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Page 1: A caminho de uma ruptura global

Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/13394

A caminho de uma ruptura global

Chegada dos protestos ao Brasil e Turquia revela: há mal-estar generalizado contra

lógicas e ideologia do capitalismo. Desafio é construir alternativas e nova democracia

1º/07/2013

Slavoj Žižek,

London Review of Books

Tradução Vila Vudu

Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como uma daquelas

na qual a única resposta a problemas particulares seria a solução universal: a revolução

global. É expressão condensada da diferença entre período reformista e período

revolucionário: em período reformista, a revolução global permanece como sonho que,

se serve para alguma coisa, é apenas para dar peso às tentativas para mudar alguma

coisa localmente; em período revolucionário, vê-se claramente que nada melhorará, sem

mudança global radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário:

as muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta do serviço; e

era necessária uma quebra total, para resolver todos os problemas do dia a dia. Por

exemplo, o problema de dar suficiente comida às pessoas.

Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e protestos dos

últimos anos são sinais de que se aproxima uma crise global, ou não passam de

pequenos obstáculos que pode enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável

nas erupções é que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos

do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de sucesso.

Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por que há

confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento como Turquia, Suécia ou

Brasil?

Com algum distanciamento, pode-se ver que a revolução de Khomeini em 1979 foi o

caso original de “dificuldades no paraíso”, dado que aconteceu em país que caminhava a

passos largos para uma modernização pró-ocidente, e era o mais estável aliado do

ocidente na região.

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Antes da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal de estado estável, a

combinar pujante economia liberal e islamismo moderado. Pronta para a Europa, um

bem-vindo contraste com a Grécia mais “europeia”, colhida num labirinto ideológico e

andando rumo à autodestruição econômica. Sim, é verdade: aqui e ali sempre viam-se

alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos armênios; prisão de

jornalistas; o status não resolvido dos curdos; chamamentos a uma “grande Turquia”

que ressuscitaria a tradição do Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis

religiosas). Mas eram descartados como pequenas máculas que não comprometeriam o

grande quadro.

E então, explodiram os protestos na praça Taksim. Não há quem não saiba que os

planos para transformar um parque em torno da praça Taksim no centro de Istambul em

shopping center não foram “o caso”, naqueles protestos; e que um mal-estar muito mais

profundo ganhava força. O mesmo se deve dizer dos protestos de meados de junho no

Brasil: foram desencadeados por um pequeno aumento na tarifa do transporte público, e

prosseguiram mesmo depois de o aumento ter sido revogado. Também nesse caso, os

protestos explodiram num país que – pelo menos segundo a mídia – estava em pleno

boom econômico e com todos os motivos para sentir-se confiante quanto ao futuro.

Nesse caso, os protestos foram aparentemente apoiados pela presidente Dilma Rousseff,

que se declarou satisfeitíssima com eles.

O que une protestos em todo o mundo — por mais diversos que sejam, na

aparência — é que todos reagem contra diferentes facetas da globalização

capitalista

É crucialmente importante não vermos os protestos turcos meramente como sociedade

civil secular que se levanta contra regime islamista autoritário, apoiado por uma maioria

islamista silenciosa. O que complica o quadro é o ímpeto anticapitalista dos protestos.

Os que protestam sentem intuitivamente que o fundamentalismo de mercado e o

fundamentalismo islâmico não se excluem mutuamente.

A privatização do espaço público por ação de um governo islamista mostra que as duas

modalidades de fundamentalismo podem trabalhar de mãos dadas. É sinal claro de que o

casamento “por toda a eternidade” de democracia e capitalismo já caminha para o

divórcio.

Também é importante reconhecer que os que protestam não visam a nenhum objetivo

“real” identificável. Os protestos não são, “realmente”, contra o capitalismo global, nem

“realmente” contra o fundamentalismo religioso, nem “realmente” a favor de liberdades

civis e democracia, nem visam “realmente” qualquer outra coisa específica. O que a

maioria dos que participaram dos protestos “sabem” é de um mal-estar, de um

descontentamento fluido, que sustenta e une várias demandas específicas.

A luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com jornalistas e teóricos

tentando explicar seu “real” conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa, o

que esteja acontecendo dentro dos próprios protestos. É apenas luta contra governo

corrupto? É luta contra governo islâmico autoritário? É luta contra a privatização do

espaço público? A pergunta continua aberta. E de como seja respondida dependerá o

resultado de um processo político em andamento.

Page 3: A caminho de uma ruptura global

Em 2011, quando irrompiam protestos por toda a Europa e todo o Oriente Médio,

muitos insistiram que não fossem tratados como instâncias de um único movimento

global. Em vez disso, argumentavam, haveria uma resposta específica para cada

situação específica. No Egito, os que protestavam queriam o que em outros países era

alvo das críticas do movimento Occupy: “liberdade” e “democracia”. Mesmo entre

países muçulmanos, haveria diferenças cruciais: a Primavera Árabe no Egito seria

contra um regime autoritário e corrupto aliado do ocidente; a Revolução Verde no Irã,

que começou em 2009, seria contra o islamismo autoritário. É fácil ver o quanto essa

particularização dos protestos serve bem aos defensores do status quo: não há nenhuma

ameaça direta à ordem global como tal. Só uma série de problemas locais separados…

O capitalismo global é processo complexo que afeta diferentes países de diferentes

modos. O que une todos os protestos, por mais multifacetados que sejam, é que todos

reagem contra diferentes facetas da globalização capitalista. A tendência geral do

capitalismo global é hoje expandir o mercado, invadir e cercar o espaço público, reduzir

os serviços públicos (saúde, educação, cultura) e impor cada vez mais firmemente um

poder político autoritário. Nesse contexto, os gregos protestam contra o governo do

capital financeiro internacional e contra seu próprio estado ineficiente e corrupto, cada

dia menos capaz de prover os serviços sociais básicos. Nesse contexto, os turcos

protestam contra a comercialização do espaço público e contra o autoritarismo religioso.

E os egípcios protestam contra um governo apoiado pelas potências ocidentais. E os

iranianos protestam contra a corrupção e o fundamentalismo religioso. E assim por

diante.

Nenhum desses protestos pode ser reduzido a uma única questão. Todos lidam com uma

específica combinação de pelo menos dois problemas, um econômico (da corrupção à

ineficiência do próprio capitalismo); o outro, político-ideológico (da demanda por

democracia à demanda pelo fim da democracia convencional multipartidária). O mesmo

se aplica ao movimento Occupy. Na profusão de declarações (muitas vezes confusas), o

movimento manteve dois traços básicos: primeiro, o descontentamento com o

capitalismo como sistema, não apenas contra um ou outro corrupto ou corrupções

locais; segundo, a consciência de que a forma institucionalizada de democracia

multipartidária não tem meios para combater os excessos capitalistas. Em outras

palavras, é preciso reinventar a democracia.

A causa subjacente dos protestos ser o capitalismo global não significa que a única

solução seja “derrubar” o capitalismo. Nem é viável seguir a alternativa pragmática, que

implica lidar com problemas individuais enquanto se espera por transformação radical.

Essa ideia ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente contraditório e

inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas com os EUA protegerem

seus próprios agronegócios e agronegociantes; pregar a democracia anda de mãos dadas

com apoiar o governo da Arábia Saudita.

Essa inconsistência abre um espaço para a intervenção política: onde o capitalista global

é forçado a violar suas próprias regras, ali há uma oportunidade para insistir em que ele

obedeça àquelas regras. Exigir coerência e consistência em pontos estrategicamente

selecionados nos quais o sistema não pode pagar para ser coerente e consistente é

pressionar todo o sistema. A arte da política está em impor demandas específicas as

quais, ao mesmo tempo em que são perfeitamente realistas, ferem o coração da

ideologia hegemônica e implicam mudança muito mais radical. Essas demandas, por

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mais que sejam viáveis e legítimas, são, de fato, impossíveis. Caso exemplar é a

proposta de Obama para prover assistência pública universal à saúde. Por isso as

reações foram tão violentas.

