aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica ao
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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
APLICABILIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA AO INVERSO
Nova Lima
2010
1
DAVID MASSARA JOANES
APLICABILIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA AO INVERSO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Empresarial Área de concentração: Direito Empresarial. Orientador: Prof. Doutor Jason Soares Albergaria Neto
Nova Lima
2010
2
JOANES, David Massara
J62 a Aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica ao inverso. / David Massara Joanes – Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2010. 104 f. enc. Orientador: Prof. Dr. Jason Soares Albergaria Neto
Dissertação (Mestrado) – Dissertação para obtenção do título de Mestre, área de Concentração Direito Empresarial junto a Faculdade de Direito Milton Campos.
Bibliografia: f. 100-104
1. Pessoa jurídica. 2. Personalidade jurídica. 3. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 4. Desconsideração inversa. I. Albergaria Neto, Jason Soares. II. Faculdade de Milton Campos III. Título.
CDU 347.7(043) 347.6
Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206
2
Faculdade de Direito Milton Campos – Mestrado em Direito Empresarial
Dissertação intitulada “Aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica ao inverso”, de autoria do mestrando David Massara Joanes, para exame da banca constituída pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Jason Soares de Albergaria Neto Orientador
Prof. Dr.
Prof. Dr.
Nova Lima, 05 de novembro de 2010 Alameda da Serra, 61 – Bairro Vila da Serra – Nova Lima – CEP 34000-000 – Minas Gerais – Brasil. Tel/fax (31) 3289-1900
3
As queridas e inesquecíveis
Laura e Tia Ester (in memoriam).
4
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Professor Jason Soares Albergaria Neto, pelas contribuições
fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho.
Aos meus pais e a Pamela, pelo apoio incondicional e incentivo nos momentos de
dificuldade.
A Tia Lucia, por ter plantado a semente deste trabalho, pela ajuda e inspiração.
Aos Professores Hugo e Thales, pela paciência para escutar minhas dúvidas e
pensamentos e pelas valiosas contribuições a este texto.
E a todos que, de alguma forma, contribuíram para a conclusão desta dissertação.
5
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar a aplicabilidade da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, sendo desnecessária a
criação de novo dispositivo legal com previsão expressa ou alteração daqueles já
existentes. Para tanto, analisa-se a teoria de desconsideração da personalidade
jurídica tradicional, estudando seu conceito, seus fundamentos e critérios de
aplicação. Em seguida, analisa-se a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica aplicada de forma inversa e conclui-se que os fundamentos e critérios
necessários para que a desconsideração ocorra ao inverso são os mesmos da teoria
tradicional. Por fim, defende-se a aplicabilidade da desconsideração inversa da
personalidade jurídica com base no artigo 50 do Código Civil Brasileiro, a partir da
interpretação teleológica do aludido dispositivo legal.
Palavras-chave: Pessoa jurídica. Personalidade jurídica. Teoria da desconsideração
da personalidade jurídica. Desconsideração inversa. Aplicabilidade.
6
ABSTRACT
This work’s purpose is to demonstrate the applicability of the disregard of corporate
entity theory in reverse, rendering unnecessary the creation of a new legal provision
that specifically regulates the subject or changes in the existing ones. For this, the
disregard of legal entity theory, its concept, fundaments and application criteria are
analyzed. Following, the disregard of legal entity theory applied in reverse is
analyzed, reaching the conclusion that the fundaments and criteria necessary for
reverse piercing the corporate veil are the same for the traditional piercing theory.
Finally, from the teleological interpretation of article 50 of the Brazilian Civil Code, the
applicability of disregard of legal entity in reverse is sustained.
Key-words: Corporations. Legal entity. Disregard of legal entity theory. Reverse
disregard. Applicability.
7
Sumário
Introdução ................................................................................................................... 8
Capítulo I – Noções Introdutórias .............................................................................. 10
1.1 – Pessoa Jurídica e Personalidade Jurídica .................................................... 10
1.2 – A Origem da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica ........... 16
1.3 – A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Brasil .............. 20
Capítulo II – Desconsideração da Personalidade Jurídica ........................................ 24
2.1 – Conceito e Fundamentação .......................................................................... 24
2.2 – Concepção Subjetiva e Concepção Objetiva da Teoria da Desconsideração
............................................................................................................................... 33
2.3 – Critérios para Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica .... 36
2.3.1 – Fraude .................................................................................................... 40
2.3.2 – Erro, Dolo e Simulação ........................................................................... 44
2.3.3 – Abuso da Personalidade Jurídica – Desvio de Finalidade ...................... 51
2.3.4 – Abuso da Personalidade Jurídica – Confusão Patrimonial ..................... 55
2.3.5 – A Subcapitalização da Sociedade como Critério de Aplicação da Teoria
da Desconsideração da Personalidade Jurídica ................................................. 58
Capítulo III – A Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica ....................... 61
3.1 - Conceito ......................................................................................................... 61
3.2 – Aplicabilidade ................................................................................................ 74
3.3 – Análise de Casos .......................................................................................... 83
3.3.1 – Caso Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados vs. Carlos Alberto de
Oliveira Andrade (CAOA) .................................................................................... 83
3.3.2 – Caso Francisco Alves Ferreira Neto vs. Carlos Alberto Tavares da Silva
............................................................................................................................ 89
Conclusão ................................................................................................................. 94
Referências Bibliográficas ....................................................................................... 100
8
Introdução
Apesar de não ser elaboração recente, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica ainda é fonte de diversas controvérsias e polêmicas no
mundo jurídico. Diversos autores dedicaram-se ao estudo do tema, buscando
sistematizar a teoria de forma que a decisão sobre a desconsideração da
personalidade jurídica de determinada sociedade não fique sujeita ao arbítrio do
magistrado.
Não obstante, a doutrina não é uníssona a respeito da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, seus fundamentos, critérios de aplicação e pressupostos.
Pontes de Miranda, um dos primeiros autores brasileiros a se dedicar ao estudo
desse instituto, posicionou-se contra a teoria da desconsideração, vendo-a como um
primeiro passo para se negar a pessoa do próprio Estado1.
No entanto, hoje é pacifico na doutrina o entendimento de que a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica surgiu como forma de proteger e
aprimorar o instituto da pessoa jurídica, punindo aqueles que dele abusam,
desviando-o de sua finalidade.
Foi com base nessa premissa, de que a teoria da desconsideração visa coibir o
abuso da pessoa e da personalidade jurídica, que os juristas cogitaram da aplicação
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ao inverso. Na
desconsideração inversa, para punir o abuso da personalidade jurídica, declara-se a
ineficácia da personalidade jurídica no caso concreto, para que a sociedade
responda por dívida do sócio, ou para que se atribua à sociedade um ato praticado
pelo sócio, valendo-se dos atributos da personalidade jurídica.
No presente trabalho, faremos uma análise da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica tradicional, sem, contudo, esgotar o tema. Em seguida,
abordaremos a desconsideração inversa, analisando seu conceito e seus
1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1972, p. 304.
9
fundamentos, num esforço para que essa forma de desconsideração da
personalidade jurídica não seja mal compreendida pelos juristas.
Finalmente, estudaremos a aplicabilidade da desconsideração da personalidade
jurídica de maneira inversa no ordenamento jurídico pátrio, considerando a redação
dos dispositivos legais que regulam a desconsideração e os fundamentos da teoria,
destacando que a desconsideração inversa, assim como a tradicional, tem como
finalidade a proteção do próprio instituto da pessoa jurídica.
10
Capítulo I – Noções Introdutórias
1.1 – Pessoa Jurídica e Personalidade Jurídica
Segundo Alexandre Couto Silva, sujeito de direito “é aquele a quem cabe o dever de
cumprir ou o poder de exigir, ou ambos”2. Todo sujeito de direito é pessoa. Na lição
de Carvalho Santos, “a palavra pessoa, no sentido jurídico, não exprime somente,
como em linguagem vulgar, a idéia do ser chamado homem, mas abrange também o
ser coletivo, composto de muitos seres singulares”3.
Nesse sentido, Pontes de Miranda lecionou que:
“[...] ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito. Ser sujeito de direito é estar na posição de titular de direito. Não importa se, se é munido de pretensão e ação, ou exceção. Mas importa que haja direito. Se alguém não está em relação de direito, não é sujeito de direito: é pessoa; isto é, o que pode ser sujeito de direito, além daqueles direitos que o ser pessoa produz. O ser pessoa é fato jurídico: com o nascimento, o ser humano entra no mundo jurídico, como elemento do suporte fático em que o nascer é o núcleo. [...] a personalidade é a possibilidade de se encaixar os suportes fáticos, que pela incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos, portanto, a possibilidade de ser sujeito de direito. [...] Personalidade é o mesmo que (ter) capacidade de direito, poder ser sujeito de direito.”4
Desta feita, temos que, em nosso ordenamento jurídico, as pessoas são divididas
em dois tipos: as pessoas naturais, que são os homens ou as pessoas físicas
propriamente ditas, e as pessoas jurídicas. A pessoa jurídica é uma ficção criada
pelo direito para satisfazer os anseios do homem que, desde o início da vida em 2 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 03. 3 CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Brasileiro Interpretado, 15 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1992, v. 1, p. 229. 4 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1972, p. 207-209.
11
sociedade, teve a necessidade de se unir a outros de seus semelhantes para que,
com esforço conjunto, pudessem alcançar objetivos maiores. Paulo Nader, citando
os dizeres de Rudolf Von Ihering, destaca que essa ficção jurídica seria uma
“mentira técnica consagrada pela necessidade”5.
Com efeito, essa necessidade nasceu com o surgimento de agrupamentos de
pessoas, que possuíam patrimônio próprio e comum àquelas pessoas naturais que
integravam esses agrupamentos. Com o gradual desenvolvimento das relações
comerciais praticadas pelos agrupamentos e o aumento no vulto dos bens
envolvidos nessas relações, o direito passou a conferir personalidade a esses entes
abstratos, com a finalidade de possibilitar que os agrupamentos agissem de forma
autônoma, dissociados das pessoas que os integravam, “conferindo, desta feita,
maior segurança e agilidade às relações intersubjetivas.”6
Grande parte da doutrina atribui a criação das pessoas jurídicas ao Direito Canônico.
Segundo Paulo Nader:
“a necessidade de se estabelecer a natureza da Igreja, distinguindo-a de seus fiéis, levou os canonistas a certas distinções básicas e ao conceito de pessoa jurídica. Os fiéis estavam na Igreja, mas não eram a Igreja. Esta seria um corpus místico, ao mesmo tempo com existência material visível e que não se confundia com os seus membros. Estes poderiam até deixar de existir, porque o fundamental era o patrimônio constituído pelos bens imóveis e móveis necessários à realização dos fins a que se propunha.”7
A idéia dos canonistas é semelhante ao conceito moderno de pessoa jurídica. Por
exemplo, os quotistas, acionistas ou associados compõem a pessoa jurídica, mas
não são a pessoa jurídica em si. Conforme afirma Carvalho Santos, citando Giorgi:
“[...] pessoa jurídica consiste em uma coletividade humana organizada, estável, para uma ou várias finalidades de utilidade pública ou privada, sendo distinta dos membros que a compõe,
5 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 236. 6 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 20. 7 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 229.
12
dotada de capacidade de possuir e de exercitar adversus omnes os direitos patrimoniais, compatíveis com a sua natureza, com o subsídio e o incremento do direito público.”8
Rachel Sztajn definiu a pessoa jurídica como sendo a “organização de pessoas
naturais com interesse comum ou de massa de bens dirigidos à realização de
interesses comuns ou coletivos aos quais a ordem jurídica reconhece como sujeitos
de direito”.9
A personalização desses entes abstratos criou a figura da pessoa jurídica, que é
uma pessoa, um sujeito de direito, distinto daqueles que se uniram para formá-lo.
Essa ficção jurídica trouxe mais segurança e estabilidade às relações com esses
entes, na medida em que tornou desnecessário que se conheça todos os indivíduos
que os compõem e garantiu a separação e a autonomia do patrimônio do ente em
relação ao patrimônio daqueles que o criaram.
Conforme destacou Marçal Justen Filho:
“ a personificação societária envolve uma sanção positiva prevista pelo ordenamento jurídico. Trata-se de uma técnica de incentivação, pela qual o direito busca conduzir e influenciar a conduta dos integrantes da comunidade jurídica. A concentração de riqueza e a conjugação de esforços inter-humanos afiguram-se um resultado desejável não em si mesmo, mas como meio de atingir outros valores e ideais comunitários. O progresso cultural e econômico propiciado pela união e pela soma de esforços humanos interessa não apenas aos particulares como ao próprio Estado.”10
Não nos aprofundaremos na questão da revisão crítica do conceito de pessoa
jurídica, analisando as diversas correntes teóricas existentes, sob pena de nos
afastarmos do objeto do presente trabalho. Contudo, vale registrar que, na
atualidade, as principais correntes que procuram definir a pessoa jurídica são a da
teoria da ficção e a da teoria realista. 8 GIORGI, Giorgio. Persone giuridiche. v.1, n. 24 apud CARVALHO SANTOS, J.M. Código Civil Brasileiro interpretado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1992, v. 1, p. 338. 9 SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 2, p. 67-75, abr. 1992, p. 67. 10 JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 49.
13
Calixto Salomão Filho, explicando a opção de Savigny pela explicação ficcionista da
pessoa jurídica, ressalta que “a ficção é para ele (Savigny) um meio de afirmar o
caráter artificial de tal atribuição, sem negar a realidade própria dos agrupamentos
humanos aos quais é atribuída a personalidade jurídica”11.
Parte da doutrina faz uso da teoria da ficção, aliada à teoria contratualista, para
justificar a natureza contratual das sociedades, na medida em esta última considera
o interesse social coincidente com o interesse do grupo de sócios e vê na pessoa
jurídica a ficção necessária, o instrumento de passagem e organização dos
interesses particulares dos sócios.12
Noutro giro, a teoria realista defende que o “fenômeno associativo” possui vontade
própria. Os adeptos desta doutrina defendem que a pessoa jurídica é uma realidade
viva, semelhante à pessoa física, que possui fins próprios e específicos que se
realizam por meio de seus órgãos. Salomão Filho leciona que “Gierke identifica o
elemento que confere vontade própria à sociedade na pluralidade de seus
componentes. Segundo o autor, é essa capacidade de ter vontade própria que
atribui realidade ao fenômeno associativo, único parâmetro aceitável para atribuição
de personalidade jurídica”13.
O Código Civil Brasileiro, em seus artigos 40 a 44, é taxativo quanto às espécies de
pessoas jurídicas admitidas em nosso ordenamento jurídico, estando entre elas as
sociedades. Sociedade, na lição de Ricardo Negrão, é “o contrato celebrado entre
pessoas físicas e/ou jurídicas, ou somente entre pessoas físicas (art. 1.039), por
meio do qual estas se obrigam reciprocamente a contribuir, com bens ou serviços,
para o exercício de atividade econômica e a partilhar, entre si, os resultados”14.
11 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 329. 12 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 332. 13 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 333. 14 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa, Vol. 1. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 269.
14
O artigo 985 do Código Civil Brasileiro15 dispõe que a sociedade adquire
personalidade jurídica com a inscrição de seus atos constitutivos, na forma da lei e
no registro competente. Destarte, temos que a aquisição da personalidade jurídica
produz alguns efeitos para a sociedade como, por exemplo, atribuir-lhe a capacidade
de contrair direitos e obrigações em seu próprio nome e de constituir patrimônio
autônomo em relação aos bens de seus sócios.
Ricardo Negrão leciona que:
“A personalidade jurídica é uma ficção jurídica, cuja existência decorre da lei. É evidente que às pessoas jurídicas falta existência biológica, característica própria das pessoas naturais. Entretanto, para efeitos jurídicos e, leia-se, para facilitar a vida em sociedade, concede-se a capacidade para uma entidade puramente legal subsistir e desenvolver-se no mundo jurídico. Sua realidade, dessa forma, é social, concedendo-lhe direitos e obrigações.”16
De Plácido e Silva conceitua a personalidade jurídica como sendo a:
“Denominação propriamente dada à personalidade que se atribui ou se assegura às pessoas jurídicas, em virtude do que se investem de uma qualidade de pessoa, que as tornam suscetíveis de direitos e obrigações e com direito a uma existência própria, protegida pela lei. É, assim, uma especialização terminológica da personalidade civil para designar as pessoas constituídas por força da lei, em distinção à personalidade física, próprias às pessoas naturais.”17
Segundo Ricardo Negrão, a inscrição do ato constitutivo da sociedade no registro
competente e a consequente aquisição de personalidade, geram os seguintes
efeitos:
a) “Titularidade negocial e processual. A sociedade, desde a inscrição de seus atos constitutivos, assume capacidade
15 Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150). 16 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa, Vol. 1. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 263. 17 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 27ª ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Forense: Rio de Janeiro, 2008, p. 1038.
15
legal para adquirir direitos e contrair obrigações. É a sociedade que adquire bens, contrata e realiza negócios, embora o faça mediante intervenção física de uma pessoa humana.
b) Individualidade própria: os sócios não mais se confundem com a pessoa da sociedade, inclusive quanto à qualidade empresarial.
c) Responsabilidade patrimonial: a pessoa jurídica possui patrimônio próprio, distinto do de seus sócios. É este patrimônio que se sujeita primariamente a responder pelas dívidas assumidas pela pessoa jurídica.
d) Alteração em sua estrutura possibilitando modificar sua ordenação interna, sua realidade societária (limitada, anônima, em comandita simples e por ações, em nome coletivo), seu objeto social, sua estrutura societária, com o ingresso de novos sócios ou a retirada de outros, seu endereço, capital etc.”18
Contudo, conforme a lição de Ana Caroline Santos Ceolin, “o direito à
personificação, como todo direito conferido pelo ordenamento jurídico, está sujeito a
distanciar-se do seu regular exercício, na medida em que é desvirtuado de sua
finalidade”19. Com efeito, o abuso do direito à personificação foi, muitas vezes,
inevitável, pois muitas pessoas viram nele uma nova oportunidade ou um novo meio
de praticar fraudes e outras ilegalidades.
Amador Paes de Almeida leciona que, “não obstante o rigorismo legal, com certa
freqüência acobertam-se os sócios na autonomia patrimonial da pessoa jurídica para
fins ilícitos, abusivos ou fraudulentos, buscando proveito próprio em detrimento dos
direitos de terceiros”.20
Foi para combater esses abusos que os estudiosos do direito criaram a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, com o fundamento de que, quando o
direito de atribuir personalidade a um ente abstrato é desviado de sua finalidade,
qual seja a de dar autonomia ao ente para que ele possa atuar legitimamente na
18 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa, Vol. 1. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 264 e 265. 19 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 22. 20 ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas: da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência). 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 194.
16
sociedade, de forma independente e dissociado de seus membros, com a união dos
esforços e patrimônios destes, nada mais justo do que ignorar sua personalidade.
Dessa forma, desconsiderar-se-á a personalidade jurídica autônoma do ente jurídico
para alcançar as pessoas que usaram abusivamente do direito à personificação,
desviando-o de sua finalidade legal.
Nas palavras de Rachel Sztajn, “se os institutos jurídicos passam a existir para
facilitar o tráfico econômico, em determinadas situações, estes mesmos institutos
não devem servir de escudo para que se possa obter vantagens decorrentes de seu
uso, vantagens que não seriam alcançadas de outras formas”21.
1.2 – A Origem da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica desenvolveu-se inicialmente
nos países em que vigora o sistema da common law. A maior parte da doutrina
aponta o caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., julgado pela House of Lords, no ano
de 1897, na Inglaterra, como sendo o precursor na aplicação da teoria da
desconsideração.
Trata-se do caso de um comerciante de couros e calçados, Aaron Salomon, que
fundou em 1892, a Salomon & Co. Ltd., em conjunto com sua mulher, sua filha e
seus quatro filhos. No ato de constituição da sociedade, foram emitidas 20.007
ações, das quais 20.001 eram de propriedade de Aaron e as seis ações restantes
pertenciam a sua esposa e a seus filhos, cada um com uma ação.
Das 20.001 ações pertencentes a Aaron, 20.000 foram integralizadas com a
transferência, para a sociedade, de um fundo de comércio, cuja propriedade era
exclusiva de Aaron. Segundo os relatos existentes sobre o caso, o valor do fundo de
comércio transferido à companhia superava, em muito, o valor das ações subscritas
21 SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 2, p. 67-75, abr. 1992, p. 68.
17
pelo Sr. Salomon. Sendo assim, para cobrir essa diferença, Aaron tornou-se credor
da Salomon & Co. Ltd., constituindo garantia real em seu favor.
Após algum tempo, o negócio mostrou-se inviável, e entrou em estado de
insolvência e a sociedade acabou sendo dissolvida e liquidada. Nesse momento,
estabeleceu-se o litígio judicial entre o próprio Aaron Salomon e a Salomon & Co.
Ltd., uma vez que os credores sem garantia, comparáveis aos quirografários de
nosso ordenamento jurídico atual, não obtiveram a satisfação de seu crédito e o Sr.
Aaron, que era credor da companhia, com diversas garantias, inclusive real, teve
seus créditos satisfeitos. A High Court e a Court of Appeal inglesas deram ganho de
causa à sociedade, condenando o Sr. Salomon a pagar determinada quantia à
companhia e destacando em suas decisões que a sociedade era apenas outro nome
para designar o próprio Aaron.22
Segundo a High Court, tudo não passava de estratagema engendrado pelo Sr.
