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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Pedro Paulo Barradas Barata
A Desconsideração da Personalidade Jurídica nas
Relações de Consumo
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2009
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Pedro Paulo Barradas Barata
A Desconsideração da Personalidade Jurídica nas
Relações de Consumo
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito, sob a orientação do Prof. Dr.
Marcelo Gomes Sodré.
SÃO PAULO
2009
Banca Examinadora
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Pedro Paulo Barradas Barata. A Desconsideração da Personalidade Jurídica nas
Relações de Consumo.
RESUMO
A escolha do objeto deste estudo se deveu à grande controvérsia que o tema da
desconsideração da personalidade jurídica desperta no âmbito das relações de
consumo. A doutrina vem adotando posições antagônicas com relação ao tema,
sendo que parte dos doutrinadores defende que o Código de Defesa do
Consumidor teria revogado a autonomia patrimonial da pessoa jurídica nas
relações de consumo. Sendo a técnica da separação patrimonial e a limitação de
responsabilidade das sociedades empresárias dois princípios aparentemente
fundamentais do sistema capitalista, é inegável a importância de que se reveste o
tema. Este estudo pretende propor uma interpretação do artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor que concilie tais princípios com a filosofia do Código, por
meio de uma interpretação sistemática e histórica da norma. Para tanto, foi
analisada a origem histórica da limitação de responsabilidade das pessoas
jurídicas, sua evolução no Direito norte-americano e no Direito inglês. Ainda,
analisou-se o tratamento que a desconsideração da personalidade jurídica recebe
no Direito estrangeiro, sua origem histórica e disciplina atual no Direito Brasileiro.
Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica – Autonomia
patrimonial da pessoa jurídica – Experiência estrangeira –
Código de Defesa do Consumidor.
Pedro Paulo Barradas Barata. A Desconsideração da Personalidade Jurídica nas
Relações de Consumo.
ABSTRACT
This work comes in response to the great controversy revolving around the
applicability of the disregard doctrine to consumer relations. Legal scholars have
long wrangled over this issue, some of whom advocate that the Brazilian
Consumer Protection Code ended up stripping legal entities of their right to
separateness of assets when it comes to consumer relations. As asset
separateness and the limitation on liability of business companies are held to be
two of the major pillars of the capitalist system, the relevance of this issue is
unquestionable. This study thus proposes an interpretation of article 28 of the
Brazilian Consumer Protection Code which conciliates these principles and the
philosophical tenets of said Code, by offering a systematic and historical
interpretation of such rule. To that end, this work will deal with the historical origins
of the limitation on liability of legal entities, and its evolution in the US and UK legal
systems. Further, this work will analyze the treatment accorded to the disregard
doctrine in foreign laws, its background and the current rules applying to this
doctrine under Brazilian law.
Keywords: Disregard of legal entity – Separateness of assets of legal entities –
Foreign experience – Consumer Protection Code.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................7
2. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O INSTITUTO DA PESSOA JURÍDICA ....................... 12
3. A EVOLUÇÃO DA FIGURA DO EMPRESÁRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO ............ 22
4. A OPÇÃO PELA LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE .................................................. 32
5. ORIGEM HISTÓRICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ........ 50
6. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA .............................................. 56
6.1. Conceito ....................................................................................................................... 56
6.2. Desconsideração e vício dos atos jurídicos .................................................................. 63
6.3. A desconsideração no Direito estrangeiro ..................................................................... 67
6.3.1. Bélgica ................................................................................................................ 67
6.3.2. Estados Unidos da América ................................................................................ 70
6.3.3. França ................................................................................................................. 79
6.3.4. Holanda .............................................................................................................. 81
6.3.5. Inglaterra ............................................................................................................. 83
6.4. A desconsideração no Brasil ......................................................................................... 86
7. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS RELAÇÕES DE
CONSUMO .......................................................................................................................... 99
7.1. Conceito de relação de consumo .................................................................................. 99
7.2. O artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor ....................................................... 107
7.2.1. Origem histórica do dispositivo .......................................................................... 108
7.2.2. Hipóteses de efetiva desconsideração da personalidade jurídica – artigo 28,
caput, do Código de Defesa do Consumidor ...................................................... 116
7.2.3. O veto presidencial ao § 1º do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor ....................................................................................................... 131
7.2.4. A polêmica suscitada pelo § 5º do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor ....................................................................................................... 134
7.2.5. Responsabilidade do grupo econômico ............................................................. 156
7.2.5.1. Responsabilidade subsidiária no grupo de sociedades ......................... 156
7.2.5.2. Responsabilidade solidária das sociedades consorciadas .................... 165
7.2.5.3. Responsabilidade culposa das sociedades coligadas ........................... 169
8. CONCLUSÃO .................................................................................................................... 180
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................... 186
7
1. INTRODUÇÃO
O Direito como ferramenta de pacificação social sempre extraiu da
sociedade determinadas condutas e comportamentos para, após classificá-los
como prejudiciais ou favoráveis, regulamentar os seus reflexos jurídicos. Norberto
Bobbio trata das funções repressiva e promocional do Direito, assim referindo-se
àquelas condutas tidas como saudáveis pelo ordenamento jurídico e àquelas cuja
reiteração não interessa à sociedade.
Como é evidente, ao identificar determinado comportamento percebido
como saudável e benéfico ao corpo social, cabe ao Direito adotar posturas e
normas que estimulem tal comportamento, de modo a propiciar o crescimento e o
enriquecimento dos indivíduos que integram a comunidade. As condutas
identificadas como prejudiciais, por sua vez, devem ser objeto de repressão e
sanção, de forma a desestimular a sua reiteração e, com isso, obter a desejada
pacificação do tecido social. No desempenho dessas duas funções, o Direito
conta com uma série de ferramentas, mais ou menos explícitas. Ao estimular
determinada conduta, o Direito pode oferecer prêmios e recompensas àqueles
que a desempenham. Exemplos típicos são os assim denominados incentivos
fiscais, concedidos a pessoas que desempenhem determinada atividade vista
como importante pelo Estado, ou mesmo que o auxilie na consecução de seus
objetivos.
Outra forma de estimular atividades e condutas é a própria regulamentação
dessas atividades ou condutas, com a criação de institutos e ferramentas que as
8
tornem atraentes para os indivíduos. A criação de ficções e instituições jurídicas
se mostra instrumento de grande valia no fomento de comportamentos desejados
pelo Direito. Nesse contexto, o instituto da personalidade jurídica é, sem dúvida,
um dos que mais contribuiu para o desenvolvimento da sociedade de consumo.
Por meio desse instituto, o Direito possibilita que indivíduos reúnam esforços e
recursos na execução de atividades que, de outra forma, não estariam ao seu
alcance, ou mesmo representariam um risco de ruína tão grande, que afastariam
qualquer investidor consciente.
Como é evidente e pode ser percebido nos mais diversos ramos de
atividade, existem determinados empreendimentos que, seja em virtude de seu
vulto econômico, seja em virtude de sua complexidade de implementação,
dificilmente seriam assumidos individualmente por qualquer sujeito. Como
exemplo, cite-se a construção de uma usina hidrelétrica, ou de uma linha de
metrô, empreendimentos milionários que demandam não apenas um grande
envolvimento de seu executor, mas também o dispêndio de enormes quantias em
dinheiro. Caso o Direito não admitisse a conjugação de esforços e recursos no
desempenho de tais atividades, dificilmente um único indivíduo disporia de
recursos para implementá-las.
Da mesma forma, atividades não necessariamente tão custosas, mas
possivelmente de maior prazo de execução, dificilmente seriam assumidas por
quem quer que seja. Imagine-se a hipótese de determinada atividade que, estima-
se, levaria cerca de oitenta anos para ser concluída. Dificilmente um único
indivíduo poderia assumir tal atividade e conduzi-la de forma satisfatória no
período de sua vida. E mesmo em casos mais banais, na hipótese de o Direito
não prestigiar o empreendedorismo e a geração de riquezas, a incursão em
9
atividades econômicas certamente seria mais rara e de difícil iniciativa.
Assim é que, ciente da importância da geração de riquezas, produção e
distribuição de bens e serviços, o Direito criou o instituto da personalidade
jurídica, por meio do qual confere personalidade a determinados entes abstratos
que façam jus a tal condição. Desde cedo, a personalidade jurídica conferida a
sociedades empresárias tornou possível a diferenciação do patrimônio econômico
e jurídico dos indivíduos que integram sociedades do patrimônio das próprias
sociedades. Vale dizer, o instituto da personalidade jurídica permite a clara
separação entre os direitos e as obrigações de uma pessoa jurídica daqueles
direitos e obrigações das pessoas físicas que a compõem. Dessa forma, o Direito
sinaliza aos componentes do corpo social que há um estímulo jurídico à criação
de sociedades que se dediquem àquelas atividades percebidas como saudáveis e
relevantes para determinada comunidade.
O instituto da personalidade jurídica permite a separação da figura da
sociedade da de seus sócios e, mais, pode criar uma clara divisão entre os
patrimônios de cada qual. Naqueles casos em que a existência de personalidade
jurídica afasta a responsabilidade pessoal dos sócios pelas dívidas da sociedade,
o Direito confere segurança às pessoas físicas no sentido de que, respeitadas as
regras do jogo, seu patrimônio pessoal não seja sacrificado em caso de insucesso
dos negócios da sociedade da qual participem. Da mesma forma, ao separar os
patrimônios de sócios e sociedade, o instituto da personalidade jurídica permite a
reunião de esforços e recursos em torno de uma nova entidade, que não se
confunde com nenhum dos sócios. A essa nova entidade será dado o dever de
perseguir suas finalidades, os meios para fazê-lo e a responsabilidade por suas
falhas e inexecuções.
10
Nesse cenário, o instituto da personalidade jurídica sempre recebeu
tratamento privilegiado do Direito, sendo reconhecido como uma ferramenta de
grande valia para o desenvolvimento econômico da sociedade. Dificilmente se
poderia imaginar a sociedade de consumo contemporânea, não fosse a existência
do referido instituto.
Não obstante, e como ocorre com qualquer ferramenta colocada à
disposição do homem, a personalidade jurídica pode ser utilizada de forma
diversa daquela para a qual foi concebida, servindo de meio para a prática de
atos não prestigiados pelo Direito. Com o tempo, o Direito passou a deparar com
circunstâncias nas quais a personalidade jurídica não mais representava um
estímulo à consecução de atividades proveitosas à sociedade, mas sim como
valioso instrumento legitimador do desrespeito aos direitos de terceiros. Nessas
circunstâncias, o Direito passou a admitir a desconsideração da personalidade
jurídica naqueles casos em que a sua utilização se mostrava contrária à finalidade
para a qual foi criada.
Atualmente, muito embora não se possa questionar a existência e prestígio
à personalidade jurídica, o ordenamento jurídico brasileiro prevê uma série de
circunstâncias em que o instituto pode ser afastado, de forma a autorizar a
confusão de direitos e obrigações das pessoas dos sócios com aqueles da
sociedade.
Especificamente no que se refere ao Código de Defesa do Consumidor, a
possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica recebeu tratamento
inovador e extremamente polêmico. Como se pretende demonstrar neste
trabalho, a matéria foi tratada de forma tão contraditória e abstrata pela doutrina,
11
que permite conclusões tanto no sentido de que o instituto da personalidade
jurídica foi prestigiado pela legislação consumerista, quanto no sentido de que o
Código de Defesa do Consumidor simplesmente colocou fim à autonomia
patrimonial da personalidade jurídica em sede de relações de consumo.
Este trabalho foi desenvolvido em duas partes diversas. A primeira delas,
de caráter notadamente descritivo, tem como objetivo estabelecer as premissas
básicas sobre as quais se assenta o ponto central da tese desenvolvida. Para
esse fim, do Capítulo 2 ao 6 apresentamos o conceito de pessoa jurídica, as
diferentes teorias que pretendem explicar a sua origem e natureza jurídica; a
evolução da figura do empresário, desde a sua origem até os caracteres que o
compõem na sociedade contemporânea; a opção pela limitação da
responsabilidade dos sócios das sociedades empresárias, sua origem e
fundamentação jurídica e econômica; e o nascimento e a evolução do próprio
instituto da desconsideração da personalidade jurídica, suas justificativas e a
forma como é tratado no Direito estrangeiro, em países de marcada experiência
na tutela dos direitos dos consumidores.
A segunda parte do trabalho, essa notadamente analítica, propõe-se a
examinar de forma detida os dispositivos legais que regulam a desconsideração
da personalidade jurídica nas relações de consumo, propondo uma interpretação
dessa norma que se mostre adequada à sua origem histórica e a uma
interpretação sistemática de seus diversos dispositivos, conciliando os diversos
interesses e princípios envolvidos nas relações de consumo.
12
2. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O INSTITUTO DA PESSOA
JURÍDICA
Como é natural ao se tratar da desconsideração da personalidade jurídica,
é necessário traçar os contornos do próprio instituto da personalidade jurídica,
assim entendida como a capacidade de alguns entes de operar como sujeitos de
direitos. A doutrina civilista sempre discutiu com afinco a natureza jurídica da
pessoa jurídica, especialmente se tal instituto seria uma realidade de fato, apenas
refletida pelo Direito ou, pelo contrário, uma ficção absoluta, criada pelo Direito e
aceita pelos agentes sociais.
Conforme se extrai da doutrina, a expressão “pessoa jurídica” teria sido
utilizada originalmente por Savigny, o qual a conceituou de entidade a que a lei
empresta personalidade, de forma a permitir que contraia direitos e obrigações1.
Atente-se para a doutrina de Washington de Barros Monteiro com relação ao
conceito jurídico de “pessoa”:
“Na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito da relação jurídica. No direito moderno, todo ser humano é pessoa no sentido jurídico. Mas, além dos homens, são também dotadas de personalidade certas organizações ou coletividades, que tendem à consecução de fins comuns.”2
1FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica: análise à luz do Código de Defesa do Consumidor e do novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 29.
2MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 41. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1, p. 62.
13
Desde o princípio, o uso da expressão “pessoa” para designar um grupo,
uma entidade abstrata que seria formada pela soma de indivíduos mas que não
se confundia com esses indivíduos, gerou certa perplexidade. A doutrina clássica
resistiu em identificar tal entidade ou organismo como uma “pessoa”, expressão
até então reservada pelo Direito aos seres humanos. A reação a esse
estranhamento foi o surgimento de uma série de teorias que tentavam explicar de
forma lógica e racional a opção do Direito de tratar como “pessoas” entidades
destituídas de vida natural ou vontade.
Não sendo o objetivo deste trabalho a análise aprofundada dessas teorias,
cumpre apenas destacar a existência de duas correntes principais de pensamento
que divergem quando à natureza da pessoa jurídica, podendo ser denominadas
genericamente “teoria da ficção” e “teoria da realidade”.
Segundo a teoria da ficção, a pessoa jurídica não tem existência real, no
plano dos fatos, sendo uma mera suposição, uma criação apreensível apenas na
inteligência. Essa teoria nasceu no Direito Canônico e teve como um de seus
maiores defensores o próprio Savigny. De acordo com essa teoria, apenas o
homem é sujeito de direitos no mundo fenomênico. Desse modo a pessoa jurídica
seria uma abstração, produto artificial criado pelo Direito para fomentar certas
atividades. Assim como o Direito pode subtrair a qualidade de sujeito de direitos
do próprio homem (como ocorreu durante a escravidão), também pode outorgar
direitos e a qualidade de sujeito de direitos a entes que não o homem, como é o
caso das pessoas jurídicas.
Conforme anota Washington de Barros Monteiro3, essa teoria encerra uma
3MONTEIRO, Washington de Barros. op. cit., p. 130.
14
contradição, uma vez que não explica a origem do próprio Estado. Se o Estado é
uma pessoa jurídica, e o Direito emana do Estado, tal teoria conduziria ao
paradoxo de que o Direito é produto de uma ficção criada pelo próprio Direito.
Ainda assim, como bem observa Marçal Justen Filho, essa teoria era coerente
com a filosofia de pensamento da época em que elaborada, orientada pelo
voluntarismo:
“Vale dizer, se o núcleo do direito subjetivo (e, por decorrência, do direito objetivo) residia na vontade, o único resultado cabível seria o de a pessoa jurídica não ser realmente um sujeito de direitos. E isso pela impossibilidade de localizar vontade senão no ser humano. Atribuir a condição de pessoa (na acepção de titular de direitos) a quem não possa ter vontade, como seria o caso das pessoas jurídicas, significaria um falseamento da realidade. A teoria da ficção é uma resposta coerente para o problema da pessoa jurídica, desde que uma das balizas do raciocínio seja uma filosofia voluntarista.”4
A teoria da realidade, por sua vez, defende que a pessoa jurídica existe no
mundo fático, pode ser percebida pelo homem no mundo fenomênico, e tal
existência é apenas reconhecida e regulamentada pelo Direito. Segundo essa
teoria, o ser humano não é a única “pessoa” que protagoniza atos no mundo
jurídico, sendo a pessoa jurídica, assim entendida como agrupamento de pessoas
e patrimônios dotado de uma vontade coletiva, diversa da de seus componentes,
uma realidade social.
Assim é que as manifestações desses agrupamentos poderiam ser
facilmente identificadas no mundo dos fatos, competindo ao Direito apenas e tão
somente reconhecer essa existência e regulamentar o exercício da personalidade,
assim como faz com os seres humanos. Naturalmente, a principal crítica feita a
4JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1987. p. 26.
15
essa teoria reside no fato de que os grupos criados pela soma de indivíduos não
têm vida própria, não têm existência física que possa ser sentida e reconhecida
no mundo fenomênico, e, como tal, não são dotados de “personalidade”,
característica própria dos seres humanos.
Para os críticos da teoria da realidade, essa teoria se equivoca no ponto
em que pretende equiparar de tal forma a pessoa jurídica à pessoa física, que
atribui vontade própria à pessoa jurídica, ainda que a vontade seja uma
característica inerente e exclusiva dos seres humanos.
Conforme será demonstrado neste trabalho, a evolução da figura do
empresário permite afirmar que, atualmente, há de fato a possibilidade de a
pessoa jurídica ser dotada de vontade própria, que difira da soma de vontades ou
da vontade individual de todos os seus sócios. Com a evolução do conceito de
empresário e a dissociação entre as figuras do administrador da sociedade
empresária e do capitalista, é possível falar-se em uma vontade da sociedade
empresária, diferente daquela dos seres humanos que a compõem.
De qualquer forma, o objetivo deste trabalho não é apontar qual seria a
melhor ou a mais completa teoria quanto à natureza da pessoa jurídica. Até
porque, segundo entendemos, tal questão representa pouca importância no que
concerne à desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que os
pressupostos e consequências da desconsideração serão os mesmos,
independentemente de qual teoria se adote quanto à natureza da pessoa jurídica.
Não há teoria quanto à natureza da pessoa jurídica que afaste a possibilidade de
desconsideração da personalidade jurídica, assim como não há teoria que a
justifique ou fundamente de modo mais adequado que as demais.
16
Seja qual for a teoria que se adote, fato é que a pessoa jurídica é uma
realidade em grande parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais.
Especificamente no Direito brasileiro, pode-se dizer que o ordenamento jurídico
reconhece a existência de sujeitos de direito corpóreos, como as pessoas físicas
e o nascituro, e incorpóreos, como as pessoas jurídicas, a massa falida e o
espólio, por exemplo.
Como define Maria Helena Diniz, “a pessoa jurídica é a unidade de
pessoas naturais ou de patrimônios que visa à obtenção de certas finalidades,
reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações.”5
Nesse sentido, o artigo 45 do Código Civil é claro em reconhecer a
existência da pessoa jurídica, assim como o momento de seu “nascimento”:
“Artigo 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.”
Referido dispositivo permite afirmar que as pessoas jurídicas têm vida própria,
sua personalidade nasce com a inscrição do ato constitutivo da sociedade no
respectivo registro e deixa de existir com a sua extinção, seja voluntária, seja em
decorrência de sua falência. Da mesma forma, o artigo 46 do Código Civil prevê os
elementos indispensáveis às pessoas jurídicas de Direito Privado, quais sejam:
5DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 25-26.
17
“Artigo 46. O registro declarará:
I - a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver;
II - o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores;
III - o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente;
IV - se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo;
V - se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais;
VI - as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso.”
Ou seja, assim como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas são
identificadas por um nome próprio, um domicílio, uma nacionalidade e um
número, que as identifica como contribuintes do Estado. Quando do registro, já
constam obrigatoriamente sua denominação, suas finalidades e sua sede, o
tempo de duração e o fundo social (quando aplicável), além da forma de
administração, a extensão da responsabilidade de seus membros e as condições
de extinção da pessoa jurídica. Cite-se a doutrina de Maria Helena Diniz a esse
respeito:
“A personalidade jurídica da sociedade data da inscrição de seus atos constitutivos no registro próprio.
Deveras, do assento dos atos constitutivos da sociedade simples, no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, e da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, surge a personificação societária e com ela advêm os efeitos jurídicos.”6
6DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2008.
18
A despeito de reconhecer que a Lei é expressa em prever que o
nascimento da pessoa jurídica ocorre com o seu registro na Junta Comercial,
assim como os méritos associados a essa concepção, Fábio Ulhoa Coelho tece
críticas à opção do legislador brasileiro nesse ponto, as quais não podem deixar
de ser mencionadas:
“Costuma-se afirmar que o início da personalização da sociedade empresária opera-se com o seu registro na Junta Comercial (cf., por todos, Ferreira, 1961, 3:196). Aliás, a própria legislação civil estabelece a formalidade como o ato responsável pela constituição da pessoa jurídica (CC, arts. 45 e 985). Em termos de segurança jurídica, não há de se negar que a sistemática é adequada, porque o registro torna pública a formação do novo sujeito de direito, possibilitando o controle dos demais agentes econômicos e do próprio estado quanto à existência e extensão das obrigações que o envolvem. Mas, deve-se registrar uma certa impropriedade conceitual e lógica nessa sistemática. A rigor, desde o momento em que os sócios passam a atuar em conjunto, na exploração da atividade econômica, isto é, desde o contrato, ainda que verbal, de formação de sociedade, já de pode considerar existente a pessoa jurídica.”7
Conforme aponta Fábio Konder Comparato, a pessoa jurídica é constituída
de dois elementos essenciais, a finalidade e os meios para atingi-la. Este é o
entendimento do doutrinador quanto ao tratamento da pessoa jurídica no
ordenamento jurídico brasileiro:
“No mundo jurídico, enquanto o homem pode ser considerado apenas estaticamente – pois ele vale para o Direito pelo que é, em si e por si (o seu ser já é valer) – as chamadas pessoas jurídicas só podem ser consideradas dinamicamente, ou seja, pela função que exercem.”8
7COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 16-17.
8COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 283.
19
Da mesma forma, a desconsideração da personalidade jurídica apenas
poderia estar relacionada ao aspecto dinâmico da pessoa jurídica, e não à sua
constituição. A desconsideração, como será demonstrado ao longo deste
trabalho, não tem como consequência a extinção, o desfazimento da pessoa
jurídica. Não se preocupa com seus aspectos e requisitos estruturais, existenciais,
mas sim com o uso que é feito da pessoa jurídica. A pertinência entre sua
atuação e sua finalidade. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica
tem a finalidade única de transferir o centro de imputação das obrigações, da
pessoa jurídica para a pessoa de seus sócios ou diretores. De fazer com que,
afastado o véu da personalidade jurídica, permita-se aos credores da sociedade
buscar no patrimônio de seus proprietários e administradores a satisfação de seu
crédito.
E isso porque, assim como qualquer sujeito de direito, a pessoa jurídica
também tem seu patrimônio particular, o qual é objeto de defesa e
regulamentação pelo ordenamento jurídico. No momento de constituição da
sociedade, de nascimento da pessoa jurídica, os sócios que a compõem devem
subscrever parte do capital social, integralizando a compra das quotas
respectivas. Essa contribuição inicial constitui o capital social da pessoa jurídica e
é o ponto de partida para a formação de seu patrimônio. Assim como ocorre com
as pessoas físicas, o patrimônio das pessoas jurídicas não se limita aos seus
ativos, ou ao valor investido na pessoa jurídica, abrangendo também seus passivos,
suas dívidas e obrigações contraídas perante os sócios ou terceiros. Também como
ocorre com as pessoas físicas, são os ativos das pessoas jurídicas que respondem
por suas obrigações, que garantem a seus credores que aquela pessoa jurídica
específica irá honrar sua obrigação e saldar seus compromissos.
20
Esse patrimônio, de propriedade exclusiva da pessoa jurídica, ainda que
tenha se originado do patrimônio individual de cada um de seus proprietários, já
não mais pertence à esfera de direitos desses proprietários. Isto é, mesmo que
parte do ativo da pessoa jurídica ainda seja decorrente daquela contribuição
inicial, realizada pelo proprietário quando do nascimento da pessoa jurídica, e não
proveniente dos lucros obtidos com sua atividade, essa parte não mais pertence
ao proprietário contribuinte. Ao efetuar o investimento na empresa, o proprietário
consente que aquela parte do seu patrimônio deixou definitivamente sua esfera
jurídica; foi substituída pelas quotas representativas da propriedade da pessoa
jurídica que nasceu. Confiram-se os comentários de Fábio Ulhoa Coelho a esse
respeito:
“O capital social representa, grosso modo, o montante de recursos que os sócios disponibilizam para a constituição da sociedade. De fato, para existir e dar início às suas atividades, a pessoa jurídica necessita de dinheiro ou bens, que são providenciados pelos que a constituem. Não se confunde o capital social com o patrimônio social. Este último é o conjunto de bens e direitos de titularidade da sociedade (ou seja, tudo que é de sua propriedade). Note-se que, no exato momento da sua constituição, a sociedade tem em seu patrimônio apenas os recursos inicialmente fornecidos pelos sócios, mas, se o negócio que ela explora revelar-se frutífero, ocorrerá a ampliação desses recursos iniciais; caso contrário, a sociedade acabará perdendo uma parte ou a totalidade de tais recursos, e seu patrimônio será menor que o capital social – podendo vir a ocorrer, inclusive, a falência.
Em contrapartida à contribuição que o sócio dá ao capital social, é-lhe atribuída uma participação societária. Se a sociedade é limitada, essa participação se chama ‘quota’ (ou ‘cota’); se anônima, ‘ação’ (motivo pelo qual o sócio da S/A é chamado também acionista). A participação societária é bem integrante do patrimônio de cada sócio, que pode aliená-la ou onerá-la, se atendidas determinadas condições. A quota ou ação não pertencem à sociedade. Se o sócio possui uma dívida, o credor poderá, salvo em alguns casos específicos, executá-la sobre a participação societária que ele titulariza; já o credor da sociedade tem como garantia o patrimônio social, e nunca as partes representativas do capital social.”9
9COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p. 63.
21
Uma vez regularmente constituída a pessoa jurídica, dotada de
personalidade jurídica e de patrimônio, os bens utilizados para formação desse
patrimônio já não mais pertencem aos sócios da pessoa jurídica, mas sim à
própria pessoa jurídica, independente e autônoma. Confira-se, uma vez mais, a
lição de Fábio Ulhoa Coelho:
“A companhia, para dar início à sua atividade econômica, necessita evidentemente de recursos, isto é, de máquinas, tecnologia, serviços, trabalho e outros meios indispensáveis à organização da empresa abrangida no objeto social. Cabe aos sócios prover tais recursos. Fazem-no transferindo, do seu patrimônio ao da pessoa jurídica, a propriedade de dinheiro, bens ou crédito, e recebendo, em troca, ações emitidas pela sociedade, em valor correspondente. Uma vez iniciada a atividade, pode ocorrer de a sociedade necessitar de mais recursos, e os acionistas, pela maioria com direito de voto dos reunidos em assembléia geral, entenderem que é o caso de ampliar a contribuição deles para o desenvolvimento da empresa. Mais dinheiro, bens ou créditos são, então, transferidos do patrimônio dos sócios para o da sociedade, em contrapartida ao recebimento de novas ações. Essas aportes são apropriados, na contabilidade da companhia, como capital social.”10
Como decorrência lógica, os credores da pessoa jurídica têm a garantia de
que o patrimônio da pessoa jurídica servirá para garantir o pagamento de suas
dívidas e o adimplemento de suas obrigações. Sabem também que, em regra, o
patrimônio dos sócios que a compõem não será destinado ao pagamento das
dívidas e obrigações da pessoa jurídica, não poderão ser perseguidos como
forma de satisfação das dívidas daquela pessoa jurídica.
10
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 158.
22
3. A EVOLUÇÃO DA FIGURA DO EMPRESÁRIO NA SOCIEDADE
DE CONSUMO
A expressão “sociedade de consumo” não é, de qualquer forma, unívoca,
podendo ser abordada sob os mais diversos prismas e perspectivas. Para os fins
deste trabalho, no entanto, adotaremos a expressão como manifestação das
principais características do consumismo contemporâneo, como bem destaca
Marcelo Gomes Sodré:
“(...) Respondendo muito genericamente, e sem a precisão necessária, chamamos de sociedade de consumo aquela na qual, tendo fundamento em relações econômicas capitalistas, estão presentes, pelo menos, cinco externalidades: (i) produção em série de produtos, (ii) distribuição em massa de produtos e serviços, (iii) publicidade em grande escala no fornecimento dos mesmos, (iv) contratação de produtos e serviços via contrato de adesão e (v) oferecimento generalizado de crédito ao consumidor. Com certeza é somente após a Segunda Guerra Mundial que estes elementos estão plenamente presentes no Brasil.”11
Em que pese o fato de os autores divergirem quanto à origem histórica da
sociedade de consumo12, é do senso comum que as relações entre consumidores
e fornecedores sempre existiram nas sociedades humanas.
Foi a partir da Revolução Industrial, no entanto, que a sociedade começou
a caminhar rumo ao consumo de massa que hoje identificamos, com o
desenvolvimento da atividade econômica nos setores industrial, de transportes e
11
SODRÉ, Marcelo Gomes. Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007. p. 25.
12Para McKendrick, a sociedade de consumo teria surgido ainda no século XVIII, para Williams no século XIX e para Mukerji no século XV (conf. MCCRAKEN, Grant. A produção do consumo moderno. In: ______. Cultura e consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo. Tradução Fernanda Eugênio. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 22).
23
financeiro. Atente-se para a doutrina de Nelson Melo de Moraes Rêgo:
“Consabido que com a Revolução Industrial, apoiada em relevantes invenções técnicas, deu ensejo à produção em série, à mecanização do processo produtivo e ao aumento considerável dos níveis de vida. Por sua vez, a Revolução Comercial, sedimentada em novos métodos de venda, na publicidade, no crédito e no recurso a intermediários propiciou que ao progresso da técnica se associasse o engenho dos distribuidores para o escoamento desses produtos. Ambas geraram a sociedade dita de consumo, caracterizada pela abundância de bens, a qual veio a desenvolver mecanismos a incrementar o consumo dos bens que produz ou dos mais variados serviços que foram sendo introduzidos ante às necessidades da modernidade. E não é só; vimos o crescimento da empresas, à massificação do consumo (até a ponto da ONU ter editado Resolução sobre o consumo sustentável, como forma de conscientização das nações e dos cidadãos, de adotar um consumo que seja sustentável e sem danos ambientais), à proliferação dos contratos standard, ao surgimento de uma imensurável gama de produtos de complexidade técnica cada vez mais elevada, ao desenvolvimento das técnicas de marketing e de métodos agressivos de vendas a ‘invadir’ os lares por diversos meios publicitários como internet, telefonia móvel com tecnologia WAP (a permitir a navegação na internet e envio de SMS).”13
No século XIX, período no qual a Revolução Industrial expandiu-se pelo
mundo, as manifestações da vida econômica se assentavam principalmente em
dois institutos jurídicos, o da propriedade privada e o da liberdade de contratar.
Nesse contexto, é natural que sobressaísse a figura do empresário. De um lado,
era o detentor da propriedade dos meios de produção. De outro, aquele com
quem os demais indivíduos desejavam contratar, seja na qualidade de parceiros
comerciais (i.e., distribuidores de bens manufaturados), empregados seja na
qualidade de consumidores.
É dessa concepção clássica que decorre o conceito tradicional de empresa
como uma atividade que nada mais é do que parte do patrimônio do empresário.
13
RÊGO, Nelson Melo de Moraes. Da boa-fé objetiva nas cláusulas gerais de direito do consumidor e outros estudos consumeristas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 3-4.
24
Por essa perspectiva, a ideia de empresa se confunde com a de propriedade. A
empresa seria apenas mais um dos bens titularizados pelo empresário, apenas
mais uma parte de seu patrimônio:
“Before business enterprises were granted the right to acquire independent legal personality, it was the business’s owner who carried on the business and who was exposed to all risks resulting from the business.”14
Foi com o aprimoramento das técnicas e meios de produção verificado na
Revolução Industrial que as sociedades puderam gerar a produção em massa
que caracteriza a sociedade de consumo contemporânea. Ao mesmo tempo em
que as fábricas passavam a produzir em larga escala, para um público cada vez
maior, era também necessário o desenvolvimento de mecanismos para
escoamento dessa produção, meios de transporte que permitissem que os bens
produzidos nas plantas fabris chegassem aos consumidores das mais diversas
localidades. Para tanto, era necessária a criação e a expansão de linhas férreas,
até então o meio mais eficaz de distribuição da produção, atividade que exigia um
grande volume de capital, que não poderia ser injetado por um único indivíduo ou
por um grupo de indivíduos movidos pela confiança mútua.
Naquele momento, os Estados optaram pela consagração do instituto da
pessoa jurídica de fins econômicos, por meio do qual permitiam aos particulares
que reunissem esforços e capitais em uma pessoa jurídica empresária, de
personalidade jurídica e patrimônio autônomos com relação aos sócios que a
compunham. Ao fazê-lo, os Estados reconheciam a importância do fenômeno
14
“Antes que as empresas recebessem o direito de adquirir personalidade jurídica independente, era o dono da empresa que conduzia os seus negócios e que ficava exposto a todos os riscos resultantes desses negócios.” (tradução livre, VANDEKERCKHOVE, Karen. Piercing the corporate veil. Holanda: Kluwer Law International, 2007. p. 4).
25
associativo também para o desenvolvimento econômico, na medida em que as
sociedades empresariais não apenas investiam e desenvolviam setores nos quais
o Estado não podia ou não queria atuar, como também geravam empregos,
arrecadação e progresso que o Estado não era capaz de gerar:
“É que o fenômeno associativo produz resultados que nem o próprio Estado poderia atingir, por si só. O desenvolvimento da atividade econômica, especificamente, sob a forma associativa, permite a multiplicação da riqueza privada e pública, com repercussão sobre terceiros (empregados, comunidade etc.). A associação é meio de obtenção de benefícios não só para seus integrantes como para a generalidade do grupo humano. (...)
O progresso cultural e econômico propiciado pela união e pela soma de esforços humanos interessa não apenas aos particulares, mas ao próprio Estado.”15
Desde sua origem, portanto, a opção pela personificação societária teve
uma finalidade muito clara, qual seja, a de estimular o investimento privado na
atividade econômica, reconhecido como benéfico ao progresso econômico e
cultural das diferentes comunidades. Não por outro motivo, Ripert já advertia para
a importância da figura das sociedades empresariais no capitalismo:
“Desde um século, não são mais os homens que detêm as grandes posições do comércio e da indústria, foram eliminados pelas sociedades por ações. Nenhum fato é mais importante do que este para a compreensão do regime capitalista.”16
Como anota Phillip Blumberg, no Século XVII as sociedades empresariais
apresentavam duas dimensões muito claras, seus propósitos públicos e feição
15
JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 49. 16
RIPERT, George. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947. p. 59.
26
monopolista17. Como exemplo disso, cite-se o extensivo controle que o Reino
Unido deteve sobre a Índia ao longo de vários séculos, em razão da atuação da
Companhia das Índias Ocidentais, uma corporação criada ainda em 1600.
Durante o Século XVIII, os propósitos das sociedades empresariais ainda
eram vistos como incluindo a realização de alguma finalidade pública. Nesse
sentido, as primeiras sociedades norte-americanas assumiam funções públicas,
como a construção de pontes, canais, rodovias e fornecimento de água. A
primeira sociedade de manufatura dos EUA só veio a ser organizada no final
daquele século, em 1786. Com o tempo, no entanto, o papel das sociedades
mudou de seus propósitos públicos para a acumulação de riquezas. Naquele
momento, a limitação de responsabilidade não desempenhava um papel
relevante, foi um tema de menor preocupação até meados do Século XVIII.
Essas transformações econômicas e sociais também levaram a uma
modificação no próprio conceito de sociedade empresarial, conduzindo à
gradativa dissociação entre a figura da sociedade e do capitalista, especialmente
com o advento das sociedades anônimas. Da necessidade de captação cada vez
maior de recursos, as grandes companhias e grupos econômicos passaram a se
valer da poupança popular para capitalizar seus negócios. Para isso, vendiam
parte do negócio, da propriedade sobre a sociedade, a terceiros anônimos, em
troca do aporte de capital desses terceiros.
A partir de então, a ideia de que aquele que comanda a sociedade, que
gere seus negócios, seria aquele mesmo que detém a sua propriedade, não mais
encontra aderência na realidade. É a partir desse momento que há a separação entre
17
BLUMBERG, Phillip I. The multinational challenge to corporation law: the search for a new corporate personality. New York: Oxford University Press, 1993. p. 5-7.
