2010 2 antropologia do cuidado [af]

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CENTRO UNIVERSITRIO LA SALLE Antropologia Filosfica

ANTROPOLOGIA DO CUIDADO[Breve Introduo Antropologia Filosfica na perspectiva do cuidado]

Prof. Dr. Lus Evandro Hinrichsen

Texto elaborado para a disciplina de Antropologia Filosfica [nos Cursos de Enfermagem, Filosofia e Teologia]

Canoas / 2010 2

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Certa vez, atravessando um rio, Cura viu um pedao de terra argilosa: cogitando, tomou um pedao e comeou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Jpiter. A Cura pediu-lhe que desse esprito forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a Cura quis, ento, dar seu nome ao que tinha dado forma, Jpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto Cura e Jpiter disputavam sobre o nome, surgiu tambm a Terra [Tellus] querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedao de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como rbitro. Saturno pronunciou a seguinte deciso, aparentemente, eqitativa: Tu, Jpiter, por teres dado o esprito, deves receber na morte o esprito E tu Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porm, foi a Cura quem primeiro o formou, Ele deve pertencer Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome h disputa, Ele deve se chamar homo, pois foi feito de hmus [terra]1.

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Cf. Ser e Tempo, I, 42 [Transcrio, por Heidegger, de fbula atribuda a Higino].

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ANTROPOLOGIA FILOSFICAA Antropologia na sua Histria

INTRODUOCompete Antropologia Filosfica a tarefa de enfrentar uma questo fundamental: o que o ser humano? Essa tarefa, deveras importante, revela-se bastante difcil, pois no apenas a resposta filosfica, mas, tambm, a prpria pergunta. E, considerando a tendncia vigente em nossa poca de responder todas as indagaes recorrendo aos recursos das cincias positivas, encontramos novo complicador. A pergunta da Antropologia Filosfica, bem como a resposta perseguida, implica numa abordagem distinta, diferenciada do enfoque particular das cincias positivas, atendendo s caractersticas do movimento reflexivo abrangente realizado pela Filosofia, visando,

especificamente, empreender busca de compreenso da essncia do fenmeno humano. A pergunta da Antropologia Filosfica, nascida outrora da admirao, entretanto, em nossos dias, estimulada por intensa inquietao diante das possibilidades e limites enfrentados pelo ser humano. Os desafios lanados pelas tecnologias, as questes ambientais, as desigualdades existentes no seio dos diversos pases ou entre eles, os processos de violncia em escala global, a pergunta pela possibilidade de um futuro, os divrcios existentes entre os saberes, a fragmentao da experincia humana cotidiana, a acelerao dos processos humanos, a automatizao crescente do nosso agir, tudo isso leva a pensar. A inquietao estimulando o esforo reflexivo nos pe no caminho da busca de sentido, de plausibilidade, nos prope em contexto novo, a pergunta pelo significado da existncia humana. preciso justificar terica e praxicamente nossa existncia, redescobrindo um horizonte de sentido que permita reabitar o mundo. Habitar significar, desenvolver sentimento de pertena, ter esperana em ns e naquilo que realizamos, redescobrindo a tarefa do cultivo e do cuidado do mundo. A pergunta da Antropologia Filosfica, enquanto pergunta aberta, no busca esgotar seu objeto, o que seria impossvel. Se as cincias positivas pretendem, muitas vezes, esquematicamente exaurir o objeto de sua anlise, isso invivel no exerccio filosfico. A atividade filosfica, eminentemente meditativa, exige esforo de renovada abertura ao fenmeno que se mostra. Essa abertura enquanto capacidade de acolhida do fenmeno supe, igualmente, a busca do logos (da razo ou essncia) daquilo que se mostra conscincia. Assim,

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a meditao filosfica, exerccio reflexivo exigente, torna-se busca de sntese reveladora de razes, sentido, significados. Nunca, como em nossa poca, tivemos tantas informaes, entrementes nunca soubemos to pouco sobre o ser humano. E, se conhecimento muito mais do que o simples acumulo de informaes, em conseqncia, preciso seriamente chegar ao momento da sntese atravs do exerccio filosfico. Somos, portanto, convidados a esse exerccio responsvel de explicitao compreensiva do logos da existncia humana. Pelo exposto assim pensamos legtima e necessria a presena da Antropologia Filosfica em nossos debates acadmicos, nos convidando ao contacto com a tradio filosfica, criticando conceitos, exigindo exerccio argumentativo, nos encaminhando na sempre nova tarefa de construo de snteses, de saber aberto e amplo sobre o ser humano, compreendido como pessoa e sujeito. Nessa perspectiva, investigaremos, como os antigos, medievais e renascentistas integrando humano, csmico e divino procuraram pensar a unidade da vida humana, com relativo xito, no obstante os desafios encontrados. Estudaremos o momento no qual, j na modernidade, se efetua a separao conceitual entre mente e corpo, procurando entender porque o ser que pensa (res cogitans) se desvincula da grande mquina do mundo (res extensa). Indagaremos sobre possibilidade de recuperao da perspectiva unitria da vida humana, relacionando tal preocupao, no obstante os desafios envolvidos no risco do pensar, com as nossas existncias, estudos, prticas e esperanas. Iniciaremos essa intransfervel tarefa do pensamento examinando o fenmeno da cultura, estudando as vises de ser humano existentes nas propostas de Plato, Aristteles, Hipcrates, Agostinho, Toms de Aquino, Descartes e Martin Heidegger. Identificaremos, nesse estudo, aproximaes, distanciamentos, constantes conceituais, importantes contribuies testemunhadas por esses filsofos nos seus textos. Pretendemos, em conseqncia de nossa atividade investigativa, explicitar as contribuies das antropologias compreenso do fenmeno da sade e doena, indicando mritos e limites. nossa aspirao, enfim, propor reflexo apta em recuperar a dimenso do cuidado e de estimular prticas cuidantes. Finalmente, compreendendo criteriosamente as vises de ser humano que, em nosso cotidiano, espontaneamente aceitamos e compartilhamos, obteremos elementos reviso conceitual, caminhando na direo de sntese responsvel, tarefa que somos convocados a realizar.

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1 O HOMEM, UM SER-DE-CULTURAO ser humano, enquanto ser-a-no-mundo, um ser-de-cultura. Ao largo da histria humana, em todas as regies habitadas pelo homem, encontramos sinais da cultura. A cultura aquilo que nos constitui, une e diferencia como seres humanos. O que a cultura? Essa uma das questes mais importantes e mais difceis de responder. No entanto, considerando os desafios de nosso estudo, buscaremos descrever os elementos constitutivos desse fenmeno, a cultura. Cultura, numa definio primeira, toda ao consciente realizada pelo homem sobre a natureza alheia, que resulta na transformao de sua prpria natureza. Noespecializado, plstico, o homem, atravs do trabalho, precisa cultivar o meio-ambiente, obtendo, assim, sua sobrevivncia. Atravs do trabalho, empreendimento social e consciente, o ser humano ao humanizar a natureza externa cria sua prpria natureza. Ser gregrio, portador de inusitada capacidade comunicativa, o homem pode antecipar o resultado de suas aes e, por conseguinte, cultivando e transformando a natureza, adquire uma segunda natureza, a cultura. Enquanto os animais obtm imediata ou diretamente na natureza a satisfao de suas necessidades, o homem, equipado para a compensao cultural, precisa trabalhar, cultivar o meio ambiente, necessita mold-lo s suas necessidades e, qui, s suas capacidades. O comportamento pr-programado dos animais, sua especializao assegura um grau de eficincia muito grande. J o homem, esse animal diferenciado, frgil ao nascer, somente consegue sobreviver atravs da compensao cultural. A fragilidade inicial do ser humano, seu nascimento precoce, sua plasticidade, permite que ele seja moldado pela cultura, essa segunda natureza adquirida. Ao redor do primeiro ano de vida, tendo realizado aprendizado significativo, capaz de andar, falar, manipular objetos, alcanando grau mnimo de autonomia que outros animais possuem logo aps o nascimento2. Nessa perspectiva, Ernst Cassirer3 afirma: o homem, mais que um animal racional, um animal simblico, sendo a capacidade de nomear as coisas, a base arquitetnica da cultura. O bilogo alemo Uexkll considerava que todos os organismos vivos, nicos no modo de relao com o ambiente natural, so portadores de um crculo funcional. Todo crculo funcional composto por um sistema de recepo de estmulos e de reao aos mesmos. O homem, segundo Cassirer, teria alterado no apenas quantitativamente o seu crculo funcional, mas, tambm, qualitativamente, pois entre a recepo do estmulo e a2

Cf. RABUSKE, Edvino. Antropologia Filosfica. Porto Alegre: EST, 1981. p. 22-37. Rabuske denomina o homem animal extraordinrio. No primeiro captulo de seu livro, tendo investigado as diferenas existentes entre o homem e outros animais, na anatomia, fisiologia e comportamento, argumenta em favor da tese da compensao cultural. 3 CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosfica. So Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 47-95.

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resposta encontramos um complicador, ou seja, a reflexo. A reflexo seria possibilitada pela funo simblica ou linguagem. Contudo, outros animais no teriam chegado linguagem simblica? Somente o ser humano haveria qualificado seu crculo funcional, ao ponto de retardar ou, at, no responder ao estmulo externo? Segundo Cassirer, sim. Em primeiro lugar, porque o ser humano, alm da linguagem das emoes teria atingido o extrato da linguagem proposicional. A linguagem das emoes, compartilhada com outros animais, uma linguagem corporal caracterizada pela pantomima e pela emisso de sons aleatrios. J, a linguagem proposicional, prpria do ser humano, permite nomear as coisas e vivncias, significar o mundo. A linguagem proposicional existe na base de complexa classificao de sons, formando palavras, frases, discurso ordenado por regras fonticas, gramaticais e semnticas. Quando o ser humano fala, portanto, prope logicamente um contedo a ser decifrado mentalmente, capaz de ser objetivamente compartilhado. A linguagem proposicional vale-se de smbolos. Enquanto os sinais so fsicos, materiais e imediatos, os smbolos so funcionais, abstratos, universais e aplicveis a diversas coisas ou situaes. A capacidade de simbolizar, ou seja, de nomear o mundo, caracterizaria a linguagem humana. O exerccio da linguagem est na base da inteligncia terica, especificamente humana, pela qual, gratuitamente, o homem capaz de contemplar objetos, situando-os organizativamente no seu mundo. E, se inteligncia prtica, compartilhada com outros animais, permite solucionar problemas relacionados sobrevivncia, a inteligncia terica, possibilitada pela linguagem simblica, caracterizaria especificamente o homem. O homem, segundo Cassirer, j no viveria num mundo fsico, mas num mundo simblico, pois criou uma imaginao e inteligncia simblicas. Para comprovar sua tese, Cassirer relata-nos o caso de Helen Keller, baseando-se no dirio de sua professora, a senhora Sullivan. Helen Keller, menina extremamente

inteligente, era cega e surda. Isolada na escurido de seus dias, atravs de tcnicas especiais teria aprendido com sua mestra o alfabeto manual que, at o caso que ser relatado, utilizava mecanicamente. Numa manh, enquanto se lavava, revela Sullivan, Helen quis saber o nome correspondente gua (water). A professora, tendo soletrado -g-u-a, conta, no teria pensado mais no assunto. Aps o caf foram casa da bomba onde Sullivan soletrou na mo de Helen enquanto a gua lhe escorria sobre a mo a palavra gua. Inesperadamente a menina associou a palavra ao objeto, tendo aprendido que todas as coisas tm um nome. A partir daquele momento perguntava o nome de todas as coisas, tendo adquirido rapidamente um grande vocabulrio. Helen, de fato, atualizou a funo simblica, aprendeu a comunicar-se, ingressando, assim, no mundo da cultura. Seu rosto, iluminado pelas descobertas realizadas naqueles dias, gradativamente, segundo Sullivan, se tornava mais humano, mais expressivo. Helen, aps aprender braile, tendo realizado