Salomon para obter os lucros da atividade econômica de couros e calçados sem,
contudo, estar exposto aos riscos como responsabilidade pessoal perante os
credores. A Salomon & Co. Ltd. nada mais era do que um representante (agent) de
Aaron Salomon e, portanto, deveria receber do representado o dinheiro necessário
para satisfazer os débitos contraídos em seu interesse. A Court of Appeal chegou à
mesma conclusão, embora tenha feito menção à existência de uma relação de
confiança ou fidúcia (trust) entre Aaron e a companhia.
Entretanto, a Câmara dos Lordes reformou as decisões anteriores, prendendo-se
aos princípios tradicionais relativos à pessoa jurídica e à personalidade jurídica.
Segundo relatos, a Câmara dos Lordes ponderou que:
“ uma vez que se admite que a sociedade, por seu liquidante, possa fazer valer determinados direitos contra seu sócio principal, está-se, evidentemente, a reconhecer sua personalidade jurídica distinta; que a circunstância de estarem quase todas as ações em nome de Aaron e de estarem as poucas ações restantes em mãos de pessoas de sua família não tinha por si só o condão de afetar o fato de que a
22 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 72.
18
sociedade fora validamente constituída, nem o de fazer nascer contra a pessoa dos sócios deveres que, de outra forma, inexistiriam; que, também, a circunstância de virem as ações a ser transferidas durante a vida da sociedade a uma só pessoa não afeta em nada a existência nem a capacidade de uma sociedade cuja personalidade jurídica foi reconhecida.”23
Esse caso teve influência negativa para o desenvolvimento e a aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica na Inglaterra, pois levou as cortes
inglesas a aplicar com maior rigor e formalismo o princípio da separação das
personalidades jurídicas de sócio e sociedade. Contudo, apesar do resultado
negativo, o caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd. é tido como a semente da
Disregard Doctrine.
Koury discorda da maioria da doutrina quanto ao caso de Aaron Salomon ser o
precursor da aplicação da teoria da desconsideração. Segundo a autora, em 1809,
nos Estados Unidos da América, o juiz Marshall, no caso Bank of United States vs.
Deveaux, “com a intenção de preservar a jurisdição das cortes federais sobre
corporations, já que a constituição federal americana, no seu art. 3º, seção 2ª, limita
tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados, conheceu da
causa”24 e, por esse simples fato, acabou por aplicar a Disregard Doctrine.
Na verdade, entendemos que o debate estabelecido no caso em comento não
adentrou na questão do abuso da personalidade jurídica e do desvio de sua
finalidade. Tratava-se de discussão sobre a competência da Justiça Federal
estadunidense, que se limitava a questões entre cidadãos de diferentes entes
federativos. Sendo assim, o juiz Marshall desconsiderou a autonomia existente entre
a pessoa jurídica e seus sócios, pessoas naturais, para levar em consideração
apenas estas últimas, cidadãs dos estados da federação, permitindo que a
competência para julgar o caso fosse da justiça federal.
23 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 73. 24 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 64.
19
Com efeito, no caso dos Estados Unidos da América houve uma espécie de
superação da personalidade jurídica, com fundamento e finalidade diferentes
daqueles empregados pela justiça inglesa no caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd.
e, ainda, dos utilizados pela doutrina e jurisprudência pátria. Por fim, qualquer que
seja o caso considerado precursor, foi a partir da jurisprudência anglo-saxônica e no
sistema da common law que primeiro se desenvolveu a teoria da desconsideração
da personalidade jurídica.
Silva destaca que, hoje, “a aplicação da teoria da desconsideração é realizada no
direito norte americano com bastante cautela, mas sem a preocupação presente no
direito inglês” e que “no direito norte americano a teoria é aplicada em obediência às
razões de justiça social sem que haja atenção exagerada à qualificação jurídica do
meio aplicado”25. Dessa forma, conclui-se que a jurisprudência estadunidense é
mais flexível na aplicação da disregard doctrine.
Na doutrina estrangeira, merecem destaque os trabalhos desenvolvidos por Maurice
Wormser, Disregard of Corporate fiction and allied corporation problems, publicado
em 1927, por Rolf Serick, Rechtsform und Realität Juristischer Personen, publicado
em 1955, e por Piero Verrucoli, Il superamento della personalitá giuridica delle
societá di capitali nella Common Law e nella Civil Law, de 1964.
No Brasil, devemos destacar o trabalho de Rubens Requião, originário de
conferência proferida pelo professor a qual, no final da década de 1960, foi
publicada na Revista dos Tribunais sob o título Abuso de direito e fraude através da
personalidade jurídica. Fábio Konder Comparato, na obra “S.A. – O poder e controle
na sociedade anônima”, também abordou o tema, embora o tenha feito sob o prisma
do poder de controle na sociedade anônima. Por último, é interessante destacar o
posicionamento de Pontes de Miranda, contrário à superação da autonomia
patrimonial das pessoas jurídicas:
“o desprezo das formas de direito das pessoas jurídicas, o ‘diregard of legal entity’, provém de influências, conscientes e
25 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 73.
20
inconscientes, do capitalismo cego que, chegando a negar, por vezes, a pessoa jurídica privada, prepara o caminho para negar a pessoa do Estado.”26
1.3 – A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Brasil
Em nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da autonomia patrimonial entre a
sociedade e seus sócios. O extinto Código Civil de 1916 previa em seu artigo 20 que
“as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. O Código Civil
de 2002 não trouxe qualquer dispositivo equivalente, mas, como já foi dito, esse
princípio continua presente.
Vale destacar que, com relação às sociedades, há previsão legal de tipos societários
em que a responsabilidade dos sócios não é limitada (p. ex. sociedade em comum e
sociedade em nome coletivo), permitindo o patrimônio pessoal destes responda por
dívidas da sociedade. Contudo, tal fato não tem o condão de afastar a autonomia
patrimonial existente entre os sócios e a sociedade.
O Código Comercial de 1850, hoje revogado, dispunha em seu artigo 350: “Os bens
particulares dos sócios não podem ser executados por dívida da sociedade, senão
depois de executados todos os bens sociais.” Por sua vez, o Código de Processo
Civil estabelece, em seu artigo 596, que “os bens particulares dos sócios não
respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio
demandado pelo pagamento da dívida, tem direito de exigir que sejam primeiro
excutidos os bens da sociedade.” Pela análise dos dispositivos citados, vê-se que,
há muito, é possível a execução sobre bens particulares dos sócios por dívidas da
sociedade, em casos específicos e previstos em lei.
Porém, inicialmente, a tendência em nosso país era a de que a autonomia
patrimonial e a responsabilidade limitada dos sócios de uma pessoa jurídica eram
absolutas. Esse pensamento tornava a aplicação da teoria da desconsideração da
26 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1972, p. 304.
21
personalidade jurídica bastante difícil. A esse respeito, é valiosa a lição de Rubens
Requião:
“Mas todos esses conceitos e preconceitos levaram o pensamento jurídico a conceber, sobretudo em nosso país, a personalidade jurídica como um véu impenetrável. Passou a ser vista, via de regra, como uma categoria de direito absoluto.”27
Contudo, como o direito é uma ciência social, sujeita, portanto, a mudanças com o
passar do tempo, as constantes injustiças e ilegalidades praticadas sob a proteção
da lei e a aplicação absoluta do princípio da separação dos bens dos sócios do
patrimônio da sociedade acabaram por fazer surgir um movimento reacionário,
contra a concepção absoluta da pessoa jurídica.
Dessa forma, aos poucos, a teoria da desconsideração foi ganhando espaço e
adeptos em nosso ordenamento jurídico e, em 1990, o legislador entendeu por bem
positivar a teoria em dispositivo legal, especificamente no artigo 28 da Lei nº 8.078,
de 11 de setembro daquele ano, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. O
dispositivo em comento ganhou a seguinte redação:
“O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso do direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”
Com efeito, a redação dada ao artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor é
passível de crítica, por não ter observado com rigor os critérios e requisitos da teoria
da desconsideração, à época, já bastante divulgados pela doutrina. No entanto, o
fato de que pela primeira vez, em nosso ordenamento jurídico, a teoria ganhou
previsão legal, não pode deixar de ser considerado.
27 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Aspectos modernos do direito comercial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 71.
22
Posteriormente, a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, conhecida como a Lei
Antitruste trouxe, em seu artigo 18, a possibilidade de aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, como forma de inibir ou desencorajar os
abusos de poder econômico praticados por pessoas jurídicas e repreender as
infrações à ordem econômica.
Mais uma vez, o legislador falhou, dando ao dispositivo em comento uma redação
distante da teoria desenvolvida pelos estudiosos até então:
Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
A teoria da desconsideração continuou a ser difundida e foi incorporada em diversos
diplomas legais específicos. Em 1998, a Lei nº 9.605, que dispõe sobre crimes e
infrações administrativas ambientais, incorporou ao nosso ordenamento um
dispositivo prevendo a aplicação da teoria da desconsideração:
Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
Finalmente, a Lei nº 10.406 de 2002, que instituiu o novo Código Civil, trouxe
previsão expressa, em seu artigo 50, da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica.
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
23
Esse dispositivo é, hoje, o mais utilizado para fundamentar decisões e pedidos de
desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade.
Parte da doutrina defende que a teoria da desconsideração também foi positivada
em dispositivos de leis específicas dos ramos do direito do trabalho (artigo 2º, §2º,
da Consolidação das Leis do Trabalho), direito tributário (artigo 135 do Código
Tributário Nacional) e direito societário. Entretanto, acreditamos que os aludidos
dispositivos tratam, na verdade, de hipóteses de responsabilidade solidária ou
subsidiária de sócios ou administradores da sociedade e, não, da teoria da
desconsideração. Contudo, isso não impede que a disregard doctrine seja aplicada
nesses ramos específicos do direito, como de fato vem sendo, não obstante muitas
vezes de forma equivocada e abusiva.
Feita esse breve análise da origem da teoria da desconsideração no mundo e no
Brasil, a seguir iremos analisar seu conceito e fundamentos, para depois discorrer
sobre os critérios de sua aplicação.
24
Capítulo II – Desconsideração da Personalidade Jurídica
2.1 – Conceito e Fundamentação
Conforme dito anteriormente, para que um ordenamento jurídico possa cogitar a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é imprescindível
que reconheça ou confira distinção e autonomia entre a sociedade e as pessoas que
a compõem, sejam elas pessoas naturais ou outra pessoa jurídica.
Segundo Alexandre Couto Silva, “outro requisito importante para viabilizar a
aplicação da teoria da desconsideração é a existência de responsabilidade
limitada”28. Ou seja, caso não existisse a figura da sociedade com limitação da
responsabilidade de seus sócios, não haveria porque se falar em desconsideração
da personalidade jurídica, pois os sócios responderiam normalmente pelas
obrigações da sociedade, sem qualquer limitação ou restrição.
Discordamos do referido autor, pois, a nosso ver, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica não se restringe à possibilidade de responsabilizar os sócios
por obrigações da sociedade, sendo possível sua aplicação quando houver desvio
da finalidade da personalidade jurídica, mediante abuso da estrutura formal da
pessoa jurídica, para fraudar a lei ou contrato, evitando-se um resultado injusto no
julgamento do caso concreto.
Contudo, acreditamos que, caso não existisse o fenômeno da limitação da
responsabilidade, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica seria aplicada com menor frequência pelo judiciário nacional, uma vez que o
abuso da limitação de responsabilidade dos sócios de uma sociedade é, de fato, a
hipótese que mais tem levado os juízes a aplicá-la.
28 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 67.
25
Sobre a limitação de responsabilidade dos sócios de uma sociedade, é valiosa a
lição de Alfredo de Assis Gonçalves Neto. Ao discorrer sobre as sociedades em
nome coletivo ou com firma, reguladas pelos artigos 315 e 316 do Código Comercial
de 1850, o autor destaca que “a atuação em comum fazia pressupor o nascimento
de obrigações conjuntas, isto é, a solidariedade, como regra nas sociedades assim
ajustadas”29.
O referido autor acrescenta:
“Só mais tarde surgiram as disposições de limitação ou de isenção de responsabilidade de alguns sócios pelas obrigações contraídas pela sociedade, com a criação e o desenvolvimento das denominadas sociedades em comandita (simples), de capital e indústria e em conta de participação, como reação ao princípio da responsabilidade ilimitada, cujos efeitos sobre o patrimônio pessoal dos sócios levavam alguns deles a procurar eximir-se contratualmente dessa responsabilidade, mediante cláusula expressa que passou a ser oponível a terceiros.”30
Segundo a melhor doutrina, a responsabilidade limitada de todos os sócios de uma
sociedade somente se consolidou nos séculos XVII e XVIII, com o surgimento das
grandes empresas coloniais, constituídas com o propósito específico de explorar o
comércio marítimo entre a Europa e as colônias, sendo a Companhia das Índias
Orientais, constituída em 1602, a primeira e mais notória delas. Essas companhias
são consideradas o embrião da moderna sociedade anônima.
Alexandre Couto Silva assevera que, em nosso ordenamento jurídico, no tocante às
sociedades empresárias, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é
aplicável apenas àquelas que adotam o tipo societário de sociedade anônima ou de
sociedade limitada. Segundo o autor, quanto aos demais tipos societários não
haveria necessidade de aplicar a teoria da desconsideração, uma vez que os sócios
29 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário: regime vigente e inovações do novo código civil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 4. 30 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário: regime vigente e inovações do novo código civil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 5.
26
dirigentes sempre responderão pelas obrigações da sociedade sem qualquer
limitação31.
Discordamos do referido autor, pois, conforme exposto anteriormente, entendemos
que a teoria da desconsideração é aplicável, também, na hipótese de desvio da
finalidade da personalidade jurídica, mediante abuso da estrutura formal da pessoa
jurídica, de forma que, pela desconsideração não se busque a responsabilização
dos sócios mas, apenas, a ineficácia da autonomia existencial da pessoa jurídica em
um determinado caso concreto.
Apesar de ter sua provável origem na Inglaterra, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica teve maior aplicação e desenvolvimento nos tribunais dos
Estados Unidos da América, como forma de impedir e coibir o abuso da
personalidade jurídica, no decorrer do século XX. Dessa forma, suas designações
metafóricas na língua inglesa são bastante difundidas, a saber: disregard of legal
entity, disregard of corporate entity, lifiting the corporate veil, piercing the corporate
veil e cracking open the corporate shell32.
O Dicionário de Direito de Black define a disregard of corporate entity como:
“tratar uma companhia como se não existisse para efeitos fiscais ou certos outros propósitos de responsabilização. Em tal evento, cada acionista responderia pela distribuição das ações em todas as transações da companhia referentes à tributação ou outras responsabilidades consequentes.”(BLACK, 1994, p. 472, tradução nossa).33
E define piercing the corporate veil como:
“Processo judicial por meio do qual o tribunal desconsiderará a imunidade habitual dos administradores ou de uma sociedade
31 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 67. 32 Desconsideração de entidade legal, desconsideração da entidade corporativa, descobrindo o véu corporativo, quebrando a concha corporativa. Tradução nossa. 33 Disregard of corporate entity. To treat a corporation as if did not exist for tax or certain other liability purposes. In such event, each shareholder would account for allocable share of all corporate transactions possessing tax or other liability consequences.
27
pela responsabilidade por atividades delituosas da sociedade; por exemplo quando a personificação da sociedade existe com o único propósito de perpetrar fraude. Doutrina que se assegura de que a estrutura da sociedade limitada possa ser desconsiderada, impondo-se responsabilidade pessoal, no caso de fraude ou outra injustiça, aos acionistas, administradores e diretores que agem em nome da sociedade. Porém, o tribunal só pode olhar além da forma da companhia para anular a fraude, o erro ou corrigir a injustiça.” (BLACK, 1994, p. 1147-1148, tradução nossa).34
Para Justen Filho, a desconsideração da personalidade jurídica é:
“a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica”.35
Ana Carolina Santos Ceolin apresenta o seguinte conceito:
“Representa a teoria da desconsideração remédio jurídico que possibilita aos magistrados prescindirem da estrutura formal da pessoa jurídica para tornar a sua existência autônoma, como sujeito de direitos, ineficaz em uma situação particular.”36
Já para Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica consiste em:
“... subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas se utilizando, simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua
34 Judicial process whereby court will disregard usual immunity of corporate officers or entities from liability for wrongful corporate activities; e. g. when incorporation exists for sole purpose of perpetrating fraud. The doctrine which holds that the corporate structure with its attendant limited liability of shareholders may be disregarded and personal liability imposed on stockholders, officers and directors in case of fraud or other wrongful acts done in name of corporation. The court, however, may look beyond the corporate form only for the defeat of fraud or wrong or the remedying of injustice. 35 JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 56-57. 36 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 01.
28
função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.” 37
Percebe-se que a desconsideração da personalidade jurídica tem como objetivo
evitar o injusto praticado por meio do abuso da personalidade jurídica conferida pela
lei às pessoas jurídicas, dentre elas as sociedades. Conforme dito, a personificação
das sociedades e a limitação da responsabilidade dos seus membros surgiram como
forma de atribuir maior segurança às relações jurídicas, de incentivar e de estimular
o desenvolvimento de empreendimentos e, consequentemente, da economia.
Contudo, algumas pessoas acabam se aproveitando dos institutos jurídicos,
desvirtuando sua finalidade para cometer atos ilícitos ou obter vantagens indevidas.
“O abuso da pessoa jurídica é possível, precisamente, em razão do caráter
instrumental que tem o reconhecimento da personalidade jurídica como aparato
técnico oferecido pela lei à obtenção de finalidade ilícita que os indivíduos por si sós
não poderiam conseguir”38.
É justamente quando esses abusos ocorrem, quando há fraude, ou ainda, o abuso
da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de sua finalidade, que é
aplicável a desconsideração da personalidade jurídica.
Vinícius José Marques Gontijo leciona que:
“ressalvado e destacado o problema do uso abusivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, constatamos que esses institutos, que independem da vontade dos membros componentes de órgãos sociais, devem ser aplicados em prol da proteção do importantíssimo instituto da personalidade jurídica, que é de muita relevância para o desenvolvimento nacional”39.
37 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002; p. 86. 38 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 68. 39 GONTIJO, Vinícius José Marques. Responsabilização no direito societário de terceiro por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 95, nº 854, p. 38-51, dez. 2006, p. 50.
29
Nesse ponto, é importante destacar que a desconsideração da personalidade
jurídica não implica a anulação desta. Em verdade, o que ocorre é a declaração de
sua ineficácia em determinado caso concreto. Conforme bem ressaltou Comparato,
na desconsideração da personalidade jurídica “subsiste o princípio da autonomia
subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes,
mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão-só, para o caso concreto”40.
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury aponta a existência de distinções na aplicação da
teoria da desconsideração pelas “diferentes famílias de direitos, especialmente a do
common law e da romano-germânica”41. Segundo Alexandre Couto Silva:
“O direito no sistema common law é concebido através da jurisprudência (case law), e suas regras encontram-se na ratio decidenti das deliberações tomadas pelos tribunais. A teoria é utilizada no common law sempre que exista a necessidade de evitar uma decisão anômala ou injusta. Há uma análise no caso concreto. Por outro lado, a família romano-germânica reconhece que a melhor maneira de se chegar a soluções de justiça está nas disposições legais, ficando a jurisprudência com papel secundário. As questões são resolvidas e embasadas de acordo com a regra jurídica existente. Acrescente-se, ainda, a existência de uma dificuldade na aplicação da desconsideração na família romano-germânica, por não proceder, de maneira mais freqüente, à análise no caso concreto.”42
Nas palavras de Michala Rudorfer, em seu trabalho intitulado Piercing The Corporate
Veil: A Sound Concept, “hoje, as regras para a desconsideração da personalidade
jurídica são discricionárias. Elas são determinadas caso a caso, como consequência
da ausência de uma regra bem definida”. (RUDORFER, 2006, p. 4, tradução
nossa)43. Nessa esteira, Mark A. Olthoff acrescenta: “se existe um princípio
fundamental em todos os casos de desconsideração, é que cada um deve ser
40 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 353. 41 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002; p. 80. 42 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 70. 43 Today, the rulings of lifting the veil are discretionary. It is determined on a ca-by-case basis as a result of a missing bright-line rule.
30
decidido com base nos seus próprios fatos”. (OLTHOFF apud RUDORFER, 2006, p.
4, tradução nossa)44.
Baker e Killingsworth, em seu artigo An American View through the Corporate Veil,
publicado na revista International Business Lawyer, em 1978, afirmam:
“Pode ser que tentar formular uma regra precisa e detalhada somente nos levaria a um pântano; certamente a existência de qualquer regra rígida forneceria àqueles que agem de má-fé um guia para a sua burla. Por essa razão Arthur Machem concluiu em 1911 que ‘nenhum outro guia é desejável senão o firme senso comum’, e Latty nos conta que ‘o resultado da fórmula, uma vez decotada do excesso de palavras sobre controle, instrumentalidade, agência e pessoa jurídica, é que a responsabilidade é imposta para alcançar um resultado justo.” (BAKER, KILLINGSWORTH, 1978, p. 270, tradução nossa)45
Com efeito, assim como na common law, no nosso sistema jurídico não há como
aplicar a desconsideração da personalidade jurídica sem a análise do caso concreto,
para que seja apurada a prática da fraude ou do abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade. Aqueles que assim o fazem, cometem grave
equívoco.