Um movimento político começa com uma ideia, algo por que lutar, mas, no tempo, a

ideia passa por transformação profunda – não apenas alguma acomodação tática, mas

uma redefinição essencial –, porque a própria ideia passa a ser parte do processo: torna-

se sobredeterminada.* Digamos que uma revolta comece com uma demanda por justiça,

talvez sob a forma de demanda pela rejeição de uma determinada lei. Depois de o povo

estar profundamente engajado na revolta, ele percebe que será preciso muito mais do

que a demanda inicial, para que haja verdadeira justiça. O problema então é definir,

precisamente, em que consiste esse “muito mais”.

A perspectiva liberal-pragmática entende que os problemas podem ser resolvidos

gradualmente, um a um: “Há gente morrendo agora em Rwanda, então esqueçam a luta

anti-imperialista e vamos impedir o massacre”. Ou: “Temos de combater a pobreza e o

racismo já, aqui e agora, não esperar pelo colapso da ordem capitalista global”. John

Caputo argumenta exatamente assim em After the Death of God (2007):

Eu ficaria perfeitamente feliz se os políticos da extrema-esquerda nos EUA fossem

capazes de reformar o sistema oferecendo assistência universal à saúde, redistribuindo

efetivamente a riqueza mais equitativamente com um sistema tributário [orig. Internal

Revenue Code (IRC)] redefinido, restringindo o financiamento privado de campanhas

eleitorais, autorizando o voto universal, para todos, tratando com humanidade os

trabalhadores migrantes, e levando a efeito uma política externa multilateralista que

integrasse o poder dos EUA dentro da comunidade internacional etc. Ou seja, intervindo

sobre o capitalismo mediante reformas profundas, de longo alcance… Se depois de

fazer tudo isso, Badiou e Žižek ainda reclamarem de um monstro chamado Capitalismo

a nos assombrar, eu estaria inclinado a receber o tal monstro com um bocejo.

Não se trata de “derrubar” o capitalismo. Mas de construir lógicas de uma

sociedade que vá além dele. Isso inclui novas formas de democracia

O problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se pode alcançar tudo isso dentro do

capitalismo, por que não ficar aí mesmo? O problema é a premissa subjacente de que

seja possível obter tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual. Mas e se

os emperramentos e mau funcionamento do capitalismo, que Caputo listou, não forem

meras perturbações contingentes, mas necessários por estrutura? E se o sonho de Caputo

é um sonho de ordem capitalista universal, sem sintomas, sem os pontos críticos nos

quais sua “verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas de hoje são sustentados pela combinação de demandas

sobrepostas, e é aí que está a sua força: lutam por democracia (“normal”, parlamentar)

contra regimes autoritários; contra o racismo e o sexismo, especialmente quando

dirigidos contra imigrantes e refugiados; contra a corrupção na política e nos negócios

(poluição industrial do meio ambiente etc.); pelo estado de bem-estar contra o

neoliberalismo; e por novas formas de democracia que avancem além dos rituais

multipartidários. Questionam também o sistema capitalista global como tal, e tentam

manter viva a ideia de uma sociedade que avance além do capitalismo.

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Duas armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que realmente interessa

é abolir o capitalismo liberal-parlamentar; todas as demais lutas são secundárias”), mas,

também, o falso gradualismo (“no momentos temos de lutar contra a ditadura militar e

por democracia básica, todos os sonhos de socialismo devem ser, agora, postos de

lado”).

Aqui, ninguém se deve envergonhar de acionar a distinção maoista entre antagonismo

principal e antagonismos secundários, entre os que mais interessam no fim e os que

dominam hoje. Há situações nas quais insistir no antagonismo principal significa perder

a oportunidade de acertar golpe significativo, no curso da luta.

Só uma política que tome plenamente em consideração a complexidade da

sobredeterminação merece o nome de estratégia. Quando se embarca numa luta

específica, a pergunta chave é: como nosso engajamento ou desengajamento nessa luta

afeta outras lutas?

