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2 • Camarim • nº 46

Política e Estética

A Camarim volta à baila depois de ficar sem publicação em

2011. Ganhamos um edital do Ministério da Cultura para revistas

culturais em 2010, no entanto passamos estes últimos dois anos

aguardando a liberação das verbas que até o momento não

saíram. Ou seja, ganhamos, mas não levamos (como vários outros

parceiros de publicações Brasil adentro). Já que não podemos

esperar indefinidamente pela burocracia estatal e seus meandros,

retomamos, pelas mãos da própria Cooperativa Paulista de Teatro, a

publicação de um novo número da nossa revista.

Uma vez que a Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São

Paulo completa 10 anos de existência em 2012, este será um ano

propício para discutir, de forma ampla, os reflexos de algumas ações

políticas na produção estética teatral contemporânea. Vejamos

aspectos da situação atual portuguesa e a história recente dos grupos

na Espanha, já nesta edição de Camarim.

Do nosso ponto de vista, qualquer intervenção nessa área , quer

seja de iniciativa da sociedade – como é o caso da Lei de Fomento –

ou de governos, deve priorizar tanto a qualificação dos contemplados

por concursos públicos quanto o acesso da população ao que é

produzido com os recursos oriundos dos tributos dos cidadãos.

O que caracteriza o interesse social em programas geridos pelo

Estado é o usufruto democrático do bem público, quer seja de quem

trabalha diretamente na produção cultural, quer seja de quem possa

apreciar os conteúdos simbólicos que têm na sua base fundos que

pertencem a todos.

A expectativa é a de que programas e políticas que, diga-se de

passagem, ainda precisam avançar e muito (a Lei de Fomento é

uma exceção à regra da lógica mercantil na vida cultural brasileira),

aprimorem os processos artísticos e estes, por sua vez, mobilizem

as pessoas no sentido da inquietação, do questionamento ou, no

mínimo, proporcionem a fruição estética dos espectadores tributários

da produção imaterial advinda dos recursos comuns. Caso isto não

esteja acontecendo, temos que nos perguntar sobre a razão e o fim

dos esforços em lutar por marcos legais para o setor.

A conversa que aqui se inicia terá continuidade com o livro e o

filme sobre os 10 anos do “fomento”, que a Cooperativa lançará no

segundo semestre do corrente ano.

Ney Piacentini

Presidente pala

vra

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oope

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Camarim é uma publicação da Cooperativa Paulista de Teatro – Ano 15 – Número 46 – 1º semestre de

2012 • Editor (e revisão): José Fernando de Azevedo • Diagramação: Pedro Penaf iel • Foto da capa:

Mar iana Senne (cena do espetáculo Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, precisa se mexer,

2010, foto de Cacá Bernardes) • Impressão: Hanabi • T iragem: 2000 exemplares • Distr ibuição Gratuita

Ex

pE

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Praça Dom José Gaspar, 30 • 4º andar A • Centro • CEP: 01047-010 • São Paulo • SP Novo telefone: (11) 2117-4700 • [email protected] • www.cooperativadeteatro.com.br

4 Gênese e contexto da criação cênica contemporânea na Espanha

José A. sáNchEz

16 sobre o investimento público no teatro em Portugal

JorGE LourAço

20 Teatralidade e performatividade na cena contemporânea

siLviA FErNANdEs

30 Engrenagem de uma forma de produção contra-hegemônica

rAFAEL LiTviN viLLAs BôAs

40 Luís Alberto de Abreu, artista e pedagogo

LuciENNE GuEdEs

46 “se eu f icasse sozinho, iria desaparecer”

ENTrEvisTA com Luís ALBErTo dE ABrEu

58 Entranhas do processo colaborativo

vALmir sANTos

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4 • Camarim • nº 46

Gênese e contexto da criação cênica contemporânea na Espanha

Professor e pesquisador na Universidade de Castillha-

La Mancha

Tradução de Felipe Stucchi

Jean

Ben

oit

Ug

eUx

Rodrigo García y La Carnicería, Aproximación

a la idea de desconfianza (2006)

José A. Sánchez

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A aprovação da Constituição Espanhola, em 1978, deu início ao período democrático durante o qual se delineou a produção artística que é tema deste ensaio. No âmbito das artes cênicas, essa mudança de regime teve importantes consequências. As mais visíveis foram o fim da censura, a abertura ao exterior, a criação de novas instituições públicas e o aumento de subsídios públicos, que alcançaram também o teatro e a dança de criação.

