra inadequado, segundo nosso

entendimento, conforme será exposto no capítulo seguinte, quando faremos as

distinções cabíveis), parece ser esse o entendimento verificado no âmbito do

Tribunal Regional Federal da Segunda Região, conforme consta na ementa do

julgamento do Agravo de Instrumento nº 2012.02.01.018225-0, julgado em 5 de

março de 2013, de relatoria do Desembargador Luiz Antonio Soares:

Processual civil - Agravo de instrumento - Redirecionamento da

execução para o coobrigado - Prazo prescricional de 5 anos

com início após a citação da sociedade devedora - Dissolução

irregular da sociedade - Presunção relativa. Súmula 435 do

STJ - Redirecionamento para o sócio-gerente - Possibilidade.

Exercício da gerência à época da dissolução irregular e da

constituição do crédito. Precedentes do STJ.

1 - Trata-se de agravo de instrumento interposto por Rogerio

Coutinho, em face da decisão que rejeitou a exceção de pré-

executividade oposta pelo agravante na qual alegava a

ocorrência da prescrição e sua inclusão indevida no polo

passivo.

2 - O STJ pacificou entendimento no sentido de que a citação

da empresa interrompe a prescrição em relação aos seus

sócios-gerentes para fins de redirecionamento da execução.

Todavia, para que a execução seja redirecionada contra o

sócio, é necessário que a sua citação seja efetuada no prazo

de cinco anos a contar da data da citação da empresa

executada, em observância ao disposto no citado art. 174 do

CTN. Desse modo, está caracterizada a prescrição.

3 - A citação válida da execução ocorreu em 09.1999, quando

a empresa ainda funcionava, interrompendo-se o prazo

prescricional. Compulsando os autos, podemos atestar que não

houve desídia da União Federal, que promoveu todos os atos

que lhe cabiam no processamento do feito. Em 02.2008 é que

a empresa executada não foi encontrada, fato que caracteriza

sua dissolução irregular e que ensejou a decisão determinando

a inclusão do sócio agravante no polo passivo da execução

fiscal em março/2009.

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103

4 - Assim, como o pedido de inclusão do sócio foi feito em

menos de 5 (cinco) anos após a informação de dissolução

irregular, não [há] que se falar em prescrição intercorrente.

5 - Somente em caso de conduta com violação à lei é possível

a responsabilização do sócio. Com efeito, somente o sócio-

gerente pode ser responsabilizado, dada a necessidade da

configuração da ilicitude.

6 - Deve-se atentar especificamente para o que configura o

abuso que autoriza a desconsideração da personalidade

jurídica da empresa, podendo ser tanto o excesso de mandato,

o desvio de finalidade da empresa, a fusão patrimonial entre a

sociedade e os sócios ou a dissolução irregular, que pode ser

presumida e que, por sua vez, presume a prática dos atos

ilícitos, previstos no art. 135, III, do CTN, de acordo com a

doutrina e a jurisprudência predominantes. Súmula 435 do STJ.

7 - A responsabilidade é do sócio que detinha poderes de

gerência à época do ato ilícito, (...).

Apesar da condenável confusão em questão, pode-se sustentar que o

direito potestativo de sujeitar o sócio ou administrador ao cumprimento de

obrigações tributárias em decorrência da desconsideração da personalidade

jurídica, apesar de não possuir um prazo específico determinado em lei, não

pode ser exercido quando a obrigação surgida em nome da pessoa jurídica não

mais existir por força da aplicação de outro instituto (no caso, a prescrição) que

tem por efeito a extinção dessa obrigação primária.

Essa conclusão parece ser coerente com as disposições do artigo 134

do Novo Código de Processo Civil, segundo o qual o incidente de

desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento,

no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo

extrajudicial, com a ressalva de que só pode ser manejado enquanto não

extinta a obrigação primária.

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104

3.4 Desconsideração, grupos econômicos e as obrigações tributárias

Os grupos convencionais de sociedades surgiram, no direito brasileiro,

com a edição da Lei Federal nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das

Sociedades Anônimas), que prevê hipóteses de acordos (e participações) entre

diferentes pessoas jurídicas, especialmente nos artigos 265 a 277, sob a

designação de grupos de sociedades. Apesar de tais dispositivos estarem

inseridos na Lei das Sociedades Anônimas, suas disposições são sabidamente

aplicáveis aos grupos empresariais compostos por sociedades limitadas.

A doutrina, ora sintetizada nas palavras de José Alexandre Tavares

Guerreiro (2005, p. 305), ensina que a legislação em questão disciplina os

denominados grupos de direito, isto é, aqueles que preenchem os elementos

de fato e que cumprem todas as formalidades necessárias à sua formação,

razão pela qual recebem a qualificação de direito. Aqueles que preenchem

somente os requisitos de fato e que não cumprem as formalidades legais

exigíveis recebem a designação, por sua vez, de grupos de fato, estando à

margem, pois, das disposições normativas da Lei das Sociedades Anônimas.

Portanto, o modelo brasileiro é convencional, exigindo-se a celebração

de uma convenção de grupo (artigo 265 da Lei das Sociedades Anônimas),

que exige o controle das sociedades agrupadas por uma sociedade

controladora (GUERREIRO, 2005, p. 305). O modelo convencional brasileiro

prescreve a manutenção da separação patrimonial entre as pessoas jurídicas

componentes do grupo, conforme consta no artigo 266 da mencionada lei,

segundo o qual cada sociedade conservará personalidade e patrimônios

distintos. Isso é justificado na medida em que as pessoas jurídicas

pertencentes a um grupo empresarial buscam gerar sinergias para o

desenvolvimento de atividades empresariais comuns, porém, independentes.

Não é o caso, no momento, de se aprofundar na distinção entre grupos

de fato e de direito, nem mesmo nas demais classificações existentes, como a

que distingue grupos de coordenação e de subordinação. Interessa-nos, por

força do presente trabalho, a vinculação existente entre as sociedades que

compõem um grupo empresarial, e que pode manifestar-se de inúmeras

maneiras (administração centralizada, submissão dos interesses de empresa

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105

membro ao interesse do grupo, arranjos societários relativos à concorrência,

etc.).

Apesar da afirmação legal da conservação da personalidade jurídica e

patrimônios distintos entre as empresas componentes de um grupo

convencional, José Alexandre Tavares Guerreiro (2005, p. 309) explica que há

certa relativização do valor conferido, em caráter individual, ao objeto social de

cada uma das pessoas jurídicas agrupadas, pois a execução de seu objeto

social, com a convenção, passa a admitir, expressamente, a subordinação de

interesses de uma sociedade ao de outras ou ao interesse do grupo.

É possível concluir, assim, que, no grupo, o modo de dar cumprimento

ao objeto social deixa de ser estritamente individual, passando a se inserir na

combinação de recursos e esforços de todo o grupo (de todas as sociedades

que o integram). Isso tem grande relevância quanto à “transferência de

capitais” entre as empresas agrupadas:

Quer isso significar que, uma vez convencionado o grupo, o

“fornecimento” de capitais se legitima mesmo que não incluído

no objeto social de dada companhia. Na verdade, não se trata,

na espécie, de “fornecimento” de capitais, mas de aplicação de

recursos financeiros próprios mediante remuneração, atividade

essa, aliás, não incluída, evidentemente, no objeto social das

companhias, como adiante discutido. E mais: se essa mesma

companhia se associa ao grupo, reconhece, ipso facto, a

existência de vantagens decorrentes da associação, que

convergem para o benefício de seu próprio interesse social e,

em última análise, para a realização última de seu objeto

social. Já não importa se esse benefício é mediato ou imediato,

direto ou indireto (GUERREIRO, 2005, p. 309).

Como o objeto social deixa de ser considerado sob o ponto de vista

estritamente individual e isolado da pessoa jurídica filiada, passando a ser

considerando, em verdade, um empreendimento comum, isto é, do grupo,

mostra-se plenamente possível a transferência de recursos no âmbito grupal,

como forma de reafirmação da sinergia para a consecução dos interesses

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106

comuns, apesar de cada pessoa jurídica manter sua personalidade e

patrimônio próprios.

Conforme observa Leonardo Netto Parentoni (2014, p. 75), essa

vinculação entre pessoas jurídicas (formação de grupos) pode ocasionar a

fragilização da autonomia individual de cada componente do grupo, de maneira

a permitir ao controlador utilizá-las em desconformidade com os pressupostos

da autonomia individual. Por isso, os grupos de sociedades têm sido “terrenos

férteis” para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica prevista

no artigo 50 do Código Civil.

Um dos aspectos polêmicos que têm ensejado a aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica em grupos econômicos diz respeito

a uma suposta confusão patrimonial decorrente de transferências financeiras

no interior do grupo. José Alexandre Tavares Guerreiro (2005, pp. 312-313)

explica que essas transferências de recursos financeiros constituem a própria

atividade nuclear do grupo, vindo a ser uma de suas finalidades mais claras e

usuais.

Esse negócio jurídico denomina-se mútuo, definido no artigo 586 do

Código Civil como empréstimo de coisas fungíveis. De acordo com tal

dispositivo, o mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu

em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

Pontes de Miranda (1972, p. 51) explica que a lei civil e a lei comercial

não contêm regra jurídica especial sobre a forma do contrato de mútuo. Elpídio

Donizete e Felipe Quintanella explicam (2012, p. 567), por sua vez, que

“Conquanto o Código não o mencione expressamente, o mútuo é contrato real,

que só se celebra, portanto, com a tradição.” Sílvio de Salvo Venosa (2012, p.

196) adverte, porém, que apesar de o mútuo não exigir forma escrita, deve-se

formalizá-lo por escrito para efeito de prova e de registro contábil.

É possível concluir, assim, com base na doutrina, que o contrato de

mútuo, no direto brasileiro, é considerado contrato real, tornando-se perfeito e

acabado com a simples entrega da coisa, apesar da recomendação feita por

Venosa, que se faça por escrito, para fins probatórios.

Dessa forma, apesar da desnecessidade de contrato escrito, a

transferência de recursos entre empresas agrupadas, isto é, o mútuo entre

essas empresas, pode ser juridicamente demonstrado na escrituração contábil

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107

do mutuante e do mutuário. A suficiência da prova mediante escrituração é,

inclusive, prevista no artigo 226 do Código Civil, que trata dos meios de prova:

Art. 226. Os livros e fichas dos empresários e sociedades

provam contra as pessoas a que pertencem, e, em seu favor,

quando, escriturados sem vício extrínseco ou intrínseco, forem

confirmados por outros subsídios.

Parágrafo único. A prova resultante dos livros e fichas não é

bastante nos casos em que a lei exige escritura pública, ou

escrito particular revestido de requisitos especiais, e pode ser

ilidida pela comprovação da falsidade ou inexatidão dos

lançamentos.

Paralelamente a isso, não existe na legislação qualquer exigência,

expressa ou implícita, de que as partes devem convencionar, necessariamente,

o prazo de vencimento de cada operação. Em verdade, além de o caput do

artigo 592 do Código Civil estipular a livre convenção das partes quanto ao

prazo, o inciso II exige somente um prazo mínimo (e não máximo) de trinta dias

se o mutuo for em dinheiro:

Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo

do mútuo será:

I - até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas,

assim para o consumo, como para semeadura;

II - de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro;

III - do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de

qualquer outra coisa fungível.

Como os valores objeto do mútuo podem ser compensados entre as

empresas que compõem o grupo, levanta-se aquela questão da ocorrência ou

não de confusão patrimonial (ou até confusão de personalidade jurídica) entre

tais empresas, com violação ao artigo 266 do Lei das Sociedades Anônimas,

que garante, de forma expressa, as suas autonomias de personalidade e de

patrimônio.

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108

Partindo das premissas já expostas, de que se trata de transações com

partes relacionadas no interior do grupo, cujo tratamento é determinado pela

administração grupal, e que existe, no grupo e nas relações com as partes

integrantes, uma determinação unitária sobre todas as transações relevantes

(ou seja, uma vontade diferente das vontades individuais, que prepondera

sobre o interesse individual das pessoas jurídicas agrupadas isoladamente

consideradas, sustenta José Alexandre Tavares Guerreiro (2005, p. 317) que:

Nessas condições, os mútuos subordinam-se expressamente a

essa “vontade” única, inclusive no que diz respeito à sua

extinção, total ou parcial, nas condições que viessem a ser

determinadas pela administração do grupo. Era, pois, à

vontade da administração do grupo que deveria se conformar a

compensação de seus saldos credores e devedores. Também

no que tange a essa compensação, a decisão central é interna

corporis, ou seja, não depende da intervenção da vontade de

terceiros, fora do grupo e não sujeitos a seu poder vinculante.

E arremata, referindo-se ao § 3º do artigo 178 da Lei das Sociedades

Anônimas (segundo o qual os saldos devedores e credores que a pessoa

jurídica não tiver direito de compensar serão classificados separadamente),

que:

O direito de compensar, que nesse dispositivo constitui o

elemento decisivo para o registro dos saldos devedores e

credores, não estava, no caso presente, em mãos de terceiros,

mas em mãos de sociedades filiadas ao grupo e vinculadas por

suas determinações. Assim, a extinção total ou parcial dos

mútuos, por meio de compensação, conquanto formalizada por

devedores e credores, obedece a uma condição determinada

pela administração do grupo, a expressar a vontade do grupo,

enquanto empreendimento comum, como se fosse,

efetivamente, uma única empresa (GUERREIRO, 2005, p.

318).

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109

O mencionado autor conclui, com base nisso, que não se pode falar em

confusão patrimonial e nem em confusão de personalidade jurídica nessa

hipótese, pelo simples fato, amparado pela legislação, de que as

demonstrações financeiras da sociedade de comando registram os saldos dos

mútuos, após o cômputo da respectiva parcela a compensar perante outras

operações de mútuo no interior do grupo (GUERREIRO, 2005, p. 318).

Há quem pense, porém, como Fábio Konder Comparato (2008, p. 376),

que a confusão patrimonial, em maior ou menor grau, é inerente a todo grupo

econômico, levando-o a afirmar, inclusive, que o interesse individual de uma

sociedade é sempre subordinado ao interesse geral do complexo de empresas

agrupadas.

Contudo, partindo do modelo convencional brasileiro, que garante,

expressamente, a separação da personalidade e patrimonial entre as pessoas

jurídicas componentes do grupo, nos termos do já mencionado artigo 266 da

Lei das Sociedades Anônimas, José Alexandre Tavares Guerreiro (2005, p.

