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2.3 Congo: Missionação a Sul do Equador O facto de existir vida humana para além da linha equatorial constituira motivo de reflexão e de apontamento nos textos impressos alusivos ao reino do Congo. Quanto mais os portugueses avançavam na região desconhecida meridional, mais se lhes deparavam novas observações e experiências que, na maioria das vezes, contradiziam os esquemas anteriormente formulados em relação à apresentação e à fundamentação da configuração do continente africano. O desconhecimento face a este mundo novo leva os portugueses a interpretar a passagem do Promontorium Prassum (1484) como um passo decisivo para a descoberta do caminho marítimo para a Índia, considerando-se que, ao chegarem ao Congo, estariam quase na ponta sul de África e, por conseguinte, bem perto do extremo da costa ocidental africana. 1 O diálogo civilizacional estabelecido com os congolenses é geralmente caracterizado nas fontes como um acontecimento de grande importância vivido por ambos os povos num clima de "contentamento", de alegria e de boa atmosfera. 2 As fontes relatam unanimemente que a chegada dos nautas portugueses, tanto no Sonho, como no Congo, fora festejada com grande regozijo, estabelecendo-se um encontro amistoso e agradável. Os congo- lenses, "gente de tão bom entendimento", nas palavras de João de Barros, receberam os mareantes lusos com entusiasmo e satisfação: "O qual [o rei do Congo], em um cadafalso de madeira, tam alto que podia ser visto de tôdalas partes, estava assentado em uma cadeira de marfim com algumas peças de pau, lavrada ao seu modo muito bem; os vestidos do qual, da cinta pera acima, eram os coiros da sua carne mui pretos e luzídios, e per baixo se cobria com um pano de damasco, que lhe dera Diogo Cão, e no braço esquerdo um bracelete de latão, e neste ombro um rabo de cavalo guarnecido, cousa tida entre êles por insígnia real, e na cabeça um barrete alto como mitra, feita de pano de palma muito fino e delgado, com lavores altos e baixos, a maneira que acêrca de nós é a tecedura de cetim avelutado. Rui de Sousa chegado a êle, fêz-se a cortesia ao modo dêste nosso reino, e el-Rei também a sua, seguno o seu - pondo a mão direita no chão, como 1. Veja-se a carta de D. João II ao papa Inocêncio VIII. Publicada in: Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, 1936, Tomo II. 2. Veja-se, entre outros, o relato de João de Barros sobre a chegada dos portugueses ao Sonho, uma das províncias do reino do Congo. João de Barros, Ásia, ed. António Baião e Luís F. L. Cintra, Lisboa, 1954, p. 109.

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2.3 Congo: Missionação a Sul do Equador O facto de existir vida humana para além da linha equatorial constituira motivo de reflexão e de apontamento nos textos impressos alusivos ao reino do Congo. Quanto mais os portugueses avançavam na região desconhecida meridional, mais se lhes deparavam novas observações e experiências que, na maioria das vezes, contradiziam os esquemas anteriormente formulados em relação à apresentação e à fundamentação da configuração do continente africano. O desconhecimento face a este mundo novo leva os portugueses a interpretar a passagem do Promontorium Prassum (1484) como um passo decisivo para a descoberta do caminho marítimo para a Índia, considerando-se que, ao chegarem ao Congo, estariam quase na ponta sul de África e, por conseguinte, bem perto do extremo da costa ocidental africana.1 O diálogo civilizacional estabelecido com os congolenses é geralmente caracterizado nas fontes como um acontecimento de grande importância vivido por ambos os povos num clima de "contentamento", de alegria e de boa atmosfera.2 As fontes relatam unanimemente que a chegada dos nautas portugueses, tanto no Sonho, como no Congo, fora festejada com grande regozijo, estabelecendo-se um encontro amistoso e agradável. Os congo-lenses, "gente de tão bom entendimento", nas palavras de João de Barros, receberam os mareantes lusos com entusiasmo e satisfação: "O qual [o rei do Congo], em um cadafalso de madeira, tam alto que podia ser visto de tôdalas partes, estava assentado em uma cadeira de marfim com algumas peças de pau, lavrada ao seu modo muito bem; os vestidos do qual, da cinta pera acima, eram os coiros da sua carne mui pretos e luzídios, e per baixo se cobria com um pano de damasco, que lhe dera Diogo Cão, e no braço esquerdo um bracelete de latão, e neste ombro um rabo de cavalo guarnecido, cousa tida entre êles por insígnia real, e na cabeça um barrete alto como mitra, feita de pano de palma muito fino e delgado, com lavores altos e baixos, a maneira que acêrca de nós é a tecedura de cetim avelutado. Rui de Sousa chegado a êle, fêz-se a cortesia ao modo dêste nosso reino, e el-Rei também a sua, seguno o seu - pondo a mão direita no chão, como

