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ESTUDO DE CASO: POLÍTICA EXTERNA DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO NO PERÍODO DE JOSEPH KABILA Lúcia de Toledo França Bueno 1 RESUMO Este artigo objetiva compreender os principais aspectos de formulação e condução da política externa da República Democrática do Congo no que concerne aos esforços congoleses no estabelecimento de relações com grupos rebeldes armados, à administração dos “minerais do conflito” e ao esgotamento sobre a já comprometida estrutura democrática do país. O recorte temporal estabelecido compreende o período a partir da independência até o ano de 2017, com foco no governo de Joseph Kabila Kabange. De forma transversal, serão abordadas as mudanças no discurso e posicionamento dos atores governamentais congoleses no âmbito da Organização das Nações Unidas. Palavras-chave: Política Externa. República Democrática do Congo. Cleptocracia. MONUSCO. INTRODUÇÃO A República Democrática do Congo (Congo-Kinshasa ou RDC) é o segundo país mais extenso no continente africano em termos de território (estando atrás somente da Argélia). É, ainda, um dos países que possui o maior número de Estados transfronteiriços (República Centro- Africana, Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Burundi, Tanzânia, Zimbábue, Angola e República do Congo), compondo um total de 10.481 quilômetros de divisas. Atualmente, conta com mais de 82 milhões de habitantes distribuídos em mais de 200 grupos étnicos (MRE, 2017; CIA, 2017). 1 Graduanda no quinto semestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) sob orientação do Profº Drº Pedro Henrique de Moraes Cícero, integrando Grupo de Pesquisa “Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes” e o Grupo de Estudos em Gênero e Relações Internacionais (GENERI), coordenado pela Profª Drª Débora Figueiredo Mendonça do Prado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0988847636189100

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ESTUDO DE CASO: POLÍTICA EXTERNA DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO

CONGO NO PERÍODO DE JOSEPH KABILA

Lúcia de Toledo França Bueno1

RESUMO

Este artigo objetiva compreender os principais aspectos de formulação e condução da

política externa da República Democrática do Congo no que concerne aos esforços congoleses no

estabelecimento de relações com grupos rebeldes armados, à administração dos “minerais do

conflito” e ao esgotamento sobre a já comprometida estrutura democrática do país. O recorte

temporal estabelecido compreende o período a partir da independência até o ano de 2017, com

foco no governo de Joseph Kabila Kabange. De forma transversal, serão abordadas as mudanças

no discurso e posicionamento dos atores governamentais congoleses no âmbito da Organização

das Nações Unidas.

Palavras-chave: Política Externa. República Democrática do Congo. Cleptocracia. MONUSCO.

INTRODUÇÃO

A República Democrática do Congo (Congo-Kinshasa ou RDC) é o segundo país mais

extenso no continente africano em termos de território (estando atrás somente da Argélia). É,

ainda, um dos países que possui o maior número de Estados transfronteiriços (República Centro-

Africana, Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Burundi, Tanzânia, Zimbábue, Angola e República do

Congo), compondo um total de 10.481 quilômetros de divisas. Atualmente, conta com mais de 82

milhões de habitantes distribuídos em mais de 200 grupos étnicos (MRE, 2017; CIA, 2017).

1 Graduanda no quinto semestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Economia e Relações Internacionais da

Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) sob orientação do Profº Drº Pedro Henrique de Moraes Cícero, integrando

Grupo de Pesquisa “Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes” e o Grupo de Estudos em Gênero e Relações

Internacionais (GENERI), coordenado pela Profª Drª Débora Figueiredo Mendonça do Prado.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0988847636189100

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Os recursos naturais minerais despontam como o artigo de interesse de um grande

conjunto de companhias multinacionais, autoridades governamentais nacionais e regionais bem

como líderes de grupos rebeldes armados. Desde o período em que a região configurava como

colônia belga, era sabida a riqueza de recursos do país e já era praticada a exploração em grandes

quantidades para fins estritamente lucrativos, desconsiderando preocupações com o padrão de

vida da população; há muito, brutalidade extrema faz parte do cotidiano congolês. A situação

persiste nos dias de hoje, apresentando mudanças significativas no regime de governo e nas

instituições, porém com uma dinâmica similar no que se refere às relações socio-econômicas

domésticas e internacionais. Os “minerais do conflito” (principalmente coltan, ouro, cobalto,

cobre, diamantes e coltan) constituem parcela relevante do total mundial e figuram como

intermediadores do processo de pauperização do povo congolês.

