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REVISTA OHUN Revista eletrônica do Programa de Pós -Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 71 A CIDADE HISTÓRICA NA CONTEMPORANEIDADE - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA ANÁLISE DAS FORMAS URBANAS Denise Gonçalves, Deborah Castro, Liliane Sayegh, Cristiane Canuto, Roberto Takishita As relações entre cidade e objeto artístico tem sido enfatizadas dentro da historiografia da arte mais recente. Essas relações aparecem em autores como Francastel e Argan, que introduzem aspectos subjetivos na análise das formas urbanas - simbologia, imaginário considerando- as como produto cultural, no que encontr am eco em abordagens recentes de outras áreas do conhecimento, tais como a história urbana e a geografia cultural. No entanto, ao mesmo tempo em que essa associação entre cidade e objeto artístico enriquece a visão da cidade nos dias de hoje, em alguns ca sos ela se revelou inadequada. Referimo- nos às cidades ditas “históricas” brasileiras que, em geral, foram consideradas objetos artísticos e classificadas segundo critérios estilísticos pelas primeiras gerações responsáveis pelos organismos de preservação. Os recentes processos modificadores de suas formas evidenciaram a inadaptabilidade dessa antiga visão à realidade contemporânea. Nossa reflexão parte da observação desse processo na cidade mineira de Tiradentes, nosso objeto de estudo, cujas formas aparentemente pouco modificadas enfatizam sua classificação como cidade colonial ou barroca. Entendemos que, como para qualquer objeto artístico, a análise das formas de uma cidade pode ser reveladora da complexidade de fatores que a caracterizam como produto cu ltural. Essa análise, entretanto, deve ser baseada numa abordagem histórica que leve em consideração uma série de aspectos que fazem parte da visão contemporânea do fenômeno urbano. O desenvolvimento dessa abordagem constitui a primeira etapa de nosso estudo. Membros do grupo de pesquisa formado em 2004 com o objetivo de dar continuidade a estudos e atividades de extensão desenvolvidas desde 2001 na cidade de Tiradentes-MG, em convênio com o IPHAN/MG. Integrantes: estudantes do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Gonçalves. Apoio: CNPq.

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A CIDADE HISTÓRICA NA CONTEMPORANEIDADE - PRESSUPOSTOS

TEÓRICOS PARA UMA ANÁLISE DAS FORMAS URBANAS

Denise Gonçalves, Deborah Castro, Liliane Sayegh, Cristiane Canuto, Roberto Takishita

As relações entre cidade e objeto artístico tem sido enfatizadas dentro da historiografia da

arte mais recente. Essas relações aparecem em autores como Francastel e Argan, que introduzem

aspectos subjetivos na análise das formas urbanas - simbologia, imaginário – considerando-as

como produto cultural, no que encontram eco em abordagens recentes de outras áreas do

conhecimento, tais como a história urbana e a geografia cultural.

No entanto, ao mesmo tempo em que essa associação entre cidade e objeto artístico

enriquece a visão da cidade nos dias de hoje, em alguns casos ela se revelou inadequada.

Referimo-nos às cidades ditas “históricas” brasileiras que, em geral, foram consideradas objetos

artísticos e classificadas segundo critérios estilísticos pelas primeiras gerações responsáveis pelos

organismos de preservação. Os recentes processos modificadores de suas formas evidenciaram a

inadaptabilidade dessa antiga visão à realidade contemporânea. Nossa reflexão parte da observação

desse processo na cidade mineira de Tiradentes, nosso objeto de estudo, cujas formas

aparentemente pouco modificadas enfatizam sua classificação como cidade colonial ou barroca.

Entendemos que, como para qualquer objeto artístico, a análise das formas de uma cidade pode ser

reveladora da complexidade de fatores que a caracterizam como produto cultural. Essa análise,

entretanto, deve ser baseada numa abordagem histórica que leve em consideração uma série de

aspectos que fazem parte da visão contemporânea do fenômeno urbano. O desenvolvimento dessa

abordagem constitui a primeira etapa de nosso estudo.