319) afirma o seguinte:

O que interessa, porém, é saber se essa situação ocorre à

margem da lei, ou, se, ao contrário, vem a ser ela mesma uma

decorrência inevitável da própria lei ao admitir e legitimar os

grupos de direito com subordinação de interesses. Seja como

for, não há procedência alguma na suposição de que a

disciplina jurídica dos grupos de direito implica em confusão

patrimonial lesiva, seja ao interesse dos credores, seja ao

interesse dos acionistas não controladores. Trata-se de

situação jurídica a que a lei dá amparo e, portanto, não autoriza

a arguição de confusão patrimonial ou de prejuízo à

personalidade jurídica.

É possível concluir, portanto, que não se sustenta considerar a

ocorrência de confusão patrimonial (ou de personalidade) entre empresas

agrupadas na hipótese de celebração de contrato de mútuo, porquanto tal

prática é autorizada por lei e isso não descaracteriza, por ser juridicamente

permitida, a separação da personalidade e patrimônio entre tais pessoas,

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110

desde que cumpridos todos os requisitos necessários à constituição do modelo

convencional brasileiro.

É possível perceber, contudo, decisões judiciais que têm aplicado a

desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar todas as

pessoas jurídicas pertencentes a um mesmo grupo empresarial. Vejamos,

nesse sentido, o quanto decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no

julgamento dos Embargos ao Recurso Especial nº 604.862/PR, julgado em 28

de novembro de 2014, mediante decisão monocrática do Ministro Marco Buzzi,

que analisou a ocorrência de operação de mútuo realizado entre empresas de

um mesmo grupo:

Trata-se de agravo (art. 544 do CPC) interposto por

PLAYARTE PICTURES ENTRETENIMENTO LTDA, em face

de decisão denegatória de seguimento ao recurso especial.

O apelo extremo, fundamentado no artigo 105, inciso III, alínea

“a”, da Constituição Federal, desafiou acórdão proferido pelo

Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, assim ementado (fl.

1907, e-STJ):

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO EM FASE DE

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - DECISÃO

INTERLOCUTÓRIA QUE RECONHECE A EXISTÊNCIA DE

GRUPO ECONÔMICO E DETERMINA A

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA

EXECUTADA - INSURGÊNCIA RECURSAL - AUSÊNCIA DE

FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO - ART. 93, IX, DA CF E

ART. 165, DO CPC - NÃO ACOLHIMENTO - INOCORRÊNCIA

DE CONFUSÃO PATRIMONIAL - ALEGAÇÃO

DESPROPOSITADA - NÃO OCORRÊNCIA DOS REQUISITOS

ENSEJADORES DA DESCONSIDERAÇÃO -

DESCABIMENTO - RECONHECIMENTO DE GRUPO

ECONÔMICO - EMPRESAS ATRELADAS ENTRE SI -

DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

Nas razões do recurso especial (fls. 1942-1966, e-STJ), a

recorrente apontou afronta aos seguintes dispositivos

normativos: art. 93, IX, da CF; arts. 165, 265, inciso IV, alínea

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111

“a”, primeira parte, do CPC; art. 266 da Lei nº 6.404/76; e art.

50 do CC.

Sustentou que não se encontram presentes os requisitos

necessários à desconsideração da personalidade jurídica,

medida de exceção aqui adotada sem qualquer critério.

(...)

Decido.

A pretensão recursal não prospera.

(...)

3. No mérito, cumpre assinalar que o abuso da personalidade

jurídica poderá acarretar em sua desconsideração quando

caracterizado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial

entre pessoa jurídica e seus sócios, podendo o juiz decidir que

os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam

estendidos aos bens particulares dos administradores ou

sócios da pessoa jurídica, conforme dispõe o art. 50 do CC.

O Tribunal de origem, com amparo no acervo probatório dos

autos, entendeu cabível, na hipótese, a desconsideração da

personalidade jurídica da executada (fls. 1917-1918, e-STJ):

In casu, a decisão ora vergastada entendeu que houve

confusão patrimonial em razão do reconhecimento do grupo

econômico e da interação econômica de bens entre eles:

transferência de valores da agravante para outras empresas

coligadas.

De acordo com a manifestação do administrador judicial de ff.

935/940-TJ (Al nº 999.283-0), após análise e avaliação do

estado contabilístico da agravante, restou comprovada a

confusão patrimonial, veja-se:

“(...) 3) Realizou Investimentos, conforme o Balanço Encerrado

em 31/12/2009, no montante de R$ 58.007.897,71 em

empresas coligadas (conforme o anexo 004), bem como

realizou contratos de Mútuos para quotistas ou então para

empresas do Grupo (anexos 009), em detrimento do

recolhimento, por exemplo, dos Impostos deduzidos da base

de cálculo da arrecadação (...)”.

Ainda continuou:

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112

“(...) Não há nenhuma dúvida de que a Executada faz parte de

um Grupo Econômico, fato comprovado por documentos

disponibilizados pela própria Executada, conforme se vê, por

exemplo, no bloco de anexos „33.1‟, onde consta a expressão

„Grupo Playarte‟, na margem esquerda, ao alto. (...)”.

Fato é que a agravante por meio de contratos de mútuos

realizou inúmeras transações com outras empresas coligadas,

isto evidencia a confusão patrimonial, que alude o art. 50, do

CC.

Portanto, correta a decisão ao desconsiderar a personalidade

jurídica da agravante.

Desse modo, para alterar as conclusões do acórdão recorrido

acerca do exame dos requisitos necessários para a

desconsideração da personalidade jurídica, seria

imprescindível a rediscussão de matéria fática, incidindo, na

espécie, o óbice da Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples

reexame de prova não enseja recurso especial”.

Sobre o tema, o seguinte precedente:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL.

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO

ESPECIAL. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA

JURÍDICA. ART. 50 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. AFERIÇÃO DA

PRESENÇA DOS ELEMENTOS AUTORIZADORES DA

MEDIDA. REEXAME DE MATÉRIA DE FATO.

IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica,

medida excepcional prevista no art. 50 do Código Civil de 2002,

pressupõe a ocorrência de abusos da sociedade, advindos do

desvio de finalidade ou da demonstração de confusão

patrimonial.

2. O Tribunal de origem, com base no contexto fático-

probatório dos autos, afastou os elementos fáticos

autorizadores da medida. Desse modo, infirmar as conclusões

a que chegou o acórdão recorrido - investigação acerca da

ocorrência de abusos da personificação jurídica advindos do

desvio de finalidade ou da demonstração de confusão

patrimonial - demandaria a incursão na seara fático-probatória

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113

dos autos, tarefa essa soberana às instâncias ordinárias, o que

impede o reexame na via especial (Súmula 7 deste Superior

Tribunal).

3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no

AREsp 441.231/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES,

SEGUNDA TURMA, julgado em 06/02/2014, DJe 20/02/2014)

Nesse sentido, “reverter as conclusões do Tribunal a quo

acerca da desconsideração da personalidade jurídica,

ocasionaria, necessariamente, o revolvimento do conjunto

fático-probatório dos autos, procedimento que é vedado pelo

Enunciado nº 7 da Súmula desta Corte” (EDcl no Ag n.

984.901/SP, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS

MOURA, SEXTA TURMA, DJe 5/4/2010).

4. Do exposto, nego provimento ao agravo.

Apesar de o Acórdão em questão não mencionar expressamente, tudo

indica que se trata, in casu, de grupo de direito, porquanto reconhecida a

relação de empresas coligadas, fato esse demonstrado, inclusive, pelas

demonstrações contábeis. Contudo, apesar disso, o julgador decidiu aplicar a

teoria da desconsideração da personalidade jurídica por entender que houve

confusão patrimonial entre as pessoas jurídicas coligadas, devido à

constatação de mútuo entre elas. Pode-se duvidar, contudo, em razão da

construção doutrinária acima exposta, o acerto dessa decisão.

Observa-se, porém, que a maior parte das decisões que aplicam a teoria

da desconsideração da personalidade jurídica têm por objeto os grupos de fato,

isto é, aqueles que não cumprem as formalidades legais exigíveis

(celebração de convenção) para serem considerados grupos de direito.

Vejamos, nesse sentido, o quanto decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no

julgamento do Recurso Especial nº 968.564/RS, decidido em 18 de dezembro

de 2008, de relatoria do Ministro Arnaldo Esteves Lima:

DIREITO CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO.

EXECUÇÃO. DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO.

EXAME. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA RESERVADA

AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CERCEAMENTO DE

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114

DEFESA. NÃO-OCORRÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESSUPOSTOS. AFERIÇÃO.

IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DISSÍDIO

JURISPRUDENCIAL. NÃO-OCORRÊNCIA. RECURSO

ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. Refoge à competência do Superior Tribunal de Justiça, em

sede de recurso especial, o exame de suposta afronta a

dispositivo constitucional, por se tratar de matéria reservada ao

Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, III, da

Constituição da República.

2. O afastamento, pelo Tribunal de origem, da aplicação da

teoria da desconsideração da personalidade jurídica da parte

recorrida, em face da revaloração das provas dos autos, não

importa em cerceamento de defesa, mormente quando tal

decisão não se baseou em ausência de prova, mas no

entendimento de que os pressupostos autorizativos de tal

medida não se encontrariam presentes.

3. A desconsideração da pessoa jurídica, mesmo no caso de

grupos econômicos, deve ser reconhecida em situações

excepcionais, quando verificado que a empresa devedora

pertence a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com

estrutura meramente formal, o que ocorre quando diversas

pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob

unidade gerencial, laboral e patrimonial, e, ainda, quando se

visualizar a confusão de patrimônio, fraudes, abuso de direito e

má-fé com prejuízo a credores.

4. Tendo o Tribunal a quo, com base no conjunto probatório

dos autos, firmado a compreensão no sentido de que não

estariam presentes os pressupostos para aplicação da

disregard doctrine, rever tal entendimento demandaria o

reexame de matéria fático-probatória, o que atrai o óbice da

Súmula 7/STJ. Precedente do STJ.

5. Inexistência de dissídio jurisprudencial.

6. Recurso especial conhecido e improvido.

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115

Por estarem à margem das disposições da Lei das Sociedades

Anônimas, que garante a separação da personalidade e patrimonial entre as

pessoas pertencentes ao grupo, a jurisprudência tem entendido, com

frequência, que, nesses casos (grupos de fato), há apenas uma separação

formal entre as empresas (enquanto atividade econômica organizada), na

medida em que é possível identificar administração e controle em comum.

O que tem determinado a possibilidade de desconsideração da

personalidade jurídica não é a existência de vínculo societário entre as pessoas

jurídicas integrantes do grupo de fato, até mesmo porque tal vínculo não existe

materialmente. O fator determinante é, em verdade, a confusão patrimonial ou

o desvio de finalidade, conforme se observa na ementa adiante parcialmente

citada, proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso

Especial nº 767.021/RJ, em 16 de agosto de 2005: /08/2005-RJ, de relatoria do

Ministro José Delgado:

(...)

3. “A desconsideração da pessoa jurídica, mesmo no caso de

grupos econômicos, deve ser reconhecida em situações

excepcionais, onde se visualiza a confusão de patrimônio,

fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores. No

caso sub judice, impedir a desconsideração da personalidade

jurídica da agravante implicaria em possível fraude aos

credores. Separação societária, de índole apenas formal,

legitima a irradiação dos efeitos ao patrimônio da agravante

com vistas a garantir a execução fiscal da empresa que se

encontra sob o controle de mesmo grupo econômico” (Acórdão

a quo). 4. “Pertencendo a falida a grupo de sociedades sob o

mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que

ocorre quando diversas pessoas jurídicas do grupo exercem

suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, é

legítima a desconsideração da personalidade jurídica da falida

para que os efeitos do decreto falencial alcancem as demais

sociedades do grupo. Impedir a desconsideração da

personalidade jurídica nesta hipótese implicaria prestigiar a

fraude à lei ou contra credores”.

(...)

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116

Vejamos um trecho do voto condutor desse julgado:

(...)

A desconsideração da pessoa jurídica, mesmo no caso de

grupos econômicos, deve ser reconhecida em situações

excepcionais, onde se visualiza a confusão de patrimônio,

fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores. O

intuito é visar situações falsas ou artifícios maliciosos, à

margem da lei e prejudiciais a terceiros, alcançando o

patrimônio daqueles conhecidos sócios ricos das sociedades

pobres.

No caso sub judice, impedir a desconsideração da

personalidade jurídica da agravante implicaria em possível

fraude aos credores. A utilização de razões sociais distintas

para a mesma empresa comercial não afasta a óbvia

conclusão de que, na hipótese existe apenas uma só pessoa

jurídica.

As empresas INTERUNION CAPITALIZAÇÃO S/A,

INTERUNION TRADING S/A e controladora INTERUNION

HOLDING S/A possuem sede no mesmo prédio, e se

encontram sob o comando do mesmo grupo empresarial, com

a mesma direção, cujos negócios eram conduzidos tendo em

vista interesses desse grupo, e não os de cada uma das

diversas sociedades. Essa separação societária, de índole

apenas formal, legitima a irradiação dos efeitos ao patrimônio

da agravante com vistas a garantir a execução fiscal da

empresa que se encontra sob o controle de mesmo grupo

econômico.

(...)

É possível verificar, assim, que o fundamento jurídico frequentemente

utilizado pelos Tribunais é que a formação de grupos de fato é um abuso da

personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela

confusão patrimonial, ensejando, assim, a responsabilização patrimonial de

todas as pessoas jurídicas envolvidas pela aplicação da desconsideração da

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personalidade jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil. Convém ressaltar,

contudo, que tais decisões não têm responsabilizado as pessoas físicas (sócios

das pessoas jurídicas), mas somente as pessoas jurídicas que compõem o

grupo.

Percebe-se, por outro lado, nesses mesmos julgados, que o Superior

Tribunal de Justiça entende que a simples existência de grupo econômico de

direito não implica, per si, desconsideração da personalidade jurídica, exigindo,

para tanto, aqueles pressupostos descritos no artigo 50 do Código Civil. Nesse

sentido, destaca-se o quanto decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no

Recurso Especial nº 744.107/SP, de relatoria do Ministro Fernando Gonçalves,

julgado em 20 de maio de 2008:

RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA ("disregard doctrine").

HIPÓTESES.

1. A desconsideração da personalidade jurídica da empresa

devedora, imputando-se ao grupo controlador a

responsabilidade pela dívida, pressupõe - ainda que em juízo

de superficialidade - a indicação comprovada de atos

fraudulentos, a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade.

2. No caso a desconsideração teve fundamento no fato de ser

a controlada (devedora) simples longa manus da controladora,

sem que fosse apontada uma das hipóteses previstas no art.