A regra geral é que quando uma revolta contra regime semidemocrático começa – como

no Oriente Médio em 2011 – é fácil mobilizar grandes multidões com slogans (por

democracia, contra a corrupção etc.). Mas muito rapidamente temos de enfrentar

escolhas muito mais difíceis. Quando a revolta é bem-sucedida e alcança o objetivo

inicial, nos damos conta de que o que realmente nos perturbava (a falta de liberdade, a

humilhação diária, a corrupção, o futuro pouco ou nenhum) persiste sob novo disfarce.

Nesse momento somos forçados a ver que havia furos no próprio objetivo inicial. Pode

implicar que se chegue a ver que a democracia pode ser uma forma de des-liberdade, ou

que se pode exigir muito mais do que apenas a mera democracia política: que a vida

social e econômica tem de ser também democratizada.

Em resumo, o que à primeira vista tomamos como fracasso que só atingia um nobre

princípio (a liberdade democrática) é afinal percebido como fracasso inerente ao próprio

princípio. Essa descoberta – de que o princípio pelo qual lutamos pode ser

inerentemente viciado – é um grande passo em qualquer educação política.

Representantes da ideologia reinante mobilizam todo o seu arsenal para impedir que

cheguemos a essa conclusão radical. Dizem-nos que a liberdade democrática implica

suas próprias responsabilidades, que tem um preço, que é sinal de imaturidade esperar

demais da democracia. Numa sociedade livre, dizem eles, devemos agir como

capitalistas e investir em nossa própria vida: se fracassarmos, se não conseguirmos fazer

os necessários sacrifícios, ou se de algum modo não correspondermos, a culpa é nossa.

Em sentido político mais direto, os EUA perseguem coerentemente uma estratégia de

controle de danos em sua política externa, recanalizando os levantes populares para

formas capitalistas-parlamentares aceitáveis: na África do Sul, depois do apartheid; nas

Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia, depois de Suharto etc. É nesse

ponto que a política propriamente dita começa: a questão é como empurrar ainda mais

adiante, depois que passa a primeira, excitante, onda de mudança; como dar o passo

seguinte, sem sucumbir à tentação “totalitária”; como avançar além de Mandela, sem

virar Mugabe.

O que significaria isso, num caso concreto? Comparemos dois países vizinhos, Grécia e

Turquia. À primeira vista, talvez pareçam completamente diferentes: Grécia, presa na

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armadilha da ruinosa política de austeridade; Turquia em pleno boom econômico e

emergindo como nova superpotência regional. Mas e se cada Turquia contiver sua

própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como Brecht diz em sua Elegias

Hollywoodenses (orig. Hollywood Elegies’ [1942]),

A vila de Hollywood foi planejada segundo a ideia

De que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,

Chegaram à conclusão de que Deus

Embora precisando de céu e inferno, não precisava

Planejar dois estabelecimentos, mas

Só um: o paraíso. Que esse,

para os pobres e infortunados, funciona

como inferno.[1]

Esses versos descrevem bastante bem a “aldeia global” de hoje: aplicam-se ao Qatar ou

Dubai, playgrounds para os ricos, que dependem de manter os trabalhadores imigrantes

em estado de semiescravidão, ou escravidão. Exame mais detido revela semelhanças

entre Turquia e Grécia: privatizações, o fechamento do espaço público, o desmonte dos

serviços sociais, a ascensão de políticos autoritários. Num plano elementar, os que

protestam na Grécia e os que protestam na Turquia estão engajados na mesma luta. O

melhor caminho talvez seja coordenar as duas lutas, rejeitar as tentações “patrióticas”,

deixar para trás a inimizade histórica entre os dois países e buscar espaços de

solidariedade. O futuro dos protestos talvez dependa disso.

Slavoj Žižek é um filósofo e teórico crítico esloveno. É professor da European

Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia da Universidade de

Liubliana.

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Notas da tradução:

* Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreveu (no

seu pior modo evolucional) que a humanidade só se propõe problemas que seja capaz de

resolver. E se invertermos a ganga dessa frase e declararmos que, regra geral, a

humanidade propõe-se problemas que não pode resolver, e assim dispara um processo

cujo desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própria tarefa é redefinida?

Page 7: A caminho de uma ruptura global

[1] Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem

ambição literária, só para ajudar a ler [NTs].

Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/13394