27
a figura do empresário e do capitalista (business owner), da pessoa jurídica daquele
que é proprietário dessa pessoa jurídica. O poder de controlar a pessoa jurídica, esse
ente inanimado que não fala nem age por si só, passa daquele que tinha a empresa
como sua propriedade para aquele que dirige a sociedade empresária, que gere seus
negócios, a mando e em benefício de seus inúmeros proprietários.
Nesse contexto, a verdadeira força das sociedades está em seu poder de
investimento, de criar, produzir e vender produtos e serviços. E o poder de
investimento é exercido e criado pela direção, pelos administradores da
sociedade, e não por seus proprietários. Na prática, a separação entre as figuras
do capitalista e do empresário faz com que o interesse da sociedade não mais
emane do capitalista. O interesse da sociedade é aquele determinado pelos seus
administradores, os quais serão responsáveis pela gestão dos negócios enquanto
sua atuação atingir a finalidade geral da empresa, qual seja, a preservação do
capital nela investido e a remuneração desse investimento. Ao fazê-lo, o
administrador não apenas atende aos desejos dos proprietários da pessoa
jurídica, mas também aumenta seu poder de investimento, na medida em que
transmite ao mercado a ideia de que o investimento realizado naquela empresa
tem um retorno economicamente atrativo. Conforme observa Fábio Konder
Comparato, ao final desse processo, a empresa deixa de ser bem, patrimônio de
um sujeito de direitos, e passa, ela própria, a ser um novo sujeito de direitos,
cujos interesses e planos não se confundem com os de seus proprietários:
“O reconhecimento claro e conseqüente de que controle empresarial não é propriedade implica uma verdadeira revolução copernicana nos estatutos da empresa, que passa de objeto a sujeito de direito.”18
18
COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 21, p. 70, abr./jun. 1983.
28
Nesse ponto, cumpre destacar a lição de Fábio Ulhoa Coelho, que chama a
atenção para o fato de que, do ponto de vista técnico, o termo “empresa” não
pode ser considerado nem objeto, nem sujeito de direitos, representando, na
verdade, uma atividade:
“Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Sendo uma atividade, a empresa não tem a natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa. Em outros termos, não se confunde com o empresário (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial (coisa).”19
Como destacado pelo próprio doutrinador, tal confusão se deve à distinção
entre o uso técnico e o uso lato dessas expressões:
“Por outro lado, em razão dessa opção – considerar ainda a pessoa física o núcleo conceitual das normas que edita sobre a atividade empresarial -, a lei acaba dando ensejo a confusões entre o empresário pessoa jurídica e os sócios desta. A confusão aumenta, inclusive, pela distância existente entre os conceitos técnicos do direito e a linguagem natural. A pessoa jurídica empresária é cotidianamente denominada ‘empresa’, e os seus sócios são chamados ‘empresários’. Em termos técnicos, contudo, empresa é a atividade, e não a pessoa que a explora; e empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas a própria sociedade. É necessário, assim, acentuar, de modo enfático, que o integrante de uma sociedade empresária (o sócio) não é empresário; não está, por conseguinte, sujeito às normas que definem os direitos e deveres do empresário. Claro que o direito também disciplina a situação do sócio, garantindo-lhe direitos e imputando-lhe responsabilidades em razão da exploração da atividade empresarial pela sociedade de que faz parte. Mas não são os direitos e as responsabilidades do empresário, que cabem à pessoa jurídica; são outros, reservados pela lei para os que se encontram na condição de sócio.”20
19
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. cit., v. 1, p. 19. 20
Id. Curso de direito comercial. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1, p. 61-62.
29
Essa também é a advertência feita por Maria Helena Diniz:
“A empresa é, portanto, a atividade econômica organizada desenvolvida pelo empresário; logo, não é sujeito de direito, não tendo personalidade jurídica. Sujeito de direito é o empresário individual ou coletivo, titular da empresa.”21
Acolhida a crítica, quer nos parecer que essa não invalida a conclusão de
que, na atual sociedade de consumo, a sociedade empresarial (sujeito) não mais
se confunde com uma coisa, com um bem integrante do patrimônio de seus
sócios, passando ela mesma a ser uma pessoa de direito independente e
autônoma. De qualquer forma, e até mesmo em atenção à lição acima transcrita,
neste trabalho o termo “empresário” foi adotado como sinônimo de pessoa jurídica
que desenvolve atividade empresarial, e não para designar os proprietários ou
sócios da pessoa jurídica.
A alteração na concepção de empresário foi acompanhada do crescente
reconhecimento, pelo Estado, da relevância da sociedade empresarial e da
importância que a sua conservação representa para a sociedade. Prova disso são
as inúmeras legislações criadas, desde há muito, com a finalidade de preservar a
sociedade empresarial e de recuperá-la de situações difíceis.
Nos EUA, por exemplo, a primeira norma que reconhece a importância da
conservação da sociedade empresarial é o Chandler Act, de 1938, o qual prevê o
processo de reorganização societária em benefício do interesse público,
especialmente da economia. No Direito argentino, a Lei nº 19.551/72 prevê
expressamente a continuidade dos negócios da sociedade em caso de falência de
21
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de empresa, cit., p. 14.
30
seus proprietários, assim como prescreve que os contratos de trabalho não são
extintos em razão da falência. Essa orientação protecionista da empresa também
é identificada no Direito francês, seja na Lei nº 67.563/67, seja na Lei Falimentar
nº 98/85, que tem por finalidade garantir a preservação das sociedades
financeiramente viáveis, em benefício de seus trabalhadores, credores e do
próprio Estado.
Também no Brasil, a Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências
(Lei nº 11.101, de 9.2.2005) reconhece expressamente a importância do
empresário para toda sociedade, sendo uma de suas finalidades a preservação
da empresa. Este é o teor do artigo 47 da aludida Lei:
“Artigo 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
Confiram-se os comentários de Maria Helena Diniz quanto à finalidade da
Lei nº 11.101/2005, a qual evidencia a relevância que o Direito atribui à figura do
empresário:
“A empresa, como atividade econômica organizada, deve ser preservada por gerar lucro, emprego e tributos. O art. 47 da Lei n. 11.101/2005 acolhe o princípio da preservação da empresa e o da função social ao dispor: ‘A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo assim a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica’.”22
22
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de empresa, cit., p. 25.
31
Essa crescente preocupação dos Estados com a manutenção da
sociedade empresarial revela a importância de que se reveste o instituto em
muitos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Mesmo tendo se afastado da
concepção original de desenvolvimento de atividades e empreendimentos de
interesse eminentemente público, a figura da sociedade empresarial continua
sendo vista como fundamental pelo Direito, seja em razão de sua importância
para a economia, seja em função de sua capacidade de financiar atividades e
gerar progresso que o Estado, sozinho, não seria capaz de gerar.
32
4. A OPÇÃO PELA LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Atualmente, a limitação da responsabilidade dos sócios da pessoa jurídica
é uma realidade tão corriqueira e presente, que muitos autores a tratam como
uma decorrência natural da própria autonomia da pessoa jurídica. Soa natural
que, reconhecendo-se personalidade à pessoa jurídica e lhe outorgando
autonomia quanto à pessoa de seus sócios, essa autonomia também seja
estendida ao aspecto patrimonial, garantindo-se a limitação de responsabilidade
de seus sócios. Como anota Fábio Ulhoa Coelho, atualmente a limitação da
responsabilidade é uma decorrência natural da personalização da sociedade
empresária:
“A personalização da sociedade limitada implica a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus membros. Sócio e sociedade são sujeitos distintos, com seus próprios direitos e deveres. As obrigações de um, portanto, não podem se imputar ao outro. Desse modo, a regra é a irresponsabilidade dos sócios da sociedade limitada pelas dívidas sociais. Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das quotas com que se comprometem, no contrato social (CC, art. 1.052). É esse o limite de sua responsabilidade.”23
Todavia, historicamente, a limitação de responsabilidade não surgiu
atrelada ao instituto da personalidade jurídica, havendo um grande período
durante o qual a responsabilidade dos sócios de uma pessoa jurídica não era
limitada. Segundo Karen Vandekerckhove, enquanto o reconhecimento de
personalidade jurídica às entidades empresárias remontaria ao Século XVII, a
limitação de responsabilidade dos seus proprietários teria sido adotada pelos
23
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 402.
33
diversos países apenas a partir do Século XIX, como exigência da crescente
necessidade de investimento privado na atividade econômica:
“The need for limited liability arose out of the growth of enterprises in the nineteenth century, needing increasing investment and capital accumulation. In order to encourage such growth, it proved necessary to protect investors, limiting their potential liability to the amount of their capital investment. In continental Europe, limited liability has been consecrated following its adoption in Napoleon’s Commercial Code in 1807. In Belgium, for instance, it became generally available in 1873. In the United States, limited liability became firmly established as the general rule by 1830. The determination of the period when limited liability emerged in the United Kingdom is the subject of debate. On the legislative front, it was only in 1855 and 1856 that the English Parliament enacted the first Limited Liability Act and the Joint Stock Companies Act.”24
Nesse sentido, Pontes de Miranda já enunciava que a separação
patrimonial entre a pessoa jurídica e as pessoas dos sócios é uma criação do
Direito Positivo25. Tanto é que, atualmente, ainda há formas societárias segundo
as quais a personalidade jurídica não é acompanhada da limitação de
responsabilidade de seus sócios, como é o caso, por exemplo, das sociedades
em nome coletivo no Direito brasileiro:
“Há direitos, como o do Reino Unido (Farrar-Hannigan, 1985:79/81), que associam a personalização da sociedade à limitação da responsabilidade dos sócios. Para tais sistemas, as sociedades em que os sócios respondem integralmente pelas obrigações sociais são despersonalizadas. Em outras ordens jurídicas, inclusive a brasileira, não existe necessária correlação
24
“A necessidade de limitação de responsabilidade surgiu com o crescimento das empresas no século XIX, necessitando de crescentes investimentos e acúmulo de capital. De forma a encorajar esse crescimento, provou-se necessário proteger os investidores, limitando sua potencial contingência ao valor do capital por eles investido. Na Europa continental, a limitação de responsabilidade foi consagrada após sua adoção no Código Comercial de Napoleão em 1807. Na Bélgica, por exemplo, ela se tornou regra corrente em 1873. Nos EUA, a limitação de responsabilidade se estabeleceu como regra geral por volta de 1830. A determinação de quando a limitação de responsabilidade emergiu no Reino Unido é objeto de debate. Na frente legislativa, foi apenas em 1855 e 1856 que o Parlamento Inglês promulgou a primeira Lei de Responsabilidade Limitada e a Lei de Sociedades por Ações” (tradução livre, VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 4).
25MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. v. 5, p. 344.
34
entre esses dois temas societários. A personalização da sociedade não está ligada sempre à limitação da responsabilidade dos seus integrantes. Quer dizer, há no Brasil sociedades personalizadas em que sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais (p.ex., a sociedade empresária em nome coletivo), assim como há uma hipótese de articulação de esforços despersonalizada, em que os participantes podem responder dentro de um limite (os sócios participantes da conta de participação, se assim previsto em contrato).”26
Como bem anota Marçal Justen Filho, a limitação de responsabilidade
inicialmente era reservada pelo Direito às sociedades que desenvolviam
atividades de caráter publicístico, como era o caso das companhias ultramarinas,
que ampliavam o poder, a influência e a riqueza das nações:
“A sociedade anônima do século XIX filiava-se às companhias ultramarinas, que nasceram com extremado cunho publicístico. A sociedade anônima era visualizada como um corpo que não se identificava com os interesses e a pessoa dos sócios, ao contrário das sociedades ditas contratuais (de pessoas).”27
Também Fábio Konder Comparato chama a atenção para o fato de que a
personalidade jurídica é apenas mais uma das ferramentas adotadas pelo Direito
para promover a blindagem patrimonial, existindo outras formas de limitação de
responsabilidade que não estão de qualquer forma vinculadas à autonomia
patrimonial da pessoa jurídica:
“O que não se pode perder de vista é o fato de ser a personalização uma técnica jurídica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a esfera da subjetividade, em direito. Nem todo sujeito de direito é uma pessoa. Assim, a lei reconhece a certos agregados patrimoniais, como espólio ou a massa falida, sem personalizá-los. E o direito comercial tem, nesse particular, importantes
26
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 7. 27
JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 23.
35
exemplos históricos, com a parceria marítima, as sociedades ditas irregulares ou a sociedade em conta de participação.
No curso da História, são numerosos os exemplos de técnicas jurídicas de gestão de um patrimônio, em benefício coletivo, sem a criação de uma pessoa coletiva. No direito romano, o patrimônio dos collegia e das solidates pertencia a um só dos membros. A corporation sole, do velho direito inglês, compreendia a Coroa e os ofícios eclesiásticos, tais como o do bispo e o do vigário. O trust alcança o objetivo da separação patrimonial sem personalização, assim como a propriedade em mão comum do direito germânico.”28
Como destaca Phillip Blumberg, a adoção universal da responsabilidade
limitada como regra por muitos ordenamentos jurídicos do mundo ocidental
resulta de legislações relativamente recentes, que revelam antes uma opção
político-econômica, e não uma decorrência natural e necessária da própria
natureza da pessoa jurídica29. Na Inglaterra, até o final do Século XVI, os
Tribunais não tratavam da limitação de responsabilidade dos sócios das
sociedades de capital fechado, até porque tais sociedades normalmente
contavam com o caráter publicístico e a proteção do Estado, acima relatados. A
partir desse momento, no entanto, algumas sociedades passaram a prever tal
limitação em seus respectivos contratos sociais. Gradativamente, até o fim do
Século XVIII, o Direito Inglês passou a entender que, na ausência de disposição
expressa no contrato social, a responsabilidade limitada dos sócios deveria
prevalecer. No que se refere às sociedades por ações livremente negociadas, por
sua vez, desde o início o Direito inglês entendeu pela responsabilidade ilimitada
dos sócios. Nessa forma de sociedade, não havendo qualquer caráter publicístico,
a priori, ou proteção governamental, desde logo se aceitou que aqueles que se
aventurassem nos negócios da sociedade deveriam estar preparados para arcar
28
COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, cit., p. 290-291. 29
BLUMBERG, Phillip I. op. cit., p. 7 e ss.
36
com suas dívidas, caso o capital social fosse insuficiente para tanto. A primeira
manifestação da limitação de responsabilidade nessa forma de sociedade se deu
por meio dos contratos sociais, nos quais as sociedades passaram cada vez mais
a prever a inexistência de responsabilidade dos sócios da pessoa jurídica. Tais
disposições, em que pese o fato de serem válidas para a relação mantida entre a
sociedade e seus respectivos sócios, e entre esses, não podiam ser opostas aos
terceiros os quais a sociedade contratava, com o que, perante esses, a
responsabilidade dos sócios permanecia sendo ilimitada.
A fim de tentar mitigar essa situação, até meados do século XVIII a maior
parte das sociedades procurava incluir nos contratos celebrados com terceiros a
previsão de limitação da responsabilidade dos seus sócios, o que também era
visto com reservas, uma vez que, entendia-se, tais sociedades procuravam obter
os benefícios das sociedades de capital fechado sem incorrer nos custos e
burocracias enfrentadas por essas sociedades (que incluíam, entre outras, a
obtenção de autorização estatal para sua constituição). Independentemente
dessa questão em aberto, as sociedades de ações livremente negociadas se
expandiram, uma vez que as sociedades de capital fechado continuavam sendo
custosas, além de ser difícil obter autorização estatal para sua constituição.
A crescente necessidade de capital para possibilitar os altos
investimentos exigidos pela industrialização logo tornou o tema da limitação da
responsabilidade uma questão política relevante. Se, de um lado, os empresários
exigiam a adoção da limitação, como ferramenta para estimular os investimentos
necessários à capitalização das sociedades, de outro, a cultura agrária da
população estimulava um comportamento de hostilidade com relação às
sociedades comerciais e via a limitação de responsabilidade como um privilégio
37
injustificável. Se as famílias que desempenhavam atividades agrícolas e
pecuárias há séculos sempre responderam de forma ilimitada pelo insucesso de
seus negócios, não havia justificativas para que a nova classe de empresários
capitalistas fosse poupada desse risco. Propostas legislativas de limitação de
responsabilidade na Inglaterra geraram muitas manifestações contrárias, sendo
duramente criticadas. Além da preocupação econômica, uma vez que a limitação
era vista como estímulo ao investimento especulativo e à irresponsabilidade,
havia um forte apelo moral dos que temiam as consequências que uma norma
que suprimisse responsabilidades poderia causar no seio da comunidade.
Após muitos debates, a primeira norma a tratar do tema, a Lei de
Registro, Incorporação e Regulação das Sociedades de Capital Aberto, de 1844,
continha a previsão de que os sócios eram solidariamente responsáveis pelas
obrigações da sociedade que não fossem satisfeitas com seu próprio patrimônio.
Contudo, tal Lei permaneceu em vigor por pouco mais de uma década. Entre os
fatores que levaram à sua revogação, destaca-se sua ineficácia, uma vez que não
impedia a transferência de ações como meio de evitar a responsabilização do
sócio; assim como o desestímulo que causou aos investimentos por parte das
camadas mais ricas da população, conquanto a previsão de responsabilidade
solidária dos sócios fez com que os indivíduos de maior patrimônio temessem
que, inadimplida uma obrigação societária, os credores tenderiam a exigi-la
daquele que demonstrasse maior possibilidade de arcar com o seu pagamento.
Ainda, fatores de ordem prática reduziram a resistência popular à ideia de
limitação de responsabilidade, como, por exemplo, a necessidade de instituição
da responsabilidade limitada decorrente das atividades relacionadas à construção
e à administração de estradas de ferro.
38
Finalmente, a Lei de Responsabilidade Limitada, de 1855, e a Lei das
Sociedades por Ações, de 1856, fizeram com o que o Direito Inglês passasse a
adotar a limitação de responsabilidade como regra, o que prevalece desde
então30.
No entanto, é interessante notar que a adoção da responsabilidade
limitada no Direito inglês só veio a ocorrer séculos após o reconhecimento das
sociedades como pessoas jurídicas de personalidade autônoma com relação à de
seus sócios, um século após a Revolução Industrial e décadas depois de sua
adoção nos EUA e na Europa continental. Portanto, a experiência inglesa
demonstra de forma inquestionável que a opção pela limitação de
responsabilidade decorre de propósitos políticos e econômicos, e não da própria
natureza da pessoa jurídica ou como decorrência necessária de autonomia de
sua personalidade jurídica com relação à de seus sócios.
A experiência norte-americana, por sua vez, coloca em dúvida a
concepção geral de que a limitação de responsabilidade corresponderia a uma
ampliação nos investimentos particulares na atividade econômica. No início do
Século XIX, a limitação de responsabilidade não era um tema central no cenário
político ou jurídico norte-americano. Também nos EUA, no entanto, as sociedades
de capital fechado, de caráter publicístico e dependentes de autorização estatal,
normalmente gozavam do benefício da limitação de responsabilidade. Em que
pese aos EUA terem, de início, ratificado a legislação inglesa no que diz respeito
às sociedade empresariais, as legislações de cada Estado não eram claras
quanto à existência ou não de limitação de responsabilidade com relação às
30
Para uma descrição detalhada da evolução da legislação inglesa sobre a limitação de responsabilidade, ver BLUMBERG, Phillip I. op. cit., p. 7 e ss.
39
sociedades de capital aberto. No Estado de Massachusetts, por exemplo, nenhum
contrato social de então previa a limitação de responsabilidade dos sócios pelas
obrigações societárias. No Estado da Nova Inglaterra, inclusive, a maior parte dos
contratos previa expressamente a responsabilidade ilimitada. Já naquele
momento, a jurisprudência de Tribunais dos Estados de Carolina do Sul, Nova
York e Geórgia reconheciam a possibilidade de o credor se valer do patrimônio
dos sócios de uma pessoa jurídica a fim de satisfazer um crédito detido contra
essa pessoa jurídica31.
Com o crescimento das sociedades e a premente necessidade de
captação de investimentos populares, no entanto, o entendimento dos Tribunais
passou a mudar, tendo início um movimento que passou a entender que, na
ausência da disposição em contrário no contrato social, a responsabilidade dos
sócios seria limitada ao valor investido na companhia. Como reflexo desse novo
posicionamento, a maioria dos Estados passou a adotar a responsabilidade
limitada como regra, com exceção de Nova Inglaterra, que apenas adotou a
responsabilidade limitada em 1830, e da Califórnia, que a adotou apenas no
Século XX. No entanto, deve-se ressaltar que, até o início do Século XX, a
maioria das legislações estaduais norte-americanas previa que a
responsabilidade limitada dos sócios não se resumia ao valor investido na
companhia, mas sim a um teto previamente estabelecido. Na maioria dos casos,
adotava-se como teto o mesmo valor investido (i.e., o sócio respondia com o valor
investido na sociedade, por exemplo, de US$ 1.000,00, e mais US$ 1.000,00 de
seu patrimônio pessoal), mas em alguns casos previa-se como teto duas vezes o
valor investido (i.e., se o investidor aplicou US$ 1.000,00 na sociedade, ainda
31
BLUMBERG, Phillip I. op. cit., p. 11.
40
poderia ser chamado a destinar mais US$ 2.000,00 de seu patrimônio pessoal
para saldar débitos não liquidados da companhia).
Também no caso dos Estados que adotavam como regra a ilimitação de
responsabilidade, na prática era rara a utilização do patrimônio particular dos
sócios para responder por dívidas da pessoa jurídica. No caso específico da
Califórnia, no entanto, há de se notar que a legislação não proibia a adoção da
cláusula de limitação de responsabilidade nos contratos firmados com terceiros.
Além disso, o prazo prescricional para cobrar qualquer valor dos sócios da pessoa
jurídica expirava em três anos a contar da data em que a obrigação foi
constituída, e não do momento do inadimplemento. Com isso, é possível que, na
prática, a responsabilização pessoal do sócio pelas dívidas societárias tenha
ocorrido em pouquíssimos casos.
De qualquer forma, a despeito da convivência de diferentes modelos de
responsabilidade societária nos EUA, naquele período, os economistas não são
capazes de indicar com segurança quais os efeitos para a economia dos
diferentes modelos adotados. Até a década de 1830, quando Massachusetts e
Rhode Island adotaram a responsabilidade limitada, não houve sinais de que tal
política tenha afetado de forma prejudicial o desenvolvimento econômico. Do
mesmo modo, a Califórnia, único Estado a manter a política de ilimitação de
responsabilidade por quase mais um século, conheceu um crescimento
prodigioso nesse período. No entanto, não é possível determinar se tais Estados
cresceram em razão dessa política, se o fizeram independentemente dessa
política ou a despeito dela. Em outras palavras, a análise puramente histórica não
permite determinar se a adoção da responsabilidade ilimitada foi responsável pelo
crescimento econômico desses Estados, se foi indiferente para esse crescimento
41
ou se impossibilitou que tal crescimento fosse ainda maior32.
No Brasil, a primeira norma a instituir claramente a limitação de
responsabilidade dos sócios das sociedades empresárias foi o Decreto nº 3.708,
de 10.1.1919, o qual regulou a constituição das sociedades por quotas de
responsabilidade limitada. Referido Decreto, editado a partir do capítulo destinado
a regular as sociedades de responsabilidade limitada no anteprojeto de Código
Comercial elaborado por Inglez de Souza, foi proposto pelo próprio governo
brasileiro e tinha como clara finalidade estimular o empreendedorismo privado,
retirando, assim, o país da economia extrativista e de monocultura então vigente.
Fato é que, por razões históricas, sociais, políticas e econômicas, optou-
se, em boa parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais, pelo modelo de limitação
de responsabilidade.
Como anota Karen Vandekerckhove, os economistas em geral enxergam
lados positivos e negativos na opção pela limitação de responsabilidade dos
proprietários da pessoa jurídica33. Quanto aos benefícios, a limitação de
responsabilidade é vista como uma forma de fomentar a atividade econômica e
atrair o investidor passivo, assim entendido como aquele que não participa da
administração e gestão dos negócios da sociedade, e que não investiria caso
estivesse exposto ao risco de ser responsabilizado ilimitadamente pelos débitos
da sociedade. Tal benefício, além de ser importante para o fomento da economia
em geral, é especificamente decisivo na criação das sociedades de grande porte,
aquelas responsáveis por desenvolver atividades tão complexas ou custosas que
jamais poderiam ser desenvolvidas por pequenas e médias sociedades ou, muitas
32
BLUMBERG, Phillip I. op. cit., p. 13-14. 33
VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 7 e ss.
42
vezes, pelo próprio Estado. Isso porque, tais sociedades dependem de um grau
de investimento que exige a participação de centenas, às vezes milhares de
indivíduos, sendo faticamente impossível que todos esses investidores
participassem da gestão e administração da sociedade. Em outras palavras, há
casos em que o investidor passivo é necessário, até mesmo indispensável para o
desenvolvimento da atividade econômica.
A limitação de responsabilidade é vista, ainda, como uma condição
indispensável ao estabelecimento do mercado de capitais como o conhecemos
hoje. Isso porque, caso a responsabilidade dos sócios fosse ilimitada, nenhum
investidor adquiriria ações de uma companhia sem antes conhecer todos os seus
demais sócios e analisar a situação financeira de cada um deles. Caso os sócios
tivessem que responder ilimitadamente pelos débitos da sociedade, isso
inviabilizaria um mercado no qual os investidores desconhecessem seus sócios
(como no caso das sociedades por ações comercializadas na bolsa de valores),
além de criar custos de informação que praticamente inviabilizariam qualquer
investimento, na medida em que o investidor passivo teria que realizar uma
análise exaustiva da situação econômica de todos os demais sócios de
determinada companhia antes de optar por realizar qualquer investimento. Por
outro lado, acreditamos que tais benefícios também seriam atingidos caso se
adotasse a responsabilidade ilimitada pro rata dos sócios, e não solidária, uma
vez que o investidor teria noção do valor de sua exposição e não precisaria
preocupar-se com a situação financeira dos demais acionistas.
Quanto aos aspectos negativos da limitação de responsabilidade, a
limitação de responsabilidade pode estimular investimentos de risco excessivo e
desencorajar as sociedades a adotarem medidas de redução de riscos de seus
43
negócios. Além disso, a limitação parece injusta nos casos de credores
involuntários, aqueles cujos créditos decorrem da responsabilização da sociedade
por um ato ilícito extracontratual (“tort”). Nesses casos, os credores não tiveram a
oportunidade de analisar a situação patrimonial da sociedade antes de contratá-
la. Não tiveram a oportunidade de exigir garantias adicionais dos proprietários da
sociedade e não assumiram voluntariamente o risco de ver seu crédito
inadimplido em razão da situação econômica da pessoa jurídica.
Por esse motivo, parte da doutrina norte-americana defende a abolição da
limitação de responsabilidade dos proprietários da pessoa jurídica por dívidas
decorrentes da prática de atos ilícitos extracontratuais.
Henry Hansmann e Reinier Kraakman, professores das Universidades de
Yale e Harvard, respectivamente, defendem que os proprietários sejam sempre
responsabilizados pelo pagamento de indenizações decorrentes de ilícitos
extracontratuais nos casos em que a pessoa jurídica não dispuser de recursos
para saldar tais indenizações.34 Os autores propõem que a responsabilidade dos
sócios pelas dívidas da pessoa jurídica fosse pro rata, isto é, proporcional à sua
participação no capital social da sociedade, e não solidária, como ocorre nos
casos de desconsideração da personalidade jurídica. Dessa forma, ficariam
mitigados os prejuízos representados pela ilimitação de responsabilidade, na
medida em que o investidor saberia que, ainda que seu risco não estivesse mais
limitado ao capital investido na sociedade, seria proporcional à sua participação
no patrimônio da sociedade empresarial.
No caso de investidores passivos, assim entendidos como aqueles que
34
HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Toward unlimited shareholder liability for corporate torts. Yale Legal Journal, n. 100, p. 1879, 1991.
44
apenas investem nas sociedades como forma de aplicação financeira, mantendo-
se distante da gestão dos negócios societários, a responsabilidade pro rata seria
justa por garantir que sua responsabilidade pelos débitos decorrentes de ilícitos
extracontratuais seria irrisória, já que a participação de tais investidores no capital
social das sociedades é, em regra, ínfima. De outro lado, também seria justo que
os investidores com maior participação societária no capital da sociedade
respondessem por uma maior parte dos débitos da companhia, na medida em
que sua posição lhes facultaria exercer maior supervisão sobre os negócios da
sociedade e, em alguns casos, até mesmo controlar ou influenciar diretamente a
condução de seus negócios.
Os críticos dessa teoria sustentam que seria difícil estabelecer as
pessoas sobre as quais recairia a responsabilidade, uma vez que a composição
societária de uma sociedade tende a mudar constantemente, especialmente no
que se refere às sociedades por ações negociadas na bolsa de valores. Em que
pese a Hanmann e Kraakman entendam que a responsabilidade deva recair
sobre os proprietários da sociedade à época em que a ação foi ajuizada, outros
defensores da teoria sugerem que tal responsabilidade recaia sobre os sócios ao
tempo em que a administração da sociedade teve ciência do ajuizamento da ação
ou de que tal ajuizamento seria altamente provável; outros que recaia sobre os
sócios no momento em que for proferida a sentença; e outros que afete os sócios
da sociedade no momento em que se concretizou o dano.
Além disso, parte da doutrina critica a teoria por promover uma distinção
artificial entre credores contratuais e credores involuntários. Segundo os críticos,
tal distinção parte do pressuposto falso de que todos os credores contratuais
tiveram a possibilidade de avaliar a situação patrimonial da sociedade e
45
assumiram conscientemente o risco de inadimplemento. Especialmente no que se
refere às relações de consumo, é evidente que mesmo o credor contratual pode
ser tido por involuntário, na medida em que não lhe é dado auditar a situação da
sociedade antes da contratação, não lhe sendo possível nem mesmo negociar as
condições do contrato ou a concessão de qualquer garantia adicional da parte dos
proprietários da sociedade fornecedora. Assim, não haveria motivos para tratar
diferentemente os consumidores que celebraram um contrato com o fornecedor
daqueles que não celebraram, se ambos sofreram prejuízos.
Quanto a esse aspecto, no entanto, quer nos parecer que bastaria
estender a ilimitação de responsabilidade aos casos de ilícitos extracontratuais e
ilícitos contratuais no que se refere aos contratos de adesão. Ainda assim, há
quem critique tal proposta por entender que seria difícil, na prática, aferir qual o
grau de liberdade que uma parte teria para negociar determinado contrato com a
pessoa jurídica. Ao que parece, no entanto, tal crítica é inaplicável aos contratos
de consumo, especialmente no que se refere aos instrumentos de adesão.
No Brasil, Fábio Ulhoa Coelho compartilha da opinião de que o
ordenamento jurídico deveria excepcionar o princípio da limitação da
responsabilidade com relação aos credores não negociais. Ainda assim, no
entanto, ressalta que tal exceção não se encontra prevista na legislação
atualmente em vigor, nem mesmo nas normas que regem as relações de
consumo:
“Em face da precariedade dos nossos textos legislativos, não se pode afirmar que o direito brasileiro tutele, integral e satisfatoriamente, os credores não negociais da sociedade limitada. Deveria fazê-lo, é certo; mas, atente-se, enquanto não aperfeiçoado o direito positivo, será ineficaz qualquer argumentação no sentido de restringir a separação patrimonial
46
entre sócio e sociedade. Em outros termos, enquanto não dispuser a ordem jurídica brasileira de previsão, excepcionando, especificamente, o tratamento a ser liberado aos direitos de determinado credor negocial, não podem a tecnologia e o juiz deixar de prestigiar a limitação da responsabilidade dos sócios. Quer dizer, só cabe, por enquanto, considerar como exceções válidas à responsabilização limitada dos sócios, porque previstas em lei, as referentes aos créditos tributários (CTN, art. 135, III) e aos da Seguridade Social (Lei n. 8.620/93, art. 13). Na tutela dos direitos dos consumidores, na proteção da concorrência e na repressão a práticas lesivas ao meio ambiente, a imputação da responsabilidade ao sócio deve atender aos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica. Os empregados e demais credores não negociais, por fim, enquanto editada regra que os beneficie expressamente, devem ter os seus direitos creditórios, perante a sociedade limitada, sujeitos à regra da autonomia patrimonial e da limitação da responsabilidade dos sócios.”35
Bem ou mal, a concepção econômica que ainda hoje prevalece é aquela
segundo a qual a limitação faz parte de uma política consciente dos ordenamentos
jurídicos, aceita pelas respectivas sociedades, de que a limitação de
responsabilidade constitui um “privilégio” cuja contrapartida é desejada e benéfica
para a sociedade. Ao incentivar a formação de sociedades e o desenvolvimento da
atividade econômica, a limitação da responsabilidade dos sócios fomenta a geração
de empregos, a produção de bens, a circulação de riquezas, a arrecadação tributária
e até mesmo o desenvolvimento tecnológico e cultural de um povo. Atente-se para
os comentários de Ada Pellegrini Grinover a esse respeito:
“A essa conveniência ou necessidade de criação da pessoa jurídica liga-se a idéia de limitação da responsabilidade dos sócios pelos atos praticados sob o manto da sociedade. Com efeito, é inegável ter sido essa limitação da responsabilidade dos que se unem em sociedade, mediante a separação entre o patrimônio dessa sociedade e o dos sócios, um dos principais avanços (e, porque não dizer, um dos principais atrativos) para o desenvolvimento dos grandes empreendimentos comerciais, hoje tão comuns em nossas vidas.”36
35
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 408. 36
GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo: estudos e pareceres. 2. ed. São Paulo: DPJ, 2009. p. 128 e 169.
47
Por meio da limitação de responsabilidade, o ordenamento jurídico permite
que um indivíduo destine parte de seu patrimônio a ser investido em uma
atividade produtiva, ciente de que, ainda que o empreendimento fracassar, o
prejuízo não ultrapassará aquela parcela, não afetará os demais bens
amealhados por aquele indivíduo. Especificamente no que se refere ao Direito
Brasileiro, a limitação de responsabilidade, percebida como forma de fomentar e
estimular o envolvimento da iniciativa privada na atividade econômica, é
plenamente condizente com o perfil traçado pela Constituição Federal de 1988. A
esse respeito, confira-se a doutrina de Fábio Ulhoa Coelho:
“[A limitação de responsabilidade] É, a rigor, um instrumento plenamente compatível com a ordem econômica desenhada pela Constituição, de natureza neoliberal, que reserva aos particulares a primazia na produção; isto porque o desenvolvimento desta para o atendimento das necessidades de todo corpo social exige, em tal sistema, mecanismos de motivação da iniciativa privada, entre os quais se ressalta a limitação do risco na exploração da atividade econômica através do princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas.”37
O mesmo autor destaca a importância da autonomia patrimonial para a
sociedade contemporânea, especialmente no Brasil, sem a qual os próprios
consumidores seriam prejudicados, na medida em que o desestímulo ao
investimento em empresas levaria a uma escassez de bens e serviços oferecidos
no mercado:
“Esse é o princípio da autonomia patrimonial, alicerce do direito societário. Sua importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, da produção e circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida em que limita a possibilidade de perdas nos investimentos mais arriscados. A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde
37
COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 216.
48
por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais. No final, o potencial econômico do País não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e serviços. O princípio da autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma adequada a exploração da atividade econômica.”38
E, mais adiante, na mesma obra:
“À limitação da responsabilidade dos sócios, na limitada, corresponde a regra jurídica de estímulo à exploração das atividades econômicas. Seu beneficiário indireto e último é o próprio consumidor. De fato, poucas pessoas, ou nenhuma, dedicar-se-iam a organizar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse redundar a perda de todo o patrimônio, amealhado ao longo de anos de trabalho e investimento, de uma ou mais gerações. A limitação de responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens ou serviços. Sem essa proteção patrimonial, os empreendedores canalizariam seus esforços e capitais a empreendimentos já consolidados. Os novos produtos e serviços somente conseguiriam atrair o interesse dos capitalistas se acenassem com altíssima rentabilidade, compensatória do risco de perda de todos os bens. Isso significa, em outros termos, que o preço das inovações, para o consumidor, acabaria sendo muito maior do que costuma ser, sob a égide da regra de limitação da responsabilidade dos sócios, já que esses preços deveriam cobrir custos e gerar lucros extraordinários, capazes de remunerar o risco de perda total do patrimônio, a que se expôs o empreendedor. A limitação de responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é, em suma, direito-custo (Cap. 2, itens 3 e 4).”39
Em conclusão, se, de um lado, a opção pela limitação de responsabilidade
apresenta prejuízos aos credores involuntários, de outro, representa benefícios
38
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 16. 39
Id. Ibid., p. 402.
49
econômicos que não poderiam ser alcançados de outra forma. Ao fazê-lo, a
limitação de responsabilidade é condizente com a finalidade da sociedade ao
instituí-la, fomentando o investimento privado na atividade econômica, gerando
empregos, arrecadação para o Estado e progresso científico, cultural e social.