Membros do grupo de pesquisa formado em 2004 com o objetivo de dar continuidade a estudos e atividades de extensão desenvolvidas desde 2001 na cidade de Tiradentes-MG, em convênio com o IPHAN/MG. Integrantes: estudantes do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Gonçalves. Apoio: CNPq.

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A aceleração das transformações que atingem a cidade contemporânea, e que constituem a

principal origem de seus problemas, tem levado a novas abordagens da questão urbana. Sob o

ponto de vista da história, o tema da cidade hoje deve ser considerado dentro de uma perspectiva

mais complexa que une aspectos objetivos – cronologia, forma, usos, funções – e aspectos

subjetivos – memória, imaginário – mas que, sobretudo, coloca em questão as citadas

classificações “estilísticas” ou temporais, tais como cidade barroca, oitocentista, modernista, etc.,

baseadas na correspondência a um determinado modelo, ou a um determinado período congelado

no tempo. A constatação de que a cidade se transforma constantemente, desde sua gênese, enfatiza

a importância dos diversos tempos na análise histórica do fenômeno urbano, levando ao mesmo

tempo a uma revisão das noções tradicionais de temporalidade.

Adotando a linha metodológica de Bernard Lepetit, consideramos que dentro das

transformações físicas de quaisquer escalas que modificam um tecido urbano, os tempos da cidade,

fortemente marcados, não são lineares: Nada indica que eles se ajustam continuamente à

conjuntura econômica, às variações de população, às mudanças de hábitos dos citadinos. Dentro

do processo histórico das cidades, assim, não cabe uma compreensão de temporalidade

cronológica, isso porque elas abrigam uma trama de tempos descompassados que se cruzam de

formas diferentes, gerando mudanças constantes. A cidade (...) nunca é absolutamente sincrônica:

o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as políticas de planificação urbanística,

econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferentes. Mas ao mesmo tempo, a

cidade está inteira no presente1.

A aplicação dessa abordagem às cidades “antigas” ou “históricas”, além de, como foi dito

acima, levar a uma revisão das categorias estilísticas que têm sido privilegiadas pela historiografia,

conduz também a uma reflexão sobre o próprio processo de preservação, cujos critérios foram em

geral estabelecidos sob a perspectiva tradicional de temporalidade, através da eleição de

determinados períodos, dentro de uma evolução cronológica, considerados significativos sob o

ponto de vista histórico e/ou estilístico, em detrimento de uma análise que considere a

complexidade das transformações ocorridas ao longo do tempo.

Como já foi dito, nosso estudo de caso para a abordagem acima mencionada é a cidade de

Tiradentes, em Minas Gerais, considerada um dos exemplos mais relevantes do ciclo do ouro

1 LEPETIT, Bernard. Por uma história urbana – Bernard Lepetit. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 139-145.

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mineiro pelo fato de ter preservado boa parte de suas características originais. Nossa análise será

centrada no processo de transformações que, deixando marcas no tecido urbano, determinou sua

forma atual.

Breve histórico da cidade de Tiradentes-MG

As origens da cidade de Tiradentes remontam aos primeiros anos do século XVIII, quando

da descoberta de minas de ouro na região da bacia do Rio das Mortes. A aglomeração inicial,

chamada Arraial Velho e vinculada à vila de São João del Rei, é elevada em 1718 à categoria de

vila, com o nome de São José. Com o declínio das atividades de mineração desde meados do

mesmo século, a vila entra em processo de retração econômica, processo este que se estende pelo

século seguinte, apesar das tentativas de revitalização da região com a instalação de uma

companhia mineradora inglesa, a implementação da navegação a vapor no Rio das Mortes e a

chegada da Estrada de Ferro Oeste de Minas em 1881 (Figura1), ligando a cidade ao resto da

província. Sua elevação à categoria de cidade em 1860 - primeiramente mantendo o nome de São

José, substituído em 1889 pelo de Tiradentes como homenagem, por ser sua terra natal – não

impediu que chegasse à virada do século XX com população bastante reduzida e limitando-se a

atividades agropecuárias.