Noutro giro, muitos advogados, doutrinadores, magistrados e outros profissionais do
direito acabam confundindo a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
com as hipóteses de responsabilidade pessoal dos sócios, acionistas e
administradores. Nestas hipóteses a lei prevê, expressamente, a responsabilização
pessoal dos sócios ou administradores quando estes cometem ato ilícito. Podemos
citar, como exemplo, o artigo 117 da Lei das Sociedades por Ações, que prevê a
responsabilidade do acionista controlador por atos praticados com abuso de poder, e
o artigo 2º, §2º, da CLT, que estabelece a responsabilidade solidária das sociedades
empresárias que fizerem parte de um grupo de empresas. 44 If there is one overriding principle in all piercing cases, it is that each one must be decide upon its own facts. 45 It may be that attempting to formulate a detailed and precise rule would only lead us into a swamp; certainly the existence of any hard and fast rule would provide those acting in bad faith with a guide to its circumvention. For this reason Arthur Machen concluded in 1911 that “no other guide is desirable than sturd common sense” and Latty tells us that “what the formula comes down to, once shorn of verbiage about control, instrumentality, agency and corporate entity, is that liability is imposed to reach an equitable result.
31
Nesse contexto, vale destacar a lição de Vinícius José Marques Gontijo:
“Na responsabilização, o agente infrator da norma será responsável perante terceiros e a própria sociedade que, se indenizar o dano sofrido pelo terceiro prejudicado, tem direito de regresso contra aquele que praticou o ilícito gerador do dano. Enquanto que, na desconsideração da personalidade jurídica, por ser decretada a ineficácia da personalidade jurídica da sociedade no caso concreto, ela não tem como ser condenada e, assim, não há que se falar em direito de regresso. [...] Ainda extremando os institutos, a responsabilização, conforme dissemos, atinge apenas e tão somente aquele ou aqueles agentes do ilícito passíveis de serem responsabilizados (a sanção não passa do agente infrator da norma). No entanto, a desconsideração da personalidade jurídica, por ser decorrente da decretação da ineficácia da personalidade, atinge a todos: tanto o sócio majoritário quanto o minoritário; tanto o que tem poder de gestão quanto aquele que não o tenha, em suma: todos que estavam protegidos pela personalidade da sociedade.”46
Por fim, o mencionado autor completa:
“De fato, temos observado que, na jurisprudência, muitas vezes, equivocadamente, se diz estar desconsiderando a personalidade jurídica de uma dada sociedade e a condena solidariamente com seu administrador ou sócio. Na realidade não houve a desconsideração alardeada, na medida em que, se efetivamente tivesse havido a desconsideração da personalidade, não haveria possibilidade de condenação da sociedade, pelo simples fato de que a sua personalidade estaria sendo desconsiderada, ou seja, estaria sendo decretada sua ineficácia em um caso concreto.”47
Até mesmo nos Estados Unidos da América, onde a disregard of legal entity vem
sendo estudada e aplicada há mais tempo, a teoria é considerada confusa e os
46 GONTIJO, Vinícius José Marques. Responsabilização no direito societário de terceiro por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 95, nº 854, p. 38-51, dez. 2006, p. 50. 47 GONTIJO, Vinícius José Marques. Responsabilização no direito societário de terceiro por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais, v. 95, nº 854, p. 38-51, dez. 2006, p. 50.
32
profissionais do direito encontram dificuldades para aplicá-la. Nas palavras de Eric
Engle:
“Apesar da desconsideração da personalidade jurídica ser o ataque mais frequente, é também o mais confuso na doutrina e, logo, o com menor chance de sucesso – principalmente porque geralmente é mal requerida pelo autor”.(ENGLE, 2006, p. 91, tradução nossa).48
Michala Rudorfer compartilha esse entendimento:
“Assim, a aplicação (da teoria da desconsideração da personalidade jurídica) é extremamente fato-específica e os tribunais gozam de grande discricionariedade para julgar. Como a aplicação da teoria difere dependendo da jurisdição e do tribunal, toda essa área do direito é obscura e confusa [...] Por isso, estudiosos e tribunais estão tentando, continuamente, formular novas sistemáticas e diretrizes para uma aplicação perspicaz da teoria.” (RUDORFER, 2006, p. 4, tradução nossa).49
Fábio Konder Comparato explica essa insatisfação dos estudiosos estadunidenses
com a teoria da desconsideração:
“Na jurisprudência norte-americana, onde a teoria da desconsideração da personalidade jurídica se assentou por primeiro, as soluções têm sido casuístas, na linha da influência da equity e de sua preocupação com a justiça do caso singular, tornando o juiz autêntico criador do direito (Judge-made law); o que nem sempre satisfaz as exigências de uma explicação lógica.”50
A despeito da dificuldade encontrada pelos estudiosos na tentativa de sistematizar a
teoria da desconsideração, a verdade é que isso não se tornou um empecilho para
sua aplicação. Nem poderia. 48 Though “piercing the corporate veil” is the most frequent attack it is also the most doctrinally confused and thus the least likely to succeed – but mainly because it is generally not well plead by plaintiffs. 49 Thus, the application is highly fact specific and courts enjoy great latitude of judgment. Since the application of the doctrine differs depending on jurisdiction and of court, the whole area of law is unclear and confusing. […] That’s why scholars and courts are continuously trying to formulate new frameworks and guidelines for a perspicuous application of the doctrine. 50 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 354.
33
Segundo Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, “sempre que surgirem novos casos, em
relação aos quais a aplicação de uma determinada norma geral produziria efeitos
diversos e, até mesmo, contrários aos efeitos previstos pelo legislador ao elaborá-la,
não há por que aplicar a norma em questão, sob pena de chegar-se a um resultado
contrário ao direito”51.
A mencionada autora nos lembra a lição de Siches, que analisou a idéia tradicional
de equidade (correção do rigor excessivo da lei positiva) sob uma nova perspectiva:
“é razão suficiente para considerar uma norma como não aplicável a determinado caso singular o fato de que produziria efeitos divergentes das valorações que inspiraram aquela norma, ou das que inspiram em geral o ordenamento jurídico positivo.”52
Assim, percebe-se que é nítida a distinção entre a responsabilidade prevista em lei e
a desconsideração da personalidade jurídica. E, apesar do fato de a teoria ainda
gerar confusão entre os profissionais do direito ante a dificuldade de se elaborar
uma sistematização coerente, sua aplicação é corriqueira em nossos tribunais.
Esclarecidas essas questões conceituais, faremos uma breve explicação das
correntes teóricas da desconsideração existentes e passaremos à análise dos
critérios de aplicação da teoria.
2.2 – Concepção Subjetiva e Concepção Objetiva da Teoria da Desconsideração
Na busca pela coerente sistematização da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, os estudiosos conceberam métodos de aplicação distintos 51 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 75. 52 SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de La Interpretacion Del Derecho. 2ª ed. México: Porrúa, 1973, apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 75.
34
para ela. Alexandre Couto Silva os classifica como concepção subjetivista e
concepção objetivista da teoria da desconsideração.
Para Fábio Ulhoa Coelho, “o elemento subjetivo tomado pela formulação dos
subjetivistas como principal pressuposto de incidência da desconsideração é a
intenção de usar, com fraude à lei, ao contrato ou aos credores, ou com abuso de
direito, o expediente da separação patrimonial com vistas a prejudicar terceiros”53.
O alemão Rolf Serick pode ser destacado como um dos maiores defensores da
visão subjetivista, pois critica severamente “as decisões que admitiram a
desconsideração da pessoa jurídica sem que estivesse provada qualquer intenção
consciente de fraude”54.
Segundo Silva, “para os adeptos da concepção subjetivista o abuso de direito e a
fraude são hipóteses exclusivas que ensejam a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica”55.
Em contrapartida, os adeptos da concepção objetivista criticam a visão da corrente
subjetiva, apontando que as situações de fraude e abuso não contemplam todo o
campo de aplicação da desconsideração. Para os objetivistas, o abuso da
personalidade jurídica seria configurável por meio de critérios objetivos.
Paschoal, citada por Silva, afirma que os defensores da concepção objetivista
“indicam como fundamento jurídico objetivo para a desconsideração os casos de
violação a princípios gerais, de ordem pública, de ordenação da economia, e casos
em que se evidencie o que denominam falha de organização, podendo incluir não só
53 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 55. 54 OLIVEIRA, J. Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 305. 55 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 86.
35
a mistura de negócios e patrimônios, mas também entre outras hipóteses, a
subcapitalização”56.
Ulhoa completa esse raciocínio destacando que a concepção objetiva considera
abusivo o exercício de um direito de forma contrária a seus fins sociais e
econômicos, independentemente da intenção ou da consciência do agente.57
Podemos destacar Fábio Konder Comparato como o maior defensor da corrente
objetivista. Para o professor da Universidade de São Paulo a “desconsideração da
personalidade jurídica é sempre feita em função do poder de controle societário. É
este o elemento fundamental, que acaba predominado sobre a consideração da
pessoa jurídica, como ente distinto dos seus componentes”58. E, completando seu
raciocínio, destaca:
“É talvez, por essa razão que uma larga corrente teórica e jurisprudencial tem procurado justificar esse efeito de afastamento de personalidade com as noções de abuso do direito e de fraude à lei. A explicação não nos parece inteiramente aceitável. Ela deixa de lado os casos em que a ineficácia da separação patrimonial ocorre em benefício do controlador, sem qualquer abuso ou fraude [...]”.59
Como exemplo de casos em que a ineficácia da separação patrimonial ocorre em
benefício do controlador Comparato cita a súmula 486 do Supremo Tribunal Federal,
in verbis:
Súm. 486. Admite-se a retomada para sociedade da qual o locador, ou seu cônjuge, seja sócio, com participação predominante no capital social.
56 PASCHOAL, Tânia Negri. Sociedades Unipessoais. Revista Forense. v. 287, p. 147-157. Rio de Janeiro: 1984. p. 154, apud SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 88. 57 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 59. 58 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 355. 59 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 355-356.
36
A idéia de desconsideração da personalidade jurídica em benefício do sócio
controlador não é muito difundida na doutrina brasileira. Ademais, a Súmula 486 do
STF tornou-se ultrapassada, em virtude do disposto no artigo 52, inciso II, da Lei nº
8.245 de 199160.
Enfim, compartilhamos o entendimento de Alexandre Couto Silva, no sentido de que
a coexistência das duas concepções é perfeitamente possível, de maneira que uma
complemente a outra. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, “a formulação subjetiva
deverá ser despida da ênfase que Rolf Serick confere ao elemento intencional, de
molde a se chegar a um resultado, por assim dizer, intermediário”61.
Para o mencionado autor, os conceitos de fraude e abuso do direito devem ser
incorporados à teoria da desconsideração, na sua concepção mais moderna, “em
que o elemento intencional, de ordem subjetiva, já não tem a mesma importância”62.
Ele justifica seu posicionamento:
“Com efeito, a experiência tem demonstrado que a prova de um elemento subjetivo é ônus exagerado que se impõe, às vezes desnecessariamente, a quem o direito afirma querer tutelar. O desenvolvimento da teoria dos defeitos dos atos jurídicos e do abuso de direito tem se voltado, cada vez mais, na direção dos critérios objetivos...”63
2.3 – Critérios para Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Wormser estava coberto de razão quando afirmou que a personalidade jurídica
“deve ser usada para propósitos de negócios legítimos e não pode ser deturpada e 60 Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: ... II - o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente. 61 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 45. 62 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 61. 63 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 61.
37
assim como a noite segue o dia, os tribunais deverão e irão desconsiderar esta
ficção quando esta não urgir para uma intenção ou propósitos dentro da sua razão e
ordem pública.”64
Com efeito, a teoria da desconsideração é amplamente aplicada pelos tribunais
nacionais e é objeto de estudo de diversos profissionais do direito. Nesse contexto, a
maioria da doutrina considera o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo
desvio da função deste instituto, o critério básico para aplicar-se a teoria da
desconsideração.
Segundo Calixto Salomão Filho, “a disfunção societária é exatamente o critério
teórico para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica”65. A
seguir veremos quais são essas “disfunções societárias” que possibilitam ou
autorizam a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade.
O sistema da common law encontra dificuldades na sistematização da teoria da
desconsideração, pois como esta deve ser aplicada caso a caso, analisando-se suas
peculiaridades, torna-se impossível o estabelecimento de um precedente contendo
todos os parâmetros necessários para aplicar-se a desconsideração, o qual serviria
de base para a aplicação da teoria em casos posteriores. Sendo assim, nesse
sistema, os critérios para aplicação da teoria estão previstos na doutrina.
Diferentemente, em nosso ordenamento jurídico a teoria da desconsideração
acabou sendo positivada. Contudo, o legislador atuou de forma desastrosa. O artigo
28 do Código de Defesa do Consumidor, primeiro dispositivo legal no Brasil que
tentou regular a matéria, é um descalabro. Conforme destacou Rachel Sztajn:
“Claramente o texto do art. 28 da Lei 8.078/90 não segue a filosofia que informa a aplicação da teoria nos sistemas de origem. O texto mistura defeitos dos atos para os quais o
64 WORMSER, Maurice. Disregard of corporate fiction and allied corporation problems. New York: Baker, Voorhis and Company, 1929, 201 p. apud SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 76. 65 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 354.
38
sistema já prevê remédios próprios. Ou o legislador não entendeu a função da teoria da desconsideração ou, ao que parece, desejou banalizar, vulgarizar a técnica para torná-la panacéia nacional na defesa do consumidor.”66
Hodiernamente, o dispositivo legal mais utilizado pelos litigantes em juízo para
requerer a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade é o artigo
50 do Código Civil Brasileiro, a seguir transcrito:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
A redação do referido artigo de lei não é imune a críticas. Com efeito, o dispositivo
legal não logrou êxito em capturar a essência da teoria da desconsideração e
acabou restringindo as hipóteses de sua aplicação às situações de abuso da
personalidade jurídica e confusão patrimonial, ao passo que a teoria desenvolvida
nos Estados Unidos da América, na Itália, na Alemanha e em Portugal, possui um
leque de hipóteses mais extenso, com critérios mais objetivos.
Comentando o artigo 50 do Código Civil Brasileiro, Alexandre Couto Silva destaca
que a redação aprovada “restringe a possibilidade de aplicação da teoria de
desconsideração às hipóteses de abuso e de confusão patrimonial, sem acrescentar
expressamente a fraude no seu sentido mais amplo, como adotado no Direito norte-
americano e claro a busca do ideal de justiça”.67
Ana Caroline Santos Ceolin leciona que:
“No Direito brasileiro, o apontamento de critérios não recebeu por parte da doutrina um melhor aprofundamento. Contentam-
66 SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 2, p. 67-75, abr. 1992, p. 71. 67 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 144-145.
39
se os autores em assentar que se aplica a teoria sempre que ocorra abuso ou fraude através da pessoa jurídica. Todavia, pouco contribuem tais expressões, eis que, por serem vagas, não delineiam os matizes nos quais se devem pautar os magistrados para aplicarem a desconsideração.”68
Não obstante a redação do artigo 50 do Código Civil Brasileiro ter ceifado algumas
hipóteses de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, os
tribunais pátrios têm aplicado a teoria com maior amplitude, aceitando a fraude como
hipótese ensejadora da desconsideração69. Sendo assim, começaremos nossa
análise por esse critério.
68 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 14-15. 69 Nesse sentido são os seguintes julgados: FALÊNCIA. ARRECADAÇÃO DE BENS PARTICULARES DE SÓCIOS-DIRETORES DE EMPRESA CONTROLADA PELA FALIDA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DISREGARD DOCTRINE). TEORIA MAIOR. NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO ANCORADA EM FRAUDE, ABUSO DE DIREITO OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. RECURSO PROVIDO. 1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica - disregard doctrine -, conquanto encontre amparo no direito positivo brasileiro (art. 2º da Consolidação das Leis Trabalhistas, art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, art. 4º da Lei n. 9.605/98, art. 50 do CC/02, dentre outros), deve ser aplicada com cautela, diante da previsão de autonomia e existência de patrimônios distintos entre as pessoas físicas e jurídicas. 2. A jurisprudência da Corte, em regra, dispensa ação autônoma para se levantar o véu da pessoa jurídica, mas somente em casos de abuso de direito - cujo delineamento conceitual encontra-se no art. 187 do CC/02 -, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, é que se permite tal providência. Adota-se, assim, a "teoria maior" acerca da desconsideração da personalidade jurídica, a qual exige a configuração objetiva de tais requisitos para sua configuração. 3. No caso dos autos, houve a arrecadação de bens dos diretores de sociedade que sequer é a falida, mas apenas empresa controlada por esta, quando não se cogitava de sócios solidários, e mantida a arrecadação pelo Tribunal a quo por "possibilidade de ocorrência de desvirtuamento da empresa controlada", o que, à toda evidência, não é suficiente para a superação da personalidade jurídica. Não há notícia de qualquer indício de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial, circunstância que afasta a possibilidade de superação da pessoa jurídica para atingir os bens particulares dos sócios. 4. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 693.235/MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/11/2009, DJe 30/11/2009) PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE FRAUDE OU ABUSO DO DIREITO - AUSÊNCIA DE PROVA - IMPOSSIBILIDADE. - Para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, necessária a comprovação cabal de situações fáticas revestidas de má-fé, FRAUDE e abuso de direito, que indiquem a distorção do instituto da pessoa jurídica. A medida, por sua excepcionalidade, deve sempre se revestir de redobrada cautela, admitindo-se o afastamento do manto societário apenas em casos excepcionais, mesmo porque a autonomia patrimonial é a regra, impondo-se a prevalência desse princípio. - O simples fato de não terem sido localizados bens passíveis de penhora não implica em que os sócios tenham agido de maneira irregular e com má-fé. Assim, inexistindo prova robusta, a convencer, de que a sociedade se desfez de seus bens fraudulentamente, para se furtar à quitação de seus débitos, inaplicável a disregard legal theory. (Agravo de Instrumento nº 1.0024.03.114801-8/002, Rel. Des. Tarcísio Martins Costa, 9ª Câmara Cível do TJMG, pub. em 29/03/2010).
40
2.3.1 – Fraude
Como já vimos, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi
“importada” para o nosso ordenamento jurídico, com sua base teórica já
desenvolvida ou, por assim dizer, com uma fórmula pronta. Contudo, por motivos
que não nos restaram claros, o legislador pátrio, ao positivar a possibilidade de
superar a personalidade jurídica no artigo 50 do Código Civil Brasileiro, não inseriu
na redação do mencionado dispositivo todas as hipóteses previstas na teoria já
bastante desenvolvida até então pelos juristas de outros ordenamentos jurídicos,
principalmente dos Estados Unidos da América.
Fato é que, dentre essas hipóteses, está a fraude. Com efeito, talvez o legislador
tenha propositadamente deixado a fraude fora da redação do dispositivo legal em
comento, por considerar que as diferenças conceituais existentes entre os diferentes
ordenamentos jurídicos não permitia a simples importação do vocábulo; ou por
entender que a fraude perpetrada com uso da personalidade jurídica pode ser
caracterizada como abuso de direito; ou, ainda, por considerar que nosso sistema
jurídico já possui os remédios legais adequados para solucionar os casos de fraude.
Em sua obra intitulada La normativa societaria ante los actos fraudulentos, Zannoni
sustentou essa última hipótese:
“Acreditamos que, deste modo, hão de ser resolvidos com justiça os casos de fraude por intermédio de pessoas jurídicas: a dogmática jurídica secular nos proporciona, para isso, os instrumentos conceituais suficientes.”70
Conforme já dito, o conceito de fraude no direito estadunidense é mais amplo e
genérico do que o conceito pátrio, abrangendo um número maior de situações. A
esse respeito, é válida a lição de Alexandre Couto Silva:
70 ZANNONI, Eduardo. La normativa societaria ante los actos fraudulentos de La sociedade. Replanteo de la teoria del ‘diregard’. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, p.165-180, jul./set. 1979, p. 180, apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 82.
41
“O conceito de fraude, embasador da aplicação da desconsideração, é mais amplo no direito norte-americano do que no Direito brasileiro, abrangendo os conceitos de erro, dolo, simulação e fraude contra credores. Destarte, tais defeitos dos negócios jurídicos seriam instrumentos adequados para a caracterização da aplicação da teoria da desconsideração. [...] Fraude, no Direito norte-americano, pode ser entendida como uma distorção intencional da verdade com o intuito de prejudicar terceiro, podendo ser por falsa representação do fato através de palavras ou por conduta (através da fala ou silêncio, olhar ou gesto), ou por alegações enganosas ou falsas, ou por encobrimento da verdade. É qualquer manobra realizada para enganar, por um único ou vários atos combinados, por supressão de verdade, ou sugestão do que é falso. [...] Má-fé e fraude são termos aplicados como sinônimos no Direito norte-americano, e também sinônimos de desonestidade, infidelidade, incredulidade, perfídia, deslealdade.”71
O conceito de fraude do Direito brasileiro, apesar de ser mais restrito do que o
conceito estadunidense, ainda é bastante geral e abstrato, tendo em vista as
diversas hipóteses de configuração desse vício em nosso ordenamento jurídico.