50
5. ORIGEM HISTÓRICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Antes mesmo do surgimento da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, a doutrina já se preocupava com os abusos cometidos por
meio da pessoa jurídica, havendo registros de uma teoria desenvolvida por
Hausmann, na Alemanha, com o fito de ignorar a forma societária e imputar
diretamente ao controlador da pessoa jurídica a responsabilidade pelas
obrigações por ela assumidas e não satisfeitas. Tratava-se da teoria da
soberania, de traços muito semelhantes à desconsideração da personalidade
jurídica, mas que não apresentou grande repercussão nos meios jurídicos e nem
receptividade nos Tribunais40.
A despeito de algumas divergências quanto ao tema, a doutrina
contemporânea destaca o caso Bank of United States vs. Deveaux como a
primeira decisão judicial que teria aplicado a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, ainda em 1809. O caso envolvia uma disputa entre um
banco e uma pessoa física na qual se discutia quais seriam a lei de regência e o
foro aplicáveis ao caso já que, segundo o artigo 111, Seção II, da Constituição
norte-americana, a Lei Federal seria aplicável a todos os casos que envolvessem
cidadãos com domicílio em Estados diferentes, com o consequente deslocamento
de competência para a Justiça Federal. Nesse caso específico, a discussão
travada tinha como foco principal a questão de que se deveria ser aplicada a
40
FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. op. cit., p. 29.
51
Legislação Federal ao caso, uma vez que, mesmo que o Banco tivesse sede em
Estado diverso da parte contrária, não se compreendia como um banco poderia
ser caracterizado como “cidadão”. Diante disso, o Juiz Marshall, da Suprema
Corte, teria decidido pela aplicação da Lei Federal ao caso, uma vez que o
domicílio das pessoas físicas que compunham a sociedade (Bank of United
States), às quais certamente deveria ser conferido status de “cidadão”, era
diferente do domicílio da parte contrária na demanda (outra pessoa física). Na
prática, o que se verificou, portanto, foi o afastamento da personalidade jurídica
para, desconsiderando-se a personalidade jurídica do banco, substituí-lo pela
pessoa de todos os seus proprietários, cujos domicílios eram diferentes daquele
da parte contrária e que certamente poderiam ser enquadrados como “cidadãos”.
Em que pese o fato de grande parte da doutrina enunciar esse como o
primeiro caso de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, entendemos que, ainda que a personalidade jurídica do banco tenha, de
fato, sido desconsiderada na prática, esse caso em nada se assemelha à teoria
da desconsideração da personalidade jurídica. Na decisão proferida pelo Juiz
Marshall, não houve qualquer justificativa para desconsideração da personalidade
jurídica do banco, não havendo menção ao fato de que os seus proprietários
teriam utilizado a pessoa jurídica para mascarar uma situação de fato, prejudicar
terceiros ou fraudar a lei. Não houve alegação de desvio de finalidade da pessoa
jurídica ou qualquer hipótese de violação da lei que pudesse provocar o
afastamento da personalidade jurídica. Não se tem notícia, seja na decisão que
determinou o afastamento da personalidade jurídica, seja na doutrina que se
refere ao caso, de qual o fundamento para a desconsideração da personalidade
jurídica naquele caso concreto, mas apenas da finalidade almejada pelo Juiz
52
Marshall, qual seja, a de garantir a aplicação da Lei Federal ao caso, conforme
preconizado pela Constituição norte-americana. Muito embora a decisão tenha
tido o efeito de afastar a personalidade jurídica, tal decisão em nada se confunde
com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Na verdade, o fundamento do decisum seria a teoria da ficção da pessoa
jurídica, tendo a Suprema Corte interpretado a pessoa jurídica como uma ficção,
devendo o seu domicílio ser extraído das pessoas reais e concretas que a
compunham. Dessa forma, a despeito de a grande maioria da doutrina
caracterizar o caso Bank of United States vs. Deveaux como o leading case da
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, entendemos
que em tal caso a decisão da Suprema Corte Norte-Americana não se relaciona
com os fundamentos da aludida teoria. Ainda que os efeitos da decisão tenham
sido os mesmos almejados pela teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, os fundamentos dessa decisão em nada se relacionam aos da referida
teoria.
Nesse sentido, o caso clássico registrado por quase todos os manuais de
Direito Privado que tratam da utilização de personalidade jurídica para fins
ilegítimos teve palco na Inglaterra, ainda em 1898, quase um século após a
decisão proferida no caso Bank of United States vs. Deveaux, sendo hoje referido
como o caso Salomon vs. Salomon & Co.
Aaron Salomon era um comerciante de sapatos e botas que exercia o
comércio em Londres por meio de uma sociedade denominada A. Salomon & Co.,
na qual também trabalhavam quatro de seus seis filhos. Em 1892, já quando
atuava no ramo há mais de trinta anos, Salomon constituiu uma sociedade por
53
ações, tendo observado todos os requisitos legais então existentes, tal como a
necessidade da presença de sete sócios, no caso, sua mulher e cinco filhos.
Desde logo, os sócio nomearam Salomon e dois de seus filhos como diretores da
nova sociedade, denominada Aaron Salomon & Co. Ltd. A nova sociedade, de
responsabilidade limitada, teve seu capital social dividido em 40.000 ações, no
valor de £1,00 cada ação. Em 2.8.1892, a sociedade de Salomon (Salomon &
Co.) foi transferida para a nova sociedade por um preço considerado, na época,
exorbitante (mais de £38.000, quando sua sociedade era estimada em algo em
torno de £10.000). Como pagamento pela aquisição da sociedade, Aaron
Salomon & Co. Ltd. entregou a Salomon 20.000 quotas no valor total de £20.000,
e cem debêntures no valor total de £10.000. As £10.000 restantes constituíram
uma dívida em aberto, garantida por meio da hipoteca de todos os bens da Aaron
Salomon & Co. Ltd., que vinham a ser, em verdade, o estabelecimento e os bens
de produção que lhe foram alienados pela A. Salomon & Co. Logo após a
constituição da Aaron Salomon & Co. Ltd., teve início um período de retração do
comércio de sapatos e botas em Londres, com a perda de vários contratos da
parte da Aaron Salomon & Co. Ltd., o que levou à liquidação da companhia e à
venda de seus ativos.
Durante o processo de liquidação, o liquidante entendeu que a aquisição
da sociedade A. Salomon & Co. havia sido fraudulenta, uma vez que o valor de
compra da sociedade seria excessivo. Tendo em vista que a dívida ainda
existente com Salomon e a garantia a ele concedida inviabilizariam o pagamento
dos créditos dos demais credores, quirografários, o liquidante requereu em juízo
fosse desconsiderada a personalidade jurídica da Aaron Salomon & Co. Ltd. a fim
de reconhecer que a sociedade se confundia com a pessoa de seu sócio
54
majoritário, Salomon. O objetivo do liquidante era evidenciar que Salomon utilizou
a Aaron Salomon & Co. Ltd. para obter um fim ilícito, limitando a sua
responsabilidade em prejuízo dos credores da sociedade e, com isso,
responsabilizar diretamente Salomon pelo pagamento das dívidas da Aaron
Salomon & Co. Ltd.
O Juiz de Primeira Instância, Vaughan Williams J., acolheu o pedido do
liquidante a fim de desconsiderar a personalidade jurídica da Aaron Salomon &
Co. Ltd., de modo a permitir que os credores quirografários da sociedade
buscassem o patrimônio pessoal de Salomon a fim de satisfazerem seus créditos.
O Juízo entendeu que Salomon havia utilizado a sociedade de forma fraudulenta
e com desvio de finalidade, o que motivou o afastamento da figura da pessoa
jurídica, a fim de responsabilizar diretamente Salomon pelo pagamento das
dívidas remanescentes. O curioso é que, ainda que esse seja tratado como
leading case da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pelos
Tribunais, fato é que Salomon recorreu contra essa decisão, sendo certo que a
House of Lords, última instância inglesa com jurisdição para decidir o litígio,
entendeu por maioria de votos que, uma vez observados os requisitos formais
legalmente previstos, a autonomia da pessoa jurídica deveria ser preservada, não
sendo possível responsabilizar Salomon pelas dívidas da sociedade. A House of
Lords julgou procedente o recurso interposto por Salomon, para o fim de restituir a
figura da Aaron Salomon & Co. Ltd. e declarar que apenas o patrimônio da
sociedade poderia ser utilizado para saldar suas dívidas, após a quitação do
crédito preferencial de Salomon. Nas razões de seu voto, Lord Halsbury
consignou expressamente que, uma vez observadas as formalidade legais, a
pessoa jurídica foi legalmente constituída e deveria ter sua autonomia e
55
personalidade preservadas, sendo irrelevantes os motivos e finalidades almejadas
pelos indivíduos que a constituíram. Ainda, a decisão reconheceu que Salomon
teria agido com boa-fé, sendo certo que a criação da Aaron Salomon & Co. Ltd.
constituiria uma forma de planejamento empresarial legítima e formalmente
irrepreensível.
Curiosamente, o leading case da desconsideração da personalidade
jurídica trouxe uma hipótese na qual os Tribunais entenderam pela improcedência
da desconsideração, ainda que estivessem presentes todos os indícios de má
utilização da personalidade jurídica e o desvio de sua finalidade. Aqui, cumpre
destacar que, se, de um lado, o caso Salomon vs. Salomon & Co. provocou
reflexões na doutrina quanto à desconsideração da personalidade jurídica, de
outro, deu início a um movimento da jurisprudência inglesa de extrema resistência
à desconsideração, o qual se verifica até hoje. Conforme será exposto neste
trabalho, ainda hoje as Cortes inglesas são extremamente reticentes em conceder
a desconsideração da personalidade jurídica, mantendo-se fiéis à formalidade e
às regras procedimentais de constituição e preservação da personalidade jurídica.
56
6. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
6.1. Conceito
Como exposto acima, a opção pela consagração da personalidade jurídica
decorreu da intenção do Estado de incentivar o investimento privado na
economia, a fim de propiciar a geração de empregos, a arrecadação tributária e o
progresso econômico e cultural da sociedade. No entanto, o uso da personalidade
jurídica, como qualquer ferramenta, pode ser desvirtuado, de modo a não atingir a
finalidade almejada pelo Estado, mas sim propiciar o abuso de direito ou a fraude
à lei, com o que o ordenamento jurídico não pode concordar. Assim como cabe ao
Estado conceder o privilégio da personificação, também lhe é permitido fazer
cessar tal privilégio nos casos em que as finalidades do instituto forem
desvirtuadas pelo particular.
Um dos grandes responsáveis pela sistematização e desenvolvimento da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi o alemão Rolf Serick, da
Universidade de Heideberg41. Como se extrai da doutrina de Serick, quando a
pessoa jurídica é utilizada como ferramenta para prejudicar credores, para eximir
os sócios de uma obrigação legalmente prevista, para elidir a aplicação de uma
lei, os Tribunais poderiam desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade,
para responsabilizar seus sócios pelas obrigações contraídas por tal sociedade.
Tratava-se, portanto, de uma solução para casos em que o respeito à forma e à
autonomia das pessoas jurídicas poderia causar tamanha injustiça e iniquidade
41
Ver SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Tradução de Marco Vitale. Milano: Giuffrè, 1966.
57
que não poderia ser prestigiado pelo Direito.
Desde logo, no entanto, Serick destacou que a simples existência de
prejuízo decorrente do princípio da autonomia patrimonial não seria suficiente
para ocasionar a desconsideração. Sendo essa uma medida extrema e de
exceção, a desconsideração apenas poderia tomar palco nos casos em que
houvesse deliberada intenção dos sócios de prejudicar terceiros, de utilizar a
pessoa jurídica de maneira fraudulenta e abusiva. Nesse sentido, Serick propõe
quatro princípios que embasariam a sua teoria, quais sejam, (i) o abuso de direito,
(ii) a ilicitude, (iii) o paralelismo com a pessoa natural e (iv) o próprio direito
objetivo.
De forma geral, o autor entendia que o abuso estaria caracterizado nos
casos em que o uso da pessoa jurídica se destinasse a evitar a incidência de uma
norma legal ou de uma obrigação contratualmente assumida. Como exemplo,
cite-se o caso de uma sociedade que esteja legalmente proibida de atuar em
determinado ramo de atividade (i.e., em razão de vedações decorrentes das leis
de concorrência) e constitua outra pessoa jurídica que utilize como intermediária
para atuar nesse ramo, de forma contrária à lei. Ou, ainda, a hipótese de um
indivíduo que, deixando determinada sociedade, assuma o compromisso de não
atuar naquele mesmo ramo de atividade por determinado período e, em total
desrespeito a tal obrigação, constitua uma pessoa jurídica para desempenhar a
mesma atividade, em seu lugar.
Quanto à ilicitude, Serick destaca que a desconsideração não pode ocorrer
apenas como forma de garantir que uma finalidade legalmente prevista seja
atingida. No entanto, haveria determinadas normas societárias de tamanha
58
importância, que o descumprimento de sua finalidade, provocado por meio da
personalidade jurídica, justificaria, por si só, o afastamento da personalidade
jurídica.
O terceiro princípio se refere à circunstância na qual, não sendo possível
imputar características humanas à pessoa jurídica, a sua personalidade deva ser
afastada a fim de que se considerem as características de seus sócios. Como
exemplo dessa hipótese, mencione-se o caso de um pai que não possa doar
determinado bem a um filho sob pena de violação do direito à legítima dos demais
herdeiros. Nesse caso, o indivíduo poderia constituir uma pessoa jurídica em
sociedade com o filho e integralizar o capital por meio da entrega do bem e, em
um segundo momento, retirar-se da sociedade. Ato contínuo, a sociedade poderia
ser dissolvida, com o filho recebendo o bem, na qualidade de único sócio
remanescente. Nessa hipótese, em que pese o fato de que não se pudesse
considerar que a pessoa jurídica seria o pai do sócio beneficiado e que, portanto,
estaria proibida de intermediar a entrega do bem ao referido sócio, a
personalidade jurídica poderia ser desconsiderada para atribuir à sociedade às
características humanas próprias de seus sócios (pai e filho).
Por fim, o quarto princípio estaria relacionado aos casos nos quais o uso da
pessoa jurídica mascararia o efetivo sujeito participante do negócio jurídico,
evitando, com isso, uma norma do ordenamento jurídico (v.g. em um caso no qual
um indivíduo A fosse devedor se um sujeito B e a sociedade controlada por A
fosse credora do sujeito B e, mesmo não dispondo de bens para pagar a dívida, A
não aceitasse a compensação de créditos, na medida em que as partes nos
negócios jurídicos seriam diferentes – em um o sujeito A, pessoa física, e no
outro, sua sociedade).
59
O que se nota, portanto, é que, antes de sistematizar requisitos para
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, Serick limitou-se a
enumerar as situações de fato em que, sob sua concepção, o princípio da
autonomia da pessoa jurídica não deveria prevalecer.
Na Itália, por sua vez, o superamento, como é tratada a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica naquele país, contou com as
importantes contribuições de Tullio Ascarelli, Nicola Distaso e Piero Verrucoli.
Ascarelli procurou justificar o superamento da personalidade jurídica com base na
doutrina dos negócios jurídicos indiretos, assim entendidos como aqueles
negócios por meio dos quais as partes pretendem obter resultado diferente do
ordinariamente esperado. Distaso, por sua vez, rejeita a proposta de Ascarelli, por
entender que a teoria do superamento não se adequa a qualquer instituto jurídico
já conhecido, como a disciplina dos negócios indiretos, da simulação ou da
fraude. Distaso procura localizar na Jurisprudência dos Interesses a origem e o
fundamento de validade da teoria do superamento, na medida em que o Juiz
deveria analisar os atos da pessoa jurídica tendo por base os interesses
envolvidos no caso concreto, a equidade e os valores éticos da sociedade.
Verrucoli, por sua vez, cujo trabalho encontrou maior repercussão na doutrina em
geral, enxerga na autonomia da pessoa jurídica um privilégio concedido pelo
Estado para a consecução de fins específicos, como a união de patrimônios e
esforços para o desenvolvimento de atividades econômicas. A partir do momento,
no entanto, em que a pessoa jurídica passa a ser utilizada com desvio dessa
finalidade, em proveito pessoal dos sócios ou administradores, o fundamento
desse privilégio deixa de existir, competindo ao próprio Estado, que o concedeu
em primeiro lugar, retirá-lo.
60
Segundo define a doutrina contemporânea, a desconsideração da
personalidade jurídica envolve a ineficácia da autonomia da pessoa jurídica em
determinado caso concreto, de forma que recaia sobre o proprietário da
sociedade a responsabilidade por condutas ou passivos que, de outra forma,
recairiam exclusivamente sobre a pessoa jurídica. Nas palavras de Rubens
Requião:
“Com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).”42
Este é o conceito oferecido por Fábio Ulhoa Coelho:
“O juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, se verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito.”43
Quer nos parecer, no entanto, que o autor não pretende identificar a teoria
da desconsideração da personalidade jurídica com os institutos da fraude e do
abuso de direito, pura e simplesmente, até porque, em sua obra, remete a
hipóteses em que a desconsideração não seria explicada apenas em razão
desses institutos. Fábio Konder Comparato é contrário a tal identificação,
preferindo destacar que a desconsideração da personalidade jurídica está
relacionada a um desvio de função, ou uma disfunção da própria personalidade
42
REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 58, n. 410, p. 17, dez. 1969.
43COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1989.
61
jurídica, em prejuízo de terceiros ou dos próprios sócios:
“Toda pessoa jurídica é criada para o desempenho de funções determinadas, gerais e especiais. A função geral da personalização de coletividades consiste na criação de um centro de interesses autônomo, relativamente às vicissitudes que afetam a existência das pessoas físicas que lhe deram origem, ou que atuam em sua área: fundadores, sócios, administradores. As funções específicas variam, conforme as diferentes categorias de pessoas jurídicas e, ainda, dentro de cada categoria, de coletividade a coletividade, em razão de seus atos constitutivos, estatutos ou contratos sociais. A desconsideração da personalidade jurídica é operada como conseqüência de um desvio de função, ou disfunção, resultante sem dúvida, as mais das vezes, de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito. Daí por que não se deve cogitar à sanção de invalidade, pela inadequação de sua excessiva amplitude, e sim da ineficácia relativa.”44
Importante frisar que a desconsideração da personalidade jurídica não leva à
desconstituição do próprio ato jurídico praticado, mas sim da proteção que a
autonomia patrimonial confere aos proprietários da sociedade. Como nota definidora,
a doutrina entende que a desconsideração da personalidade jurídica redunda (i) na
superação do regime habitual de responsabilidade instituído para determinada
sociedade empresária; (ii) na limitação dessa superação ao caso sub judice, isto é,
uma vez desconsiderada a personalidade jurídica de uma sociedade, apenas os atos
que levaram a essa desconsideração serão imputados aos respectivos sócios, o que
não atinge, de forma alguma, a responsabilidade pelos demais atos já praticados ou
que vierem a ser praticados pela sociedade e que com eles não se relacionem; e (iii)
na conservação da eficácia e da validade dos atos jurídicos que levaram à
necessidade de desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, atente-se
para os comentários de Fábio Konder Comparato:
44
COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, cit., p. 286.
62
“Importa, no entanto, distinguir entre despersonalização e desconsideração (relativa) da personalidade jurídica. Na primeira, a pessoa coletiva desaparece como sujeito autônomo, em razão da falta original ou superveniente de suas condições de existência, como por exemplo, a invalidade do contrato social ou a dissolução da sociedade. Na segunda, subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes; mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão-só para o caso concreto.”45
Em resumo, a desconsideração da personalidade jurídica não implica a
extinção da sociedade ou a desconstituição de todos os atos e negócios por ela
praticados. Pelo contrário, apenas resulta em seus sócios terem que responder
por tais atos, com seus patrimônios pessoais, uma vez que plenamente válidos e
eficazes. A título de exemplo, caso uma sociedade seja utilizada como ferramenta
para evitar, de forma ilícita o ressarcimento de danos sofridos por um consumidor,
o interesse juridicamente tutelado desse consumidor não necessariamente está
na declaração de nulidade do ato que gerou tal prejuízo, com a restituição do
status quo ante. Antes, o verdadeiro interesse do consumidor está na validade do
negócio jurídico celebrado com o fornecedor e no reconhecimento de que,
advindo danos de tal negócio, a responsabilidade por indenizá-los será dos
proprietários da sociedade, que a utilizaram com desvio de finalidade ou em
fraude à lei.
Diferentemente do que acreditam alguns, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica não enfraquece ou questiona a autonomia da pessoa
jurídica e sua personalidade. Pelo contrário, se bem aplicada, a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica reforça a importância da pessoa
jurídica e serve justamente para garantir que tal instituto seja respeitado sempre
45
COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, cit., p. 283.
63
que os sócios e administradores atuarem de acordo com as finalidades
legalmente previstas, nenhuma responsabilidade podendo lhes ser imputada por
atos praticados pela sociedade.
6.2. Desconsideração e vício dos atos jurídicos
Muitos autores, especialmente civilistas, consideram a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica desnecessária, uma vez que o
ordenamento jurídico contemporâneo já contaria com normas e princípios
suficientes para evitar o abuso da utilização da pessoa jurídica. A esse respeito,
cite-se a doutrina de Márcio Tadeu Guimarães Nunes:
“[As hipóteses que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica] Nada mais são do que típicos preceitos de responsabilidade civil especial por ato ilícito diretamente atribuíveis aos gestores e controladores da pessoa jurídica, sem que se possa entender a razão pela qual tais normas são tratadas no contexto da superação da personalidade jurídica da sociedade, ainda mais diante do singelo argumento de que o simples obstáculo da separação patrimonial decorrente da personificação societária é razão suficiente à sua equiparação genérica ao regime do ato ilícito decorrente da teoria da desconsideração.“46
Ainda assim, mesmo que haja semelhanças entre a desconsideração da
personalidade jurídica e os vícios dos atos jurídicos, por exemplo, trata-se de
institutos jurídicos absolutamente diversos, e com consequências diversas. Com
efeito, não se questiona que tanto na desconsideração da personalidade jurídica
quanto nos vícios dos atos jurídicos, o Direito exclui a produção dos efeitos
pretendidos pelas partes, ou ao menos por uma delas, assim como afasta a
46
NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 30.
64
aplicação do regime jurídico ordinariamente aplicável. Como tal, tanto a
desconsideração da personalidade jurídica quanto os vícios dos negócios
jurídicos são considerados exceções no ordenamento jurídico. No entanto, as
semelhanças entre os institutos se resumem a isso.
Enquanto o vício do ato jurídico é compreendido como um defeito na
própria formação do ato, em sua estrutura existencial, a desconsideração é
ocasionada pela dissociação entre a finalidade almejada pelo ordenamento
jurídico ao instituir a figura da personalidade jurídica e o uso efetivo que foi feito
dessa figura. O vício, no caso da desconsideração, não se relaciona à estrutura
existencial do ato, ou à sua formação, mas sim à finalidade perseguida pelo
agente, necessariamente diversa daquela pretendida pela norma. No caso da
desconsideração da personalidade jurídica, a decisão que a decreta não afeta a
constituição da pessoa jurídica, como bem destacado por Fábio Konder
Comparato na passagem acima transcrita. Não se questiona ou analisa a validade
do ato de constituição da pessoa jurídica, mas sim a pertinência entre os atos da
sociedade e a finalidade legalmente prevista.
O mais importante, no entanto, é que as consequências da
desconsideração da personalidade jurídica e da aplicação da teoria dos vícios dos
atos jurídicos são absolutamente diversas. A desconsideração da personalidade
jurídica não implica, por si só, a invalidade de qualquer ato jurídico. Tratando-se
de desconsideração da personalidade jurídica, a regra é que os atos que
provocaram tal desconsideração são plenamente válidos e eficazes. O que ocorre
é apenas a deslocação do centro de imputação das consequências jurídicas
desses atos da pessoa jurídica para a pessoa dos seus proprietários ou
administradores. O reconhecimento do vício do ato jurídico, por sua vez, tem
65
como consequência natural a invalidade do ato em si, salvo nas hipóteses de
ineficácia. Uma vez violada a regra legal, o ato é tido por inválido e, como tal, não
se reconhece a própria existência do ato praticado.
O que se nota, portanto, é que a desconsideração da personalidade
jurídica é incompatível com os vícios dos atos jurídicos, na medida em que
pressupõe a existência de um ato formalmente válido e jurídico, apenas cujos
efeitos serão deslocados da pessoa que aparentemente o praticou para a pessoa
de seus proprietários. Confira-se o entendimento de Marçal Justen Filho quanto à
distinção entre desconsideração da personalidade jurídica e vício dos atos
jurídicos:
“O vício acarreta a não-produção dos efeitos desejados pelas partes, enquanto o superamento importa ou a atribuição do ato a pessoa diversa daquela a quem usualmente seria atribuível ou a incidência de regime jurídico (atinente à personificação societária) distinto daquele normalmente aplicável.”47
Assim, nota-se que a desconsideração da personalidade jurídica não pode
ser confundida com a disciplina do vício dos atos jurídicos.
Da mesma forma, parte da doutrina pretende identificar a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica com os institutos da fraude e do abuso
de direito, pura e simplesmente, entendendo que a aplicação de tais institutos,
aliada aos princípios gerais do direito, já seria suficiente para evitar a má
utilização da personalidade jurídica. Nesse ponto, Fábio Konder Comparato é
incisivo em rechaçar tal proposta, especialmente pelo fato de que tal abordagem
ignora as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica em benefício
47
JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 70.
66
do sócio controlador da sociedade:
“O efeito jurídico fundamental da personalização – separação de patrimônios – e que pode ser atingido por outras técnicas de direito, como lembramos, deve ser normalmente afastado, quando falte um dos pressupostos formais, estabelecidos em lei; e, também, quando desapareça a especificidade do objeto social de exploração de uma empresa determinada, ou do objetivo social de produção e distribuição de lucro – o primeiro como meio de atingir o segundo; ou, ainda, quando ambos se confundem com a atividade ou o interesse individuais de determinado sócio. A sanção jurídica, em tais casos, não deve ser, indistintamente, a nulidade (absoluta ou relativa) do ato, negócio ou da relação, mas a ineficácia. Não deve ser a destruição da ‘entidade’ pessoa jurídica, mas a suspensão dos efeitos da separação patrimonial in casu, acrescentando, um pouco mais adiante, que uma larga corrente teórica e jurisprudencial tem procurado justificar esse efeito do afastamento de personalidade com as noções de abuso de direito e de fraude à lei. A explicação não nos parece inteiramente aceitável. Ela deixa de lado os casos em que a ineficácia da separação patrimonial ocorre em benefício do controlador, sem qualquer abuso ou fraude, como por exemplo na interpretação ampliativa, feita pela jurisprudência brasileira, da norma constante do artigo 8, alínea ‘e’ do Decreto nº 24.150, de 1934, de modo a permitir a retomada do imóvel, na locação de prédio de fundo de comércio, pela sociedade cujo controlador é o proprietário do prédio.”48
Nessa linha, o autor propõe que a desconsideração da personalidade
jurídica, muito embora na maioria dos casos seja uma resposta a um desvio de
função da pessoa jurídica ocasionado por abuso de direito ou por fraude, nem
sempre decorre de ato ilícito, com o que pretender substituir a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica pelos institutos de Direito Civil já
conhecidos seria um equívoco.
48
COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, cit.
67
6.3. A desconsideração no Direito estrangeiro
6.3.1. Bélgica
Nos termos do artigo 2o do Código Societário da Bélgica, as sociedades de
responsabilidade limitada têm personalidade jurídica diversa da de seus
proprietários. Nesse sentido, os artigos 210 e 438 desse mesmo Código preveem
que os proprietários da sociedade não podem ser responsabilizados pelos débitos
dessa sociedade além do valor de sua participação no capital social da
sociedade. Da mesma forma, o artigo 61 do Código Societários determina que os
diretores das pessoas jurídicas não são pessoalmente responsáveis pelas dívidas
da sociedade.
A exemplo do que ocorre na maioria dos países, não há, na Bélgica,
normas gerais que prevejam os requisitos para aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, os casos mais
recorrentes em que se discute a possibilidade de afastamento da personalidade
jurídica se referem à extensão dos efeitos da falência de uma sociedade
empresária. Segundo a jurisprudência belga, os efeitos da falência de uma
pessoa jurídica podem ser estendidos ao seu proprietário, por meio da
desconsideração da personalidade jurídica, quando a pessoa jurídica é controlada
por esse proprietário, que a dirige de forma a satisfazer seus interesses
particulares, não havendo autonomia ou independência da sociedade com relação
ao seu proprietário. A jurisprudência belga tem concedido a desconsideração da
personalidade jurídica nos casos em que se considera que a pessoa jurídica foi
utilizada como um “espantalho”, que atuava apenas em benefício de seu
68
proprietário, como se tivesse apenas emprestado seu nome a esse proprietário
para que desempenhasse atividades em seu exclusivo e particular interesse
(“naamlening” ou “prête-nom”), No caso dos proprietários pessoas físicas, no
entanto, os efeitos da falência apenas podem ser estendidos quando o
proprietário for comerciante, uma vez que o artigo 2º da Lei de Falências da
Bélgica prevê expressamente que, exceção feita aos comerciantes, pessoas
físicas não estão sujeitas à decretação de falência.
Não apenas nos casos de falência, mas em qualquer hipótese em que se
discuta a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, a
jurisprudência belga entende que a desconsideração apenas é cabível nos casos
em que ficar evidenciado um consistente abuso da personalidade jurídica. Para
esse fim, considera-se que o abuso de personalidade fica caracterizado quando
houver confusão entre os patrimônios e atividades da pessoa jurídica e de seus
proprietários, de tal modo que a pessoa jurídica tenha sido utilizada para
acobertar o fato de que quem está atuando, de fato, é o proprietário. Como
extensão disso, os Tribunais têm entendido que os proprietários não podem se
valer dos benefícios da separação patrimonial quando eles próprios não
respeitam tal separação e autonomia da pessoa jurídica.49
A legislação belga prevê, ainda, hipóteses de responsabilização direta dos
proprietários por atos formalmente atribuíveis à sociedade, a exemplo do que
preveem o artigo 117 da Lei nº 6.404, de 15.12.1976 (“Lei das Sociedades por
Ações”) e o artigo 1.080 do Código Civil na legislação brasileira, por exemplo.
Nos termos dos artigos 229, V, e 456, IV, do Código Societário da Bélgica,
49
Ver VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 32-33.
69
os sócios fundadores de uma sociedade de responsabilidade limitada podem ser
pessoalmente responsabilizados pelos débitos dessa sociedade caso essa tenha
sua falência requerida dentro de três anos a contar de sua constituição e desde
que o capital social fosse manifestamente insuficiente para atingir o fim a que a
sociedade se propunha.
No que se refere especificamente às sociedades por ações, o artigo 646 do
Código Societário estabelece que, na eventualidade de um único acionista deter
todas as ações de uma sociedade e essa situação não for remediada dentro do
período de um ano, esse acionista responde solidariamente pelos débitos da
sociedade até que um novo acionista seja admitido na sociedade, ou até que essa
sociedade seja convertida em uma sociedade limitada que não comercialize
ações na bolsa de valores.
Com relação à responsabilidade dos administradores, os artigos 264 e 529
do Código Societário preveem a responsabilização solidária dos administradores
caso fique comprovado que tais administradores obtiveram ganho financeiro
injustificado com determinado negócio jurídico, em detrimento da própria
sociedade. Ainda, o artigo 528 do Código Societário encampa a teoria ultra vires,
ao responsabilizar o administrador por danos causados a terceiros quando atuado
com excesso de poder ou em afronta ao contrato social. Os administradores
também podem ser responsabilizados em caso de falência da sociedade caso
fique evidenciado que agiram com culpa grave ou dolo, de modo a contribuir para
a falência da sociedade empresária, em previsão que muito se assemelha ao
conceito de “má administração” adotado no artigo 28, caput, do Código de Defesa
do Consumidor brasileiro (artigos 265 e 530 do Código Societário da Bélgica). De
acordo com a jurisprudência belga, a comprovação da culpa grave ou dolo
70
depende da produção de provas de que os atos praticados pelo administrador não
teriam, sob qualquer circunstância, sido praticados por um administrador
razoavelmente prudente.
Por fim, os artigos 332 e 633 do Código Societário belga determinam que a
diretoria da sociedade convoque uma assembleia extraordinária de sócios caso o
patrimônio da sociedade seja reduzido a menos de 50% do valor de seus ações e
uma segunda assembleia extraordinária caso esse patrimônio seja reduzido a
menos de 25% do valor de suas ações. Caso a diretoria não se desincumba de
tais obrigações, os diretores podem ser pessoalmente responsabilizados por
todas as novas obrigações contraídas pela sociedade a partir da data em que a
assembleia extraordinária deveria ter sido convocada.
6.3.2. Estados Unidos da América
Nos EUA, país considerado um dos maiores responsáveis pelo
crescimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ações
envolvendo pedidos de desconsideração da personalidade jurídica constituem o
campo de maior litígio em matéria de Direito Societário.50
Como regra geral, o ordenamento norte-americano respeita a separação
entre a personalidade da pessoa jurídica e a de seus proprietários e
administradores, sendo a limitação de responsabilidade considerada um dos
princípios fundamentais do sistema societário.
O Professor da Universidade de Washington Robert Thompson fez um
50
VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 1.
71
estudo empírico a fim de verificar estatisticamente quais os casos nos quais os
Tribunais acolheram a tese da desconsideração da personalidade jurídica e sob
quais fundamentos. Em seu estudo, Thompson analisou 3.800 julgados, desde a
década de 1960 até 1996, para concluir que tal teoria é bem aceita pelos
Tribunais norte-americanos, tendo a desconsideração da personalidade jurídica
sido declarada em 40% dos casos analisados. Thompson concluiu que em mais
de 97% dos casos em que se comprovou que a pessoa jurídica era utilizada como
uma ferramenta por outra sociedade, para atingir finalidades almejadas por essa
segunda sociedade, foi concedida a desconsideração da personalidade jurídica
(“instrumentality”). A personalidade jurídica também foi desconsiderada em mais
de 95% dos casos em que a pessoa jurídica servia de fachada para a prática de
atos em nome e no interesse pessoal de um de seus sócios (“alter ego”); em
quase 95% dos casos em que se comprovou que a sociedade fez declarações ou
ofereceu garantias falsas a seus credores (“misrepresentation”); em quase 90%
dos casos quando a pessoa jurídica era constituída apenas para ocultar os
negócios praticados por seus sócios (“dummy”); em mais de 85% dos casos em
que se alegou a existência de confusão patrimonial (“lack of substantive
separation”); e em mais de 50% dos casos em que o fundamento do pedido era o
fato de que uma sociedade era totalmente controlada por um único indivíduo ou
sociedade, com o objetivo de perpetrar fraudes (“domination and control”).51
Quanto às espécies de sociedades cuja personalidade jurídica foi afastada,
Thompson demonstrou que houve a desconsideração da personalidade jurídica
em quase 50% dos casos em que a ré era uma pessoa jurídica de sócio único
(autorizada naquele país); em mais de 45% dos casos envolvendo sociedades
51
Conforme NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. op. cit., p. 107.
72
com até três sócios; em quase 35% dos casos que diziam respeito a pessoas
jurídicas com mais de três sócios.
Tais números permitem inferir que há uma relação direta entre a propensão
dos Tribunais norte-americanos em autorizar a desconsideração da personalidade
jurídica de uma sociedade e o número de sócios que essa sociedade tem.
Considerando que, em regra, quanto maior a expressão econômica de uma
sociedade, maior a sua necessidade de capital e mais difusa a sua divisão
societária, com maior número de sócios, pode-se perceber que o estudo do
Professor Thompson evidenciou que ao menos nos EUA a desconsideração da
personalidade jurídica atinge preferencialmente as pequenas e médias
sociedades, e não os grandes agentes do mercado.
Da mesma forma, esse estudo demonstrou que, nos EUA, os Tribunais
jamais autorizaram a desconsideração da personalidade jurídica de sociedades
por ações de capital aberto, livremente negociadas na bolsa de valores. Segundo
o entendimento de Thompson, referendado pelas decisões que indeferiram a
desconsideração em casos envolvendo sociedades por ações, (i) o mercado de
capitais seria consideravelmente abalado se os investidores privados tivessem
que conviver com o constante risco de terem suas economias pessoais atingidas
pelas dívidas das sociedades das quais adquiriram ações na bolsa de valores;
bem como (ii) haveria uma enorme fuga de capitais do mercado caso os
investidores soubessem que, ao adquirir ações de determinada sociedade,
estariam arriscando-se não apenas a perder o investimento realizado (risco
sistêmico do próprio mercado), mas também a ver sacrificado seu patrimônio
pessoal em razão de dívidas de sociedades cujas atividades estão totalmente
alheias ao seu controle ou direção.
73
Um dado curioso do estudo realizado por Thompson se refere à espécie de
credores que tiveram atendidos seus pedidos de desconsideração da
personalidade jurídica das entidades societárias. O estudo revelou que foi mais
comum a desconsideração da personalidade jurídica em casos em que essa foi
pleiteada pelos chamados credores contratuais (42%), do que nos casos em que
pleiteada pelos credores involuntários (31%), o que contraria a percepção
dominante da doutrina no sentido de que a desconsideração da personalidade
jurídica é mais justificável em casos de credores involuntários do que voluntários,
ou contratuais.