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estudos preliminares, cursou universidade, escreveu livros e, inclusive, aprendeu falar, utilizando os rgos fonadores, mesmo que no pudesse escutar as palavras proferidas. A linguagem ou funo simblica um equipamento da mente humana que permite sofisticada comunicao, organizao simblica do espao vital, estando na base da cultura. Essa capacidade atualizada pela aprendizagem de uma determinada lngua, atravs da fala, pelo ingresso numa determinada cultura. O exemplo citado por Cassirer, pensamos, confirma a importncia da cultura na constituio do humano, enquanto essa segunda natureza adquirida. Para Montagu4 so trs os critrios pelos quais se reconhece a cultura: I - precisa ser inventada, II - precisa ser transmitida de uma gerao para outra, III - precisa ser perpetuada na sua forma original ou modificada. Esse processo de criar, transmitir e manter o passado no presente, que caracteriza a cultura, vincula o homem, no apenas ao espao, mas ao tempo. A cultura, prosseguindo, a criao conjunta do indivduo e da sociedade, que interagem reciprocamente, para se servirem, manterem, sustentarem e se desenvolverem um e outro. Disso decorre ser a cultura um complexo de configuraes mentais que, em forma de produtos do comportamento e produtos materiais, constitui o modo principal do homem se adaptar ao meio total, controlando-o, mudando-o, transmitindo e perpetuando os modos acumulados de realiz-lo. A cultura na qual uma pessoa nasceu5 engloba sua herana social. Em conseqncia, a interao entre a herana biolgica e a herana social constitui, de fato, sua hereditariedade. No h hereditariedade sem interao entre o equipamento biolgico e psiquco de possibilidades da pessoa e o entorno onde ele se desenvolve. A natureza humana no a que nasce com ele, seno o que ele vem a ser sob a influncia organizadora do ambiente socializador no qual nasceu. Assim, a natureza humana resultado da interao das possibilidades biolgicas com os fatores culturalizantes que operam sobre elas, singularizando cada indivduo. principalmente atravs do meio cultural que o indivduo se torna pessoa. A criana, sendo amada e cuidada e tendo aprendido amar e cuidar, tornada adulta, no decorrer das geraes contribui para o acontecimento desse processo que nos une e faz singulares como indivduos e espcie, a cultura. A Cultura, na sua unidade e multiplicidade, configura, possibilita e realiza o humano. Seja nas culturas tribais ou primais, nas culturas nacionais, nas subculturas, nos processos de troca cultural, a cultura possibilita, une e divide os seres humanos. Tendo compreendido que no existem culturas superiores, mas culturas diferentes, conveniente perguntar pelo fenmeno da globalizao e da mundializao. Num mundo cada vez mais interligado, trocas culturais, convivncia com diferentes tradies convidam a refletir sobre o tema da4 5

MONAGU, Ashley. Introduo antropologia. So Paulo: Cultrix, 1977. p. 131. MONTAGU, 1977, p. 135.

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pluralidade e da identidade cultural. Como construir uma identidade na base de uma pluralidade que no seja a mera justaposio de elementos culturais? Mas, seja resultado de uma sntese construda sobre o respeito ao distinto, ao outro cultural? Como pensar, nesse processo, a relao entre o local, o regional e o mundial? Como instituir uma convivncia baseada no dilogo intercultural? Dilogo que busque elementos de racionalidade transcultural? Que seja capaz de gerar atitude de respeito e prticas promotoras da vida? Segundo Jean Ladrire6 compete cultura duas tarefas bsicas: enraizamento e finalidades. O senso de pertena ou enraizamento permite sentir-me em casa no mundo, j o sentimento de esperana revela crena no futuro, explicitando as finalidades do meu existir. Em nossos dias, predomina um sentimento de deslocamento e de falta de expectativas. Num mundo onde os processos tecnolgicos aceleram a vida humana, exercendo impacto nunca antes visto sobre as culturas; num mundo onde no sabemos o que fazer com todas as possibilidades que as tecnologias nos oferecem; num mundo social e ambientalmente ferido, a pergunta pelo sentido da cultura inevitvel. Torna-se, portanto, premente o dilogo intercultural, a busca de razes que aproximem os seres humanos, razes capazes de questionar a razo instrumental ou tecnolgica, aproximando pessoas, gerando nova identidade baseada na responsabilidade planetria e capaz de, novamente, permitir o sentimento de pertena e de futuro. As concepes sobre sade e doena esto ancoradas numa viso do ser humano e, antes de serem pensadas filosfica e criticamente, so admitidas segundo nossa pertena cultural. E nem sempre nos damos conta disso. Nessa perspectiva, assim pensamos, salutar questionar nossos pressupostos, refletir sobre nossas crenas, inclusive, sobre nossas crenas cientficas. O exerccio filosfico, enquanto reflexo segunda, enquanto recuperao reflexiva e crtica de nossos prse realizado com autenticidade permite tomar distncia e perguntar, possibilitando ento melhor compreenso daquilo que somos, fazemos e acreditamos. Afinal, sendo seres dotados de uma poderosa autoconscincia e capazes de refletir diante das indecises e crises de nosso tempo somos convidados a rever nossos conceitos e prticas considerando o cuidado, tarefa e modo de ser dos humanos, esses animais culturais. Nessa

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LADRIRE apud RABUSKE, 1981, p. 44 afirma Poderamos tomar o termo cultura em sentido muito amplo que lhe d a antropologia cultural: tratar-se-ia, ento, do conjunto das instituies, consideradas ao mesmo tempo em seu aspecto funcional e em seu aspecto normativo, nas quais se exprime certa totalidade social e que representam, para os indivduos pertencentes a essa totalidade, o quadro de referncias que modela a personalidade, prescrevendo-lhe suas possibilidades e, de certa forma, traa de antemo, o esquema de sua vida no qual poder inserir sua existncia concreta e pelo qual poder tomar uma forma efetiva. A cultura, desse ponto de vista, no outra coisa seno a sociedade mesma, tomada em sua realidade objetiva, enquanto impe aos indivduos que dela fazem parte certo estilo de existncia [...].

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direo, julgamos oportuno sublinhar: os problemas de nosso tempo tambm so conceituais, pois encontram sua origem em nosso modo de conceber e perceber o mundo.

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2 CONCEPO CLSSICA DO SER HUMANO7A concepo clssica do ser humano foi elaborada, em seus fundamentos bsicos8, pelos filsofos gregos, herdeiros de rica mitologia9, sejam os fsicos (pr-socrticos)10 ou Plato e Aristteles, eminentes herdeiros de Scrates que, estimulados pelos desafios propostos pelos sofistas, formularam as primeiras teorias filosficas abrangentes sobre o ser humano. Teorias plenamente atuais, presentes em todos os perodos da histria pela agudeza de suas descobertas, originalidade das postulaes e permanncia das indagaes formuladas. Indagaes que suscitam e exigem nosso esforo reflexivo.

2.1 Anank11, Logos12 e Hybris13

O termo clssico procura explicitar o movimento no qual se misturam as diversas contribuies que definem as razes culturais do Ocidente. Esse perodo inicia no sculo VIII, tempos homricos, e se estende ao ocaso do Imprio Romano, at o incio da expanso do cristianismo. No perodo clssico ou greco-romano, se mesclam trs heranas, fundamentos da ocidentalidade, ou seja, a herana terica dos helnicos, a herana prtica dos romanos e a herana tica dos semitas (hebreus) legada atravs do cristianismo. Na Idade Mdia, essas trs contribuies se combinaram criativamente, incluindo elementos da tradio dos povos brbaros. A tradio grega procurou compreender o Ser Humano em duas perspectivas: como Zoon Logikn animal que fala e discorre e, tambm, como Zoon Politikn animal poltico. As duas definies esto em perfeita conexo. A vida poltica Bios Politiks a vida humana por excelncia, exercida pela livre submisso ao logos razo que se manifesta no discurso, codificada por leis justas. O Anthropos revela o logos em duas dimenses de sua existncia:

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Valorizaremos, no presente estudo, a contribuio de LIMA VAZ, Henrique Cludio (Antropologia Filosfica. So Paulo: Loyola, 1991. v. I), observando sua abordagem cronolgica, histrica e filosfica, buscando orientao em suas chaves interpretativas. 8 Entretanto, importante lembrar a releitura do pensamento grego realizado no perodo helenstico pelos pensadores de lngua latina, como Ccero, ou pelos pensadores de lngua grega, como Epicuro. O perodo clssico, pensamos, prolonga-se at a implantao progressiva da cultura latina pelos romanos nos territrios incorporados ao seu imprio, constituindo, desse modo, a base da ocidentalidade nascente. Considerando a brevidade de nosso estudo, no investigaremos as antropologias desse perodo. 9 A mitologia grega rene rica compreenso sobre o ser humano, instigadora e atual, sintetizada por Hesodo e Homero, mas presente nos trgicos gregos, como Sfocles, Eurpedes e Esquilo. 10 Denominamos Filsofos Fsicos aqueles que se preocuparam em desvendar a Physis natureza bsica de todas as coisas. Tambm so chamados de pr-socrticos, pois sua temtica ligada natureza e seus processos, precedeu os problemas e temas inaugurados por Scrates, ocupado com assuntos ligados ao cuidado da alma, com questes de cunho antropolgico. 11 Necessidade Csmica. 12 Por Logos entendemos: palavra, discurso, tratado, razo. Razo a significao corrente quando, por exemplo, opomos mito e logos, eros e logos. 13 Orgulho desmedido que leva o ser humano a confrontar os deuses, moira e anank.

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na Theoria14, buscando contemplar racionalmente a vida; o kosmos, na prxis, ou seja, no agir moral e poltico. Desse modo, o exerccio da theoria nasce vinculado ao exerccio poltico, comprometido com a vida tica. Desde a tradio mitolgica helnica, encontramos o anthropos situado entre o mundo dos thanato mortais e o mundo dos imortais, theo, deuses15. Os seres humanos no so imortais, mas, tendem buscar a imortalidade. Disto resulta tensa situao na sua existncia. Os deuses so imortais, felizes e bem-aventurados; j os seres humanos oscilam entre a felicidade e a infelicidade; nada para eles estvel. No entanto, portadores da hybris orgulho so capazes de desafiar os imortais. A resposta dos deuses a inevitabilidade da moira. possvel lutar contra kronos (tempo)? Nos relatos mitolgicos, o destino trgico reservado aos mortais e queles que os auxiliam na saga, algo impressionante. Prometeu doa o fogo aos homens e, tanto os homens, como Prometeu so castigados16. Vale a pena ler Prometeu acorrentado de squilo, em que o teatrlogo grego transforma em tragdia o relato de Hesodo sobre a saga de Prometeu. Nessa perspectiva, considerando, por exemplo, a tragdia dipo Rei, pode dipo lutar contra seu destino? Em conseqncia, pode o ser humano desafiar o inevitvel, aquilo que est predito pelos deuses e pelo orculo?