Washington de Barros Monteiro limitou-se a definir a fraude como “artifício malicioso
empregado para prejudicar a terceiros”72. Paulo Nader a definiu como a “ação que
prejudica terceiro mediante a burla da lei”73. Segundo De Plácido e Silva, “a fraude
sempre se funda na prática de ato lesivo a interesse de terceiros ou da coletividade,
ou seja, em ato onde se evidencia a intenção de frustrar-se a pessoa aos deveres
obrigacionais ou legais”74.
Alexandre Couto Silva, citando Clóvis Beviláqua, destaca que:
71 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 78-79. 72 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: parte geral, 1º vol., 39ª ed. Revista e atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 257. 73 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 514. 74 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 27ª ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Forense: Rio de Janeiro, 2008, p. 639.
42
“O vocábulo fraude trouxe do Direito romano uma certa vacilação de significado, que passou para o Direito francês e o pátrio. Realmente, os romanos, umas vezes, designavam por fraus, qualquer ardil ou embuste empregado no intuito de enganar; outras vezes, fraus equivalia à simulação, como na frase fraudem legi faceri. Nosso Código de Comércio também emprega fraude como sinônima de simulação, Coelho da Rocha no-la apresenta como equivalente a dolo. Teixeira de Freitas, porém, acentuou a distinção que se deve fazer entre os dois vocábulos, e fixou a noção de fraude. O ilustre civilista define fraude como ‘o artifício malicioso para prejudicar terceiro’”.75
A doutrina aponta como denominador comum à maioria das hipóteses de fraude a
proteção dos credores contra atos negociais do devedor, que comprometem seu
patrimônio a ponto de inviabilizar a satisfação do crédito. Contudo, para fins de
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a hipótese de
fraude não se limita a situações de prejuízo a credores, ou seja, à fraude contra
credores.
Na lição de Fábio Ulhoa Coelho, “a fraude que enseja a aplicação do superamento
da pessoa jurídica pode ser definida como ‘o artifício malicioso para prejudicar
terceiro’, não se limitando este terceiro aos credores, mas abrangendo qualquer
sujeito de direito lesado em seus interesses jurídicos”76.
Enfim, são numerosas as definições de fraude, tendo em vista a amplitude de
situações que podem ser qualificadas como fraudulentas. No entanto, a nosso ver, a
definição que melhor se adapta à teoria da desconsideração da personalidade
jurídica é a cunhada por Karl Larentz. Segundo o autor, fraude é o “meio pelo qual o
agente consegue alcançar um resultado proibido através de atos que não contrariam
as palavras da lei, mas que contrariam o seu sentido”77.
75 BEVILÁQUA, Clóvis.Teoria Geral de direito civil. Campinas: RED Livros, 2001, p. 308 apud SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 79. 76 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 57. 77 LARENTZ, Karl. Derecho Civil – parte general. Tradução e notas de Miguel Izquierdo e Macias Picavea. Revista de Derecho Privado, 1978, p. 591 apud PEREIRA, Régis Velasco Fichtner. A fraude à lei. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 15.
43
O mencionado autor completa seu raciocínio lembrando que, na fraude, “o ato que
aparentemente não viola qualquer disposição legal, está na verdade frustrando a
finalidade de uma norma jurídica, já que por meio dele alcançou-se, ainda que não
diretamente, o resultado nela previsto (ou pelo menos a ele equivalente) e por ela
proibido”78.
É exatamente essa a idéia da fraude cometida por meio da personalidade jurídica.
Por exemplo, um empresário, dono de um restaurante, vende seu negócio para um
terceiro e contrai uma obrigação de não-fazer, comprometendo-se a não abrir outro
restaurante na mesma cidade. Para burlar esta disposição contratual, o empresário
constitui uma sociedade empresária e, por meio dela, passa a gerir um novo
restaurante na cidade.
Em princípio, a constituição da sociedade pelo empresário é completamente
legítima, celebrada na forma da lei. Contudo, há evidente violação ao disposto no
contrato de alienação do primeiro restaurante, no qual o empresário se
comprometeu a não abrir outro negócio da mesma espécie na mesma cidade. Por
meio da pessoa jurídica, o empresário abriu um novo restaurante, concorrente
daquele que ele mesmo vendeu para o terceiro, contrariando o acordado no
contrato.
Nesse caso, é perfeitamente aplicável a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica pois, valendo-se da existência distinta da sociedade e seus sócios, o
empresário burlou a cláusula que veda a concorrência desleal, estabelecida no
contrato de venda de seu primeiro restaurante. Prevalecesse de maneira absoluta o
princípio da existência distinta da sociedade e dos seus sócios, uma injustiça seria
cometida.
Nessa esteira é a lição de Suzy Elizabeth Cavalcante Koury:
78 LARENTZ, Karl. Derecho Civil – parte general. Tradução e notas de Miguel Izquierdo e Macias Picavea. Revista de Derecho Privado, 1978, p. 591 apud PEREIRA, Régis Velasco Fichtner. A fraude à lei. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 15.
44
“Portanto, parece-nos ser possível afirmar que, apesar de a rigor não ser hipótese de aplicação da Disregard Doctrine, há necessidade de empregar-se a desconsideração em casos de simulação e fraude à lei, por exemplo, alcançados através do uso do esquema da pessoa jurídica, para que se possa chegar a soluções mais justas.”79
Retornando ao conceito de Karl Larenz, na hipótese levantada anteriormente, o
empresário, por intermédio da sociedade, atingiu um resultado ilícito, qual seja, a
abertura de um novo restaurante, lesando o comprador de seu primeiro restaurante,
por meio de negócio jurídico que não contrariou a palavra da lei, mas, certamente,
contrariou seu sentido e violou manifestamente o contrato celebrado. Contrariou,
principalmente, o sentido do direito à personificação da sociedade, concebido como
meio de possibilitar e incentivar a união de esforços e bens das pessoas para a
consecução de determinados objetivos, com segurança e agilidade para os sócios e
para qualquer um que se relacione com a sociedade.
Finalmente, concluímos que para que seja possível a aplicação da desconsideração,
o essencial é que a fraude seja perpetrada aproveitando-se da existência distinta de
seus sócios e da autonomia patrimonial atribuídas à sociedade pela aquisição da
personalidade jurídica. E os juízes e tribunais vêm, de fato, superando a
personalidade jurídica em situações de fraude comprovada.
2.3.2 – Erro, Dolo e Simulação
Nos Estados Unidos da América o conceito de fraude é mais amplo, abrangendo as
situações de erro, dolo e simulação. Sendo assim, tais situações são admitidas
como justificativa para a desconsideração da personalidade jurídica de uma
sociedade.
No Brasil, apesar de os magistrados acatarem a fraude como critério de aplicação da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, as situações de erro, dolo e 79 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 84.
45
simulação, que estão inclusas no conceito de fraude estadunidense, não tem, por si
só, levado o poder judiciário a desconsiderar a personalidade jurídica de sociedades.
A doutrina considera o erro o mais elementar dos vícios do consentimento. Segundo
Caio Mario, “quando o agente, por desconhecimento ou falso conhecimento das
circunstâncias, age de um modo que não seria a sua vontade, se conhecesse a
verdadeira situação, diz-se que procede com erro”80. O agente pratica um ato com
base em falsas percepções dos fatos, sendo certo que a sua declaração de vontade
seria outra se conhecesse seus verdadeiros pressupostos fáticos.
Nas situações de erro, a vontade declarada do agente é defeituosa, pois “há um
descompasso entre o querer manifestado e o que deveria ser o querer efetivo”81. Na
lição de Caio Mário, “para que torne então defeituoso o ato negocial, e, pois,
anulável, o erro há de ser, primeiro, a sua causa determinante e, segundo, alcançar
a declaração de vontade na sua substância, e não em pontos acidentais”82. É o que
dispõe o artigo 138 do Código Civil Brasileiro83.
Para Paulo Nader, “o erro consiste na falsa representação intelectual da realidade”84.
De acordo com o mencionado autor “o erro é vício de consentimento que se forma
sem induzimento intencional de pessoa interessada. É o próprio declarante quem
interpreta equivocadamente uma situação fática ou a lei e, fundado em sua cognição
falsa, manifesta a vontade, criando, modificando ou extinguindo vínculos jurídicos”85.
Segundo Cristiano Chaves de Faria, “há no erro, deste modo, um falso conceito
(falsa idéia) ou uma falta de conceito sobre a realidade, motivo pelo qual o agente
80 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 517. 81 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 518. 82 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 518. 83 Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio. 84 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 471. 85 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 471.
46
(em virtude dessa visão deturpada) celebra o negócio. Assim, o erro há de ser o
motivo determinante do ato”86.
A nosso ver, o erro que poderia envolver uma sociedade ou qualquer outra pessoa
jurídica é o error in persona, previsto no inciso II do artigo 139 do Código Civil
Brasileiro. De acordo com o mencionado artigo, o erro é substancial quando
concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a
declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante. Caio
Mário cita como exemplo de error in persona a mulher de boa formação moral que
casa com um indivíduo que vem a saber depois ser um desclassificado87.
Podemos transpor esse exemplo para uma situação envolvendo uma sociedade.
Uma pessoa celebra com outra um contrato, acreditando ser esta representante ou
administradora de uma sociedade e, posteriormente, descobre que a pessoa com
que contratou não possuía os poderes necessários para representar a sociedade.
Pela teoria dos defeitos dos negócios jurídicos, esse contrato poderia ser anulado.
Há, ainda, outra solução: a teoria da aparência. Pela teoria da aparência “uma
pessoa, ainda que não seja o administrador da sociedade (mas ao menos seja seu
sócio ou preposto), em virtude de determinadas circunstâncias fáticas, poderá
realizar negócios jurídicos em nome da sociedade”88.
Nos dizeres de Daniel Moreira do Patrocínio, “essa teoria somente poderá ser
invocada por terceiros que, de boa-fé, tenham tido a intenção de contratar com a
sociedade e, em virtude de determinadas razões de fato, tenham sido induzidos à
conclusão de que a referida pessoa, realmente o era (representante ou
administrador da sociedade)”89.
86 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 433. 87 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 518. 88 PATROCÍNIO, Daniel Moreira do. Direito Empresarial. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2009, p. 92. 89 PATROCÍNIO, Daniel Moreira do. Direito Empresarial. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2009, p. 92.
47
Logo, acreditamos que o erro, sendo um vício de consentimento ou vício de vontade,
não pode, por si só, justificar a desconsideração da personalidade jurídica de uma
sociedade, devendo-se buscar a anulação do negócio jurídico ou a sua
convalidação.
Passemos então a examinar o conceito de dolo no Direito brasileiro, para
verificarmos se esse tipo de defeito dos negócios jurídicos poderia ensejar a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Para Caio Mário,
“o dolo consiste nas práticas ou manobras maliciosamente levadas a efeito por uma
parte, a fim de conseguir da outra uma emissão de vontade que lhe traga proveito,
ou a terceiro”90.
O dolo como defeito dos negócios jurídicos pode caracterizar-se tanto por uma ação
quanto por uma omissão, desde que o agente age dolosamente se utiliza de um
processo malicioso de convencimento, que produza na outra parte um estado de
erro ou ignorância, determinante de uma declaração de vontade que não seria
obtida de outra forma91.
Na lição de Paulo Nader, “consiste o dolo em artifícios ou manobras de uma pessoa
visando a induzir outra em erro a fim de tirar proveito para si ou para terceiro. É
prática desonesta de que se vale maliciosamente alguém pretendendo a realização
de um ato negocial vantajoso”92. Para Cristiano Chaves de Farias, dolo é “todo
artifício ou ardil empregado por uma das partes, ou por terceiro, com o fito de induzir
outrem à prática de um ato”93.
O dolo, assim como o erro, é defeito do negócio jurídico e enseja sua nulidade. E tão
somente. Não entendemos que o dolo possa ser utilizado como critério para a
desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade. Mais uma vez, trata-
90 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 526. 91 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 519. 92 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 481. 93 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 436.
48
se de vício de vontade e a sanção prevista para este tipo de vício é a anulabilidade
do negócio jurídico.
A sanção de anulabilidade visa coibir a conduta dolosa por parte dos agentes.
Noutro giro, a sanção de desconsideração da personalidade jurídica visa coibir o
abuso do direito à personificação. Portanto, a conduta dolosa e o abuso da
personalidade jurídica são atos ilícitos distintos, que possuem sanções distintas.
Por fim, examinaremos a simulação. Ao contrário do erro e do dolo, não há na
simulação um vício do consentimento, porque o querer do agente, nessa hipótese,
tem em mira, efetivamente, o resultado que a declaração procura realizar ou
conseguir. Segundo Caio Mário, na simulação:
“há um defeito do ato, ou um daqueles que a doutrina apelida de vícios sociais, positivado na conformidade entre a declaração de vontade e a ordem legal, em relação ao resultado daquela, ou em razão da técnica de sua realização. Consiste a simulação em celebrar-se um ato, que tem aparência normal, mas que, na verdade, não visa ao efeito que juridicamente devia produzir.”94
Segundo Paulo Nader, “na simulação há desacordo intencional entre a vontade real
e a declaração de consentimento. Dá-se o ato simulado quando duas ou mais
pessoas, de conluio e visando a burlar terceiros ou a fraudar a lei, realizam negócio
com o propósito de alcançar resultado jurídico diverso do aparentado”95.
Nos dizeres de Cristiano Chaves de Farias, “a simulação revela-se como o
intencional e propositado desacordo entre a vontade declarada (tornada exterior) e a
vontade interna (pretendida concretamente pelo declarante), fazendo com que seja
almejado um fim diverso daquele afirmado”96. O mencionado autor completa:
“na simulação aparenta-se um negócio jurídico que, na realidade, não existe ou oculta-se, sob uma determinada
94 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 535. 95 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 509. 96 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 423.
49
aparência, o negócio verdadeiramente desejado. Por isso, e de acordo com a nossa sistemática legal, é possível detectar duas espécies de simulação: a) absoluta ou b) relativa.”97
Existem duas categorias de defeitos que podem afetar os negócios jurídicos. Alguns
vícios atingem a própria manifestação volitiva, influindo no momento em que o
agente exterioriza sua vontade e, portanto, recaindo sobre o consentimento. Estes
são apelidados pela doutrina de vícios de consentimento e, entre eles, estão o erro e
o dolo. Para Caio Mário:
“denominam-se vícios de consentimento, em razão de se caracterizarem por influências exógenas sobre a vontade exteriorizada ou declarada, e aquilo que é ou devia ser a vontade real, se não tivessem intervindo as circunstâncias que sobre ela aturaram, provocando a distorção.”98
Noutro giro, alguns vícios recaem sobre o ato negocial em si, destacando a
desconformidade do resultado com o imperativo legal. Estes são chamados pela
doutrina de vícios sociais, situando-se entre eles a simulação. Nesses casos, o
negócio jurídico reflete a verdadeira vontade do agente que, no entanto, desde sua
origem era voltada para a direção oposta ao preceito legal. Caio Mário Explica que:
“Nenhuma oposição se apresenta entre a vontade íntima e a vontade externada, porém entre a vontade do agente e a ordem legal. Há, portanto, um negócio jurídico, existe uma declaração de vontade, mas esta, por fatores endógenos, traduz uma volição que visa a resultados condenados ou condenáveis. Com razão Clóvis Beviláqua os denomina vícios sociais, em oposição aos outros que são vícios do consentimento, por não estabelecerem, como estes, uma desarmonia entre o querer do agente e sua manifestação externa, mas uma insubordinação da vontade às exigências legais, no que diz respeito ao resultado querido.”99
Ao contrário do erro e dolo, vícios do consentimento, a simulação acarretará a
nulidade do negócio jurídico. A doutrina classifica a simulação em absoluta e 97 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 423. 98 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 514. 99 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 514.
50
relativa. É absoluta quando “o negócio encerra confissão, declaração, condição ou
cláusula não verdadeira, realizando-se para não ter eficácia nenhuma. Diz-se aqui
absoluta, porque há uma declaração de vontade que se destina a não produzir
resultado”100.
Lado outro, a simulação será relativa quando:
“o negócio tem por objeto encobrir outro de natureza diversa (e. g., uma compra e venda para dissimular uma doação), ou quando aparenta conferir ou transferir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem ou transmitem (e. g., a venda realizada a um terceiro para que este transmita a coisa a um descendente do alienante, a quem este, na verdade, tencionava desde logo transferi-la).”101
A nosso ver, não é possível a aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica em situações de vício de consentimento, como o erro e o dolo
pois, nesses casos, o vício recai sobre a própria manifestação volitiva. Não
vislumbramos como um vício do consentimento poderia caracterizar abuso do direito
à personificação e, via de consequência, possibilitar a desconsideração da
personalidade jurídica.
Entendemos que, em algumas situações de simulação, quando o negócio jurídico
simulado for praticado valendo-se, de alguma forma, da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica ou de sua existência autônoma e distinta da pessoa de seus sócios,
seria possível a desconsideração da personalidade jurídica. Entretanto, não é a
simulação em si que permite a desconsideração, mas sim o abuso da personalidade
jurídica.
Talvez fosse possível enquadrar o abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio da finalidade deste instituto, como um vício social que ao invés de ter
como sanção a anulabilidade ou nulidade do negócio jurídico de constituição da
100 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 636. 101 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 637.
51
sociedade, tenha a desconsideração da personalidade jurídica do ente como
punição.
2.3.3 – Abuso da Personalidade Jurídica – Desvio de Finalidade
Primeiramente, cumpre salientar que a expressão “abuso de direito”, muito utilizada
no meio jurídico, não é tecnicamente acurada. Com bem ensinou Fábio Konder
Comparato, citando Pontes de Miranda:
“A expressão ‘abuso de direito’ é incorreta. Existe ‘estado de fato’ e ‘estado de direito’; porém não ‘abuso de fato’, ou ‘abuso de direito’. Abusa-se de algum direito, do direito que se tem (...). ‘Abuso do direito, ou abuso do exercício do direito é que é. Recebemo-la dos livros franceses e, lá, se usa abus du droit”.102
Segundo Alexandre Couto Silva “o ato abusivo é o mau uso do direito, é um ato
legal, porém contrário ao fim do instituto da pessoa jurídica, ou seja, é o ato
constituído no exercício irregular de um direito causando dano a outrem”103.
O artigo 187 do Código Civil Brasileiro, que trata do exercício abusivo do direito
como sendo ato ilícito, possui a seguinte redação:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Destarte, percebe-se que o exercício de um direito é abusivo quando excede os
limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
102 MIRANDA, Pontes de. Comentário do Código de Processo Civil. Tomo I. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1973, p. 382-383, apud COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 355. 103 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 82.
52
Entendemos que exceder os limites quer dizer ir além, ultrapassar esses limites.
Sendo assim, ir além do limite imposto à personalidade jurídica, considerando seu
fim econômico ou social, a boa-fé e os bons costumes, pode ser caracterizado como
desvio da finalidade da personalidade jurídica da sociedade, como prevê o artigo 50
do Código Civil.
O abuso por meio do desvio de função deve ser entendido como a utilização da
pessoa jurídica e de sua personalidade jurídica com fins diversos daqueles previstos
pelo legislador quando esses institutos foram concebidos. Osmar Vieira da Silva
aponta as seguintes funções da pessoa jurídica dotada de personalidade:
“a) tornar possível a soma de esforços e recursos econômicos
para a realização de atividades produtivas impossíveis com os
meios isolados de um ser humano;
b) limitação de riscos empresariais;
c) agrupamento entre os homens para fins religiosos, políticos,
educacionais; e
d) vinculação de determinados bens ao serviço de
determinadas finalidades socialmente relevantes.”104
Sendo assim, a personalidade jurídica tem como finalidade possibilitar que a
sociedade aja de forma autônoma, dissociada das pessoas de seus sócios,
conferindo, desta feita, maior segurança e agilidade às relações intersubjetivas. Para
atingir esses objetivos, a personalidade jurídica atribui à sociedade autonomia
patrimonial e existência distinta das pessoas dos sócios.
Segundo Suzy Elizabeth Cavalcante Koury:
“A função do instituto pessoa jurídica de limitar os riscos empresariais, através do reconhecimento da sua existência como distinta da existência de seus membros, que objetiva principalmente estimular o desenvolvimento das atividades
104 SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da Personalidade Jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 80.
53
econômicas e contribuir, assim, para o desenvolvimento social, não é evidentemente ilegítima; todavia, a utilização desta situação pode ter, em alguns casos, esse caráter.”105
Assim, quando os sócios se valem da sociedade e dos direitos atribuídos a ela pela
personalidade jurídica para atingir fim escuso ou injusto, fica caracterizado o
exercício abusivo do direito, com o desvio da finalidade da personalidade jurídica.
Sobre o tema, é valiosa a lição de Ana Caroline Santos Ceolin:
“Na esteira da teoria do abuso do direito, pode-se concluir que, quando o direito de atribuir personalidade ao ente abstrato é desviado de sua finalidade, qual seja, dar autonomia ao ente para que ele possa agir no mundo dos negócios independente e dissociadamente de seus membros com a agregação de esforços e patrimônios, cabe aos magistrados ignorar a sua personalidade. Desconsiderar-se-á o ente jurídico para alcançar as pessoas naturais que usaram abusivamente do direito a personificação, desviando-o de sua finalidade legal.”106
São exemplos clássicos de uso abusivo da personalidade jurídica, as hipóteses em
que os sócios constituem a sociedade como forma de se esquivarem da incidência
de determinada norma legal ou regra contratual. Nesse sentido, leciona Rolf Serick:
“por abuso entende-se a utilização da pessoa jurídica com a intenção de furtar-se a
uma obrigação legal ou contratual, ou, ainda, de prejudicar terceiros”107.