Conforme acima mencionado, no caso dos credores contratuais, esses têm
a oportunidade de verificar a situação patrimonial da pessoa jurídica antes de
contratá-la, de exigir garantias adicionais dos sócios, caso não estejam
confortáveis com a aludida situação patrimonial, ou mesmo não contratar com a
sociedade caso entendam que sua situação econômica representa algum risco de
inadimplemento. Para esses credores, portanto, autorizar a desconsideração da
personalidade jurídica seria conferir um benefício indevido, na medida em que, ao
se tornarem credores da sociedade, conheciam sua situação patrimonial e
consentiram que seu crédito apenas estaria garantido pelo patrimônio da própria
pessoa jurídica, e não pelo de seus sócios. No caso dos credores involuntários,
no entanto, tendo o crédito nascido de um ato ilícito extracontratual, o respectivo
credor nunca teve qualquer possibilidade de negociar com a pessoa jurídica, de
verificar sua situação patrimonial ou exigir garantias adicionais de quem quer que
fosse. Os credores involuntários jamais assumiram o risco de inadimplemento da
pessoa jurídica e, como tal, haveria maiores justificativas para que seu direito de
crédito fosse prestigiado, ainda que por meio da desconsideração da
74
personalidade jurídica do devedor.
Nesse ponto, cumpre chamar a atenção para um interessante caso
envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das relações
de consumo, enfrentado pelos Tribunais norte-americanos na década de 1990.
Trata-se do litígio referente aos implantes de silicone, como ficou mais tarde
conhecido. Conforme relata Karen Vandekerckhove52, por muitas décadas o
silicone foi utilizado em muitos produtos farmacêuticos e médicos, havendo
consenso no meio científico quanto à sua segurança para os pacientes. Ainda
assim, na década de 1970 as sociedades Dow Chemical e Dow Corning (da qual
a Dow Chemical detinha 50% do capital social, sendo os 50% restantes detidos
pela Corning Enterprises, responsável pela tecnologia necessária à produção do
silicone) realizaram testes que revelaram possíveis efeitos colaterais associados
ao implante de silicone, especialmente relacionados ao sistema imunológico.
Ainda assim, os implantes de silicone continuaram a ser feitos, até que em 1992 o
FDA – Food ad Drug Administration (agência reguladora de alimentos e
medicamentos dos EUA) proibiu a utilização do silicone para esse fim, após uma
decisão judicial que condenou uma fornecedora ao pagamento de indenização no
valor de US$ 7,34 milhões a uma consumidora que desenvolveu uma doença em
seu sistema imunológico.
A partir daí, a Dow Corning passou a enfrentar centenas de ações de
indenização propostas por consumidores de seus produtos, sendo certo que já
em 1993 os Tribunais Federais norte-americanos deparavam com cerca de 1.000
ações relacionadas ao tema, das quais a maioria foi objeto de acordo. A despeito
52
VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 91-92.
75
disso, em 1995 a Dow Corning apresentou um pedido de falência, com a intenção
de prevenir futuros litígios, envolvendo consumidores que não tivessem feito parte
dos acordos já celebrados e adimplidos. Diante disso, os consumidores que se
sentiam lesados e que ainda não haviam recebido a reparação que entendiam
devida passaram a ajuizar ações contra a Dow Chemical, uma das proprietárias
da Dow Corning, requerendo a desconsideração da personalidade jurídica da
Dow Corning. Os Tribunais, no entanto, decidiram pela impossibilidade de
desconsideração da personalidade jurídica nesses casos, uma vez que
entenderam que a Dow Chemical se comportou como qualquer acionista faria em
casos semelhantes, não tendo cometido qualquer abuso ou desvio da
personalidade jurídica a justificar seu afastamento. Ainda assim, houve casos em
que os Tribunais entenderam pela responsabilização da Dow Chemical, mas não
em razão da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica,
mas sim da responsabilidade da Dow Chemical pela prática de um ato ilícito, uma
vez que, segundo a legislação federal americana, uma pessoa pode ser
responsabilizada por danos sofridos por um terceiro com o qual não manteve relação
direta caso tais danos tenham resultado, direta ou indiretamente, de serviços
prestados por essa pessoa. No caso, os Tribunais entenderam que a Dow Chemical
havia prestado um serviço à Dow Corning ao realizar os testes toxicológicos do
silicone e que, se tivesse desenvolvido mecanismos para reduzir a toxicidade do
produto, os consumidores não teriam sido lesados pelo silicone comercializado pela
Dow Corning. Dessa forma, os Tribunais entenderam que a Dow Chemical poderia
ser responsabilizada pela prática de um ato ilícito, uma vez que foi sua omissão em
adotar medidas adequadas frente ao resultado dos testes toxicológicos realizados
que possibilitou a concretização dos danos sofridos pelos consumidores.
76
Como se nota, portanto, a jurisprudência norte-americana, conquanto
simpática à tese da desconsideração da personalidade jurídica, não a adota de
forma indiscriminada, como forma de garantir sempre a tutela dos consumidores.
Ainda assim, nos casos em que se entende que o proprietário contribuiu de
alguma forma para a concretização do dano, o ordenamento jurídico fornece as
ferramentas necessárias para responsabilização direta desse proprietário. Até por
esse motivo, há, atualmente, um grande movimento nos EUA pela abolição da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, vista como extremamente
prejudicial às relações jurídicas e ao próprio mercado.
Nesse sentido, atente-se para o entendimento de Stephen Bainbridge,
professor da Universidade da Califórnia, para quem a teoria apenas traz prejuízos
e risco de lesão a direitos, mas nenhum benefício comprovado:
“The standards by which veil piercing is effected are vague, leaving judges with great discretion. The result has been uncertainty and lack of predictability, increasing transaction costs for small business. At the same time, however, there is no evidence that veil piercing has been rigorously applied to effect socially beneficial policy outcomes. Judges tipically seem to be concerned more with the facts and equities of the specific case at bar than with the implications of personal shareholder liability for society at large. Veil piercing thus has costs, but no social pay-off.”53
53
“Os parâmetros que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica são vagos, deixando grande discricionariedade aos Juízes. O resultado tem sido incertezas e falta de previsibilidade. Ao mesmo tempo, todavia, não há evidências de que a desconsideração da personalidade jurídica esteja sendo aplicada rigorosamente de acordo com políticas de benefício social efetivo. Os Juízes normalmente parecem mais preocupados com os fatos e a justiça do caso concreto em análise do que com as implicações da responsabilização pessoal do proprietário para a sociedade em geral. Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica representa custos, mas não traz benefícios sociais que os compensem.” (tradução livre, BAINBRIDGE, Stephen M. Abolishing veil piercing. p. 2. EUA, 2000. Social.Science Research Network SSRN. Disponível em: <http://www.papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?-abstract_id=67990>. Acesso em: 21 jan. 2009).
77
Para essa parte da doutrina, a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica é mal formulada e vaga, pode ser utilizada para justificar a
desconsideração em praticamente qualquer caso, não havendo critérios objetivos
a serem seguidos pelos Juízes na análise do caso concreto. Tal circunstância,
portanto, levaria a um estado de incerteza e insegurança que seria prejudicial não
apenas à ordem jurídica, mas também e, principalmente, à economia. Ressalte-
se, no entanto, que o Professor Bainbridge e seus seguidores não defendem que
a autonomia patrimonial da pessoa jurídica deva ser prestigiada a qualquer custo,
mas sim que tal instituto apenas deva ser afastado para fins de responsabilização
do sócio quando ficar comprovada a ocorrência de fraude ou de alguma manobra
dos sócios para esvaziar o patrimônio da sociedade em detrimento de seus
credores:
“Abolishing veil piercing would refocus judicial analysis in the appropriate question – did the defendant-shareholder do anything for which he or she should be held directly liable. Did the shareholder commit fraud, which led a creditor to forego contractual protection? Did the shareholder use fraudulent transfers or insider preferences to siphon funds out of the corporation?”54
Em que pese o fato de que tais considerações poderem ser relevantes e
coerentes em um sistema de common law, no qual a desconsideração não tem
seus requisitos positivados no ordenamento, quer nos parecer que tais críticas
não se aplicam ao sistema legal brasileiro, no qual, desde o advento do Código de
Defesa do Consumidor, em 1990, os requisitos para desconsideração da
54
“A abolição da desconsideração da personalidade jurídica iria devolver o foco da análise judicial à questão apropriada – se o proprietário da sociedade ré praticou algum ato pelo qual deva ser diretamente responsabilizado. O proprietário cometeu fraude, que privou o credor de proteção contratual? O proprietário usou transferências fraudulentas ou vantagens internas para drenar fundos para fora da sociedade?” (tradução livre, BAINBRIDGE, Stephen M. op. cit., p. 2).
78
personalidade jurídica, ainda que representados por cláusulas gerais e conceitos
jurídicos indeterminados, vêm expressamente previstos no ordenamento positivo.
A despeito disso, também há, no Brasil, aqueles que defendem a abolição da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, por entendê-la supérflua
ante a atual filosofia do Código Civil vigente, com seu forte aspecto principiológico
e seus conceitos jurídicos indeterminados, tais como a boa-fé objetiva e a função
social da propriedade e dos contratos55.
Para essa parte da doutrina, a disfunção da pessoa jurídica seria uma
violação à função social do contrato de constituição da própria sociedade e, como
tal, já poderia ser sancionada com a aplicação do princípio da função social dos
contratos somado, em casos específicos, à boa-fé objetiva. Se, de um lado, a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica não mais seria necessária
frente ao ordenamento jurídico vigente, de outro, a sua formulação abstrata e a
forma indiscriminada como vem sendo aplicada pela jurisprudência
representariam riscos ao próprio modelo econômico vigente. Não mais havendo a
garantia de respeito à autonomia patrimonial e proteção aos bens próprios dos
sócios que compõem a sociedade, a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica poderia até mesmo conduzir a um movimento de migração do
empresariado para a informalidade, uma vez que a observância das normas
formais de constituição e manutenção das sociedades não traria qualquer
benefício prático ou jurídico.
55
Ver, por todos, NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. op. cit., p. 232.
79
6.3.3. França
No Direito francês, a exemplo do que ocorre em grande parte dos demais
ordenamentos jurídicos ocidentais, há a consagração da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica, sendo a desconsideração da personalidade jurídica tratada como
exceção. Não havendo norma geral que preveja os requisitos autorizadores do
afastamento da personalidade jurídica no ordenamento jurídico francês, a doutrina
vem sistematizando os requisitos exigidos pela jurisprudência para esse fim.
Nesse sentido, os Tribunais franceses têm entendido que a desconsideração da
personalidade jurídica depende da comprovação de certo grau de “dependência”
entre a sociedade e seu proprietário a fim de conceder a desconsideração. Tal
“dependência” pode ser evidenciada em razão da existência de confusão
patrimonial ou de coincidência total de interesse entre a pessoa jurídica e seu
proprietário. Segundo os Tribunais franceses, a existência de controle de fato do
proprietário ou administrador sobre a sociedade é nota indispensável para o
afastamento da personalidade jurídica, mas não é condição suficiente para
justificar tal desconsideração, se não comprovada a mencionada “dependência”.
Especificamente no que se refere à recuperação de empresas, a Lei de
Falências, de 13.7.1967, previa, em seu artigo 101, a desconsideração da
personalidade jurídica nos casos de falência e concordata, para que os bens
particulares dos administradores da sociedade respondam por suas dívidas em
três situações específicas. A primeira delas se referia à hipótese em que o
administrador tenha desviado a finalidade da pessoa jurídica, tendo praticado, sob
seu véu, atos de comércio em benefício particular do próprio administrador. A
80
segunda se assemelhava à hipótese de confusão patrimonial, prevista no
ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que decorre do fato de o administrador
ter se utilizado dos bens sociais como próprios. Por fim, a última hipótese remetia
aos casos nos quais o administrador prosseguia na condução dos negócios de
uma pessoa jurídica deficitária, em prejuízo de seus credores, sabendo que tais
negócios apenas poderiam levar à insolvência. O artigo 99 dessa mesma Lei
estipulava, por sua vez, que em caso de falência ou concordata, o Juiz poderia
determinar a desconsideração da personalidade jurídica, a pedido do síndico, ou
de ofício, para que os bens pessoais de todos os administradores ou de alguns
deles respondam pelas dívidas da sociedade, competindo ao próprio Juiz
determinar se tal responsabilidade será solidária ou qual a parcela de
responsabilidade de cada administrador.
Mais recentemente, a Lei de Falências de 25.1.1985 (Lei nº 98/85),
complementada pelas disposições da Lei de Proteção Societária, de 26.7.2005
(Lei nº 845/05), determina a responsabilidade pessoal dos diretores de fato e de
direito cujos atos culposos tenham contribuído para a falência da pessoa jurídica
(artigo 180 da Lei de Falências). O artigo 182 da Lei de Falências prevê, ainda, a
possibilidade de extensão da falência para os administradores de fato ou de
direito da pessoa jurídica, nos casos em que (i) trataram os ativos da companhia
como próprios; (ii) conduziram os negócios empresarias em seu interesse
particular, apenas sob o manto da pessoa jurídica; (iii) conduziram os negócios
empresariais contrariamente aos interesses da sociedade, em seu benefício
particular ou em benefício de outra pessoa jurídica na qual tenham interesses,
sejam diretos, sejam indiretos; (iv) perseguiram de forma abusiva na realização de
negócios deficitários em nome da pessoa jurídica, em seu particular interesse e
81
em prejuízo dos credores da pessoa jurídica; (v) promoveram contabilidade
fictícia, removeram livros contábeis da pessoa jurídica ou deixaram de observar
os requisitos legais na organização da contabilidade da sociedade; bem como (vi)
suprimiram ou esconderam parte dos ativos da sociedade, ou mesmo
aumentaram de modo fraudulento o passivo da sociedade. Atualmente, no
entanto, o artigo L 652-1 do Código Comercial Francês suprimiu a hipótese (v)
acima dos casos de responsabilização pessoal dos administradores da pessoa
jurídica, com o que a promoção de contabilidade fictícia não mais induz à
desconsideração da personalidade jurídica no Direito francês.
Além desses casos, a jurisprudência francesa tem aceitado a
desconsideração da personalidade jurídica para atingir os bens dos proprietários
da sociedade nas hipóteses de sociedades fictícias (“société fictive”), isto é,
quando a pessoa jurídica é utilizada com o único propósito de atender aos
interesses diretos de seu proprietário; e nas hipóteses de confusão patrimonial
entre a pessoa jurídica e seus proprietários (“confusion des patrimoines”). Essas
duas teorias, muito embora não estivessem positivadas no ordenamento jurídico
francês, são comumente aceitas pela jurisprudência por representarem casos de
abuso da personalidade jurídica. Atualmente, no entanto, as teorias foram
incorporadas ao ordenamento, pelo artigo 15 da Lei de Proteção Societária.
6.3.4. Holanda
Também na Holanda o ordenamento jurídico prevê que a personalidade
jurídica da sociedade não se confunde com as pessoas de seus proprietários
(artigo 2, V, do Código Civil holandês), assim como que os sócios e
82
administradores de uma sociedade de responsabilidade limitada não respondem
pelas dívidas dessa sociedade (Artigos 64 e 175 livro II do Código Civil holandês).
O mais famoso caso de aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica no Direito holandês remonta a 1981, sendo conhecido
como o caso Osby, no qual a Suprema Corte da Holanda (“Hoge Raad”)
desconsiderou a personalidade jurídica de uma subsidiária (Osby Netherlands)
para o fim de responsabilizar a controladora (Osby Sweden) por dívidas da
subsidiária56. Nesse caso, a controladora concedeu um empréstimo à subsidiária,
tendo recebido como garantia todos os bens presentes e futuros da subsidiária.
Como resultado, a subsidiária, Osby Netherlands, aparecia perante o mercado
como uma sociedade economicamente saudável, quando, na verdade, todo seu
patrimônio estava comprometido, em favor de sua controladora. Diante disso, a
Corte entendeu que a controladora, Osby Sweden, cometeu ato ilícito em
detrimento dos credores da Osby Netherlands, na medida em que sua conduta
tornou praticamente impossível que esses credores viessem a receber o que lhes
era de direito, diante do completo e absoluto endividamento da subsidiária. Dessa
forma, a Corte entendeu que, ao sopesar o direito dos credores de verem
satisfeitos seus créditos frente à Osby Netherlands e a segurança dos acionistas
da sociedade (Osby Sweden) de terem sua exposição limitada ao valor do capital
investido na economia, o direito dos credores deveria prevalecer em razão de o
acionista (Osby Sweden) ter agido de forma ilícita ao violar seu dever de cuidado
perante terceiros credores da pessoa jurídica.
Como se nota, o caso analisado pela Suprema Corte Holandesa apresenta
56
VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 33.
83
vários pontos de semelhança com o caso Salomon vs. Salomon & Co., tendo um
desfecho contrário. Enquanto no caso Salomon vs. Salomon & Co. a House of
Lords inglesa entendeu pela inaplicabilidade da desconsideração da
personalidade jurídica, uma vez que as medidas adotadas por Salomon, na
qualidade de proprietário da pessoa jurídica, eram formalmente irrepreensíveis e
constituíam um planejamento societário legítimo, no caso Osby a Suprema Corte
Holandesa entendeu pela desconsideração, uma vez que, sob a óptica do Direito
holandês, o proprietário cometeu ato ilícito ao desrespeitar o dever de cuidado
perante os credores da pessoa jurídica.
A exemplo do que determina o Direito belga, também no Direito holandês
os diretores da pessoa jurídica podem ser pessoalmente responsabilizados nos
casos em que sua atuação culposa (culpa grave) ou dolosa tenha contribuído
para a falência da sociedade (Artigos 138 e 248 do Livro II do Código Civil
holandês).
6.3.5. Inglaterra
Na Inglaterra, muito embora o sistema jurídico adote a autonomia da
pessoa jurídica e a limitação de responsabilidade dos sócios como regra, o artigo
24 da Lei de Empresas, de 1985, determinava que se uma sociedade fosse detida
exclusivamente por uma pessoa por mais de seis meses, todos aqueles que se
tornassem sócios após esse período de seis meses seriam considerados solidária
e objetivamente responsáveis pelos débitos contratuais dessa sociedade. A partir
de 1992, no entanto, tal dispositivo passou a ser aplicável apenas a sociedades
públicas, uma vez que a legislação inglesa passou a admitir a figura das
84
sociedades unipessoais de responsabilidade limitada.
A Lei de Falências, de 1986, por sua vez, prevê, em seus artigos 213, 214
e 215, o afastamento da personalidade jurídica nos casos em que os negócios da
pessoa jurídica sejam conduzidos com a finalidade de fraudar credores. Nesse
caso, desde que comprovado o propósito fraudulento, não apenas os proprietários
e administradores da sociedade, mas todos aqueles que contribuíram
conscientemente para a fraude podem ser responsabilizados pelos débitos da
sociedade, cabendo ao Juízo determinar o valor a ser restituído à sociedade por
aqueles que participaram da fraude. Ressalte-se que, no caso, da fraude, os
Tribunais ingleses têm concedido a desconsideração da personalidade jurídica
ainda que a sociedade não tenha entrado em estado de insolvência. Da mesma
forma, o artigo 214 da Lei de Falências determina a responsabilidade pessoal de
todos os administradores presentes ou passados que sabiam ou deveriam saber
que a sociedade entraria em estado de insolvência e, mesmo assim,
prosseguiram na realização de negócios, em prejuízo de terceiros. Por fim, os
artigos 216 e 217 da Lei de Falências estabelecem a responsabilidade pessoal
dos indivíduos que, tendo administrado, de fato ou de direito, uma sociedade que
se tornou insolvente nos últimos cinco anos, constituem uma sociedade de nome
idêntico ou similar ao da pessoa jurídica insolvente, adquirem seus bens
remanescentes e prosseguem na realização dos mesmos negócios da sociedade
declarada insolvente.
Na jurisprudência, são identificados casos de responsabilização dos
administradores em casos em que suas ações tenham causado prejuízos à
sociedade ou a credores, desde que tenham agido com dolo ou culpa. Ainda, os
Tribunais têm entendido pela responsabilização pessoal dos proprietários ou
85
administradores da pessoa jurídica em casos de prática de ato ilícito, como, por
exemplo, a divulgação de informações falsas quanto à situação econômica da
sociedade, a fim de insuflar uma confiança indevida nos credores da sociedade.57
Ainda assim, como regra geral, os Tribunais ingleses têm prestigiado a autonomia
da personalidade jurídica, sendo raros os casos de acolhimento da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica.
Nesse sentido, é importante destacar que os Tribunais ingleses têm
respeitado a autonomia da personalidade jurídica também nos casos em que tal
autonomia prejudica a pessoa jurídica, aí também realizando uma análise
extremamente formalista das normas jurídicas. Prova disso é o caso Tunstall vs.
Steigmann, julgado em 196258. Nesse caso, Steigmann era proprietário de dois
imóveis contíguos, tendo instalado seu açougue em um deles e alugado o outro a
Tunstall. No entanto, durante a vigência do contrato de locação, Steigmann
constituiu uma pessoa jurídica da qual detinha todas as quotas representativas do
capital social com exceção de duas, entregues a pessoas escolhidas por ela,
tendo transferido a propriedade do açougue para tal sociedade. Com o término do
contrato de locação, Tunstall ajuizou uma ação renovatória de locação, a qual foi
contestada por Steigmann sob o fundamento de que iria retomar o imóvel para
uso próprio, ampliando as instalações do açougue. O Tribunal, no entanto, deferiu
o pedido de renovação do contrato, por entender não estar caracterizada a
hipótese de retomada do imóvel para uso próprio, uma vez que, enquanto
Steigmann figurava como parte no contrato de locação, quem usaria o imóvel
seria a sua sociedade, e não a pessoa física. Mesmo que, na prática, a sociedade
57
VANDEKERCKHOVE, Karen. op. cit., p. 68 e 75. 58
SMITH, Douglas. Company law. Boston: Butterworth Heinemann, 1999. p. 22.
86
fosse controlada e administrada por Steigmann, o Tribunal entendeu que,
formalmente, a pessoa jurídica e Steigmann não se confundiam, com o que a
finalidade da retomada do imóvel não seria o uso próprio de seu proprietário, mas
sim de um terceiro.
6.4. A desconsideração no Brasil
No Brasil, o Código Civil de 1916 positivou, em seu artigo 20, o instituto da
personalidade jurídica, ao prever expressamente que “as pessoas jurídicas têm
existência distinta da dos seus membros”. A pessoa jurídica não pode de
nenhuma forma ser confundida com a pessoa de seus sócios. Seu objeto e
finalidade são diferentes daqueles de seus sócios e sua atuação tem nítido
caráter coletivo, que transcende a simples conjugação de interesses individuais.
Atente-se para a lição de Clóvis Bevilaqua59 quanto às causas e efeitos da
personalidade jurídica:
“A conseqüência imediata da personificação da sociedade é distingui-la, para os efeitos jurídicos, dos membros, que a compõem. Pois que cada um dos sócios é uma individualidade e a sociedade uma outra, não há como lhes confundir a existência.
A sociedade constituída por seu contrato, e personificada pelo registro, tem um fim próprio, econômico ou ideal, move-se, no mundo jurídico, a fim de realizar esse fim: tem direitos seus, e um patrimônio que administra, e com o qual assegura, aos credores, a solução das dívidas que contrai.”60
59
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Rio, 1976. v. 1, p. 43.
60A doutrina moderna ressalta três caracteres típicos da personalidade jurídica que, em essência, apenas esmiúçam as referências gerais do autor do Código Civil de 1916. São elas (i) a não responsabilização do sócio pelas condutas da sociedade; (ii) a total distinção entre o patrimônio do sócio e o da sociedade; bem como (iii) a existência autônoma e distinta de seus membros, com o que, em regra, a morte do sócio não afeta a existência e continuidade da sociedade.
87
Nota-se, portanto, que, naquele momento, o ordenamento brasileiro
apenas se preocupou com os requisitos formais de constituição válida e eficaz da
sociedade como requisito garantidor da autonomia da pessoa jurídica. Uma vez
observadas as regras impostas de forma genérica e abstrata, a sociedade
resultante dos atos legalmente consagrados seria beneficiada pelo instituto da
personalidade jurídica, de forma muito semelhante à decisão final obtida no caso
Salomon vs. Salomon & Co., acima referido. Ao Direito não importava que as
atividades da sociedade estivessem estritamente ligadas ao seu objeto ou que a
personalidade jurídica fosse utilizada como instrumento legítimo e não mecanismo
de subtração de direitos. Desde que o objeto social não fosse ilícito, contrário à
moral ou aos bons costumes, a sociedade regularmente constituída poderia
beneficiar-se do instituto de personalidade jurídica.
Ainda assim, o ordenamento jurídico brasileiro há muito passou a
contemplar casos nos quais a personalidade jurídica poderia ser desconsiderada
ou afastada como forma de sanção pela prática de atos prejudiciais à sociedade e
ao Estado. Assim é que a Lei nº 4.137, de 10.9.1962, a qual regula a repressão
ao abuso de poder econômico, prevê, em seu artigo 6º, parágrafo único, a
desconsideração da personalidade jurídica como sanção à sociedade que
cometer abuso de poder econômico, na forma definida na respectiva lei.
De modo análogo, a Lei nº 4.729, de 14.7.1965, também em seu artigo 6º,
previu a responsabilidade penal das pessoas físicas que, responsáveis pela
condução dos negócios da sociedade, tenham participado do crime de sonegação
fiscal, definido pela aludida lei.
Também o Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25.10.1966, prevê,
88
em seu artigo 135, III, a responsabilização pessoal dos diretores, gerentes ou
representantes legais das sociedades que tivessem inadimplido suas obrigações
tributárias, desde que tal inadimplemento estivesse relacionado a atos praticados
com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
Aqui, é importante destacar que tais exemplos de afastamento da
personalidade jurídica configuram, na verdade, hipóteses de responsabilização
dos sócios ou administradores pela prática de atos ilícitos, e não propriamente da
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica61. Nessas
hipóteses, o que se verifica na prática é que sócios e administradores agiram
contra a lei e, em razão disso, devem ser responsabilizados. Não há, nessas
hipóteses, o chamado “desvio de finalidade” da pessoa jurídica ou a sua utilização
como artifício para encobrir uma realidade. Atente-se para a doutrina de Fábio
Ulhoa Coelho:
“Com efeito, a teoria da desconsideração tem pertinência quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. Quando a imputação pode ser direta, quando a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não há por que se cogitar de superamento de sua autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal de pessoa jurídica, provoca danos a terceiros em razão de comportamento ilícito, ele é responsável pela indenização correspondente. Nesse caso, no entanto, estará respondendo por obrigação pessoal dele, decorrente do ilícito que praticou.”62
Tratando do mesmo tema, Heleno Tôrres enumera a existência de três
perspectivas teóricas diferentes para a teoria da desconsideração da
61
Vide os comentários de COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica, cit., p. 37.
62Id. O empresário e os direitos do consumidor, cit., p. 226-227.
89
personalidade jurídica:
“Para examinar a possibilidade de aplicação da desconsideração de personalidade das pessoas jurídicas, mister separar as chamadas leis especiais, dotadas de hipóteses típicas de desconsideração da personalidade de sociedades (i), das formas de desconsideração mediante regra geral de autorização (ii) e daquela que é promovida sem qualquer disposição autorizativa expressa, mas por integração jurisprudencial, alegando analogia iuris ou presunção hominis (iii).”63
Quanto à primeira categoria, tratada pelo autor como “leis especiais”,
parece claro que não se trata propriamente de aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica conforme aqui exposta, mas sim de
responsabilidade civil por ato ilícito atribuível aos diretores ou sócios das pessoas
jurídicas. Exemplos da segunda categoria seriam o artigo 28 do Código de Defesa
do Consumidor e o artigo 50 do Código Civil, os quais, conforme será abordado
em maiores detalhes ao longo deste trabalho, encerram normas gerais que
preveem a desconsideração como sanção na hipótese de concretização das
situações genéricas ali previstas. Por fim, a terceira categoria seria aquela que
justifica a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em
ordenamentos jurídicos que não preveem expressamente a sua possibilidade,
decorrendo de uma interpretação sistemática e teleológica das normas que
compõem esse ordenamento. Era a teoria que justificava a desconsideração da
personalidade jurídica no Direito brasileiro antes do advento do Código de Defesa
do Consumidor e do Código Civil atualmente em vigor.
A seu turno, a Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto Lei nº 5.242, de
1º.5.1943, prevê em seu artigo 2º, § 2º, a responsabilidade solidária de todas as
63
TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe (Coord.). Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 51-52.
90
sociedades que compõem um grupo econômico, no que se refere aos débitos
decorrentes da relação de emprego. Uma vez mais, não se trata propriamente da
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que o
referido dispositivo legal nem mesmo menciona os requisitos do abuso de direito
ou do desvio da finalidade da pessoa jurídica, limitando-se a criar uma hipótese
de responsabilidade solidária dentro do grupo econômico. Trata-se, portanto, de
uma opção legislativa e política que visa a tutela dos empregados, ampliando as
hipóteses de solidariedade ordinariamente previstas e, para isso, superando,
neste caso específico, os efeitos da autonomia societária.
A primeira norma a tratar especificamente da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica no Direito brasileiro foi justamente o artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor. Foi nessa norma que, pela primeira vez, o legislador
previu de forma genérica a possibilidade de desconsideração da personalidade
jurídica desde que preenchidos os requisitos ali enunciados.
Ainda assim, mesmo antes da edição do Código já era possível identificar
decisões judiciais acolhendo a teoria da desconsideração, mesmo não havendo
norma expressa no ordenamento que a autorizasse. Tais decisões, em regra,
valiam-se dos artigos 82 e 145, II, do Código Civil de 191664 a fim de justificar o
afastamento da personalidade jurídica e a responsabilização direta dos sócios das
respectivas pessoas jurídicas:
“EMBARGOS DE TERCEIRO - Penhora - Efetivação em bens de pessoa jurídica sócia majoritária da empresa executada - Admissibilidade - Aplicação da teoria da desconsideração da
64
“Artigo 82. A validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei.”
“Artigo 145. É nulo o ato jurídico: I – Quando praticado por pessoa absolutamente incapaz. II – Quando for ilícito, ou impossível, o seu objeto. (...)”
91
personalidade jurídica - Improcedência dos embargos - Decisão mantida - Voto vencido - Inteligência do art. 20 do CC.
A legislação vem acolhendo a condenação e execução sobre bens de sociedades e sócios que servem de capa para o funcionamento de outras sociedades irresponsáveis e sem condições de suportar os efeitos de condenação judicial. Assim, admissível é a penhora dos bens de pessoa jurídica sócia majoritária daquela que é executada.
..........................................................................................................
Conforme se vê da última alteração do contrato social, a embargante possui 99% das cotas da empresa devedora, sendo o 1% distribuído entre dois sócios, que são os mesmos integrantes da embargante (fls. 33 e 36). Dúvida não há de que embargante e devedora são pessoas Jurídicas distintas. Comprovam-no os documentos trazidos com a inicial.
A principal conseqüência da individualização das pessoas jurídicas estabelecida no art. 20 do CC é decorrer a identificação patrimonial, para efeito de suportar as conseqüências jurídicas decorrentes de comportamentos lícitos e ilícitos. Ocorre que a mera autonomia patrimonial enseja a ocorrência de fraudes. Mas ensina Rolf Serick que, ‘se si abusa della forma della persona giuridica il giudice pu, al fine di impedire che venga raggiunto lo scopo filecito perseguito, non rispettare tale forma, allontanandosi quindi dal principio della netta distinzione tra socio e persona giuridica (Forma e Realtà della Persona Giuridica, Dota. A. Giuffrè Editore, Milão, 1966, p. 275). No mesmo sentido é a opinião de Piero Verrucoli (Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali nella ‘Common Law’ e nella ‘Civil Law’, Dota. A. Giuffrè, Milão, 1964, p. 76).
Na verdade, postula a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da atitude a ser adotada pelo juiz quando se defronta com a fraude no Direito perpetrada através da denominada autonomia patrimonial. Não se anula a pessoa jurídica. Simplesmente, desconhece-se a autonomia da personalidade, por ter a entidade jurídica desviado-se de suas finalidades especificas, causando danos e não os podendo suportar.
Ressalta Rubens Requião que é preciso, para a invocação exata e adequada da doutrina repelir a idéia preconcebida dos que estão imbuídos do fetichismo da intocabilidade da pessoa jurídica, que não pode ser equiparada tão insolitamente à pessoa humana, no desfrute dos direitos incontestáveis da personalidade (Curso de Direito Comercial, v. I/84, 1977).
Trata-se, em suma, de reconhecer a ineficácia dos estatutos sociais para que possa o verdadeiro dirigente da entidade, ou seja, o que a dirige, o que está por trás, ser responsabilizado diante da imputação da ocorrência de atos ilícitos. Assim é o que parece a Fábio Konder Comparato (O Poder de Controle na
92
Sociedade Anônima, Ed. RT, 1977, pp. 271 e ss.). Embora se nos afigure cuidar-se de mera questão de interpretação, vem a doutrina cuidando da desconsideração da pessoa jurídica de forma a evitar que se desviem as execuções em meras questões de forma, perdendo-se a perspectiva da realidade jurídica.
Percebe-se, pela declaração de rendimentos e bens requisitada pelo MM. Juiz (fls. 97-104), que não tem a devedora condições de suportar as conseqüências do evento danoso. A legislação, embora timidamente, vem acolhendo a condenação e execução sobre bens de sociedades e sócios que servem de capa para o funcionamento de outras sociedades irresponsáveis e sem condições de suportar os efeitos de condenação judicial. É a hipótese dos autos. Neste sentido decidiu o digno magistrado Hamilton Elliot Akel, subsistindo a r. sentença, por seus próprios e jurídicos fundamentos.” (extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, Apelação nº 358.421, 7ª Câmara, relator Juiz Régis de Oliveira, j. 12.8.1986)
Com redação idêntica à do artigo 28, caput, do Código de Defesa do
Consumidor, também o artigo 18 da Lei Antitruste (Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
previu de forma genérica e abstrata a possibilidade de desconsideração da
personalidade jurídica, desde que preenchidos os requisitos ali enumerados.
Também a Lei nº 9.605, de 12.2.1998, que dispõe sobre as sanções penais
e administrativas decorrentes de condutas lesivas ao meio ambiente, previu, em
seu artigo 4º, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica,
adotando redação extremamente ampla e abrangente:
“Artigo 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”
Modernamente, o Código Civil de 2002 estabeleceu, em seu artigo 50, o
instituto do abuso de personalidade jurídica, cujo resultado é exatamente a
desconsideração dessa personalidade jurídica. No entanto, a redação original do
93
dispositivo do Código Civil que tratava da desconsideração da personalidade
jurídica em nada se assemelhava ao instituto:
“A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução.
Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.”
Como se nota, tratava-se de medida que em nada se confundia com a
desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que a sua consequência era
a própria dissolução da pessoa jurídica. Conforme já exposto acima, um dos
traços característicos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é
justamente que a sua consequência não afeta a existência e a personalidade
jurídica da sociedade, e nem mesmo a validade dos atos por ela praticados,
implicando apenas a suspensão episódica da autonomia entre pessoa jurídica e
seus sócios65. Felizmente, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional
apresenta a seguinte redação:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
65
A esse respeito, ver comentários de Fábio Konder Comparato quanto à distinção entre desconsideração da personalidade jurídica e despersonalização societária, acima citados.
94
A exemplo do que previu o Código de Defesa do Consumidor doze anos
antes, o Código Civil em vigor abraçou a possibilidade de afastamento da
personalidade jurídica naqueles casos nos quais essa é utilizada como ferramenta
para desrespeitar direitos de terceiros, sendo seu exercício conduzido com abuso
ou de forma diversa daquela para a qual o Direito a instituiu. Conforme destacado
por Miguel Reale, muito embora o Código Civil vigente não tenha repetido a
redação do artigo 20 do Código Civil de 1916, o qual previa expressamente a
autonomia da pessoa jurídica, o Código Civil atual não abandona a distinção entre
a personalidade da pessoa jurídica e a de seus proprietários, mas também não
trata tal princípio como absoluto:
“Não abandonamos o princípio que estabeleceu a distinção entre pessoa jurídica e os seus membros componentes, mas também não convertemos esse princípio em tabu, até o ponto de permitir sejam perpetrados abusos em proveito ilícito dos sócios e em detrimento da comunidade.”66
Pelo que se depreende do dispositivo transcrito, o abuso da personalidade
jurídica pode ocorrer por dois meios, o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou
a confusão patrimonial. Por desvio de finalidade, pode-se entender tanto o desvio
de finalidade específica de determinada pessoa jurídica, com a prática de atos
que vão de encontro a seu objetivo social; quanto o desvio da finalidade geral que
o Direito impõe a todas as pessoas jurídicas, de fomentar a conjugação de
esforços e patrimônios para o desenvolvimento de atividades que, ainda que
indiretamente, promovam o bem comum. Nesse ponto, parte da doutrina critica a
66
Apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 143.