50 do Código Civil de 2002.

3. Recurso especial conhecido.

No mesmo sentido, verifica-se, ainda, o quanto decidido no julgamento

do Recurso Especial nº 744.107, julgado em 20 de maio de 2008, de relatoria

do Ministro Fernando Gonçalves:

RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA ("disregard doctrine").

HIPÓTESES.

1. A desconsideração da personalidade jurídica da empresa

devedora, imputando-se ao grupo controlador a

responsabilidade pela dívida, pressupõe - ainda que em juízo

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de superficialidade - a indicação comprovada de atos

fraudulentos, a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade.

2. No caso a desconsideração teve fundamento no fato de ser

a controlada (devedora) simples longa manus da controladora,

sem que fosse apontada uma das hipóteses previstas no art.

50 do Código Civil de 2002.

3. Recurso especial conhecido.

Importa transcrever um elucidador trecho do voto condutor:

(...)

No caso, como visto, houve a desconsideração da

personalidade jurídica da empresa devedora, imputando-se ao

grupo controlador a responsabilidade pela dívida, sem, data

venia, explicitação das razões para esta providência. Não foi,

em nenhum momento, mencionada a ocorrência de abuso de

direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou

violação dos estatutos ou contrato social. Mostra, com efeito,

MÔNICA GUSMÃO, na Revista a Escola da Magistratura do

Estado do Rio de Janeiro - EMERJ - vol. 7, nº 26 - pág. 266 -

que o objetivo da disregard “não é outro senão o de

desconsiderar momentaneamente a personalidade jurídica da

sociedade para atingir bens particulares dos sócios (no caso da

sociedade controladora), desde que comprovada a prática de

atos fraudulentos, a confusão patrimonial ou o desvio de

finalidade”, trazendo à colação julgado da Segunda Câmara do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - Relator o

Des. SERGIO CAVALIERI FILHO - que expõe, verbis: “Com a

teoria da disregard doctrine visa-se coibir o uso irregular da

forma societária, geradora da personalidade jurídica, para fins

contrários ao direito. Contudo, a fraude e o abuso de direito,

que autorizam a adoção desta teoria, no caso concreto, hão de

ser cabalmente demonstrados, não sendo suficiente a

existência de indícios ou presunções, porque se cuida de uma

excepcionalidade, demanda prova inconteste.” (fls. 266/267)

E diz mais o julgado: “Mister faz-se a comprovação de que a

pessoa formal, por intermédio de pessoas físicas esteja

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119

perpetrando atos fraudulentos e/ou em abuso de direito em

detrimento de terceiros. Acerto da decisão hostilizada, à falta

da demonstração dos pressupostos jurídicos do pedido.” (fls.

267) Nem a decisão de primeiro grau e nem o ven. acórdão

declinam casos de comprovada fraude para a aplicação da

teoria, mas apenas que “por meio da argumentação e

documentação juntada pela autora” estaria demonstrada a

“situação de grupo econômico que viabiliza, no caso, a

desconsideração da personalidade jurídica” (fls. 656). O ven.

acórdão também endossa a tese da desconsideração sob o

fundamento de ser a controlada (devedora) simples longa

manus da controladora, mas, data venia, não aponta tenha

havido, como exige o art. 50 do Código Civil, ainda que em

Juízo de superficialidade, desvio de finalidade social ou

confusão patrimonial. Neste sentido, aliás, o Centro de Estudos

Judiciários do Conselho da Justiça Federal, através do

Enunciado 146, ressalta que “nas relações civis interpretam-se

restritivamente os parâmetros de desconsideração da

personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade

social ou confusão patrimonial)”.

(...)

Prestigiando, assim, aquela regra expressa na Lei das Sociedades

Anônimas (artigo 265), que estipula a separação patrimonial e das

personalidades das empresas pertencentes a um grupo de direito, não há que

se falar em desconsideração da personalidade jurídica senão em caso de

comprovado abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão

patrimonial. Sem prova do abuso, isto é, intenção deliberada de frustrar os

interesses de terceiros mediante a utilização da pessoa jurídica, não se

sustenta a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Apesar da escassa jurisprudência sobre o tema em direito tributário, é

possível sustentar que todas essas conclusões são aplicáveis, em tudo e por

tudo, à desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

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120

3.5 Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário

Partindo da premissa de que a desconsideração da personalidade

jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil é aplicável ao direito tributário,

importa perquirir, então, quais os principais aspectos processuais dessa

aplicação.

3.5.1 O devido processo legal

É cediço que o direito processual, seja ele civil, penal, trabalhista, etc.

está subordinado a diversos princípios constitucionais gerais, destacando-se,

dentre eles, o due process of law, isto é, o devido processo legal, que é o

postulado constitucional fundamental do processo civil brasileiro e de muitos

outros países.

Ao referir-se a tal princípio, que em nosso sistema jurídico encontra-se

positivado no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal em vigor, segundo

o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido

processo legal”. Explica Nelson Nery Júnior (2013, p. 92) que ele é a base

sobre a qual todos os outros princípios e regras se sustentam, concluindo que:

(...) bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio

do due process of law para que daí decorressem todas as

consequências processuais que garantiriam aos litigantes o

direito a um processo e a uma sentença justa. É, por assim

dizer, o gênero do qual todos os demais princípios e regras

constitucionais são espécies.

Com origem na Magna Carta de 1215, o due process of law prestigiava –

no seu surgimento – a proteção do indivíduo no âmbito do processo penal, mas

o conceito do devido processo foi se modificando e se alargado no decorrer do

tempo até alcançar a atual forma e extensão, protetiva dos direitos

fundamentais do cidadão em tudo o que disser respeito à vida, liberdade ou

propriedade, superando, assim, as fronteiras do processo penal.

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Por isso, a doutrina especializada ensina que o princípio do due process

of law caracteriza-se – genericamente – pelo trinômio vida, liberdade e

propriedade, isto é, garante o direito de tutela de todos esses bens da vida em

seu sentido mais amplo e genérico possível (NERY JÚNIOR, 2013, p. 94).

Logo, tudo o que disser respeito à vida, liberdade ou propriedade está sob a

proteção do due process of law.

Humberto Ávila (2008, pp. 50-59) destaca, porém, que essa expressão

(devido processo legal) tem sido contemporaneamente utilizada pela doutrina e

pela jurisprudência com duas diferentes conotações: (i) substancial, quando

denotativa das exigências de proporcionalidade e de razoabilidade; e (ii)

procedimental, quando indicativa da garantia de um processo adequado e

justo.

Nelson Nery Júnior (2013, p. 96) também faz a mesma observação,

explicando que o já destacado “sentido genérico” do due process of law (tudo o

que disser respeito à vida, liberdade ou propriedade está sob a sua proteção)

pode ser bipartido em substantive due process of law e em procedural due

process, indicando, assim como Ávila, a incidência do princípio em seu aspecto

substancial (que atua no que se refere ao direito material) e em seu aspecto

processual (que atua, por sua vez, no que se refere ao direito processual).

Quanto à sua aplicação no direito material, explica Humberto Ávila

(ÁVILA, 2008, p. 57) que tal princípio tem sido modernamente utilizado como

fundamento normativo dos deveres de proporcionalidade e de razoabilidade,

estando, pois, implícito no ordenamento jurídico. Ao tecer uma crítica “ácida”, o

referido teórico conclui, logo em seguida, que:

O uso da expressão “devido processo legal substancial” parece

ser, desse modo, apenas uma “bengala” para o intérprete

positivista que só enxerga normas onde encontra dispositivos

que lhes servem de suporte físico. Ocorre, porém, que esse

uso implica buscar, num dispositivo, o que já era dado por

outros, inclusive fora do âmbito processual.

Dessa forma, toda vez em que for proferida uma decisão

desproporcional ou irrazoável, estará configurada uma afronta ao princípio do

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substantive due process, isto é, do devido processo em sua acepção material.

Por outro lado, quando analisado em seu clássico sentido processual

(procedural due process), o devido processo legal alcança outro significado,

mais restrito, correspondendo à repercussão e incidência, no direito

processual, do referido princípio do devido processo legal.

Inspirado pelo Direito Processual americano, Nelson Nery (2013, p. 99)

explica, exemplificadamente, que o procedural due process significa, dentre

outras coisas, o dever de propiciar aos litigantes a comunicação adequada

sobre a recomendação ou base da ação governamental, a atuação de um juiz

imparcial, a oportunidade de deduzir defesa oral perante um juiz e a

oportunidade de apresentar provas ao juiz, dentre outras garantias processuais

já incorporadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Dessa forma, a cláusula do procedural due process nada mais é do que

a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e

defendendo-se do modo mais amplo possível. Por isso é correto afirmar que o

devido processo, em sua acepção processual, pressupõe a incidência da

isonomia, do contraditório, do direito de defesa, do direito à prova, da igualdade

de armas, da motivação das decisões, do direito ao silêncio, do direito de não

produzir prova contra si mesmo e de não incriminar a si próprio, da publicidade

dos atos processuais, etc.

Conforme corretamente adverte Nelson Nery Júnior (2013, p. 101),

apesar de a doutrina brasileira vir empregando, ao longo dos últimos anos, a

locução devido processo legal unicamente em seu sentido processual, vendo

na referida garantia apenas o direito ao justo processo, não se deve ignorar o

aspecto material que também lhe é ínsito.

Portanto, refletindo sobre as lições de Humberto Ávila (2008, p. 57), é

incorreto utilizar a expressão devido processo legal procedimental em oposição

ao devido processo legal substancial. Ambos os aspectos formam um todo

estrutural protetivo, que serve a um processo adequado e justo, nos seus

aspectos materiais e processuais. Nas suas conclusivas palavras:

Nesse sentido, a expressão composta de três partes fica plena

de significação: deve haver um processo; ele deve ser justo; e

deve ser compatível com o ordenamento jurídico,

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123

especialmente com os direitos fundamentais (ÁVILA, 2008, p.

57).

Muito se discute a respeito de afronta ao devido processo nas hipóteses

em que se busca dar efetividade à desconsideração da personalidade jurídica.

Um dos problemas verificados refere-se à desconsideração sem a prévia

atividade cognitiva do magistrado, de que participem, em contraditório, o sócio,

administrador ou a outra pessoa jurídica.

Fredie Didier Júnior (2005, p. 398) entende, claramente, que não se

pode admitir a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica sem

prévio contraditório, pois “A garantia do contraditório é um direito fundamental

e, nessa condição, qualquer questão que envolva a possibilidade de sua

mitigação ou eliminação deve ser vista como muita reserva.” É o que também

sustenta Fábio Ulhoa Coelho (2012, pp. 78-80), para quem o sócio e a

sociedade devem ser previamente citados, na medida em que a citação

garante o devido processo legal.

Ocorre que muitos dos anseios da doutrina foram atendidos com a

aprovação, em 16 de março de 2015, da Lei Federal nº 13.105, que instituiu o

Novo Código de Processo Civil, que substituirá, no próximo ano, o diploma

processual atualmente em vigor. Concebido sob a égide da Constituição

Federal de 1988, seu anteprojeto tramitou durante quase cinco anos e, nesse

período, foi objeto de centenas de sugestões apresentadas por juristas e não

juristas, em dezenas de audiências públicas realizadas por todo o país.

Um dos avanços observados nessa nova legislação foi a inserção, em

seu texto, nos artigos 133 a 137, da regulação processual do incidente de

desconsideração da personalidade jurídica:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade

jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério

Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica

observará os pressupostos previstos em lei.

§ 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de

desconsideração inversa da personalidade jurídica.

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124

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas

as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de

sentença e na execução fundada em título executivo

extrajudicial.

§ 1o A instauração do incidente será imediatamente

comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.

§ 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a

desconsideração da personalidade jurídica for requerida na

petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa

jurídica.

§ 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo

na hipótese do § 2o.

§ 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos

pressupostos legais específicos para desconsideração da

personalidade jurídica.

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica

será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis

no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente

será resolvido por decisão interlocutória.

Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe

agravo interno.

Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação

ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será

ineficaz em relação ao requerente.

Ao analisar tais disposições, Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 425)

explica que:

(...) este incidente – que não estava previsto expressamente na

legislação processual anterior – vem assegurar o pleno

respeito ao contraditório e ao devido processo legal no que diz

respeito à desconsideração da personalidade jurídica. É que

sem a realização desse incidente, o que se via era a apreensão

de bens de sócios (ou da sociedade, no caso de

desconsideração inversa) sem que fossem eles chamados a

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participar, em contraditório, do processo de formação da

decisão que define sua responsabilidade patrimonial.

De fato, o Superior Tribunal de Justiça admitia, sob a égide da legislação

atualmente em vigor (Código de Processo Civil de 1973), a desconsideração da

personalidade jurídica sem prévia citação daqueles que podem ser atingidos

pelos efeitos da decisão, “diferindo-se”, segundo o entendimento da

mencionada Corte, o contraditório que consiste numa das manifestações do

devido processo legal.

De fato, a ementa abaixo parcialmente transcrita, extraída do Acórdão

resultante do julgamento do Recurso Especial nº 1.266.666, de relatoria da

Ministra Nancy Andrighi, realizado em 9 de agosto de 2011, demonstra esse

exato entendimento:

(...)

III – Mérito do recurso. A quebra sem prévia citação. Violação

dos 12, §§ 1º e 3º, bem como 14, todos da LF/45, com

correspondência no art. 81 da LF/2005.

O tema de mérito deste recurso se resume à possibilidade de

extensão da falência da PETROFORTE aos recorrentes, sem

ação autônoma e sem sua prévia intimação, citação ou oitiva.

Com efeito, no processo que originou este recurso o pedido do

síndico de extensão da quebra foi autuado em expediente

avulso e deferido, pelo juízo, em primeiro grau, sem a

participação dos recorrentes, destinatários dos efeitos da

decisão. O exercício do contraditório foi, com isso, diferido,

possibilitando-se a defesa dos recorrentes apenas por meio de

recurso.

A análise da regularidade desse procedimento não pode,

naturalmente, desprender-se das peculiaridades da espécie.

Com efeito, não é mais possível, no processo civil moderno,

apreciar uma causa baseando-se exclusivamente nas regras

processuais sem se considerar, em cada hipótese, as suas

especificidades e, muitas vezes, a evidência com que se

descortina o direito material por detrás do processo. Hoje está

muito claro, tanto na doutrina como na jurisprudência, que as

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regras processuais devem estar a serviço do direito material,

nunca o contrário.