Como não poderia deixar de ser, a conceituação do abuso de direito é matéria
extremamente polêmica, havendo opiniões em diversos sentidos. O embate é
acirrado com relação à classificação do abuso do direito como ato ilícito ou não.
Paulo Nader defende a seguinte posição:
“Abuso de direito é espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que
105 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 67. 106 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 22. 107 SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1964, apud COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 18.
54
exorbita o regular exercício de direito subjetivo. É equivocado pretender-se situar o abuso de direito entre o ato lícito e o ilícito. Ou o ato é permitido no jus positum e os pactos, quando é ato lícito ou a sua prática é vedada, quando então se reveste de ilicitude. Na dinâmica do abuso de direito tem-se, no ponto inercial, aquele que imediatamente antecede a conduta e até quando esta não se complete, a esfera do direito, mas à medida em que a ação se desenrola, no iter, a conduta desborda-se do âmbito da licitude para se transformar-se em ato ilícito. O abuso de direito tanto é modalidade de ato ilícito, que enseja ação reparadora, promovendo o retorno ao statu quo ante ou, quando isto não é possível, à indenização.”108
Em sentido contrário é o posicionamento de Tepedino, a saber:
“ ‘(n)ão foi feliz, todavia, o legislador de 2002, ao definir o abuso de direito como espécie de ato ilícito. A opção legislativa contraria a doutrina mais moderna do abuso de direito, que procura conferir-lhe papel autônomo na ciência jurídica’ (Cunha de Sá, Abuso, p.121). A ultrapassada concepção do abuso de direito como forma de ato ilícito, na prática, condicionava sua repressão à prova de culpa, noção quase inerente ao conceito tradicional de ilicitude. No direito civil contemporâneo, ao contrário, a aferição de abusividade no exercício de um direito deve ser exclusivamente objetiva, ou seja, deve depender tão-somente da verificação de desconformidade concreta entre o exercício da situação jurídica e os valores tutelados pelo ordenamento civil-constitucional. Além disso, a associação do abuso com o ilícito restringe as hipóteses de controle do ato abusivo à caracterização do ato ilícito, deixando escapar um sem-número de situações jurídicas em que, justamente por serem lícitas, exigem uma valoração funcional quanto ao seu exercício.”109
Com efeito, nos filiamos a corrente moderna de conceituação do abuso de direito e
defendemos a apuração objetiva da abusividade no exercício de um direito. Ora,
caso o abuso de direito seja necessariamente ato ilícito, não vemos como aplicar a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica na hipótese de uso abusivo da
personalidade jurídica, uma vez que seria possível ao prejudicado ajuizar ação
reparatória, buscando o restabelecimento do statu quo ante ou a indenização.
108 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 553-554. 109 TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Maria Helena, BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 341.
55
Ademais, seria indispensável a comprovação da intenção de lesar alguém, sendo
certo que, no nosso entendimento, na aplicação da teoria da desconsideração o
necessário é que se comprove a prática da conduta abusiva e o prejuízo, sendo a
prova da intenção prescindível.
De fato, o que determinará a necessidade de prova inequívoca da intenção é o caso
concreto. Nessa esteira é a lição de Rubens Requião: “no abuso, o que ocorre é um
inadequado uso do direito, mesmo que seja estranho ao agente o próprio propósito
de prejudicar o direito de outrem”110. Caso se admitisse o contrário, a teoria da
desconsideração acabaria se equivalendo a uma forma de responsabilidade civil por
ato ilícito, o que, conforme já destacamos, é um grave equívoco.
Lembrando a lição de Josserand, um dos principais sistematizadores do abuso de
direito, este “tem como critério básico e concreto o finalista, pois diz respeito à
finalidade dos direitos, à sua relatividade em consideração e em função de seu
fim”111. Assim, o ato que abusa de um direito, é aquele ato antifuncional, contrário ao
fim do instituto, ao seu espírito. Logo, o ato que é contrário ao fim do instituto da
personalidade jurídica, necessariamente, é ato de desvio de finalidade que, por sua
vez, caracteriza o abuso do direito à personificação.
2.3.4 – Abuso da Personalidade Jurídica – Confusão Patrimonial
Pela leitura do artigo 50 do Código Civil Brasileiro, verifica-se que o legislador
determinou que o abuso da personalidade jurídica também se caracteriza na
hipótese de confusão patrimonial e, portanto, permite a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica nessas situações. De fato, a confusão
110 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Aspectos modernos do direito comercial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 58. 111 JOSSERAND, L. El espiritu de los derechos y su relatividad, trad. Por Eligio Sanchez Larios e José M. Cajica Jr. México: José M. Cajica Jr., 1946, p. 313-322, apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 70.
56
patrimonial é frequentemente levantada em juízo como fundamento do pedido de
desconsideração e os tribunais pátrios não têm titubeado em aplicá-la nessa
hipótese.
Ana Caroline Santos Ceolin leciona que:
“Não foi por outra razão que o fator abusivo considerado pela maioria dos juízes brasileiros, para desconsiderar a sociedade constituída ou mantida por um sócio detentor de quase a totalidade das ações sociais, foi a confusão de identidade ou de patrimônio, propositadamente, ensejada por esse sócio na tentativa de ludibriar terceiros. Quando ocorre a confusão, a sociedade passa a ser usada abusivamente, de modo a confundir a personalidade do sócio controlador com a da sociedade, bem como os negócios particulares com as atividades sociais, dificultando, assim, a identificação de cada um isoladamente.”112
De Plácido e Silva destaca que em nosso ordenamento jurídico, o termo confusão é
usado no sentido de junção, adjunção ou mistura e no de desordem, de indistinção
ou impercepção113. É justamente nesse segundo sentido que ocorre a confusão
patrimonial entre a sociedade e o sócio.
Há confusão patrimonial quando os bens e negócios dos sócios e da sociedade se
misturam de tal forma que se torna difícil a indicação, com precisão, do proprietário
de determinado bem ou, ainda, se determinado negócio jurídico foi celebrado pelo
sócio ou pela sociedade.
Comparato, analisando a questão da desconsideração sob o prisma do poder de
controle, assevera que:
“A confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica externa corporis. E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois, em matéria
112 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 28-29. 113 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 27ª ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Forense: Rio de Janeiro, 2008, p. 346.
57
empresarial, a pessoa jurídica nada mais é do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral.”114
Vale ressaltar que esta situação está se tornando cada vez mais comum, com a
constituição das sociedades denominadas holdings patrimoniais. A constituição
deste tipo de sociedade é perfeitamente válida e admitida em nosso ordenamento
jurídico como forma de planejamento estratégico empresarial, tributário ou
sucessório. Contudo, muitas vezes, acaba-se perdendo a autonomia entre a pessoa
jurídica, sociedade holding, e a pessoa de seu sócio controlador, situação essa que
pode dar azo à aplicação da desconsideração.
Outras e não raras vezes, este expediente é utilizado com o intuito de possibilitar
aos sócios esquivar-se das obrigações assumidas na órbita pessoal, situação que
acabou fomentando o surgimento da desconsideração inversa da personalidade
jurídica, objeto deste trabalho.
Sobre a confusão patrimonial Ana Caroline Santos Ceolin acrescenta que “não
basta, contudo, apenas a ocorrência de confusão patrimonial ensejada pelos sócios
(ou sócio único) para se desconsiderar a pessoa jurídica”115. Segundo a mencionada
autora:
“A confusão patrimonial só revela o abuso da estrutura formal da pessoa jurídica, justificando a aplicação da teoria da desconsideração, quando o sócio atua de forma a confundir também a sua personalidade com a do ente abstrato [...] É preciso, pois, verificar se a personalidade do ente abstrato foi usada de sorte a encobrir atos praticados pelos seus sócios (ou sócio único) ao arrepio da lei, desviando-a da finalidade
114 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 450. 115 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 53.
58
atribuída ao fenômeno da personificação dos entes abstratos.”116
Percebe-se então, que a confusão patrimonial entre sócio e sociedade desemboca,
invariavelmente, no desvio de finalidade. Com efeito, a nosso ver, o verdadeiro ou o
melhor critério para a aplicação da teoria da desconsideração está relacionado à
interpretação funcional ou finalística da pessoa jurídica e do instituto da
personalidade jurídica.
2.3.5 – A Subcapitalização da Sociedade como Critério de Aplicação da Teoria
da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Nos tribunais estadunidenses a inadequada capitalização de uma sociedade,
também chamada de subcapitalização, tem fundamentado decisões que
desconsideram a personalidade jurídica desta sociedade para atribuir a seus sócios
a responsabilidade por suas obrigações.
Com efeito, nas sociedades de responsabilidade limitada, como os sócios
normalmente não respondem pelos débitos da sociedade, é em torno do capital
social que se organiza a proteção legal dos direitos dos credores. Desta feita,
“algumas legislações não se limitam a preservar a integridade desse capital, mas
ainda fixam-lhe um valor mínimo” 117.
Contudo, de acordo com a legislação vigente em nosso país, o capital social de uma
sociedade contratual é meramente declaratório, inexistindo qualquer mecanismo de
controle quanto à sua veracidade por parte dos órgãos de registro, ou um capital
social mínimo a ser observado.
116 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 54. 117 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 450.
59
Calixto Salomão Filho preleciona que, se o legislador não impõe obrigação de capital
mínimo, é difícil exigir do sócio que faça a previsão correta no momento de
constituição de sociedade. O mais correto parece ser considerar a fixação do
montante do capital como componente do business judgment rule do sócio e admitir
a desconsideração somente nos casos em que a subcapitalização for extremamente
evidente118.
O mencionado autor classifica a subcapitalização em simples e qualificada. A
subcapitalização qualificada se verifica nas situações em que “o capital inicial de
uma sociedade é claramente insuficiente ao cumprimento dos objetivos e da
atividade social e, consequentemente, o perigo criado pelos sócios no exercício do
comércio é suficiente para caracterizar a responsabilidade”119.
A subcapitalização simples ocorre nas situações em que, ao contrário da qualificada,
a subcapitalização não é evidente e depende de prova do elemento subjetivo, ou
seja, da demonstração de culpa ou dolo dos sócios em não prover o capital social de
forma suficiente para a consecução do objeto social.
Segundo o critério da capitalização insuficiente, a desconsideração da personalidade
jurídica deve ser aplicada responsabilizando-se os sócios por obrigações da
sociedade, em função do manifesto risco de insolvência por eles criado ao não
prover a sociedade com capital suficiente e adequado para o desenvolvimento do
objeto social.
Para Michala Rudorfer a subcapitalização significa que os sócios, dolosamente,
constituíram uma sociedade com capital insuficiente e, portanto, eles têm
consciência de que talvez a sociedade não consiga quitar as obrigações previsíveis
ou ordinárias120.
118 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 463. 119 COMPARATO, Fábio Konder. SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 463. 120 RUDORFER, Michala. Piercing the Corporate Veil: A Sound Concept. New York: Grin, 2006, p. 11.
60
A questão é complexa e merecedora de um estudo mais aprofundado. Nesta breve
reflexão, vários questionamentos vêm a lume. Seria a desconsideração da
personalidade jurídica a melhor solução para as hipóteses de subcapitalização ou
haveria outras melhores? Além disso, qual seria o critério a ser utilizado pelos
magistrados para definir o capital social mínimo para que uma sociedade possa
executar determinada atividade?
É cediço que são vários fatores que influenciam e determinam a possibilidade de
sucesso ou fracasso de determinado empreendimento. Logo, nos parece
precipitada, num primeiro momento, a atribuição de culpa ao capital social de baixo
valor por eventual estado falimentar de determinada sociedade, a não ser que se
prove a criação dessa situação pelos sócios, de forma propositada. Além disso, não
é o capital social de uma sociedade que responde por suas dívidas, mas sim seu
patrimônio como um todo.
Talvez a subcapitalização possa ser vista como um indício de abuso do direito à
personificação e do desvio de finalidade, indicando que uma determinada sociedade
não foi constituída para, de fato, exercer a atividade prevista em seu objeto social.
Tanto que os sócios a constituíram com um capital social mínimo ou simbólico. Mas,
entendemos que a subcapitalização, por si só, não deve ser utilizada como critério
de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
61
Capítulo III – A Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica
3.1 - Conceito
Conforme visto anteriormente, a desconsideração da personalidade jurídica é uma
técnica que permite ao magistrado ignorar, em casos concretos, sem retirar a
validade de ato jurídico específico, os efeitos da personificação jurídica validamente
reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível
com a função da sociedade como ente personificado.
Quando começou a ser difundia em nosso país, a teoria da desconsideração não
obteve imediata aceitação e enfrentou obstáculos. A priori, os magistrados e demais
profissionais do direito entendiam que a autonomia existencial e patrimonial da
pessoa jurídica em relação a seus sócios deveria ser absoluta. Sob essa ótica,
diversas injustiças foram cometidas.
Entretanto, o judiciário não poderia se calar ante os inúmeros absurdos cometidos
com abuso do direito à personificação. Assim, aos poucos, a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica foi ganhando defensores e começou a
ser utilizada pelos tribunais pátrios.
Hodiernamente, a desconsideração da personalidade jurídica tornou-se expediente
corriqueiro no judiciário nacional e podemos dizer que sua aplicação, em algumas
situações, é feita de forma abusiva e sem observar os pressupostos necessários.
Talvez esse fato seja culpa dos diversos conceitos envolvidos na teoria da
desconsideração, os quais são por demais vagos e genéricos, causando confusão
na doutrina e tornando a sistematização da teoria tarefa hercúlea.
Não obstante, a realidade é que nada disso impediu a aceitação da teoria e sua
ampla aplicação em nosso ordenamento jurídico. Assim, atualmente, a questão que
está em discussão na doutrina e nos tribunais é a aplicabilidade da desconsideração
62
da personalidade jurídica de maneira inversa. A matéria é de fato polêmica e os
estudiosos da desconsideração se dividem a seu respeito.
Segundo Ana Caroline Santos Ceolin, a desconsideração inversa é:
“o instrumento jurídico que permite prescindir da personalidade e da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para responsabilizá-la por obrigação pessoal do sócio. Enquanto a teoria da desconsideração da pessoa jurídica propriamente dita aplica-se às hipóteses em que se pretende responsabilizar pessoalmente os sócios por atos praticados em nome da sociedade, a denominada ‘desconsideração inversa’ busca atingir o ente coletivo, onerando o seu patrimônio por dívidas pessoais de seus membros.”121
Na lição de Rolf Madaleno:
“Essa técnica jurídica de responsabilizar a sociedade empresária por ato abusivo de seus sócios ou administradores é chamada de desconsideração inversa, só se legitimando quando a sociedade se tornou mera extensão da pessoa física do sócio, como pode acontecer quando um cônjuge transfere maliciosamente os bens do casamento para a empresa da qual é sócio, entre tantas outras previsíveis situações de fraude a direitos e obrigações de ordem civil e especialmente familiar.”122
Podemos chamar de desconsideração inversa o instrumento jurídico que permite ao
juiz superar a personalidade da pessoa jurídica, afastando a existência distinta e
autonomia patrimonial, para responsabilizá-la por obrigação pessoal do sócio. Na
prática, ao invés de o sócio se utilizar da sociedade como escudo protetor de seu
patrimônio, este passa a agir ostensivamente, escondendo seus bens na sociedade,
ou utilizando a sociedade para gerir sua própria vida, valendo-se dos private benefits
of control.
121 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 127. 122 MADALENO, Rolf. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 79-80.
63
O fundamento básico para se desconsiderar a personalidade jurídica de forma
inversa é o mesmo da desconsideração propriamente dita: sancionar o abuso da
pessoa e da personalidade jurídica. Por exemplo, quando o sócio de uma sociedade,
para evitar que os bens de sua propriedade sejam executados por seus credores,
transfere-os para a própria sociedade, frustrando a possibilidade de esses bens
responderem por suas dívidas, operando verdadeiro desfalque patrimonial, seria
possível a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para que os
bens desta respondam pelas dívidas do sócio. No exemplo dado, a autonomia
patrimonial de que goza a sociedade claramente foi utilizada de forma abusiva, com
desvio de finalidade.
Fábio Ulhoa Coelho é um dos defensores de sua aplicação:
“A teoria da desconsideração visa coibir fraudes perpetradas através do uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Sua aplicação é especialmente indicada na hipótese em que a obrigação imputada à sociedade oculta uma ilicitude. Abstraída, assim, a pessoa da sociedade, pode-se atribuir a mesma obrigação ao sócio ou administrador (que, por assim dizer, se escondiam atrás dela), e, em decorrência, caracteriza-se o ilícito. Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio.”123
Para Cristiano Chaves de Farias, a desconsideração inversa é perfeitamente
possível, pois “a partir do momento em que se isola o fundamento jurídico da
admissibilidade desta teoria, fácil é depreender a admissibilidade do inverso: é
possível, igualmente, desconsiderar a (mesma) autonomia da pessoa jurídica para
responsabilizá-la por obrigações assumidas pelos seus sócios”124.
Também posiciona-se nesse sentido Carlos Alberto Menezes Direito:
123 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa 10ª ed. São Paulo: Saraiva: 2007, p. 45-46. 124 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 286.
64
“Como sabido, o objetivo maior da desconsideração da personalidade jurídica é responsabilizar o sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Mas isso não quer dizer que não possa ocorrer o contrário, ou seja, o afastamento da autonomia patrimonial para responsabilizar a sociedade por dívida do sócio, desde que caracterizada a manipulação fraudulenta.”125
Fábio Konder Comparato, ao explicar o que chama de desconsideração da
personalidade jurídica externa corporis, cujo critério fundamental é a confusão
patrimonial, assevera:
“Aliás, essa desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador.”126
Correa de Oliveira, ao tratar da terceira hipótese do esquema de Rolf Serick, que
corresponde aos casos de fraude contra credores pela transferência de bens do
devedor, destaca o seguinte caso:
"First National Bank of Chicago v. F.C. Trebein Co., um certo F.C. Trebein, devedor insolvente, constituiu com a mulher, a filha, o genro e o cunhado uma pessoa jurídica a que transferiu todo o patrimônio. Das seiscentas quotas da sociedade, somente quatro não lhe pertenciam pessoalmente, pertencendo a mulher e aos parentes mencionados. A Corte decidiu favoravelmente à pretensão dos credores de Trebein, que desejavam executar o patrimônio da sociedade, que esta era em verdade o próprio F.C. Trebein sob diversa forma e que a fundação da sociedade e a transferência a esta do patrimônio do devedor era, no caso, tão pouco relevante quanto seria mudar de roupa.”127
Manifestou-se contrariamente a aplicação ao inverso da teoria da desconsideração
Alexandre Couto Silva, para quem “desconsidera-se a personalidade jurídica da 125 MENEZES DIREITO, Carlos Alberto. A desconsideração da personalidade jurídica. In: ALVIM, Arruda, CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira e ROSAS, Roberto (coord.). Aspectos Controvertidos do novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 89. 126 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 464. 127 OLIVEIRA, J. Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 275.
65
pessoa natural, para se atingir o patrimônio da pessoa jurídica de quem esta é sócia.
Por mais que alguns doutrinadores entendam que exista a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica inversa ou às avessas, a grande maioria
não reconhece a sua existência”128.
Segundo o mencionado autor, a aplicação inversa da desconsideração da
personalidade jurídica seria estranha por duas razões:
“1ª – Há a possibilidade de penhora das participações societárias do sócio para suprir o passivo do credor. 2ª – No caso do negócio jurídico fraudulento, deveria ser este anulado, e não a pessoa jurídica ser desconsiderada.”129
O primeiro grande equívoco cometido pelo autor citado é considerar que aplicar a
desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa implicaria desconsiderar
a personalidade jurídica da pessoa natural. Tal afirmativa é absurda. Ora, negar
eficácia à personalidade jurídica da pessoa natural, ainda que seja apenas em
determinado caso concreto, seria considerá-la morta ou nunca nascida.
Nancy Andrigh cometeu o mesmo equívoco ao discorrer sobre a desconsideração
inversa:
“Aponta ainda a doutrina, outra hipótese de desconsideração: a inversa, por meio da qual desconsidera-se a personalidade jurídica da pessoa natural, para atingir o patrimônio da pessoa jurídica de quem aquela é sócia. Nessa modalidade, ao invés de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, ele esvazia o seu patrimônio pessoal (enquanto pessoa natural) e o integraliza totalmente na pessoa jurídica. Após esse artifício, o sócio, pessoa natural, cujo patrimônio restou esvaziado, exerce a atividade comercial (objeto social da pessoa jurídica) em seu nome próprio, e não em nome da pessoa jurídica, com o nítido intuito de fraudar terceiros. Aqui a hipótese é inversa, isto é, se desconsidera a pessoa natural e,
128 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 92-93. 129 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 93.
66
se desconsidera a personalidade da pessoa jurídica pelos atos praticados por seu sócio.”130
O artigo 2º do Código Civil dispõe que:
Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Por sua vez, o artigo 6º do mencionado diploma legal estabelece:
Art. 6º A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.