aspectos da transiçãoNum contexto cultural internacional marcado

pelo pensamento pós-moderno, o f im da censura, que condicionava o trabalho da geração anterior, e a crescente confiança em novas instituições democráticas favoreceram uma progressiva orientação dos criadores a motivações de índole estética ou a um tratamento muito abstrato da questão política. Um dos grandes sucessos do teatro independente espanhol, em 1978, foi “Antaviana”, de Dagoll-Dagon, um espetáculo baseado nos contos de Pere Calder. O espetáculo fascinou por seu conteúdo poético-mágico e também pela qualidade estética da encenação. Tratava-se de um novo modelo que respondia à política real com poesia e imaginação, e que propunha alternativas aos modos de fazer do teatro independente da época anterior.

Entre 1978 e 1982, o teatro independente que se originou nos anos setenta desapareceu.Alguns grupos trataram de se transformar em teatros estáveis. Outros se dissolveram, passando seus integrantes a engrossar as bases dos novos teatros públicos ou se adaptando ao funcionamento de um novo teatro comercial, onde tinha lugar certo rigor artístico.1 Pois bem, esse teatro independente que desapareceu foi o mesmo que tinha trabalhado com dramaturgias verbais. Outras companhias que tinham apostado nas dramaturgias visuais e corporais encontraram nestes anos de transição uma época de esplendor. Por um lado, sua formação técnica era comparativamente melhor que a da maioria de seus colegas e sua participação em festivais internacionais já tinha começado, em alguns casos, nos anos sessenta.

Por outro lado, nenhuma nova instituição solicitava seus serviços. Dessa maneira, precisamente nos anos críticos da transição (1978-81), foi quando Els Joglars, Comediants, La Claca y La Cuadra, com datas de origem, trajetórias e concepções muito distintas, mas com uma mesma decisão de criar diretamente os seus espetáculos em cena e não no papel, atingiram um momento de maturidade criativa com espetáculos como “Mori el mermar” (1978), “Sol Solet” (1979), “Andalucia amarga” (1979) e “Laetius” (1980).

É necessário apontar pelo menos uma exceção, o Teatre LLiure, fundado em 1976 pela colaboração de Lluis Pasqual e Fabià Puigserver em “A semana trágica”, escrita

e dirigida pelo primeiro. Ambos se empenharam na tarefa de proporcionar aos espectadores de Barcelona “um teatro de arte para todos”, seguindo o modelo iniciado por Strehler muitos anos antes com o “Piccolo de Milán”, ou seja um teatro independente, e, no caso de Lliure, com estrutura cooperativa, com vocação de serviço público.

Se na Catalunha a presença de Els Joglars, Comedients e La Claca (além da chegada singular de Albert Vidal) garantiu certa continuidade entre o teatro independente dos anos setenta e as companhias profissionais que se apoderaram dos palcos na década de oitenta, como Dagoll-Dagon, La Fura dels Baus, Tricicle, Zotal ou Vol Ras2, em Madri, ao contrário, como no resto do país, seria mais adequado falar de uma ruptura: o denominado teatro contemporâneo recusou tanto a linguagem usada por grupos como Tábano, Goliardodo T.E.I., quanto sua orientação política e estética, tratando de buscar suas referências na música ou nas artes plásticas, recuperando, por exemplo, a herança de grupos experimentais, como o Can-non .

No âmbito institucional, a substituição do Ministério de Informação e Turismo pelo Ministério de Cultura por parte da UCD (União de Centro Democrático), marcou o início de uma fase de normalização, que levou à transformação do Teatro María Guerrero (Teatro Nacional) em Centro Dramático Nacional, dirigido sucessivamente, neste período, por Adolfo Marsillach (1978-79), Nuria Espert, José Luis Gómez e José Tamayo(1979-80) y José Luis Alonso (1980-82). A efervescência destes anos, carregados de inquietude e de esperança, tanto ao nível político quanto cultural, pode ser apreciada na pluralidade da programação do CDN, que combinava a apresentação de um repertório de qualidade (com a presença de autores internacionais e clássicos espanhóis sob a responsabilidade de diretores e cenógrafos dotados de bons meios técnicos) , a estreia de dramaturgos espanhóis vivos (desde Alberti, até Sanchís Sinisterra), convites a companhias estrangeiras e, o mais surpreendente, a partir deste momento, a apresentação de espetáculos baseados em dramaturgias concretas, visuais ou corporais, como “Wielopole, Wielopole”, de Tadeusz Kantor, “Sonho de uma noite de verão”, numa versão de Lindsay Kemp,