O desenvolvimento deste estudo de caso está dividido em duas grandes etapas. Na

primeira (Condições Internas), serão abordadas estratégias e práticas relacionadas às diversas

partes envolvidas no conflito. Já na segunda (Análise da Política Externa Congolesa), o foco será

sobre os discursos proferidos por representantes (presidente e primeiros-ministros) da RDC na

Assembleia Geral da ONU desde 2009 até 2017. Para tanto, o background metodológico será

composto por Hermann (1990) e, eventualmente, Baldwin (2000). Como fontes primárias,

também serão utilizados o Relatório de Gestão (Embaixada do Brasil em Kinshasa, capital da

RDC) e mapas produzidos pela ONU (Organização das Nações Unidas). Além das fontes já

citadas, serão examinadas fontes secundárias e terciárias, a saber: notícias (BBC, The Guardian,

Radio France Internationale, Time), trabalhos acadêmicos e resumos dos discursos iniciais

produzidos por UN News Centre.

1 CONDIÇÕES INTERNAS

1.1 O breve governo Joseph Kasavubu (1960-1965)

Uma série de revoltas na capital, à época, denominada Leopoldville (atualmente,

Kinshasa) resultaram na independência em 30 de junho de 1960. Lideranças nos movimentos

mencionados, Joseph Kasavubu toma posto como presidente e Patrice Lumumba, como primeiro-

ministro, desenhando toda uma nova estrutura militar e institucional. No mês seguinte, houve

conflitos entre militares belgas e soldados congoleses e o líder Moise Tshombe declarou a

independência da, até então, província de Katanga (mapa 1) (SILVA, 2012). Segundo a BBC,

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tropas belgas foram enviadas com os objetivos tanto de proteger os cidadãos belgas como os

interesses na exploração de minas. Desde então, o Conselho de Segurança das Nações Unidas

(CSNU) passa a encaminhar soldados para apoiar estabilização da região. Conforme Gambino

(2008), a ONUC (Opération des Nations Unies au Congo) foi a primeira missão requisitada e

efetivada em um território africano independente, atuando de julho de 1960 a junho de 1964.

MAPA 1: RDC E SUAS PROVÍNCIAS (2016)

Fonte: Nações Unidas

Lumumba conseguiu colaboração militar da URSS contra as secessões que ocorriam no

país, porém - no dia 17 de janeiro do ano seguinte (1961) - Lumumba foi assassinado (SILVA,

2012). De acordo com artigo publicado pelo The Guardian (2011)2, o crime foi financiado pelos

governos estadunidense e belga objetivando coibir as atividades do líder nacionalista. Durante

1961, os conflitos na província de Katanga prosseguiram inquietando o governo e, em agosto,

tropas das Nações Unidas iniciaram um processo de desarmamento dos soldados locais. Katanga

2 "Patrice Lumumba: the most important assassination of the 20th century", de Georges Nzongola -Ntalaja.

Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-development/poverty-matters/2011/jan/17/patrice-lumumba-

50th-anniversary-assassination>.

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foi recuperada em janeiro 1963 num esforço de atores como a ONU e o governo Kennedy nos

Estados Unidos da América (EUA). Logo, foi instaurado novo golpe, oficialmente justificado

pelo ambiente caótico de disputas políticas.

1.2 Golpe e governo de Mobutu Sese Seko (1965-1997)

A partir de então, Joseph-Désiré Mobutu passou a ser chamado Mobutu Sese Seko, que

permaneceu durante 32 anos como líder do regime militar. Em três meses, o parlamento e a

Constituição de 1960 foram destituídos pela articulação apoiada, substancialmente, pela CIA nas

Operações Encobertas (OEs). Mobutu recebeu título de Chefe do Estado Maior do Exército. As

figuras eleitas democraticamente foram neutralizadas em 1965, fazendo do mandato de Kasavubu

o mais breve em comparação aos outros três governos que viriam a gerir o Estado (SILVA,

2012).

Mudanças estruturais regeram o mandato de Mobutu, acompanhando ditames das

potências de primeiro e segundo mundo da época. A polarização característica da Guerra Fria não

foi ausente na RDC, cuja denominação foi alterada para Zaire pelo chefe de Estado. O então

designado Zaire aparecia como um “Estado predatório” devido à obstinada pilhagem de recursos

mediante uso da corrupção pelas empresas estatais e da manipulação de finanças públicas. Além

disso, o país caracterizou-se por extrema dependência de outros Estados, falta de alimentos e

crescente e contínuo êxodo rural como efeito das ações de grupos rebeldes no interior. Segundo

Silva (2012), a inflação foi acentuada pela falta de bens de primeira necessidade e pelo intenso

contrabando de pedras preciosas.

A década de 1990 compreende o começo de uma maior abertura por parte do governo

Mobutu em relação a liberdades civis e políticas, por exemplo ao abandonar o sistema de partido

único, desassociando da clandestinidade comunidades as quais, posteriormente, viriam a derrubar

seu próprio governo (BBC, 2017). Ademais, os deslocamentos em massa provocados pelo

genocídio de Ruanda (1994) e a negligência por parte de Mobutu na condução ativa de seu

governo (em partes, devido a seu afastamento em virtude de tratamentos médicos) abriram uma

brecha para que o grupo rebelde liderado por Laurent-Désiré Kabila, até então localizado na zona

leste da RDC, expandisse seu controle para o resto do país entre 1996 e 1997 com apoio dos

governos de Uganda e Ruanda. Ao tomar conta da capital, instaurou-se o governo de L.D. Kabila.