1. Veja-se a carta de D. João II ao papa Inocêncio VIII. Publicada in: Memórias da Academia de Ciências de Lisboa, 1936, Tomo II. 2. Veja-se, entre outros, o relato de João de Barros sobre a chegada dos portugueses ao Sonho, uma das províncias do reino do Congo. João de Barros, Ásia, ed. António Baião e Luís F. L. Cintra, Lisboa, 1954, p. 109.

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que tomava pó dêle, e correu esta mão pelos peitos de Rui de Sousa, e de-pois pelos seus, que era a maior cortesia que entre êles se podia fazer."3 Apesar dos diferentes usos e costumes, estabelece-se um diálogo de aproximação entre os dois povos, como podemos constatar nas formas de saudação acima descritas. Já na primeira viagem de Diogo Cão (1482), os portugueses trouxeram congolenses para Portugal no desejo de que estes aprendessem a língua portuguesa e se voltassem para a civilização.4 Aos olhos dos portugueses iniciar-se-ia, um processo educacional, pois com a missionação seria possível fazer destes íncolas verdadeiros homens, proporcionando-lhes um outro estádio de civilização. Pensava-se na exportação, para o Congo, de uma cultura europeia de índole religiosa. A conversão ao cristianismo como parte do percurso civilizacional não constituía novidade na caracterização desta região;5 algo de inovador surgiria, pelo contrário, na extrema e clara disposição dos congolenses em quererem ser cristãos, facto este que encontra assaz ressonância nas descrições e crónicas coevas.6 A adesão espontânea e rápida ao cristianismo dos senhores do Sonho e do Congo, bem como a programada construção de uma igreja no Congo, motivos de entusiástico júbilo, revelam-se dos principais acontecimentos a registar desde os inícios da actividade descobridora, dando-se vivas ao bom encontro que permitira a propagação da cristandade cristã e a formação de uma nova sociedade, baseada no modelo português, em África. Que a implantação destes novos fundamentos nem sempre será fácil e linear, comprova-o o longo e atribulado processo de integração e assimilação chefiado pelo rei congolês. Duarte Lopes,7 um comerciante português estabelecido no Congo, desde 1578, numa missão diplomática e peregrina a Roma, como embaixador do rei do Congo, irá relatar sobre a situação nestas terras africanas. Com efeito, Duarte Lopes que se tinha deslocado à Itália, a fim de apelar para um urgente envio de missionários 3. João de Barros, op. cit., pp. 111-12. 4. Rui de Pina, Crónica de D. João II, Lisboa, 1727, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, p. 994. 5. Sobre as relações de Portugal com a Santa Sé, mormente no que respeita aos deveres de apostolado, veja-se Günter Georg Kinzel, Die rechtliche Begründung der frühen portugiesischen Landnahmen an der westafrikanischen Küste zur Zeit Heinrichs des See-fahrers, Untersuchungen über Voraussetzungen, Vorgeschichte und Geschichte der portugiesischen Expansion in Nordafrika, Westafrika und auf den Inseln im Atlantik bis zum Jahre 1460, Göppingen, 1976. 6. Rui de Pina, Crónica de D. João II, Lisboa, 1727, ed. M. Lopes de Almeida, Porto, 1977, pp. 992-1012 e Damião de Góis, Chronica d'el- Rei D. Manuel, Lisboa, 1566, ed. Lisboa, 1910-1911, 4 vols, pp. 126-27; 7 vol., pp. 49-55; 9 vol. pp. 12-16. 7. Duarte Lopes/ Filippo Pigafetta, Relatione del reame di Congo et delle circonvicine contrade, Roma, 1591 (Lisboa, 1951).