1 Cesar Olica faz uma contagem dos atores, diretores e dos cenógrafos procedentes do teatro independente que passaram para o teatro institucional em Oliva, 2002:260.2 Um panorama dos grupos de teatro catalão contemporâneos pode ser encontrado em Mercé Saumell, “Performance Groups in Catalonia”, en David George & John London (eds.), Contemporary Catalan Theatre. An introduction, The Anglo-Catalan Society, Sheffield, 1996, pp. 103-128. Neste artigo não abordarei o estudo desses grupos, considerando que o teatro catalão constitui em grande parte uma realidade independente da do teatro espanhol contemporâneo, sem que isso exclua muitas interferências, colaborações e influências. Talvez seja necessário sublinhar, como uma das diversas razões que explicam a singularidade do caso catalão, a grande tradição do Institut del Teatre, em constante renovação, que participou da origem de muitas das iniciativas de interesse surgidas de Barcelona, entre elas o Teatre Lliure, onde trabalharam dois dos mais geniais “artesãos” da história contemporânea do teatro espanhol Lluis Pasqual e Fabià Puigserver.

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“Laetius” de Els Joglars, de Marcel Marceau “Pantomimas de estilo”, ou “Juan sin miedo y antologia”, de La Claca.

Nesse sentido, não deixa de ser curioso o fato de que o “Centre Dramàtic de la Generalitat de Catalunya”, primeira réplica autônoma do CDN, tenha iniciado sua programação com “Nit de Sant Joan”, de Dagoll Dagon, em colaboração com Jaume Sisa e, nos anos seguintes, sob a direção de Hermann Bonnín (1982-1988), esteve aberto à intervenção de coletivos independentes, prestando, entretanto, maior atenção à promoção do teatro em língua catalã.

A permeabilidade de relações entre o teatro institucional e o independente, entre programação de repertório, de dramaturgos vivos e de teatro baseado no texto, entre a produção nacional e a internacional é signo de uma época marcada pela vontade de consenso e superação dos enfrentamentos civis que a ditadura do general Franco tentou liquidar da pior maneira possível. A mesma permeabilidade se nota nos grandes festivais daqueles anos. O mais importante, provavelmente, foi o Festival de Sitges, dirigido entre 1977 e 1986 por Richard Salvat, ao qual se somaram o Festival Internacional de Vitoria (desde 1975), a Mostra internacional de Valladolid (desde 1979), o Festival de Teatro de Rua de Madrid (a partir de 1981) e a Feira de Teatro de Rua de Tárrega (inaugurada neste mesmo ano, promovida por Eugeni Nadal, com a estreia de “Dimonis”, dos Comediants).

O auge do teatro de rua foi outro claro signo da recuperação do espaço público nos primeiros anos da democracia. Entretanto, também neste âmbito, os espetáculos apresentados nos festivais que se organizaram em numerosas cidades da Espanha eram muito diversificados. Dessa maneira, era possível encontrar seguidores da linha popular iniciada por Comediants anos atrás, herdeiros do terceiro teatro impulsionado por Eugenio Barba e pelo Odin, companhias formadas nas técnicas de circo e novo circo (que seguiam um gênero igualmente em seu auge na Europa, cujas origens podiam ser encontradas no “Grand Magic Circus”, de Jerôme Savary), espetáculos de conteúdo mais politizado, à maneira do Bread and Puppet, companhias de repertório que incorporavam registros visuais e corporais (segundo o modelo da Footsbarn Traveling Company), e atores formados em mímica, técnicas de clown e de acrobacia. A maioria destes tipos de teatro havia se desenvolvido no âmbito internacional durante os anos setenta, derivados, em grande parte, das motivações que haviam coincidido com as rebeliões do 68, cujo efeito foi-se graduando ao longo da década seguinte3.