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1.3 Governo Laurent-Desiré Kabila (1997-2001)

Instalado como presidente em 1997, retomou-se a antiga denominação “República

Democrática do Congo”, título que permanece até atualmente. Até 1998, havia uma relação

baseada na cooperação e suporte mútuo por parte de RDC, Uganda e Ruanda. Segundo Gambino

(2008), contudo, a incompetência e truculência de Kabila no desenrolar das relações diplomáticas

e militares levou à uma cisão entre os três governos e desencadeou o início da Primeira Guerra do

Congo (1996-1997). A configuração desse conflito regional dava-se com Angola apoiando

Kabila, Ruanda proporcionando suporte à RDC-Goma (Rassemblement Congolais pour la

Démocratie-Goma) e, por sua vez, Uganda sustentando o MLC (Mouvement de Libération du

Congo). A Aliança de Forças Democráticas de Libertação (AFDL), composta por forças

ruandesas e ugandesas apoiadas pelos estadunidenses, avançou contra Kabila na capital Kinshasa

em agosto do mesmo ano (KANTER, 2015). Segundo a BBC (2017), tropas advindas de

Zimbábue, Namíbia e Angola cooperaram com o governo congolês.

Com o apoio de governos ocidentais - incluindo os Estados Unidos - foi assinado o

Acordo de Lusaka (capital de Zâmbia) em julho de 1999. O cessar-fogo foi acordado entre os seis

países envolvidos no conflito e, no mês seguinte, os grupos MLC e RDC-Goma foram

incorporados, porém as disputas entre forças rebeldes e governamentais permaneceram. Nove

meses após a assinatura, o CSNU (Conselho de Segurança das Nações Unidas) autoriza a criação

da MONUC (Mission de l’Organisation des Nations Unies en République Démocratique du

Congo) (BBC, 2017; GAMBINO, 2008). Era do interesse do presidente congolês resolver o

conflito militarmente pois o exercício pleno do acordo de Lusaka previa a instalação de um

governo transitório. Laurent-Désiré Kabila é assassinado a tiros em 2001 e seu filho Joseph

assume a presidência aos 19 anos de idade (BBC, 2015).

1.4 Persistência na corrupção e Estado de violência: governo de Joseph Kabila (2001-

atualmente)

O país enfrentou, entre agosto de 1998 e junho de 2003, a Segunda Guerra do Congo (ou

Guerra Mundial Africana) como consequência, de uma forma geral, de aspectos da Primeira

Guerra mal resolvidos. Nesse contexto, os primeiros anos da presidência com J. Kabila

apresentaram um governo de caráter transitório e a instauração do Estado de Violência em 2003,

sendo apenas em agosto desse ano inaugurado o parlamento interino.

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Uma das características marcantes da busca por solução de controvérsias na RDC é a

prática do power-sharing3; segundo a BBC (2017), em dezembro de 2002, foi assinado um

acordo (entre o governo de Kinshasa e grupos armados) delimitando a efetivação de tal

mecanismo. A nova Constituição, em concordância com as facções beligerantes, foi adotada pelo

parlamento em maio de 2005 e referendada em dezembro, abrindo caminho para as eleições.

Entretanto, estas foram prorrogadas, em junho de 2006, devido à lentidão no registro dos

candidatos, às disputas políticas e à persistência das lutas à leste do país. Os protestos em função

do adiamento foram agressivamente reprimidos (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017).

Logo, começaram as campanhas eleitorais e ocorreu o primeiro turno para presidente e

primeiro-ministro. Os resultados do turno de outubro apresentam Kabila como vencedor, em

detrimento do então vice-presidente, Jean-Pierre Bemba. No mês de dezembro e após o segundo

turno, Kabila foi oficialmente declarado o primeiro presidente que chegou ao posto

democraticamente. Os membros da comunidade internacional participantes do monitoramento do

pleito eleitoral declararam que o processo foi transparente e os procedimentos foram aprovados.

Na primeira entrevista concedida à imprensa após as eleições, em 2007, Bemba criticou Kabila

por corrupção e tentativa de assassiná-lo. Em março do mesmo ano, tropas do governo congolês

chocaram-se, em Kinshasa, com forças vinculadas ao candidato derrotado nas urnas (HUMAN

RIGHTS WATCH, 2017; BBC, 2017).