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para o Congo, conhece Filippo Pifagetta a quem narra valiosas informações. Os seus conhecimentos seriam assim curiosa e afortunada-mente compilados por Pigafetta, um humanista italiano ao serviço da igreja romana que, ao anotar pela primeira vez os traços característicos deste reino, produziu um dos principais escritos sobre o Congo e os seus arredores, considerado pelos coevos como "uma história singular"8 dos novos mundos. Se, na primeira parte, se apresenta um quadro geral da situação geográfica deste reino em África, fornecendo algumas informações particulares sobre cada uma das regiões, a segunda parte será completamente dedicada à abordagem e descrição das deligências feitas com vista a instaurar o credo cristão no Congo. Também aqui se fala do júbilo e da alegria com que os congolenses receberam os portugueses e de como o rei se entregaria de alma e coração aos primeiros rudimentos da doutrina cristã. Escolhendo João como nome de baptismo, também o rei conguês sonhava ser o criador de uma nova dinastia defensora de inovadores princípios. No seguimento da conversão mandou queimar todos os ídolos da sua província e, quando morreu ser-lhe-ia feito um funeral "ao modo dos Cristãos".9 No entanto, se um dos filhos, D. Afonso, também convertido, intentava fortificar a presença cristã no Congo, um outro, o senhor do Pango, a combateria fortemente. No entanto, D. Afonso sai vitorioso desta luta e constroe a primeira igreja. Duarte Lopes conta ainda que D. Afonso ordena a queima dos ídolos, tendo mandado convocar os Senhores de todas as províncias, a fim de que os que possuíssem artefactos idolatras os entregassem. Como nos diz, em menos de um mês os seus súbditos trouxeram os seus deuses e, entre eles, se teriam visto inumeráveis alfaias de culto idolatra, tais como demónios, dragões com asas, serpentes e outros animais monstruosos.10 Se antes da chegada dos portugueses, os congolenses se vestiam com panos de palma, depois que aquele reino recebera a fé cristã, os grandes da corte teriam passado a vestir-se à moda portuguesa, ou seja, com mantos, capas, chapéus e alparcas de veludo. A adesão aos usos e costumes portugueses não se faria sentir única e exclusivamente no vestuário pelo 8. Citado segundo a edição portuguesa de Filippo Pigafetta/ Duarte Lopez, Relação do Reino de Congo e das Terras Circunvizinhas, ed. Lisboa, 1951. 9. Idem, p. 94. Cf. Duarte Lopes/F. Pigafetta, Warhaffte vnd Eigentliche Beschreibung dess Künigreichs Congo in Africa/ und deren angrentzenden Länder/ darinnen der Inwohner Glaub/ Leben/ Sitten vnd Kleidung wol vnd aussführlich vermeldet vnd angezeigt wirdt, Frankfurt, 1597, p. 43: "nach gewohnheit der Catholischen Kirchen". Outras edições em 1609, 1625 e 1628. 10. Idem, pp. 102-3.