2.2 Os Filsofos Fsicos, a Razo e o KosmosOs fisiologo filosofaram desde o trauma causado pela ordem e beleza do kosmos, ao qual, o ser humano precisa conformar-se. O kosmos, sendo eterno, expresso da Physis primeiro princpio do qual todas as coisas estariam constitudas. Compreender a natureza de todas as coisas e conformar-se a essa natureza pela adeso realizada pelo logos fez surgir, desde o sculo VI, com Tales, o ideal da vida teortica (theoretiks bios). O ser humano parte integrante desta realidade fundamental, ele tambm Physis. Tudo se resolve nela, inclusive o sentido da vida humana, seja terica, tcnica ou tica.14 15

Por Theoria entendemos a contemplao racional da realidade: csmica, pessoal ou transcendente. Eis um breve resumo (cf. BECKER. Pequena Histria da Civilizao Ocidental. So Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 98-108) da saga narrada por Hesodo que culmina no aparecimento do homem: No comeo tudo se achava em estado de caos. Da unio de Caos com Gea (A Terra) nasceram Urano (o Cu) e Ponto (o Mar). De Gea e Urano nasceram os poderosos Tits (Gigantes) e Ciclopes. Temendo que os filhos lhe tirassem o poder, Urano encerrou-os num abismo, sob a Terra, mas um deles Cronos (o Tempo) os libertou, destronou o Pai e se tornou o dono do mundo. Cronos, por sua vez, foi destronado por seu filho Zeus. Este lutou contra os Tits, vence-os e se converteu no indiscutvel soberano do universo, ao qual d harmonia e paz. O primeiro homem Epimeu foi feito de argila pelo Tit Prometeu. Para dar-lhe a vida, Prometeu teve a audcia de roubar o fogo do cu. Zeus se enfureceu e o castigou, acorrentando-o a uma rocha, onde todos os dias uma guia (ou um abutre) lhe roa o fgado. Zeus castigou os homens por meio de Pandora (forjada por Hefestos), qual entregou uma caixa misteriosa, que nunca deveria ser aberta. Pandora, muito curiosa, abriu a caixa: dela voaram imediatamente, todos os males, desgraas e sofrimentos que perseguem os homens. No fundo da caixa, porm, ficou a esperana. A tragdia de Prometeu a tragdia do ser humano que desafia, do mesmo modo, o poder dos deuses, o destino. interessante comparar o mito atribudo a Hesodo com a releitura realizada por Plato no seu dilogo Protgoras, em que Plato nos apresenta um Zeus compassivo e que ampara os seres humanos. 16 Vide anexo 1, a releitura do Mito de Prometeu por Plato no dilogo Protgoras, 320c-322d.

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Para tales, por exemplo, a gua seria o primeiro princpio material do qual se originariam e ao qual retornariam todas as coisas17. O proto-elemento gua, atravs dos movimentos de rarefao e condensao, se transformaria constantemente em tudo aquilo que , seja humano, csmico ou divino. A natureza oculta e fundamental de tudo aquilo que , em conseqncia, chamamos gua. A gua, em concluso, a Physis ou natureza em sua expresso fundamental e primria. O importante, na teoria de Tales, no tanto sua resposta, mas o modo de perguntar e formular a resposta, privilegiando a observao e a argumentao em favor da tese18. Destacamos que o proto-elemento material gua divino e bsico constitui todas as coisas na sua diversidade, sendo necessrio um esforo de razo para descobrir a unidade que sustenta todos os mltiplos fenmenos percebidos.

2.3 A nova Aret19 e ScratesCom o surgimento da democracia na polis20 ateniense, o antigo conceito de virtude, centrada na vida guerreira, na busca da imitao do heri belo e bom, foi substitudo pelo modelo do legislador poltico, caso de Slon. Protgoras (sec. V a.C), o Grande Sofista, afirmar que o ser humano a medida de todas as coisas, das que so enquanto so e das que no so enquanto no so. Baseado numa teoria sensualista do conhecimento, as coisas so como nos parecem; funda concepo subjetivista da verdade. A tarefa do legislador poltico seria buscar, pelo consenso obtido atravs do embate na gora21, o relativo mais til para a cidade. Scrates (470/469 a.C. 399 a. C.), pelo seu magistrio, nos mostra que a razo o olho da alma e, conseqentemente, somente atravs da reflexo pode o ser humano conhecer a si mesmo. Inaugura o cuidado para com a alma. Quem seria o filsofo? Um parteiro de almas que,

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Segundo Tales (cf. KIRK, G.S.; RAVEN, J.E.; SCHOFIELF, M. Os Filsofos pr-socrticos. 4. ed. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. p. 86-87), a gua o princpio (arch) de todas as coisas, pois as aparncias sensveis o conduziram a essa concluso; porque aquilo que morto seca, e todos os germes so midos, e todo alimento cheio de suco; ora natural que toda coisa se alimente daquilo de que provm. Tales aduz argumentos em favor de sua tese: a gua o primeiro princpio de todas as coisas. Na mitologia de Hesodo, de fato, j encontramos certa ordenao, pois primeiro criado o cosmo, depois so criados os deuses e, finalmente, o ser humano. Contudo, em Tales verificamos clara afirmao, a partir de observao emprica, da existncia de um primeiro princpio material de onde surgem e para onde retornam todas as coisas. Se a mitologia ainda fortemente presente na formulao de Tales, observemos o apelo mtico gua, entretanto, o Pai da Filosofia procura argumentar em favor da sua tese. E nesse esforo argumentativo encontramos o atestado de nascimento da Filosofia. 18 Tales vai alm das aparncias, ultrapassa a percepo sensvel, constatando que para alm do mltiplo se encontra a unidade fundante de todas as coisas. Tales dirige sua ateno, atravs do esforo da razo, essncia dos fenmenos. Nisso consiste a originalidade do seu perguntar e a novidade da sua argumentao em favor da resposta encontrada. 19 Virtude ou Excelncia. 20 Ou Cidade-Estado. A cidade-estado compreendia uma etnia (ou nao) habitando uma unidade geogrfica delimitada e pouco extensa, vivendo numa comunidade poltica organizada. 21 gora ou Praa Pblica, onde eram discutidas as questes da cidade, sejam de ordem executiva, legislativa ou judiciria.

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atravs de perguntas, levaria o interlocutor a duvidar de suas concepes aparentes para, num segundo momento, descobrir a verdade oculta habitando sua interioridade. O mtodo socrtico parte da premissa de que a verdade mora na alma, necessitando ser parturiada pelo processo dialgico ou maiutico22. H, portanto, um fundamento objetivo que poder orientar o homem virtuoso na sua vida individual e pblica. O aforismo, somente sei que nada sei condio para pesquisar e, pesquisando encontrar na alma, l na regio da interioridade, o divino esquecido. Atravs do parto dos conceitos, poderemos vencer a ignorncia que nos impossibilita agir conforme o bem. O anthropos, agindo conforme a verdade e o bem, alcanaria a eudaimnia (vida feliz). A vida feliz depende da superao da ignorncia, sendo condio da eupraxia (do agir bem). Scrates, tendo sido grande educador e contestador de polticos, artesos e poetas que na sua prepotncia e vida de aparncias se proclamavam sbios morre em 399, aps julgamento viciado, acusado de introduzir novos deuses e corromper os jovens. No reconhecendo culpa, recusa defesa. Na Apologia de Scrates, dilogo escrito por Plato, encontramos justificativa para sua atitude. De fato, Scrates morre pelo direito de filosofar, pela necessidade de respeitar suas convices. Seu jeito de obedecer um jeito de contestar, afinal, no foge e nem comuta a pena por exlio. Morre porque no aceita concesses e questiona os polticos de seu tempo at o fim. Morre sereno porque no desrespeitou os deuses, ao contrrio, honrou-os pelo seu magistrio de filsofo com a doao da sua vida.22

Cf. PLATO, Teeteto (148-151), sobre a maiutica: E no ouvistes, pois, dizer que sou filho de uma parteira muito hbil e sria, Fenareta? Sim, j ouvi dizer isso. E ouvistes tambm que me ocupo igualmente da mesma arte? Isso, no. Pois bem, deves saber que verdade [...] Reflete sobre a condio da parteira e compreenders mais facilmente o que quero dizer. Tu sabes que nenhuma delas assiste as parturientes quando ela mesma se encontra grvida ou parturiente, mas unicamente quando no se acha em estado de dar a luz [...] E no natural e necessrio que as mulheres grvidas so mais bem auscultadas pelas parteiras que por outras? Certamente. E as parteiras tm tambm remdio e podem, por meio de cantilenas, excitar os esforos do parto e faz-los, se quiserem, mais suaves, e aliviar as que tm um parto muito laborioso, e fazer abortar quando sobrevm um aborto prematuro? Assim o , efetivamente. Ora bem, toda a minha arte de obstetra semelhante a essa, mas difere enquanto se aplica aos homens e no s mulheres, e relaciona-se com as suas almas parturientes e no com os corpos. Sobretudo, na nossa arte h a seguinte particularidade: que se pode averiguar por todo meio se o pensamento do jovem vai dar luz a algo de fantstico e falso, ou de genuno e verdadeiro. Pois acontece tambm a mim, como s parteiras: sou estril de sabedoria; e o que muitos tm reprovado em mim, que interrogo os outros, e depois no respondo nada a respeito de nada por falta de sabedoria, na verdade pode me ser censurado. E esta a causa: que Deus me obriga a agir como obstetra, porm veda-me dar luz. E eu, pois, no sou sbio, nem posso mostrar nenhuma descoberta minha, gerada por minha alma; mas os que me freqentam, a princpio (alguns tambm em tudo) ignorantes; mas depois, adquirindo familiaridade, como assistidos pelo deus (daimon), obtm proveito admiravelmente grande, como parece a eles prprios e aos outros. E, no obstante, manifesto que nada aprenderam comigo, mas encontraram, por si mesmos, muitas e belas coisas que j possuam [...] verdade que os meus familiares passam justamente pelo mesmo estado das parturientes, porque sentem as dores do parto e esto cheios de angstia, dia e noite, ainda maiores do que as daquelas. Essas dores a minha arte as pode provocar e fazer cessar [...] Confia, ento, em mim, como filho de parteira e parteiro que sou; e s perguntas que eu te fizer, trata de responder da maneira que puderes. E se depois, examinando alguma das coisas que disseres, a julgar imaginria e no verdadeira, e por isso separ-la e a dissecar, no te ofendas, como fazem as primparas com seus filhinhos. Scrates, enquanto filsofo, parteiro de almas. Que parto realizam as almas? O parto da verdade (o exerccio maiutico), atravs da explicitao dos conceitos, segundo as perguntas sugeridas pelo filsofo. Ao contrrio do sofista, autointitulado sbio e capaz de ensinar a virtude e, sobretudo, os truques oratrios e legislativos, o filsofo amigo da Sabedoria nada ensina. Apenas orienta o interlocutor a encontrar em si mesmo, a verdade escondida na sua alma.