O governo congolês e milícias firmaram acordo de paz em janeiro de 2008, porém o mês

de agosto trouxe novos conflitos nas províncias Nord-Kivu e Sud-Kivu. É essencial notar que as

disputas na região contam com a participação central dos “Senhores da Guerra”. O caso de Gen

Laurent Nkunda encaixa-se perfeitamente nesse quesito na medida em que o ex-general tutsi,

supostamente sustentado pelo governo ruandês, financiou empreitadas e liderou grupos armados

no leste da RDC desde 2004 até outubro de 2008, antes de ser capturado em janeiro de 2009 em

uma operação comandada por Ruanda e RDC. Nkunda acusou o governo congolês de financiar as

tropas FDLR4 (BBC, 2017). Segundo o repórter Matthew Weaver (2009)5, Bosco Ntaganda

3 No caso da RDC, a prática do power-sharing consistiu na distribuição de poder entre as partes beligerantes. Dessa

forma, autoridades dos grupos rebeldes foram incorporadas ao corpo político e militar congolês como medida para

encerrar o conflito. As consequências imediatas dessa problemática consistem na ausência institucionalizada do

monopólio estatal referente à coerção doméstica e no fomento à instabilidade. 4 Forces Démocratiques de Liberation du Rwanda 5 Em artigo intitulado "Congo and Rwanda Forces Arrest Rebel Leader Laurent Nkunda" e publicado no The

Guardian, disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2009/jan/23/laurent-nkunda-congo-rwanda>.

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(comandante-maior de Nkunda) anunciou, no início de 2009, que suas forças trabalhariam em

conjunto com o exército congolês no combate a milícias hutus (FDLR) e que, possivelmente,

ocorreria uma fusão entre suas forças e as do Congo. Esse episódio torna evidente a frequente

troca de alianças entre governos, milícias locais e milícias estrangeiras, complexificando a

compreensão da formulação e da condução da política externa por parte do governo congolês.

Com a intenção de retirar suas tropas em poucos meses do território congolês, as Nações

Unidas determinaram que a MONUC permaneceria somente até meados de 2010. Especialistas

da própria ONU alegaram que a missão de paz em questão, que configurava como a maior das

Nações Unidas em todo o mundo com quase 20 mil soldados, não estava cumprindo seu papel

quanto à contenção dos grupos rebeldes (principalmente, em relação aos ataques e saques de

recursos naturais) e dos crimes contra civis (incluindo casos de violência sexual em massa contra

mulheres e crianças em agosto, que somente tornaram-se de conhecimento dos agentes 10 dias

após os ataques segundo a organização Human Rights Watch) (BBC, 2012). Ainda que sob

advertência do oficial John Holmes sobre uma partida prematura dos peacekeepers, o governo

congolês permaneceu pressionando a saída dos mesmos em meados de 2010, projetando uma

partida antes das eleições programadas para 2011. Em julho, o Banco Mundial e o FMI

aprovaram perdão da dívida congolesa no montante de US$ 8 bilhões e deu-se o início dos

preparos para as eleições do ano seguinte (BBC, 2017).

O ano de eleições presidencial e legislativa não demonstrou alívio algum no que se refere

ao ambiente doméstico. A União Europeia e os EUA contribuíram com volumosas doações para

os setores logístico e de segurança visando a consolidação de um Estado democrático mediante

eleições justas e apartadas de um processo burocrático corrupto e fraudulento. Ambos também

defendiam uma atuação mais dinâmica da MONUC no desenrolar da sucessão presidencial

(GAMBINO, 2008).

De acordo com a BBC (2011), a campanha tinha como palavras de ordem melhorias em

“infraestrutura, saúde e educação, recursos hídricos e elétricos, moradia e emprego”. Como

presumido, o lento desenvolvimento social do país foi considerado em seu discurso, sendo

utilizado como argumento para que a população desse uma segunda chance a Kabila. A

displicência dos governantes reflete-se nos indicadores sociais (gráfico 1). Classificado como um

país de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) desde sua independência, segundo o

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PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - (2017)6, apresentou média

anual de crescimento de -0,73% (1990 a 2000), +1,89% (2000 a 2010) e +1,79% (2010 a 2015),

gerando uma média geral (1990 a 2015) de apenas +0,81% de avanço enquanto o mesmo

indicador referente à África Sub-Saariana como um todo corresponde a +1,09% e, para o grupo

de países com baixo IDH, chega a +1,35%. Tais indicativos apontam as três dimensões do IDH:

saúde (“long and healthy life”), educação (“knowledge”) e renda (“a decent standard of living”).7

GRÁFICO 1: ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO - RDC (1990 A 2015)

Fonte: PNUD; Elaboração: BUENO, 2017

No que tange à reação da população, anos de descontentamento expressaram-se em

manifestações. A repreensão ocorreu de forma violenta por parte do governo mediante detenções

arbitrárias, uso de gás lacrimogênio, bombas e execuções, infringindo o direito de protestar

garantido pela Constituição. Consoante opositores de Kabila, alterações constitucionais em

janeiro de 2011 foram realizadas com o intuito de aumentar as chances do candidato. Em

novembro de 2011, ocorreram as eleições para presidente e primeiro-ministro. Kabila venceu

novamente com 48,95% dos votos em contraposição aos 32,33% do adversário Etienne

Tshisekedi. Diferentemente da disputa eleitoral de 2006, houve fortes suspeitas de fraude nesta

ocasião (G1, 2011).