No próprio recurso especial a recorrente demonstra que a

extensão dos efeitos da falência sem a prévia citação vem

sendo admitida pela jurisprudência do STJ nas hipóteses em

que caracterizada a existência de grupo econômico,

notadamente mediante a técnica da desconsideração da

personalidade jurídica. Há, nesse sentido, julgado antigo de

minha relatoria (RMS 12.872/SP, 3ª Turma, DJ de 16/12/2002)

e, mais recentemente, diversos outros julgados, do que é

exemplo a decisão proferida no REsp 881.330/SP (4ª Turma,

Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 10/11/2008). Ainda

nessa linha de raciocínio, a jurisprudência desta Corte vem

admitindo também a extensão de efeitos da quebra sempre

que verificada a hipótese de coligação de empresas (REsp

1.034.536/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe de

16/2/2009; REsp 228.357/SP, Rel. Min. Castro Filho, DJ de

19/12/2003; entre outros).

(...)

É importante frisar que a jurisprudência desta Corte tem se

posicionado no sentido de dispensar a propositura de ação

autônoma para que se defira a extensão dos efeitos da falência

de uma sociedade a empresas coligadas, consoante se vê nos

seguintes precedentes: REsp 1.034.536/MG, Rel. Min.

Fernando Gonçalves, DJe de 16/2/2009; REsp 228.357/SP,

Rel. Min. Castro Filho, DJ de 19/12/2003; entre outros. Assim,

em princípio, caracterizada a coligação de empresas, a

exigência de processo autônomo não se justificaria.

A caracterização de coligação de empresas, por sua vez, é,

antes de mais nada, uma questão fática. Portanto, o que tiver

decidido o Tribunal a esse respeito não pode ser revisto nesta

sede por força do óbice da Súmula 7 do STJ.

(...)

Verifica-se o mesmo entendimento, ainda, em outras decisões da

mencionada Corte, como no julgamento do Recurso Especial nº 476.452,

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decidido em 5 de dezembro de 2013, com relatoria do Ministro Luis Felipe

Salomão:

(...)

4. É pacífico na jurisprudência desta Corte a possibilidade de,

no curso do feito falimentar e de forma cautelar, haver a

desconsideração da personalidade jurídica independente de

ação autônoma para tanto. Além disso, é firme o entendimento

da prescindibilidade de citação prévia.

(...)

É possível verificar que o Superior Tribunal de Justiça entende, portanto,

que o contraditório pode ser deferido em caso de aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, primeiro deve-se aplicar a

desconsideração, e depois devem ser discutidas as questões referentes à

existência ou não de seus pressupostos, bem como os limites da decisão.

De acordo com Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 425), em

entendimento com o qual concordamos, as decisões do Superior Tribunal de

Justiça contrariam, nesse aspecto, todo o modelo constitucional processual

brasileiro, já que admitem a produção de uma decisão que afeta diretamente os

direitos de alguém sem que lhe seja assegurada a possibilidade de participar,

em contraditório prévio, na formação do pronunciamento judicial.

É cediço, aliás, que o pronunciamento judicial sem a prévia

manifestação do demandado só é admitido pelo ordenamento jurídico brasileiro

de forma excepcional, nas hipóteses em que for necessária a concessão de

tutela de urgência e que não seja possível aguardar o seu prévio

pronunciamento sob pena de perecimento irreversível de um bem ou direito.

De fato, se ninguém pode ser privado de seus bens ou direitos sem o

devido processo legal, por expressa determinação constitucional, mostra-se

essencial, então, que se permita àquele que está na iminência de ser privado

de um bem que seja chamado a debater, no processo, se é legítimo ou não

que seu patrimônio seja alcançado por força da desconsideração da

personalidade jurídica.

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128

Por isso, é possível concluir que o Novo Código de Processo Civil veio

atender a esse anseio, ao prescrever que instaurado o incidente, o sócio ou a

pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no

prazo de quinze dias (artigo 135), e que, somente após concluída a instrução, o

incidente será resolvido por decisão interlocutória (artigo 136).

Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 432) afirma que o dispositivo legal

em questão é digno de elogios, pois afastará definitivamente o entendimento

jurisprudencial que se consolidou ao longo do tempo (sob a égide do Código de

Processo Civil atualmente em vigor) de que a simples intimação do ato de

desconsideração é suficiente para assegurar a observância do contraditório e

da ampla defesa, que ficaria “diferido”, conforme se verifica na ementa abaixo,

relativa ao julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº

1.182.385/RS, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 6 de novembro de

2014, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO

CIVIL E DO CONSUMIDOR. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESSUPOSTOS

PROCESSUAIS E MATERIAIS. OBSERVÂNCIA. CITAÇÃO

DOS SÓCIOS EM PREJUÍZO DE QUEM FOI DECRETADA A

DESCONSIDERAÇÃO. DESNECESSIDADE. AMPLA DEFESA

E CONTRADITÓRIO GARANTIDOS COM A INTIMAÇÃO DA

CONSTRIÇÃO. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE

SENTENÇA. VIA ADEQUADA PARA A DISCUSSÃO ACERCA

DO CABIMENTO DA DISREGARD. SÚM 83/STJ.

1. Na hipótese, o entendimento adotado pelo Tribunal de

origem está em consonância com aquele perfilhado pelo STJ,

no sentido de que “A superação da pessoa jurídica afirma-se

como um incidente processual e não como um processo

incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos,

dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de

quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa

apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao

cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade.”

(REsp 1096604/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,

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129

QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 16/10/2012).

Incidência da Súmula 83/STJ na hipótese.

2. A admissibilidade do recurso especial, na hipótese da alínea

“c” do permissivo constitucional, exige a indicação das

circunstâncias que identificam ou assemelham os casos

confrontados, mediante o cotejo dos fundamentos da decisão

recorrida com o acórdão paradigma, a fim de demonstrar a

divergência jurisprudencial existente (arts. 541 do CPC e 255

do RISTJ).

3. Agravo regimental a que se nega provimento

Ao referir-se a decisões que entendem pela legalidade e

constitucionalidade da simples intimação, Alexandre Freitas Câmara (2015, pp.

432-433) afirma que:

A intimação, evidentemente, não é – jamais foi – suficiente

para assegurar ao sócio (ou à sociedade), cujo patrimônio se

pretende alcançar, o pleno contraditório, porque só pela citação

se adquire a posição de parte no processo (...), não sendo a

intimação ato capaz de tornar alguém – independentemente de

sua vontade – sujeito do processo.

Impõe-se, pois, a citação daquele cujo patrimônio se pretende,

com a desconsideração, alcançar, de forma a viabilizar sua

efetiva participação, em contraditório, no procedimento de

produção da decisão acerca da desconsideração da

personalidade jurídica. É que sem esse pleno contraditório a

decisão que se venha a produzir será ilegítima se examinada à

luz do modelo constitucional de processo civil, o que implica

dizer que a mesma será absolutamente nula (CÂMARA, 2015,

pp. 432-433).

Conforme afirma Fredie Didier Júnior (2005, p. 402), não se pode, na

ânsia por uma efetividade do processo, atropelar garantias processuais

conquistadas após séculos de estudos e conquistas, afrontando, em nome da

celeridade e efetividade, princípios processuais básicos.

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Ao dispor que o sócio ou a pessoa jurídica será previamente citado e

que haverá uma instrução, a novel legislação parecer ter contemplado, assim,

de forma incontestável, o procedural due process para fins de desconsideração

da personalidade jurídica.

Por outro lado, ao prescrever, no § 4º do artigo 134, que o requerimento

de desconsideração da personalidade jurídica deve demonstrar o

preenchimento dos pressupostos legais específicos para tal, a referida

legislação também parece ter contemplado o substantive due process of law,

pois exige que sejam demonstrados os pressupostos legais que, além de

estarem previstos no direito material, devem mostrar-se proporcionais e

razoáveis em cada caso concreto.

Portanto, para a caracterização das hipóteses que levam à

desconsideração da personalidade jurídica, passará a ser necessária a prévia

construção de todos os elementos probatórios, o que contempla as máximas

de que a quem acusa cabe provar e de que ninguém pode ser acusado sem

prova, salvo nos casos de presunção legal (admitidas apenas aquelas juris

tantum), para as quais a lei expressamente acolhe a inversão do ônus

probatório para o contribuinte.

Essas máximas encontram-se inseridas nos princípios constitucionais da

legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Se

não estiverem presentes os requisitos, e se não for possível sequer demonstrar

a probabilidade de sua existência, deverá o juiz indeferir liminarmente o

incidente, conforme explica Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 431):

Tal decisão de rejeição liminar, porém, não pode ser proferida

sem que se observe, em relação ao requerente, e de forma

plena, o princípio do contraditório, cuja observância é essencial

para que se respeite o modelo constitucional do processo civil

brasileiro e, por conseguinte, se assegure a legitimidade

democrática da decisão judicial. Assim sendo, caso o juiz

receba a petição de requerimento de desconsideração da

personalidade jurídica e não consiga, desde logo, formar esse

juízo de probabilidade, deverá dar ao requerente oportunidade

para manifestar-se especificamente sobre a possibilidade de vir

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o requerimento a ser liminarmente indeferido para, só depois,

proferir sua decisão.

Assim, além da fixação de disposições legais que exigem, no âmbito

processual, a observância do devido processo legal, o novo codex processual

também exige, em homenagem ao substantive due process, que sejam

claramente demonstrados os pressupostos autorizadores da desconsideração

da personalidade jurídica que, para os fins deste estudo, encontram-se

positivados na regra de aplicabilidade geral inserida no artigo 50 do Código

Civil.

Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 426) destaca que, sendo o Código

de Processo Civil o natural repositório das normas gerais do direito processual

civil, fez bem o legislador em evitar que para ele fossem trazidos os

pressupostos legais autorizadores da desconsideração da personalidade

jurídica que, em verdade, dizem respeito a outras áreas do conhecimento

jurídico:

É que os pressupostos da desconsideração da personalidade

jurídica devem ser estabelecidos pelo Direito Material, e não

pelo Direito Processual, cabendo a este, tão somente, regular o

procedimento necessário para que se possa verificar – após

amplo contraditório – se é ou não o caso de desconsiderar-se a

personalidade jurídica, tendo-a por ineficaz.

Tudo indica, portanto, que o novel codex processual cumpriu essa

função, suprindo, assim, os anseios da doutrina crítica que se formou em torno

das questões processuais do instituto, pois, ao mesmo tempo que contemplou

o procedural due process, como lhe cumpria fazer, também respeitou o

substantive due process of law, sem qualquer interferência em cada legislação

de direito material que prevê a desconsideração da personalidade jurídica.

Isso se mostra extremamente importante, pois os diversos subsistemas

do direito material estabelecem requisitos distintos para que se desconsidere a

personalidade jurídica, cabendo verificar, assim, em cada caso concreto, qual o

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ramo do direito material que rege a causa e os seus pressupostos legais

(CÂMARA, 2015, p. 427).

Poder-se-ia argumentar, porém, que, ao se exigir o prévio contraditório

para se decidir pela desconsideração da personalidade jurídica, já não se

encontrará mais qualquer bem no patrimônio do sócio (ou da sociedade) que

permita a satisfação dos interesses do credor. Contudo, o artigo 137 da novel

legislação prescreve que qualquer alienação ou oneração de bens feita após a

instauração do incidente será ineficaz em relação ao requerente.

Ademais, como bem observa Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 426),

sempre será possível, no caso de fundado receio de delapidação patrimonial, a

concessão de medida cautelar destinada a apreender os bens do sócio (ou da

sociedade, na desconsideração inversa) para assegurar sua futura utilização

em execução.

Assim, tomando emprestadas as palavras de Humberto Ávila, podemos

concluir que a desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário

pressupõe a existência de um processo, que esse processo deve ser justo, e

que a justiça depende da observância do devido processo legal.

É possível concluir, portanto, que o Novo Código de Processo Civil

trouxe inovações significativas a respeito do devido processo legal em termos

de desconsideração da personalidade jurídica. Cumpre aguardar, assim, sua

entrada em vigor para constatar se tais inovações vão ser acatadas pelos

tribunais pátrios.

3.5.2 A reserva de jurisdição

De acordo com o disposto no artigo 50 do Código Civil em vigor,

somente e tão somente um juiz de direito está credenciado pelo ordenamento

jurídico a promover a desconsideração da personalidade jurídica, na medida

em que afirma caber ao juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério

Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e

determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares

dos administradores ou sócios de pessoa jurídica.

É o que subjaz, claramente, nos ensinamentos de Venosa (2012, p. 290-

291):

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Essa redação melhorada atende à necessidade de o juiz, no

caso concreto, avaliar até que ponto o véu da pessoa jurídica

deve ser descerrado para atingir os administradores ou

controladores nos casos de desvio de finalidade, em prejuízo

de terceiros.

(...)

Portanto, a teoria da desconsideração autoriza o juiz, quando

há desvio de finalidade, a não considerar os efeitos da

personificação, para que sejam atingidos bens particulares dos

sócios ou até mesmo de outras pessoas jurídicas, mantidos

incólumes, pelos fraudadores, justamente para propiciar ou

facilitar a fraude.

A necessidade de decisão judicial para a sua aplicação também está

refletida nas lições de Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 249), nos seguintes

termos:

Permite tal teoria que o juiz, em casos de fraude e da má-fé,

desconsidere o princípio de que as pessoas jurídicas têm

existência distinta da dos seus membros e os efeitos dessa

autonomia, para atingir e vincular os bens particulares dos

sócios à satisfação das dívidas da sociedade (lifting the

corporate veil, ou seja, erguendo-se o véu da personalidade

jurídica).

No mesmo sentido, Maria Helena Diniz (2012, p. 351) também sustenta

a necessária interveniência do Poder Judiciário para a aplicação da

desconsideração da personalidade jurídica.

Apesar da falta de afirmação expressa nesse sendo, as disposições do

já mencionado Novo Código de Processo Civil conduzem ao mesmo

entendimento, ao prescrever que o incidente de desconsideração da

personalidade jurídica é cabível em todas as fases do processo de

conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título

executivo extrajudicial (artigo 134).

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Assim, por expressa disposição legal, fortemente sustentada pela

doutrina nacional, a aplicação do instituto é sujeita à reserva de jurisdição, isto

é, somente o Poder Judiciário pode determinar a desconsideração da

personalidade jurídica, seja para fins tributários ou não. É importante

mencionar, contudo, que esse não é o entendimento de Heleno Taveira Tôrres

(2005, pp. 50-51) e de Mary Elbe de Queiroz (2005, pp. 138-146), para quem a

desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada por autoridade

administrativa.