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2.4 Plato e a dialtica entre Eros (Desejo) e Logos (Razo)Plato (428/427 a.C 347 a. C.) legatrio de trs heranas que estaro presentes na articulao do seu pensamento sobre o anthropos. A primeira, encontramo-la na Filosofia dos fsicos; a segunda, nos sofistas seus adversrios e a terceira, em Scrates, seu mestre e inspirador. O fundador da academia movimenta-se no horizonte da Physis, descrevendo como Demiurgo23 o arquiteto divino formata o kosmos, inspirando-lhe alma e vida. Concebe o kosmos como ser vivente, formado na matria inerte por Demiurgo, segundo o mundo da Idias. Indica como o anthropos, vivente mortal, se relaciona com o kosmos, mostrando o lugar que esse ali ocupa. Tendo vivido num ambiente relativista, procura enunciar o sentido da existncia, considerando a vida excelente ou virtuosa. Sendo legtimo herdeiro de Scrates, discordar do conceito sofista de virtude. A virtude ou excelncia no se reduz a um conjunto de habilidades tcnicas adquiridas pelo aprendizado; ao invs, no definindo o que seja virtude, pensa-a como desejo do Bem, inclinao da alma para o Bem, enquanto disposio relativa dimenso tica. Pensa o ser humano a partir da interioridade, combatendo o sensualismo relativista dos sofistas24 e acentuando o carter finalstico da vida humana, que vida filosfica e tica. A antropologia platnica se apresenta como sntese das perspectivas anteriores, salientando o carter transcendente da vida humana. O homem percebe-se no tempo, enquanto organismo vivo que existe como soma (corpo animado), mas, escuta apelo distinto da presente existncia. Um apelo que o chama s alturas. Verificamos uma luta: o elemento divino combatendo o elemento terrenal25. Percebemos que o elemento divino26, em tenso com o

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Demiurgo seria o intermedirio entre o mundo das Idias e o mundo sensvel. Visitando o mundo sensvel viu que tudo era informe e, comovido e movido pelo Bem, molda o mundo tal qual um oleiro inspirando-lhe vida e forma, tendo como modelo o Mundo das Idias. Demiurgo o intermedirio entre o Mundo Espiritual, Reino do Uno-Bem, e o Mundo Sensvel ou Csmico, agora, aps sua ao, vivo e rtmico. A participao de ser e vida ao kosmos, pelo Uno-Bem possibilitada pela ao divina e amorosa de Demiurgo, doador de beleza e vida ao kosmos por Ele formatado. Hesodo, segundo a tradio mitolgica, narra o surgimento do kosmos mundo ordenado a partir das relaes entre as foras csmicas divinizadas (Terra, Oceano, Cu e Tempo). No Timeu de Plato, Demiurgo o arquiteto divino que ordena e forma um mundo vivo, onde tudo se encontra relacionado. 24 Segundo Plato discordando do relativismo sensualista de alguns sofistas, como Protgoras de Abdera para alm da experincia sensorial, existe o Mundo das Idias referncia objetiva reivindicada pela razo e critrio dos nossos julgamentos. Na Alegoria da Linha (cf. Livro VI da Repblica de Plato), conhecemos, em escala ascendente, primeiro as sombras dos objetos (Eikasa), depois os prprios objetos do mundo sensvel (Pstis); prosseguindo, pelo exerccio matemtico, discorremos sobre os nmeros (Dinoia) e, finalmente, somos capazes de intuir as Idias (Ness). O momento noemtico da intuio das idias nos envia para alm do mundo sensvel, para o mundo inteligvel. As idias, em sua imaterialidade e estabilidade constituem o critrio atravs do qual ajuizamos tanto, sobre coisas relativas, como sobre as coisas permanentes. As idias, perseguidas pelo esforo dialtico e intudas (conhecidas diretamente pela mente ou alma racional) so a garantia objetiva de nossa possibilidade de conhecer. 25 Cf. a Tradio do Orfismo: os seres humanos teriam sido formados por Zeus, das cinzas dos Tits. Os Tits haviam devorado Dionsio e foram castigados por Zeus que os reduziu a cinzas. Dionsio a divindade cultuada pelo Orfismo, ligada msica e aos cultos agrrios. No homem, o elemento divino estaria ligado a Dionsio e o terrenal, aos Tits. Plato reinterpreta a narrativa do Orfismo afirmando que o ser humano composto por essas duas naturezas, a divina ou dionisaca e terrenal ou titnica. 26 Tambm denominado de apolneo, em referncia ao Deus Apolo.

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elemento terrenal, exigir relativa ruptura com a presente existncia, vivida nas limitaes do espao e do tempo csmicos. Esta tenso expressa permanente e dialtica polaridade entre Eros e Logos27 em conflito construtivo. Digamos que a ordenao ao transcendente justifica, no vivente mortal, esta dicotomia entre a dimenso ertica e racional da vida e, considerando essa contradio, poderemos compreender o sentido da vida humana. Esta rica tenso est presente em vrios temas da antropologia platnica: o mito da pr-existncia da alma, o conhecimento compreendido como anamnsis28; a formulao do sentido catrtico do obrar filosfico, pois a filosofia no somente teoria, mas processo de vida e exerccio dialtico numa perspectiva tica29 e ontolgica30. Em Plato, a existncia vivida intensamente motivo do filosofar. Tal concepo poderemos verific-la no dilogo Banquete31. Ali, a tenso entre desejo e razo aparece nitidamente construda. O amor, enquanto impulso, conduz o sujeito humano autotranscendncia. Esta auto-transcendncia exige esforo da sensibilidade profunda e da razo, no sentido da superao de todo apego ao passageiro e relativo e conseqente ascenso dialtica origem de todo ser, de todo bem. O Belo-em-si, na relao com a Verdade e Justia, na Koinonia32 possibilitada pelo Uno-Bem o secreto e real objetivo perseguido pela inteligncia e vontade. Neste sentido, a razo orientando o desejo, nos conduz do amor aos corpos,

gradativamente, at a gerao intelectual das Idias. Esta contemplao da beleza das Idias prvia contemplao do Uno-Bem33 no mundo espiritual futuro. No dilogo A Repblica, diante do problema pedaggico da educao para a justia, Plato analisa as relaes entre a alma racional e irracional. Enquanto elemento divino no vivente mortal, alma racional compete governar o aspecto irracional da vida. O logos34 (razo), governando o aspecto irracional da existncia capaz de orientar os desejos segundo os fins

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Eros corresponderia dimenso terrenal da existncia e logos dimenso divina. Contudo, eros o responsvel pelo movimento de transcendncia realizado pelo homem, o vivente mortal. 28 Ou recordao. 29 Perspectiva ligada ao agir conforme a virtude e o bem. 30 Dimenso referida ao Ser e ao Bem, fundamento ltimo e no-definvel de todo o real, de toda ordem dos seres, sejam inteligveis (mundo das idias) ou sensveis (mundo sensvel ou cosmo). 31 Vide Anexo 2, Discurso de Scrates sobre o Amor. 32 Koinonia ou comunho nas diferenas. As distintas Idias (Vide Alegoria do Sol cf. VI Livro da Repblica), no Mundo Inteligvel, fundadas no Bem princpio ltimo do Ser do Conhecimento se comunicam e reivindicam e, sem nada perder de si, vivem em comunho. 33 O Uno-Bem o fundamento no definvel, tanto do Mundo Inteligvel, como do Mundo sensvel. Em todas as regies do real, inteligvel ou sensvel, tudo aquilo que , o em funo de sua participao, em graus diversos, no Uno-Bem. 34 Logos pode ser compreendido como palavra, discurso, razo, razo ordenadora, sentido racional. Aqui, logos a capacidade da alma racional em governar o desejo pelo comando da dimenso irascvel da vida. A alma concupiscvel diante de objetos externos que lhe causem prazer passiva, deseja e sofre o impacto desses objetos. A alma irascvel, responsvel pela defesa da vida, ao perceber o impacto dos objetos causadores do desejo prontamente reage. alma corporal esto reservadas duas tarefas: desejar (concupiscibilidade) e defender a vida corporal (irascibilidade). Ora, compete alma racional governar a alma corporal nos seus aspectos concupiscvel e irascvel. Logos, assim, essa capacidade da alma racional para coordenar a vida corporal, dando conta das exigncias de uma vida plena que se completa no exerccio contemplativo filosfico.

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ltimos da vida humana. Compete ao Racional (T Logistikn) comandar o Irascvel (T Thymoeids) e o Concupiscvel (T Epithymetikon). Quando a Razo comanda o Irascvel, esse, por sua vez, na defesa da vida, controla os apetites oriundos do Concupiscvel35. De tal resulta vida temperante, e vida temperante vida harmnica, equilibrada. Uma vida temperante possibilita psych reger sua existncia pelas Idias que, desde sua estabilidade e permanncia, doam ao kosmos e ao prprio anthropos beleza, ritmo, ser. Uma vida temperante tornando-se filosfica encaminha o vivente mortal ao divino. Por isso, o filsofo aquele que, conhecendo o todo, governando o irracional da vida, pode governar a cidade segundo a ordem da Verdade e do Bem. Em outras palavras. Ao princpio vivificante racional (alma racional) compete governar o corpo, sendo sua virtude denominada prudncia. Ao princpio vivificante irascvel (alma irascvel) compete proteger a vida, sendo sua virtude chamada coragem. Ao princpio vivificante concupiscvel (alma concupiscvel) compete nutrir e prolongar a vida do corpo, sendo sua virtude denominada temperana. Quando a razo governa o corpo, conclumos, existe harmonia, pois l onde reina a prudncia (virtude da alma racional) vigora a coragem (virtude da alma irascvel) e a temperana (virtude da alma concupiscvel). Contudo, nesse processo, o desejo quem move, Eros quem nos faz sair de ns mesmos. Mas, se eros sensual no pode governar o todo da vida, Eros Superior ou Divino quem permite transcender. Esse Eros Divino ou Filosfico, atendendo aos apelos do eros sensual e governando-o, permite que o processo de transcendncia36 acontea. Ento, j aqui, o vivente mortal supera as fronteiras csmicas da psych e alcana a viso antecipatria do divino. Na antropologia platnica, portanto, esto dialeticamente entrelaados o csmico, o humano e o divino. Resta explicitar pela vida filosfica - busca das Idias: do bem, da beleza, da verdade e da justia - este entrelaamento. E, como fica o dualismo platnico? Muitos insistem em sublinhar oposio entre a vida somtica e a vida psquica, entre o kosmos e o mundo da Idias, entre o sensvel e o inteligvel. No seria interessante rever esse pretenso dualismo existente na antropologia de Plato, considerando as ricas dimenses da existncia humana postas na tenso entre esses plos? Pensamos que sim. O anthropos e vive nessa condio de fronteira, a tenso entre logos e eros, temporal e eterno, contingente e necessrio. Essa tenso pela posio de fronteira no separao entre o psquico e o somtico. Essa tenso revela busca de interao entre esses plos constitutivos do humano. Situado entre o csmico e o divino, entre o temporal e o eterno,35

Plato (cf. Livro IV da Repblica), destacamos, prope sua concepo tripartite da alma. Compete alma racional (localizada na cabea) governar a alma corporal (situada, consoante s dimenses irascvel e concupiscvel, nas regies do trax e do abdmen). Desse modo, se compete alma corporal ou irracional defender a vida (alma irascvel ou dimenso irascvel da existncia humana) e nutri-la e perpetu-la (alma concupiscvel ou dimenso concupiscvel da existncia humana), cabe alma racional orientar esse processo pelo qual se prolonga a vida corporal no espao e no tempo. 36 De ascenso ao Mundo das Idias, ao Divino, de auto-superao da condio mortal, de divinizao pelo exerccio do filosofar.