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que também no governo e administração se verificariam influências de Portugal; seguindo assim os modelos importados, a corte congolesa pretendia assemelhar-se à portuguesa.11 Estes seriam também os acontecimentos e factos que a edição alemã iria evidenciar, intentando, aliás, fazê-lo através da linguagem iconográfica. Traduzida por Augustinus Cassiodorus e editada pelos irmãos Hans Diethrich e Hans Israel von Bry, a versão alemã visava, como podemos ler no prólogo, dar a conhecer esta tão importante, "estranha, desconhecida e divertida" história do reino do Congo. Os editores da colecção, em que veio a lume o relato de Duarte Lopes, em 1597, imprimem também a carta geográfica do Congo que acompanhava o texto na versão italiana e ainda um anexo, onde viriam a público treze gravuras referentes a temas de maior importância esboçados no relato de Lopes: "Tudo ordenado para o leitor amigo para melhor compreensão e informação das descrições anteriores".12 As gravuras representam, entre outros assuntos, a chegada dos portugueses ao Sonho e ao reino do Congo, o vestuário dos grandes, onde desde já se poderá verificar a influência portuguesa, animais que aí vivem ou a queima dos ídolos. A cada gravura será adido um comentário que reproduz fielmente as explicações dadas por Duarte Lopes e, salientando a importância de cada uma das cenas, os autores remetem para o respectivo capítulo em que se aflora o assunto em questão.13 O reino do Congo detinha, por sua vez, inúmeros contactos com as regiões limítrofes, regiões estas que, naturalmente iriam despertar o interesse e a curiosidade dos portugueses. É o caso de Angola que Duarte Lopes referencia como um reino onde os habitantes falavam a mesma língua que os congolenses. O rei de Angola seria, aliás, vassalo do rei do Congo. Dado que dispunha de uma importante posição no comércio de escravos,14

11. Idem, p. 124. 12. "Alles zu besserem Verstandt vnd Nachrichtung voriger Beschreibung dem Günstigen Leser angeordnet". Titulo do anexo. 13. A gravura número 11 intitulada ("Wie der König von Congo in seinem gantzen Land die Teufelsbilder zuverbrennen befihlet/ auß dem III. Cap. deß andern Buchs") segue-se o seguinte comentário:"Als der König von Congo nun den Christliche Glauben hatte en-genommen/ so wolte er/ vnd gebot seinen Vnderthanen vnd Adel/ daß ein jeder vnder ihnen/ er sey weß Standes er wölle/ alle Abgötter so er hette/ denen darzu verordeneten Personen vberlieffen solte/ denn welcher dieses Gebot würd vbertretten/ gedächte er mit dem fewer zu straffen. Wurden derhalben in einem Monats frist/ grewlich viel allerley Teufels/ Trachen/ Schlangen vnd andere Bilder zusamen bracht/ welche alle auff einen Hauffen geworfen/ vnd zu Aschen verbrandt wurden/ laut der Historien in obgemeltem Capitel" 14. Sobre o comércio de escravos, os autores fornecem poucas informações; veja-se Samuel Braun, Schiffarten, Basel, 1624, ed. Walter Hirschberg, Graz, 1969, p. 39. Sobre o problema