A afirmação desses autores está fundamentada no parágrafo único do

artigo 116 do Código Tributário Nacional, segundo o qual a autoridade

administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a

finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza

dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Contudo, entendemos que a regra geral antielisiva em questão não trata

da desconsideração da personalidade jurídica, pois, diferentemente desse

instituto, permite a desconsideração de atos ou negócios pela autoridade

administrativa, sendo esse, pois, um dos elementos que permitem traçar a

distinção.

Como o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional não

trata da desconsideração da personalidade jurídica, não será objeto de nossas

considerações, e também por isso, negamos a tese que a desconsideração

pode ser aplicada por autoridade administrativa.

Importa destacar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal também

reconhece ao Tribunal de Contas a mesma prerrogativa, conforme decidido na

Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 32.494/DF, julgada em 11 de

novembro de 2013, cuja ementa deixaremos de transcrever por não ter relação

com o objeto do presente estudo.

Mas, queremos voltar nossas atenções, em verdade, para o quanto

decidido no Recurso em Mandado de Segurança nº 15.166/BA, de relatoria do

Ministro Castro Meira, do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 8 de agosto

de 2003, que sedimentou o entendimento de que pode haver desconsideração

da personalidade jurídica na esfera administrativa, com fundamento no

princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade do interesse

público:

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ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO

DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE

PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE

COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E

MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA

ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA

MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE

DOS INTERESSES PÚBLICOS.

- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto

social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em

substituição a outra declarada inidônea para licitar com a

Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a

aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e

fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a

possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da

sanção administrativa à nova sociedade constituída.

- A Administração Pública pode, em observância ao princípio

da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos

interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade

jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude

à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a

ampla defesa em processo administrativo regular.

- Recurso a que se nega provimento.

Considerando as características da desconsideração da personalidade

jurídica, mormente a reserva de jurisdição, entendemos que a decisão em

questão se fundamenta em qualquer outro instituto, menos naquela prescrição

do artigo 50 do Código Civil. Não visualizamos qualquer possibilidade de a

desconsideração da personalidade jurídica ser aplicada pela própria

administração pública, de modo que o julgamento acima, além de nos causar

estranheza, causa, também, enorme preocupação.

Não é difícil imaginar o retrocesso e as afrontas que possivelmente

decorrerão da eventual admissão de possibilitar a desconsideração da

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personalidade jurídica em âmbito administrativo. É fácil perceber que a reserva

de jurisdição visa atender, dentre outras coisas, o devido processo legal, tanto

em sua acepção material quanto em sua acepção processual, o que foi

claramente reforçado, inclusive, pelas disposições do Novo Código de

Processo Civil.

Ademais, além da reserva de jurisdição a que se submete a

desconsideração da personalidade jurídica, o mencionado incidente não

poderá ser instaurado de ofício, nos termos do artigo 133 do Novo Código de

Processo Civil, ficando na dependência, sempre, de provocação da parte

interessada ou do Ministério Público quando atuar no processo (CÂMARA,

2015, p. 426).

Esse novel dispositivo parece estar em perfeita consonância com o

artigo 50 do Código Civil, que exige pedido da parte ou do Ministério Público

para instaurar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Partindo dessas premissas, uma dúvida sobrevém: qual é o veículo processual

adequado para instaurar o incidente de desconsideração da personalidade

jurídica?

3.5.3 O instrumento processual apropriado

A legislação em vigor não estipula em qual tipo de processo deve ou

pode ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica, quando cabível. O

Novo Código de Processo Civil parece ter suprido essa lacuna ao prescrever,

no caput do artigo 134, que “O incidente de desconsideração é cabível em

todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e

na execução fundada em título executivo extrajudicial.”

Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 428) afirma, em relação a tal

dispositivo, que:

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode

instaurar-se em qualquer tipo de processo, cognitivo ou

executivo, seja qual for o procedimento observado, comum ou

especial. Pode, ainda, instaurar-se em qualquer fase do

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desenvolvimento processual, inclusive na fase executiva que o

processo civil designa por “cumprimento de sentença”.

É possível, inclusive, que o incidente se instaure perante os

tribunais, seja nos processos de competência originária, seja

em grau de recurso, como se extrai do disposto no parágrafo

único do art. 136, que prevê a possibilidade de decisão do

incidente por relator.

Caso o incidente se instaure no curso de um processo

cognitivo (ou na fase de conhecimento de um processo

“sincrético”), e vindo a ser proferida decisão que desconsidere

a personalidade jurídica, o sócio (ou a sociedade, no caso de

desconsideração inversa) passará a integrar o processo como

demandado.

Paralelamente à prescrição de que o incidente de desconsideração é

cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de

sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial, o novo

diploma processual em questão ainda prescreve, no § 2º desse artigo 134, que

“Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da

personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será

citado o sócio ou a pessoa jurídica.”

De acordo com mencionado autor:

Há casos em que o demandante, já na petição inicial (de

processo de cognição ou executivo) postula a desconsideração

da personalidade jurídica. Nesse caso, a citação do sócio ou da

sociedade (esta no caso de desconsideração inversa) já será

requerida originariamente. Ocorrendo esse requerimento

originário, a demanda terá sido proposta em face do indigitado

devedor da obrigação (seja a sociedade, seja o sócio) e,

também, em face de terceiro (o sócio ou a sociedade, conforme

o caso) que, não obstante estranho à relação obrigacional

deduzida no processo, pode ser considerado também

responsável pelo pagamento. Formar-se-á, aí, então, um

litisconsórcio passivo originário entre a sociedade e o sócio. E

em razão desse litisconsórcio originário não haverá qualquer

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motivo para a instauração do incidente. Afinal, nesse feito a

pretensão à desconsideração integrará o próprio objeto do

processo, cabendo ao juiz, ao proferir decisão sobre o ponto,

acolher ou rejeitar tal pretensão.

(...)

Ressalvado este caso, porém, a instauração do incidente é

obrigatória para que se possa ampliar subjetivamente o

processo e, com isso, legitimar-se a decisão que determina que

a execução contra a sociedade atinja o patrimônio do sócio (ou

vice-versa) (CÂMARA, 2015, p. 430).

Considerando, dessa forma, que o incidente de desconsideração da

personalidade jurídica é cabível em todas as fases do processo de

conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título

executivo extrajudicial, e que é dispensada a instauração do incidente se a

desconsideração for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o

sócio ou a pessoa jurídica, é possível concluir que tal incidente é cabível – em

princípio, ao menos em tese – em vários tipos de processos tributários.

Apesar da atual omissão legal, que foi sanada somente no Novo Código

de Processo Civil que ainda entrará em vigor, a desconsideração da

personalidade jurídica tem ocorrido nos mais diversos tipos de processos

tributários. Dentre as várias classificações possíveis, os processos judiciais

tributários podem ser rotulados como exacionais e antiexacionais.

Paulo Cesar Conrado (2007, pp. 196-206) explica que a categorização

de um processo como antiexacional depende da constatação de que seu

respectivo agente provocativo é o sujeito passivo da obrigação tributária. O

processo é antiexacional, assim, justamente porque foi instaurado pelo devedor

com o objetivo de bloquear, de alguma forma, o desenvolvimento do designado

ciclo de positivação do direito tributário, de forma preventiva ou de forma

repressiva.

Por outro lado, explica, logo em seguida, que o processo exacional é

assim definido por ser instaurado pelo Estado-fisco, que objetiva efetivar, no

plano fenomênico, o conteúdo da relação jurídica de direito material já antes de

constituída pelo crédito tributário. Assim, de acordo com essa perspectiva, o

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processo exacional não serve para a constituição da obrigação tributária, mas

somente e tão somente à sua efetivação.

Tudo indica, portanto, que o incidente de desconsideração da

personalidade jurídica encontra possibilidade nos denominados processos

exacionais, pois é por meio deles que o Estado-fisco visa efetivar o conteúdo

das relações jurídicas de direito material já antes de constituídas pelo crédito

tributário.

Portanto, a aplicação das disposições constantes no artigo 134 do Novo

Código de Processo Civil encontrará certa mitigação no âmbito do direito

tributário, pois a desconsideração da personalidade jurídica não será aplicável

em todo e qualquer processo tributário. Tudo indica, dessa forma, que o

incidente será instaurado somente nos processos judiciais exacionais, que têm

a Execução Fiscal e a Medida Cautelar Fiscal como espécies.

3.5.3.1 A desconsideração em execução fiscal

A execução fiscal pode ser considerada a mais expressiva manifestação

do processo judicial exacional, já que tem por finalidade a veiculação de norma

individual e concreta que constitua o modo de efetivação, no plano fenomênico,

da obrigação tributária inadimplida. Seu pressuposto é, portanto, como

facilmente se verifica, a prévia constituição da obrigação tributária.

Paulo Cesar Conrado (2007, p. 197) faz, contudo, uma importante

advertência a esse respeito: o crédito tributário propriamente dito (em sentido

amplo) não é, por estipulação legal, título executivo. Na execução fiscal, essa

função pertence, em verdade, à Certidão de Dívida Ativa, documento cuja

produção supõe aquele outro (crédito tributário), mas que com ele não se

confunde.

De acordo com o mencionado teórico:

(...) mais do que constituir a obrigação tributária (via

lançamento) ou de vê-la constituída pelo contribuinte

(via “autolançamento”), o Estado-fisco, para que possa se

pretender agente provocador do Judiciário em nível de

execução, deve, precedentemente, constituir o correlato título

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executivo, fazendo-o mediante específico procedimento

administrativo (falamos, aqui, repare-se, em procedimento,

porque ausente a ideia de conflituosidade nessa fase) de

inscrição do crédito tributário no respectivo Livro de Dívida

Ativa (CONRADO, 2007, p. 202).

Por também considerar que a execução fiscal não é o ambiente

apropriado para a busca do direito, mas somente para a satisfação do direito,

Renato Lopes Becho (2012d, p. 54) sustenta, ao comentar o procedimento de

responsabilização tributária com base na Súmula nº 435 do Superior Tribunal

de Justiça (segundo a qual presume-se dissolvida irregularmente a empresa

que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos

competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-

gerente), que a única maneira de dar cumprimento ao devido processo legal

nessa hipótese é pela abertura de procedimento autônomo.

Assim, de acordo com o autor em questão, a aplicação do entendimento

consubstanciado nessa súmula, ao se comprovar, no tramitar da execução

fiscal, que houve o encerramento irregular da sociedade, deve o procurador

fazendário provocar um procedimento autônomo para a atribuição da

responsabilidade a quem de direito, enquanto a execução fiscal segue para o

arquivo sobrestada.

Para Becho (2012d, p. 54), o procedimento em questão possui natureza

administrativa. Contudo, conforme já verificamos linhas acima, a

desconsideração da personalidade jurídica exige reserva de jurisdição, isto é,

só pode ser aplicada por um juiz de Direito. Portanto, com base nas premissas

acima lançadas, entendemos que não é possível instaurar um procedimento

administrativo, paralelamente à Execução Fiscal, para promover a

desconsideração da personalidade jurídica. Tal entendimento é aplicável

somente e tão somente às hipóteses de responsabilização tributária

fundamentadas no Código Tributário Nacional, segundo ensina Becho (2012d,

p. 54).

Firmado esse entendimento, seria a Execução Fiscal, então, o

“ambiente” processual adequado à instauração do incidente de

desconsideração da personalidade jurídica? Pensamos que sim, mas

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entendemos desnecessária a propositura de qualquer ação ou procedimento

autônomo. Nosso entendimento é amparado nas lições de Arruda Alvim e

Daniel Willian Granado (2010, p. 76), que defendem que a desconsideração da

personalidade jurídica pode ser aplicada em um processo já existente, como,

e.g., uma Execução Fiscal, em prol da efetividade do processo:

(...) seria muito dispendioso e moroso fazer com que o credor

ajuizasse nova ação tão somente para efetivar a

desconsideração da personalidade jurídica. Mencionada

constatação, ainda que possa ser aferida como incidente, em

processo já em curso, deve observar o princípio do devido

processo legal, possibilitando ao sócio oportunidade de defesa.

Carlos Roberto Gonçalves (2011, pp. 253-255) também entende ser

possível aplicá-la em processo já existente, que pode ser inclusive o de

execução. Mas, tal posicionamento não é unânime, pois juristas de renome,

como Fábio Ulhoa Coelho (2000, p. 45), defendem que a desconsideração da

personalidade jurídica exige, diferentemente, uma ação autônoma:

(…) a desconsideração da personalidade jurídica, para

comprometimento de patrimônio de sócio, somente é

admissível como medida de coibição de fraudes, perpetradas

através da manipulação do princípio da autonomia patrimonial

das pessoas jurídicas. Conclui-se, portanto, que a

responsabilização de sócio por obrigação da sociedade, em

virtude da desconsideração da personalidade jurídica, quando

resulta de sentença judicial condenatória, proferida em ação de

conhecimento de que é parte ou litisconsorte passivo o sócio.

Simples despachos em processos de execução movidos contra

a sociedade, determinando a penhora de bens dos sócios

importam flagrante desobediência ao direito constitucional ao

devido processo legal. Ao direito constitucional ao devido

processo legal, de que é titular o sócio da sociedade limitada,

corresponde o dever do credor social de promover a prévia

ação de conhecimento, citá-lo, provar o pressuposto de

aplicação da teoria da desconsideração da personalidade

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jurídica (fraude ou abuso de direito), obter sentença

condenatória transitada em julgado para, somente depois,

postular a penhora dos bens do patrimônio do membro da

pessoa jurídica.

Assim, de acordo com o mencionado autor, exige-se um processo

autônomo para que seja determinada a desconsideração da personalidade

jurídica, sob pena de afrontar-se o devido processo legal, de onde decorre o

contraditório e a ampla defesa. Verifica-se, assim, que, entre a desejada

efetividade do processo e o devido processo legal, Fábio Ulhoa Coelho “pende

para o lado” da garantia constitucional.

Por isso, entendemos que assiste alguma razão ao autor, pois, conforme

as premissas já estabelecidas neste trabalho, o processo de execução fiscal

não serve à constituição de relações de obrigação, mas somente à sua

efetivação, não sendo, por isso, solo fértil ao desenvolvimento do devido

processo legal.