Figura 1: Estação Ferroviária

Autor: Pâmela Renon Eller

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Desde então, e até o tombamento pelo SPHAN em 1938, as modificações no espaço urbano

da cidade são limitadas e pontuais, concentrando-se no entorno do núcleo original setecentista que

se manteve praticamente intocado. A estagnação econômica faz com que em torno dos anos 70 seu

aspecto de abandono seja desolador, com vários imóveis em ruínas; é quando a cidade é

redescoberta no que diz respeito tanto à qualidade de seu conjunto arquitetônico e paisagístico

quanto às suas potencialidades turísticas (Figura 2). A partir de então, iniciativas de particulares e

do IPHAN, que aí instala um escritório técnico, promovem a restauração do casario assim como

medidas de recuperação urbanística. Tiradentes torna-se aos poucos importante pólo turístico da

região, característica que se acentua fortemente nas últimas décadas, provocando modificações

profundas em sua estrutura físico-ambiental, social e econômica.

Qualquer análise histórica da cidade de Tiradentes deve levar em consideração uma série de

aspectos. Sob o ponto de vista da paisagem, além de abrigar um acervo arquitetônico dos mais

relevantes dentro do quadro das cidades históricas brasileiras, Tiradentes apresenta um patrimônio

paisagístico e ambiental não menos importante. A presença marcante de bacias hidrográficas e,

sobretudo, da Serra de São José, caracterizam sua paisagem ao mesmo tempo em que constituem

fatores determinantes de seu desenvolvimento urbano, formando, juntamente com o casario

setecentista, um cenário ímpar que constitui o maior fator de atração para a cidade.

Outro fator de complexidade de suas estruturas é a transformação física que esta sofreu nas

últimas décadas como consequência do desenvolvimento do turismo, principalmente nos últimos

dez anos, período em que o processo se intensificou. A primeira delas consiste na mudança no tipo

Figura 2: Largo das Forras

Autora: Deborah Castro

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de ocupação do centro histórico que foi esvaziado da população local de origem, e da sua função

primordialmente residencial, para acolher estabelecimentos turísticos: hoje ele é em geral ocupado

por pousadas, restaurantes, comércio e, em menor proporção, casas de fim-de-semana ou férias. A

população que aí residia passou a ocupar a região periférica ao centro formando novos bairros, no

que foi acompanhada por novos moradores atraídos pelo quadro aprazível da cidade e pelas

possibilidades de inserção na crescente e promissora atividade econômica.

Esses bairros2 surgiram e se desenvolveram sem nenhum tipo de planejamento3, quer no

que diz respeito ao arruamento ou à ocupação do solo quer em relação à infra-estrutura urbana, que

é em geral deficiente. O resultado é variável quanto à morfologia, tipo de uso das edificações,

perfil da população residente e quanto à relação com o centro histórico4. Alguns loteamentos foram

criados, principalmente na entrada da cidade, à beira da Avenida Governador Israel Pinheiro que é

sua principal via de acesso, e na estrada que leva ao distrito de Vitoriano Veloso (Bichinho). O

conjunto dessas intervenções no entorno do centro histórico tem causado modificações sensíveis

na paisagem local, prejudicando a preservação das características principais do sítio (Figura 3).

Sob o ponto de vista social, o contexto atual da cidade não é menos complexo. A população

antiga do centro histórico transferiu-se para a periferia, o que transformou sua relação com ele: de

moradia, este passou a ser em muitos casos local de trabalho. Com o desenvolvimento do turismo,

2 São eles: Cascalho, Prainha, Parque das Abelhas, Canjica, Cuiabá Novo e Velho a leste do centro histórico; Pacu e Mococa a oeste, Alto da Torre, Pau de Óleo e Várzea de Baixo ao sul.3 O bairro Parque das Abelhas parece ser uma exceção: apresenta traçado regular e ocupação uniforme, o que foi possibilitado pela topografia plana do terreno; no entanto também apresenta infraestrutura deficiente.4 FUNDAÇÃO ALEXANDER BRANDT. Diagnóstico ambiental da APA São José e cidade de Tiradentes. Fundo Nacional do Meio Ambiente/MMA, 1997, p. 79-89.