6 Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/composite/trends>. 7 Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/content/human-development-index-hdi>.

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Mantendo a linha de análise relativa às transições de mandatos presidenciais e,

paralelamente, à sistemática repreensão contra levantes de opositores civis, o governo arquitetou,

já nos primeiros meses de 2015, propostas de mudança no regulamento eleitoral8, permitindo

uma terceira candidatura de Kabila e a continuidade do mesmo até a efetiva troca de governos.

Foi alegado, pelo Tribunal Constitucional da RDC, que obstruções nas finanças impediriam o

processo eleitoral no período adequado (BBC, 2016). Conforme o relatório do Ministério de

Relações Exteriores (2017), o governo congolês ainda alegou que houve adiamento das eleições

previstas para 2016 devido ao atraso na realização do censo demográfico nacional, à dificuldade

no registro eleitoral e, consequentemente, à realização das eleições nos níveis provincial e local.

O comportamento estacionado de Kabila na promoção de eleições democráticas incitou

consistente organização de integrantes da sociedade civil. Inclusive, em setembro de 2015, sete

partidos políticos - os chamados “G7” - tornaram-se desertores da base governista. Ademais,

Estados Unidos e União Europeia procederam com sanções contra o governo.

Em relatorias do secretariado da MONUSCO (Missão das Nações Unidas para a

Estabilização da República Democrática do Congo) publicadas de 2015 a 2017, consta que, desde

junho de 2015, o presidente vinha realizando uma série de consultas a investidores, líderes

religiosos e outros membros civis. No fim de novembro, comunicou formalmente o

estabelecimento de um “diálogo nacional” facilitado por mediação internacional, o qual

objetivava o consenso referente à organização do processo eleitoral. No mesmo documento,

relatou-se que opositores ao governo (composta pelo MLC e UNC na coalizão “Dynamique de

l’opposition”) negaram, no início de novembro de 2015, participar desse arranjo por

considerarem que já havia mecanismos proporcionados pela CENI (Commission Electorale

Nationale Indépendante) que seriam suficientes e, ao fim do mês, variados integrantes da

sociedade civil reforçaram que o referido diálogo era considerado, por eles, um obstáculo para o

cumprimento dos devidos prazos. O presidente de Union pour la démocratie et le progrès social

(UNPS) e candidato Etienne Tshisekedi salientou, em janeiro de 2016, a necessidade de não

permitir que Kabila concorresse a seu terceiro mandato. Em meados desse ano, a CENI focou

suas atividades na atualização do registro de votantes, demandando kits de tecnologia biométrica,

títulos de eleitores e outros suprimentos e, assim, progredindo na preparação para as eleições.

8 Stuart A. Reid (2017), em seu artigo "Congo’s Slide Into Chaos", observa que as repetidas manobras

administrativas tomadas pelo presidente relutante estão sendo conhecidas como glissement (des lize, lapso).

Disponível em: <https://www.foreignaffairs.com/articles/africa/2017-12-12/congos-slide-chaos>.

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Com a aproximação do término do mandato presidencial (oficialmente em 19 de

dezembro de 2016), o “diálogo nacional” proposto por Kabila concretizou-se em 18 de outubro

com a assinatura de um compromisso entre este e parte das forças de oposição (UNC),

deliberando sobre a efetivação das eleições até abril de 2018, a manutenção do aparato estatal da

época bem como a inserção de um primeiro-ministro de oposição. O acordo ocorreu com

mediação de União Africana (UA) e Conférence Episcopale Nationale du Congo (CENCO).

Em novembro, Augustin M. Ponyo foi substituído por Samy Badibanga, ao que membros

da oposição julgaram uma escolha inapropriada pois acreditavam que Tshisekedi deveria ocupar

o cargo. Tal acontecimento gerou um impasse entre as partes envolvidas, postergando as eleições

novamente. É fundamental a assinatura do Acordo de São Silvestre (31 de dezembro de 2016), o

qual reafirma o compromisso do presidente em não alterar o texto contitucional nem pleitear

novo mandato além de concluir as eleições-gerais no ano de 2017. A morte do líder opositor

Tshisekedi em janeiro de 2017 corroborou a contração dos protestos nas ruas e veio a atrasar

ações estatais em um governo resultante do mecanismo power-sharing.