Sendo assim, admitir que a personalidade jurídica da pessoa natural seja
desconsiderada, ainda que episodicamente, equivale a negar àquela pessoa
existência jurídica. Interpretando-se a afirmativa de acordo com o artigo 2º do
Código Civil, seria como se a pessoa jamais tivesse nascido.
Evidentemente, não é esse o objetivo da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica inversa. O propósito da desconsideração, ainda que aplicada
de forma inversa, é evitar que atos praticados com abuso do direito à
personalização, desviando a finalidade deste instituto, causem prejuízos a terceiros
ou resultem em situações injustas.
O segundo grande equívoco cometido por Alexandre Couto Silva é pretender
resolver as situações de abuso da personalidade jurídica que ensejariam a
desconsideração inversa da personalidade jurídica por meio das soluções ordinárias
do direito civil: penhora de participação societária ou ação anulatória.
O autor não apresenta qualquer justificativa para seu posicionamento, que nos
parece contraditório. 130 ANDRIGH, Fátima Nancy. A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil: convergências e assimetrias. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/11484/Desconsidera%C3%A7%C3%A3o_Personalidade_Jur%C3%ADdica_C%C3%B3digo_Defesa_Consumidor.pdf?sequence=1>. Acesso em: 29 ago. 2010.
67
A nosso ver, se não é possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica,
pelos simples fato de existirem outras soluções jurídicas para o caso de fraude,
também não seria possível a desconsideração na sua forma tradicional, uma vez
que a esses casos também deveria ser aplicada a solução civilista, qual seja, a ação
anulatória.
Mais uma vez, destacamos que a fraude que enseja a aplicação da teoria da
desconsideração, ainda que forma inversa, deve fazer uso do expediente da
personalidade jurídica, desviando este instituto de sua finalidade. Sem que haja
abuso do direito a personificação, concordamos que a fraude deve ser solucionada
pelos meios ordinários e já consagrados do direito civil.
Nessa esteira, é a lição de Ana Caroline Santos Ceolin, embora o excerto abaixo
transcrito pareça um tanto contraditório:
“É incorreto aplicar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica aos casos de transferência de bens pessoais do sócio para a sociedade. Não é preciso desconsiderar a personalidade do ente social, para se obter a restituição dos bens fraudulentamente alienados, de modo a recompor o acervo patrimonial do sócio sujeito a processo executório. Deve-se atacar, através da ação pauliana, o ato negocial que possibilitou a sua transferência e não a sociedade, que, embora tenha agido como terceiro, não teve sua finalidade desviada para obtenção de fins escusos.”131
Ora, se a sociedade adquire, de maneira fraudulenta, um bem que pertencia a seu
sócio, apenas para que este último proteja seu patrimônio de credores, a nosso ver,
está caracterizado o abuso do direito à personificação pelo desvio da finalidade do
ente personalizado, sendo possível a desconsideração inversa da personalidade
jurídica. Com efeito, o objetivo da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica é proteger e resguardar o importantíssimo instituto jurídico da personificação
de um ente social, impedindo que o instituto se torne um meio para se atingir fins
ilegítimos.
131 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 153.
68
Em sua obra, Ceolin cita uma hipótese muito comum, na qual seria aplicável a
desconsideração da personalidade jurídica ao inverso:
“Se o cônjuge fraudador, antes de requerer a separação conjugal ou na sua iminência, cria uma sociedade apenas para transferir-lhe bens que compõe o acervo familiar, verifica-se que a estrutura formal do ente coletivo é usada de forma abusiva. Tendo sido a sociedade criada com o fito único e exclusivo de lesar direitos de terceiros, ao invés de conjugar patrimônios e esforços na perseguição de um fim comum, caracterizado está o desvio de finalidade ensejador da aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica.”132
No exemplo, percebe-se que a sociedade foi criada com o objetivo de lesar o
cônjuge, recebendo bens que compõem o patrimônio do casal. A fraude e o desvio
de finalidade da sociedade são evidentes, tornando, no nosso entendimento,
perfeitamente possível a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica no caso.
Contudo, o exemplo acima nos remete a outro ponto levantado por Alexandre Couto
Silva como empecilho à aplicação da desconsideração ao inverso: a possibilidade de
penhora ou partilha da participação social. Geralmente, o cônjuge fraudador ou o
devedor, transferem seus bens para uma sociedade por meio de aumento de capital,
de forma que os bens sejam incorporados à sociedade para integralizar a subscrição
de um determinado número de quotas ou ações.
Sendo assim, na concepção de Silva, não seria necessária a desconsideração da
personalidade jurídica da sociedade, pois é perfeitamente possível a partilha ou
penhora da participação societária, lembrando que esta última hipótese é
amplamente admitida por nossos tribunais.
Calixto Salomão Filho, ao discorrer sobre a desconsideração inversa, se deparou
com este mesmo problema. Para o referido autor, a possibilidade de penhora ou
partilha de participação societária não pode ser oposta como obstáculo à 132 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 150-151.
69
desconsideração inversa da personalidade jurídica, “pois o interesse do credor é o
recebimento de seu crédito e não a participação em ou mesmo a venda de quotas
ou ações de uma sociedade a respeito da qual não tem qualquer informação”133.
Continuando sua argumentação em favor da desconsideração ao inverso, Calixto
Salomão Filho afirma que:
“Mesmo o exercício do direito de retirada (dissolução parcial) admitido em alguns casos pela jurisprudência pode não ter qualquer utilidade, caso a sociedade tenha patrimônio líquido negativo. Na verdade, essa constatação contábil nada mais é do que um reflexo da diferença jurídica entre penhora de participação e desconsideração, qual seja, respectivamente, a existência ou não de concorrência com os credores sociais. No caso de penhora de participações, a preferência é dos credores sociais, já que o pagamento dos haveres se fez pela participação proporcional no saldo positivo do patrimônio líquido. "Em primeiro lugar, a desconsideração é mais eficiente para o credor, evitando tanto a demora na avaliação das quotas ou ações como a propositura freqüente de embargos à arrematação que tornam o processo de execução extremamente lento. A penhora de dinheiro (numerário da sociedade) é, por determinação expressa da lei, a única que permite o recebimento do crédito pelo exeqüente imediatamente após o julgamento dos embargos do devedor em primeira instância, mediante prestação de caução idônea (art. 588, II, do CPC). Em todas as outras, o recebimento do crédito deve esperar primeiramente o julgamento final dos embargos do devedor e em seguida todo o procedimento arrematatório. A diferença de tempo, que pode chegar a até cinco anos, acaba por tornar a execução um instrumento a favor da própria inadimplência. A desconsideração é um dos meios de reduzir tal efeito. Os efeitos da aplicação da teoria da desconsideração são benéficos não apenas para o credor. Podem sê-lo também para o devedor. A desconsideração não apenas torna a execução mais efetiva para o credor. Em certos casos, pode fazer com que a execução seja menos gravosa para o devedor. A desconsideração, ao evitar a alienação compulsória das participações, impede a interferência judicial na sociedade, evitando em certos casos a apuração de haveres relativamente às quotas penhoradas e a conseqüente sangria patrimonial da sociedade ou impedindo que os demais
133 COMPARATO, Fabio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 466.
70
sócios se vejam obrigados a adquirir as quotas para impedir a entrada de terceiros adquirentes (caso o estatuto da sociedade preveja qualquer uma das hipóteses)”134
Com efeito, a penhora ou partilha de participação societária não garante ao credor
satisfação de seu crédito ou ao cônjuge o direito de propriedade sobre os bens que
compunham o patrimônio do casal e foram integralizados na sociedade. E como bem
destacou Salomão Filho, a venda da participação penhorada, geralmente, é
extremamente difícil e a dissolução parcial da sociedade pode não ser viável, ante a
constatação de que o seu patrimônio líquido é negativo. Destarte, ainda que cabível,
a penhora ou partilha de participação social não é, muitas vezes, a solução mais
justa ou efetiva, do ponto de vista jurídico-processual.
Nesse sentido, é o entendimento de Correa Oliveira:
“Esgotado o estudo da penetração direta, passa DROBNIG a estudar a penetração invertida, pretendida por credores do sócio de modo a atingir bens da sociedade. Observa que os credores do sócio dispõem de caminho indireto para a satisfação de suas pretensões, podendo através da penhora das quotas sociais (que integram o patrimônio do sócio), provocar a venda judicial das quotas ou até mesmo (pelo menos nos casos de sociedades unipessoais ou e subsidiárias integrais) a liquidação da sociedade. Trata-se, porém, de trajetória demorada, durante a qual o valor do patrimônio social pode diminuir consideravelmente " (...) Entende (a doutrina alemã) não haver nenhum fundamento que leve a negar a possibilidade, em princípio, de uma penetração para fins de responsabilidade em sentido invertido, desde que com os pressupostos e conseqüências da direta, feita apenas uma reserva: esse remédio jurídico extraordinário só será admissível quando a obtenção normal do valor das quotas sociais pertencentes ao sócio, e que garantem primariamente o credor pessoal, seja difícil e ponha em perigo a satisfação da pretensão."135
Para Fábio Ulhoa Coelho, “a fraude que a desconsideração invertida coíbe é,
basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa
134 COMPARATO, Fabio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 466-467. 135 OLIVEIRA, J. Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 341-342.
71
jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los,
apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada”136.
Assim, o interessado na desconsideração inversa da personalidade jurídica seria
sempre um credor ou cônjuge daquele que operou a transferência fraudulenta de
bens.
Contudo, nos Estados Unidos da América, a doutrina tem admitido o pedido de
desconsideração ao inverso por parte do próprio sócio, conforme a lição de Gregory
S. Crespi: “em um pedido de desconsideração inversa, ou um membro da sociedade
ou uma pessoa com pedido contra um membro da sociedade tenta fazer com que o
sócio e a sociedade sejam tratados como uma única pessoa para algum propósito”.
(CRESPI, 1990-1991, p. 36, tradução nossa)137.
Crespi, em seu artigo, propõe uma classificação da teoria da desconsideração
inversa da personalidade jurídica quanto à pessoa que requer a desconsideração e,
portanto, seria beneficiada por ela: a primeira classe, chamada de insider reverse
piercing, engloba os casos em que a desconsideração inversa é requerida pelo
próprio sócio; a segunda classe, chamada de outsider reverse piercing, abriga os
casos em que a desconsideração inversa é requerida por terceiros, geralmente
credores do sócio.
O ponto chave para se diferenciar as duas classes, para Crespi, é:
“a posição da pessoa que requer a desconsideração da personalidade e da parte contrária. Nos pedidos de insider reverse piercing, o sócio controlador (e, indiretamente, a sociedade) busca a desconsideração da personalidade jurídica sob os protestos de um terceiro; nos pedidos de outsider, um terceiro busca a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, sob protestos do sócio e da sociedade.” (CRESPI, 1990-1991, p. 37, tradução nossa).138
136 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa 10ª ed. São Paulo: Saraiva: 2007, p. 46. 137 In a reverse pierce claim, either a corporate insider or a person with a claim against a corporate insider is attempting to have the insider and the corporate entity treated as a single person for some purpose. 138 The relative position of the persons seeking corporate disregard and their opponents. In insider reverse piercing claims, the controlling corporate insider (and, derivatively, the corporation) seek to
72
Um exemplo interessante de insider reverse piercing, citado por Crespi, é o caso
Cargil vs. Hedge, julgado em 1985 pela Suprema Corte do Estado de Minnessota,
nos Estados Unidos da América. No caso em comento, a acionista controladora de
uma companhia requereu a desconsideração inversa da personalidade jurídica da
sociedade por ela controlada para evitar que parte de uma fazenda, que estava
registrada em nome da sociedade, fosse alienada judicialmente para quitar dívidas
da empresa. Isso, porque a residência da acionista controladora estava localizada
exatamente no pedaço da fazenda. Desconsiderando-se a personalidade jurídica da
companhia, seria possível compreender o patrimônio da acionista controladora e da
sociedade como um só, permitindo que fossem aplicadas ao caso as normas sobre
bem de família do estado de Minnessota, evitando-se a venda da casa.139
A Corte deferiu o pedido de desconsideração inversa, destacando que, no caso, o
grau de identidade entre o acionista controlador e a companhia em si era
considerável, de forma que a companhia existia como alter ego da acionista
controladora. Além disso, a Corte destacou que a desconsideração inversa, no caso,
reforçaria a política do estado de proteção do direito à moradia.
No Brasil, situação semelhante à do caso Cargil vs. Hedge talvez não fosse julgada
da mesma forma. Com efeito, o que a corte estadunidense chamou de alto grau de
identidade, aqui poderia ser classificado como confusão patrimonial. Como já visto,
para ensejar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a
confusão patrimonial deve implicar desvio de finalidade da personalidade jurídica,
com prejuízo para um terceiro. No caso em análise, a única prejudicada pela
confusão patrimonial foi a própria acionista controladora. Sendo assim, entendemos
que ela não poderia pedir a desconsideração da personalidade jurídica ao inverso,
com base na confusão patrimonial à qual ela mesma deu causa, sob pena de se
estar admitindo o venire contra factum proprium.
have the corporation disregarded over the objections of a third party; in outsider claims, the third party seeks to have the corporation disregarded over the objections of the insider and the corporation. 139 CRESPI, Gregory S. The Reverse Piercing Doctrine: Applying Appropriate Standards. Journal of Corporation Law. Iowa: v. 33, p. 33-69, 1990-1991, p. 41.
73
Ademais, a desconsideração foi feita em prejuízo do credor da sociedade, o que não
pode ser deixado de lado. O direito à moradia merece proteção ao ponto de se
desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade com base na confusão
patrimonial criada pelo próprio controlador da sociedade e em benefício deste?
Entendemos que não.
Não obstante, não podemos afirmar ser impossível a aplicação da desconsideração
inversa da personalidade jurídica, quando esta for requerida pelo próprio acionista
controlador. Toda afirmativa peremptória em direito é perigosa. Além disso, as
variáveis de um caso concreto são ilimitadas e é certo que, em algum momento,
uma situação em que seria justa a desconsideração inversa da personalidade
jurídica requerida pelo próprio sócio surgirá. Calixto Salomão Filho cita como
exemplo o caso da consolidação do princípio de que os contratos celebrados pelo
sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário em benefício da companhia,
mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte no negócio, obrigam o
patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de fato140.
Isso posto, havemos de concordar, ao menos em parte, com a afirmativa de Fabio
Ulhoa Coelho, no sentido de que a desconsideração inversa da personalidade coíbe
é, basicamente, o desvio de bens e a confusão patrimonial, com abuso da
personalidade jurídica da sociedade.
Finalmente, concluímos que a desconsideração inversa da personalidade jurídica
pode ser aplicada com base nos mesmos critérios da desconsideração tradicional:
diante do abuso do direito à personificação, caracterizado pelo desvio da finalidade
da personalidade jurídica e pela confusão patrimonial e, ainda, em situações de
prática de fraude, por meio do expediente da personalidade jurídica. Em verdade,
em ambos os casos a desconsideração é a mesma. O que ocorre de forma inversa
são suas consequências.
140 COMPARATO, Fábio Konder.SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 464.
74
3.2 – Aplicabilidade
Superados os obstáculos impostos pela doutrina contrária à desconsideração da
personalidade jurídica, resta uma última barreira a ser ultrapassada: a ausência de
previsão legal expressa da desconsideração da personalidade jurídica ao inverso.
Com efeito, conforme já exposto, os dispositivos legais que tratam da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica não preveem expressamente a
possibilidade de aplicação da teoria de forma invertida. O dispositivo de lei mais
utilizado para embasar pedidos de desconsideração da personalidade jurídica, artigo
50 do Código Civil Brasileiro, é expresso no sentido de que a desconsideração é
aplicada para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam
estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Ou seja, a lei é expressa no sentido de que a desconsideração acontece para,
partindo da sociedade, se chegar a seus sócios, seja com intuito patrimonial,
situação mais comum, ou para que, em um determinado caso concreto, seja
relevada a existência autônoma da sociedade em relação ao sócio. Para superar
esta questão, defendemos a interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil
Brasileiro. Segundo Paulo Nader:
“enquanto que o reino da natureza é regido pelo princípio da causalidade, onde os fenômenos são explicados por sua causa, uma vez que há um liame inexorável entre causa e efeito, no mundo da cultura, que é o âmbito da experiência e criatividade humana, onde o Direito se insere, o princípio é o da finalidade.”141
Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “o pressuposto e, ao mesmo tempo, a regra
básica dos métodos teleológicos é de que sempre é possível atribuir-se um propósito
às normas”142. O método teleológico de interpretação das normas jurídicas busca
descobrir o significado destas a partir da finalidade a elas concedida. Por exemplo,
141 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 128. 142 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 291.
75
as normas do Código de Defesa do Consumidor devem ser interpretadas, segundo o
método teleológico, como destinadas à proteção dos consumidores em suas
relações com fornecedores.
Com efeito, o elemento teleológico é um dos fatores-chave do processo de cognição
do Direito, pois o legislador, ao elaborar uma norma, sempre o faz com um
determinado fim em mente. Assim, a interpretação teleológica de uma norma deve
buscar o fim social almejado pelo legislador. Nas palavras de Jean-Louis Bergel, “o
método teleológico fundamentado na análise da finalidade da regra, no seu objetivo
social, faz seu espírito prevalecer sobre sua letra, ainda que sacrificando o sentido
terminológico das palavras”143.
Muitos doutrinadores explicam que a interpretação teleológica procura o “espírito da
lei”, a sua finalidade mais pura. Para Francisco Amaral, a interpretação teleológica
“investiga a finalidade social da lei, isto é, os interesses predominantes ou os valores
que, com ela, se pretende realizar: a justiça, a segurança, o bem comum, a
liberdade, a igualdade, a paz social, como aliás dispõe o art. 5º da Lei de Introdução
ao Código Civil”144.
Na interpretação teleológica, o intérprete adota o método indutivo, partindo do texto
legal até alcançar a idéia-fim, que norteou o legislador na elaboração da lei.
Contudo, o intérprete não pode se prender à realidade social e econômica da época
em que o legislador criou a norma e à situação fática que este imaginava regular
quando da elaboração da lei, sob pena de tornar a interpretação adstrita às fontes
originais utilizadas pelo legislador, e dissociada do contexto e das necessidades
políticas e sociais atuais.
Na lição de Reale, no Direito “o intérprete legal pode avançar mais, dando à lei uma
significação imprevista, completamente diversa da esperada ou querida pelo
143 BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 332, apud NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – parte geral, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 128. 144 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 88.
76
legislador, em virtude de sua correlação com outros dispositivos, ou então pela sua
compreensão à luz de novas valorações emergentes no processo histórico”145.
A vida e a sociedade evoluem cada vez mais rapidamente e, a cada instante,
surgem problemas que os legisladores ainda não cogitaram. Ademais, o processo
legislativo em nosso país é extremamente moroso, fazendo com que situações que
merecem regulamentação legal permaneçam por tempo que ultrapassa o limite do
razoável sem um regramento próprio.
Assim, nesse contexto, os profissionais do direito devem buscar outras formas para
solucionar esses problemas. Uma dessas formas é a interpretação teleológica das
leis já existentes. Como já dito, pela interpretação teleológica deve-se buscar a
finalidade social da norma, ou seja, os interesses que, por meio da norma, o
legislador buscou proteger ou realizar.
Cristiano Chaves de Farias chama a interpretação teleológica de interpretação
sociológica, destacando que o intérprete deve buscar adaptar a lei às exigências
atuais e concretas da sociedade146. Segundo Miguel Reale, “foi o pandectista
Windscheid que colocou o problema da interpretação em termos de intenção
possível do legislador, não no seu tempo, mas sim na época em que se situa o
intérprete”147.
Segundo Maria Helena Diniz, o processo interpretativo teleológico ou sociológico:
“objetiva, como quer Ihering, adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais. Adaptação esta prevista pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. A interpretação, como nos diz Ferrara, não é pura arte dialética, não se desenvolve como método geométrico num círculo de abstrações, mas perscruta as necessidades práticas da vida e a realidade social. O aplicador, nas palavras de Henri de Page, não deverá quedar-se surdo às exigências da vida, porque o fim da norma não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim,
145 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 292. 146 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 51. 147 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 283.
77
manter contato íntimo com ela, segui-la em sua evolução e a ela adaptar-se. Daí resulta, continua ele, que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deve participar, ao interpretar o preceito normativo.”148
Para Reale, “interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na
plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido
de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos
que correspondam àqueles objetivos”149.
Com efeito, o hermeneuta contemporâneo deve, primeiramente, identificar qual a
finalidade social da lei, pois é essa finalidade que possibilita penetrar na estrutura de
seus significados particulares. Segundo Reale:
“Fim da lei é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor. Ora, os valores não se explicam segundo nexos de causalidade, mas só podem ser objeto de um processo compreensivo que ser realiza através do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminando-se e esclarecendo-se reciprocamente, como é próprio do estudo de qualquer estrutura social.”150
A respeito da finalidade da norma, Carlos Maximiliano leciona que:
“O fim inspirou o dispositivo; deve, por isso mesmo, também servir para lhe limitar o conteúdo; retifica e completa os caracteres na hipótese legal e auxilia a precisar quais as espécies que na mesma se enquadram. Fixa o alcance, a possibilidade prática; pois impera a presunção de que o legislador haja pretendido editar um meio razoável, e, entre os meios possíveis, escolhido o mais simples, adequado e eficaz.”151
148 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 435-436. 149 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 289. 150 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 290. 151 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed.Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 152.