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cabe ao anthropos, cidado de dois reinos, estabelecer a interao entre seus dois plos constitutivos. Lembremos ainda, no dilogo Timeu37, o ser humano pensado na conjugao entre alma e corpo. L, Plato no acentua a dicotomia alma versus corpo. Pensa o vivente mortal inserido na vida csmica. Se, no Banquete, como vimos, Eros causa de transcendncia orientado pelo logos (razo); no Timeu, Psych, inserida num cosmo vivo existe na condio corporal. E, na condio corporal, interagindo num cosmo vivo ao qual pertence, Psych se aperfeioa e vive. Lendo Plato na perspectiva da totalidade de seus dilogos, possvel, pois, ultrapassar essa primeira impresso de um dualismo fechado, no qual a vida humana nunca encontraria seu centro. Pelo contrrio, a dicotomia platnica busca de sntese, de centro, de estabilidade. A extensa e rica temtica antropolgica platnica iluminou os filsofos e telogos da patrstica, notadamente Santo Agostinho de Hipona e, hoje, nos alcana com sua riqueza e inmeras inquietaes e perguntas.

2.5 Aristteles: Eudaimnia como Justa Medida e o Crculo Terico-PrticoAristteles (384/383 a.C 322 a.C) considerado o primeiro a estabelecer,

sistematicamente, uma grande sntese filosfica. Seu esforou culminou na primeira sistematizao envolvendo todas as reas do conhecimento, coligidas e ordenadas atravs de discurso rigoroso, claro, cientfico e original. o que percebemos ao tomar contato com sua obra. O kosmos pensado numa perspectiva esferocntrica, desde a terra at o ltimo cu, coordenado pelo Primeiro Motor Imvel38. Neste mundo finito, organizado desde interao entre matria sensvel comum (princpio de individuao) e forma (princpio interno de determinao), hierarquicamente encontramos: 1. Os seres terrestres (sujeitos a corrupo substancial); 2. Os corpos celestes (eternos e executando o perfeito movimento circular); 3. O Primeiro motor Imvel (pensamento do pensamento, causa ltima do movimento, pois move-se a si mesmo; sua atividade pensante permite gozar eternamente da viso de si mesmo: colhida num nico ato de pensamento). Os seres terrestres, num mundo eterno e sem evoluo, perpetuam-se atravs da gerao. Neste mundo sublunar ou terrestre, encontramos os elementais (gua, ar, terra e fogo), os mistos, os inorgnicos, os vegetativos, os sensitivos e os seres racionais. O ser humano, portanto, um intermedirio entre os seres terrestres e Deus (O Primeiro Motor Imvel). Sua antropologia compreende o ser humano no horizonte da Physis. Mas, o anthropos no apenas uma coisa entre outras coisas, sujeitas ao fluxo do devir (vir-a-ser) universal, na37

O Timeu um dilogo da maturidade de Plato. Nesse dilogo, encontramos um tratado de cosmologia que compreende o cosmo como um grande ser vivente do qual o homem parte integrante. Desse modo, a alma racional na sua existncia csmica na condio corporal, faz parte desse universo vivo, interage e se aperfeioa nele. 38 Cf. Aristteles, Livro XII da Metafsica.

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permanente tenso entre ato (plenitude de ser) e potncia (virtualidade, capacidade para ser). O anthropos algum situado entre as coisas que sofrem movimento e Deus. Por isso, na sua antropologia, recorre tanto fsica de inspirao jnica quanto a teologia, acentuando o carter finalstico da vida humana. Nessa perspectiva, o pensamento aristotlico assumiu, na sua articulao, tanto o fisicismo dos jnicos como a perspectiva finalstica socrtica39. E, como excelente bilogo, percebemos a presena de elementos da medicina nascente40. O ser humano um ser csmico-terrestre (jnicos), cujo destino a felicidade atravs do cultivo das necessidades racionais da alma (Scrates), e que deve buscar equilbrio para sua vida corporal e mental (medicina grega). Quem o Anthropos para Aristteles? um Zon Logikn Politikn (Animal Racional e Poltico). O que isto significa? O ser humano substncia composta, dotado de corpo e alma, na linha da matria e da forma. Essa unio necessria. Estamos diante da compreenso hilemrfica41 transportada para a temtica antropolgica. Enquanto animal, o ser humano necessita prover suas carncias biolgicas referentes aos aspectos vegetativos e sensitivos da vida. Dotado de capacidades sensoriais, pode perceber o mundo exterior. Mas, alm dos sentidos externos e do sentido interno, o homem dotado de capacidades espirituais. Atravs do intelecto, pode ele conhecer a si mesmo e ao real que o circunda. E, como ser inteligente, o anthropos , sobretudo, um ser-de-linguagem. O especfico desse ser-de-linguagem o anmicoracional, do que resulta a capacidade de interpretar e julgar as impresses sensoriais recebidas. No ser humano h, conseqentemente, um saber sobre si mesmo, sobre as coisas, sobre o mundo. Um saber que sabe que sabe e expresso atravs da linguagem. Contudo, na polis42 que o ser humano atualiza sua humanidade. Nascemos potencialmente humanos e na cidade, pela convivncia, atualizamos nossa humanidade. No vivendo isolado, o animal racional reclama uma existncia social na qual atualizar suas capacidades. A Psych primeiramente o princpio vital que anima inteligentemente o corpo organizado. , tambm, estrutura inteligente ou Nous, que recebe passivamente os dados dos sentidos e, que, ativamente, interpreta esses dados. Como atividade, a psych a capacidade de formular conceitos, juzos e raciocnios (capacidade de conhecer), que aspira fazer teoria (contemplao da realidade). Como atividade, essa psych capaz de ter experincia (conhecimento no39

Aristteles, como Scrates, pensava que a felicidade, meta da vida humana, supe uma vida ativa e contemplativa, em que todas as capacidades humanas possam ser atualizadas ou realizadas. 40 Aristteles foi, certamente, influenciado por seu Pai que era mdico. 41 Teoria do Hilemorfismo Universal: todas as coisas estariam compostas de le (matria sensvel comum: princpio que singulariza a forma) e morf (forma: princpio interno que determina a matria sensvel comum). Estes princpios seriam inseparveis. Potencialmente, a matria sensvel comum conteria todas as formas possveis atualizveis pelo movimento. Quem coordenaria todos estes processos, no que diz respeito aos seres terrestres, seria o primeiro motor imvel ao atrair todos os entes ao ser, enquanto objeto de desejo, como, analogamente, um m faz com metais. 42 Cidade Estado - delimitada geogrfica e culturalmente o locus onde o ethos do indivduo e da cidade, acontece, se consolida e manifesta. Lugar da realizao da natureza do ser humano, onde a racionalidade se atualiza.

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cientfico), de desenvolver as cincias poticas (produtores dos bens necessrios vida humana), de realizar reflexo prtica (tica e poltica). Sobretudo, a psych capacidade de teorizar. Quando teoriza, a psych pergunta pelo particular (cincias terico-particulares) e pode indagar pelas causas ltimas ou primeiras do ser enquanto ser (Filosofia Primeira)43. A realizao mxima da vida terica do ser humano a contemplao da causa ltima da ordem do kosmos: Deus ou primeiro Motor Imvel. Quando teoriza, o ser humano capaz de realizar aquilo que prprio de Deus, ou seja, pensar a causa primeira, o Primeiro Motor Imvel, que ato puro ou pensamento do pensamento. O anthropos precisa de medida para a vida, e busca na deliberao racional, essa justa medida. Diante das paixes, a justa medida no se encontra no excesso ou na falta. O justo meio resulta da deliberao realizada pela razo prtica, respondendo em cada situao qual a medida da excelncia ou virtude. O sentimento do medo, por exemplo, despertado na situao de perigo, encontra na coragem, situada entre a covardia [excesso] e a temeridade [carncia], sua justa medida. Assim, as paixes orientadas pela mestes tornam-se virtudes. Das virtudes ticas [ou morais] at as virtudes dianoticas [ou tericas], progressivamente chegamos plena realizao da vida humana, partilhada na amizade filosfica, desinteressada e superior. J dizamos que na polis que o ser humano encontra lugar privilegiado para realizao da sua existncia. A polis a natural constituio de uma comum unidade de iguais, isto , de cidados, dotados de autonomia e capacidade de deliberao, capazes de acordar princpios e aes no sentido de assegurar a felicidade de seus membros. Crianas, mulheres, escravos e estrangeiros no realizariam plenamente a essncia humana, na medida em que no so capazes de deliberao, estando sob o cuidado dos cidados autnomos. A essncia do anthropos explicita-se neste crculo entre poltica e filosofia. O ser humano realiza sua essncia e feliz quando participa da vida poltica; distanciando-se da polis para fazer metafsica e, novamente, retornando vida da polis para fazer poltica. O envolvimento ativista44 na vida da polis to alienante quanto o distanciamento total realizado pelo erudito que se afasta da vida prtica. Nem uma coisa e nem outra. O ser humano, ao fazer poltica, deve, assim, distanciar-se da polis e fazer filosofia para, aps esse perodo de reviso, retornar ao convvio da polis a fim de, novamente, envolver-se nas questes prticas da cidade. Estamos diante do crculo terico-prtico de Aristteles. Nessa dialtica entre vida prtica e vida filosfica, o ser humano compreende a si mesmo e pode alcanar a felicidade45.43 44

Cf. Aristteles, Metafsica I 1,2. A ativa participao nas coisas da polis implica em reflexo e conscincia, o envolvimento ativista desconsidera tal exigncia. 45 Aprendemos com Aristteles (Metafsica I, 1-2), que a dimenso prxica da vida (ligada ao agir poltico e tico) deve orientar o exerccio tcnico (o fazer produtivo) e, tal, na direo da vida contemplativa ou filosfica. Aristteles busca o equilbrio entre a vida reflexiva e a vida prtica e terica, bastante inspirador. Sobretudo, em nossos dias, quando esquecemos a necessria interao entre a reflexo e s dimenses prxica e tcnica da vida, a contribuio do filho de Estagira precisa ser atualizada.

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Lembremos que o horizonte de Aristteles a Sabedoria, nico bem visado por causa de si mesmo e que pode assegurar o prazer mais duradouro pelo maior tempo possvel, ou seja, durante toda a vida. Bem que sendo a maior das medidas, pode dar adequao a todas as dimenses da existncia, assegurando ao seu portador prudncia e discernimento. Logo, se a felicidade tarefa de toda uma vida, coincide com a renovada busca da Sabedoria no itinerrio da vida humana46. Recordemos que a Sabedoria, virtude intelectual por excelncia, assim como a justia, a virtude moral mxima, no ser encontrada seja na falta (ignorncia) e ou no excesso (erudio vazia), mas na mestes. Vida de prudncia, baseada na busca da sabedoria, doa a serenidade que possibilita autonomia, mas, sobretudo, autarquia: sou senhor de mim mesmo e busco, na cidade, a vida boa com os outros47.