A CENI notificou que haviam sido registrados, aproximadamente, 69,3% da população

eleitoral estimada até junho desse ano. Ainda que o processo de registro tenha sido concluído em

treze províncias em abril, os obstáculos específicos de locais como Kinshasa e as províncias

Kasaï e Kasaï Central tornam o trabalho mais lento. Dada a variedade de objetivos encontrada na

estratégia congolesa de formulação e condução de sua política externa, a MONUSCO tem

fornecido suporte em termos de manter bons oficiais; facilitar as relações entre o governo,

investidores nacionais, parceiros regionais e não-regionais; e providenciando apoio logístico,

propondo-se a garantir sucesso no exercício do acordo político por parte de cada componente

político. Em novembro de 2017, foi publicado o cronograma para eleições em dezembro de 2018.

(UNSC, 2017). Contudo, o clima de caos permanece reinando nas mais diversas zonas do país em

uma conjuntura de completa instabilidade doméstica que repercute na credibilidade interna e

internacional sobre a RDC.

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1.5 Os principais grupos rebeldes armados na atualidade

Esta etapa do trabalho consiste em uma apresentação panorâmica dos principais grupos

rebeldes armados presentes na RDC. Cabe ressaltar que o propósito deste estudo está voltado

para a compreensão da formulação e, essencialmente, da condução da política externa congolesa

em relação à durabilidade do estado de violência instalado com o fim da Guerra Mundial

Africana. Dessa forma, o enfoque é dado não sobre questões de segurança internacional, direitos

humanos nem sobre a MONUSCO em si, embora todos sejam fatores essenciais e não possam

estar alheios a esta análise.

Tendo em vista o cenário explanado anteriormente, recheado de lacunas estatais, o

preenchimento desses espaços pelos movimentos rebeldes é facilitado. Ademais, de acordo com

diversas fontes, as forças congolesas (FARDC) são amplamente conhecidas e caracterizadas por

uma atuação indisciplinada, ineficiente e corrupta, sendo fundamental a presença de forças

peacekeeping. Em concordância com relatórios do CSNU, é possível elencar como alguns dos

principais grupos presentes em território congolês nos últimos meses: M23 (Mouvement du 23

Mars), FDLR (Forces Démocratiques de Liberation du Rwanda), LRA (Lord’s Resistance

Army), ADF (Allied Democratic Forces) e a Milícia Kamwina Nsapu (MRE, 2017). Os atores

envolvidos situam-se em um caleidoscópio de forças nacionais (aparato governamental,

sociedade civil armada e partidos políticos) e externas ou internacionais (grupos rebeldes

originados de outros países, governos e investidores).

Todavia, faz-se primordial o desvio de determinações reducionistas haja vista a constante

troca dialética de alianças entre as dezenas de forças assim como o uso amplo de guerras proxy9,

gerando - simultaneamente e gradativamente - capilaridade mais eficaz dos grupos rebeldes e um

distanciamento, por parte do Estado, em relação ao exercício da coerção interna. Essa

descentralização resulta em aumento nas violações aos direitos humanos em massa, incluindo o

recrutamento de crianças-soldado e casos de violência sexual. As insurgências, anteriormente

concentradas no leste do país (províncias Ituri, Nord-Kivu e Sud-Kivu), desde 2017 expandiram-

se para a região centro-sul, atingindo as províncias Kasaï, Kasaï Central, Kasaï Oriental, Lomani

e Sankuru, e para a província à sudeste, Tanganyika (IOM, 2017; INRI, 2017).

9 O conceito refere-se à prática dos conflitos por procuração de determinadas forças centrais. O mecanismo proxy,

utilizado de maneira abrangente durante a GF por potências, continuou a ser empregado em guerras regionais.

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Dentre outros aspectos, o financiamento dos conflitos vale-se de rendimentos dos

governos patrocinadores (apresentando destaque sobre Yoweri Museveni e Paul Kagame,

respectivamente chefes de Estado de Uganda e de Ruanda), da receita fornecida por companhias

multinacionais, da exploração ilegal de recursos locais pelas próprias milícias e do tráfico de

pessoas.

2 ANÁLISE DA POLÍTICA EXTERNA CONGOLESA

2.1 Considerações sobre Política Externa em Failed States direcionadas à RDC

Embora seja muito comum encontrar a República Democrática do Congo referenciada

como um Estado falido, há controvérsias quanto ao uso do termo nesse caso. Em artigo para

Time (2016), Sasha Lezhnev contrapõe-se ao discurso tradicional de que a RDC seria um Failed

State.10 Ela defende que a RDC não entra nessa categoria, mas sim possui, inclusive e

principalmente em suas instituições, uma teia de relações diplomáticas, comerciais e militares

que utilizam-se de manobras políticas para manter regimes cleoptocráticos no poder. Como meio

de troca dessas relações estão os recursos congoleses ilegalmente extraídos. Estes financiam os

conflitos e - consequente - a violência extrema, a pauperização da população e outras violações

aos direitos humanos, utilizando o próprio aparato estatal e, portanto, privando as instituições

estatais de qualquer legitimidade perante a sociedade civil.