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de cobre e de marfim, os contactos com Angola intensivar-se-iam, principalmente, a partir de 1570. Um dos negócios a que se dedicariam mais comerciantes seria, de facto, o do marfim, uma vez que nesta zona existiam muitos elefantes. Estes animais com o avançar da idade perdem os dentes e só um deles poderia pesar cinquenta ou mais quilos, como relata Samuel Braun na sua passagem por este reino.15 Este médico alemão ao serviço da Companhia Holandesa das Índias diz-nos ainda que se trata de uma região muito fértil, a melhor terra de cultura e fruta, como di-ficilmente se encontraria noutra parte do mundo.16 Para amainar as dificuldades já assinaladas por Duarte Lopes na consolidação do cristianismo no Congo,17 chegariam a este reino alguns grupos de missionários, entre eles, monges capuchinhos. Na verdade, o papa Gregório XV ordenara esta congregação, em 1622, para a propagação da fé cristã em terras africanas. Alguns destes missionários capuchinhos deixariam relato das suas experiências nesta região, vindo muitos deles a ser vertidos para a língua alemã. A primeira destas obras é a do italiano Dionísio Carli,18 um padre capuchinho que pregou no Congo e Angola. Dionísio Carli, que chegou a Angola a 6 de Janeiro de 1668, diz-nos que na cidade de Luanda viveriam bastantes religiosos, na sua maioria, jesuítas, que aí tinham fundado um colégio para instruirem jovens; além destes encontrar-se-iam também alguns carmelitas e missionários de outras ordens menores. No que respeita à cidade, Carli descreve-a da seguinte maneira: "[...] as casas dos brancos seriam construídas à maneira europeia com pedras, enquanto os mouros as faziam com palha; [a cidade] situa-se metade perto do mar, a outra metade numa do comércio de escravos dos portugueses em Angola, veja-se Beatrix Heintze, Traite de "Pieces" en Angola: Ce qui n'est pas dit dans nos Sources, in: De la Traite a l'Esclavage, Actes du Colloque International sur la traite des Noirs, Nantes, 1985, vol. 1, pp 147-172. 15. "Die Elephanten belangend /ist zu wiessen/ daß die handelsleuth von denselbign dz Gebein vnd ihre Zähne wunderlich bekommen. Dann die Elephanten wirlen die Zähne/ vnd lassen dieselben in ihrem alter fallen/ da etwan ein Zahn ein Centner vnd etliche pfund wigt/ wie ichs selber gesehen". Braun, op. cit., p. 16. 16. Idem, p. 14. 17. Para além das dificuldades internas surgem ainda graves conflitos externos. A partir de 1640, os holandeses procuram instaurar-se em Angola, pelo que os portugueses teriam de combater em duas frentes. Como fonte coeva sobre estes conflitos militares, veja-se António de Oliveira de Cadornega, História Geral das Guerras Angolanas, 1680, ed. José Matias Delgado, 3 vols, Lisboa, 1972. 18. Dionísio Carli, Der nach Venedig überbrachte Mohr oder curiose und warhaffte Erzehlung und Beschreibung aller Curiositäten und Denckwürdigkeit / welche dem wohl-Eh.rwürdigen P. Dionysio Carli..., Augsburgo, 1692. Original: Reggio, 1672. Outras edições italianas: Reggio 1674, 1679 e Bassano, 1687. Na Alemanha seria publicada, novamente em Augsburgo, em 1693.

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elevação; o número de brancos seria de 5000 e os mouros, que servem os brancos como escravos, sem conto; e que só um [branco] chega a ter 50 até 5000 pelo que, o que mais tem, mais conceituado é, e, também, mais rico".19 Também, na sua opinião, se trata de uma boa terra com várias culturas que chega a dar duas colheitas por ano. De Luanda o padre capuchinho prossegue para o Congo, reino onde havia muita falta de missionários. Seguindo o voto de evangelizar regiões mais esquecidas das missões, Carli fora designado superior de um convento, em Bamba, uma das províncias do Congo. Dionísio Carli conta que para chegar ao seu convento teve de efectuar um árduo e difícil percurso; assim teve de atravessar zonas, onde não existiam localidades, só pequenas cabanas isoladas, onde ainda, a seu ver, não chegara a civilização ocidental. Além disso, era nesta mesma área, que viviam os Jagas, um povo muito temido pelo seu comportamento cruel e selvagem. Aliás, já Duarte Lopes se lhes referira como causadores de horrorosas guerrilhas no Congo.20 Dionísio Carli escreve: "Eles [os Jagas] são de grande estatura e gente horrível e bestial; usam arco e setas e lanças; os seus costumes tão bestiais que se parecem às gentes selvagens; andam completamente nus, alimentam-se de carne humana e não têm rei". E continua aludindo ao seu modo de viver: "Eles vivem nas matas em cima das árvores, fazem as casas de palha e ocuparam diferentes terras e reinos em África ou Etiópia, mas tudo destruiram com fogo e armas; mataram aqueles que ofereceram resistência e, os que se renderam, tomaram como escravos. Os prisioneiros já não aptos para a guerra mataram-nos, esquardejando-os em pedaços como animais, para depois os comerem; aqueles que, contudo, ainda serviam para a guerra, alistaram-nos na sua mílicia, educando-os nas suas crueldades [...] Estes jagas são tão bestas ou, mais ainda, inhumanos para que se possam reconhecer e distinguir dos outros [povos], quebram dois dentes de cima e dois de baixo".21 Esta sua longa e detalhada descrição 19. "[...] die Häusern der Weissen seynd auf europaeisch von Steinen gebauet/ der Mohren aber ihre von Stroh/ ligt halb gegen dem Meer/ vnd halb auf einen Bühel/ die Zahl der Weissen seynd bey 5000. und der Mohren ein unzahlbare Menge/ die denen Weissen für Sclaven dienen/ und deren bißweilen einer von 50. biß 5000.haben/ vnd der mehr hat/ der ist mehr angesehen/ vnd auch reicher". Idem, p. 33. 20. Veja-se a gravura 12 dedicada a este povo que viria provavelmente da Serra Leoa. 21. "Sie seynd grosser Statur abscheulich= und unmenschliche Leuth/ tragen Bogen und Pfeil/ und drey Ehlen lange Spieß/ ihre Sitten seynd viehisch/ sie sehen wilden Leuthen gleich/ gehen ganß nackend/ nähren sich vom Menschen= Fleisch/ und haben keinen König [...] Sie wohnen in Wäldern auf den Bäumen/ machen ihre Hütten von Stroh/ und haben sich in unterschiedliche Landschafften und Königreich in Africa oder Aethiopien ausgebreitet/ alles mit Feuer und Schweid verwüstend/ und diejenigen die sich widerseßen/ ertödtend/ und