2.6 Hipcrates, a Arte Mdica e o Juramento em Defesa da VidaHipcrates (460 370 a. C.), considerado o fundador da medicina cientfica, foi chefe da Escola de Cs, tendo ensinado medicina em Atenas, onde Plato e Aristteles o nomearam paradigma do grande mdico48. O Corpus Hippocraticum49 importante legado ao desenvolvimento da arte mdica no Ocidente e portador dos fundamentos da medicina nascente. Na antigidade, a epilepsia era considerada um mal sagrado, por atriburem sua origem ao sobrenatural. Todavia, segundo Hipcrates, a epilepsia era reputada um mal sagrado, pois se apresenta como um fenmeno entorpecente e incompreensvel. Mas, se observarmos atentamente, existem outras doenas como, por exemplo, o sonambulismo reveladoras de caractersticas semelhantes s atribudas epilepsia. E, se a epilepsia no diferente dessas doenas, foi a ignorncia sobre as suas causas que levou a consider-la um mal sagrado. Desse modo, aqueles que pretendem cur-la com atos de magia so impostores, encontrando-se em contradio consigo mesmos, porque pretendem curar com prticas humanas males julgados divinos. Suas prticas, em conseqncia, so mpias e contrrias autntica devoo religiosa50. O arguto raciocnio de Hipcrates mostra compreenso sobre o estatuto do divino, sustentando a46

Para Aristteles, a Sabedoria o maior dos bens, sendo medida de todas as outras medidas. Quem alcana o bem maior - Sabedoria - possuir critrio capaz de mensurar todos os outros bens, orientando assim a vida na perspectiva da felicidade e da realizao plena da natureza humana, ou seja, a felicidade alcanada pela atualizao das nossas capacidades racionais e polticas. A vida boa compartilhada por iguais entre amigos que cultivam a Filosofia. Ento, quem possui o maior dos bens a sabedoria possui tambm a medida das medidas. 47 Pelo discernimento, eleio dos meios considerando os fins, deciso e ao, nos tornamos donos de nossos atos, somos autnomos. E, donos de nossos atos podem governar a ns mesmos exercendo a autarquia. A autarquia enquanto liberdade conquistada sobre as paixes tornadas virtudes pela deliberao e hbito configura o ideal aristotlico de vida superior ou racional qual estamos prometidos por nossa natureza racional. 48 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia Antiga. 3. ed. So Paulo: Paulus, 1990. v. I. p. 114. 49 Podemos, com relativa segurana, cf. Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, p. 114), atribuir a Hipcrates os seguintes tratados: A Medicina Antiga, O Mal Sagrado, O Prognstico, Sobre as guas, os Ventos e os Lugares, Epidemias, Aforismos e o clebre Juramento de Hipcrates. 50 Cf. REALE; ANTISERI, 1990, p. 115.

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impossibilidade de misturar o divino, de modo absurdo, com as causas das doenas. As causas das doenas devem ser encontradas numa nica e mesma dimenso, pois o corpo corruptvel de um homem no poderia ser contaminado por um deus, algo sagrado. Ademais, sendo os deuses bons, no podem ser a causa dos males que afligem os seres humanos51. Qual seria, ento, a causa da epilepsia? Para Hipcrates, decorreria de uma alterao no crebro racionalmente identificvel verificada nas modificaes provocadas pelas condies de salubridade, examinada a adio ou subtrao do seco e do mido, do quente e do frio. O mdico, sabendo determinar no homem, atravs do regime, o seco e o mido, o frio e o quente, pode, tambm, atravs de um bom tratamento curar esse mal52. No tratado sobre as guas, os ventos e os lugares, Hipcrates estabeleceu a correspondncia entre as doenas, o carter do homem e o ambiente. Nessa obra, encontramos duas teses subjacentes. O homem, em primeiro lugar, visto no conjunto em que se encontra inserido, consideradas todas as coordenadas constituintes do ambiente habitado: as estaes do ano, suas mudanas e influncias, os ventos tpicos de cada lugar, as guas caractersticas e suas propriedades, a topografia dos stios e o tipo de vida dos habitantes. Em segundo lugar, interessante fixar, o regime poltico tambm influenciaria na vida das pessoas, pois a democracia tempera o carter e a sade, ao passo que o despotismo produz efeitos opostos. Hipcrates pensava o ser humano integrativamente, observando as interaes com o ambiente, os processos de troca realizados pelo corpo e mente com seu entorno. Indagava como os alimentos, lqidos, ar e emoes eram processados, recebidos e devolvidos. Compreendia a sade e a doena como fenmenos ligados justa medida: existente, perdida ou recuperada atravs de dieta conveniente, considerado cada caso aps realizao de cuidadosa anamnese, preciso diagnstico e adequado prognstico. O patrono da medicina pensava sua prtica atravs da vinculao entre ethos e okos, entre carter e ambiente53.51 52

Cf. REALE; ANTISERI, 1999, p. 115-116. Ibidem, p. 116. 53 Hipcrates ensinou que a doutrina do equilbrio dos humores deveria ser adaptada a cada situao concreta, considerando cada indivduo e todos os fatores implicados. Sobre a doutrina dos humores, Ronan Colin (Histria ilustrada da cincia. Trad. Jorge Enas Fortes. So Paulo: Crculo do Livro, 1987. v. I. p. 99) esclarece: [...] Originalmente, como resultado de observaes, no havia dvida de que os corpos humano e animal continham vrios fluidos, como o sangue e a blis, que eram, obviamente, elementos importantes. De fato, algumas condies so acompanhadas de secreo de lqidos nariz escorrendo sintoma de resfriado na cabea, o vmito e a diarria so indcio de outras condies , e essas observaes reunidas ao conceito pitagrico de sade, como o efeito do equilbrio no corpo, conduziram elaborao da doutrina. Os quatro elementos de Empdocles (ar, fogo, terra e gua) tambm desempenharam um papel na verso de Hipcrates, e eram acompanhados das quatro qualidades: secura, umidade, calor e frio. Desse modo, pensava-se que o corpo humano continha quatro humores: sangue, blis negra, blis amarela e catarro. As quatro qualidades eram associadas a esses humores e, em pessoa saudvel, tudo estaria equilibrado; o excesso de uma ou duas delas conduziria a distrbio orgnico. Mais tarde, no sculo II d. C., o mdico Galeno ampliou essa doutrina e incluiu os quatro temperamentos, forma de classificar as pessoas em sangneas (calorosas e agradveis), fleumticas (calmas e apticas), melanclicas (tristes e deprimidas) e colricas (temperamento quente, explosivo). classificao que, com os quatro humores e qualidades hipocrticos, sobreviveu at a medicina do sculo XVII. Assim, doenas e febres desequilibrariam os humores e qualidades, mas o reconhecimento das vrias espcies era feito com todo o cuidado [...]. Se Hipcrates considerava importante a doutrina dos humores no diagnstico e prognose, no entanto, segundo Reale e Antiseri (1999, p. 117), esses fatores entram de modo muito variado e articulado na produo da doena e da sade, devendo ser interpretados multifatorialmente, pois, uma mesma coisa pode, ao mesmo tempo, ser amarga e quente, cida e quente, salgada e quente e, assim, ao infinito. Desse modo, cada caso tem suas especificidades que precisam ser consideradas.

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O conhecimento mdico, na perspectiva hipocrtica, pretendia ser um conhecimento rigoroso e preciso da dieta conveniente e de sua justa medida54. A arte inaugurada por Hipcrates e sua escola, em conseqncia, amplamente devedora da Filosofia na sua pretenso etiolgica e prognstica, privilegiando o indivduo e suas interaes com o meio ambiente, seja o kosmos ou a polis. Nessa direo, no apenas o bem-estar somtico do paciente se encontrava sob a responsabilidade mdica, mas, igualmente, o bem-estar mental. O diagnstico e as prticas teraputicas visavam atender o anthropos em todas as suas dimenses constitutivas, pensado desde a integrao entre psych e soma, entre mente e corpo. Notvel o Juramento de Hipcrates, autntico estatuto tico da arte mdica, em que se encontra delineada a identidade moral dos praticantes dessa antiga e venervel atividade. Alm do horizonte social dessa arte, prtica herdada de pai para filho e baseada na relao de discipulado existente entre mestre e aprendiz, importante lembrar o respeito dedicado ao paciente. Hipcrates nos recorda que o doente no coisa ou meio, mas um fim, um valor. Dessa afirmao decorrem implicaes e conseqncias culturais, ticas e comportamentais relevantes para a sociedade e profissionais da sade. Retornar a Hipcrates permite rever os postulados fundamentais da arte mdica na busca da compreenso racional dos processos da sade e da doena, numa dimenso integrativa, privilegiando o indivduo. Retornar a Hipcrates , sobretudo, recuperar a norma diretiva principal de sua arte, centrada no respeito dignidade inviolvel do ser humano55.54

Cf. REALE; ANTISERI, 1999, p. 118.

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Eis o juramento de Hipcrates (apud REALE e ANTISERI, 1999, p. 119) em sua ntegra: Por Apolo mdico, por Esculpio, por Higia, por Panacia e por todos os deuses e deusas, invocando-os por testemunhas, juro manter este juramento e este pacto escrito, segundo as minhas foras e o meu juzo. Considerarei quem me ensinou esta arte como a meus prprios pais, pois porei meus bens em comum com ele e, quando tiver necessidade, o pagarei do meu dbito e considerarei seus descendentes como meus prprios irmos, ensinandolhes esta arte, se desejarem aprend-la, sem compensao nem compromissos escritos. Transmitirei meus ensinamentos escritos e verbais e toda a outra parte do saber aos meus filhos, bem como aos filhos de meu mestre e aos alunos que subscreverem pacto e jurarem segundo o uso mdico, mas a mais ningum. Valer-me-ei do regime para ajudar os doentes, segundo as minhas foras e o meu juzo, mas me absterei de causar dano e injustia. No darei a ningum nenhum preparado mortal, nem mesmo se me for pedido, e nunca darei tal conselho; tambm no darei s mulheres pressrios para provocar aborto. Preservarei minha vida e minha arte puras e santas. No operarei nem mesmo quem sofre do mal de pedra, deixando o lugar para homens especialistas nessa prtica. Em todas as casas em que entrar, irei para ajudar os doentes, abstendo-me de levar voluntariamente injustias e danos, especialmente de qualquer ato de libidinagem nos corpos de mulheres e homens, livres ou escravos. Tudo aquilo que possa ver e ouvir no exerccio da minha profisso e tambm fora dela, nas minhas relaes com os homens, se for algo que no deva ser divulgado, calar-me-ei, considerando como um segredo sagrado. Se mantiver este juramento e no romp-lo, que me seja dado desfrutar do melhor da vida e da arte, considerado por todos sempre honrado. No entanto, se me tornar transgressor e perjuro, que seja colhido pelo contrrio disso. O juramento comea por engajar o novo membro na comunidade dos que praticam a artemdica, comprometendo-o na formao dos futuros praticantes, inserindo-o em nova dinmica de vida que, inclusive, supe a partilha de conhecimentos e bens. O praticante dessa arte se compromete em tudo fazer pelo bem-estar dos doentes, respeitando-os profundamente. Na seqncia, lemos uma intransigente defesa da vida e condenao do uso de recursos que possam vir interromp-la, em qualquer um dos seus estgios. Indica como, ao visitar os doentes, deve comportar-se o praticante dessa arte. Prescreve a necessidade do sigilo sobre assuntos da intimidade ou privacidade do paciente atendido e, por fim, revela as conseqncias do cumprimento ou descumprimento do juramento proferido. O juramento proclama a inviolabilidade do ser humano, pesando o custo e benefcio (beneficncia e no maleficncia) das prticas teraputicas. Ainda, em nossos dias, os mdicos prestam o juramento de Hipcrates. Juramento que tambm inspira e orienta todas as profisses da rea mdica.