95
caracterização do desvio de finalidade como causa para desconsideração da
personalidade jurídica, uma vez que, nesse caso, teria lugar a aplicação da teoria
ultra vires67, a qual não se confunde de qualquer forma com a desconsideração
da personalidade jurídica:
“A desconsideração não se confunde com a teoria ultra vires. A pessoa jurídica age por intermédio de atos que se exteriorizam através daqueles praticados pelos diretores e administradores que, como pessoas naturais, também são sujeitos de direitos e obrigações, com capacidade para agirem em nome próprio ou da sociedade. A teoria ultra vires funda-se no objeto social, englobando a atividade e o fim, que é sempre o lucro. Assim, são atos ultra vires aqueles que estiverem em desacordo com a atividade e o objetivo da empresa.”68
Segundo a teoria ultra vires, os atos praticados por uma sociedade devem,
sempre, estar alinhados com o objeto e as cláusulas de seu contrato social. Se a
sociedade tem como fundamento de existência a consecução de seu objetivo social,
todo e qualquer ato praticado que vá de encontro a esse objetivo não apenas é
prejudicial à sociedade, mas também é considerado nulo de pleno direito. Como é
natural, se a sociedade retira de seu objeto social a sua razão de existência,
qualquer ato que renegue essa mesma razão estará rejeitando o seu próprio
fundamento de validade. Em vista disso, pela teoria ultra vires, qualquer ato praticado
em dissonância com o objeto social deve ser considerado nulo de pleno direito.
No entanto, acreditamos, a solução da desconsideração da personalidade
jurídica é mais adequada para esses casos do que a simples aplicação da teoria
ultra vires, até mesmo em prestígio ao princípio da boa-fé e da teoria da
aparência. Com efeito, na sociedade contemporânea, inúmeros são os negócios
67
Ver GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 79.
68Manoel Carpena Amorim, citado por NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. op. cit., p. 363.
96
jurídicos celebrados com sociedades e pessoas jurídicas todos os dias. Nesse
contexto, não seria razoável exigir que o contratante tivesse conhecimento dos
atos societários de toda pessoa jurídica com quem contrata, a fim de verificar se a
pessoa física que representa a sociedade naquele ato tem poderes para fazê-lo,
ou mesmo se aquele negócio está de acordo com a finalidade específica da
respectiva pessoa jurídica. A aplicação da teoria ultra vires, pura e simples,
poderia levar a situações indesejáveis, com a própria pessoa jurídica se
recusando a dar cumprimento a uma obrigação assumida indevidamente por seus
representantes, em prejuízo de terceiros de boa-fé. Assim, a aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica a tais casos garante que a pessoa
jurídica responda pelos atos de seus prepostos, até o limite de suas forças,
sempre preservado o direito de regresso contra aqueles. E mais, permite que, na
hipótese de a pessoa jurídica não suportar o pagamento de suas dívidas ou
adimplemento da obrigação assumida, a pessoa física que atuou com excesso de
poder ou desvio de finalidade seja chamada a responder por seus atos, perante o
terceiro de boa-fé.
Também no que diz respeito à confusão patrimonial, a doutrina é
praticamente uníssona em reconhecer que tal condição não deveria ser
considerada causa da desconsideração da personalidade jurídica, não sendo a
origem da disfunção da pessoa jurídica, mas sim um sintoma. Nesse sentido,
adotando-se a escola de Fábio Konder Comparato, para quem a desconsideração
se relaciona a aspectos dinâmicos, funcionais da pessoa jurídica, a confusão
patrimonial, por ser um vício estrutural, da própria existência da pessoa jurídica,
jamais poderia ser causa da desconsideração. Esse também é o entendimento de
Marçal Justen Filho:
97
“Mas a confusão patrimonial não é, em si mesma e necessariamente, indicadora da desfunção.
Tratar-se-á, eventualmente, de uma conseqüência de um abuso na utilização da sociedade. Em outros termos, a confusão patrimonial será produto e não causa da utilização abusiva. Não será a confusão patrimonial que causa o resultado indevido ou insatisfatório, mas será corolário do abuso, cujas raízes se encontrarão em outros fatos.
..........................................................................................................
E a confusão patrimonial é um situação estática e estrutural, não funcional. O defeito funcional que é localizável reside, quando muito, na conduta do sócio, que orientou os negócios 'societários' em termos tais que produziu a identificação dos dois patrimônios. Exatamente por isso inexiste um vínculo de causalidade entre a situação de 'confusão patrimonial' e o resultado da 'incompatibilidade' entre a função concreta e a função teórica prevista para a sociedade personificada.”69
Dessa forma, a confusão patrimonial que autoriza a desconsideração da
personalidade jurídica seria aquela decorrente do mau uso da pessoa jurídica, da
sua disfunção, haja vista que tal confusão seria produto dessa disfunção, e não a
sua origem. Ainda assim, quer nos parecer que a opção do legislador em
enumerar a confusão patrimonial como uma das causas para desconsideração da
personalidade jurídica, ainda que não pareça tecnicamente perfeita, atende à
finalidade da norma. Isso porque, dificilmente poder-se-ia imaginar uma
circunstância na qual a confusão patrimonial não indicasse a disfunação da
pessoa jurídica. Da mesma forma, sendo difícil a comprovação, em Juízo, da má
utilização da pessoa jurídica, a constatação da confusão patrimonial é um índice
bastante forte e fácil de ser percebido e comprovado, da ocorrência de tal
disfunção. Desse modo, acreditamos que a opção do legislador, ainda que
questionável do ponto de vista estritamente técnico, apresenta benefícios
69
JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 137.
98
inegáveis sob o aspecto prático, facilitando em muito a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica. Até porque, como bem salientado por
Fábio Konder Comparato, havendo confusão patrimonial, ainda que não houvesse
disfunção, nada justificaria fosse respeitada a autonomia da pessoa jurídica:
“Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio [da separação patrimonial], descumpre-o na prática, não se vê bem por que os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral.”70
Parece ser justamente esse o fundamento para que o Código Civil
caracterize a confusão patrimonial como causa da desconsideração da
personalidade jurídica. Havendo confusão de patrimônios, não é possível
distinguir entre as figuras da pessoa jurídica e a de seu sócio. Se o sócio faz uso
da pessoa jurídica para satisfação de seus interesses pessoais, está
caracterizada a disfunção, com o que a desconsideração da personalidade
jurídica é a medida que se impõe.
Outro aspecto a ser destacado é que a norma do artigo 50 do Código Civil não
determina sobre quem recairá a responsabilidade em casos de desconsideração da
personalidade jurídica, apenas enunciando que essa poderá afetar os sócios ou
administradores da sociedade. Não havendo critérios legais objetivos que
determinem sobre quem recairá a responsabilidade pelos atos praticados com desvio
de finalidade ou abuso de direito, entendemos que competirá ao Juiz, no caso
concreto, responsabilizar aquele que tenha sido responsável, por ação ou omissão,
pela disfunção, o que deverá ser apurado por meio de procedimento que respeite a
ampla defesa e assegure o contraditório dos interessados.
70
COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, cit., p. 333.
99
7. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS
RELAÇÕES DE CONSUMO
7.1. Conceito de relação de consumo
O Código de Defesa do Consumidor, bem como a legislação correlata,
criou um direito especial que não se confunde com o Direito Civil ou o Comercial,
ou qualquer outro ramo do Direito. É um sistema próprio, de caráter protecionista,
que somente pode ser aplicado quando presentes os pressupostos estabelecidos
pela própria Lei nº 8.078/90. Tratando-se de um Direito especial, as regras legais
que compõem o Direito do Consumidor somente poderão ser aplicadas quando
restar caracterizada a existência de uma relação de consumo, ou seja, quando
existir um fornecedor numa ponta, um consumidor na outra e o fornecimento de
bens ou serviços como objeto dessa relação. A verificação da existência de
relação de consumo é essencial para a aplicação ou não das regras do direito
especial. Por sua vez, a averiguação da existência do papel do consumidor é o
ponto central para se definir a caracterização da relação de consumo.
Como bem salientado por Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, o
termo “consumidor” não é unívoco e recebeu tratamento diferenciado nas mais
diversas legislações71. Segundo Thierry Bourgoignie, citado por Antônio Herman
de Vasconcellos e Benjamin, “consumidor será toda pessoa individual que adquire
ou utiliza, para fins privados, bens e serviços colocados no mercado econômico
por alguém que atua em função de atividade comercial ou profissional”. Vale
71
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. O conceito jurídico do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 77, n. 628, p. 69-79, fev. 1988.
100
dizer, para Thierry Bourgoignie, não apenas o conceito de consumidor exige o uso
privado dos bens ou serviços adquiridos, mas envolve também o próprio conceito
de fornecedor, que deverá ser aquele que comercializa bens ou serviços como
parte de sua atividade profissional ou comercial.
Fato é que não apenas a doutrina, mas também as legislações dos
diversos países diferem quanto ao tratamento do conceito de consumidor. Nesse
sentido, a Diretiva 2005/29/EC, da Comunidade Europeia, a qual trata das
práticas comerciais abusivas, conceitua consumidor como a pessoa física que
contrata, na forma prevista na Diretiva, desde que não o faça em razão de sua
atividade comercial, trabalho, ofício ou profissão (artigo 2, “a”).
A Lei de Vendas ao Consumidor da Suécia, por sua vez, ainda de 1973,
prevê em seu artigo 1º, § 1º, que as suas normas são aplicáveis “onde o
consumidor compra de um comerciante de bens destinados principalmente ao seu
uso privado e que são vendidos no curso das atividades profissionais do
comerciante”. Ou seja, a legislação de defesa do consumidor sueca presume que
o consumidor seja aquele indivíduo que utiliza os bens adquiridos para fins
privados, e não comerciais, assim como que o fornecedor deve ser aquele que
comercializa bens como parte de sua atividade profissional.
A Lei de Vendas de Mercadorias ao Consumidor da Noruega, de 1974,
caminha nesse mesmo sentido, enunciando, em seu artigo 1º, que, para que se
caracterize a relação de consumo, a mercadoria deve ser adquirida
“principalmente para uso pessoal do comprador, de sua família ou amigos, ou, de
qualquer modo, para fins pessoais”.
A legislação da Dinamarca optou, por outro lado, por não traçar
101
diretamente o conceito de consumidor. Caso o produto ou serviço adquirido tenha
uma destinação comercial, não se tratará de relação de consumo. Caso contrário,
sim.
No Direito português, a Lei de Defesa do Consumidor conceitua
consumidor em seu artigo 2º como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou
serviços destinados ao seu uso privado por pessoa singular ou coletiva que
exerça, em caráter profissional, uma atividade econômica”.
Na Inglaterra, a Lei de Cláusulas Abusivas, de 1977, prevê quais os
requisitos para se considere um contratante como consumidor, sendo eles: (i) que
o indivíduo não esteja contratando o produto ou serviço como parte de sua
atividade comercial; (ii) que a outra parte contratante esteja atuando no
desempenho de uma atividade profissional de cunho comercial; (iii) que os bens
objeto do contrato sejam ordinariamente adquiridos para uso ou consumo privado
(artigo 12, inciso I). Além disso, a legislação inglesa determina a presunção de
que o contratante seja um consumidor, sendo ônus da parte contrária comprovar
não ser esse o caso, isto é, que está ausente algum dos requisitos acima
enumerados.
Em Israel, a Lei de Proteção do Consumidor, de 1981, enuncia que
consumidor é “a pessoa que compra um bem ou recebe um serviço de um
negociante no curso de seu negócio para uso principalmente pessoal, doméstico
ou familiar” (artigo 1º).
Nos Estados Unidos, não há um código geral de relações de consumo ou
um conceito que se aplique de forma irrestrita em todo o ordenamento, tendo o
legislador optado por definir a figura do consumidor em cada lei específica e
102
dentro do contexto de cada produto ou serviço regulamentado.
No Brasil, de acordo com o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor,
consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final, não havendo, no entanto, qualquer norma que
conceitue ou delimite o conceito de “destinatário final”. Considerando que no
Código de Defesa do Consumidor existem regras excepcionais, o destinatário
final do produto somente poderá ser entendido como aquele que utiliza o bem ou
serviço para satisfação de uma necessidade própria e não no seu processo
produtivo.
Nesse contexto, não se enquadra na definição de consumidor contida no
artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor aquele que adquire produto a ser
utilizado ou integrado ao seu processo produtivo, com a finalidade de obtenção de
lucro. Atente-se para a lição de José Geraldo Brito Filomeno, para o qual o conceito
de consumidor adotado pelo Código de Defesa do Consumidor tem cunho
econômico, não abrangendo, assim, os indivíduos ou sociedades que adquirem um
bem para inseri-lo em seu sistema de produção, como um típico insumo:
“Consoante já salientado, o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial. (...) Prevaleceu, entretanto, a inclusão das pessoas jurídicas igualmente como ‘consumidores’ de produtos e serviços, embora com a ressalva de que assim são entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa.”72
72
FILOMENO, José Geraldo Brito et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 25-27.
103
Esse também é o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho:
“O âmbito de incidência do Código de Defesa do Consumidor é delineado pelo conceito de relação de consumo, e o empresário que adquire bens ou serviços para reinseri-los, ainda que transformados, na cadeia de circulação econômica não pode ser determinado como consumidor, pela legislação brasileira, visto que não age nesse caso como destinatário final. (...) Sob o ponto de vista econômico, esses bens ou serviços incorporam aos oferecidos ao mercado de consumo pelo empresário que os adquiriu. Em uma palavra, são insumos.”73
Ainda tratando sobre o conceito de consumidor adotado pela legislação
brasileira, importantes são os ensinamentos de Cláudia Lima Marques:
“O destinatário final é o Endverbraucher, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de produção (destinatário final econômico), e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor-final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor.
Portanto, em princípio, estão submetidos às regras do Código os contratos firmados entre o fornecedor e o consumidor não-profissional, e entre o fornecedor e o consumidor, que pode ser um profissional, mas que, no contrato em questão, não visa lucro, pois o contrato não se relaciona com a sua atividade profissional, seja este consumidor pessoa física ou jurídica.”74
O entendimento majoritário da doutrina é claro no sentido de não se
configurar a relação de consumo quando o bem ou serviço adquirido é utilizado
para integrar ou implementar atividade produtiva. E a razão é muito simples:
aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço na sua atividade produtiva o faz
para melhorar, aprimorar e/ou ampliar a sua capacidade de administração,
73
COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor, cit., p. 47. 74
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 338-339.
104
produção e comercialização de produtos ou serviços. A despeito disso, fato é que
a jurisprudência dos Tribunais brasileiros tem oscilado de forma considerável na
interpretação do conceito de “destinatário final” empregada pelo Código de
Defesa do Consumidor. Em muitos casos, deixa-se de lado a análise quanto à
finalidade pela qual o produto ou serviço é adquirido e decide-se pela aplicação
ou não da legislação protetiva com base nas características próprias da parte, isto
é, sua maior ou menor “vulnerabilidade” frente ao fornecedor. Ainda assim, o
próprio Superior Tribunal de Justiça, após algumas decisões contraditórias quanto
ao assunto, pacificou o entendimento de que o indivíduo que adquire bens ou
serviços para incrementar seu processo produtivo, com o objetivo de obtenção de
lucro, não é consumidor no sentido jurídico do termo. Confira-se:
“COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇO DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE.
- A aquisição de bem ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. (...)
A lei consumerista, à evidência, não veio contemplar o comerciante, puro e simples, que no seu campo de atuação profissional, adquire bens e contrata serviços com a finalidade de implementar a sua atividade negocial. O produto adquirido não se destina ao consumo próprio, daí por que inexiste a relação de consumo a atrair a competência da vara especializada.
Em realidade, a relação de consumo restringe-se à autora, ‘Central de Tintas Ltda.’ e à pessoa que adquiriu, em seu estabelecimento comercial, o produto no varejo. O que faz parte da cadeia econômica da atividade do comerciante, não pode ser tida como relação de consumo.” (Recurso Especial nº 541.967-BA, Segunda Seção, Relator para acórdão Ministro Barros Monteiro, j. 10.11.2004)
105
Por todo o exposto, quer nos parecer que a disciplina da desconsideração
da personalidade jurídica trazida pelo Código de Defesa do Consumidor apenas
poderá ser aplicada naqueles casos em que o Código seja aplicável, isto é, em
que fique caracterizada uma relação de consumo, propriamente dita.
Diferentemente do que acreditam aqueles que defendem a assim denominada
“teoria maximalista” do conceito de consumidor, pretender aplicar as normas do
Código de Defesa do Consumidor em benefício daqueles que adquirem produtos
como insumos de produção, por exemplo, é enfraquecer a própria norma, retirá-la
de seu contexto e desviar sua finalidade. Ao se pretender aplicar uma norma
protetiva para aqueles que não justificam tal proteção, para aquelas relações que
não são naturalmente desequilibradas e não necessitam da intervenção estatal
em favor de uma das partes, retira-se a força dessa norma, banalizando e
suavizando sua aplicação em todo e qualquer caso. Como é evidente, se um
magistrado depara com uma situação que não reclame a proteção conferida pelo
Código de Defesa do Consumidor e, ainda assim, veja-se impelido a aplicá-lo, irá
interpretar as normas do Código de maneira tal que não provoquem desequilíbrio
em favor do suposto “consumidor”. Isto é, irá esvaziar a força da norma,
interpretá-la de forma mitigada de modo a evitar que a concessão de um benefício
a quem não necessita de proteção estatal não gere tamanha injustiça, que retire a
própria legitimidade do Código. Ao fazê-lo, esse magistrado e todos aqueles que
utilizarem o precedente como razão de decidir passarão a interpretar a norma de
modo mais brando e menos incisivo do que o necessário para proteção daquele a
quem a norma efetivamente visa a proteger, do consumidor que, de fato, reclama
a tutela estatal.
106
Por todos esses motivos, entendemos importante ressaltar que, assim
como as demais disposições do Código de Defesa do Consumidor, em regra, as
normas atinentes à desconsideração da personalidade jurídica ali contidas
apenas devem ser aplicadas aos casos que envolvam efetiva relação de
consumo, não podendo ser estendidas indistintamente a outros ramos do Direito.
Confira-se a lição de Nelson Nery Junior:
“Objeto de regulamentação pelo Código de Defesa do Consumidor é a relação de consumo, assim entendida a relação jurídica existente entre fornecedor e consumidor, tendo como objeto a aquisição de produtos ou utilização de serviços pelo consumidor. 1. As relações jurídicas privadas em geral continuam a ser regidas pelo Código Civil, Código Comercial e Legislação extravagante.
..........................................................................................................
As relações jurídicas que se encontram sob o regime do CDC são as denominadas relações jurídicas de consumo, vale dizer, aquelas que se formam entre fornecedor e consumidor, tendo como objeto a aquisição de produtos ou a utilização de serviços pelo consumidor. Os elementos da relação jurídica de consumo são três: a) os sujeitos; b) o objeto; c) o elemento teleológico. São sujeitos da relação de consumo o fornecedor e o consumido; são objeto da relação de consumo os produtos e serviços. O elemento teleológico da relação de consumo é a finalidade com que o consumidor adquire os produtos ou se utiliza do serviço, isto é, como destinatário final. Se a aquisição for apenas meio para que o adquirente possa exercer outra atividade, não terá adquirido como destinatário final e, conseqüentemente, não terá havido relação de consumo.”75
Ainda porque, como será demonstrado a seguir, o artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor é claro em restringir a sua aplicação aos casos nos quais
a personalidade jurídica quando essa for utilizada de maneira indevida “em
detrimento do consumidor”. Desse modo, pretender aplicar o aludido dispositivo a
casos que não envolvam consumidores, no sentido jurídico do termo, contraria as
disposições expressas da norma.
75
NERY JÚNIOR, Nelson et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 493 e 495.
107
7.2. O artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor estipulou, em seu artigo 28, as regras
para desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo:
“Artigo 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado)
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
Pela simples leitura do dispositivo, percebe-se que o Código de Defesa do
Consumidor tratou sob a rubrica de desconsideração da personalidade jurídica
situações que em nada se relacionam a essa teoria, como é o caso da
responsabilidade dos grupos de sociedades por danos decorrentes de relações
de consumo. Prova disso é que o § 3° do artigo 28 trata de sociedades
consorciadas, as quais nem mesmo são dotadas de personalidade jurídica,
conforme previsto expressamente no artigo 278, § 1º, da Lei das Sociedades por
Ações:
“Artigo 278. As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar
108
determinado empreendimento, observado o disposto neste capítulo.
§ 1º - O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade.
§ 2º - A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio.”
Em vista disso, e apenas a fim de sistematizar a exposição dos
argumentos, trataremos separadamente do caput e do § 5° do artigo 28, os quais,
acreditamos, remetem efetivamente à teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, abordando, em um segundo momento, as hipóteses de
responsabilização dos grupos de sociedades, tratadas nos §§ 2° a 4o do artigo 28.
7.2.1. Origem histórica do dispositivo
O Projeto de Lei do Senado nº 97, de 1989, formulado com base no
anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor elaborado pela comissão
formada por Ada Pellegrini Grinover, José Geraldo Brito Filomeno, Daniel Roberto
Fink, Kazuo Watanabe, Zelmo Denari, Nelson Nery Junior, Marcelo Gomes Sodré
e Mariângela Sarrubbo Fragata, dentre outros, previa, em seu artigo 23, a
responsabilidade dos sócios–gerentes e administradores da pessoa jurídica em
casos de insolvência ou encerramento das atividades. Esse era o teor do
dispositivo, localizado na Seção VIII, sob o título “De Extensão Subjetiva Da
Responsabilidade”:
109
“Artigo 23. Os sócios-gerentes de administradores não respondem pessoalmente pelas obrigações imputadas à empresa, exceto, nos casos de culpa, insolvência ou encerramento das respectivas atividades, pelas indenizações previstas nas Seções II, III e IV deste Capítulo.”
Como se nota, portanto, a redação original do Projeto de Código de Defesa
do Consumidor previa a possibilidade de responsabilização dos sócios e dos
administradores da pessoa jurídica apenas nos casos em que atuassem com
culpa (hipótese de responsabilidade civil ordinária, atualmente prevista no artigo
186 do Código Civil); e no caso de insolvência ou encerramento da sociedade.
Nesse ponto, cumpre destacar que as Seções II, III e IV a que se refere o
dispositivo, tratavam, respectivamente, da responsabilidade do fornecedor (i) por
danos (atualmente fato do produto); (ii) por vício dos bens; e (iii) por vício dos
serviços.
Assim é que, o dispositivo original do Projeto de Código de Defesa do
Consumidor previa a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica
apenas nos casos de danos decorrentes de fato ou vício do produto ou serviço, e
apenas nas hipóteses de insolvência ou encerramento das atividades da
sociedade. Se, de um lado, a norma era menos abrangente do que a redação final
do texto aprovado, que inclui mais hipóteses justificadoras da desconsideração,
conforme será demonstrado nesse trabalho, por outro, era mais rigorosa no que
se tange à responsabilidade decorrente de insolvência da sociedade, uma vez
que não exigia a má administração para justificar a desconsideração.
110
Colocado em discussão o Projeto no Senado Federal, o Senador Carlos
De’Carli propôs, na Emenda nº 23 ao Projeto, a supressão do referido artigo 23,
sob a seguinte justificativa:
“É da melhor tradição do nosso Direito a clara distinção entre a Pessoa Jurídica, e a pessoa de seus Sócios, neste sentido verifica-se que apenas em situações excepcionais é desconsiderada a personalidade jurídica (vide art. 10 da Lei das Sociedades por Cotas), assim acredita-se que o princípio da não incidência de responsabilidade dos sócios-gerentes deve ser encarada restritivamente nos termos da legislação pertinente.”
No Parecer nº 143, de 1989, relatado pelo Senador Dirceu Carneiro, no
entanto, a Comissão Temporária do Código de Defesa do Consumidor rejeitou a
aludida Emenda, com base nos argumentos do Senador Iram Saraiva, in ver bis:
“Ao contrário do que parece imaginar o autor da emenda, não é da tradição do nosso direito eximir, em qualquer hipótese, os sócios gerentes e os administradores das empresas de responsabilidade pelos danos advindos a terceiros. Quando age com dolo ou culpa respondem de forma ilimitada pelos prejuízos decorrentes.”
Ainda que o argumento apresentado a justificar a rejeição da emenda
proposta estivesse formalmente correto, parece claro que não endereçavam
adequadamente as razões que justificaram a propositura de tal emenda. Isso
porque, na justificativa da Comissão para rejeitar a emenda apenas foi abordada
a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em razão de atos
culposos ou dolosos, e não em virtude de simples insolvência ou encerramento
das atividades, como estava previsto no artigo 23 original do Projeto de Código de
Defesa do Consumidor. Se a própria legislação já previa a possibilidade de
responsabilização dos sócios e administradores quando agiam com culpa ou dolo,
111
não seria necessário incluir um dispositivo no Código de Defesa do Consumidor
que trouxesse essa mesma previsão. A única inovação representada pelo então
artigo 23 do Projeto de Código de Defesa do Consumidor era a possibilidade de
responsabilização de sócios e administradores em decorrência de simples
insolvência ou encerramento das atividades, o que não necessariamente estava
relacionado à atuação culposa ou dolosa dos indivíduos. Nesse aspecto, o
Parecer que opinou pela rejeição da emenda que propunha a supressão do artigo
23 do Projeto de Código de Defesa do Consumidor não justificou qual o
fundamento para que se admitisse o afastamento da personalidade jurídica em
tais hipóteses.
Ainda assim, em 17.8.1989 o Senado Federal aprovou o Projeto de Código
de Defesa do Consumidor com a redação original do seu artigo 23, rejeitando,
portanto, a emenda que previa a sua supressão, em respeito ao princípio da
autonomia da personalidade jurídica. Uma vez aprovado o Projeto, esse seguiu
para a Câmara dos Deputados, onde a disciplina da desconsideração da
personalidade jurídica recebeu novo tratamento, sendo transferida para o artigo
28 do Projeto, com a seguinte redação:
“Artigo 28. O juiz desconsiderará a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° A pedido da parte interessada, o juiz determinará que a efetivação da responsabilidade da pessoa jurídica recaia sobre o acionista controlador, o sócio majoritário, os sócios-gerentes, os administradores societários e, nos caso de grupo societário, as sociedades que o integram.
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas
112
obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.”
Referido dispositivo recebeu três propostas de emenda parlamentar. A
Emenda nº 82, que sugeria a supressão do dispositivo, a Emenda nº 83, que
sugeria a restrição do seu âmbito de aplicação apenas às sociedades por quota
de responsabilidade limitada e a supressão do § 2º do dispositivo, e a Emenda nº
84, que propunha a alteração da redação do dispositivo para prever que a
desconsideração seria uma faculdade do Juízo, e não uma obrigação.
Quanto à Emenda nº 82, uma vez mais o Poder Legislativo entendeu que o
Projeto abordava de maneira adequada a teoria da desconsideração, a qual era
largamente aceita no Direito brasileiro, tanto na legislação esparsa quanto na
jurisprudência. Atente-se para o teor do Parecer nº 45, de 1990, da Comissão
Mista do Congresso Nacional destinada a elaborar Projeto de Código de Defesa
do Consumidor:
“A desconsideração da pessoa jurídica é conquista do moderno direito comercial, que se aplica, também, no direito civil, administrativo, tributário e trabalhista, por exemplo. A jurisprudência, adotando alvitre preconizado pela doutrina mais autorizada, já vem aplicando a teoria da disregard doctrine nas mais variadas hipóteses que se lhe apresentam para julgamento.
Em matéria legislativa, a desconsideração encontra-se adotada pelo art. 2º, da CLT; art. 10, do Decreto nº 3.708, de 10.1.1919 (Lei das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada); art. 135 do Código Tributário Nacional, entre outros.
O Projeto inova ao tratar do tema no direito do consumidor, mas não traz novidade quanto à essência da matéria, desde há muito aplicada e adotada pela doutrina, jurisprudência e pela lei brasileira.”
113
Uma vez mais, em que pese o fato de que as razões apresentadas no
Parecer nº 45/90 pudessem estar formalmente corretas, elas não justificavam
suficientemente a redação do Projeto, na medida em que este trazia sim grandes
inovações para o tema da desconsideração da personalidade jurídica. Por
exemplo, o Parecer não justificava a razão pela qual a desconsideração poderia
decorrer da má administração da sociedade, se tal proposta se filiava ao
entendimento de que a má administração corresponderia a uma forma de ato
ilícito ou qual a motivação do legislador para incluí-la como autorizadora da
desconsideração. Da mesma forma, não explicava como poderia ser
desconsiderada a personalidade jurídica de um consórcio, o qual nem mesmo é
dotado de tal personalidade, conforme previsto no artigo 278, § 1º, da Lei das
Sociedades por Ações.
Quanto à Emenda nº 83, o Parecer nº 45/90 propôs a sua rejeição, com
base na seguinte justificação:
“A emenda visa aplicar a desconsideração da pessoa jurídica apenas às sociedades por quotas de responsabilidade limitada. O Projeto, mais amplamente, abrange todas as categorias de sociedades, notadamente as anônimas, fornecendo mais proteção para a garantia das indenizações. A supressão do § 2º deixa sem responsabilização as sociedades que integram os grupos societários. Estes, evidentemente, não podem ser responsabilizados por não possuírem patrimônio próprio, diferentemente do que ocorre com as sociedades que os integram.”
Nesse caso, portanto, o Parecer foi bastante claro em determinar a rejeição
da Emenda com a intenção de garantir que os consumidores fossem indenizados
no maior número de circunstâncias em que se verificassem as hipóteses previstas
no caput do dispositivo, a saber, a disfunção da pessoa jurídica ou a insolvência
114
causada por má administração.
Por fim, o Parecer propôs a aprovação da Emenda nº 84 de modo a
flexibilizar a desconsideração, na medida em que essa deixaria de ser uma
obrigação do Juiz, para se tornar uma faculdade:
“A emenda transforma a natureza da norma de cogente (“desconsiderará”) para facultativa ope judicis (o juiz poderá desconsiderar). Com isso, dá-se maior flexibilidade ao juiz para verificar se é ou não caso de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, o que será avaliado diante de cada caso concreto.”
Quer nos parecer, no entanto, que a justificativa para aprovação dessa
Emenda não se sustenta, haja vista que, ainda que o dispositivo mantivesse sua
redação original, de caráter cogente, a desconsideração apenas poderia ocorrer
após a verificação, pelo Juízo, da presença dos requisitos previstos na norma, em
uma análise caso a caso. Conforme será demonstrado a seguir, entendemos que
a alteração do dispositivo, ainda que aprovada no texto final da norma, não
alterou o fato de que a desconsideração é obrigatória sempre que verificados os
requisitos legalmente previstos.
Após a aprovação do Parecer nº 45/90, no entanto, houve novas propostas
de Emenda ao Projeto, dentre elas a Emenda nº 86, com a seguinte redação:
“Acrescente-se, onde couber, artigo com a seguinte redação:
‘Art. Desconsiderar-se-á a pessoa jurídica sempre que os efeitos de sua personalidade forem, de alguma forma, obstáculos para o ressarcimento dos prejuízos causados pela sociedade’. “
115
Na justificação da Emenda, seus autores, os Deputados Gastone Righi e
Jofran Frejat, enunciaram que “os prejuízos causados devem ser sempre
ressarcidos e a lei deve zelar para que nada entrave esse ressarcimento.” Em que
pese à referida Emenda tenha sido aprovada no texto final do Código de Defesa
do Consumidor, tendo sido incluída com alterações no seu texto, fato é que a
intenção dos seus autores não foi de todo acolhida. Isso porque, diferentemente
do sugerido na Emenda, o dispositivo proposto não foi incluído como um artigo
independente do Código, mas sim como § 5º do artigo 28, estando sujeito,
portanto, às consequências hermenêuticas daí advindas. Isto é, por não se tratar
de um dispositivo autônomo, a norma sugerida na Emenda ficou submetida ao
que já dispunha o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, especialmente
em seu caput. Ainda porque, caso a finalidade almejada pelos autores da Emenda
tivesse sido acolhida pelos demais parlamentares, de que todo prejuízo aos
consumidores fosse sempre indenizado, ainda que mediante o sacrifício do
princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, quer nos parecer que o
artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor teria sido suprimido do texto final
do Código, sendo substituído pela Emenda proposta pelos Deputados Gastone
Righi e Jofran Frejat. Não tendo sido essa a opção do Congresso Nacional, que
não apenas manteve o artigo 28, mas ainda incluiu o texto da Emenda proposta
como um de seus parágrafos, submetido e hierarquicamente inferior ao caput,
conclui-se que a finalidade dos Deputados de estender de forma ampla e irrestrita
a desconsideração da personalidade jurídica a qualquer hipótese de dano ao
consumidor não foi acolhida pelo legislador.
116
7.2.2. Hipóteses de efetiva desconsideração da personalidade jurídica –
artigo 28, caput, do Código de Defesa do Consumidor
A primeira questão suscitada pela desconsideração da personalidade
jurídica no regime do Código de Defesa do Consumidor remete ao termo “poderá”
utilizado pelo legislador. Parece claro, no entanto, que seu uso não denota uma
efetiva faculdade do Juízo, mas sim um dever de, caso verificada a presença dos
requisitos legalmente estatuídos, determinar a desconsideração da personalidade
jurídica como forma de garantir a efetiva reparação dos danos sofridos pelo
consumidor. Isso porque, o artigo 6º, inciso VI, do Código de Defesa do
Consumidor prevê expressamente como direito básico do consumidor a efetiva
reparação de danos patrimoniais e morais que venha a sofrer. Como é evidente,
tendo o consumidor sofrido um dano, não havendo meios de obter a devida
reparação, e presentes os requisitos para desconsideração da personalidade
jurídica, não seria dado ao Juízo decidir, por mero capricho, se determina ou não
a desconsideração. Presentes os requisitos legais e sendo medida necessária à
efetiva reparação de danos sofridos pelo consumidor, a desconsideração da
personalidade jurídica constitui direito do consumidor e dever do Juízo. A amparar
tal entendimento, o inciso VIII do mesmo artigo também inclui entre os direitos
básicos do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos. Desnecessário
citar que, ainda que fosse dado ao Juízo optar livremente entre deferir a
desconsideração da personalidade jurídica ou não, isso sempre teria que ser
deferido como forma de atender ao disposto no artigo 6º, inciso VIII, do Código de
Defesa do Consumidor, isto é, como forma de facilitação da defesa do
consumidor em Juízo.
117
Registre-se, entretanto, que tal entendimento está longe de ser unânime na
doutrina, anotando-se o respeitável entendimento de Zelmo Denari, um dos
autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, para o qual a
desconsideração da personalidade jurídica constitui faculdade do Juízo, até
mesmo em prestígio à Escola do Direito Livre e da Jurisprudência de Interesses:
“Em linha de coerência com os postulados da Escola do Direito Livre e Jurisprudência de Interesses (Interessenjurisprudenz) – ao proclamar que a tarefa do Juiz não é puramente cognoscitiva, muito menos mecânica, mas valorativa dos interesses em conflito, além de criativa de novas normas – o dispositivo teve o cuidado de autorizar a aplicação da desconsideração como faculdade do Juiz, a cujo prudente arbítrio confiou o exame preliminar e a aferição dos pressupostos, para concessão da medida extrema.”76
Ressalte-se, ainda, que o entendimento do autor é amparado pelo Parecer
nº 45/90, da Comissão Mista do Congresso Nacional destinada a elaborar Projeto
de Código de Defesa do Consumidor, conforme acima descrito.
O fato é que, segundo entendemos, ainda que fosse essa a intenção do
legislador, a interpretação de que a desconsideração constitui faculdade do Juízo
viola a sistemática geral do Código pautada na facilitação da defesa do
consumidor e na proteção de sua integridade física e patrimonial e, por isso, não
deverá prevalecer.
Superada a questão inicial, cumpre agora analisar as hipóteses que
autorizam a desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo.
Em primeiro lugar, a lei trata dos casos em que haja “abuso de direito,
excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou
76
DENARI, Zelmo et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, cit., p. 237.
118
contrato social” da sociedade fornecedora. Tais hipóteses encerram em si todas
as circunstâncias já prestigiadas pela teoria de desconsideração da personalidade
jurídica, razão pela qual não representam qualquer inovação ou ousadia do
legislador. Trata-se de hipóteses nas quais os atos praticados pela sociedade vão
de encontro ao seu próprio fundamento de validade, justificando a
responsabilização pessoal do sócio ou administrador que, ao atuar de forma
contrária ao objeto social, deixou de estar coberto pelo véu da autonomia da
personalidade jurídica.
Como exposto acima, o Direito apenas confere personalidade jurídica às
sociedades para estimular a reunião de esforços e recursos voltados para a
consecução de um fim juridicamente protegido. Isto é, a personalidade jurídica é
um meio lícito e moral de proteção patrimonial do qual se valem os indivíduos
para atuar no mercado, gerar e circular riquezas. No entanto, a partir do momento
em que a atuação da sociedade se distancia de seu objeto ou finalidade, sua
atuação não mais está protegida pelo Direito ou justifica a adoção de medidas de
proteção do patrimônio de seus sócios. Ao atuar de forma contrária ao seu
estatuto ou contrato social, a sociedade deixa de agir no sentido protegido pelo
Direito e, com isso, não mais se justifica a linha divisória de direitos e
responsabilidades que o Direito artificialmente traça entre a pessoa jurídica e as
pessoas físicas que a integram.