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deixa transparecer o terror e o espanto causado pela forma de ser e de viver deste povo. É tal a diversidade de costumes na sua maneira de viver, ou a prática atroz de matarem as crianças à nascença, que Carli lhes chama repetidamente "gente bestial". Carli irá, contudo, relatar outros episódios que lhe enchem o coração de alegria. O padre missionário vai ter, durante o seu caminho, o ensejo de converter e baptizar muitos autóctones que o procuraram na esperança de se tornarem cristãos. Na província do Bamba chegará mesmo a visitar a grande duquesa e os seus súbditos, que o iriam ouvir pregar a fé cristã; além disso, aproveita o ensejo para ensinar o português aos autóctones. Carli não irá, contudo, ficar muito tempo em Bamba, visto que adoece gravemente, o que o obriga a regressar a Luanda, de onde, por fim, regressa a Lisboa. Uma outra relação de índole similar, também sobre o reino do Congo, é a de Giovanni Antonio Cavazzi vinda a lume, em alemão, dois anos mais tarde.22 Também padre capuchinho, Cavazzi passaria, entre 1654 a 1667, mais de vinte anos da sua vida em terras africanas, nomeadamente, no Congo, Angola e Matamba. A sua obra, o vivo apontamento da longa estada em terras de África, tornar-se-ia não só uma das obras mais importantes para a história da missão da ordem dos padres capuchos, como ainda um documento etnográfico ímpar das suas gentes. Num dos seus sete livros, Cavazzi relata episódios verdadeiramente significativos, entre eles, os relacionados com a rainha Zinga (Nzinga) de Matamba,23 conhecida como uma das mulheres mais cruéis. Cavazzi, que sabe contar muitas das atrocidades de Zinga, narra que aquando da morte de um filho de raiva e vingança, esta teria morto e mandado abater muitas crianças e, que depois de ter tirado brutalmente o coração a algumas das suas vítimas, o teria comido bestialmente. Muitas das tentativas deste padre capuchinho para a converter foram em vão, até que um dia Zinga se converteu definitivamente ao cristianismo. A partir deste momento a terrível rainha seguia uma vida cristã exemplar, vindo, em 1663, a ser enterrada cristãmente. O livro de Cavazzi teria um grande impacto não só

zu Sclaven machend/ die sich ihnen ergeben haben. Die Gefangene die zum Krieg untauglich waren/ schlachteten sie/ zerhacktens zu Stucken als wie das Vieh/ und frassens/ die aber zum Krieg tauglich waren/ nehmen Sie in ihren Miliß auf/ und richteten sie auf ihre Grausamkeiten ab [...] Diese so bestialische Jagi oder vielmehr Unmenschen/ damit sie von den andern erkennet und geforschten werden/ lassen ihnen zwey Zähn oben und zwey unten mit Fleiß ausbrechen..." Idem, p. 43 e segs. 22. Giovanni Antonio Cavazzi, Historische Beschreibung drei Königreichen Congo, Matamba und Angola, Munique, 1694. Original: Bolonha, 1687. 23. Idem, pp. 674-815.