Tratavam de, como acontecia com o teatro institucional, atualizar-se em relação ao que havia acontecido nos anos anteriores. Mas esta explicação positiva – o entusiasmo cívico-político que dava lugar à recuperação do espaço

urbano –, não podemos considerá-la única, sendo possível pensar que na rua se encontravam também aqueles coletivos que não tiveram acesso a um outro tipo de espaço, simplesmente porque estes não existiam. Assim, junto aos “rueiros” convictos, começaram a trabalhar na rua também aqueles artistas que tentavam desenvolver linguagens radicalmente distintas das que o teatro independente dos anos anteriores tinha desenvolvido e não encontravam seu lugar na precária rede cultural existente. É o caso de La Tartana, dirigida por Carlos Marquerie e Juan Muñoz, e da Lejanía, dirigida por Ricardo Iniesta, em Madri, Bekereke, em Bilbao, e La Fura dels Baus em Barcelona.

A expansão do teatro de rua e a permeabilidade entre festivais e instituições públicas não se prolongaria durante muito tempo. À euforia e confusão destes primeiros anos, quando tudo parecia possível, se seguiu a necessidade de ordenar e profissionalizar.

as políticas de normalização e o teatro contemporâneo

A década de oitenta foi entendida como um processo de normalização. A vitória por maioria absoluta do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) nas eleições de 1982 acelerou tal processo com o oferecimento de maiores recursos à política teatral. Ao Centro Dramático Nacional (dirigido por Lluis Pasqual entre 1984 e 1989) se juntou o Centro Nacional de Nevoas Tendências Cênicas (1984), dirigido por Guillermo Heras, e a Companhia Nacional de Teatro Clássico (1986), dirigida por Adolfo Marsillach. Paralelamente, iniciou-se um plano de reabilitação de teatros do século XIX (uma decisão problemática, que ainda influencia o desenvolvimento da criação contemporânea). A iniciativa do Ministério da Cultura teve sua réplica nas tomadas pelos governos autônomos: ao Centre Dramàtic de la Generalitat de Catalunya (1981) seguiram-se o Centro Dramático Galego (1984), o Centro Andaluz de Teatro (1987) e o Centre Dramàtic de la Generalitat Valenciana (1988), dependente do IV AEM.

A tarefa normalizadora, entendida a partir do teatro institucional, consistia em oferecer ao público um repertório nacional e internacional, com encenações que pudessem competir com os grandes teatros públicos europeus. Mais que isso, tratava-se também de recuperar, com devido rigor, a dramaturgia espanhola à qual não tinham feito justiça durante a ditadura. Lluis Pasqual reconhecia explicitamente a “anormalidade” da situação ao se ver obrigado, devido à conjuntura histórica, a montar peças de autores que em um contexto “normalizado” não teria necessidade de estrear.4

A onipresença de Valle-Inclán e García Lorca durante esses anos é sintoma de uma obsessão pela recuperação da truncada tradição da criação cênica da República, notável

3 Um lugar privilegiado para

avertir a evolução deste tipo de teatro

na Españha é a Feria de Teatro de Calle

de Tárrega. Mesmo Dimonis, realizado

sob encomenda de Nadal, teve

uma grande repercussão nacional

e internacional, rapidamente

começou a advertir-se um deslocamento

“para modelos de pequeno formato,

com temáticas humorísticas e cotidianas, ou

mesmo para terrenos de ficção

científica, com profusão de animais

fantásticos, como insetos gigantescos,

e ambientes mais tecnológicos”.

(Saumell, 2001: 206)4 “Sempre digo que

nós não tivemos, simplesmente por

não ter, nem a revolução de 68,

com tudo de bom e de mal, porque

estávamos, eu pelo menos, obrigados a conservar para

poder construir outra coisa... Uma situação um pouco

dramática... Alguém pode prescindir desta tradição, abandonar Calderón, a Espriú...

quando isso está feito, mas se não

é assim, te criam a obrigação de fazê-

lo e, duplamente, quando se está na Catalunha... É um peso grande e não tem a necessidade

de... de ser normal... As pessoas de minha idade na Alemanha,

na Polônia, na França... estão

realmente em outro momento porque já passaram por onde

não passei... Isso cria, realmente, uma tensão interna muito grande...” (Pasqual,

1980: 225)

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também em outros âmbitos da cultura. Do mesmo modo que a transição política foi possível graças a um exercício de esquecimento coletivo (que, em alguns aspectos, lastreou o funcionamento das instituições democráticas), também a transição cênica teve para si uma particular “operação de esquecimento”, que deixou de fora criadores menos “normais” da primeira metade de século e também a maioria dos criadores ativos durante o franquismo; não só dramaturgos5, mas também aqueles que apostaram numa difícil experimentação que resultava incompreensível na perspectiva da Espanha democrática e europeísta dos anos oitenta.