Não há que se confundir, no entanto, as hipóteses contidas na primeira
parte do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor com uma
suposta aplicação da teoria ultra vires, de origem no Direito anglo-saxão, nas
relações de consumo. Conforme descrito acima, segundo a teoria ultra vires, atos
praticados com excesso de poder ou desvio de finalidade devem ser imputados
119
diretamente a quem os praticou, não afetando a pessoa jurídica utilizada de forma
indevida. No caso da desconsideração da personalidade jurídica, todavia, não há
anulação ou nulidade dos atos praticados pela sociedade, mas simplesmente o
afastamento da autonomia patrimonial para que recaia sobre os proprietários da
sociedade a responsabilidade pelos atos por ela praticados.
O abuso de direito, agora positivado no artigo 187 do Código Civil de 2002,
desde logo foi interpretado pela doutrina como o ato praticado pela sociedade de
forma a exceder os limites da boa-fé. Uma modalidade de ato ilícito, a nota
diferenciadora do abuso de direito é que se trata do exercício de uma faculdade
em princípio autorizada ou não vedada por lei, mas que, em virtude da forma
como exercida, torna-se abusiva e, portanto, ilegal. Segundo Fábio Ulhoa Coelho,
citando Josserand, ficará caracterizado o abuso de direito “quando o seu titular o
utiliza em desacordo com a finalidade social para a qual os direitos subjetivos
foram concedidos”77. Esse é o entendimento de Caio Mário da Silva Pereira a
respeito do conceito de “abuso de direito”:
“Abusa do seu direito o titular que dele de utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na intenção de fazer mal, e sem proveito próprio. O fundamento ético da teoria pode, pois, assentar em que a lei não deve permitir que alguém se sirva de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem.”78
Para Marcus Elidius Michelli de Almeida, no entanto, a caracterização do
abuso de direito independe do fator subjetivo identificado por Caio Mário da Silva
Pereira, bastando que o titular de um direito cause danos a outrem por exercê-lo
77
COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica, cit., p. 92. 78
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. v. 1, p. 430.
120
de forma manifestamente contrária ao espírito da norma instituidora do respectivo
direito:
“Por fim, podemos concluir que o abuso de direito é caracterizado pelo comportamento aparentemente lícito de alguém, mas que ao utilizar o seu direito, vem a causar dano a outrem em razão de contrariar de forma manifesta o espírito do instituto.”79
Esse parece ter sido o entendimento adotado pelo Código Civil em vigor.
Segundo consta do artigo 187 do Código Civil, é considerado ato ilícito aquele
praticado pelo “titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes”. Assim é que o abuso de direito deve ser visto como o exercício de um
direito legalmente previsto de forma anormal, seja quanto à sua intensidade ou
forma de exercício. Ainda que o direito não seja exercido em uma intensidade tal
que se mostre abusivo, há casos em que um direito pode ser exercido de tal
modo que se revele incômodo e prejudicial aos interesses de terceiros, casos nos
quais há uma efetiva desproporção entre a utilidade do exercício de tal direito e as
consequências danosas desse exercício.
No contexto do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, o
abuso de direito deve ser entendido justamente como um ato que, em regra, seria
lícito, mas que, por ter sido praticado de modo a ferir a finalidade social a que se
dedica a pessoa jurídica, torna-se abusivo e ilícito. O abuso de direito constitui,
sobremaneira, o uso anormal de uma prerrogativa conferida pelo Direito com o
objetivo de obter vantagem indevida e, como tal, ilícita. Outro caso em que pode
79
ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de. Abuso do direito e concorrência desleal. São Paulo: Quartier Latin, 2004.
121
haver abuso de direito, além da hipótese típica de exercício abusivo, seria o da
sociedade que, podendo agir de diversas formas diferentes, opta por adotar
medida que prejudica terceiros, ainda que não lhe traga nenhum benefício. Isto é,
se diante de duas opções para atingir a mesma finalidade o fornecedor opta por
aquela que prejudica o consumidor e não traz a ele, fornecedor, nenhum
benefício, está-se diante de ato ilícito por abuso de direito, o que justificaria a
desconsideração da personalidade jurídica.
As outras hipóteses para desconsideração da personalidade jurídica seriam
as de infração da lei, excesso de poder, prática de fato ou ato ilícito e a violação
dos estatutos ou do contrato social. Nesse contexto, o excesso de poder deve ser
entendido como a prática de ato que excede a competência ou a autoridade
conferida ao indivíduo. A infração da lei, prática de ato ou fato ilícito e a violação
do contrato social, por sua vez, envolvem conduta omissiva, concernente no não
cumprimento de obrigação imposta a determinado indivíduo por disposição legal
ou constante do contrato social. Como é evidente, essas três figuras estão
intimamente ligadas ao contrato e objeto social da pessoa jurídica, motivo pelo
qual não podem ser interpretadas de forma a abranger outras condutas que não
aquelas que importem violação desse contrato ou objeto social. No entanto, quer
nos parecer que tais hipóteses não seriam necessariamente casos de
desconsideração da personalidade jurídica, propriamente dita. Nesses casos, os
atos praticados nem mesmo estariam protegidos pela personalidade jurídica em
primeiro lugar, visto que os atos que excedam os poderes conferidos ao
mandatário ou que escapem ao objeto social da pessoa jurídica não são, em
regra, praticados pela pessoa jurídica, mas sim pela pessoa física que adotou a
conduta. Por certo, as próprias normas civis de responsabilização por ato ilícito
122
bastam para justificar que recaia sobre aquele que atua com excesso de poder ou
pratica ato ilícito, a responsabilidade pela consequência de seus atos.
Especificamente quanto às sociedades limitadas, o próprio artigo 1.080 do Código
Civil prevê que o sócio responde de forma ilimitada pelas deliberações contrárias
à lei ou ao contrato social. E o próprio E. Superior Tribunal de Justiça já
reconheceu que tal responsabilização em nada se confunde com a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, conforme consta do Enunciado 229
obtido na III Jornada de Direito Civil:
“Enunciado 229. A responsabilidade ilimitada dos sócios pelas deliberações infringentes da lei ou do contrato torna desnecessária a desconsideração da personalidade jurídica, por não constituir a autonomia patrimonial da pessoa jurídica escudo para a responsabilização pessoal e direta.”
No que diz respeito às sociedades por ações, a seu turno, o artigo 117 da
Lei das Sociedades por Ações institui a responsabilidade do acionista controlador
em virtude de atos praticados com abuso de poder. A mesma lei prevê, no artigo
158, a responsabilidade pessoal do administrador nos casos em que atuar com
culpa ou dolo ou com excesso de poder.
Fato é que as normas que regulam as diferentes sociedades empresárias
já preveem a responsabilidade pessoal de seus sócios e administradores nos
casos de infração da lei, excesso de poder, fato, ato ilícito, violação dos estatutos
ou do contrato social. Assim, não se trataria propriamente de desconsideração da
personalidade jurídica, mas sim de uma exceção legal à autonomia da pessoa
jurídica, de hipóteses nas quais o “véu” da personalidade jurídica nunca foi
colocado:
123
“Destarte, na Lei das Sociedades Anônimas, alguns autores entendem que a definição de acionista controlador, a atribuição de deveres e a respectiva responsabilização por atos praticados com desvio e abuso de poder, constitui avanço no Direito Societário Brasileiro, porquanto representa a adoção da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Entretanto, percebe-se que não se está, de maneira alguma, tratando-se de desconsideração, mas sim de responsabilização dos controladores por atos próprios (art. 117, § 1º da Lei nº 6.404/76).”80
A última hipótese do caput, no entanto, qual seja, a desconsideração da
personalidade jurídica em virtude da “falência, estado de insolvência,
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má
administração”, parece-nos o ponto central quanto à definição da abrangência da
autonomia patrimonial da pessoa jurídica nas relações de consumo. Essa
previsão sim constitui verdadeira inovação, uma vez que, de forma inédita,
introduz no Direito brasileiro a possibilidade de desconsideração da personalidade
jurídica sem que haja, necessariamente, fraude à lei, abuso de direito ou a prática
de atos ilícitos. Como é evidente, com essa disposição o legislador pretendeu
preservar os direitos dos consumidores nos casos em que o passivo do
fornecedor for maior do que seu ativo. Em primeiro lugar, deve-se destacar que, a
nosso ver, as hipóteses de falência e insolvência não são enumerativas, mas sim
exemplificativas dos casos nos quais possa haver a desconsideração da
personalidade jurídica. Isso porque, não faria sentido, por exemplo, que em casos
de liquidação de instituições financeiras por má administração, os consumidores
afetados não gozassem da mesma proteção que gozariam caso o fornecedor não
fosse uma instituição financeira e estivesse sujeito ao procedimento falimentar
regular. Tal circunstância, além de violar o princípio da equidade, seria de todo
80
Manoel Carpena Amorim, citado por NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. op. cit., p. 232.
124
ilógica. Em vista disso, quer nos parecer que as hipóteses de insolvência citadas
no caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor não encerram em si
um rol exaustivo dos casos em que a desconsideração da personalidade jurídica
poderá operar-se.
De outro lado, não se pode ignorar o complemento final do caput, em que
se lê que, mesmo nessas hipóteses de insolvência do fornecedor, a
desconsideração da personalidade jurídica apenas é legítima caso fique
comprovado que tal estado foi provocado por má administração. Nesse ponto,
acreditamos que a expressão “má administração” não se confunde com o desvio
de finalidade ou o abuso do direito, mencionados na primeira parte do caput do
artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. A má administração representaria
sim um erro do administrador na condução dos negócios da pessoa jurídica, um
comportamento que se afasta das técnicas de administração e das boas práticas
admitidas pela ciência da administração:
“A ‘má administração’ não se há de confundir com as práticas abusivas citadas no período inicial do dispositivo; traduz ela atos de gerência incompetente que, antes de tudo, são danosos para a própria pessoa jurídica e que podem ensejar, portanto, responsabilidade do administrador perante a própria empresa. Por desfalcar patrimonialmente a empresa, a má administração atinge, indiretamente, o consumidor. Porém, ninguém irá administrar mal uma empresa com o objetivo de fraudar direitos do consumidor.”81
A má administração trata-se, portanto, de um conceito jurídico
indeterminado, a ser preenchido pelo magistrado caso a caso, de acordo com a
realidade verificada no momento em que a análise tiver que ser realizada. A esse
respeito, é notória a tendência da legislação contemporânea de adotar conceitos
81
AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, p. 177-178, jan./mar. 1993.
125
abertos e indeterminados, não necessariamente de natureza eminentemente
jurídica, de modo a conferir atualidade e mobilidade ao sistema jurídico. Atente-se
para a doutrina de Judith Martins Costa acerca dos conceitos jurídicos
indeterminados:
“Os conceitos indeterminados podem se reportar tanto a realidades valorativas quanto a realidades fáticas. Por sua vaguidade e ambigüidade são muitas vezes polissêmicos, daí permitindo razoável dose de liberdade por parte do aplicador da lei no momento de sua aplicação.
Ocorre que tais conceitos integram, sempre, a descrição do ‘fato’ que a norma pretende abranger. Embora permitam, por sua fluidez, uma abertura às mudanças de valoração, a verdade é que, por integrarem a descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa. Assim, ‘uma vez estabelecida, in concreto, a coincidência ou a não coincidência entre o acontecimento real e o modelo normativo, a solução estará, por assim dizer, predeterminada’.”82
No caso, o legislador poderia ter estabelecido taxativamente quais os
critérios a serem observados pelo Juízo ao aferir a caracterização ou não da má
administração. Tal opção, no entanto, engessaria o sistema, na medida em que
demandaria a constante reforma do Código de acordo com a evolução do
conhecimento e da ciência da administração. Ao optar pelo emprego de um
conceito indeterminado, como “má administração”, o legislador conferiu
mobilidade à norma, garantiu a sua atualidade ao determinar que cada Juízo, na
análise do caso concreto, verifique se a atuação do administrador conformou-se
com as regras e os princípios que regem a ciência da administração naquele
momento específico.
82
COSTA, Judith Martins. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 81, n. 680, p. 51, jun. 1992.
126
Na prática, acreditamos que, sendo verossímil a alegação de má
administração, o Juízo poderia até mesmo inverter o ônus da prova, com
fundamento no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, a fim
de que coubesse ao administrador a prova de que atuou de acordo com os
padrões preconizados pela ciência da administração naquele momento. A prova
de que o insucesso dos negócios não resultou de sua incapacidade ou imperícia,
mas sim de fatores alheios ao seu controle.
Nesse ponto, atente-se para a lição de Nelson Melo de Moraes Rêgo
quanto à adoção de conceitos indeterminados que remetem a outras ciências e
ramos de conhecimento, que não o Direito:
“Por esta razão, nossa época viu irromper na linguagem legislativa, indicações de programas e de resultados desejáveis para o bem comum e a utilidade social (o que tem sido chamado ‘normas-objetivo’), permeando-a também terminologias científicas, econômicas e sociais que, estranhas ao modo tradicional de legislar, são, contudo, adequadas ao tratamento dos problemas da idade contemporânea. Mais ainda, os códigos civis mais recentes e certas leis especiais têm privilegiado a inserção de certos tipos de normas que fogem ao padrão tradicional, não mais enucleando-se na definição, o mais perfeito possível, de certos pressupostos e na correlata indicação pontual e pormenorizada de suas conseqüências. Pelo contrário, estes novos tipos de normas buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídicos indeterminados’. Por vezes, e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas, o seu enunciado (identificado aqui com o conceito de técnica legislativa), ao invés de traçar pontualmente a hipótese e as suas conseqüências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, o que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas. (...)
Notadamente, na segunda metade do século XX, a técnica legislativa foi radicalmente transformada, assumindo a lei características de concreção e individualidade que eram próprias dos negócios privados, de normas abstratas e gerais de certas ações a respostas a específicos e determinados problemas.
127
Surgem, assim, indicações de valores, de programas e de resultados desejáveis para o bem comum e a utilidade social, terminologias científicas, econômicas, sociais, compatíveis com os problemas desta nova era, de pós-modernidade. Dentro deste espírito irrompem normas que buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente imprecisos e abertos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados. Em outros casos, dá-se a ocorrência de normas cujo enunciado, ao invés de traçar pontualmente a hipótese e as suas conseqüências, é intencionalmente desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores, princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estranhos ao corpus codificado, bem como a constante formulação de novas normas, as denominadas cláusulas gerais.”83
Ao comentar o caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, a
doutrina chama a atenção para o fato de que a desconsideração da personalidade
jurídica causada por má administração está relacionada a uma atuação culposa
do agente, seja a má administração causada por negligência, imprudência ou
imperícia na tarefa de administrar os negócios empresariais:
“Com relação à segunda parte do caput, constata-se a presença de um elemento que não se relaciona de forma específica aos interesses do consumidor. Trata-se de ‘má-administração’ da pessoa jurídica, que não deve ser confundida com as práticas abusivas explicitadas logo no início do artigo. A má-administração da pessoa jurídica refere-se aos atos de gerência incompetente, que, em muito, prejudicam a pessoa jurídica em si e pode gerar a responsabilidade do administrador perante a própria empresa, conforme a situação em concreto. Não obstante a má administração acabar muitas vezes, de forma indireta, lesando consumidores, não se pode afirmar que alguém vai administrar mal uma empresa visando fraudar direitos do consumidor.”84
Por esse motivo, Fábio Ulhoa Coelho entende que também a hipótese de
falência causada por má administração não consistiria em inovação trazida pelo
83
RÊGO, Nelson Melo de Moraes. op. cit., p. 60 e 61. 84
FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. op. cit., p. 177.
128
artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, na medida em que a
responsabilização do administrador decorreria da prática de um ato ilícito, de uma
atuação culposa do administrador que causou danos ao consumidor:
“Outro aspecto do disposto no art. 28, caput, do CDC é a referência à má administração da pessoa jurídica como pressuposto da desconsideração. Aqui, cogita-se de erros do administrador na condução dos negócios sociais. Quando ele atende às diretrizes fixadas pelas técnicas administrativas, pela chamada ‘ciência’ da administração, deixando de fazer o que elas recomendam ou fazendo o que desaconselham, e disto sobrevêm prejuízos à pessoa jurídica, ele administra mal; e, se ocorrer a falência da sociedade empresária, a insolvência da associação ou fundação ou mesmo o encerramento ou inatividade de qualquer uma delas em decorrência da má administração, então será possível imputar ao administrador a responsabilidade pelos danos sofridos pelos consumidores. Novamente, a existência e autonomia da pessoa jurídica não obstam essa responsabilização, descabendo, por isso, a referência à sua desconsideração.”85
Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas destaca, ainda, que a
exigência de má administração a justificar a desconsideração da personalidade
jurídica pode gerar injustiças, na medida em que o consumidor que contratar uma
sociedade bem administrada, mas insolvente, poderá ver seu crédito frustrado,
enquanto um consumidor que contratar uma sociedade igualmente insolvente,
mas mal administrada, poderá se valer da desconsideração da personalidade
jurídica:
“Parece haver tratamento desigual entre o consumidor que foi lesado por uma empresa mal administrada, e que, por isso, pode lançar mão do recurso da desconsideração da personalidade jurídica, e aquele que travou relações com empresa bem administrada, que tenha lhe causado prejuízos ao encerrar suas atividades, mas não dispõe da superação para reparar seus danos.”86
85
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 52. 86
FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. op. cit., p. 177.
129
Acreditamos, no entanto, que tal “tratamento desigual” seja justificado, na
medida em que a desconsideração da personalidade jurídica não deve ser vista
como um direito potestativo do consumidor, mas sim como uma sanção aplicada
ao fornecedor que descumpre os preceitos legais que autorizam o benefício da
separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus proprietários e
administradores. Ao incluir entre as hipóteses autorizadoras da desconsideração
a insolvência causada por má administração, o Código de Defesa do Consumidor
já ampliou o espectro de responsabilização pessoal do administrador da
sociedade para além dos casos ordinariamente aceitos pelo ordenamento, quais
sejam, a disfunção e o abuso de direito. Nada justificaria, no entanto, que tal
ampliação atingisse ainda aquele administrador que, a despeito do insucesso de
seu negócio, não contribuiu de qualquer forma para esse insucesso, tendo se
portado de acordo com as regras aplicáveis da ciência da administração.
Nesse ponto, cumpre destacar que, segundo entendemos, a simples
insolvência da pessoa jurídica não é suficiente para caracterizar a má
administração. Em primeiro lugar porque, tratando-se de uma economia de
mercado, regida pela livre iniciativa, inúmeros são os desafios enfrentados pelo
empresário, sendo que o sucesso ou insucesso de seu negócio não dependerá,
exclusivamente, de sua capacidade de administração. Nesse sentido, importante
citar a figura do “empresário honesto e infeliz”, adotada pelo Direito Comercial
para descrever aquele indivíduo que, a despeito de probo e cioso de suas
obrigações, vê seu empreendimento fracassar em razão de motivos alheios a seu
controle e vontade. Segundo J. X. Carvalho de Mendonça, o próprio instituto da
concordata se justificaria como forma de o Estado tutelar os interesses e os
direitos dessa espécie de empresário:
130
“Desenvolve-se o tráfico mercantil; estreitam-se as relações privadas internacionais, e vê-se que no comércio se levantam tempestades como no oceano. O naufrágio nem sempre se deve à culpa ou imperícia do capitão. (...)
É ainda a jurisprudência imortal que amparo sempre lhe mereceram os devedores desgraçados de boa-fé. Os princípios de humanidade haviam tonificado os rigores da falência romana com o estabelecimento de meios paralelos destinados a afastar os seus deprimentes efeitos, revelando a tendência de infundir na falência o caráter essencialmente patrimonial. (...)
Favorecendo ao devedor desventurado e honesto, ela [a concordata preventiva] resguarda-o das severidades e conseqüências desastrosas que no geral acarretam as falências; mantendo a igualdade entre os credores, ela ao mesmo tempo afasta esses arranjos clandestinos que tantos sacrifícios trazem a grande parte deles, ordinariamente aos que mais confiam na honradez do devedor.”87
Ainda porque, deve-se ter em mente a regra corrente de hermenêutica
segundo a qual a lei não contém palavras inúteis. Nesse sentido, não faria sentido
que o artigo 28, caput, do Código de Defesa do Consumidor trouxesse a previsão
de que a desconsideração da personalidade jurídica seria cabível em caso de
insolvência, encerramento ou inatividade “provocados por má administração”,
caso a intenção da lei fosse que se presumisse a má administração em todo e
qualquer caso de insolvência. Fosse essa a teleologia da norma, bastaria ao
dispositivo legal autorizar a desconsideração da personalidade jurídica em todo e
qualquer caso de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica.
Acreditamos que, quando muito, o estado de insolvência possa constituir uma
presunção relativa de ocorrência da má administração, competindo ao
administrador comprovar que sua atuação não contribui para o colapso da
empresa.
87
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Campinas: Russel Editores, 2006. v. 5, t. 2, p. 487, 488 e 502.
131
Ou seja, não é em qualquer caso de insolvência, decretação de falência ou
deferimento da recuperação judicial que a personalidade jurídica do fornecedor
poderá ser desconsiderada. Apenas nos casos em que ficar evidenciada a má
administração da sociedade é que os seus sócios responderão de forma solidária
e ilimitada por danos causados aos consumidores. Tal observação, muito embora
evidente, será importante na definição da abrangência do artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor, conforme restará demonstrado a seguir.
7.2.3. O veto presidencial ao § 1º do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor
Muito embora tenha sido objeto de veto presidencial, a análise do § 1º do
artigo 28 também é de especial importância, até mesmo a fim de compreender-se
a corrente doutrinária que defende a simples desconsideração do seu § 5º.
Constava do texto original do artigo 28, § 1º:
“§ 1º. A pedido da parte interessada, o juiz determinará que a efetivação da responsabilidade da pessoa jurídica recaia sobre o acionista controlador, o sócio majoritário, os sócios-gerentes, os administradores societários e, no caso do grupo societário, as sociedades que o integram.”
Como se percebe, o texto original do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor contemplava não apenas a previsão de que a desconsideração da
personalidade jurídica deveria ser requerida pelo interessado, o que suscitaria
discussões quanto à possibilidade de sua decretação de ofício pelo Juízo, mas
também enumerava quem seriam as pessoas que responderiam pelas dívidas da
132
sociedade em caso de desconsideração. Estranhamente, no entanto, ao vetar o
respectivo dispositivo, o Presidente da República de então apresentou a seguinte
justificativa:
“O caput do artigo 28 já contém todos os elementos necessários à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, que constitui, conforme doutrina amplamente dominante no Direito pátrio e alienígena, técnica excepcional de repressão a práticas abusivas.”
Como bem observa Zelmo Denari88, as razões de veto não dizem respeito
ao parágrafo vetado, motivo pelo qual tudo leva a crer que a verdadeira intenção
da Presidência da República seria a de vetar o § 5º do artigo 28, e não o § 1º
acima transcrito. Com efeito, o § 1º do artigo 28 até mesmo reduzia a
possibilidade de aplicação indiscriminada da desconsideração da personalidade
jurídica, porquanto a limitava aos casos nos quais houvesse pedido da parte
interessada para tanto. Ou seja, referido parágrafo ia ao encontro da preocupação
externada no veto, no sentido de que a “desconsideração da personalidade
jurídica” deve ser vista como “técnica excepcional de repressão a práticas
abusivas”. Ao vetar o referido parágrafo, a Presidência da República possibilitou o
entendimento de que o Juízo poderá decretar a desconsideração da
personalidade jurídica de ofício, o que contraria o próprio fundamento do veto.
Ainda assim, Fábio Ulhoa Coelho entende que o veto foi correto, mesmo
que por motivos diversos daqueles apresentados pela Presidência da República
em sua justificativa. Segundo o comercialista, o § 1º do artigo 28 padecia de uma
série de equívocos, uma vez que não enunciava quem seriam os responsáveis
88
DENARI, Zelmo et al. op. cit., p. 237.
133
pelos débitos e obrigações da pessoa jurídica nos casos em que a
desconsideração recaísse sobre associações ou fundações. Da mesma forma, se
fosse tomado como um rol exaustivo de responsáveis, o referido dispositivo
conduziria a injustiças, na medida em que, na prática, pode haver casos em que a
disfunção da pessoa jurídica seja causada pelo sócio minoritário, figura que não
constava do dispositivo vetado. Por esses motivos, Fábio Ulhoa Coelho defende
que o rol contido no § 1º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor
apenas poderia ser encarado como sendo de caráter exemplificativo. No entanto,
tratando-se de mera exemplificação, seria de todo mais conveniente deixar o
tratamento do tema à doutrina e à jurisprudência, e não à própria lei89.
Não obstante, entendemos que o uso das regras de hermenêutica jurídica
permite afirmar que a regra contida no § 1º do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor, embora formalmente vetado, deve ser observada a regra nos casos
de decretação da desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque, como
destaca Carlos Maximiliano, os dispositivos legais vetados devem ser tidos por
válidos nos casos em que o veto decorreu do entendimento do Poder Executivo
de que o conteúdo do texto vetado era redundante:
“Se um preceito figurava no Projeto primitivo e foi eliminado, não pode ser deduzido, nem sequer por analogia, de outras disposições que prevaleceram, salvo quando a supressão se haja verificado apenas por considerarem-no desnecessário ou incluído implicitamente no texto final.”90
No caso do § 1º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, seu
89
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 143 e 144.
90MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 143.
134
veto decorreu justamente do entendimento de que o seu conteúdo já estava
compreendido nas disposições do caput desse artigo. Tendo o § 1º sido vetado
em razão de suposta redundância, as regras de hermenêutica jurídica permitem
afirmar que o conteúdo desse § 1º deverá ser observado em todos os casos de
desconsideração da personalidade jurídica regidos pelo Código de Defesa do
Consumidor.
7.2.4. A polêmica suscitada pelo § 5º do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor
De outro lado, o § 5º do artigo 28, este sim ainda em vigor, traz redação
confusa e genérica que autoriza interpretação que transformaria a
desconsideração da personalidade jurídica em regra, e não exceção, como
pretendeu evitar o veto presidencial. Este o conteúdo do referido § 5º:
“§ 5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
De uma análise literal desse dispositivo, poder-se-ia concluir que o artigo
28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor autorizaria a desconsideração da
personalidade jurídica sempre que essa fosse obstáculo ao ressarcimento dos
prejuízos sofridos pelo consumidor. Isto é, o § 5º, por se tratar de norma de
conteúdo totalmente abstrato e genérico, pode conduzir à interpretação de que a
desconsideração da personalidade jurídica ocorreria ainda que não estivessem
presentes os requisitos enumerados no caput do artigo 28, tornando a
135
desconsideração a regra, e não a exceção, em matéria de relações de consumo.
Nessa hipótese, é evidente que não prevaleceria o entendimento doutrinário
“amplamente dominante” citado na justificativa do veto presidencial ao § 1º, no
sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica seria uma “técnica
excepcional de repressão a práticas abusivas”. O § 5º do artigo 28, isolada e
literalmente analisado, pode levar à conclusão de que, tratando-se de relação de
consumo, não haveria autonomia patrimonial da pessoa jurídica, uma vez que em
todo e qualquer caso de dano sofrido pelo consumidor a personalidade jurídica do
fornecedor poderia ser afastada a fim de responsabilizar seus sócios.
Essas considerações levaram Zelmo Denari, um dos autores do
anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, a concluir que o aplicador da
norma deve entender que o dispositivo vetado do artigo 28 do Código seria o seu
§ 5º, e não o § 1º. Confira-se:
“De sua leitura se infere que, por um equívoco remissivo, o veto recaiu sobre o § 1º quando, de modo coerente, deveria versar seu § 5º, que - com excessivo rigor e desprezando os pressupostos da fraude e do abuso de direito previstos no caput do artigo 28 - desconsidera a pessoa jurídica ‘sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores’.
De fato, não há referibilidade alguma entre as razões de veto e a disposição contida no parágrafo vetado, que se limita a indicar quais administradores deverão ser pessoalmente responsabilizados na hipótese de acolhimento da desconsideração.
Por todo o exposto, até por razões didáticas e metodológicas, o dispositivo vetado deve ser invocado pelas partes interessadas e utilizado pelo aplicador da norma, para deslinde das questões de legitimidade passiva.”91
91
DENARI, Zelmo et al. op. cit., p. 237.
136
Fato é que, na prática, o artigo 28, § 5º do Código de Defesa do
Consumidor continua em vigor, não tendo sido revogado ou alterado mesmo
quase vinte anos após a edição do aludido Código. Entretanto, ainda assim
acreditamos que suas disposições não podem ser interpretadas como justificativa
para que a desconsideração da personalidade jurídica passe a ser tida como a
regra e não a exceção nas relações de consumo.
Nesse ponto, cite-se que é ampla a doutrina que tem entendido e
defendido que, tratando-se de relação de consumo, a simples dificuldade na
reparação do dano sofrido pelo consumidor justifica a desconsideração da
personalidade jurídica, tenha havido ou não abuso de poder ou ato contrário ao
objeto social da pessoa jurídica da parte do fornecedor. A esse respeito, atente-se
para a lição de Claudia Lima Marques:
“A previsão ampla englobando todas as hipóteses detectadas no direito comparado e na experiência jurisprudencial brasileira sobre o tema, deixa bem clara a opção legislativa pela proteção ao consumidor através da desconsideração sempre que a ‘personalidade’ atribuída à sociedade for obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor.”92
A prevalecer tal entendimento, ter-se-ia que reconhecer que, no Direito
brasileiro, não haveria autonomia patrimonial das pessoas jurídicas nas relações
de consumo. Se em toda e qualquer relação de consumo a personalidade jurídica
pode ser desconsiderada a fim de garantir a reparação dos danos sofridos, é
evidente que não haveria nenhum caso em que a autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas estaria preservada. Sempre que necessário, o patrimônio do
fornecedor seria ultrapassado a fim de que seus sócios respondessem
92
MARQUES, Cláudia Lima. op. cit., p. 1.244.
137
pessoalmente pelas dívidas da sociedade. No entanto, não nos quer parecer que
essa interpretação do texto legal seja a mais razoável.
Em primeiro lugar porque, como exposto acima, o instituto da
personalidade jurídica foi criado justamente para ser uma ferramenta de
blindagem patrimonial lícita, por meio da qual o Direito estimula que os indivíduos
associem recursos e esforços para realização de atividades que, de outra forma,
não poderiam ser oferecidas à comunidade. Tal ferramenta é de especial valia na
sociedade de consumo, uma vez que fomenta a entrada no mercado de novos
agentes que ofereçam produtos e serviços para satisfação das necessidades e
desejos dos consumidores, estimulando a concorrência e o desenvolvimento da
sociedade. Caso se admita que o Código de Defesa do Consumidor
simplesmente pôs fim à autonomia patrimonial da pessoa jurídica, isso não
apenas renegaria toda a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
aceita no Brasil e no Direito estrangeiro, mas também iria de encontro à função
promocional do Direito que fomenta a associação de pessoas e recursos para
consecução de fins superiores às forças de cada uma delas. Esse o entendimento
de Fábio Ulhoa Coelho:
“No tocante ao § 5º do art. 28 do CDC, note-se que uma primeira e rápida leitura pode sugerir que a simples existência de prejuízo patrimonial suportado pelo consumidor seria suficiente para autorizar a desconsideração da pessoa jurídica. Essa interpretação meramente literal, no entanto, não pode prevalecer por três razões. Em primeiro lugar, porque contraria os fundamentos técnicos da desconsideração. Como mencionado, a disregard doctrine representa um aperfeiçoamento do instituto da pessoa jurídica, e não sua negação. Assim, ela só pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para a coibição de fraudes ou abuso de direito. A simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a desconsideração, conforme assenta a doutrina na formulação maior da teoria. Em segundo lugar porque tal exegese literal tornaria letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses autorizadoras do superamento da personalidade jurídica. Em terceiro lugar, porque essa
138
interpretação equivaleria à eliminação do instituto da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor, e, se tivesse sido essa a intenção da lei, a norma para operacionalizá-la poderia ser direta, sem apelo à teoria da desconsideração.”93
Ainda porque, constitui regra básica de hermenêutica jurídica que o
parágrafo deve ser interpretado com base em seu caput, e não ampliar os seus
termos ou contradizê-lo. Se a intenção do Código de Defesa do Consumidor
fosse, de fato, generalizar a desconsideração da personalidade jurídica a todos os
casos em que houvesse prejuízo ao consumidor, tal disposição deveria constar do
caput do artigo 28, e não de seus parágrafos. Do mesmo modo, não haveria
sentido na previsão dos casos em que a desconsideração da personalidade
jurídica poderá ocorrer, isto é, abuso de direito, excesso de poder, infração da lei,
fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, se tais casos
fossem absolutamente irrelevantes e a desconsideração pudesse ocorrer
mediante a sua presença ou não. E, ainda, a prevalecer tal interpretação, nada
justificaria a inclusão da previsão de que, para os casos de insolvência, a
desconsideração apenas se operaria caso essa resultasse de má administração,
como consta do final do caput do artigo 28.
Como é notório, a lei não contém palavras inúteis. Assim, se o caput do
artigo 28 previu a possibilidade de desconsideração apenas quando a insolvência
decorrer de má administração, isso resulta na inafastável conclusão de que
quando a insolvência não decorrer de má administração a desconsideração da
personalidade jurídica não poderá operar-se. Como é evidente, tal dispositivo é
incompatível com a assunção de que sempre que houver prejuízo à reparação do
93
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, cit., v. 2, p. 52-53.
139
consumidor, a desconsideração poderá ocorrer, conquanto é provável que em
todos os casos de insolvência - ainda que não decorrente de má administração - o
consumidor venha a encontrar obstáculos na reparação dos danos sofridos.
Outra regra fundamental de hermenêutica jurídica é aquela segundo a qual
a interpretação da norma não pode levar o intérprete a uma conclusão absurda,
ilógica. No caso, a prevalecer a interpretação de que a desconsideração deve
ocorrer sempre que houver dificuldade na reparação dos danos causados ao
consumidor, o caput do artigo 28 e seu § 5º seriam absolutamente contraditórios e
incompatíveis, o que violaria o princípio de hermenêutica jurídica aqui referido.
Diante da perplexidade causada pela generalidade da norma contida no
artigo 28, § 5o do Código de Defesa do Consumidor, parte da doutrina, liderada
por Fábio Ulhoa Coelho94, passou a defender que tal dispositivo apenas
autorizaria a desconsideração da personalidade jurídica como forma de obrigar os
sócios a responderem por sanções de caráter não pecuniário, como a proibição
de fabricação ou suspensão da atividade. Esse também é o entendimento de
Maria Helena Diniz acerca do tema:
“Também nas relações de consumo, com a Lei n. 8.098/90, o órgão judicante está autorizado a desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade. Deveras, o CDC, no art. 28, prescreve que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. E no seu art. 28, § 5º, estabelece que também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo à reparação de prejuízos causados aos consumidores, desde que a sanção que lhe for aplicável não seja de cunho pecuniário, como p. ex.: proibição de fabricação de produtos; suspensão temporária de
94
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, cit., p. 143-144.
140
atividades ou de fornecimento de produto ou serviço (CDC, art. 56, V, VI e VII).”95
Ainda que tal interpretação não nos pareça decorrer naturalmente do texto
legal, que trata expressamente da hipótese em que houver “obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor”, ao menos concilia esse
dispositivo com a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica
largamente aceita e com o próprio caput do artigo 28.
Por todo o exposto, quer nos parecer que o § 5º do artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor deve ser interpretado mais como um requisito mínimo de
aplicação da norma do que como uma cláusula aberta que autoriza a
desconsideração da personalidade jurídica sempre que a autonomia patrimonial
do fornecedor dificulte o ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor. Isto
é, a desconsideração apenas se justifica e pode tomar palco quando a autonomia
patrimonial do fornecedor for um obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos.
Não obstante, mesmo verificada a presença desse obstáculo, a desconsideração
da personalidade jurídica só está autorizada caso ocorra ao menos uma das
circunstâncias previstas no caput do artigo 28 ou um abuso ou disfunção que
justifique o afastamento da personalidade jurídica. Nesse caso, o sacrifício do
instituto da personalidade jurídica apenas ocorrerá na hipótese de o bem tutelado
pelo Direito - a pretensão do consumidor à reparação de um dano que foi
frustrada por abuso de direito, pela prática de um ato que viola o objeto social ou
pela má administração - ser mais relevante do que o interesse social que a norma
pretende proteger ao conferir autonomia patrimonial à pessoa jurídica.
95
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de empresa, cit., p. 542.
141
Ainda, deve-se ter em mente o custo social representado pela adoção
indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica, o que certamente
implicaria maiores custos para todo o mercado consumidor:
“Um outro aspecto da questão diz respeito ao custo da atividade econômica, elemento que compõe o preço a ser pago pelos consumidores ao adquirirem produtos e serviços no mercado. Se o direito não dispuser de instrumentos de garantia para os empreendedores, no sentido de preservá-los da possibilidade de perda total, eles tenderão a buscar maior remuneração para os investimentos nas empresas. Em outros termos, apenas aplicariam seus capitais em negócios que pudessem dar lucro suficiente para construírem um patrimônio pessoal de tal grandeza que não poderia perder-se inteiramente na hipótese de futura e eventual responsabilização. Ora, para gerar lucro assim, a sociedade deve reduzir custos e praticar preço elevado.