Em posicionamento que parece conciliar a efetividade do processo com

a garantia constitucional do devido processo legal, pois, ao mesmo tempo em

que nega a possibilidade de instauração do incidente por simples despacho na

Execução, admite que seja aplicada por meio de incidente em execução,

Cândido Rangel Dinamarco (2010, p. 541) afirma ser:

(…) indispensável colocar em um processo ou fase de

conhecimento, ou ao menos em um incidente idôneo do

processo ou fase executiva, os fatos que o credor afirme serem

caracterizadores de abuso da personalidade jurídica; nesse

processo ou nesse incidente o juiz, em decisão preparada por

regular contraditório, declarará se realmente houve a fraude e

consequentemente os bens do sócio responderão, ou se fraude

alguma houve e nenhuma personalidade há de ser

desconsiderada.

É o que também sustenta Fredie Didier Júnior (2008, p. 12), ao admitir

que o sócio seja citado, para fins de aplicação da desconsideração da

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personalidade jurídica, no mesmo processo de execução promovido em face

da pessoa jurídica, instaurando-se, a partir disso, um incidente processual:

(…) admite-se como lícita, também, a citação do sócio já no

processo de execução, desde que se instaure um incidente

cognitivo – o que não é raro nem esdrúxulo, basta ver o

exemplo do concurso de credores – no processo executivo,

para que se apure, em contraditório, o preenchimento dos

pressupostos legais que autorizam a aplicação da teoria, bem

como se lhe permita o exercício de sua ampla defesa. Não é

necessária a instauração de um processo de conhecimento

com esse objetivo; o que se impõe é a existência de uma fase

cognitiva, mesmo incidente, de modo que o contraditório possa

ser exercido.

Aliás, como observa o referido autor em outro estudo (2005, p. 400), a

Súmula 268 do Superior Tribunal de Justiça prescreve que “O fiador que não

integrou a relação processual na ação de despejo não responde pela execução

do julgado”, denotando, assim, o entendimento da corte de que o “responsável

contratual” pelo débito precisa participar do processo de conhecimento. O que

dizer, então, quanto ao sócio ou administrador que ordinariamente não

respondem pelas dívidas da sociedade?

Acrescenta o autor, logo em seguida, que se a desconsideração da

personalidade jurídica ocorrer em execução fundada em título executivo

extrajudicial, como no caso da Execução Fiscal, a defesa do sócio,

administrador ou sociedade será ampla.

A Corte Superior de Justiça tem decidido em consonância com esses

ensinamentos doutrinários, ao admitir que basta um incidente em execução

para a viabilizar a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido,

destaca-se o quanto decidido no Recurso Especial nº 767.021/RJ, julgado em

16 de agosto de 2005, de relatoria do Ministro José Delgado, cuja ementa

segue abaixo parcialmente transcrita:

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(...)

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal.

Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz,

incidentemente no próprio processo de execução (singular ou

coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o

ato de expropriação atinja terceiros envolvidos, de forma a

impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros.

(...)

Destaca-se, no mesmo sentido, o quanto decidido em 9 de dezembro de

2003 no julgamento do Recurso Especial nº 228.357/SP, de relatoria do

Ministro Castro Filho:

FALÊNCIA - EXTENSÃO DOS SEUS EFEITOS ÀS

EMPRESAS COLIGADAS - TEORIA DA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA -

POSSIBILIDADE - REQUERIMENTO - SÍNDICO -

DESNECESSIDADE - AÇÃO AUTÔNOMA - PRECEDENTES

DA SEGUNDA SEÇÃO DESTA CORTE.

I - O síndico da massa falida, respaldado pela Lei de Falências

e pela Lei n.º 6.024/74, pode pedir ao juiz, com base na teoria

da desconsideração da personalidade jurídica, que estenda os

efeitos da falência às sociedades do mesmo grupo, sempre

que houver evidências de sua utilização com abuso de direito,

para fraudar a lei ou prejudicar terceiros.

II - A providência prescinde de ação autônoma. Verificados os

pressupostos e afastada a personificação societária, os

terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo

falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus

direitos e interesses. Recurso especial provido.

Novamente, podemos afirmar que o Novo Código de Processo Civil

alinhou-se às decisões das jurisprudências sobre o tema, ao prescrever, nos

artigos 133 a 137, que a desconsideração da personalidade jurídica depende

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da instauração de um incidente processual, em qualquer tipo de processo,

além do respeito que exige ao devido processo legal.

Aplicando os últimos entendimentos doutrinários em questão e a nova

legislação processual à desconsideração da personalidade jurídica no direito

tributário, podemos sustentar, homenageando o devido processo legal, que o

processo de execução fiscal não é de fato o ambiente adequado à busca do

direito de estender efeitos de relações obrigacionais a sócio de pessoa jurídica,

a não ser de forma incidental.

Dessa forma, apesar de entendermos desnecessária a propositura de

ação autônoma, acompanhamos aqueles que negam a possibilidade de

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica mediante despacho na

execução, o que parece ter sido rejeitado, inclusive, pelo Novo Código de

Processo Civil que entrará em vigor, razão pela qual aderimos à tese

doutrinária – a agora positivada na referida novel legislação – de que basta um

incidente processual no processo de execução. Contudo, o processo de

execução fiscal é compatível com a instauração de incidentes processuais?

Considerando que o artigo 1º da Lei Federal nº 6.830, de 22 de

setembro de 1980, denominada Lei de Execução Fiscal, prescreve que a

execução judicial para cobrança da Dívida Ativa será por ela regida e,

subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, e tendo em vista que esse

código prevê incidentes processuais em vários de seus dispositivos, como,

e.g., nos artigos 17, 19, 51, 54, 109, 138, 162, 265 e 325, dentre outros,

concluímos que a figura do incidente processual já é atualmente compatível

com o rito das execuções fiscais, independentemente das prescrições que

entrarão em vigor com o Novo Código de Processo Civil.

E a prática parece não demonstrar outra coisa: a exceção de pré-

executividade, atualmente aceita de forma pacífica pela doutrina e pela

jurisprudência, é forma de incidente processual em execução fiscal, conforme

nos ensina Cleide Previtalli Cais (2011, p. 618).

Entendemos que, somente assim, mediante a instauração de um

incidente processual, será atendido de forma plena o constitucionalmente

consagrado devido processo legal, tanto em sua acepção material quanto em

sua acepção processual, em total consonância com a celeridade e efetividade

que se espera de um processo judicial.

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Ademais, as novas disposições do Código de Processo Civil ainda

prescrevem que a instauração do incidente suspenderá o processo em curso,

salvo se o incidente for requerido na petição inicial (§ 3 do artigo 134).

Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 430) explica que se trata de uma

suspensão imprópria, pois, por definição, a suspensão do processo é a sua

paralisação total e temporária, o que significa dizer que, suspenso, não será

possível praticar no processo qualquer ato processual.

Conclui, assim, que se o incidente de desconsideração da personalidade

jurídica implicasse mesmo a suspensão do processo, ter-se-ia um paradoxo: o

processo ficaria suspenso até a resolução do incidente, mas, por outro lado,

não se poderia resolver o incidente porque o processo estaria suspenso.

Por isso, o mencionado autor afirma que:

Fica claro, então, que não se está diante de verdadeira e

própria suspensão do processo. O que se tem é, apenas, a

vedação à prática de certos atos do processo (aqueles que não

integram o procedimento do incidente), o que perdurará até

que o incidente de desconsideração seja decidido. Há, pois,

apenas uma suspensão imprópria, assim considerada a

vedação temporária à prática de alguns atos do processo,

permitida a prática de outros (no caso, é permitida apenas a

prática dos atos processuais referentes ao processamento do

incidente de desconsideração da personalidade jurídica)

(CÂMARA, p. 2015, p. 430).

Valendo-se desse raciocínio, baseado nas disposições do Novo Código

de Processo Civil que ainda entrará em vigor, podemos concluir que, na

desconsideração da personalidade jurídica em execução fiscal, fica vedada a

prática de atos no processo, salvo aqueles que não integram o procedimento

do incidente, até que esse seja decidido.

Por óbvio, cessa a suspensão imprópria em questão quando o incidente

for decidido, ainda que tal decisão esteja sujeita a recurso, pois o Agravo de

Instrumento não é dotado (a decisão é interlocutória, já vimos), em regra, de

efeito suspensivo, seja no atual (artigo 527, inciso III) ou no Novo Código de

Processo Civil (artigo 995).

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147

3.5.3.2 A desconsideração em cautelar fiscal

Partindo das premissas de que todo processo é instrumental e de que o

processo cautelar é instrumento de outro processo, Paulo Cesar Conrado

(2007, p. 203) conclui que o processo cautelar é um instrumento do

instrumento. No âmbito das ações exacionais, assume a forma de uma

modalidade processual específica, denominada cautelar fiscal, que visa à

emissão de específica providência acautelatória, sendo governada, assim e por

isso, por condições igualmente específicas, veiculadas pela Lei Federal nº

8.397/92.

Ao mesmo tempo em que tal diploma normativo fixa, de um lado, no

caput do art. 4º, a finalidade da medida cautelar fiscal (“A decretação da

medida cautelar fiscal produzirá, de imediato, a indisponibilidade dos bens do

requerido, até o limite da satisfação da obrigação”), também prescreve, de

outro lado, os requisitos cuja presença impõe sua concessão (artigos 2º e 3º).

Ao tratar da execução fiscal e da medida cautelar fiscal dentro da

perspectiva do tempo da cobrança do crédito tributário, Paulo Cesar Conrado

(2007, p. 205-207) explica que o processo de execução deve ser manejado em

tempo próprio, legalmente fixado, sob pena se de perder o direito ao crédito

(prescrição). Porém, de acordo com os fundamentos do Direito Administrativo,

a atividade processual do Fisco é imperativa (e não é dispositiva), isto é, deve

ocorrer no tempo certo, não havendo permissão jurídica, assim, para “perdas”.

O mencionado autor conclui, com base nisso, que os agentes

administrativos responsáveis pela cobrança do crédito tributário que não forem

diligentes, promovendo a medida processual no “tempo certo”, devem ter

apuradas suas responsabilidades. Essa a única forma – afirma o autor – de

fazer verdadeira a premissa segundo a qual a cobrança do crédito tributário

deve, e não simplesmente pode ocorrer. (CONRADO, 2007, p. 207).

O caráter assecuratório da medida cautelar fiscal parece vir ao encontro

dessa premissa, pois, se o processo de execução fiscal não é mera

contingência, mas uma imposição, e se a cautelar fiscal serve para assegurar o

seu sucesso (do processo de execução), pode-se sustentar que o processo

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assecuratório (instrumento do instrumento, isto é, a cautelar fiscal) é tão

imperativo quanto o processo assegurado (execução fiscal).

Esse é o pressuposto sobre o qual o autor afirma repudiar qualquer

defesa de que o uso da medida cautelar fiscal é discricionário (CONRADO,

2007, pp. 207-208). De acordo com essa perspectiva, mais do que criar um

modelo processual, a Lei Federal nº 8.397/92 instituiu, em verdade, um dever

para a Administração, qual seja:

(...) de permanente vigilância e apuração, junto a cada

contribuinte, de eventual causa geradora de pedido cautelar

fiscal, [sob] pena de permitir o indesejável desencadeamento

de tais eventos e, com isso, a igualmente indesejável

perturbação da eficácia prática do processo de execução fiscal

(CONRADO, 2007, p. 208).

O processo cautelar fiscal permite, assim, que a cobrança tributária se

oriente, cronologicamente, pelo tempo absoluto da prescrição e também pelo

tempo relativo ao risco de lesão à efetividade da pretensão executiva.

Ao comentar que os efeitos da decisão que desconsidera a

personalidade jurídica não inibem a utilização de outros mecanismos para

coibir a prática da alienação ou oneração de bens do devedor, Alexandre

Freitas Câmara (2015, p. 437) ensina que:

Assim é que, por exemplo, nada impede (desde que presentes

os requisitos, evidentemente) a decretação de uma medida

cautelar de apreensão de bens do sócio (ou da sociedade) com

o fim de assegurar a efetividade da futura execução. Ter-se-ia,

então, um arresto de bens, medida destinada a assegurar a

efetividade de futura execução por quantia certa (...). Haveria,

assim, uma apreensão cautelar de bens que serviria para

garantir que, no futuro, uma vez desconsiderada a

personalidade jurídica, encontrem-se no patrimônio do

responsável bens livres e desembaraçados que permitam a

satisfação do crédito exequendo, evitando-se deste modo o

risco de que tais bens viessem a ser alienados ou gravados

fraudulentamente.

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Servindo a cautelar fiscal a tão nobres fins, com destaque ao

afastamento do risco de lesão à efetividade da pretensão executiva, pode-se

concluir facilmente, por consequência, pela possibilidade de sua utilização na

desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

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4 DIFERENÇAS ENTRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SÓCIO OU ADMINISTRADOR

Mesmo passados quase cinquenta anos da publicação do Código

Tributário Nacional e mais do que sessenta anos das primeiras decisões

judiciais brasileiras que aplicaram a desconsideração da personalidade jurídica,

a doutrina e a jurisprudência nacional ainda não consolidaram um

entendimento pacífico acerca da desconsideração no âmbito do subsistema do

direito tributário.

Tal situação tem dado ensejo a teses inovadoras, como a defendida por

José Eduardo Soares de Melo (2010, p. 292), para quem a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica constitui o fundamento de validade

da responsabilidade tributária prevista no inciso III do artigo 135 do Código

Tributário Nacional:

Considerando o estatuído no art. 135 do CTN, configura-se a

existência de uma teoria do superamento da personalidade

jurídica, que se positiva nos casos de abuso de direito, em que

os sócios, mediante atuação dolosa, cometem fraude a

credores e manifesta violação a prescrições legais.

É evidente que não basta o mero descumprimento de uma

obrigação, ou inadimplemento a um dever (trabalhista,

comercial ou fiscal), até mesmo compreensível devido às

gestões e dificuldades empresariais. Só se deve ignorar a

personalidade jurídica para o fim de ser responsabilizado

patrimonialmente o verdadeiro autor da fraude, tornando-se

necessária a transposição da pessoa jurídica para este

instituto.

É compreensível que o princípio da personalidade jurídica da

empresa não pode servir para fins contrários ao Direito, de

modo a consagrar-se a simulação, o abuso do direito. A teoria

em causa não tem por irredutível escopo anular a

personalidade da sociedade de forma total, mas somente

desconstituir a figura societária no que concerne às pessoas

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que a integram, mediante declaração de ineficácia para efeitos

determinados e precisos.