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por causa desta história fascinante, mas também devido a uma im-portantíssima colecção de gravuras de uma riqueza documental indiscutível, que acompanhariam a edição italiana de 1687 e, também, a alemã editada em 1694.24 Para além dos relatos de Dionísio Carli e Giovanni Antonio Cavazzi, poder-se-ão ainda referir, neste contexto, outras obras de padres capuchinhos como, por exemplo, as de Franciscus Romanus,25 Girolamo Merolla26 e Antonio Zucchelli.27 Este último chega a Bengala no ano de 1698, via Lisboa e Brasil; após dois anos, em Bengala, Zuchelli seguiu, em 1700, para a província congolesa do Songo para mais dois anos. O relato de Zuccheli, escrito numa fase posterior da cristianização, denota um certo pessimismo quando cotejado com os entusiastas louvores expressos, nos primeiros anos, ao povo congolês pela sua espontânea con-versão à fé católica. Na verdade, embora Zuchelli saiba que os congolenses aderiram de livre vontade ao cristianismo, o certo é que, como muitas vezes o refere, ainda continuam fiéis aos valores da vida pagã. Segundo Zuccheli, eles viveriam "uma vida de animal", parecendo "mais de dois terços besta do que gente racional".28 Nunca tendo abdicado dos costumes tradicionais, eles continuariam a viver em concubinato, sendo, a seu ver, extremamente difícil convencê-los a deixar estes seus hábitos ancianos. Zuchelli diz ainda que embora aceitem, muitas vezes, as ordens dos padres, passado pouco tempo regressam muito facilmente aos antigos costumes. Na sua opinião, o numeroso número de baptismos e casamentos registados nestas regiões não corresponde à verdade, dado que os sacramentos não correspondem a uma vivência cristã, não sendo, aliás, um sinal de verdadeiro cristianismo. O diálogo civilizacional levado a cabo pelos padres missionários, não frutificará, como reconhece Zuccheli com amarga desilução. Por isso, no seu texto já pouco se encontra do contentamento inicial. Pelo contrário, as suas palavras são duras e de impaciência, como podemos ler no seguinte extracto: "Muitos que leiam esta passagem vão-se surpreender, considerando que nos comportamos

24. Sobre a importância desta relação, veja-se a elogiosa recensão coetânea in: Acta Eruditorum, Leipzig, 1687, pp. 649-657. 25. Franciscus Romanus, Istoria della missione dei cappuccini nel regno del Congo, colla descrizione geographica di quel regno, Roma, 1646. 26. Girolamo Merolla, Breve, e svccinta Relatione del Viaggio nel Regno di Congo nell' Africa Meridionale, Nápoles, 1692. 27. Antonio Zucchelli, Merckwürdige Missions und Reisebeschreibung nach Congo in Ethiopien, Frankfurt, 1715. Original: Veneza, 1712. 28. "[...] zwey Drittel mehr von einem unvernünfftigen Viehe, als von einem vernünfftigen Menschen". Idem, p. 161.

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rigidamente contra esta gente, e vão dizer que seria melhor se os tratas-semos com afeição e amor, pois assim poder-se-ia obter melhores resultados e minorar os seus vícios. Mas todos esses que assim pensam não têm qualquer conhecimento e notícia dos negros". Tudo teriam tentado com afeição e amor, mas eis o triste e inglório fim da cristianização europeia no Congo, "porque esta não é gente que se governe pela saudável razão".29

29. "Viele aber, die dieses lesen/ werden sich darüber verwundern, daß wir so gar hart wider diese Leute verfahren, und werden viel eher meynen, daß es besser gewesen, wenn wir sie mit Holdseiligkeit und Liebe tractiret, weil man damit mehr bey ihnen ausrichten, und ihre Laster noch eher verbessern könnte. Allein alle diejenigem/ die so dencken, haben keine rechte Wissenschafft und Nachricht von denen Schwarzen [...] weil diese keine Leute sind, die sich nach der gesunden vernunft richten". Idem, p. 241.