O princípio da autonomia pessoal das pessoas jurídicas, observado em relação às sociedade empresárias, socializa as perdas decorrentes do insucesso da empresa entre seus sócios e credores, propiciando o cálculo empresarial relativo ao retorno do investimento.”96
Nas hipóteses de abuso de direito, violação do objeto social, disfunção ou
má administração, não se está diante da hipótese prestigiada pelo Direito, de
reunião de esforços e investimentos para obtenção de resultado que não seria
exequível individualmente; mas sim do uso do instrumento societário a fim de
obter um resultado não almejado ou consagrado pelo Direito.
A despeito de todos os argumentos expostos, é de se notar que o Superior
Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que o artigo 28, § 5º, do Código
de Defesa do Consumidor deveria ser interpretado de forma abrangente,
autorizando a desconsideração da personalidade jurídica em todo e qualquer
caso no qual a autonomia patrimonial da sociedade represente obstáculo à
96
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, cit., p. 265.
142
reparação dos danos sofridos pelos consumidores:
“Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º.
- Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum.
- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico
brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).
- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.
- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
- Recursos especiais não conhecidos.” (Recurso Especial nº 279.273/SP, Terceira Turma, Relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, julgado em 4.12.2003)
143
Como se extrai da ementa acima transcrita, naquele caso, envolvendo um
acidente no Shopping de Osasco, que vitimou centenas de consumidores, a
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o artigo 28, §5º, do
Código de Defesa do Consumidor, teria autorizado a desconsideração da
personalidade jurídica em todo e qualquer caso que a autonomia patrimonial da
sociedade representasse obstáculo à reparação dos danos sofridos pelo
consumidor. A justificar esse entendimento, constou do acórdão que os sócios e
administradores da sociedade empresária assumiriam o risco de ter que arcar
com seus patrimônios pessoais pelos danos causados aos consumidores, “ainda
que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não
exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte
dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica”.
Em seu voto, a Ministra Relatora refutou o entendimento aqui exposto no
sentido de que o §5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor deveria
ser interpretado de acordo com o seu caput, uma vez que a interpretação desses
dispositivos de forma independente “não gera incompatibilidade legal,
constitucional ou com os postulados da ordem jurídica”:
“É certo que a doutrina pátria se divide dentre aqueles que aplaudem a inovação e aqueloutros que entendem que as razões do veto do § 1º do art. 28 do CDC deveriam ser destinadas ao § 5º, esse sim, sob a ótica de parte representativa de vozes autorizadas, sem razão de ser porque a desconsideração da pessoa jurídica está associada ao ilícito, ao desvirtuamento e abuso da forma social.
Existem argumentos também no sentido de que a topografia do § 5º do art. 28 significaria a dependência do seu preceito ao reconhecimento de ‘abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social’, e à novel disposição de ‘má administração’ causadora de ‘falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica’.
144
Sem embargo das argutas preleções, fato é que o § 5º do art. 28 do CDC não guarda relação de dependência com o ‘caput’ do seu artigo, o que, por si só, não gera incompatibilidade legal, constitucional ou com os postulados da ordem jurídica.”
Respeitado o entendimento, acreditamos que essa posição não considerou
a evidente incompatibilidade entre a interpretação conferida ao §5º e a previsão
do caput do artigo 28 no sentido de que a desconsideração da personalidade
jurídica apenas poderia ocorrer em caso de insolvência “provocada por má
administração”. Também desconsiderou a incompatibilidade existente entre a
interpretação conferida ao §5º e o quanto disposto no §4º do mesmo artigo, que
será mais bem explicitado abaixo. Tais fatos, ao que parece, constituem sim a
“incompatibilidade legal” que o acórdão mencionado entende não ficar
caracterizada.
Da mesma forma, e como já exposto à exaustão, o ordenamento jurídico
brasileiro prestigiou a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a qual
corresponde a um dos fundamentos do sistema capitalista de produção,
encampado pela Constituição Federal. Dessa forma, a interpretação isolada do
§5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor também parece gerar
incompatibilidade “constitucional ou com os postulados da ordem jurídica”,
negada pelo acórdão ora comentado.
Em continuação, a Ministra Relatora rechaçou de pronto o argumento de
que o §5º do artigo 28 teria sido vetado pela Presidência da República,
reconhecendo que, tendo a lei sido sancionada e não havendo qualquer
revogação tácita ou expressa até o momento, não haveria como se afastar a
aplicação do dispositivo:
145
“Não são válidos os argumentos de que as razões de veto deveriam ser dirigidas ao § 5º e de que não se conceberia sua existência autônoma dissociada do preceito veiculado no “caput” do art. 28 da Lei n. 8.078/90.
Essa linha de raciocínio é meramente acadêmica, e a lei, uma vez sancionada, ganha vigência e eficácia a partir de sua publicação, transcorrida a “vacatio legis”. A lei, aplicada com prudência, encontrará seus próprios limites por meio da atividade interpretativa dos Tribunais, não sendo aconselhável que se ceife a iniciativa legislativa de plano, iniciativa essa que conferiu novos contornos ao instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Devem sim, ao invés de se limitar o debate a conjeturas de topografia do parágrafo 5º e pretensas razões de veto, o artigo 28 e seus parágrafos da Lei n. 8.078/90 ser interpretados sistematicamente, a par da legislação vigente.”
Em seu voto divergente, no entanto, o Ministro Ari Pargendler manifestou
entendimento oposto ao da Ministra Relatora, tendo entendido pela
impossibilidade de desconsideração da personalidade jurídica na ausência de
comprovação de desvio de finalidade, abuso de direito ou disfunção. Ao assim
decidir, o Ministro entendeu que o §5º do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor jamais poderia ser interpretado em dissonância com o caput do
dispositivo:
“Na técnica de interpretação, o parágrafo não tem autonomia, subordinando-se aos limites do caput.”
Acompanhando o voto do Ministro Ari Pargendler, o Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito também adotou a tese de que a interpretação conferida pela
Ministra Relatora ao caput do dispositivo conduzia a uma contradição dentro da
própria norma. Nesse sentido, o Ministro Menezes Direito entendeu, assim como
temos defendido nesse trabalho, que a interpretação do artigo 28, §5º, do Código
146
de Defesa do Consumidor não poderia ser de tal forma ampla e abrangente que
retire qualquer efeito da divisão patrimonial existente entre a pessoa jurídica e
seus sócios, enfraquecendo a organização empresarial, base do desenvolvimento
em uma economia de mercado:
“A meu sentir, no plano doutrinário, a desconsideração da personalidade jurídica cabe quando houver a configuração de abuso ou de manipulação fraudulenta do princípio da separação patrimonial entre a sociedade e seus membros. O que se quer é evitar a manipulação da autonomia patrimonial da sociedade como meio de impedir, fraudulentamente, o resgate de obrigação assumida nos termos da lei. (...)
Na verdade, é necessário muita cautela para que a regra que protege o consumidor não provoque o esvaziamento do art. 20 do Código Civil e, com isso, um desequilíbrio da atividade econômica com o enfraquecimento da organização empresarial, que em uma economia de mercado é a base do desenvolvimento.”
Mais adiante, o Ministro Menezes Direito propõe ainda uma interpretação
do §5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor que alargue as hipóteses
de incidência previstas no respectivo caput, mas desde que a desconsideração da
personalidade jurídica ocorra “para evitar que o devedor, por manobra ilícita,
escape da obrigação de pagar o que é devido”:
“Neste feito, o ponto crucial é o do alcance do § 5º do art. 28. A redação do dispositivo autoriza a interpretação literal de que a sua incidência não depende dos pressupostos constantes do caput. Nele está escrito: ‘Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores’. Assim, poderia ser aplicada a desconsideração apenas verificada a situação de entrave ao ressarcimento dos prejuízos causados. Em trabalho publicado na coletânea coordenada por Fernando Facury Scaff (Estudos em Homenagem a Ary Brandão de Oliveira, LTR e Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, “A Disregard Doctrine no Código de Defesa do Consumidor, págs. 351 e segs.), Suzy Elizabeth Cavalcante Koury rebate as críticas feitas ao § 5º, principalmente aquela feita por Zelmo Denari (teria havido um equívoco remissivo no veto do Presidente, que recaiu
147
no § 1º quando deveria versar o § 5º), para asserir que a boa interpretação do dispositivo, que já vem sendo aplicado pelos Juízes, ‘é no sentido de que não basta ter havido prejuízo ao consumidor, mas que tal prejuízo tenha decorrido de abuso da forma da pessoa jurídica’”. Na minha avaliação, realmente, o § 5º autoriza uma interpretação literal amplíssima. Mas, não enxergo nele vício capaz de torná-lo pernicioso, à medida que a jurisprudência sempre encontra um caminho que limita os excessos e consolida uma interpretação temperada de modo a fazer com que a incidência do § 5º seja confinada aos limites do interesse do consumidor, mas diante da configuração de maquinação para burlar o ressarcimento do prejuízo. A expressão “de alguma forma” deve ser interpretada na linha mestra da doutrina, ou seja, para evitar que o devedor, por manobra ilícita, escape da obrigação de pagar o que é devido.”
O Ministro Pádua Ribeiro, por sua vez, ao acompanhar o voto da Ministra
Relatora, entendeu que a interpretação de que o §5º do artigo 28 está
condicionado às situações previstas no caput do dispositivo retiraria qualquer
eficácia do aludido parágrafo:
“É certo que, de ordinário, vale a fórmula de acordo com a qual ‘o parágrafo está subordinado ao caput’. Entretanto, esta não pode ter valor absoluto. A forma pode influenciar a interpretação da norma, mas nem sempre define o conteúdo da lei.
Evidencia a independência do § 5.º com relação ao caput a expressão que o introduz, ou seja, ‘também poderá ser desconsiderada’. Assim, mesmo não ocorrendo as hipóteses enumeradas no caput, pode o julgador desconsiderar a pessoa jurídica quando sua personalidade constituir obstáculo ao ressarcimento dos consumidores lesados. De outra forma, seria indiscutível a inutilidade do texto do § 5.º, pois é óbvio que, ocorrendo alguma ou algumas das hipóteses do caput, poderia ser desconsiderada a personalidade jurídica da empresa, independentemente de haver ou não obstáculo à reparação. O intérprete poderia dizer, com acerto: houve abuso de direito, então o juiz pode desconsiderar a pessoa jurídica, antes mesmo de perquirir acerca do obstáculo que a personalidade possa causar ao ressarcimento do prejuízo aos consumidores.
Entendimento outro valeria por considerar sem préstimo a disposição. Cumpre ainda indagar: Havendo o dano, reconhecida a responsabilidade (objetiva, no caso), identificadas as vítimas e havendo, também, o referido obstáculo, não se poderia desconsiderar a personalidade somente porque inocorrentes as hipóteses do caput? Os riscos da atividade comercial ficariam a
148
cargo apenas dos consumidores e não dos empresários que - ainda que de boa-fé - se resguardam atrás da pessoa da empresa? Mais justo seria que os ônus da atividade, em casos como o de que se cuida, sejam suportados por aqueles que a empreenderam.”
Em que pesem os argumentos apresentados, acreditamos que esses não
justificam o rompimento com as regras de hermenêutica e a interpretação do §5º
dissociados do caput do respectivo artigo 28. Em primeiro lugar porque, conforme
já evidenciado, a origem histórica da norma evidencia que a intenção do
legislador ao aprovar a inclusão do §5º não foi a de permitir a desconsideração da
personalidade jurídica em todo e qualquer caso que pudesse favorecer o
consumidor.
Ainda que essa tenha sido a justificativa da emenda parlamentar oferecida,
tal intenção não foi acolhida pelo legislador, na medida em que o referido §5º não
foi incluído na norma em substituição ao artigo 28, mas sim como parte deste,
hierarquicamente inferior ao seu caput.
Além disso, o apego às normas de hermenêutica não tornaria o § 5º
inócuo, na medida em que esse seria um requisito para que a desconsideração
da personalidade jurídica, procedida na forma prevista no caput do artigo 28,
pudesse ser realizada. Em outras palavras, a desconsideração apenas poderia
tomar palco em casos nos quais a existência da pessoa jurídica fosse um
obstáculo à reparação dos danos sofridos pelo consumidor. Esse entendimento,
inclusive, beneficia o consumidor, na medida em que impede que a
desconsideração ocorra quando a pessoa jurídica dispuser de patrimônio para
indenizar o consumidor, circunstância na qual é muito mais fácil e eficaz cobrar a
149
dívida da própria pessoa jurídica do que de seus sócios ou administradores, cuja
situação patrimonial é, no mais das vezes, desconhecida do consumidor.
Prosseguindo em seu voto, o Ministro Pádua Ribeiro enuncia que a
interpretação oferecida à norma não esvaziaria o conteúdo do artigo 28, caput, do
Código de Defesa do Consumidor, nos seguintes termos:
“Por outro lado, o entendimento aqui esposado não faz letra morta do art. 28, caput. Reconhecer a autonomia do § 5.º não significa afastar a do caput. Ocorrendo apenas uma das hipóteses deste ou a hipótese do parágrafo, a pessoa jurídica pode ser desconsiderada, conforme o prudente arbítrio do juiz.”
Como já exposto, e pelos argumentos aqui aduzidos, não podemos
concordar com a afirmação de que a interpretação extensiva do §5º não retiraria a
eficácia do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Como
mencionado, se a desconsideração da personalidade jurídica pudesse ocorrer
sempre que fosse necessária para satisfazer o direito do consumidor, não haveria
necessidade de se enumerarem as hipóteses em que a desconsideração poderia
ocorrer. E isso pelo simples fato de que ela sempre ocorreria. Da mesma forma, é
incompatível o entendimento de que a mera insolvência da pessoa jurídica
legitima a desconsideração da personalidade jurídica com a exigência contida no
caput no sentido de que essa insolvência decorra de má administração.
Em amparo à tese que acolheu, o Ministro Pádua Ribeiro sustenta que as
hipóteses previstas no caput do artigo 28 não seriam taxativas, mas sim
exemplificativas. Nesse sentido, o Ministro destaca que a própria teoria da
desconsideração da personalidade jurídica já vinha sendo aplicada mesmo antes
da existência de sua previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro:
150
“Além disso, a enumeração do art. 28 é exemplificativa, não havendo, pois, porque vincular o suporte fático do § 5.º a outro. A previsão da segunda parte do caput, por exemplo, não depende da ocorrência do que previsto na primeira parte. Tanto é assim que nada impediu a jurisprudência de tratar do assunto, antes mesmo de ser positivado no CDC.
Não obstante as valiosas observações a respeito da evolução da disregard doctrine constantes destes autos, inclusive dos votos anteriores, nada impede a constatação de que a legislação consumerista tenha ido além da tradicional doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, estudada principalmente em Direito Comercial. É o próprio Zelmo Denari, citado pelos recorrentes, que afirma ser ‘a primeira vez que o direito legislado acolhe a teoria da desconsideração sem levar em consideração a configuração da fraude ou do abuso de direito" (in CDC comentado pelos autores do anteprojeto, Forense Universitária, 6.ª, 1999, p. 208).
De qualquer sorte, não há nada a indicar uma tipologia fechada, taxativa, para as hipóteses ensejadoras da aplicação da teoria da desconsideração. Como afirma Marçal Justen Filho ‘não se trata, quando se enfoca a desconsideração, de 'punir a má-fé', por exemplo - senão de reprimir a disfunção. Se tal disfunção resulta de uma intenção imoral ou juridicamente reprovável, trata-se de outra questão’ (Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro, apud Guilherme Fernandes Neto, O Abuso do Direito no Código de Defesa do Consumidor, Brasília Jurídica, 1999).
E Fábio Ulhoa Coelho também advertiu:
‘Finalmente, não se deve esquecer das hipóteses em que a desconsideração da autonomia da pessoa jurídica prescinde da ocorrência da fraude ou de abuso de direito. Somente diante do texto expresso da lei poderá o juiz ignorar a autonomia da pessoa jurídica, sem indagar da sua utilização com fraude ou abuso de direito’ (Desconsideração da personalidade jurídica , apud CDC comentado pelos autores do anteprojeto, ob. cit., p. 208).
Não há nisso um completo esvaziamento da regra do art. 20 do Código Civil, já que a hipótese de que ora se cuida envolve relação de consumo e, como visto, a defesa do consumidor é tida como um dos pilares da ordem econômica, o que justifica o tratamento normativo especial.”
Em que pese o fato de concordarmos integralmente com essa assertiva,
não nos parece que tal argumento ampare a conclusão de que a desconsideração
da personalidade jurídica poderia ocorrer sempre que necessária à reparação dos
151
danos causados aos consumidores. E isso pelo simples fato de que o requisito
exigido para legitimar a desconsideração da personalidade jurídica na doutrina
comercialista sempre foi, como já exposto, a existência da disfunção ou do abuso,
implicando o uso da pessoa jurídica e da autonomia patrimonial para finalidades
diversas daquelas para as quais foram instituídas. Inexistindo tal disfunção ou
abuso, parece evidente que a desconsideração da personalidade jurídica não
pode ocorrer, salvo se expressamente autorizada em lei. No caso, concordamos
que havendo disfunção, ainda que não prevista no caput do artigo 28 do Código
de Defesa do Consumidor, a desconsideração da personalidade jurídica pode
ocorrer. Não podemos admitir, no entanto, que a desconsideração ocorra mesmo
ausente qualquer disfunção ou abuso.
Aqui, cumpre destacar que, a despeito de, aparentemente, defender a
possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em qualquer hipótese
para defesa dos interesses dos consumidores, em seu voto o Ministro Pádua
Ribeiro evidencia que, naquele caso específico, entendia presente a disfunção
que, de qualquer forma, legitimaria a desconsideração:
“Postas tais considerações, seja pela autonomia da hipótese prevista no § 5.º do art. 28 do CDC, seja pela ocorrência de hipótese prevista no caput do mesmo dispositivo, voto pelo não conhecimento dos recursos.”
Da mesma forma, também o Ministro Castro Filho, a despeito de
acompanhar o voto da Ministra Relatora, deixou claro, em seu voto, que concedia
a desconsideração da personalidade jurídica no caso concreto em razão da
presença de disfunção e de uma atitude culposa dos sócios da sociedade
fornecedora:
152
“Atento a essa verdadeira mudança de paradigmas, implementada a partir da vigência do Código de Defesa do Consumidor, criou o legislador, pela norma do § 5º do artigo 28, uma nova hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, a partir de um critério objetivo, e a correlação desse parágrafo com o caput do mencionado artigo, avulta da própria literalidade da sua redação, ao dispor, textualmente, que “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica... ” (grifei), indicando o advérbio em referência expressa condição de equivalência ou similitude em relação ao caput, a fim de facultar ao julgador, mesmo fora das situações ali descritas, desconsiderar a pessoa jurídica, quando sua existência constituir obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.
Entender-se de outro modo, significaria retirar-lhe toda a eficácia, já que, diante de alguma das situações descritas no caput já seria possível levantar o véu da pessoa jurídica para alcançar o patrimônio pessoal dos sócios, independentemente de haver qualquer obstáculo à reparação aos consumidores, sendo de se ressaltar que a alegação de que teria havido ‘equívoco remissivo ‘, ao recair o veto presidencial sobre o § 1º quando deveria ter recaído sobre o §5º, não se compadece com o nosso sistema de direito positivado, no qual a lei vale por aquilo que está escrito. Daí presumir-se que o legislador não insere no texto palavras inúteis.
Em consonância com o já expendido, não vislumbro nenhum empeço à sua convivência simultânea com a regra do caput, podendo o julgador trabalhar com as duas hipóteses, sendo de se assinalar que o próprio Zelmo Denari, um dos autores do anteprojeto, ao comentar o referido dispositivo pontifica: ‘O texto introduz uma novidade, pois é a primeira vez que o Direito legislado acolhe a teoria da desconsideração sem levar em conta a configuração da fraude ou do abuso de direito.‘ (grifei) (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Rio de Janeiro, 2001, Ed. Forense Universitária, 7ª ed., p. 212).
Por fim, alinho-me, ainda, à consideração feita pelo Ministro Antônio de Pádua, ao final do seu voto, no sentido de que a situação narrada poderia se subsumir até mesmo a uma das hipóteses do caput do artigo 28, qual seja, de ato ilícito, autorizando que os sócios fossem chamados a responder com seu patrimônio pessoal.
Como é de conhecimento geral, ato ilícito é aquele praticado com infração ao dever legal de não lesar a outrem. Tal dever é imposto a todos no artigo 186 do novel Código Civil, que assim prescreve:
‘Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito’.
Esse dispositivo sucede, com maior amplitude, o artigo 159 do Cód. Civil anterior, que dizia:
153
‘Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.’
O ato ilícito é fonte de obrigação de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado, em decorrência da infração a um dever de conduta, por meio de ação ou omissão culposa ou dolosa do agente, da qual resulte dano para outrem.
Por esse prisma, o elemento subjetivo da culpa é o dever descumprido, representado, no caso vertente, de forma omissiva, na modalidade da negligência, ao deixarem os recorrentes de promover as medidas suficientes e necessárias para detectar, previamente, o vazamento do gás, antes que adviesse a tragédia, fato esse que independe de prova nos autos, vez que a ocorrência da explosão e os danos dela decorrentes foram expressamente admitidos pelos réus, que também aceitaram as conclusões do laudo técnico do Instituto de Criminalística.
Caracterizado, assim, o ato ilícito, também por esse fundamento se justificaria a desconsideração da pessoa jurídica.”
As mesmas ponderações feitas com relação ao voto do Ministro Pádua
Ribeiro também se aplicam ao voto do Ministro Castro Filho, no sentido de que a
interpretação de que o §5º do artigo 28 deve ser feita de acordo com seu caput
não lhe retiraria a eficácia ou utilidade, assim como de que o fato de o caput do
artigo 28 não ser taxativo não autoriza a conclusão de que a desconsideração da
personalidade jurídica seria a regra e não a exceção nas relações de consumo.
Ainda assim, é importante destacar que ambos os Ministros que
acompanharam o voto da Ministra Relatora entenderam que, no caso concreto, os
sócios ou administradores da pessoa jurídica haviam concorrido com culpa para a
ocorrência dos danos causados aos consumidores. Em ambos os votos, restou
consignado que a responsabilização dos sócios e administradores se devia
também à prática de um ato ilícito, com o que, mesmo nesse caso, a
desconsideração da personalidade jurídica não ocorreu sem que houvesse a
prática de um ato ilícito por parte dos sócios ou administradores.
154
Recentemente, no entanto, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça
exarou, por unanimidade, decisão fundada em entendimento contrário ao da
maioria da Terceira Turma, expresso no acórdão acima comentado. Tratava-se de
demanda na qual a consumidora alegava que duas empresas estrangeiras,
controladoras da fornecedora brasileira, seriam solidariamente responsáveis pelos
danos causados à consumidora, com fundamento no artigo 28, § 2º e § 5º, do
Código de Defesa do Consumidor. Ao julgar o recurso, o Superior Tribunal de
Justiça manteve a decisão antes proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo por entender que a responsabilidade prevista no artigo 28, § 2º, do
Código de Defesa do Consumidor seria subsidiária, e não solidária (conforme
será exposto a seguir), assim como que o § 5º deve ser interpretado em
consonância com o “caput” do dispositivo, como defendemos. Atente-se para o
voto do relator do recurso, Ministro Aldir Passarinho, acompanhado pelos demais
integrantes da Turma, Ministros João Otávio de Noronha, Massami Uyeda e
Fernando Gonçalves:
“Com relação ao art. 28, parágrafos 2º e 5º, do CDC, o acórdão objurgado assim enfrentou o tema, inicialmente no julgamento do agravo e, após, nos aclaratórios, litteris (fl. 210 e 265/266):
‘O pedido recursal tem como fundamento o artigo 28, parágrafos 2º e 5° do Código de Defesa do Consumidor que fala em responsabilidade subsidiária no seu parágrafo 2º e em desconsideração da pessoa jurídica no derradeiro.
Em nenhum lugar fala em solidariedade.
Dessa forma, correta a r. decisão, porque a pretensão deve dirigir--se de acordo com a relação jurídica e nada existe de concreto na impossibilidade da empresa requerida cumprir sua obrigação, o que impede a desconsideração da personalidade jurídica.'
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - -
155
‘Como se vê, a embargante, nas razões de agravo, não afirmou que suas próteses foram fabricadas pela Dow Corning Co.
O fato de uma empresa controlar a outra não leva à invasão do patrimônio da controladora.
A embargante afirmou que a Dow Corning do Brasil Ltda. vendeu as próteses que seriam fabricadas pela Dow Coming Co. e que a totalidade do lucro obtido seria destinada para as empresas The Dow Chenical e Corning Co.
Não foi devolvido para a esta Câmara, em grau recursal, a questão de que suas próteses foram fabricadas pela Dow Coming Co.
Não havia controvérsia, portanto, não houve omissão.
Além do mais, não existe nenhuma prova da fabricação e a relação jurídica é entre a vendedora e a compradora.
Por outro lado, a fundamentação do v. acórdão foi suficiente.
Já decidiu o Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “É entendimento assente de nossa jurisprudência que o órgão judicial, para expressar a sua convicção, não precisa aduzir comentários sobre todos os argumentos levantados pelas partes. Sua fundamentação pode ser sucinta, pronunciando-se acerca do motivo que, por si só, achou suficiente para a composição do litígio” (STJ-1ª Turma, Agravo de Instrumento 169.073-SP- AgRg, rel. Min. José Delgado, j. 4.6.98, negaram provimento, v.u. DJU 17.8.98, p. 44). E nesta Corte de Justiça: “O Juiz não está obrigado a responder todas as alegações das partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para fundar a decisão, nem se obriga a ater-se aos fundamentos indicados por elas e tampouco a responder um a um todos os seus argumentos” (RJTJESP 115/207)”, nota 17ª ao artigo 535, in Theotônio Negrão, Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 30ª edição, Edição Saraiva, 1999.
O agravo, por derradeiro, foi interposto com fundamento nos § 2.° e 5.° do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor que estabelece a responsabilidade subsidiária e não solidária e tal matéria só pode ser analisada em execução.’
Portanto, a questão foi examinada sob a ótica dos fatos, não identificando o Tribunal estadual os elementos imprescindíveis à responsabilização das empresas estrangeiras, registrando-se que a interpretação da norma é sistemática, e os parágrafos devem ser considerados em harmonia com o caput do dispositivo, que traça parâmetros para a desconsideração da personalidade jurídica, não identificados pela Corte a quo, e que não têm como ser revistos em sede especial, ante o óbice da Súmula n. 7 do STJ.” (Recurso Especial nº 493.210/SP, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 11.3.2008, publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 22.4.2008)
156
Portanto, em sua mais recente manifestação quanto ao tema, a Quarta
Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu, de forma unânime, que o §5º do
artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor não pode ser interpretado de forma
a suprimir a autonomia patrimonial nas relações de consumo, como defendemos.
7.2.5. Responsabilidade do grupo econômico
Conforme enunciado acima, os dispositivos contidos nos §§ 2o a 4o do
artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor não tratam propriamente da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, mas sim a da responsabilidade
solidária ou subsidiária de sociedades controladas, consorciadas ou integrantes
de um mesmo grupo econômico.
7.2.5.1. Responsabilidade subsidiária no grupo de sociedades
O artigo 28, § 2º do Código de Defesa do Consumidor instituiu a
responsabilidade subsidiária das “sociedades integrantes dos grupos societários e
[d]as sociedades controladas”. Conforme disposto no artigo 265 da Lei das
Sociedades por Ações, o grupo societário é aquele formado por convenção de
mais de uma sociedade, no qual uma delas detenha controle acionário sobre as
outras.
Jorge Lobo destaca a importância da formação do grupo de societário e as
vantagens representadas para as pessoas jurídicas que o integram:
157
“A formação do grupo de sociedades constitui, sem dúvida, o privilegiado instrumento associativo para obter maior produtividade e maiores lucros com menores custos de produção, submetendo a uma única direção sociedades juridicamente independentes.
...............................................................................................
[A formação do grupo de sociedades] faz nascer um interesse novo, externo e superior ao de cada uma das sociedades isoladas, o qual, muitas vezes, não coincide nem com interesse perseguido pela sociedade dominante, nem com os propósitos das sociedades dominadas.”97
Desse modo, a norma prevê expressamente que, havendo sociedades
sujeitas a uma mesma e única administração, caso o patrimônio de uma delas
não seja suficiente para garantir a plena reparação de danos causados aos
consumidores, as demais sociedades integrantes desse mesmo grupo podem ser
responsabilizadas por tais danos. Trata-se do reconhecimento, pelo Direito do
Consumidor de uma realidade do mercado contemporâneo, segundo a qual os
empresários se beneficiam com a formação de grandes grupos de empresas.
Ainda que, dentro desses grupos, cada empresário mantenha sua autonomia
pessoal e patrimonial, ao optarem por se submeter a uma administração conjunta,
aferindo os evidentes benefícios daí resultantes, esses empresários também
assumem os riscos de arcar com os ônus das atividades das sociedades às quais
se associaram.
Como já mencionado, no entanto, tal previsão de responsabilidade
subsidiária de uma sociedade por prejuízos decorrentes das atividades de outra
não parece se confundir com a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica. Isso porque, como também já citado, no caso da desconsideração da
97
LOBO, Jorge. Grupo de sociedades. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 27 e 31.
158
personalidade jurídica o centro de imputação é transferido da pessoa do
empresário para a pessoa de seus sócios ou administradores, não em razão de
uma insuficiência do patrimônio da sociedade, mas sim em virtude de um desvio
de finalidade ou disfunção. No caso do artigo 28, § 2º, do Código de Defesa do
Consumidor, no entanto, a responsabilização é subsidiária, isto é, parece decorrer
antes de uma falta de recursos da sociedade, efetivamente responsável pelos
danos causados, do que de uma fraude, abuso de direito, disfunção ou desvio de
finalidade.
Nesse ponto, cumpre destacar a doutrina de Zelmo Denari, a qual confirma
que, tratando-se de responsabilidade subsidiária, essa apenas irá emergir quando
exaurido o patrimônio do efetivo causador do dano:
"Pois bem, nos termos do § 2º, diante da manifesta insuficiência dos bens que compõem o patrimônio de quaisquer sociedades componentes - quer se trate de sociedade de comando ou filiadas - o consumidor lesado poderá prosseguir na cobrança contra os demais integrantes, em via subsidiária"98
Fábio Ulhoa Coelho é ainda mais radical a esse respeito, entendendo que
a responsabilidade subsidiária apenas pode tomar palco uma vez que já esteja
concluída a liquidação do processo falimentar atinente ao devedor e,
remanescendo crédito do consumidor, esse poderia buscar sua satisfação no
patrimônio da outra sociedade pertencente ao mesmo grupo societário:
“Importa deixar claro que a responsabilidade subsidiária pressupõe o exaurimento do patrimônio da principal devedora. Como não se cuida de solidariedade, as sociedades integrantes de um Grupo e as controladas somente podem ser executadas após a falência da obrigada perante o consumidor. Mais: é necessário que a fase de liquidação do processo falimentar esteja
98
DENARI, Zelmo et al. op. cit., p. 238.
159
encerrada e o crédito do consumidor não tenha sido integralmente satisfeito. Sem tais condições, não é possível promover a responsabilização das sociedades integrantes de Grupo ou controladas."99
Nesse ponto, entendemos que, já havendo elementos a demonstrar a
insuficiência do patrimônio do devedor principal, não seria necessária a efetiva
liquidação de todos os haveres e conclusão do processo falimentar para, aí sim,
reconhecer-se a responsabilidade subsidiária das demais integrantes do grupo
empresarial. Isso porque, como é notório, um processo falimentar é
extremamente longo e moroso, sendo certo que, já havendo elementos que
permitam concluir pela insuficiência patrimonial, submeter o consumidor a tal
processo violaria a filosofia do Código quanto à plena reparação e facilitação da
defesa do consumidor, assim como a garantia constitucional de um processo
célere (artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal).
No que se refere especificamente à segunda parte do dispositivo, o artigo
243, § 2º, da Lei das Sociedades por Ações conceitua “sociedade controlada”
como:
“Artigo 243. O relatório anual da administração deve relacionar os investimentos da companhia em sociedades coligadas e controladas e mencionar as modificações ocorridas durante o exercício.
................................................................................................
§ 2º Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores. (...)”
99
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, cit., p. 145.
160
Assim é que a sociedade controlada é aquela na qual determinada
sociedade detém direta ou indiretamente tamanha ingerência, que lhe é dado
decidir sozinha quanto aos rumos e negócios da empresa, elegendo a maioria de
seus administradores.
Ao que parece, os autores do Código de Defesa do Consumidor
entenderam que, nesse caso, o fato de ser controlada por uma empresa que
causou prejuízos aos consumidores e não dispõe de patrimônio suficiente para
ressarcir esses prejuízos justificaria a responsabilização da controlada perante os
respectivos consumidores. Quer nos parecer, no entanto, que tal sorte de
responsabilização baseia-se muito mais na ideia, já ultrapassada, de que a
sociedade seria antes um bem do patrimônio de seus sócios do que um sujeito de
direitos autônomo e independente. Ao pretender a responsabilização das
sociedades controladas por dívidas da controladora, a justificativa do legislador
parece ser a de que a sociedade controlada integraria o patrimônio da
controladora e, como tal, poderia ser utilizada para saldar suas dívidas perante os
consumidores.
Ainda que a previsão cause perplexidade na medida em que, em tese, se a
controladora detém tantas ações da controlada que lhe permitam determinar
sozinha os rumos da empresa, tais ações, essas sim, integram o patrimônio da
controladora e poderiam ser utilizadas para saldar eventuais dívidas da
controladora perante seus consumidores. Assim, antes de avançar sobre o
patrimônio da sociedade controlada, o correto seria a penhora e alienação das
ações que a controladora detém da controlada, com o uso dos recursos daí
provenientes para saldar os créditos de consumidores. Ainda assim, mesmo que
tais recursos não fossem suficientes para saldar as dívidas da controladora, nada
161
justificaria a utilização de bens do patrimônio da controlada para,
subsidiariamente, saldar as dívidas da controladora. Nessa hipótese, a antes
“controladora” já nem mais exerceria tal função, uma vez que, alienadas as ações
que detinha sobre a controlada, nem mais seria sócia dessa segunda sociedade.
Ainda porque, a controlada não é, necessariamente, sócia da controladora.
Tendo-se em mente os fundamentos e finalidades da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica, quais sejam, transferir o centro de imputação da
pessoa jurídica para os seus sócios ou administradores em razão de desvio de
finalidade, disfunção, fraude ou abuso de direito, parece claro que a controlada,
que nem mesmo é sócia da controladora, jamais poderia ser atingida pela
aplicação de tal teoria. Em outras palavras, se a controlada não é sócia da
controladora, a desconsideração da personalidade jurídica da controladora jamais
poderia atingir a controlada e seus bens, mas sim os efetivos sócios e
administradores da controladora.
Se, como demonstrado, a responsabilidade subsidiária da empresa
controlada jamais poderia concretizar-se com relação ao pagamento de
indenização por danos causados a consumidores (já que o exaurimento do
patrimônio da controladora interromperia o relacionamento existente com a
controlada), quer nos parecer que tal responsabilidade apenas se aplicaria a
casos que envolvessem obrigações de fazer e não fazer, e não obrigações de
pagar.
Isso porque, nesse caso, o fato de a obrigação ser subsidiária não exigiria,
para sua concretização, o exaurimento do patrimônio do devedor original, a
sociedade controladora. Bastaria que, seja por qual motivo fosse, o consumidor
162
não conseguisse obter a prestação que lhe fosse devida junto à sociedade
controladora para que, havendo meios práticos para tanto, a sociedade controlada
fosse responsabilizada pela respectiva obrigação.
Da mesma forma, o artigo 28, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor
permitiria que sanções administrativas aplicadas contra a controladora fossem
transmitidas à controlada, impedindo-se, na prática, que a controladora
continuasse atuando de forma abusiva, por intermédio de sua controlada. Como
exemplo disso, citem-se as sanções previstas no artigo 56, incisos V e VII do
Código de Defesa do Consumidor, isto é, a proibição de fabricação de produto e a
suspensão temporária de atividade. Caso tais sanções fossem impostas a
determinada sociedade, essa poderia simplesmente contornar a proibição,
passando a fabricar o produto ou a desenvolver a atividade suspensa por
intermédio de sua controlada, na medida em que a controladora tem o poder de
ditar, exclusivamente, os rumos dos negócios da controlada. A fim de evitar tal
circunstância, notoriamente prejudicial aos consumidores, os órgãos públicos
poderiam determinar que os efeitos da sanção aplicada ultrapassassem a pessoa
da controladora, de modo a atingir também a controlada, evitando-se, assim, a
prática considerada infrativa. E tudo isso com base no artigo 28, § 2º, do Código
de Defesa do Consumidor.
Outra hipótese, essa sim já prestigiada pela jurisprudência brasileira,
remete aos casos nos quais o consumidor não tem meios de fazer valer seu
direito frente à pessoa jurídica efetivamente responsável pelo fato danoso, com o
que se vê obrigado a deduzir a mesma pretensão contra a empresa controlada
pelo causador do dano. Nesse sentido, ao tratar da responsabilidade subsidiária
da sociedade controlada com base no artigo 28, § 2º, do Código de Defesa do
163
Consumidor, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça afastou-se da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica para, quando muito, amparar a
teoria da aparência:
“RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. RETIRADA DE PÁGINA DA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES. CONTEÚDO OFENSIVO À HONRA E À IMAGEM. ALEGADA RESPONSABILIDADE DA SOCIEDADE CONTROLADORA, DE ORIGEM ESTRANGEIRA. POSSIBILIDADE DA ORDEM SER CUMPRIDA PELA EMPRESA NACIONAL.