Figura 3: Alto da Torre

Autora: Deborah Castro

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algumas profissões tradicionais, como a ourivesaria por exemplo, foram substituídas pelo trabalho

nas pousadas, restaurantes ou no comércio, ao mesmo tempo em que muito do artesanato local

passou a ser produzido pelos novos habitantes que se estabeleceram na cidade nas últimas duas ou

três décadas. Uma leva recente de investidores ocupa a maior parte do centro histórico com seus

equipamentos turísticos; outros, vindos principalmente de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São

Paulo, constituem moradores eventuais durante períodos de férias ou finais de semana. Assim, a

população tiradentina atual é fragmentada não só em termos de classes sociais, mas ainda sob o

ponto de vista das origens, da cultura e dos objetivos enquanto ocupantes de seu espaço urbano.

Esta população heterogênea se encontra reunida, direta ou indiretamente, em torno das

atividades turísticas, principal, ou praticamente única fonte de renda para a cidade e seus

habitantes, o que configura uma situação bastante delicada. Como já foi dito, Tiradentes hoje

constitui um pólo turístico na região (Figura 4 e 5), cujo principal fator de atração é o seu

patrimônio histórico e paisagístico.

O desenvolvimento dessa atividade tem provocado uma pressão significativa sobre esse

patrimônio, ameaçando sua preservação. O centro histórico (Figura 6), apesar de protegido pelas

normas e critérios de intervenção do IPHAN, é pressionado pelas necessidades do turismo:

adaptação do casario a novos usos, circulação intensiva de pessoas e veículos, inclusive pesados,

Figura 4: Rodoviária de Tiradentes

Autora: Deborah Castro

Figura 5: Ruas dos Inconfidentes

Autora: Liliane Sayegh

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estacionamento irregular, etc. Sob o ponto de vista ambiental, por um lado não existe infraestrutura

urbana suficiente para absorver os altos índices de aumento populacional durante eventos, feriados,

etc., e por outro, o desenvolvimento do turismo ecológico tem sido um fator modificador do meio

ambiente na região da APA e entorno da cidade5.

A análise dos processos modificadores das formas do seu espaço urbano deve

necessariamente se basear no estudo das inter-relações entre os diversos aspectos citados acima. A

questão metodológica que se impõe é a de como estabelecer essas relações.

Pressupostos teóricos

Tendo como objetivo um estudo das formas, precisamos definir as relações entre essa

categoria e o espaço urbano. Segundo Milton Santos, a forma constitui uma das categorias de

análise do espaço: é o aspecto visível, exterior de um objeto, seja visto isoladamente, seja

considerando-se o arranjo de um conjunto de objetos, formando um padrão espacial. Uma casa,

um bairro, uma cidade e uma rede urbana são formas espaciais de diferentes escalas .

Indissociáveis entre si e da noção anterior, três outras categorias contribuem para a análise do

espaço: a função, que implica uma tarefa ou papel a ser desempenhado pela forma ou objeto

criado, a estrutura social que abriga forma e função, caracterizando a natureza histórica do espaço, 5 FUNDAÇÃO ALEXANDER BRANDT. Op cit, p.63.

Figura 6: Centro histórico

Autora: Deborah Castro

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e o processo que introduz a noção do tempo, sendo uma estrutura em seu movimento de

transformação. Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais, limitadas, do

mundo. Considerados em conjunto, eles (os quatro termos) constroem uma base teórica e

metodológica a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em totalidade.6

No entanto, as relações entre essas categorias não são necessariamente diretas, o fenômeno

urbano sendo caracterizado pela descontinuidade: como afirma Argan, fazendo uma analogia com

a lingüística, não existem cidades – assim como não existem línguas, mas états de langue – a não

ser como situações urbanas.7 O fenômeno urbano precisa ser entendido em sua complexidade: a

cidade é um lugar de contraste e de disposição valorativa dos homens e das coisas, ou seja, ela

não pode ser abordada em sua totalidade, mas sim através de suas dimensões múltiplas e de suas

questões parciais, como observa Lepetit 8.

As relações entre forma urbana e sociedade podem ser consideradas sob diversos aspectos.