Mas não é só a doutrina que se enverada por esse caminho, já que o

mesmo entendimento pode ser encontrado em decisões judiciais, conforme se

verifica no resultado do julgamento do Recurso Especial nº 8.711, decidido em

21 de outubro de 1992 pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de

relatoria do Ministro Peçanha Martins, que restou assim ementado:

EXECUÇÃO FISCAL – SOCIEDADE POR QUOTAS DE

RESPONSABILIDADE LIMITADA – PENHORA DE BENS DE

PATRIMÔNIO PESSOAL DE SÓCIO QUE NÃO EXERCEU

FUNÇÃO DE DIREÇÃO – DECRETO-LEI Nº 3.708/19, ART. 16

E CTN, ART. 135, III – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL.

É impossível a penhora dos bens do sócio que jamais exerceu

a gerência, a diretoria ou mesmo representasse a empresa

executada.

Há de ser utilizada a teoria da desconsideração da

personalidade jurídica, prevalecendo o princípio da

responsabilidade subjetiva, e não a simples presunção.

É possível identificar, no voto do Ministro Relator, abaixo parcialmente

transcrito, o claro entendimento de que a responsabilidade tributária prevista no

inciso III do artigo 135 do mencionado codex tributário é uma forma de

desconsideração da personalidade jurídica:

No caso dos autos, porém, a execução voltou-se contra sócio

que não exercia a gerência da sociedade. A teoria da

desconsideração da personalidade jurídica para coibir a fraude

a credores há de ser utilizada, no direito brasileiro, de acordo

com os precisos termos do art. 16, do Decreto-lei 3.708, e 135

do CTN. Vale dizer, somente os sócios que tenham deliberado

contra as regras contratuais ou legais, com excesso de

poderes, podem ser responsabilizados pessoal e

ilimitadamente pelas obrigações sociais e tributárias.

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Assim, apesar de reconhecer a exigência da demonstração dos

pressupostos legais ensejadores da medida, entende o referido Ministro que o

inciso III do artigo 135 em questão trata de desconsideração da personalidade

jurídica. É o que também demonstrou entender Eliana Calmon ao relatar, em

17 de junho de 2014, o Acórdão condutor para o julgamento do Recurso

Especial nº 436.012/RS, perante a Segunda Turma do Superior Tribunal

Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - INOCORRÊNCIA DE

LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO - VÍNCULO FAMILIAR -

DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA.

(...)

3. Examinada a lei aplicável à espécie, o CTN, o primeiro

diploma do direito pátrio a consagrar a teoria da

desconsideração da pessoa jurídica, não se encontra, nas

hipóteses do artigo 134 do CTN, determinação legislativa

justificadora do litisconsórcio.

4. Recurso especial provido.

Nos parece, porém, que essa interpretação não é a mais acertada,

apesar de encontrarem-se defensores em parte da doutrina e da

jurisprudência, na medida em que confunde um problema de responsabilidade

tributária com um problema de repressão ao abuso da personalidade jurídica.

A responsabilidade tributária é um dos temas mais controvertidos do

direito tributário, sobre o qual já foram elaborados inúmeros trabalhos

acadêmicos e proferidas incontáveis decisões judiciais. Leandro Paulsen

(2012, p. 43) explica que a palavra responsabilidade tem vários significados:

fala-se em responsabilidade como a capacidade de uma pessoa para

responder por seus atos; com o sentido de estar obrigado a algo; com o sentido

de oferecer garantia; e também com o sentido de dar resposta reparadora a um

dano, com vistas ao reestabelecimento do equilíbrio quebrado, dentre outras

acepções do termo.

Talvez essa polissemia seja a raiz de boa parte das controvérsias

existentes em torno do tema no direito tributário, e quem sabe, seja

responsável, também, por aquela mencionada confusão entre responsabilidade

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tributária e desconsideração da personalidade jurídica. Para não incidir em

equívocos, o mencionado autor (PAULSEN, p. 60) fixa, como pressuposto de

suas considerações, a seguinte definição de responsabilidade tributária:

(...) instituto de direito tributário que consiste na determinação,

por lei, a pessoa não contribuinte de determinado tributo

(responsável tributário) que, por se encontrar em situação que

lhe enseje a prática ou a abstenção de determinados atos úteis

à Administração Tributária por impedirem ou minimizarem a

evasão e o inadimplemento por parte do contribuinte ou

facilitarem a fiscalização, assim o façam, sob pena de

responder com seu próprio patrimônio pela satisfação do tributo

devido e inadimplido pelo contribuinte.

Abordando o mesmo instituto a partir de outra perspectiva, Maria Rita

Ferragut (2013, pp. 38-39) define a responsabilidade tributária como:

(...) a ocorrência de um fato qualquer, lícito ou ilícito (morte,

fusão, excesso de poderes, etc.), e não tipificado como fato

jurídico tributário, que autoriza a constituição da relação jurídica

entre o Estado-credor e o responsável, relação essa que deve

pressupor a existência do fato jurídico tributário.

(...)

O responsável diferencia-se do contribuinte por ser

necessariamente um sujeito qualquer (i) que não tenha

praticado o evento descrito no fato jurídico tributário; e (ii) que

disponha de meios para ressarcir-se do tributo pago por conta

de fato praticado por outrem.

É possível destacar, em ambas as definições, a presença de um

devedor originário (contribuinte) e de um responsável tributário (pessoa diversa

da do contribuinte). Nosso objetivo não é analisar, no presente estudo, a

responsabilidade tributária do sócio ou do administrador prevista no inciso III do

artigo 135 do Código Tributário Nacional. Contudo, ante às frequentes

confusões feitas entre tal instituto e a desconsideração da personalidade

jurídica, cumpre-nos explorar ao menos algumas diferenças entre ambos.

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4.1 Quanto à natureza do vínculo obrigacional

Já vimos que a dogmática moderna distingue, no conceito de obrigação,

o debitum e a obligatio (GOMES, 2007, p. 18). Assim, em princípio, há

inequívoca coexistência de debitum e obligatio numa mesma relação

obrigacional, mas há situações, porém, em que o dever de adimplir pode ser

imputado a pessoa diversa daquela que contraiu a obrigação. Nesses casos,

ocorrerá a já destacada dissociação entre o dever de prestação (debitum) e a

responsabilidade patrimonial (obligatio).

Ao analisarmos as definições de responsabilidade tributária à luz de tais

institutos, podemos constatar, facilmente, que a responsabilidade obrigacional

atribuída por lei ao terceiro que não praticou o fato gerador da obrigação

tributária corresponde à obligatio. Dessa forma, ao responsável tributário, é

atribuída a responsabilidade patrimonial (obligatio), apesar de não ter praticado

o fato gerador da obrigação tributária (como foi o contribuinte quem o praticou,

a ele atribui-se o debitum).

Por outro lado, o sujeito que sofre os efeitos da desconsideração da

personalidade jurídica não é um simples responsável (obligatio); é, em

verdade, o “devedor direto” (debitum), pois aquele que abusa da personalidade

jurídica cria para si uma obrigação própria (reitera-se, o debitum), conforme nos

ensina Parentoni (2014, p. 57).

Começam a ser revelados, portanto, os primeiros fundamentos que

diferenciam a responsabilidade tributária e a desconsideração da

personalidade jurídica. Essa única diferença – até o momento exposta – já

coloca em dúvida aqueles entendimentos que sustentam ser a

desconsideração da personalidade jurídica o fundamento de validade da

responsabilidade tributária prevista no inciso III do artigo 135 do Código

Tributário Nacional.

A delimitação da diferença não é um mero preciosismo: tem importância

prática, tanto no plano do direito material quanto no do direito processual, pois

isso repercute – já foi afirmado – no reconhecimento do direito de regresso

daquele que sofreu os efeitos do ato, no momento adequado para requerê-lo,

no instrumento processual adequado e no meio e forma pelos quais o sujeito

poderá se defender, dentre outras implicações.

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Nesse sentido, explica Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 472), ao referir-

se ao artigo 135 do Código Tributário Nacional:

Este artigo é regra que se aplica à relação jurídica formada

entre as pessoas indicadas e os que sofrem qualquer

consequência patrimonial decorrente de atos praticados com

excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou

estatutos. Ou seja, assiste direito aos lesados de agirem

regressivamente contra aqueles que lhe causarem danos com

a constituição de obrigações tributárias decorrentes de “atos

praticados com excesso de poderes ou infração à lei, contrato

social ou estatutos”, cabendo, aos que alegarem tais atos, a

devida prova em juízo. Nada tem que ver com

“desconsideração da personalidade jurídica” (...).

Portanto, à pessoa jurídica cabe o direito de regresso caso venha a

arcar com tributo devido pelo sócio ou administrador (ou até mesmo por outra

sociedade, em caso de grupo empresarial), por força do inciso III do artigo 135

do Código Tributário Nacional. Não nos parece possível, contudo, que a

pessoa jurídica possa agir regressivamente contra o sócio ou administrador e

nem esses em face da pessoa jurídica em caso de desconsideração da

personalidade jurídica.

4.2 Quanto aos pressupostos de aplicação

Sabe-se que há diversas espécies (ou formas) de responsabilidade

tributária previstas no Código Tributário Nacional (responsabilidade tributária

por substituição, por sucessão ou solidária). Interessa-nos, por força do

presente trabalho, aquela prevista no inciso III do artigo 135 do referido código,

segundo a qual os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas

de direito privado podem ser pessoalmente responsabilizados pelos créditos

correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com

excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

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Regina Helena Costa (2009, p. 203) explica, de forma resumida, que o

inciso III do artigo 135 em questão trata da responsabilidade de terceiros, ou

responsabilidade em sentido estrito, referindo-se “(...) à situação em que a

pessoa chamada a responder pelo débito do contribuinte deixou de cumprir um

dever próprio, legalmente estabelecido.”

Apesar da aparente “simplicidade textual” do inciso III do artigo 135 em

questão, a doutrina nem sempre é muito clara ao explicar os pressupostos

necessários à aplicação de suas disposições. Porém, conforme adverte Hugo

de Brito Machado (2011, p. 160), a correta identificação desses pressupostos é

fundamental à aplicação dessa forma de responsabilidade:

Questão de grande relevância, em matéria de responsabilidade

tributária, consiste em determinar o alcance do art. 135, inciso

III, do CTN, e assim saber em que circunstâncias os diretores,

gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito

privado respondem pelos créditos tributários dos quais sejam

estas contribuintes. É claro que, em se tratando de sociedades

nas quais a lei específica não limita a responsabilidade dos

sócios, não há qualquer dificuldade. Entretanto, nas

sociedades por quotas de responsabilidade limitada e nas

sociedades anônimas a questão é tormentosa.

O considerável número de casos colocados em julgamentos

pelo judiciário evidencia a importância prática da questão, e as

divergências dos julgados demonstram como a matéria

constitui uma questão extremamente difícil.

Em importante síntese de sua obra, Maria Rita Ferragut (2005, p. 143)

explica os pressupostos, ou elementos, para a aplicação da responsabilidade

tributária em questão:

1) Elemento pessoal – refere-se ao sujeito responsável pelo

crédito tributário: executor material, partícipe ou mandante da

infração. É o administrador da sociedade, podendo ser sócio,

acionista, mandatário, preposto, empregado, diretor, gerente ou

representante. Não deverão ser incluídas nesse conjunto

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pessoas sem poderes para decidir sobre a realização de fatos

jurídicos, ou se com poderes, que, no caso concreto, não

tiveram qualquer participação no ilícito;

2) Elemento fático – refere-se às condutas reveladoras de

infração que exija dolo; excesso de poderes ou infração de lei,

contrato social ou estatuto.

Conforme já exposto neste trabalho, a pessoa jurídica pode ter um ou

mais administradores, que podem ser sócios ou não. Apesar da fundamental

importância dos sócios numa sociedade, sem os quais ela não existiria, o

Código Tributário Nacional não faz qualquer referência a eles ao tratar da

responsabilidade tributária em questão, prevista no inciso III do artigo 135.

Maria Rita Ferragut (2013, p. 143) deixa claro, na afirmação acima, que

essa responsabilidade tributária exige, juntamente com os outros pressupostos,

o exercício de atos de administração por determinada pessoa, seja ela sócia ou

não da pessoa jurídica. Portanto, a simples condição de sócio não justifica, de

acordo com a redação do inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional,

que seja ele responsabilizado pelos créditos tributários devidos pela pessoa

jurídica. Para tanto, deve praticar ou ter praticado atos de administração com

excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

No caso da desconsideração da personalidade jurídica, diferentemente,

é juridicamente possível que seja “responsabilizado” o sócio, mesmo que não

tenha praticado atos de administração, apesar de o administrador também

poder ser “responsabilizado”.

Assim, de acordo com a redação do artigo 135, inciso III, do Código

Tributário Nacional, e do artigo 50 do Código Civil, o administrador poderá

sofrer tanto os efeitos da responsabilidade tributária quanto os da

desconsideração da personalidade jurídica, porém, o sócio, pela sua simples

condição de sócio (sócio não administrador), jamais poderá ser incluído no polo

passivo da obrigação como responsável tributário, muito embora possa assumir

débito por força da desconsideração.

Por outro lado, a responsabilidade tributária prevista no inciso III do

artigo 135 do Código tributário Nacional exige a prática de atos com excesso

de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. Ao analisar os

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mencionados pressupostos, Luciano Amaro (2012, p. 354) ensina que a

caracterização da responsabilidade tributária em questão depende da prática

de um ato para o qual o administrador não detinha poderes ou de ato que

tenha sido praticado infringido a lei, o contrato social ou o estatuto da pessoa

jurídica.

Hugo de Brito Machado (2011, p. 161) demonstra o mesmo

entendimento ao afirmar que:

As leis societárias, mesmo quando limitam a responsabilidade

dos sócios, atribuem aos administradores responsabilidade

pelos atos praticados com violação da lei, do contrato ou

estatuto. E o próprio art. 135, III, do CTN estabelece que os

diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de

direito privado respondem pessoalmente pelos créditos

correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos

praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato

social ou estatutos.

Maria Rita Ferragut (2013, pp. 148-149) esclarece, por sua vez, que a

infração à lei de que trata o inciso III do artigo 135 do Código Tributário

Nacional poderia ser entendida, numa primeira e superficial interpretação,

como qualquer conduta contrária ao Direito, respondendo os administradores,

de acordo com essa perspectiva, por todo e qualquer ato contrário à legislação

(nesse caso, se incluiria, portanto, o abuso ou desvio para fins de aplicação da

teoria da desconsideração da personalidade jurídica).

Contudo, a mencionada autora entende que essa interpretação não

parece ser a mais adequada, pois é incompatível com o princípio da autonomia

existente entre a personalidade dos sócios e da pessoa jurídica:

Se qualquer infração à lei gerasse a responsabilidade pessoal

do administrador, os sócios seriam sempre responsáveis pelas

dívidas da sociedade, oriundas tanto de relações de direito

público, como de direito privado. Teríamos, então, o fim da

separação e da autonomia da personalidade jurídica,

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desprezando-se o fato de que a sociedade há de se

responsabilizar pelos seus atos.