Progressivamente, a oferta cultural foi se ordenando: o Teatro María Guerrero dedicou-se a um grande repertório que, em sua maioria, era de produção própria. A Companhia Nacional de Teatro Clássico buscou um

modo de representar os autores do século de ouro; o Centro de Novas Tendências Cênicas realizou estreias de jovens autores e acolheu produções independentes de dança e teatro contemporâneo; os Centros Dramáticos autônomos das nacionalidades históricas se dedicaram à defesa de seus autores (subordinando, em muitos casos, a qualidade cênica à defesa e à promoção da língua), e os governos autônomos tentaram defender algumas de suas companhias estáveis com políticas muito díspares. A oferta internacional concentrou-se nos festivais, que também foram se ordenando: o Estado assumiu os festivais que traziam os clássicos ( o Festival de Mérida e o de Allmagro) e apoiou iniciativas autônomas ou municipais de caráter generalista (como os Festivais de Outono de Madri e de Barcelona) ou com algum grau de especialização.

5 “A tarefa normalizadora era, não obstante, difícil, e seu equilíbrio instável. Superar o passado se tornou um desejo de esquecimento, que tragava inclusive os autores que, durante o franquismo, tinham lutado para manter vivo o teatro”. (Ragué 1996, 12).

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ação

els Joglars, Laetius (1980)

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A “normalização” da informação deu lugar à criação da revista “El público”, editada desde 1984 pelo Centro de Documentação Teatral e dirigida por Moisés Pérez Coterillo, até então diretor do Pipirijaina. Foi o veículo que serviu para circulação de informações por todo o país, dando cobertura crítica (com certas limitações, pois se tratava de uma publicação institucional) à produção cênica destes anos e que pode informar, cada vez com maior profundidade, sobre as principais novidades produzidas no contexto internacional.

Das diversas infraestruturas estatais existentes, esta foi a que provavelmente manteve um grau de pluralidade mais constante ao longo de seus oito anos de vida, e nela se encontram alguns textos de qualidade sobre o teatro e a dança contemporâneos, cujos autores são Joan Abellán, Marysé Badiou, Pedro Barea, Xavier Fàbregas, António Fernández Lera e o próprio Pérez Coterillo.

Em relação ao teatro não institucional, a “normalização” foi interpretada como “profissionalização” dos grupos e companhias e como conversão destes em empresas. Nesse processo, foi decisiva a criação, em 1985, do INAEM (Instituto Nacional de Artes Cênicas e Música) e a publicação do código de incentivo ao teatro. O Estado estimulou a profissionalização do setor mediante um “acordo”, uma fórmula que se aplicou também às áreas autônomas (com especial incidência na Catalunha) e que permitiu uma estabilidade até então impensável e também o planejamento da produção a médio prazo. Esta fórmula beneficiaria, a longo prazo, as produtoras comerciais em detrimento dos grupos de criação, permitiu, durante a década de oitenta, que algumas companhias de teatro e dança contemporânea pudessem produzir sem angústia excessiva, apesar do escasso circuito interno. Este momento iniciou uma nova fase de produção para Els Joglars, Comediants, La Cuadra, Albert Vidal e Carles Santos; momento em que começaram a trabalhar Gelabert e Azzopardi, Mudances, La Fura dels Baus, La Cubana, Zotal, Danat Danza, La Tartana, Bekereke, Cambaleo, Teatro del Norte, La Zaranda, Atalaya, Arena Teatro e Mal Pelo.

A consolidação democrática fez com que a urgência política desaparecesse dos palcos, a mesma que afetou o teatro independente com a alegria e a responsabilidade cidadã, características desse teatro de transição. Depois do fracasso do golpe de estado de 1981 (encabeçado pelo tenente coronel Tejero e pelo general Milán del Bosch) e a chegada da esquerda moderada ao governo, depois de quase cinquenta anos, o político se interiorizou na forma, se dissipou no privado e se transferiu para a reflexão sobre os meios. A estetização (que não tem motivo para se tornar sinônimo de perda da consciência política) afetou tanto o teatro institucional como o independente.