Estabelecendo uma analogia entre forma urbana e forma artística, e reportando-nos à sociologia da

arte, encontramos em Francastel a idéia recorrente de que a forma não é autônoma, consistindo na

descoberta de um esquema de pensamento imaginário a partir do qual o homem organiza

diferentes matérias9. Através desse processo, este concretiza um universo cujas dimensões

correspondem à sua natureza e às suas capacidades de intervenção efetivas, e que estão

manifestas, tanto nos seus actos como nas suas representações. Qualquer ação, qualquer imagem

é, de certo modo, criadora de realidade.10 A dimensão histórica também é considerada pelo autor

determinante na relação entre forma e sociedade: A humanidade não esquece nada. Ela progride e

assimila, utiliza caminhos curtos para englobar as experiências antigas. (...) O que faz a história é

o poder que têm os homens de reordenar a matéria de sua experiência antecipando-se pelo

pensamento à realização.11

Tanto a subjetividade do imaginário quanto a dimensão histórica da relação entre forma

urbana e sociedade estão presentes no conceito de paisagem que vem sendo desenvolvido pela

geografia cultural, e que se estende à paisagem urbana. De forte conotação visual e estética, a

6 SANTOS, Milton apud CASTRO, Inês Elias de et alii (org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 28-30.7 ARGAN, G.C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 238. 8 LEPETIT, B. Op cit, p. 58-74.9 FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 10.10____________ Imagem, visão e imaginação. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 62.11____________ Op cit, 1982, p. 84.

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definição mais imediata de paisagem a situa como elo entre natureza e sociedade, associando a

forma à percepção que dela tem o grupo social. Nessa relação, o papel do homem como agente

modificador confere à paisagem uma dimensão cultural na medida em que se considera essa ação

fruto de mecanismos simbólicos, ligados ao imaginário coletivo e que se materializam no espaço.

Desse modo, ao constituir a materialização da lógica estruturante da sociedade, a paisagem é

portadora de sentido, e suas modificações formais não podem ser analisadas independentemente

das práticas sociais: no processo de construção da paisagem pelo imaginário social, ela (...)

configurou-se na própria representação de práticas sociais que lhe dá (sic) novo conteúdo,

transformando-a em espaço geográfico. Ao mesmo tempo, a paisagem é fruto da história pois em

cada época o processo social imprime materialidade ao tempo, produzindo formas/paisagens12. A

paisagem constitui-se assim na representação de diversos momentos históricos de um grupo social,

como observa Milton Santos: Considerando um ponto determinado no tempo, uma paisagem

representa diferentes momentos de desenvolvimento de uma sociedade. A paisagem é o resultado

de uma acumulação de tempos 13.

A própria definição de espaço geográfico traz em si a dimensão social, na medida em que

espaço é a forma acrescida de conteúdo, ou do valor social que lhe é atribuído. A noção de

cotidiano se torna assim fundamental para a compreensão de seus processos modificadores. Dentro

da visão marxista de Henri Lefebvre, que procura formular a problemática do espaço no plano

teórico, o cotidiano constitui um dos três níveis em que se dá a reprodução do espaço,

complementando os níveis do político e do econômico. O fio condutor de sua linha de pensamento

reside na idéia de que, ao produzir sua vida (sua história, a realidade), a sociedade produz,

concomitantemente, o espaço geográfico. Partindo do princípio que a atividade do trabalho se

encontra no centro do processo produtor do espaço, a análise do cotidiano permite discutir, de um

lado, a articulação entre as atividades produtivas e não-produtivas no conjunto da sociedade, e de

outro, a materialização espacial deste processo, cujo movimento fundamenta-se na contradição

entre produção espacial coletiva e apropriação privada14.

12 LUCHIARI, M.T. A (re)significação da paisagem no período contemporâneo. In: ROZENDHAL, Z. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 12-13.13 SANTOS, M. apud NEVES, E. Paisagem-conceito. In: Paisagem e ambiente. Ensaios IV. São Paulo: FAUSP, 1992.14 CARLOS, A.F. “Novas” contradições do espaço. In: O espaço no fim do século - a nova raridade. São Paulo: Contexto, 2001.