78
Em nosso ordenamento jurídico, o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil
contém uma exigência teleológica: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins
sociais do direito e às exigências do bem comum”. Para Ferraz Júnior:
“As expressões ‘fins sociais’ e ‘bem comum’ são entendidas como sínteses éticas da vida em comunidade. Sua menção pressupõe uma unidade de objetivos do comportamento social do homem. Os ‘fins sociais’ são ditos do direito. Postula-se que a ordem jurídica, como um todo, seja sempre um conjunto de preceitos para a realização da sociabilidade humana. Faz-se mister assim encontrar nas leis, nas constituições, nos decretos, em todas as manifestações normativas o seu telos (fim) que não pode jamais ser anti-social. Já o ‘bem comum’ postula uma exigência que se faz à própria sociabilidade. Isto é, não se trata de um fim do direito mas da própria vida social.”152
A respeito da interpretação teleológica da norma, Miguel Reale leciona que:
“A compreensão finalística da lei, ou seja, a interpretação teleológica veio se afirmando, desde as contribuições fundamentais de Rudolf von Jhering, sobretudo em sua obra O fim no Direito. Atualmente, porém, após os estudos de teoria do valor e da cultura, dispomos de conhecimento bem mais seguro sobre a estrutura das regras de direito, sobre o papel que o valor nela representa: o fim, que Jhering reduzia a uma forma de interesse, é visto antes como o sentido do valor reconhecido racionalmente enquanto motivo determinante da ação.”153
Para Carlos Maximiliano, “considera-se o Direito como uma ciência primariamente
normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência,
teleológica”154. Segundo o mencionado autor:
“O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda
152 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 292. 153 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 290. 154 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed.Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 151.
79
àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida.”155
Vale lembrar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem origem
jurisprudencial, e mesmo nos sistemas jurídicos da civil law, foi aplicada pelo
tribunais antes de ser efetivamente positivada. A teoria da desconsideração não foi
fruto da epifania de um jurista. Pelo contrário, a idéia surgiu da pura necessidade de
um remédio, de uma solução para as injustiças cometidas com abuso da pessoa
jurídica. E a história se repete com relação a sua aplicação na forma inversa.
Aliás, a positivação da teoria somente se faz necessária para que sejam traçadas as
bases ou linhas gerais da teoria, bem como alguns critérios para sua aplicação,
trazendo maior segurança jurídica ao nosso ordenamento. A positivação tem sido
apontada como uma solução para evitar decisões subjetivas e arbitrárias no sistema
da common law. Nesse sentido, é a lição de Michala Rudorfer:
“No contexto da desconsideração da personalidade, a common law pode não ser o sistema prevalecente. As cortes escondem as verdadeiras razões das decisões que desconsideram a personalidade jurídica e preferem confinar a si mesmas em uma descrição metafórica do fim alcançado. Além disso, casos de desconsideração da personalidade jurídica estão amplamente espalhados pelo país. Consequentemente, um juiz que se vê diante de um pedido de desconsideração, frequentemente, não teve prévia oportunidade para ganhar experiência a respeito do tema. (...) É por isso que uma solução legislativa é considerada. Nesse regime, a lei iria definir regras precisas para a desconsideração, antes do caso concreto. Após um custoso processo legislativo, a previsibilidade e certeza do conceito de desconsideração aumentaria.” (RUDORFER, 2006, p. 21-22, tradução nossa).156
155 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed.Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 152. 156 In the context of veil-piercing, common law might not be the prevailing system. Courts conceal the real reasons for their piercing decisions and rather confine themselves to a description of the reached outcome with metaphors. In addition, piercing cases are widely spread over the country. Consequently, a judge who is confronted with a veil-piercing action often does not have the prior opportunity to gain much experience in this subject. (…)That’s why a statutory solution is considered. In such a regime, the legislature would define precise veil-piercing rules before the fact. After a costly legislation process, the predictability and certainty of the piercing concept would be increased.
80
Enfim, a finalidade do art. 50 do Código Civil Brasileiro, que trata da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica é sancionar os abusos e ilicitudes que se
valem da personalidade jurídica de uma pessoa jurídica, combatendo sua utilização
indevida. Com efeito, o fim sociológico da norma é proteger o importantíssimo
instituto da pessoa jurídica, do ente social dotado de personalidade, especialmente
quando se trata de uma sociedade com responsabilidade limitada dos sócios.
Compartilha esse entendimento a Ministra do Superior Tribunal de Justiça Fátima
Nancy Andrigh, conforme se extrai do excerto do voto proferido nos autos do recurso
especial nº 948.117-MS, abaixo transcrito:
“Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal.”157
Conforme os ensinamentos de Carlos Maximiliano, “muitas vezes, o próprio
dispositivo, intencionalmente ou não, vai além, ou se detém aquém do fim para que
foi promulgado”158. No nosso entendimento, a redação do artigo 50 do Código Civil
Brasileiro está aquém da finalidade da norma, pois não contemplou a aplicação
inversa da teoria da desconsideração.
Contudo, esse fato não pode ser imposto como óbice à aplicação da teoria da
desconsideração de forma reversa, sob pena de se violar a própria finalidade da
norma, qual seja coibir o abuso do direito à personificação e proteger o instituto
jurídico da pessoa jurídica, evitando que se torne um instrumento para a prática de
ilicitudes.
157 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117-MS. Processual civil e civil. Recurso Especial. Execução de título judicial. Art. 50 do CC/02. Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Possibilidade. Recorrente: Carlos Alberto Tavares da Silva. Recorrido: Francisco Alves Correa Neto. Relatora: Min. Fátima Nancy Andrighi. Brasília, 03 ago. 2010. 158 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed.Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 155.
81
Consta da exposição de motivos do projeto de lei que se tornou a Lei nº 10.406 de
2002, redigida por Miguel Reale, que os juristas que trabalharam na elaboração do
projeto procuraram acolher os modelos jurídicos validamente elaborados pela
jurisprudência construtiva de nossos tribunais, mas fixar normas para superar certas
situações conflitivas, que de longa data comprometiam a unidade e a coerência de
nossa vida jurídica159.
Dentre esses modelos jurídicos elaborados pela jurisprudência, com certeza estava
a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Na exposição de motivos, ao
discorrer sobre a parte geral do atual Código Civil, Miguel Reale destacou que:
“Tratamento novo foi dado ao tema pessoas jurídicas, um dos pontos em que o Código Civil atual se revela lacunoso e vacilante. Fundamental, por sua repercussão em todo sistema, é uma precisa distinção entre as pessoas jurídicas de fins não econômicos (associações e fundações) e as de escopo econômico (sociedade simples e sociedade empresária), aplicando-se a estas, no que couber, as disposições concernentes às associações. Revisto também foi todo capítulo relativo às fundações, restringindo-se sua destinação a fins religiosos, morais, culturais, ou de assistência. Daí as regras disciplinadoras da vida associativa em geral, com disposições especiais sobre as causas e a forma de exclusão de associados, bem como quanto à repressão do uso indevido da personalidade jurídica, quando esta for desviada de seus objetivos sócio-econômicos para a prática de atos ilícitos, ou abusivos.”160
Percebe-se que, já em seu nascedouro, a finalidade do artigo 50 do Código Civil
Brasileiro era reprimir o uso indevido da personalidade jurídica, quando esta for
desviada de seus objetivos socioeconômicos para a prática de atos ilícitos ou
abusivos. Sendo assim, a interpretação teleológica do artigo 50, torna possível a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa,
e faz com que a norma efetivamente atinja os fins para os quais existe.
159 BRASIL. Novo Código Civil: exposição de motivos e texto sancionado. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005, p. 26. Disponível em: <www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/70319>. Acesso em: 07 set. 2010. 160 BRASIL. Novo Código Civil: exposição de motivos e texto sancionado. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005, p. 37. Disponível em: <www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/70319>. Acesso em: 07 set. 2010.
82
Finalmente, vale destacar que o anteprojeto do novo Código de Processo Civil
possui um capítulo dedicado ao “Incidente de Desconsideração da Personalidade
Jurídica”. São quatro artigos dedicados a regular o procedimento para a aplicação
teoria da desconsideração da personalidade jurídica pelos magistrados. Vejamos o
texto desses dispositivos:
Art. 62. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica. Art. 63. A desconsideração da personalidade jurídica obedecerá ao procedimento previsto nesta Seção. Parágrafo único. O procedimento desta Seção é aplicável também nos casos em que a desconsideração é requerida em virtude de abuso de direito por parte do sócio. Art. 64. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis. Art. 65. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.161
O que mais nos chama atenção na redação dos dispositivos é que, apesar de o
artigo 62 fazer remissão expressa à legislação civil no tocante à caracterização do
abuso de direito, o parágrafo único do artigo 63 dispõe que o procedimento para
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica também é aplicável nos
casos em que a desconsideração é requerida em virtude de abuso de direito por
parte do sócio.
161 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em: 07 set. 2010.
83
Ou seja, os elaboradores do anteprojeto do novo Código de Processo Civil
reconheceram expressamente à possibilidade se desconsiderar a personalidade
jurídica de uma sociedade de forma inversa, reconhecendo que a finalidade da
norma é coibir o abuso do direito à personificação.
3.3 – Análise de Casos
Para melhor compreendermos a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
aplicada de maneira inversa, faremos a seguir uma análise de casos concretos
julgados pelos tribunais pátrios, nos quais foi aplicada a desconsideração ao inverso.
Consideramos o estudo de casos extremamente enriquecedor, lembrando que a
teoria da desconsideração é criação da jurisprudência, em sua incansável busca
pela justiça.
3.3.1 – Caso Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados vs. Carlos Alberto de Oliveira Andrade (CAOA)
O Caso Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados contra Carlos Alberto de Oliveira
Andrade (CAOA) foi julgado pela 29ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, em 26 de novembro de 2008. O acórdão, de lavra do Relator Des.
Pereira Calças, foi brilhantemente fundamentado, em 52 laudas, para determinar a
desconsideração inversa da personalidade jurídica de duas sociedades, de forma
que o patrimônio dessas respondesse por dívidas de seu sócio controlador.
Trata-se de ação de cobrança movida pela Manuel Alceu Affonso Ferreira
Advogados contra Carlos Alberto de Oliveira Andrade. Este último contratou a
sociedade de advogados para prestar-lhe serviços da advocacia, defendendo seus
direitos e interesses particulares em ações judiciais. Após vários anos de prestação
84
de serviços, Carlos rescindiu o contrato, mas não pagou os honorários advocatícios
avençados, o que levou a sociedade de advogados a ajuizar a ação de cobrança.
A referida ação foi julgada procedente, condenando Carlos ao pagamento dos
honorários advocatícios. Apesar da condenação, Carlos não efetuou o pagamento
espontaneamente. Assim, a Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados, em 12 de
novembro de 2007, deu início ao procedimento de execução de sentença,
objetivando o recebimento de R$ 613.409,75 (seiscentos e treze mil, quatrocentos e
nove reais e setenta e cinco centavos).
A exequente, sociedade de advogados, requereu a penhora eletrônica da quantia
nas contas bancárias e aplicações financeiras eventualmente existentes em nome
do executado, Carlos, por meio do sistema Bacen-Jud. Contudo, o Banco Central
informou que não havia qualquer numerário em contas bancárias ou contas de
investimento em nome do executado.
Com efeito, esta situação poderia até ser considerada comum, fosse o executado
outra pessoa. É que Carlos Alberto de Oliveira Andrade é um dos maiores
empresários do setor automobilístico do Brasil, conhecido como o “Henry Ford
brasileiro” e publicamente reconhecido como o milionário dono da fábrica e
distribuidora dos veículos da marca Hyunday no Brasil. Apesar de não ser ilegal em
nosso país não manter dinheiro ou aplicações financeiras em instituições financeiras,
causa estranheza um notório milionário não possuir um real que seja em algum
banco.
Diante dessa situação, a Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados requereu a
desconsideração inversa da personalidade jurídica das sociedades que compunham
o grupo Hyunday do Brasil: a Hyunday Caoa do Brasil Ltda. e a Caoa Montadora de
Veículos S/A, de propriedade e controle absoluto do executado.
Na fundamentação de seu pleito, a exeqüente asseverou que havia confusão
patrimonial entre o executado e as sociedades das quais era sócio e controlador
absoluto, destacando que:
85
“De uma de suas empresas, a Hyundai Caoa do Brasil Ltda. (Av. Ibirapuera n° 2822, 1° andar), de expressivo capital (R$ 150.000.000,00) por ele praticamente sozinho titulado (R$ 149.999.999,00), recentemente o Executado "retirou-se" (não obstante a permanência de sua mulher, d. Izabela Molon Luchesi de Oliveira Andrade), sendo ali sucedido pela CAOA FAMILY PARTICIPAÇÕES S/A, significativamente com endereço idêntico, distanciado por apenas um andar (Av. Ibirapuera n° 2822, 2o andar), tudo portanto a evidenciar que o Executado CARLOS ALBERTO DE OLIVEIRA ANDRADE - ou, preferindo V. Exa., o "senhor Caoa" ou "Henry Ford brasileiro" (does. 3 e 4) - é o real detentor e 'dominus negotii' da sociedade, absoluto e pleno". "Tão significante quanto é o que ocorre com a CAOA MONTADORA DE VEÍCULOS S/A, sediada em Anápolis, Estado de Goiás, de sócios "não cadastrados", entretanto com escritório, nesta Comarca, no mesmo notório endereço (o da Avenida Ibirapuera n° 2.822, 1o
andar, Doc. 8, o mesmo pavimento predial que também abriga, como acima visto, a já citada HYUNDAI CAOA DO BRASIL LTDA.), e da qual o Executado é o Diretor-Presidente, a revelar, uma vez mais, o abissal controle que detém sobre a sociedade e suas coligadas." 162
O Juiz de primeiro grau indeferiu o pedido de desconsideração inversa, por entender
que:
162 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 1.198.103–0/00. Agravo de Instrumento. Cumprimento de sentença condenatória. Deferimento de penhora "on line" de numerário existente em contas bancárias/aplicações do devedor. Frustração da penhora em face da informação da inexistência de saldo nas contas bancárias. Devedor é sócio controlador de sociedades empresárias e considerado o maior revendedor de veículos da América Latina. Pedido de aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica para que a penhora recaia em saldos bancários das sociedades empresárias controladas pelo devedor. Indeferimento pelo juiz de primeiro grau. Reconhecimento da possibilidade de se declarar a desconsideração da personalidade jurídica incidentalmente na fase de execução da sentença, não se exigindo ação autônoma, mas, observando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Prova de que o sócio devedor é, em rigor, “dono” da sociedade anônima fechada, das quais é o presidente, controlador de fato, e, apesar da participação minoritária de sua esposa, ficam elas caracterizadas como autênticas sociedades unipessoais. Confusão patrimonial entre sócio e sociedades comprovada. Patrimônio particular do sócio controlador constituído de bens que, na prática, mesmo que penhorados, não seriam convertidos em pecúnia para satisfação do credor. Oferecimento de bens imóveis à penhora, que, por se situarem no Estado da Paraíba, distantes mais de 2.600 km de São Paulo, onde tramita a execução, com nítido escopo de se opor maliciosamente à execução, empregando ardis procrastinatórios, que configura ato atentatório contra a dignidade da justiça. Agravo provido, para deferir a desconsideração inversa da personalidade jurídica das sociedades empresárias indicas (Limitada e S/A fechada), autorizada a penhora virtual de saldos de contas bancárias. Agravante: Manoel Alceu Affonso Ferreira Advogados. Agravado: Carlos Alberto Oliveira Andrade. Relator: Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. São Paulo, 10 dez. 2008.
86
“... a Lei brasileira apenas permite a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC/2002, e art. 28, CDC) e por ser regra cunhada deve ter interpretação restritiva que, por óbvio, não permite sua utilização de forma inversa, para afastar a personalidade da pessoa física para estender efeitos e obrigações contratuais para pessoa jurídica.”163
Inconformada com a decisão acima citada, a Manuel Alceu Affonso Ferreira
Advogados recorreu ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que proveu o
recurso, determinando a desconsideração inversa da personalidade jurídica das
sociedades, de forma que o patrimônio dessas respondesse pela dívida do sócio.
Sendo assim, vejamos quais foram os fundamentos utilizados pelo Tribunal paulista
para aplicar a desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Quanto à ausência de dispositivo legal que preveja expressamente a possibilidade
de se desconsiderar de maneira inversa a personalidade jurídica de uma sociedade,
o aresto não analisou a questão em profundidade, limitando-se a destacar que a
doutrina e jurisprudência já vinham aceitando e aplicando a teoria inversa, com base
no art. 50 do Código Civil Brasileiro e nos princípios que vedam o abuso do direito e
da fraude contra credores.
Com relação aos requisitos legais ensejadores da desconsideração da
personalidade jurídica, o douto desembargador relator do acórdão em análise
entendeu estarem presentes no caso fortes evidências de confusão patrimonial, o
que autorizaria a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades,
inclusive de maneira inversa.
O julgador destacou que as provas constantes dos autos eram seguras no sentido
de demonstrar que as sociedades Hyunday Caoa do Brasil Ltda. e Caoa Montadora
de Veículos S/A eram de propriedade de Carlos Alberto de Oliveira Andrade, cujas
iniciais compõe a sigla “CAOA”, que consta da denominação de todas as suas
sociedades. Destacou, ainda, que diversos veículos da marca Hyunday, espalhados
por todo o país, possuem a sigla CAOA em sua carroceria.
163 Idem.
87
Ademais, Carlos Alberto de Oliveira Andrade era Diretor Presidente da sociedade
Hyunday Caoa do Brasil Ltda. Esta mesma sociedade, cujo capital social era de R$
150.000.000,00 (cento e cinqüenta milhões de reais), tinha como sócios o próprio
Carlos Alberto de Oliveira Andrade, com 135.000.000 de quotas, e sua esposa,
Izabela Molon Luchési de Oliveira Andrade, com 15.000.000 de quotas.
Posteriormente, o contrato social da referida sociedade foi alterado, com a retirada
de Carlos e a admissão da sociedade Caoa Family Participações S/A, que passou a
ser detentora de 149.999.999 quotas, permanecendo no quadro social a esposa de
Carlos, com apenas uma quota, e na administração da sociedade o próprio Carlos.
O douto desembargador relator do acórdão ressaltou que era:
“Impossível não consignar que a retirada de Carlos Alberto de Oliveira Andrade da sociedade, sendo substituído pela sociedade que tem a sugestiva denominação "Caoa Family" com 149.999.999 cotas e a participarão da esposa do senhor CAOA, que, obviamente, pertence à “Caoa Family", com apenas 1 cota, confere à referida sociedade a natureza de sociedade unipessoal, sendo este o expediente utilizado por aqueles que se dedicam ao ramo da "blindagem patrimonial de empresas" para atingir seus objetivos escusos.”164
Com relação à outra sociedade, a Caoa Montadora de Veículos S/A, consta no
acórdão que seus sócios eram Carlos, com 135.000.000 de ações, sua esposa,
Izabela, com 15.000.000 de ações e a sociedade panamenha C.A. de Oliveira
Andrade, Comércio Importação e Exportação S/A, com 2.327.600 ações. Ressaltou,
ainda, que Carlos era o representante legal da Caoa Montadora de Veículos S/A e
da sociedade panamenha.
Destarte, para o relator do acórdão em análise, o quadro societário das empresas do
grupo CAOA, acima exposto, demonstrava claramente que todas as sociedades
tinham natureza de sociedades unipessoais.
164 Idem.
88
O relator do julgado destacou que não constava na declaração de imposto de renda
do executado, um dos maiores revendedores de carro do país, um só veículo. Além
disso, suas contas encontravam-se zeradas. Logo, para o Tribunal de Justiça de São
Paulo, “exsurge evidente que, na condição de "dono" ou "sócio de fato" ou
"controlador" das sociedades, retira da caixa das empresas, mediante expedientes
lícitos ou ilícitos, formais ou informais, o necessário para sua manutenção e de sua
família (CAOA FAMILY)”165.
Nas palavras do relator:
“Nada impede que, como Diretor-Presidente das referidas sociedades, que, obviamente, dirige como senhor de baraço e cutelo, possa viajar com passagens adquiridas em nome das empresas, freqüentar restaurantes e hotéis, usando o cartão corporativo da companhia ou da sociedade limitada, utilizar veículos (automóveis, aviões, helicópteros) registrados em nome das empresas, enfim, "pode tudo", não precisando, efetivamente, ter dinheiro de contado no bolso, nem um centavo em suas contas bancárias pessoais.”166
Assim, pelos fatos acima expostos, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu
estar comprovada a confusão patrimonial, autorizadora da desconsideração inversa
da personalidade jurídica. É interessante destacar que o Tribunal paulista afastou a
assertiva de que a desconsideração inversa só pode ser aplicada ante a prova da
transferência de bens do sócio para a sociedade. A nosso sentir, o entendimento do
TJSP foi acertado pois, de fato, a desconsideração inversa exige os mesmos
requisitos ou critérios necessários para a desconsideração tradicional e não pode ser
restringida aos casos de transferência fraudulenta de bens.