Ao mesmo tempo que Lluis Pasqual mostrava versões estetizadas do Brecht marxista no Teatro María Guerrero e Flotats, com todo o apoio da Generalitat, dava nova vida a “Cyrano de Bergerac” no Poliorama (transformado em teatro público), o Fura dels Baus voltava seus interesses a uma experimentação sensorial, ao mesmo tempo que companhias como a Zotal, Brau Teatre e La Tartana exploravam um teatro do corpo, da voz e da imagem; o Mudances e Danat Danza se juntavam às novas tendências da dança contemporânea, seja em sua versão minimalista, seja em sua versão dramática.

O acesso à produção contemporânea internacional foi decisivo para a configuração das novas linguagens cênicas na Espanha, pois, contemplou os espectadores e profissionais do meio com diversos festivais, entre os quais é necessário citar o Festival Internacional de Vitória (dirigido pela cooperativa DENOK nas edições de 1982 e 1983), a Mostra Internacional de Valladolid (dirigida por Juan Gonzáles –Posada a partir de 1983), o Festival Internacional de Granada (que teve sua primeira edição em 1983, programado desde seu início por Manuel Llanes) e o Festival Internacional de Sitges (dirigido por Ricard Salvat até 1986 e por Toni Cots entre os anos de 1987 e 1990).

O CNNTE (Centro Nacional de Nuevas Tendencias Escénicas), sediado na Sala Olimpia, cujo objetivo político era a produção própria de textos de jovens dramaturgos, deu, não obstante, graças à vontade de Guillermo Heras, cobertura e apoio institucional a grande parte das companhias que surgiram nestes anos. Em Barcelona, foi o Mercat de lês Flors, um teatro municipal com programação própria desde 1986 e dirigido por Andreu Morte, o espaço referencial da criação contemporânea, ao que se juntou, durante alguns anos, o Teatre Obert, dirigido por Toni Cots, um “teatro sem teatro”.

A regularização da oferta afetou também o teatro de rua. Apesar de seguirem existindo grupos especializados, como o Xarxa Teatre (que iniciou suas atividades em 1983) e festivais que os apoiavam (sobretudo na Catalunha), a rua deixou de ser um lugar de experimentação artística. As experiências na rua serviram, da mesma maneira que a imersão no circo-teatro, para que muitos grupos se apropriassem de uma série de técnicas físicas e espetaculares, desconhecidas pela instituição teatral do momento, e que, mais adiante, seriam produtivas na elaboração de sua própria linguagem. Mas havia servido, sobretudo, para iniciar uma reflexão sobre o espaço teatral, de modo que, quando o teatro de rua ou o circo perderam sua motivação “rupturista” devido ao fato de serem assimilados como “espetáculos de animação”, quando voltou para dentro das salas, já havia desenvolvida uma concepção diferente de espaço cênico.

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O problema é que, durante os anos oitenta, a política de construção de espaços voltou-se para a reabilitação de teatros do século XIX, com estruturas rígidas, e somente alguns deles permitiam, devido a suas dimensões, outra disposição que não a convencional, italiana. Para atenuar este problema, o Ministério da Cultura teceu um segundo plano de restauração de antigos mercados ou galpões industriais com a finalidade de criar um circuito de espaços não convencionais. Porém, este plano não chegou a ser executado e durante muitos anos só existiram dois teatros polivalentes com certas dimensões e aparatos técnicos e orçamentários adequados: a Sala Olimpia de Madri e o Mercat de lês Flors de Barcelona (além do Teatre Lliure).

A falta de espaços suficientes para apresentações e a evolução estética das companhias deu lugar a uma descontextualização da produção cênica independente dos anos oitenta.

Alguns produziam espetáculos dominados pelo visual e pelo rítmico, nos quais a palavra, em geral, ocupava função secundária. Para seguirem em funcionamento, os grupos necessitavam entrar nos circuitos internacionais e, ao mesmo tempo, desejavam isso, porque também fazia parta da “normalização” a presença do teatro e da dança contemporânea além das fronteiras nacionais. A necessidade e o desejo de europeização dos criadores contemporâneos provocou outro “esquecimento”: desataram-se os laços com as referências da experimentação espanhola das décadas anteriores para que modelos internacionais passassem a ser seguidos, o que aumentou mais ainda o vazio entre os criadores e o contexto cultural da Espanha.