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A noção de cotidiano é também desenvolvido por Michel de Certeau. Para ele, as práticas

sociais cotidianas se contrapõem ao caráter abstrato e controlador dos planos urbanísticos, ou da

Cidade-conceito: a vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto urbanístico dela

excluía. A linguagem do poder se “urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos

contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico. Desse modo, o

caminho seria analisar as práticas microbianas, seguir o movimento dos procedimentos que

escapam ao controle da administração e que se reforçaram em uma proliferação ilegitimada,

constituindo-se em regulações cotidianas do espaço. Dentro da idéia de um movimento constante

na “construção” da cidade do cotidiano, os percursos e os relatos seriam formas elementares das

práticas organizadoras do espaço, mas que pertencem mais ao domínio do imaginário que do

espaço físico. O caminhar molda espaços, tece lugares, formando um desses “sistemas reais cuja

existência faz efetivamente a cidade”, mas “não têm nenhum receptáculo físico”, enquanto que o

relato é uma apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (...) uma realização espacial do

lugar. Na distinção entre lugar e espaço, o primeiro é a ordem segundo a qual se distribuem

elementos nas relações de coexistência, é uma configuração de posições, implicando uma

indicação de estabilidade. O espaço, ao contrário, é dinâmico: é um cruzamento de vetores de

direção, quantidades de velocidade e a variável tempo; é animado pelo conjunto de movimentos

que nele se desdobram: Em suma, o espaço é um lugar praticado. É um lugar percebido, ou seja,

para a mesma forma urbana podem corresponder experiências espaciais distintas15.

A relação entre forma urbana e sociedade, assim, pode se dar num plano subjetivo, logo

nem sempre é materializável. Além disso, mesmo que o seja, quando se introduz a dimensão do

tempo ela se torna ainda mais complexa, já que nem sempre os reflexos de uma na outra são

imediatos. O mesmo acontece na relação entre forma e função. A forma é um elemento de

estabilidade, enquanto a função é maleável. Novos usos, ou novas funcionalidades, se encaixam

em formas antigas – uma problemática facilmente identificável hoje, por exemplo, nos centros ou

bairros “históricos”. Como observa Roncayolo, há uma sobreposição de níveis, da duração e dos

limites estruturais desiguais16. Seu pensamento converge para o de Lepetit quando este afirma que

15 CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 176-203.16 RONCAYOLO, M. Cidade. In:Enciclopédia Einaudi, vol. 8: Região. Lisboa: Casa da Moeda, 1986, p. 433.

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deve-se levar em conta que as sociedades urbanas procedem continuamente a uma reatualização e

a uma mudança de sentido das formas antigas, reinterpretando-as constantemente17.

Desse modo, na relação entre forma, estrutura social e tempo, as descontinuidades tornam-

se evidentes. Roncayolo18 afirma que a estrutura social não se projeta imediatamente na cidade;

uma das causas desse descompasso é que as estruturas materiais e culturais adquiridas corrigem-se

lentamente: o imobilismo das construções existentes, a utilização do solo, as preferências do grupo

social. Só com o tempo se compreendem as sobreposições, as substituições, as relações de força.

Além disso o tempo da construção, da execução dos programas, excede o tempo da conjuntura em

que estes foram elaborados, daí a defasagem e as distorções em relação aos ritmos das

modificações sociais e econômicas. Certeau fala de um tempo acidentado que carrega o

imprevisto, contrapondo-se ao tempo “controlado” produzido pelo discurso de uma teoria racional:

eliminar o imprevisto ou expulsá-lo do cálculo como acidente ilegítimo e perturbador da

racionalidade, é interdizer (sic) a possibilidade de uma prática viva e “mítica” da cidade. Seria

deixar a seus habitantes apenas os pedaços de uma programação feita pelo poder do outro e

alterada pelo acontecimento. Fábula indeterminada, o tempo acidentado é o que se narra no

discurso efetivo da cidade19.