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2.7 Contribuio dos helenos: novo modo de refletir e novo modo de ver o ser humano, a sade e as enfermidadesOs helenos inauguraram a reflexo filosfica no Ocidente e, ao mesmo tempo, propuseram questes fundamentais relativas existncia humana. Conceberam o ser humano, desde sua situao csmica, em relao com o divino56. Os filsofos fsicos, ao pensarem a Physis, tambm pensam o ser humano e o seu lugar nos cosmos. Scrates, motivado por suas polmicas com os sofistas, vai alm, sendo o primeiro filsofo a sondar, de modo radical, a Psych. O convite conhece-te a ti mesmo essa tarefa intransfervel, revela que nosso bem-estar mental e somtico depende, em grande parte, da investigao do si mesmo, da interioridade, daquilo que cada um , sem segredos ou evases. Scrates foi o primeiro filsofo a preocupar-se com a alma57, com a interioridade, tendo deslocado as preocupaes da Filosofia nascente, das questes cosmolgicas aos problemas antropolgicos. Ao meditar sobre a vida humana, Plato valoriza a tenso criativa entre as dimenses ertica e racional, reivindicando, de modo original, a presena de justa medida na existncia. Se eros causa do movimento de transcendncia realizador do humano , logos quem deve orientar esse processo. Afinal, no podemos existir sem amar. Mas como amar? O qu devemos amar? A quem devemos amar? A pedagogia do amor proposta no Banquete valorizando o desejo nos encaminha ao amor no-condicionado pela posse e caracterizado pela liberdade. Se amar viver, aprender a amar ser. Do amor a um corpo belo chegamos, nesse processo, ao amor do Belo-em-si, ao amor da Sabedoria suprema medida da vida humana. Se o amor desordenado disperso e desintegrao, o amor, segundo o exerccio da Filosofia, amor

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Vide os Filsofos Fsicos como Tales, Anaximandro, Anaxmenes e Herclito, por exemplo. Segundo Werner Jaeger (apud. REALE. Corpo, alma e sade. O conceito de Homem de Homero a Plato. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Paulus, 2002. p. 137) Scrates inaugura o cuidado para com a alma: No pensamento de Scrates aparece, como algo novo, o mundo interior. A aret de que ele nos fala um valor espiritual. Mas que a alma, ou psych (para exprimi-la com a palavra grega usada por Scrates)? Antes de tudo, ponhamos esta questo num sentido meramente filolgico. Procedendo assim, damo-nos conta de que Scrates, tanto em Plato com em outros socrticos, sempre pe na palavra alma uma nfase surpreendente, uma paixo insinuante e como que um juramento. Antes dele, nenhum lbio grego pronunciou assim essa palavra. Temos a sensao de que, pela primeira vez no mundo ocidental, surge aqui algo que ainda hoje designamos com certa ligao com a mesma palavra, ainda que os psiclogos modernos no lhe associem a idia de uma substncia real. A palavra alma, pelas suas origens na histria do esprito, tem sempre, para ns, conotao de carter tico ou religioso. Possui um tom cristo, como as expresses servio de Deus e cuidado da alma. Ora, nas prdicas protrticas de Scrates que a palavra alma adquire, pela primeira vez, este alto significado. Por enquanto, deixaremos de lado aqui o problema de saber at que ponto a idia socrtica de alma influenciou as diversas fases do cristianismo, diretamente atravs da Filosofia posterior, e em que coincide de fato com a idia crist. O que nos interessa aqui, antes de tudo, captar o que h de decisivo no conceito socrtico da alma, dentro da prpria evoluo grega. A descoberta de Scrates a dimenso da interioridade ou Psych de fato, foi antecipada, em alguma medida, por Herclito e Demcrito. Contudo, realmente Scrates quem se preocupa radical e intensamente com a alma. Scrates quem inaugura a pesquisa da alma e relaciona essa pesquisa busca da felicidade. Scrates fundou a investigao psicolgica e, tendo indicado um mtodo de acesso interioridade, props a busca da verdade do ser e de si mesmo pela via dessa investigao, estabelecendo ligao entre a pesquisa da verdade e o agir tico.

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integrador, doador de plenitude. Se viver aprender a amar, aprender a amar aprender a ser, existir segundo a dinmica de transcendncia caracterizadora do anthropos, situado entre o csmico e o divino, entre o temporal e o eterno, movido pela produtiva tenso entre eros e logos. A busca do equilbrio, seja pela vivncia do amor ordenado ou pelo exerccio da Filosofia, a chave para pensarmos a sade na perspectiva de Plato. O anthropos capaz de realizar sua dinmica, progredir e ser feliz pelo governo da ordem racional sobre a irracional. Do governo da dimenso racional sobre a dimenso desejante, resulta, portanto, harmonia e justia, tanto na vida do indivduo, como na polis. No se trata de desconsiderar o desejo, mas de orient-lo. Nessa direo, se compreendermos a sade como harmonia do corpo, essa harmonia est intimamente relacionada com a harmonia interior. Quem encontra seu ponto de equilbrio, inserese adequadamente na polis, no cosmos e estabelece conveniente relao com o divino. Plato reinterpreta o conceito de sade proposto por Hipcrates, pai da medicina antiga. Hipcrates, ao investigar a relao entre os humores e o ambiente, encontrou na noo de equilbrio a chave para compreendermos o fenmeno da sade e das enfermidades. Nessa perspectiva, se percebemos a doena, raramente, segundo Gadamer, nos damos conta da sade58:sabemos de maneira aproximada em que consistem as enfermidades, enquanto so por assim dizer caracterizadas pela revolta do avariado. [...] A sade, ao contrrio, subtrai-se curiosamente a tudo isso, no pode ser examinada, medida em que sua existncia consiste justamente em esconder-se. Diferentemente da enfermidade, a sade nunca causa de preocupao, antes, quase nunca somos conscientes de estarmos sadios. No condio que convida ou adverte-nos a cuidar de si prprios: de fato implica a surpreendente possibilidade de esquecer de si.

Plato extraiu da medicina hipocrtica a noo de que a sade est ligada a um equilbrio oculto ou justa medida. Conforme Reale, o no muito nem o muito pouco, ou seja, a medida e proporo conveniente o fulcro em torno do qual gira o conceito de sade59. Quando perdido esse equilbrio oculto tudo fazemos para recuper-lo. Quando gozamos de bem-estar, dificilmente nos damos conta dessa justa medida. Hipcrates pensava a manuteno ou recuperao dessa justa medida atravs da atenta observao de cada indivduo e de suas relaes com o meio ambiente, observando necessidades da alma e do corpo. A cada indivduo deveria ser prescrito, atravs de dieta conveniente, o no muito nem o muito pouco. Esse mais ou menos, excesso e falta so mensurveis entre si segundo um critrio aritmtico, mas, num segundo momento considerando cada indivduo somente podem ser mensurados conforme o justo meio60. Desse modo, o mdico, no exerccio de sua arte, no cura o homem universal, mas a Scrates, a um

58 59

GADAMER Apud. REALE, 2002, p. 185. REALE, 2002, p. 186. 60 Ibidem, 2002, p. 186.

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indivduo concreto61. Estamos diante de duas medidas: a primeira (aritmtica) quantitativa, j a segunda (justa medida) qualitativa. A sade, portanto, depende da justa proporo, da

harmonia natural, do acordo intrnseco do organismo consigo mesmo e com o que lhe exterior62. No dilogo O Poltico, Plato discorre sobre a justa medida63. O ateniense distingue duas medidas: a primeira obtida quando se mensura o objeto a partir do exterior, a segunda, ao contrrio, intrnseca ao prprio objeto. A primeira quantitativa; a segunda qualitativa. Qual o metrion64 adequado compreenso do fenmeno da sade e da doena? O praticante da arte mdica, no exerccio da sua arte, privilegiar o metrion ou medida qualitativa, pois ele no trata do homem universal, mas de Scrates, desse indivduo em especial, com sua histria e caractersticas singulares. Entrementes, essa justa medida no pode ser definida. Necessita ser sondada em cada circunstncia especfica65. Comeamos falando da justa medida no amor e falamos de justa medida quantitativa e qualitativa. Entretanto, sublinhamos, a sade da mente e do corpo se reivindicam mutuamente. Plato d sentido amplo ao tema da harmonia, pois a busca e conquista da harmonia interior est relacionada com a harmonia exterior, com a harmonia do organismo. Aprender a amar encontrar a justa medida pela interao adequada entre eros e logos, desejo e razo. No aprendizado da arte do amor encontramos a mestes66 em sua expresso paradigmtica. Ora, ser essa mesma justa medida, a orientadora da busca de harmonia orgnica na adequada relao e interao com a harmonia da psych.61 62

Cf. Aristteles, Metafsica I, 1. Cf. REALE, 2002, p. 188. 63 Ibidem, 2002, p. 189. 64 Cf. Reale (2002, p. 189) se metron significa medida, metrion indica o que medido ou adequado. Nesse aspecto, o metrion, a justa medida, revela-se limitadamente acessvel mediante a simples mensurao. 65 Perguntando sobre o confronto entre os mtodos que privilegiam o matemtico em detrimento da auscultao da medida qualitativa Gadamer, apud, Reale (2002, p. 189) afirma: Nesse nterim a cincia moderna chegou a considerar todos os resultados das mensuraes como dados reais de fato, a serem recolhidos escrupulosamente. Ora, essas medidas dependem de um critrio que fixado por conveno, que aproximado aos fenmenos. Quando perguntei a um amigo mdico que estava enfermo quanto tinha de febre, ele fez um gesto de desprezo com a mo. Para si no usava o termmetro, no lhe interessava. Com efeito, alm da esfera do que medido desse modo, existe outro conceito de medida. Esse o tema de O Poltico, no qual se discute sobre a existncia inerente s coisas, e no impostas do exterior. Parafraseando, podemos dizer que alm do que medido de determinado modo, temos tambm o que adequado em si. No podemos verificar as medidas de adequao. Naturalmente pode-se medir a temperatura, avaliando-a segundo normas estabelecidas, o que constitui uma grosseira padronizao. Portanto, a prescrio de medicamentos a fim de restabelecer valores normais pode tambm revelar-se inapta para algum. O verdadeiro significado da adequao, da justa medida, reside propriamente no fato de que no se pode definir. De outra maneira, entendemos que as medidas quantitativas especificidade de cada indivduo. Em concluso, os dados quantitativos esto a servio dessa medida qualitativa, nunca completamente verificvel e prpria de cada pessoa. Essa constatao, pensamos, acrescenta algo de novo ao privilegiar o singular na relao com o universal. interessante notar que essas medidas quantitativas, na procura de adequao e aplicabilidade, mudam no tempo. Logo, preciso valorizar e relativizar as medidas quantitativas, adequando-as justa medida referida a cada indivduo. Hipcrates e, sobretudo, Plato podem nos ajudar na busca da justa medida, pela relao adequada entre as dimenses quantitativas e qualitativas daquilo que medido. Eis importante contribuio a ser atualizada. 66 Mestes indica, igualmente, a justa medida perseguida na vida atendendo s exigncias de vida plena fundada na harmonia e equilbrio da mente e do corpo e inquirida pelo praticante da arte mdica.