Outro fato peculiar no caso em análise é que o executado Carlos Alberto de Oliveira
Andrade não se encontrava em estado de insolvência e chegou a oferecer bens
imóveis à penhora. Não obstante, o TJSP deu preferência à desconsideração
inversa da personalidade jurídica das sociedades e penhora eletrônica de dinheiro
em conta bancária. Com efeito, segundo a declaração de imposto de renda juntada
165 Idem. 166 Idem.
89
aos autos, o patrimônio de Carlos era constituído de diversos bens imóveis, linhas
telefônicas e participações societárias.
Para justificar tal posicionamento, o relator destacou que dos bens constantes da
declaração de imposto de renda de Carlos, um imóvel estava onerado com diversas
hipotecas; que quanto aos demais bens imóveis, Carlos era proprietário de frações
ideais (condômino), e que estes estavam situados em outras comarcas, algumas
longínquas (PE e PB); que linhas telefônicas não possuem valor de mercado; e que
participações societárias em sociedades limitadas ou anônimas, cujo controle
absoluto está na mão de uma só pessoa, jamais atrairiam interessados em adquiri-
las.
E asseverou que o processo de execução não pode ser conduzido em interesse
contrário ao do credor, sendo vedado ao executado utilizar-se de meios ardilosos
para se opor à execução, conforme se extrai do disposto nos artigos 612 e 600,
inciso II, do Código de Processo Civil.
Sendo assim, o julgado analisado demonstra que a jurisprudência pátria avança no
sentido de admitir a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica de maneira inversa, exigindo para tanto os mesmos critérios da
desconsideração tradicional: a prática de fraude utilizando-se do expediente da
pessoa jurídica e o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade e pela confusão patrimonial.
3.3.2 – Caso Francisco Alves Ferreira Neto vs. Carlos Alberto Tavares da Silva
O caso Francisco Alves Ferreira Neto contra Carlos Alberto Tavares Silva foi julgado
pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 22 de junho de 2010. Trata-
se de ação de execução movida por Francisco contra Carlos, pleiteando o
recebimento de R$ 18.990,00 (dezoito mil, novecentos e noventa reais) – valor da
dívida em 1995, relativo à condenação imposta em prévia ação de cobrança.
90
Durante o curso da ação de execução, o exequente, Francisco, verificou que o
executado, Carlo Alberto, não possuía bens em seu nome, a não ser as quotas da
sociedade TZ Leilões Rurais e Comércio de Carnes Ltda. Diante dessa situação, o
exequente requereu a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, de
forma inversa, para que seu patrimônio respondesse pela dívida de seu sócio,
Carlos Alberto.
Para fundamentar seu requerimento, Francisco alegou que a sociedade era utilizada
pelo executado como “escudo” de seu patrimônio pessoal e comprovou os seguintes
fatos: a sociedade tinha como únicos sócios o executado e sua esposa; o capital
social da sociedade era de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); a sociedade era
proprietária de um veículo automotor de alto valor comercial; o referido veículo era
utilizado apenas pelo executado, inclusive para fins particulares, estranhos ao objeto
social;
O juiz de primeiro grau entendeu que as provas produzidas demonstravam a
intenção do executado em lesar terceiros, bem como a existência de confusão
patrimonial, situações que autorizavam, no caso, a desconsideração inversa da
personalidade jurídica da TZ Leilões Rurais e Comércio de Carnes Ltda. Assim,
decretou-se a desconsideração ao inverso da personalidade jurídica da referida
sociedade e a penhora do veículo que compunha seu patrimônio.
Inconformado com a decisão do juiz de primeiro grau, o executado recorreu. Não
obstante, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manteve a decisão recorrida,
negando provimento ao recurso e destacando que:
“É possível aplicar a regra da desconsideração da personalidade jurídica na forma inversa quando haja a evidência de que o devedor se vale da empresa ou sociedade à qual pertence, para ocultar bens que, se estivessem em nome da pessoa física, seriam passíveis de penhora.”167
167 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117-MS. Processual civil e civil. Recurso Especial. Execução de título judicial. Art. 50 do CC/02. Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Possibilidade. Recorrente: Carlos Alberto Tavares da Silva. Recorrido: Francisco Alves Correa Neto. Relatora: Min. Fátima Nancy Andrighi. Brasília, 03 ago. 2010.
91
Contra o acórdão proferido pelo TJMS, o executado Carlos Alberto aviou recurso
especial, ao qual a Terceira Turma do STJ negou provimento, acolhendo as razões
expostas no brilhante voto proferido pela relatora Ministra Fátima Nancy Andrigh.
Com efeito, Carlos Alberto sustentou nas razões de seu recurso especial que o
acórdão do TJMS teria violado o art. 50 do Código Civil Brasileiro, uma vez que o
referido dispositivo legal não traz previsão expressa da desconsideração da
personalidade jurídica inversa.
Em seu voto, a Ministra Nancy Andrigh asseverou que:
“Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal. A interpretação literal do art. 50 do CC/02, de que esse preceito de lei somente serviria para atingir bens dos sócios em razão de dívidas da sociedade e não o inverso, não deve prevalecer. Há de se realizar uma exegese teleológica, finalística desse dispositivo, perquirindo os reais objetivos vislumbrados pelo legislador.”168
É cediço que a finalidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é
combater a utilização indevida da pessoa jurídica, do ente societário dotado de
personalidade jurídica, evitando-se o desvio da finalidade desse instituto tão caro ao
nosso ordenamento jurídico e sistema político-econômico.
Como bem salientou a Ministra Nancy Andrigh:
168BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117-MS. Processual civil e civil. Recurso Especial. Execução de título judicial. Art. 50 do CC/02. Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Possibilidade. Recorrente: Carlos Alberto Tavares da Silva. Recorrido: Francisco Alves Correa Neto. Relatora: Min. Fátima Nancy Andrighi. Brasília, 03 ago. 2010.
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“A utilização indevida da personalidade jurídica da empresa pode, outrossim, compreender tanto a hipótese de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, quanto no caso de ele esvaziar o seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integralizar na pessoa jurídica, ou seja, transferir seus bens ao ente societário, de modo a ocultá-los de terceiros.”169
Assim, com base na interpretação teleológica do art. 50 do Código Civil Brasileiro, a
Min. Nancy Andrigh entendeu ser possível a aplicação da teoria da desconsideração
inversa da personalidade jurídica, afastando o argumento de ausência de previsão
legal expressa nesse sentido. Não bastasse isso, a relatora destacou que, mesmo
afastando-se da interpretação teleológica do art. 50 do Código Civil Brasileiro, a
aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica se justificaria:
“Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02 sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos a própria disregard doctrine , que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores. Outro não era o fundamento usado pelos nossos Tribunais para justificar a desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, quando, antes do advento do CC/02, não podiam se valer da regra contida no art. 50 do diploma atual. Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes: REsp 86.502/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 26.08.1996 e REsp 158.051/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 12.04.1999.”170
O acórdão em comento destacou que a desconsideração da personalidade jurídica,
ainda que aplicada de forma inversa, é medida extrema, que exige cuidado e estrita
observância dos critérios legais. E fez menção à decisão proferia pelo Juiz de
primeiro grau, que em sua minuciosa fundamentação, apontou com clareza a
169 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117-MS. Processual civil e civil. Recurso Especial. Execução de título judicial. Art. 50 do CC/02. Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Possibilidade. Recorrente: Carlos Alberto Tavares da Silva. Recorrido: Francisco Alves Correa Neto. Relatora: Min. Fátima Nancy Andrighi. Brasília, 03 ago. 2010. 170 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117-MS. Processual civil e civil. Recurso Especial. Execução de título judicial. Art. 50 do CC/02. Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Possibilidade. Recorrente: Carlos Alberto Tavares da Silva. Recorrido: Francisco Alves Correa Neto. Relatora: Min. Fátima Nancy Andrighi. Brasília, 03 ago. 2010.
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ocorrência de confusão patrimonial e abuso do direito por parte do executado Carlos
Alberto, conforme se extrai do excerto a seguir transcrito:
“O resultado da pesquisa realizada pelo exequente consta dos documentos de f. 364-419: certidões negativas de existência de bens; contrato de constituição da empresa TZ Leilões Rurais Ltda., que tem como sócio majoritário o exequente, a outra sócia é a sua esposa, sendo o capital social de cinco mil reais; bem registrado em nome da empresa TZ Leilões Rurais: camionete Nissan Frontier 4X2 SE. Pela análise das fotografias anexadas, percebe-se que o veículo não possui qualquer identificação da empresa e está sendo utilizado de forma particular: buscar o filho na escola e para passeios e compras, permanecendo o veículo em sua residência. O exequente juntou ainda cópia da decisão proferida em outro processo, que considerou fraudulenta a alienação pelo executado de um veículo Ford Ranger, bem como julgados dos tribunais a respeito da matéria. (...) Fora identificada infração à lei – constatada pela composição de sociedade, que tem como sócios o executado e sua esposa; pelo capital de apenas 5 mil reais; pelo veículo de alto valor comercial que se encontra em nome da sociedade, porém, utilizado apenas pelo executado para fins articulares, bem como lesão ao direito de terceiros, no caso, o exequente, por penhoráveis em nome do executado. Como, na verdade, a personalidade jurídica está atualmente servindo como um escudo para a defesa do executado frente à execução que lhe é movida, tenho-a como descaracterizada, confundindo-se, assim o patrimônio da sociedade com os bens pessoais do executado, sócio majoritário.”171
Sendo assim, interpretando teologicamente o artigo 50 do Código Civil Brasileiro, e
verificando a prova dos requisitos legais para a desconsideração da personalidade
jurídica, o STJ posicionou-se, no caso em comento, favoravelmente à teoria da
desconsideração inversa da personalidade jurídica, abrindo forte precedente para as
demais cortes nacionais.
171 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117-MS. Processual civil e civil. Recurso Especial. Execução de título judicial. Art. 50 do CC/02. Desconsideração da personalidade jurídica inversa. Possibilidade. Recorrente: Carlos Alberto Tavares da Silva. Recorrido: Francisco Alves Correa Neto. Relatora: Min. Fátima Nancy Andrighi. Brasília, 03 ago. 2010.
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Conclusão
Qualquer pessoa (natural) pode exercer atividade econômica sem maiores
dificuldades ou entraves burocráticos. Tanto que existe em nosso ordenamento
jurídico a figura do empresário individual. Entretanto, a partir do momento em que
esta atividade ganha volume, aumentando a complexidade da gestão, exigindo
investimentos financeiros mais expressivos, e mais pessoas para desenvolver os
trabalhos, surge a necessidade de agrupamento de esforços e investimentos de
várias pessoas para que a atividade continue a ser exercida de forma exitosa e
eficiente.
O Direito nos propicia diversas formas jurídicas de promover ou formalizar a união
dos esforços de várias pessoas para um determinado fim comum. Uma das mais
importantes dessas formas jurídicas é a sociedade. Com efeito, a sociedade é um
fenômeno sociológico que teve de ser abraçado pelo Direito e ganhou suma
importância na era atual, mormente naqueles países que adotam o sistema
capitalista, apoiado na liberdade e na livre iniciativa.
A sociedade é hoje imprescindível para a nossa cultura. Por meio das sociedades
desenvolvem-se novos negócios, novos empreendimentos, que por sua vez
possibilitam e promovem o desenvolvimento do conhecimento, a produção e
circulação de riquezas, a geração de empregos. Prova disso é a consagração do
princípio da preservação da empresa, que nada mais é do que o reconhecimento do
relevante papel das sociedades empresárias em nossa sociedade, o qual em
determinadas situações torna a preservação da sociedade e a manutenção da
atividade por ela desenvolvida um interesse do povo.
Além disso, a possibilidade de limitação da responsabilidade dos sócios de uma
sociedade serve de estímulo para a assunção de riscos e para o empreendedorismo
por parte dos cidadãos. Ademais, o reconhecimento das pessoas jurídicas, dentre
elas as sociedades, como realidade social, atribuindo-lhes personalidade jurídica e
autonomia patrimonial e existencial, trouxe maior segurança jurídica para nosso
ordenamento.
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A despeito da importância socioeconômica das sociedades e das pessoas jurídicas
em geral, algumas pessoas sempre procuram nas leis e nos institutos jurídicos um
meio de auferir vantagens, ainda que de forma indevida ou ilegítima. E não é
diferente com as sociedades.
Criadas como meio para se atingir fins maiores, para se desenvolver atividade
econômica, de forma organizada, por meio da união de esforços de vários
indivíduos, objetivando a geração de riquezas, as sociedades viram sua finalidade
ser desviada por pessoas com objetivos escusos e antijurídicos.
Uns viram na existência autônoma da sociedade, distinta da pessoa de seus sócios,
uma oportunidade para fraudar a lei, fraudar contratos, enganar terceiros, credores
ou cônjuges, desviando completamente o instituto jurídico da pessoa jurídica, dotada
de personalidade jurídica, dos fins políticos, sociais e legais a ele atribuídos.
Outros enxergaram na autonomia patrimonial e na limitação de responsabilidade dos
sócios, possível em alguns tipos societários, como por exemplo a sociedade
limitada, um instrumento perfeito para a prática de atos ilícitos, abusivos e
antijurídicos. Por meio da sociedade seria possível assumir obrigações e não ser
responsabilizado por seu inadimplemento. Por meio da sociedade seria possível
esconder seu patrimônio pessoal de credores ou do cônjuge. Pela autonomia
patrimonial da sociedade seria possível impedir a penhora e a alienação judicial de
determinado bem mediante a celebração de um singelo e fraudulento negócio
jurídico para sua transferência a outrem.
E, de fato, inúmeras injustiças foram praticadas com abuso do direito à
personificação, com abuso da personalidade jurídica. E, por anos, os tribunais em
diversos ordenamentos jurídicos toleraram a prática desses abusos, sob o corolário
de que a autonomia da pessoa jurídica e a sua existência distinta da pessoa de seus
sócios eram regras instransponíveis, imutáveis e inafastáveis.
96
Como ciência social, o Direito não poderia ficar inerte diante dos abusos que eram
cometidos. E, de fato, os juristas, advogados, magistrados e demais profissionais da
área se insurgiram contra a concepção absoluta da pessoa jurídica, como ente
dotado de personalidade jurídica e com existência e patrimônio autônomo e distinto
de seus sócios.
Na busca de um meio para combater esses abusos cometidos sob o véu da pessoa
jurídica, os juristas criaram a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Com efeito, a teoria da desconsideração estabelece que, em determinadas
situações, comprovado o abuso do direito, seria possível ao juiz ignorar a
personalidade jurídica da sociedade, levantando o véu social, para que
determinadas obrigações sociais fossem imputadas aos sócios, e para que o
patrimônio destes fosse responsável pelo adimplemento dessas obrigações.
Em outras situações, a teoria da desconsideração permite ao juiz superar a
personalidade jurídica da sociedade para que, no caso concreto, seja considerada a
pessoa do sócio e não a sociedade. É claro que, quando do seu surgimento, esta
teoria enfrentou muita resistência por parte dos tribunais.
Contudo, hodiernamente, a teoria é amplamente aplicada em todo o território
nacional e está prevista em vários dispositivos legais. Aliás, a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica é conhecida e aplicada em diversos
ordenamentos jurídicos, sejam eles sistemas da civil law ou da common law.
A teoria da desconsideração é reconhecidamente uma forma de coibir e combater os
abusos cometidos com uso do expediente da pessoa jurídica, desviando este
instituto jurídico dos fins a ele atribuídos pelo legislador. Apesar de ser uma teoria
jurídica com origem jurisprudencial e, inevitavelmente, ligada às particularidades de
cada caso concreto, características que acabam dificultando a sua sistematização e
positivação, sua aceitação pelos tribunais pátrios é pacífica.
Não devemos nos olvidar de que a atribuição de direitos e obrigações a uma
sociedade, pessoa jurídica, nada mais é do que uma disciplina dos efeitos de atos
97
humanos em que o sujeito não é o agente. As relações jurídicas em que é parte uma
sociedade não deixam de, em última instância, ser relações entre homens atinentes
a interesses também humanos, na medida em que, normalmente, o interesse dos
sócios corresponde ao interesse social.
Assim, nesse contexto, surgiram novas formas concretas de utilização abusiva da
personalidade jurídica das sociedades, com o mesmo propósito ilícito e com o desvio
da finalidade deste importante instituto jurídico. Essas situações fizeram com que a
doutrina cogitasse a aplicação da teoria da desconsideração nesses casos.
Contudo, para que o resultado justo fosse encontrado, seria necessário inverter as
consequências da desconsideração tradicional.
Normalmente, a desconsideração ocorre para que, partindo-se da sociedade, se
chegue à pessoa dos seus sócios. Por exemplo, desconsidera-se a personalidade
jurídica de uma sociedade para que o patrimônio pessoal dos seus sócios responda
por dívidas sociais. No entanto, a diversidade dos problemas concretos levou aos
tribunais situações em que seria necessário inverter as consequências da
desconsideração tradicional, de forma que, partindo-se de um sócio se chegasse a
sociedade. Seguindo a mesma linha, desconsiderar-se-ia a personalidade jurídica da
sociedade para que o patrimônio desta respondesse por dívidas particulares do
sócio.
O presente trabalho se dedicou ao estudo dessa nova forma de se aplicar as
consequências da teoria da desconsideração, que é conhecida na doutrina como
desconsideração da personalidade jurídica inversa, ou ao reverso. Vimos que, da
mesma forma que ocorreu com a teoria da desconsideração em sua forma
tradicional, a desconsideração inversa da personalidade jurídica vem ganhando
cada vez mais adeptos e o número de casos nos tribunais em que se aplica esta
forma de superação da personalidade jurídica é crescente.
Contudo, alguns problemas surgem diante do julgador quando a parte requer em
juízo a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade de forma
98
inversa. O primeiro deles, é a ausência de norma expressa prevendo a possibilidade
da desconsideração inversa.
Com efeito, o artigo 50 do Código Civil Brasileiro, dispositivo legal mais utilizado para
fundamentar pedidos de desconsideração, é expresso no sentido de que a
desconsideração ocorrerá para que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos sócios da pessoa jurídica.
Para superar essa primeira questão, defendemos a interpretação teleológica do
artigo 50 do Código Civil Brasileiro. A nosso ver, o referido dispositivo legal foi criado
com o intuito de positivar a teoria da desconsideração, que já vinha sendo
amplamente aplicada por nossos tribunais. Além disso, a positivação da teoria da
desconsideração representou o reconhecimento, por parte do legislador, da
importância do instituto jurídico da personificação. A finalidade da regra contida no
artigo 50 é coibir o abuso do direito à personificação e sancionar o desvio da
finalidade deste instituto. Por fim, olhado sob um prisma maior, a teoria da
desconsideração e o artigo 50 têm como finalidade proteger o direito à
personificação, punindo aqueles que o desvirtuam.
Destarte, por meio da interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil
Brasileiro, torna-se possível a desconsideração da personalidade jurídica de forma
inversa, uma vez que a finalidade da norma é coibir o abuso da personalidade
jurídica. Uma interpretação literal do artigo 50 acabaria limitando o alcance da norma
em comento, impedindo que esta efetivamente atingisse seus fins.
Além disso, aqueles que defendem a interpretação literal do artigo 50 estão, na
verdade, permitindo que uma situação de desvio da finalidade da pessoa jurídica
seja mantida impune, o que é inadmissível.
Assim, conclui-se que a aplicação da teoria desconsideração da personalidade
jurídica de forma inversa é perfeitamente possível em nosso ordenamento jurídico,
mediante uma interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil Brasileiro, de
forma que esta norma atinja seus fins precípuos: coibir o desvio da finalidade da
99
pessoa jurídica e o abuso da personalidade jurídica, bem como proteger o instituto
da pessoa jurídica.
100
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104
saldos bancários das sociedades empresárias controladas pelo devedor. Indeferimento pelo juiz de primeiro grau. Reconhecimento da possibilidade de se declarar a desconsideração da personalidade jurídica incidentalmente na fase de execução da sentença, não se exigindo ação autônoma, mas, observando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Prova de que o sócio devedor é, em rigor, “dono” da sociedade anônima fechada, das quais é o presidente, controlador de fato, e, apesar da participação minoritária de sua esposa, ficam elas caracterizadas como autênticas sociedades unipessoais. Confusão patrimonial entre sócio e sociedades comprovada. Patrimônio particular do sócio controlador constituído de bens que, na prática, mesmo que penhorados, não seriam convertidos em pecúnia para satisfação do credor. Oferecimento de bens imóveis à penhora, que, por se situarem no Estado da Paraíba, distantes mais de 2.600 km de São Paulo, onde tramita a execução, com nítido escopo de se opor maliciosamente à execução, empregando ardis procrastinatórios, que configura ato atentatório contra a dignidade da justiça. Agravo provido, para deferir a desconsideração inversa da personalidade jurídica das sociedades empresárias indicas (Limitada e S/A fechada), autorizada a penhora virtual de saldos de contas bancárias. Agravante: Manoel Alceu Affonso Ferreira Advogados. Agravado: Carlos Alberto Oliveira Andrade. Relator: Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. São Paulo, 10 dez. 2008. SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 27ª ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Forense: Rio de Janeiro, 2008. SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da Personalidade Jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 2, p. 67-75, abr. 1992. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Maria Helena, BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.