Por conseguinte e em concordância com a tese de Lezhenev, questiona-se como a

formulação da política externa do Estado frágil analisado é colocada em discursos e práticas

governamentais a nível internacional. Compreendendo, que o definhamento proposital da

democracia é constituinte do entendimento dos tomadores de decisão em questão, na próxima

seção deste estudo o foco pairará sobre a figura do líder, Joseph Kabila Kabange. Entende-se que

um elemento acentuadamente perceptível na condução da política externa congolesa desde o

período colonial é o papel dos líderes na continuidade dessa organização fundamentada na

corrupção e em constantes trocas de alianças.

10 O conceito "failed state" geralmente é traduzido para o português sob a denominação "Estado Falido". No entanto,

a palavra failed carrega uma carga semântica dificilmente expressa na versão traduzida. Por isso, é necessário sempre

atentar para o caráter multifatorial do termo.

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2.2 Posicionamento do governo Joseph Kabila no contexto das Nações Unidas

Analisando os discursos dos representantes da RDC em nove sessões da Assembleia

Geral da Organização das Nações Unidas e em diálogo com Hermann (1990), pretende-se

acompanhar as rupturas e continuidades na formulação e condução da política externa do país

elencando as problemáticas mais frequentemente abordadas. Admitindo que não apenas

modificações de regime podem ser motivadoras de descontinuidades em termos de Análise de

Política Externa, serão examinadas as falas de 2009 (64ª sessão) até a última sessão, em 2017

(72ª sessão). O critério dos temas elencados refere-se à frequência e ao tempo de fala sobre

determinado assunto.

Três anos após o início do primeiro governo democraticamente eleito em Congo-

Kinshasa, foi mencionada o choque externo da crise financeira de 2008 como fomentadora de

dificuldades para o estabelecimento da autoridade estatal congolesa. Assim, o representante

clama pela promoção de boas relações com vizinhos, parceiros bilaterais e multilaterais e outras

autoridades regionais tanto no início quanto no fim do discurso, além de questionar a efetividade

de mecanismos da ONU dada a conjuntura prevalecente em diversos países da África,

considerando a atuação dos mesmos insuficientes na prevenção de conflitos e estabilização em

termos de paz e segurança. Tais apontamentos foram realizados de forma transversal em todos os

discursos analisados, por vezes com ênfase nos países vizinhos, por vezes apelando para o senso

de justiça e responsabilidade, para o cumprimento do direito internacional e para as metas

colocadas pelo organismo (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, ODM). Nesse contexto,

em todas as vezes o representante incita a necessidade de revitalizar o sistema, incluindo nos

assentos permanentes do CSNU membros africanos. Também é contundente a crítica congolesa,

por vezes expressa pelos primeiros-ministros (Alexis T. Mwamba, em 2009, e Raymond

Tshibanda N'tungamulongo em 2015 e 2016), em relação à atuação de diversos corpos

envolvidos com o país, solicitando perseverantemente a solidariedade internacional como um

dever moral e única forma de atingir uma paz sustentável. Desde 2009, ocorre o apontamento do

impacto negativo de mudanças climáticas para a consolidação do desenvolvimento (democracia

robusta, paz e estabilidade). Ele também pontuou os esforços governamentais na preocupação

relativa à corrupção, segurança, impunidade e reivindica atenção e apoio da comunidade

internacional.

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Já no que tange a elementos de ruptura, faz-se evidente, a partir de 2013, a insatisfação de

policymakers congoleses quanto às atividades de alguns atores ao desaprovar o “egoísmo

persistente” de diversos Estados. Dessa forma, mudanças positivas na economia e no setor de

infra-estrutura assim como a crescente preocupação com desenvolvimento sustentável e a

presença de riqueza de recursos foram ganhando espaço no discurso até o ano de 2016,

demonstrando uma abertura a novas e diferentes oportunidades. Mudanças de objetivo também

ocorreram na promoção da imagem de um bom ambiente de negócios em constante

melhoramento (2014); na sugestão pela retirada de tropas da MONUSCO devido ao

fortalecimento da economia nacional (2015); ao explicitar o interesse em valorizar o capital

humano, conferindo especial atenção à educação, treinamento e às oportunidades de emprego de

mulheres e jovens (2016); e ao anunciar que aceitaria quaisquer assistências desde que baseadas

no diálogo, incisivamente ressaltando a importância do respeito pela soberania da RDC (2017).