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Ao vincular as virtudes ticas (morais) s virtudes dianoticas (intelectuais), Aristteles, filho de mdico, bilogo e ex-aluno de Plato, prope novamente a justa medida (mestes) como horizonte da vida segundo a eudaimnia. Da efetivao de todas as capacidades e dimenses do humano, segundo o exerccio da excelncia tica e dianotica resulta harmonia e felicidade. O cidado autnomo e autrquico, participante da vida na cidade e capacitado theoria, vivendo segundo os ideais de uma vida filosfica, realiza a justa medida. O filho de Estagira, ao conceber integrativamente a vida humana, ao vincular o indivduo vida da polis, pe em relevo o carter social da sade. Ao salientar, destacamos, a importncia da plena incluso do anthropos na comunidade poltica, sua antropologia alcana nota essencial da existncia humana. Logo, ao refletirmos sobre o crculo terico-prtico, verificamos que o fundador do Liceu recomenda tanto a participao na vida da comunidade poltica (dimenso prxica da existncia), quanto o peridico e salutar distanciamento para o exerccio reflexivo (dimenso terica da existncia). Ento, tanto o ativismo67, quanto o isolamento da vida pblica68 so igualmente alienantes. O ser humano integrado e realizado, por fim, no descuida de suas necessidades biolgicas, intelectuais e sociais. Ao privilegiar a integrao entre vida individual e pblica, entre existncia especulativa e prxica, a antropologia aristotlica oferece importantes elementos para pensarmos o conceito de bem-estar, ligando-o plena realizao do humano. Os Helenos inauguraram a reflexo filosfica, perguntaram sobre a relao do homem com o cosmo, indagaram sobre o si mesmo, convidaram inquirio da justa medida no exerccio do amor, na busca do equilbrio orgnico e nas tentativas de viver na polis. Acreditaram no logos, mas apontaram seus limites. Sobretudo, valorizaram a educao via de acesso ao si mesmo, possibilidade de cultivo humano pelo exerccio da excelncia moral, intelectual e poltica. No obstante seu aparente otimismo intelectualista69, eles no eram ingnuos e tinham conscincia das contradies do corao do homem. Contradies inerentes condio de fronteira do anthropos, situado entre o csmico e o divino, liberto da determinao instintiva, entrementes, passvel de, pela educao continuada, conquistar a si mesmo atravs de vida harmnica e plena, tanto quanto lhe seja possvel. Vida baseada na harmonia, estimulada por eros e orientada pela razo e acontecida na polis, condio e possibilidade de sua existncia.

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A vida prxica nas dimenses ticas e poltica diferente do ativismo, pois esse denota disperso, fragmentao. A vida prxica supe a reflexo, o exerccio filosfico. A vida prxica ilumina, com sentido, o fazer tcnico e nos encaminha Filosofia. 68 A salutar solido meditativa proporcionada pela Filosofia no isola o indivduo da comunidade poltica, mas o envia renovado s suas tarefas cvicas. 69 Otimismo intelectualista, pois acreditavam que o conhecer em certa medida obriga o agir. Vide, por exemplo, a concepo socrtica que localiza o mal moral na ignorncia. Aristteles, igualmente, supunha contraditrio agir contra uma deliberao da razo prtica. Esse otimismo contrabalanceado, pensamos, por um exame cuidadoso das contradies da alma humana e pela proposio de tica que valoriza a educao das paixes, ponto de partida na conquista de vida excelente.

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3 CONCEPO CRIST E MEDIEVAL DO HOMEM70O norte-africano Aurlio Agostinho (354 430)71 viveu no perodo tardo-romano, pertencente Patrstica Latina, inspirado por Plato e Plotino, filosofa desde sua condio de cristo. Toms de Aquino (1221 1274)72, diante da redescoberta dos textos de Aristteles no sculo XIII73, levou a cabo a tarefa de interpretar essa obra. Foi um dos maiores interpretes de Aristteles, procurou conhecer e conciliar os ensinamentos do estagirita com a tradio crist. Agostinho e Toms, no obstante as diferenas entre suas postulaes, pensaram o ser humano desde sua condio temporal e itinerante, em processo de manifestao do seu ser pela ao. Da tenso entre a tradio bblica e o legado greco-romano, especialmente o neoplatonismo e Aristteles, nasceram duas snteses propostas pelos dois pensadores. Uma caracterizada pela dialtica da inquietao e a outra pela reflexo sobre o ser, ambas originais e exploradoras das contradies e riquezas da existncia humana.70

Cfe. LIMA VAZ, 1991, p. 59. : A concepo crist medieval do homem prevalece na cultura ocidental do sculo VI ao sculo XV, mas seu influxo permanece profundo e, sob certos aspectos, decisivo nas concepes modernas e contemporneas que lhe sucederam. Os padres da Igreja, atravs de categorias colhidas na Filosofia Grega, de origem platnica e neoplatnica, interpretaram a mensagem revelada e vivida nas comunidades crists, explicitando sua plausibilidade. Neste sentido, Agostinho de Hipona realizou a primeira sntese do pensamento cristo. Agostinho, que viveu entre os sculos IV e V, pertenceu ao perodo denominado tardo-romano ou antiguidade tardia. Africano por nascimento, culturalmente romano, foi capaz de enfrentar os desafios de um mundo em transio e buscar significado vida humana, do qual seus textos so importante testemunho. J no sculo XIII, no vigor da escolstica, num perodo denominado baixa idade mdia, foi frei Toms de Aquino, da Ordem dos Pregadores (dominicanos), quem sistematizou a doutrina crist, tendo como mediao a filosofia de Aristteles. Os padres da Igreja e os escolsticos nos legaram, entre outras coisas, a noo de pessoa e da sua conseqente dignidade e inviolabilidade. Nessa noo se funda a possibilidade de uma tica centrada na defesa da vida e baseada no postulado da solidariedade. 71 Aurlio Agostinho nasceu em Tagaste, na frica pr-consular. Estudou o primrio em Madaura e cursou universidade em Cartago. Sua vida um itinerrio de converses filosficas e religiosas, cujo momento decisivo ocorreu em Milo, quando l exercia a funo de mestre de retrica na corte. Conviveu com as maiores inteligncias de seu tempo, leu os textos do filsofo Plotino e estudou as escrituras. Convertido, retorna sua frica natal e, no desempenho das suas tarefas como monge ou bispo produzir extensa obra filosfica e teolgica. Legar rica e inesgotvel reflexo sobre a condio humana, investigar intensamente os temas caros reflexo filosfica. Dois anos aps sua morte, a cidade de Hipona seria destruda pelos invasores Vndalos. No entanto, a voz desse intelectual formado na cultura latina continuaria a ecoar atravs dos sculos, influenciando o mundo Ocidental de muitas maneiras. Com Hannah Arentd (A vida do esprito, O pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume / Dumar / UFRJ, 1991. p. 248) afirmamos: Santo Agostinho, o primeiro filsofo cristo, e tentador acrescentar, o nico filsofo que os romanos jamais tiveram, foi tambm o primeiro pensador que se voltou para a religio em funo de perplexidades filosficas. O filsofo que os romanos jamais tiveram, no dizer de Arentd, referncia indispensvel na busca da compreenso daquilo que somos. 72 Toms de Aquino (cf. REALE; ANTISERI, 1990, p. 552-554) nasceu na Pennsula Itlica, em Roccasecca, no Sul do Lcio. De famlia nobre, educado pelos beneditinos, desejou tornar-se frade mendicante. Tendo ingressado na Ordem dos Pregadores e completado sua formao inicial, lecionou Filosofia e Teologia, inclusive em Paris. L obteve o ttulo de Magister em Teologia, onde ensinou entre 1256 a 1259. Jovem estudante de Filosofia, orientado por seu mestre Alberto Magno, leu os textos de Aristteles, j traduzidos para o latim. Ingressou nos debates despertados pela leitura desses textos, na agitada e pluralista Paris do sculo XIII, sculo das Universidades. Algumas de suas teses, ditas averrostas (que pretensamente ensinariam a eternidade do mundo, por exemplo), foram condenadas pelo bispo de Paris em 1277. Entretanto, sua vasta obra sua Filosofia do Ser tem importncia nica, tanto pela interpretao de Aristteles, quanto pela inovao de suas teses. 73 O sculo XIII foi o apogeu da Escolstica, perodo da redescoberta dos textos clssicos dos Helenos e de debates em torno de questes filosficas e teolgicas. Perodo rico na produo de Sumas (snteses), comentrios e textos voltados para o ensino nas Universidades.

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3.1 A concepo Bblica do HomemA concepo crist medieval do homem funde duas tradies, a bblica: normativa e, a filosfica: terico-conceitual e especulativa. O que chamamos de Teologia , entre outras acepes, o esforo de leitura da mensagem vetero74 e neo-testamentria75 atravs de categorias filosficas. Essa interpretao visa a dar razes da esperana vivida pelas comunidades crists, esperana nutrida pela leitura do texto sagrado e a vivncia comunitria. Alguns traos caracterizam a viso bblica do ser humano. Ela o compreende como

unidade radical, superando o dualismo ontolgico clssico, expressando a experincia humana atravs de ricas categorias. Assim, o ser humano carne (basar sarx)76 na medida em que se revela sua fragilidade e a transitoriedade da sua existncia; alma (nefesh psych) na medida em que a fragilidade compensada nele, pelo vigor da sua vitalidade; esprito (ruah pneuma), manifestao superior da vida e do conhecimento pelo qual o homem pode entrar em relao com Deus; finalmente, corao (leb cardia). Em outras palavras, interioridade profunda, onde tem sua sede afetos e paixes; onde se enrazam a inteligncia e a vontade, e onde tm lugar o pecado e a converso para Deus77. A concepo bblica no uma teoria, mas uma narrao que d a conhecer o sentido ltimo da vida: narrao que explicita uma sotereologia, uma teoria da salvao. O divino procurou o homem na aliana do Antigo Testamento e na Aliana renovada pelo Mistrio de Jesus: sua encarnao, nascimento, morte e ressurreio. Por Ele, toda criao foi divinizada e o ser humano reconciliado consigo mesmo, com a criao e com o criador pode orientar sua prxis pela palavra e vida do Ressuscitado. Ele a analogia entis concreta78, o prottipo de toda criao: por Ele, o divino assumiu a histria e caminha rumo a sua efetivao, indicando o sentido da vida de cada pessoa e o destino de todo ente criado. O ser humano tambm pensado atravs da tricotomia paulina: soma, psych e pneuma (1Ts 5,23), enquanto estas expresses significam sua fragilidade, a lei e a liberdade vivida na graa79. A vida no Esprito (pneuma) torna a lei pedaggica e liberta o ser humano, tornando-o novo homem (o novo Ado). Ao descobrir a duplicidade da lei e falar da liberdade vivida na graa, Paulo explicita as contradies da liberdade, somente positivada na vida no Esprito (pneuma).

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Do Antigo Testamento. Do Novo Testamento. 76 A palavra hebraica encontra correspondncia aproximada no grego, considerando a traduo da Sagrada Escritura dos setenta. Neste sentido: basar corresponde a sarx, nefesh a psych, ruah a pneuma e leb a cardia. 77 Cf. LIMA VAZ, 1991, p.61. 78 O anlogo principal, a referncia, o modelo de todo o ente: de todo ser criado e finito. Atravs dele modelo da criao todas as coisas foram criadas e existem. 79 Soma (corpo) signo de nossa fragilidade; psych (alma, natureza racional) indica nossa liberdade e dualidade diante da lei, pois o cumprimento da lei lembra que poderamos t-la burlado; pneuma (esprito) significa a existncia plena na dimenso do esprito.

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Na concepo crist, o mundo foi criado por Deus do nada (criao ex nihilo)80 por ato de amor e liberdade. Transitando neste mundo criado, na histria, pode o ser humano conhecer ao Criador que se revela na mensagem escriturstica e na vida das comunidades, encontrando, assim, significado para sua vida e para histria, pois tudo e todos caminham para o encontro com este Criador que se revela como Deus Trindade.

3.2 Santo Agostinho e a Sntese Antropolgica da Patrstica

Os pais da Igreja explicitaram a doutrina crist, tendo enfrentado desafios oriundos de concepes equ