Entendemos que Renato Lopes Becho (2012, p. 130) faz a mais

importante reflexão sobre essa questão, ao afirmar que tal infração não se

refere à prática genérica de atos ilícitos, mas, ao contrário, à prática de atos

lícitos, contrários, porém, aos interesses da pessoa jurídica. Para o referido

autor, é nessa contrariedade que reside, pois, a ilicitude da conduta:

Considerando que, para nós, os atos ilícitos não são

tributáveis, supomos que, no primeiro momento (norma fiscal

básica), o fato gerador (fato imponível) realizado era lícito. O

ilícito é no animus do agente (responsável), que contraria os

interesses do contribuinte. Além da intributabilidade dos atos

ilícitos, a prática de atos ilícitos, em geral, pelo responsável,

deve ser tipificada no art. 137 do CTN (…).

O referido jurista identifica, assim, duas regras-matrizes quanto à

responsabilidade tributária prevista no inciso III do artigo 135 do CTN: a

primeira se refere à materialidade do tributo, decorrente, sempre, de ato lícito; e

a segunda se refere à prática de ato com infração de lei, contrato social e

estatuto, sendo esse, pois, o ilícito, que é caracterizado por sua contrariedade

aos interesses da pessoa jurídica e que, apesar de não ser um ato

propriamente tributário (no sentido que compõe a regra-matriz de incidência do

tributo), desencadeia efeitos fiscais, que constituem a imputação da

responsabilidade tributária ao terceiro eleito pela lei.

Luís Eduardo Schoueri (2012, p. 534) também defende que a aplicação

do dispositivo legal em questão tem como um de seus pressupostos a prática

de ato ilícito contra os interesses da pessoa jurídica, conforme se observa na

seguinte afirmação: “(...) enquanto o artigo 134 versa sobre responsabilidade

tributária de terceiros em situações lícitas, o artigo 135 versa sobre o ilícito

(infração à lei ou excesso de poder).”

A prática de ato ilícito contra os interesses da pessoa jurídica parece ser,

pois, o fator inconteste para a caracterização da responsabilidade tributária

prevista no inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional. Contudo,

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diferentemente, a ilicitude que desencadeia a possibilidade de desconsideração

da personalidade jurídica não é praticada contra os interesses da pessoa

jurídica; é pratica, em verdade, contra os interesses de terceiros. Essas

diferenças – e outras – estão bem explicadas nas lições de José Augusto

Delgado (2005, pp. 203-204):

Os pressupostos são diversos e as consequências também. Na

primeira hipótese, a responsabilidade é desviada da pessoa

jurídica, que, assim, não é desconsiderada, mas protegida das

consequências de ato do sócio.

Na segunda, o abuso protegido pelo princípio da separação

patrimonial é contestado. Se o patrimônio da sociedade, que

também responde pela dívida no caso, não é suficiente para

satisfazer os credores, desconsidera-se a sua personalidade,

para considerar o ato abusivo como ato do sócio, sendo esse

responsável pelas dívidas.

Logo, enquanto a responsabilidade tributária prevista no inciso III do

artigo 135 do Código Tributário Nacional é uma sanção imposta

exclusivamente ao administrador improbo, sócio ou não, em razão da prática

de atos contrários aos interesses da pessoa jurídica administrada, a extensão

da responsabilidade sobre determinadas relações obrigacionais em razão da

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é uma sanção imposta

a sócio ou administrador em razão da prática de atos contrários aos interesses

de outrem, estranho à pessoa do sócio e da sociedade, não se confundindo,

pois, os dois institutos.

4.3 Quanto aos limites objetivos

Outra diferença marcante entre a responsabilidade tributária prevista no

inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional e a desconsideração da

personalidade jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil reside nas

respectivas extensões objetivas. Ao analisar o mencionado o inciso III do artigo

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161

135, Hugo de Brito Machado (2011, pp. 161-162) faz uma importante

advertência quanto ao seu aspecto redacional:

É importante notar-se que a responsabilidade dos sócios-

gerentes, diretores e administradores de sociedades, nos

termos do art. 135, III, do CTN, é por obrigações resultantes de

atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei,

contrato social ou estatutos. Poder-se-ia, assim, sustentar que

a obrigação, pela qual respondem, há de ser resultante de atos

irregularmente praticados. O próprio nascimento da obrigação

tributária já teria de ser em decorrência de atos irregulares.

Misabel Abreu Machado Derzi possui o mesmo entendimento, conforme

se observa nas notas à obra Direito Tributário Brasileiro, de Aliomar Baleeiro

(2007, p. 756), ao tratar do inciso III do artigo 135 em questão:

O ilícito é assim prévio ou concomitante ao surgimento da

obrigação (mas exterior à norma tributária) e não posterior,

como seria o caso do não pagamento do tributo. A lei que se

infringe é a lei comercial ou civil, não a lei tributária, agindo o

terceiro contra os interesses do contribuinte.

Em interessante reflexão, Luís Eduardo Schoueri (SCHOUERI, 2012, p.

538) explica, por sua vez, que prefere acreditar que a expressão “resultantes”,

prevista no mencionado inciso III do artigo 135, denota a ocorrência de um

ato/fato jurídico complexo, composto por três aspectos: (i) um ato praticado

com excesso de poderes, infração de lei, contrato social ou estatutos (ato

ilícito); (ii) o fato jurídico tributário (lícito); e (iii) uma relação de causalidade

entre o ato ilícito do responsável e o fato lícito, concluindo, em seguida, que:

(…) essa interpretação não é a que se verifica na

jurisprudência, no caso de dissolução irregular, em que a

responsabilidade pelo pagamento dos tributos devidos pela

sociedade é atribuída aos administradores, sem que fique

demonstrada a relação de causalidade entre a dissolução

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irregular (ilícito societário) e os fatos jurídicos tributários

imputados à sociedade.

Assim, de acordo os entendimentos acima, construídos sobre o

mandamento legal em questão, o legislador prescreveu que somente os

débitos resultantes do ato irregularmente praticado podem ser imputados ao

responsável, que o praticou. Essa linha de raciocínio conduz à conclusão de

que a prática do ato irregular deve ser anterior (ou, no mínimo, concomitante)

ao fato imponível da relação jurídico-tributária, já que a obrigação tributária

deve decorrer do ato irregular.

Renato Lopes Becho (2012, p. 136) cita um exemplo que pode ilustrar

perfeitamente o entendimento em questão, caracterizado pela concessão de

fianças ou avais, pelo administrador, em nome da sociedade, sem que o

estatuto lhe permita:

Como é sabido, a concessão de fianças ou avais é lícita. Mas,

nas sociedades anônimas, pode contrariar seus estatutos.

Essa violação estatutária terá efeitos fiscais, como, por

hipótese, a incidência de algum tributo que tenha por fato

gerador (fato imponível) justamente as fianças ou avais.

No caso da desconsideração da personalidade jurídica, diferentemente,

a prática do ato irregular pode ser anterior, concomitante ou posterior ao fato

imponível da relação jurídico-tributária, pois a sua aplicação exige somente a

prática de um abuso na utilização da pessoa jurídica, decorrente de ato de

sócio ou administrador, em nome da sociedade, com a verdadeira finalidade de

locupletar-se ilicitamente em detrimento de outrem, independentemente da

correlação temporal desse ato em relação à obrigação contraída, cujos efeitos

serão estendidos ao patrimônio do sócio ou administrador infrator.

Assim, também por essas razões, é possível concluir que a

responsabilidade tributária e a desconsideração da personalidade jurídica são

institutos que, apesar das semelhanças, não se confundem.

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163

CONCLUSÃO

A autonomia patrimonial da pessoa jurídica é um dos princípios mais

importantes do ordenamento jurídico brasileiro, considerado de fundamental

importância para o desenvolvimento de atividades econômicas e,

consequentemente, para o progresso da economia nacional, na medida em

que limita eventuais prejuízos decorrentes do possível insucesso àquele que

resolve investir no mercado de produção e distribuição de bens e serviços.

Contudo, tal princípio não é absoluto, pois, da mesma forma em que foi criado

como regra de direito, foi igualmente excepcionado em determinadas hipóteses

legais.

Uma das formas que o Estado encontrou para superar a mencionada

autonomia patrimonial é por meio da desconsideração da personalidade

jurídica. Surgida na jurisprudência inglesa dos Séculos XIX e XX, foi

incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pela jurisprudência pátria, que a

justificava com base na “equidade”. Logo foi acolhida pela doutrina nacional,

que lhe atribuiu natureza principiológica.

Contudo, fiel ao sistema latino-germânico do direito, o legislador pátrio

houve por bem positivá-la em diversos diplomas normativos. Dentre os

diplomas em que foi positivada, destaca-se o artigo 50 do Código Civil, que

prevê a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em caso

de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou

pela confusão patrimonial.

O artigo 50 em questão é considerado uma cláusula geral do direito,

cujas disposições são aplicáveis, pois, em todos os subsistemas do direito,

inclusive no tributário, como meio para resguardar os legítimos direitos e

interesses do Estado-fisco, quando na posição de credor.

Aliás, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no

direito tributário se justifica, inclusive, em função da natureza não negocial

(decorrente de imposição legal) do crédito tributário, pois, ao contrário dos

créditos negociais, não tem o Estado como se precaver de eventuais

inadimplementos por meio da cobrança ao maior dos adimplentes como forma

de compensação.

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Atualmente, com exceção das hipóteses reguladas por legislações

específicas (Consolidação das Leis do Trabalho, Código de Defesa do

Consumidor, etc.), a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica

pressupõe, nos diversos subsistemas do direito não especificamente

regulados, a caracterização de seus pressupostos (abuso da personalidade

jurídica pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial), com a

demonstração da efetiva intenção de frustrar os legítimos direitos e interesses

do credor.

O legislador brasileiro adotou, assim, no artigo 50 em questão, aplicável

ao direito tributário, a teoria maior da desconsideração da personalidade

jurídica, cuja aplicação depende do elemento anímico (abuso da personalidade

jurídica), consistente no desvio de finalidade ou na confusão patrimonial. Não

basta, assim, para a aplicação dessa teoria, inclusive no direito tributário, o

mero inadimplemento não doloso da obrigação.

Assim, ao contrário do quanto afirmado na Súmula nº 435 do Superior

Tribunal de Justiça, nem mesmo o encerramento irregular de estabelecimento

pode dar ensejo à aplicação da desconsideração, caso não demonstrada a

intenção deliberada de frustrar os interesses do credor, conforme entende essa

mesma Corte.

Em verdade, de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica tem sido

tomada como a ultima ratio para a satisfação dos direitos do credor. Esse

entendimento é de fundamental importância no direito tributário, pois são

conhecidas as constantes tentativas do Estado-fisco de obter, nem sempre por

vias juridicamente legítimas, a satisfação de seus interesses.

Apesar de a desconsideração da personalidade jurídica não possuir um

prazo legal para a sua aplicação, podendo ser utilizada, assim, de acordo com

a jurisprudência, a qualquer momento, deve-se considerar as peculiaridades do

direito tributário, de que a decadência e a prescrição extinguem o crédito

tributário.

Assim, acaso extinta a obrigação tributária pela decadência ou pela

prescrição, não há como aplicar a desconsideração da personalidade jurídica.

Dito de outro modo, desde que não extinto o crédito, pode o credor, Estado-

fisco, valer-se da mencionada desconsideração.

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165

No âmbito processual, apesar de a jurisprudência atual não reconhecer

a necessidade de prévia atividade cognitiva do magistrado, de que participem,

em contraditório, o sócio, administrador e pessoa jurídica para a

desconsideração da personalidade jurídica, bastante, de acordo com o atual

entendimento, um simples despacho, tal circunstância, que sempre foi objeto

de severas críticas, foi corrigida pelo Novo Código de Processo Civil que

entrará em vigor.

O referido código processual, além de exigir a instauração de um

incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que pode ocorrer de

forma incidental em processo de execução, inclusive fiscal, garante a prévia

citação do sócio ou administrador, a instrução do processo, com o oferecimento

de todos os meios de prova admitidos, bem como a paralisação dos atos

executórios até que seja decidido o incidente, prestigiando, assim, o devido

processo legal.

Além da execução fiscal, a desconsideração da personalidade jurídica

em direito tributário pode ser efetivada, ainda, em cautelar fiscal, desde que

presentes os seus pressupostos. Independentemente do meio processual

utilizado, é característica basilar do instituto ser aplicado exclusivamente por

juiz de direito, não havendo como sustentar qualquer possibilidade de

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em processo

administrativo, o que já havia sido reconhecido pela jurisprudência e que agora

também foi positivado no Novo Código Civil.

Apesar de frequentes confusões, a desconsideração da personalidade

jurídica não se confunde com a responsabilidade tributária do sócio ou do

administrador prevista no inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional.

Diferenciam-se, dentre outros fatores, em relação à natureza do vínculo

obrigacional ocasionado, pois, na responsabilidade tributária, atribui-se ao

responsável a obligatio e, na desconsideração, atribui-se a quem sofreu os

seus efeitos o próprio debitum, o que, além de distingui-lo da figura do

responsável, repercute no direito de regresso, solidariedade, etc.

Diferenciam-se, também, quanto aos pressupostos de aplicação, pois a

responsabilidade tributária prevista no inciso III do artigo 135 do Código

tributário Nacional exige a prática de atos com excesso de poderes ou infração

de lei, contrato social ou estatutos, contrários aos interesses da pessoa

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jurídica. Contudo, para a desconsideração, o ato ilícito pode ser praticado no

interesse direto da pessoa jurídica e indireto do sócio ou administrador,

contrário, em verdade, aos interesses do credor.

Outra diferença refere-se aos limites objetivos, pois a responsabilidade

tributária prevista no inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional exige

a prática de atos (com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou

estatutos) que resultem em débito para a pessoa jurídica. Dessa forma, a

prática do ato irregular deve ser anterior (ou no mínimo concomitante) ao fato

imponível da relação jurídico-tributária, já que a obrigação tributária deve

decorrer do ato irregular.

No caso da desconsideração da personalidade jurídica, diferentemente,

a prática do ato irregular pode ser anterior, concomitante ou posterior ao fato

imponível, pois a sua aplicação exige somente a prática de um abuso na

utilização da pessoa jurídica, decorrente de ato de sócio ou administrador, em

nome da sociedade.

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