A importância da análise histórica do fenômeno urbano reside assim na identificação dos

imprevistos, dos descompassos, dos pontos de ruptura no desenvolvimento da cidade, dos

mecanismos que se encontram nas origens das modificações de sua forma. Retomando Argan,

formas urbanas são produtos da história. No termo “cidade” (...) acumula-se uma grande soma

de experiências históricas.20

A aceleração e a intensidade das mudanças na cidade contemporânea, assim como a

conseqüente ameaça da destruição de suas formas e da perda da sua história, tem levado a uma

valorização da dimensão visual do espaço urbano. Teorias como a de Kevin Lynch, que enfatiza

elementos visuais como pontos de referência, ou como fatores de reconhecimento do usuário em

relação ao espaço da cidade, reafirmam a idéia de que a forma urbana é um fator fundamental da

identidade de um grupo social. No conceito de paisagem urbana, enfatiza-se a sua dimensão

17 LEPETIT, B. Op cit, p. 147.18 RONCAYOLO, M. Op cit, p. 456-457.19 CERTEAU, M. Op cit, p. 311-312.20 RONCAYOLO, M. Op cit, p. 397

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simbólica enquanto rede de significados e significantes; na sua dimensão histórica, é expressão dos

laços que ligam o presente à herança do passado.

Essa problemática das transformações atinge também as cidades históricas, apesar delas

estarem protegidas, em geral, pelo instrumento do tombamento. O principal motivo nesse caso

reside numa mudança da função, isto é, na sua transformação em espaços turísticos, ou espaços de

consumo. A valorização estética da paisagem no mundo contemporâneo, causada em parte pela

ameaça de desaparecimento da paisagem tradicional, pode ser considerada como uma das origens

desse fenômeno. Como observa Ana Fani Carlos, o turismo representa a conquista de uma

importante parcela do espaço que se transforma em mercadoria: este passa a ser banalizado,

explorado, seu processo de apropriação sendo determinado por leis do mercado e estratégias de

marketing. É um espaço dominado, controlado, impõe não apenas modos de apropriação, mas

comportamentos, gestos, modelos de construção que excluem-incluem 21. Forma sem conteúdo,

reduz a realidade a um simulacro, eliminando a subjetividade do cotidiano. Se os centros históricos

permanecem pouco alterados em suas formas, as transformações espaciais são enormes. Sob outro

aspecto, o incremento de atividades econômicas ligadas ao turismo provoca o crescimento dessas

cidades, causando o surgimento de áreas periféricas, como no caso de Tiradentes. Se por um lado

essas novas áreas comprometem a unidade dos conjuntos tombados, por outro, é nesses espaços

“não planejados”, para onde se dirigiu a antiga população local, que a cidade recupera as práticas

cotidianas.

A análise da cidade histórica não pode assim ignorar as áreas de formação recente.

Compreender o processo das modificações devidas a uma expansão urbana em geral

“desordenada” ou “espontânea” é compreender os processos sociais, econômicos e culturais que,

de forma direta ou indireta e dentro de uma perspectiva histórica, estão relacionados a ela. A

análise das formas dessa expansão periférica aos antigos núcleos – e que reproduzem a aparente

“desordem” que caracterizou o período formador dessas cidades - pode fornecer a chave para uma

compreensão maior das relações intrínsecas ao fenômeno urbano. Retomando Argan quando se

refere às cidades de um passado que ainda ignorava a figura do urbanista : As cidades

desenvolveram-se de uma maneira que chamamos espontânea, mas que, na realidade, era

21 CARLOS, A.F. Op cit, p. 64-68.

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determinada pela evidência que a figura histórica da cidade tinha na consciência individual e

coletiva.22

Compreender a cidade histórica, hoje, significa compreender as marcas que os diversos

tempos deixaram em suas formas, num processo acumulativo. A consideração da cidade como

produto cultural ou artístico não mais comporta a visão estática do objeto acabado, devendo

incorporar a dinâmica de seus processos modificadores. Nosso objetivo, assim, é tentar identificar,

através da leitura das formas, a história desses processos e das inter-relações subjacentes a eles,

esperando com isso contribuir para a discussão acerca dos critérios de preservação do patrimônio

construído.

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22 ARGAN, G.C. Op cit, p. 240.

Page 14: 71 A CIDADE HISTÓRICA NA CONTEMPORANEIDADE

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