Acredita-se que os pontos que acabaram de ser indicados expressam uma mudança na orientação

geral da RDC. Cabe aqui pontuar a significativa e crescente participação da China na economia

de diversos países africanos, o que - certamente - tem contribuído para tal alteração no

alinhamento e no entendimento geral, configurando como uma reestruturação dos modelos

mentais dos policymakers. O discurso de 2014 preocupa-se em abordar, quase que inteiramente,

três tópicos: terrorismo, a emergência do vírus Ebola e ataques em diversas partes do globo. De

acordo com esse texto, Kabila expõe como objetivo eliminar as forças negativas do território da

RDC aliando segurança e diplomacia em ações militares. Como foi visto em etapas anteriores

deste estudo, considerando sucesso como um resultado desejável do ator (corpo estatal de Congo-

Kinshasa), é indiscutível o fato de que tal objetivo não foi alcançado em sua completude, talvez

muito brevemente e expresso em parcelas pouco significativas.

2.3 Estreitamento África-China: algumas motivações e implicações

Com o fim da Guerra Fria e o arrefecimento das relações entre potências nórdicas (EUA,

União Europeia e instituições como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e os países africanos, além da

identificação de diversas similaridades quanto entendimento geral sobre o contexto internacional

no elo China-África, houve uma reconfiguração na organização do sistema internacional guiada

pelo alinhamento entre a potência chinesa e diversos países africanos, dentre eles, a RDC.

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No que diz respeito aos recursos minerais, a concentração de uma enorme gama de

minérios cativa o interesse chinês (figura 1). Conforme o relatório World Economic Situation and

Prospects 2017, a China representa em torno de 50% do consumo global de uma lista de metais

(como alumínio, cobre, níquel e zinco). Simultaneamente, a exportação de cobre e de derivados

corresponde a 57% de sua pauta exportadora.

FIGURA 1: O CONGO: UM ESCÂNDALO GEOLÓGICO

Fonte: Radio France Internationale

De acordo com Visentini (2011), os polos dispunham de visões equivalentes em relação

ao histórico posicionamento paternalista dos países ocidentais, possuem um passado em comum

de exploração por parte dos europeus e almejavam relações comerciais e diplomáticas isentas de

questionamentos relativos às políticas domésticas e à soberania. Às vistas da política externa

chinesa, sua política de não-intervenção enquadraria-se, inclusive, ao papel que vinha sendo

desempenhado pela União Africana e sua visão decolonial. Para os governantes africanos, a

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presença de um aliado dotado de assento permanente no Conselho de Segurança da ONU

(posição que a RDC pleiteou nos discursos analisados neste estudo) fez-se extremamente atrativa,

dificultando o controle hegemônico por atores como Estados Unidos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar os diferentes níveis de mudança do governo congolês dentro do recorte

temporal proposto, percebe-se que a última década tem sido uma década de incrementais

mudanças de objetivo, direcionando a RDC à uma mudança de alinhamento em relação aos seus

parceiros atuais. Embora as mudanças em ação e discurso sejam dramáticas, esse

redirecionamento da política externa, no entanto, não consiste em um movimento instantâneo,

mas sim de um gradativo processo de alterações em níveis de ajustes, meios e problemas.

Talvez o principal da extensa disputa entre potências ocidentais (majoritariamente EUA e

países europeus) e orientais (URSS e, atualmente, China), muitos países africanos nunca

passaram por transições de governo pacíficas, como é o caso da RDC. Nesse sentido, as

constantes trocas de alianças – em nível doméstico – e a intensificação de relações com a

República Popular da China – no nível internacional - evidenciam a preponderância dos campos

Cybernetics e Learning Approaches na experiência congolesa, dado o necessário (para fins dos

objetivos estatais) monitoramento contínuo de todo um conjunto de informações relativas ao

ambiente de ação estatal e, então, a reestruturação dos modelos mentais dos policymakers.

Considerando as áreas que contribuem para identificar mudanças expostas por Hermann,

dificilmente seria concebível argumentar que os definidores da política externa governamental de

Congo-Kinshasa realizam a tomada de decisão em função do apoio interno de setores da

sociedade civil e parlamentar, à exceção de determinadas forças rebeldes e de partidos políticos

de peso relevante. Portanto, assume-se que a fase Building na Authoritative Consensus for New

Options proposta pelo autor mencionado acima consiste em uma das principais e mais complexas

etapas para a política externa aqui analisada dada a multiplicidade de atores que compõem o

processo de tomada de decisão tanto na formulação quanto ao longo da condução das políticas,

muitas vezes ocasionando na consideração de políticas alternativas.

Contudo, não seria concebível deixar de mencionar estímulos externos (external actor

responses and other environmental stimuli) como fundamentais para a compreensão das relações

com os grupos rebeldes e da administração dos “minerais do conflito”. Conclui-se que, há

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décadas, a finalidade última dos governantes congoleses em cada um de seus passos reside na

administração do aparato estatal como um meio para sua própria perpetuação no poder mediante

políticas de Estado cleptocráticas, a despeito do fortalecimento das estruturas democráticas e da

legitimidade de tais governos.

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