1. A matéria relativa a não aplicação do Código de Defesa do Consumidor à espécie não foi objeto de decisão pelo aresto recorrido, ressentindo-se o recurso especial, no particular, do necessário prequestionamento. Incidência da súmula 211/STJ.
2. Se empresa brasileira aufere diversos benefícios quando se apresenta ao mercado de forma tão semelhante a sua controladora americana, deve também, responder pelos riscos de tal conduta.
3. Recurso especial não conhecido.” (Recurso Especial nº 1.021.987/RN, Relator Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 7.10.2008, publicado no Diário de Justiça eletrônico em 9.2.2009)
No caso, o consumidor pleiteava a condenação de um fornecedor à
obrigação de fazer consistente na retirada do ar de um site que veiculava
informações injuriosas contra ele. Em sua defesa, o fornecedor sustentava que o
responsável pela hospedagem do site seria uma sociedade estrangeira,
controladora do réu da ação. Ao decidir o mérito do caso, com fundamento no
artigo 28, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, o Superior Tribunal de
Justiça entendeu que tal norma não se relacionaria a hipótese de
desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, mas sim justificaria
a aplicação da teoria da aparência, segundo a qual a sociedade controlada
poderia ser responsabilizada por atos da controladora por se apresentar ao
164
consumidor como efetiva fornecedora do serviço. Confiram-se trechos do voto do
Ministro relator:
“Apesar de toda essa judiciosa argumentação, o fato é que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, salvo melhor juízo, não cogita especificamente da desconsideração da personalidade jurídica quer da recorrente, quer da Yahoo! Inc.. O artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor é citado como amparo para aplicação da teoria da aparência. (...)
No caso em apreço, é fato que a Yahoo! Brasil apresenta-se aos consumidores utilizando a mesma logomarca da empresa americana. Além disso, ao digitar na rede mundial o endereço trazido nas razões do recurso como sendo da Yahoo! Inc. - www.yahoo.com - abre-se, na realidade, a página da Yahoo! Brasil. Diante dessa moldura fática, é de se supor que o consumidor não distingue com clareza as divisas entre a empresa americana e sua correspondente nacional. Uma aparentando ser a outra.
Assim, sendo direito do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos e a efetiva reparação dos danos morais experimentados, é de se concluir pela legitimidade passiva da recorrente para responder aos termos da ordem judicial questionada, não sendo razoável impor à recorrida o ônus de demandar empresa internacional, mormente se a demora na retirada das informações caluniosas é fator preponderante para agravar-lhe o sofrimento moral. (...)
Cumpre ressaltar, ainda, que à recorrente foi determinada a retirada da página causadora de dano à imagem da recorrida, mas no caso de impossibilidade técnica, foi estabelecido que adotasse os procedimentos necessários junto à Yahoo! Inc. (sua controladora) para alcançar o mesmo fim, não lhe auxiliando, portanto, a argumentação no sentido de que não tem capacidade técnica para cumprir o quanto determinado.”
Ou seja, percebe-se que o artigo 28, § 2º, do Código de Defesa do
Consumidor em que pese o fato de não se relacionar à desconsideração da
personalidade jurídica propriamente dita, dificilmente teria aplicação prática em
casos envolvendo a obrigação de indenizar consumidores por prejuízos causados
pela atuação da sociedade controladora. Não obstante, com base nesse
precedente, é possível afirmar que referido dispositivo parece ter aplicação prática
165
no que se refere à imposição de obrigações de fazer ou não fazer aos
fornecedores, seja em razão da necessidade de garantir a eficácia de sanções
administrativas aplicadas, seja como forma de garantir a efetividade e facilitação
da defesa dos direitos dos consumidores em Juízo.
7.2.5.2. Responsabilidade solidária das sociedades consorciadas
O § 3º do artigo 28, por sua vez, previu a responsabilidade solidária das
sociedades consorciadas, de forma a revogar, ao menos no que se relaciona ao
campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o quanto disposto no
artigo 278, § 1º da Lei das Sociedades por Ações. Conforme disposto no aludido
artigo, o consórcio de sociedades decorre da união voluntária de pessoas
jurídicas com a finalidade de execução de um determinado empreendimento.
Nesse sentido, o § 1º do artigo 278 prevê expressamente que o consórcio assim
formado não goza de personalidade jurídica e que cada sociedade apenas
responde pelas obrigações por ela assumidas, não se podendo presumir a
existência de solidariedade entre elas. Como é evidente, trazendo o artigo 28, § 3º
do Código de Defesa do Consumidor disposição contrária, no plano das relações
de consumo a responsabilidade de todas as sociedades integrantes de um
consórcio é solidária na reparação dos danos sofridos por consumidores.
Como acima referido, a previsão de responsabilidade das sociedades
consorciadas no § 3º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor evidencia
que não se trata propriamente de hipótese de desconsideração da personalidade
jurídica. Isso porque, se o consórcio, no Direito brasileiro, nem mesmo é dotado
de personalidade jurídica, não haveria como se aplicar a teoria da
166
desconsideração nesse caso. Não há como desconsiderar-se algo que o Direito
nem mesmo reputa existente.
Independentemente disso, fato é que o legislador optou por impor uma
espécie de responsabilidade por atos de terceiros que lesem consumidores a
todos aqueles que optem por estabelecer um consórcio com a sociedade que vier
a lesar seus consumidores. No caso, em que pese o fato de não se tratar de
desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, a opção do
legislador é justificável na medida em que, ao optar por estabelecer um consórcio
com determinada sociedade, o que faz por livre e espontânea vontade, é razoável
que a sociedade assuma os riscos decorrentes da atividade da sociedade com a
qual se consorciou.
Ainda, havendo disposição expressa de lei prevendo tal sorte de
responsabilidade, cabe à sociedade sopesar os bônus e os ônus decorrentes da
formação do consórcio, assumindo a responsabilidade pelas consequências daí
advindas.
Uma vez mais, o Código de Defesa do Consumidor inovou no ordenamento
jurídico para contemplar uma realidade do mercado contemporâneo, no qual
muitas sociedades, mesmo de grande porte, consorciam-se a fim de empreender
atividades mais custosas e arriscadas, como, por exemplo, a expansão das linhas
de metrô de uma cidade. Atente-se para os comentários de Márcio André
Medeiros Morais quanto à atualidade da norma que versa sobre a
responsabilidade de consórcios de empresas nas relações de consumo:
“É muito comum encontrarmos sociedades consorciadas para construção de estradas, pontes, enfim, grandes obras. Obras que podem se rum risco para vidas humanas, que não têm, na
167
verdade valor estimável. Suponhamos um consórcio para construção da ponte Rio-Niterói, onde fazem parte do consórcio empresas pertencentes ao mesmo grupo e outras não, e, por uma falha qualquer na construção da ponte, esta desaba por completo, após a sua inauguração, com centenas de carros circulando que pagaram pedágio; com esta tragédia, morrem milhares de pessoas. Indagamos, como fica a responsabilidade das sociedades consorciadas, na hipótese dos bens do consórcio não ser suficientes para ressarcir as vítimas? A responsabilidade das sociedades integrantes do consórcio e que fazem parte de um grupo é a mesma dos que integram o consórcio mas não integram nenhum grupo? E as sociedades que integram o grupo mas não fazem parte do consórcio respondem por obrigações decorrentes do consórcio?”100
Não obstante, não podemos concordar com o entendimento do Autor ao
sugerir que a responsabilidade das sociedades consorciadas adviria da hipótese
de o consórcio não dispor de bens para ressarcir os consumidores prejudicados
em razão da atividade do consórcio. Isso porque, não sendo o consórcio dotado
de personalidade jurídica, o consórcio em si não é titular de bens, não detém
patrimônio a ser utilizado na satisfação do crédito de quem quer que seja. Da
mesma forma, não sendo o consórcio um ente personificado, ele jamais poderá
ser considerado como responsável pelos prejuízos eventualmente causados a
consumidores, não podendo ser demandado em Juízo.
Até por esse motivo, entendemos que a finalidade da norma foi justamente,
dentro da filosofia de facilitação da defesa do consumidor e da responsabilidade
solidária e objetiva de todos que integram a cadeia de fornecimento101, garantir
que, ocorrendo dano ao consumidor em razão da atividade de um consórcio,
100
MORAES, Márcio André Medeiros. A desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: LTr, 2002. p. 170.
101“Artigo 7º Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou
convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.”
168
todas as sociedades que integrem esse consórcio possam ser responsabilizadas.
Nesse sentido, a instituição de solidariedade entre as sociedades consorciadas
mais se aproximaria da teoria da aparência, segundo a qual poderão ser
responsabilizados pelo dano todos aqueles que aparentarem, ao consumidor, ser
o efetivo fornecedor do produto ou serviço, do que propriamente de uma hipótese
de desconsideração da personalidade jurídica, personalidade essa que, repita-se,
nem mesmo existe em um consórcio de sociedades.
Em que pese o dispositivo não ser claro a esse respeito, acreditamos que a
melhor interpretação a ser conferida com relação ao § 3º do artigo 28 do Código
de Defesa do Consumidor seja a de que as sociedades consorciadas apenas
respondem solidariamente por danos causados com relação à atividade para a
qual formaram o consórcio. Isso porque, normalmente, a sociedade, mesmo após
formar um consórcio para desempenho de uma atividade específica, permanece
levando a efeito seus demais empreendimentos, mantendo relações com
terceiros, inclusive consumidores. Nessa hipótese, é perfeitamente razoável que,
no desempenho de sua atividade econômica isolada, isto é, não relacionada ao
consórcio formado, a empresa venha a causar prejuízos aos consumidores.
Nesse caso, segundo entendemos, não haveria motivos para que esse
consumidor específico pretendesse responsabilizar as demais sociedades que
formam o consórcio, o qual em nada se relaciona àquela demanda específica.
A despeito de o tema ainda não ter sido apreciado pelo Poder Judiciário, há
importante doutrina que compartilha desse entendimento, como é o caso de Fábio
Ulhoa Coelho:
“[Nas relações de consumo] a solidariedade existe apenas no tocante às obrigações relativas ao objeto do consórcio. Quanto às
169
demais, não há qualquer vínculo desta natureza. Os atos e contratos de uma sociedade em consórcio estranhos ao objeto deste, não obrigam solidariamente a consorciada, mesmo se decorrentes de uma relação de consumo. Isto porque o § 3º deve ser interpretado restritivamente, uma vez que representa exceção ao princípio geral de não presunção da solidariedade.”102
Sendo a responsabilidade solidária das sociedades consorciadas uma
exceção à regra geral de inexistência de solidariedade, prevista no artigo 278, §
1º, da Lei das Sociedades por Ações, e diante do princípio geral de que a
solidariedade não se presume103, entendemos que não há como se pretender a
responsabilização solidária das sociedades consorciadas por atos praticados por
uma das integrantes do consórcio no exercício de sua própria atividade, em nada
relacionada ao referido consórcio. Até porque, nesse caso, não haveria qualquer
nexo de causalidade entre o dano causado ao consumidor e a existência do
consórcio. Ou mesmo entre esse dano e qualquer ato praticado pela sociedade
consorciada, que em nada contribuiu, seja com ação, seja com omissão, para o
dano sofrido pelo consumidor.
7.2.5.3. Responsabilidade culposa das sociedades coligadas
Por fim, o § 4º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor
estabelece que, tratando-se de sociedades coligadas, a responsabilidade das
demais sociedades por dívidas perante consumidores dependerá da verificação
de culpa. A esse respeito, o artigo 243, § 1º da Lei das Sociedades por Ações
define sociedades coligadas como o grupo de sociedades no qual umas
102
COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade juridica, cit., p. 145. 103
Código Civil, artigo 265: “A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.”
170
participem com 10% ou mais do capital social das outras, sem, no entanto,
assumirem a posição de controladoras:
“Art. 243. O relatório anual da administração deve relacionar os investimentos da companhia em sociedades coligadas e controladas e mencionar as modificações ocorridas durante o exercício.
§ 1º - São coligadas as sociedades quando uma participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.
§ 2º - Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.
§ 3º - A companhia aberta divulgará as informações adicionais, sobre coligadas e controladas, que forem exigidas pela Comissão de Valores Mobiliários.”
Trata-se de exceção ao princípio geral da responsabilidade objetiva que
norteia toda a filosofia do Código de Defesa do Consumidor por meio da qual o
legislador apenas admitiu a responsabilização das entidades coligadas na
hipótese de terem concorrido com culpa para o evento danoso que vitimou o
consumidor. Tal concessão do legislador apenas pode ser imputada ao fato de
que, tratando-se de sociedade coligada, a pessoa jurídica associa-se à causadora
do dano ao consumidor, mas conserva ampla autonomia administrativa e
patrimonial. Com isso, a sua responsabilização indiscriminada deixaria de
observar a necessária existência de nexo de causalidade entre o dano sofrido
pelo consumidor e qualquer ação ou omissão da sociedade coligada.
Nesse ponto, Fábio Ulhoa Coelho destaca que a previsão ora comentada
seria de todo desnecessária, na medida em que, no silêncio da lei, a
responsabilidade das sociedades coligadas recairia na regra geral de
171
responsabilidade civil do ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, a da
responsabilidade subjetiva. No entanto, é o próprio autor quem esclarece que,
diante disso, a opção do legislador em especificar expressamente que a
sociedade coligada somente responde por culpa apenas pode ser imputada ao
seu desejo de evitar que as sociedades coligadas fossem equiparadas às
controladas, na disciplina que o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor
lhes confere:
“Bastaria ao Código de Defesa do Consumidor silenciar a respeito das sociedades coligadas para que a responsabilidade delas não existisse senão na hipótese genericamente prevista pelo art. 159 do Código Civil. Contudo, o legislador parece ter entendido como importante a previsão expressa da condição de responsabilização das coligadas como forma de impedir qualquer aplicação analógica do prescrito em relação às controladas.”104
Ainda que não se refira propriamente à teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, o § 4o do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor,
acima comentado, é importante a fim de reforçar o entendimento de que o § 5º
desse mesmo artigo não permite a conclusão de que o Código de Defesa do
Consumidor teria revogado a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas nas
relações de consumo. No caso das sociedades coligadas, há efetiva participação
societária de uma pessoa jurídica em outra, isto é, uma sociedade detém parte
das quotas de propriedade de outra sociedade. Nesses casos, o Código de
Defesa do Consumidor prevê expressamente que essa sócia apenas poderá ser
responsabilizada por dívidas decorrentes de relações de consumo caso tenha
concorrido com culpa para a origem dessa dívida. Ou seja, nos casos de pessoas
jurídicas que detenham mais de 10% das quotas ou ações de uma sociedade,
104
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, cit., p. 146.
172
sem controlá-la, o próprio Código de Defesa do Consumidor determina que essas
apenas poderão ser responsabilizadas pela dívida da sociedade caso tenham
agido com culpa. Assim, não há como se entender que essas pessoas jurídicas
poderiam ser responsabilizadas pelas dívidas da sociedade da qual são sócias
apenas em decorrência de a personalidade jurídica dessa sociedade ser
obstáculo à reparação de danos sofridos pelos consumidores.
Tal interpretação do § 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor
é absolutamente contraditória com o expressamente disposto no § 4º desse
mesmo artigo. Também por isso, entendemos que a melhor interpretação do
artigo 28, § 5o do Código de Defesa do Consumidor é aquela segundo a qual tal
dispositivo constitui, antes, um requisito mínimo a ser observado nos casos de
desconsideração da personalidade jurídica, e não uma cláusula aberta que
permita o afastamento da personalidade jurídica em todo e qualquer caso, apenas
para satisfazer o crédito do consumidor. Aqui, não se nega a importância de
defesa do consumidor, ou dos princípios gerais que regem o Código de Defesa do
Consumidor. O que se propõe, apenas, é uma interpretação das normas do
Código de Defesa do Consumidor que não conduza a contradições e antinomias,
além de prestigiar o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica e a
limitação de responsabilidade dos sócios da pessoa jurídica.
Tais princípios são fundamentais à preservação do direito de propriedade,
constitucionalmente garantido, e que, assim como a defesa do consumidor, é um
dos pilares da ordem econômica brasileira. A esse respeito, é a própria
Constituição Federal que prevê, em seu artigo 5o, incisos XXII e XXIII, que é
garantido o direito de propriedade, desde que essa atenda à sua função social.
Nesse ponto, importante destacar a lição de Humberto Theodoro Júnior, o qual
173
destaca que, assim como o Direito do Consumidor tem previsão constitucional,
outros direitos e princípios também estão estampados na Constituição Federal,
como é o caso do direito de propriedade, não podendo, portanto, serem ignorados
apenas como forma de satisfazer os consumidores:
“A Constituição, por certo, determina seja dispensada, em lei, tutela adequada aos consumidores, e o faz tanto no elenco dos direitos fundamentais (art. 5º, XXXII) como na disciplina da ordem econômica (art. 170, V).
Isto, porém, não corresponde a atribuir ao Código de Defesa do Consumidor o caráter de norma constitucional ou de norma superior ao direito comum. O direito de propriedade, o direito de herança e o direito de associação, por exemplo, também figuram entre os direitos fundamentais do art. 5º da Constituição (incs. XXII, XXX, e XVII). Nem por isso se pode concluir que as leis que disciplinam esses direitos no plano infraconstitucional configurem um superdireito em relação às regras do direito ordinário. A conclusão correta a extrair desse quadro constitucional é a de que ‘a defesa dos consumidores [no Brasil, tal como, v.g, na Espanha] tem o caráter de princípio geral informador do ordenamento jurídico’, o que ‘significa essencialmente que o princípio da tutela dos consumidores há de ser tido em conta pelas autoridades administrativas e pelos juízes, na hora de aplicar a lei’, como adverte FERNANDO NORONHA.
Impõe-se, pois, evitar a exegese abusiva que Às vezes prevalece na aplicação de simples princípios do Código de Defesa do Consumidor para afastar dispositivos expressos do direito civil e de outras leis próprias do direito privado, mormente quando se trate de disciplina ordinária regulamentadora, também, de outros princípios resguardados pela Constituição.
Para adequada aplicação do princípio da tutela do consumidor, urge – como bem adverte FERNANDO NORONHA – ter presente que o princípio constitucional da defesa do consumidor não é o único que é necessário ter em conta e que, além disso, a tutela consumerista acarreta custos que acabam repercutindo-se sobre os próprios consumidores, podendo ainda perder em eficácia, se for demasiado constringente.”105
Como extensão dessa própria concepção de função social da propriedade,
105
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34-35.
174
o artigo 1.228, § 1o, do Código Civil determina que o direito de propriedade deva
ser exercido de acordo com as suas finalidades econômicas e sociais,
preservados o meio ambiente natural e artificial. Quanto ao tema, Eros Roberto
Grau destaca as implicações de tal princípio pelo ordenamento jurídico vigente:
“O que mais revela enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.”106
Especificamente no que tange à função social da propriedade da
sociedade, a doutrina norte-americana é clara em estabelecer que essa não se
limita à mera obtenção de lucro para seus acionistas, devendo respeitar também
os interesses de todos aqueles que de alguma forma intervêm e dependem das
atividades da sociedade:
“There is considerable dispute as to what the essential purpose of the company may be. It is incompatible with current corporate theory to suggest that the company’s only raison d’etre is pursuit of profit for the ultimate benefit of the company ownership, eg, the shareholders. In fact it is generally assumed today that the company is a complex social institution with various participants and, consequently, various objectives and interests. The activities of a company may therefore be seen as fulfillment of the interests not only of its shareholders but also those of its various stakeholders, that is, the company employees, creditors, suppliers, and customers and others ‘having a relation of sufficient intimacy with the corporation or subject to its power in a sufficiently specialized way’.”107
106
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2006. p. 245.
107“Há uma disputa considerável quanto a qual seria o propósito essencial das empresas. É
incompatível com a atual teoria da empresa sugerir que a única razão de existir da empresa seria perseguir o lucro, para o benefício último do proprietário da empresa, isto é, seus acionistas. De fato, é geralmente aceito atualmente que a empresa é uma instituição social complexa com vários participantes e, conseqüentemente, vários interesses e objetivos. As
175
Esse também é o entendimento mais atual da doutrina brasileira,
capitaneada por Maria Helena Diniz:
“A empresa, portanto, é o núcleo convergente de vários interesses, que realçam sua importância econômico-social, como: lucro do empresário e da sociedade empresária que assegura a sua sobrevivência e a melhora de salários e enseja a criação de novos empregos e a formação de mão-de-obra qualificada; salário do trabalhador, permitindo sua sobrevivência e a de sua família; tributos, possibilitando a consecução das finalidades do poder público e a manutenção do Estado.”108
Ainda que se reconheça que a função social da propriedade não se limita à
geração de lucros e à remuneração do capital investido, quer nos parecer que a
hipótese de a personalidade jurídica de uma sociedade dificultar a reparação dos
danos sofridos por um consumidor não constitui violação à própria função social
dessa sociedade. Até porque, dentro dessa função social se identifica a
necessidade de satisfação e respeito aos direitos de todos aqueles que estão
sujeitos à órbita de influência da sociedade, como credores empresariais e
empregados. Se a dificuldade de reparação de danos aos consumidores
representasse violação à função social da empresa, a dificuldade de satisfação do
crédito de qualquer um dos afetados pela atividade do empresário (i.e., parceiros
comerciais ou empregados) também poderia ser tida por violação à sua função
social. Como decorrência lógica, ter-se-ia que reconhecer que, sendo a
personalidade jurídica obstáculo à satisfação de qualquer crédito detido contra a
sociedade, estaria caracterizada a violação da função social da empresa e, com
atividades de uma empresa podem então ser vistas como o preenchimento dos interesses não apenas dos acionistas, mas também daqueles que apostaram na empresa, isto é, os empregados, credores, fornecedores, clientes e outros que ‘tenham uma relação suficientemente íntima com a empresa ou que estejam sujeitos a seu poder de uma forma específica’.” (tradução livre, EMBERLAND, Marius. The human rights of companies: exploring the structure of ECHR protection. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 11).
108DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de empresa, cit., p. 25.
176
isso, legitimada a desconsideração de sua personalidade jurídica. Em outras
palavras, tal linha de argumentação levaria à conclusão inafastável de que, no
ordenamento jurídico brasileiro, não haveria autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas em relação às pessoas de seus sócios.
Assim é que, ainda que se trate de uma relação de consumo, não havendo
desvio de finalidade da pessoa jurídica, disfunção ou abuso de direito, não nos
parece que se possa considerar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica (e a
limitação de responsabilidade dos sócios daí decorrente) um exercício abusivo do
direito de propriedade. Da mesma forma, não havendo violação da função social
da propriedade, nada justifica que se negue aos sócios de determinada pessoa
jurídica um direito constitucionalmente garantido, qual seja, o de preservação de
seu patrimônio particular, mesmo em caso de insucesso da empresa de que
participam. Não por outro motivo, Fábio Ulhoa Coelho enuncia que a
desconsideração depende de um ato volitivo, a intenção do sócio ou
administrador de causar a disfunção, de utilizar a pessoa jurídica em desacordo
com sua finalidade ou função social:
“Sem o elemento subjetivo, intencional, destinado a ocultar uma ilicitude atrás da pessoa jurídica, não há como superar a autonomia patrimonial que a caracteriza. Se inexiste fraude ou abuso de direito a personalização da sociedade, associação ou fundação deve ser amplamente prestigiada.”109
Ainda que discorde de tal posicionamento, por entender que a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica não se volta a punir a má-fé do
indivíduo, mas sim a remediar uma injustiça, Marçal Justen Filho reconhece a
109
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, cit., p. 141.
177
necessidade de caracterização da disfunção para que se proceda ao afastamento
da autonomia patrimonial da pessoa jurídica:
“O que é relevante é a atuação concreta, da qual deriva o risco de sacrifício de interesses acobertados pelo direito. Não se trata, quando se enfoca a desconsideração, de ‘punir a má-fé’, por exemplo, senão de reprimir a disfunção. Se tal disfunção resulta de uma intenção imoral ou juridicamente reprovável, trata-se de outra questão.”110
Nesse ponto, é importante ressaltar que, ao lado do reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor e da necessidade de ações governamentais para
sua efetiva proteção, a Política Nacional das Relações de Consumo encerra entre
seus princípios a harmonização das relações de consumo. A esse respeito, José
Geraldo Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do
Consumidor, destaca a importância de se evitarem exageros desmedidos no afã
de garantir a proteção dos consumidores:
“Se é certo que o consumidor é parte vulnerável nas sobreditas relações de consumo, não se compreendem exageros nessa perspectiva a ponto, por exemplo, de obstar-se o progresso tecnológico e econômico.”111
Ao que nos parece, pretender suprimir a autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas em toda e qualquer relação de consumo, apenas como forma
de garantir a satisfação dos interesses econômicos dos consumidores, representa
exatamente o exagero denunciado por José Geraldo Brito Filomeno, o qual vai de
encontro à necessidade de harmonização das relações de consumo; de
conciliação entre a proteção dos interesses dos consumidores e a necessidade de
110
JUSTEN FILHO, Marçal. op. cit., p. 96-97. 111
FILOMENO, José Geraldo Brito et al. op. cit., p. 68.
178
desenvolvimento tecnológico, econômico e cultural. Até porque, se o
ordenamento jurídico brasileiro adota a limitação de responsabilidade como regra,
ainda que tal limitação possa causar dano a algum consumidor específico, esse
dano, por si só, não legitimaria a desconsideração da personalidade jurídica.
Como bem destaca Barros Leães, o ordenamento jurídico compreende uma série
de atos que, muito embora possam gerar danos a terceiros, não padecem de
antijuridicidade, isto é, não configuram atos ilícitos aptos a justificar a
responsabilização daqueles que os causaram:
“Basta pensar nos atos de concorrência empresarial (manifestações paradigmáticas da autonomia privada), que encontram guarida nos princípios constitucionais que balizam a ordem econômica e social. Todos os atos de concorrência, numa economia de mercado, são, em princípio, suscetíveis de causar prejuízo econômico a outros concorrentes, e na generalidade dos casos tais prejuízos são conscientes e mesmo queridos por aqueles que os causam, mas só são fulminados quando ultrapassam os limites de validade e licitude fixados em lei. Vale dizer, quando se qualificam como atos desleais ou ilícitos.”112
No caso, sendo a limitação de responsabilidade um princípio consagrado
pelo Direito e não tendo a pessoa jurídica sido utilizada com desvio de finalidade
ou abuso de direito, ainda que essa limitação cause dano a algum consumidor,
entendemos, tal ato não seria antijurídico. Como tal, não legitimaria a
responsabilização dos sócios. Até porque, vale destacar que o Direito brasileiro
prevê outras ferramentas de blindagem patrimonial que não a autonomia
patrimonial da pessoa jurídica, tais como o bem de família e o patrimônio de
afetação. Tratando-se de ferramentas legítimas e autorizadas pelo ordenamento
jurídico, eventuais danos decorrentes de sua utilização – desde que sem qualquer
112
LEÃES, Luiz Gastão de Barros. Estudos e pareceres sobre sociedades anônimas. 1. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1989. p. 261.
179
desvio ou abusividade – não seriam danos indenizáveis. Exatamente como o caso
dos danos decorrentes de atos de concorrência sadios, citados por Leães no
trecho acima transcrito. Daí concluirmos que o pleno exercício da livre iniciativa,
com as ferramentas que o Direito lhe confere, pode, em alguns casos, provocar
danos a terceiros, sem que haja responsabilização civil de seu causador. Nesses
casos, poder-se-ia falar em um “dano lícito”, isto é, um dano que decorre do
exercício regular de um direito e que, como tal, não pode gerar a
responsabilização de seu causador.
180
8. CONCLUSÃO
Como demonstrado, os ordenamentos jurídicos de grande parte dos países
ocidentais adotam o princípio da limitação de responsabilidade das pessoas
jurídicas como ferramenta voltada para o estímulo ao empreendedorismo e à
atuação de particulares em campos nos quais o Estado não pode ou não deseja
atuar. Ao fazê-lo, reconhecem a importância da atuação dos particulares na
economia e os benefícios advindos para todo corpo social em razão dessa
atuação.
Até mesmo a fim de garantir que a limitação de responsabilidade não será
utilizada em desacordo com sua finalidade, os ordenamentos jurídicos passaram
a admitir a desconsideração da personalidade jurídica em casos específicos, para
coibir abusos e disfunções das pessoas jurídicas. A evolução histórica do instituto
revela os diferentes caminhos trilhados pelos países que adotam a teoria,
especialmente na Inglaterra e nos EUA, considerados os pioneiros na aplicação
do instituto. Enquanto na Inglaterra a desconsideração continua sendo vista como
medida extrema e de absoluta exceção, nos EUA a teoria da desconsideração
vem ganhando mais e mais espaço, havendo até mesmo propostas de adotá-la
como regra das relações jurídicas entre partes materialmente desiguais. Como
também demonstrado, há um movimento entre a doutrina norte-americana
questionando até mesmo a opção legislativa pela limitação de responsabilidade,
entendendo-se que tal limitação seria um benefício injustificável, seja do ponto de
vista moral, seja do ponto de vista econômico. Para essa parte da doutrina, a
experiência histórica demonstraria que, diferentemente do que se acredita, a
181
limitação de responsabilidade das pessoas jurídicas não fomentaria o
investimento privado nas atividades econômicas. Dessa forma, considerando que
a premissa que justificaria a limitação de responsabilidade seria equivocada ou,
pelo menos, questionável, essa parcela da doutrina defende a superação do
princípio da limitação de responsabilidade, reconhecendo-se que todos os
proprietários de pessoas jurídicas respondem ilimitadamente pelas obrigações
das sociedades, proporcionalmente à sua participação no capital social. Uma
corrente intermediária propõe a restrição do princípio da limitação de
responsabilidade aos casos de credores voluntários, isto é, aos casos daqueles
credores que optaram por contratar a pessoa jurídica, assumindo o risco de
inadimplemento dessa e ciente de sua situação econômica. Com essa medida,
essa corrente doutrinária pretende sanar a aparente injustiça que se verifica nos
casos em que a limitação de responsabilidade vem em prejuízo daqueles que
foram lesados pela pessoa jurídica e que não assumiram o risco do
inadimplemento, como, por exemplo, os empregados e os consumidores.
No Brasil, a primeira norma que, acreditamos, tratou da desconsideração
da personalidade jurídica propriamente dita foi o artigo 28 do Código de Defesa
do Consumidor. No entanto, longe de pacificar o tema, o Código de Defesa do
Consumidor gerou grandes discussões no que concerne à desconsideração da
personalidade jurídica nas relações de consumo, especialmente em razão da
confusa redação de seu § 5º e a aparente contradição existente entre esse
parágrafo e os demais dispositivos do artigo 28. Como acima referido, a redação
do artigo 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor gerou reações
sensivelmente diferentes entre a doutrina, havendo tanto autores que entendem
que o aludido parágrafo teria simplesmente revogado a autonomia patrimonial da
182
pessoa jurídica nas relações de consumo, como autores que propõem a pura e
simples desconsideração do § 5º, por entenderem que esse teria sido vetado pelo
Presidente da República, em um erro de remissão quando da promulgação do
Código.
Ainda que haja argumentos consideráveis em favor daqueles que
defendem que o § 5º teria sido revogado pelo Presidente da República, quer nos
parecer que, tendo o Código sido promulgado há quase vinte anos e não tendo o
suposto equívoco de remissão sido corrigido até o momento, sustentar que o
artigo 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor não estaria em vigor implica
uma séria ameaça à segurança jurídica. De outro lado, não nos parece que a
interpretação de que o § 5º simplesmente teria revogado a autonomia patrimonial
da pessoa jurídica nas relações de consumo esteja de acordo com a interpretação
histórica e sistemática do referido dispositivo legal. Conforme detalhadamente
descrito, o §5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor foi incluído no
Projeto de Lei por meio de emenda proposta pelos Deputados Gastone Righi e
Jofran Frejat, sob o fundamento de que a desconsideração da personalidade
jurídica nas relações de consumo deveria ocorrer em todas as situações em que a
autonomia patrimonial da sociedade pudesse representar prejuízos aos
consumidores. No entanto, ainda que a intenção original dos Deputados Gastone
Righi e Jofran Frejat fosse revogar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas
nas relações de consumo, fato é que, diferentemente do que constava da
proposta de emenda, o §5º do artigo 28 não foi incluído no Código de Defesa do
Consumidor como um artigo autônomo, em substituição ao próprio artigo 28, o
qual já previa as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica.
Portanto, o legislador, ao aprovar a emenda proposta pelos Deputados Gastone
183
Righi e Jofran Frejat, assim o fez não para atender à finalidade de revogar a
autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas sim para prever que a existência
de prejuízo ao consumidor seria um dos requisitos indispensáveis à
desconsideração da personalidade jurídica.
Ainda porque, a interpretação sistemática do artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor não permite concluir que inexistiria autonomia patrimonial
das pessoas jurídicas nas relações de consumo. Pelo contrário. O caput do
próprio artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor enumera os casos em que
a desconsideração da personalidade jurídica poderá ocorrer. São eles: abuso de
direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos
estatutos ou contrato social. Como é evidente, se o Código de Defesa do
Consumidor tivesse revogado a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas nas
relações de consumo, não haveria sentido em o caput do artigo 28 trazer o elenco
de casos em que a desconsideração seria cabível. E isso pelo simples fato de que
a desconsideração seria sempre cabível. Seria a regra, e não a exceção. Ainda, o
artigo 28, § 4º do Código de Defesa do Consumidor prevê expressamente que a
responsabilidade das sociedades coligadas dependerá da comprovação da
existência de culpa. Conforme expressamente previsto no artigo 243, § 1º da Lei
das Sociedades por Ações, sociedades coligadas são o grupo de sociedades no
qual umas participem com 10% ou mais do capital social das outras, sem, no
entanto, assumirem a posição de controladoras. Ou seja, no caso das sociedades
coligadas, há efetiva participação societária de uma pessoa jurídica em outra, isto
é, uma sociedade detém parte das quotas de propriedade de outra sociedade.
Portanto, nos casos de pessoas jurídicas que detenham mais de 10% das quotas
ou ações de uma sociedade, sem controlá-la, o próprio Código de Defesa do
184
Consumidor determina que essas apenas poderão ser responsabilizadas pela
dívida da sociedade caso tenham agido com culpa. Assim, não há como se
entender que essas pessoas jurídicas pudessem ser responsabilizadas pelas
dívidas da sociedade da qual são proprietárias apenas em decorrência de a
personalidade jurídica dessa sociedade ser obstáculo à reparação de danos
sofridos pelos consumidores. Tal interpretação do § 5º do artigo 28 do Código de
Defesa do Consumidor é absolutamente contraditória com o expressamente
disposto no § 4º desse mesmo artigo.
Ainda, há de se ressaltar que a experiência estrangeira, mesmo em países
de notada tradição na defesa do consumidor, como Bélgica, França, Holanda e
Estados Unidos, não adotou medida tão radical como a supressão da autonomia
patrimonial das pessoas jurídicas nas relações de consumo. Também naqueles
países, a responsabilização dos sócios e administradores da pessoa jurídica
apenas pode ocorrer nos casos em que ficar constatado que a pessoa jurídica foi
empregada de forma fraudulenta ou abusiva, com a finalidade de atingir finalidade
diversa para a qual foi instituída a sua autonomia patrimonial.
Por tudo isso, entendemos que o § 5º do artigo 28 não pode ser
interpretado em desacordo com a análise histórica de sua edição, assim como em
contradição com a análise sistemática da norma. Pelas razões acima expostas,
acreditamos que a melhor interpretação do artigo 28, § 5º do Código de Defesa do
Consumidor é aquela segundo a qual referido dispositivo constitui, antes, um
requisito mínimo à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, e não
a pura e simples revogação da autonomia patrimonial da personalidade jurídica,
como vem propondo parte da doutrina. Quando muito, pode ser tido como uma
cláusula aberta, um meio encontrado pelo legislador para garantir que a
185
desconsideração da personalidade jurídica também possa ocorrer em casos de
abuso da personalidade jurídica que não se enquadrem na moldura descrita pelo
caput do artigo 28.
Ainda que se reconheça o interesse em diferenciar credores voluntários de
involuntários no tratamento da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, até
mesmo como forma de coibir injustiças, acreditamos que a opção pela revogação
da limitação de responsabilidade das pessoas jurídicas nas relações de consumo
deva ser antecedida de um exaustivo debate democrático, no qual deverão ser
considerados não apenas aspectos morais e de justiça, mas também o interesse
econômico e social existente na manutenção, ou não, do princípio da limitação de
responsabilidade das pessoas jurídicas. Até mesmo em razão da importância
desse princípio e de seus amplos reflexos econômicos e sociais, não
concordamos que a sua revogação nas relações de consumo decorra de uma
interpretação incompleta de um dispositivo acrescido de forma discreta e pouco
discutida em um artigo de lei com o qual essa interpretação é logicamente
incompatível.
186
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