O recente êxito do teatro contemporâneo espanhol fora de nossas fronteiras espanholas e a consolidação de algumas companhias surgidas no começo e na metade dos anos oitenta estimularam quatro grupos, Zotal, Berkereke, Arena y La Tartana a organizar os Encontros de Teatro Contemporâneo em Murcia. Pretendia-se, de certa maneira, abrir novos mercados internacionais e, ao mesmo tempo, refletir sobre a criação cênica, motivos pelos quais convidaram diretores, cenógrafos dramaturgos e gestores de diferentes centros de produção, europeus e americanos, para participarem dos encontros. Nas sucessivas edições do evento, apresentaram seus trabalhos, além das companhias que promoveram o evento, Albert Vidal, Atalaya, Cambaleo, CNNTE, Danat Danza, Konik, John Jesurun, La Fura dels Baus, Mal Pelo, Mickery Theatre y Mudances, somando-se também a participação de mais de quarenta artistas e gestores de dentro e fora da Espanha que participaram dos debates.

Paralela a esta iniciativa, em Madri, La Tartana fundou seu próprio teatro, o Teatro Pradillo, que abriu suas portas em 1990 com vontade de servir de espaço para criações

interdisciplinares, favorecendo uniões com as artes plásticas e com a música, mas, especialmente, favorecer encontros do teatro com a dança, com a intenção de estabelecer relações de intercâmbio com os teatros europeus de pequeno formato e de diálogo com artistas cênicos em risco.6 Sua fundação poderia ser entendida também como uma resposta à crescente “descontextualização” da criação contemporânea, citada acima.

Este processo de expansão do teatro e da dança contemporâneos estendeu-se até 1992, ano de celebração das Olimpíadas, a Exposição Internacional de Sevilla e, com menor importância, a centralidade cultural de Madri (então governada por um prefeito nefasto).

Nos anos anteriores, vários coletivos observaram o aumento de suas expectativas em relação à estabilidade e se arriscaram na produção de espetáculos de formato médio, que poderiam ter circulação em festivais internacionais, organizaram encontros e fóruns de debate e também se lançaram à construção de salas que tinham a finalidade de hospedar produções diferentes das que podiam realizar-se em espaços como a Sala Olimpia (sede do CNNTE) e o Mercat de lês Flors, que já se dedicavam à criação contemporânea.

No início dos anos noventa, o teatro e a dança contemporâneos viviam um momento de grande esperança. Porém, o que parecia o ponto de partida para certa regularidade da criação cênica na Espanha, com a apresentação de alguns grupos espanhóis em cartaz no Teatro Central de la Expo (dirigido por Manuel Llanes) com os mais prestigiados nomes da cena contemporânea e nos vários eventos ocorridos em 92, foi, na verdade, o ponto final para um sonho que desmoronou sem que tivessem conseguido criar nem as infraestruturas de produção e exibição , nem os meios de informação e de documentação, nem os centros de formação adequados. Com exceção da Catalunha (e também de Barcelona), as consequências do ano de 92 foram desastrosas.

Da normalização à vulgarizaçãoA época de normalização havia terminado, e isto foi

celebrado com uma explosão de fogos de artifícios que se apagaram, deixando às claras somente as necessidades. Não obstante, como que seguindo um roteiro pré-estabelecido, entendeu-se que, criadas as infraestruturas e o ordenamento necessários, era o momento de abandonar o mercado à sua própria sorte. A criação contemporânea foi descuidada, e não só ela, mas a produção cênica que tinha “vontade” artística e o mercado, por sua vez, (o das subvenções, dos contratos públicos) foi sendo pouco a pouco devorado por iniciativas comerciais, entre elas as de empresas como a Anexa, Focus, Pentación e Calendas.

6 Reproduzo os testemunhos de Carlos Marquerie en sua intervenção no curso La creación escénica en España 1980-1997, celebrado em Cuenca, em julho de 1997.

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Comediants, Dimonis

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Neste novo contexto, desencadeou-se uma clara hostilidade ao teatro e à dança contemporânea. Em 1993, tentaram, via Ministério da Cultura, organizar uma turnê de grupos de teatro e dança contemporâneos pela recém-formada Rede Nacional de Teatros e Auditórios, que acabou fracassando devido à inadequação das infraestruturas às propostas (a maioria eram teatros do séc. XIX), a falta de contextualização das mesmas, e o desinteresse dos gestores locais. No ano seguinte, o CNNTE se desmantelou e a criação contemporânea ficou sem amparo institucional.

Durante estes anos, por diversas razões, muitas companhias que puderam gozar de grande apoio institucional nos anos anteriores desapareceram ou entraram em crise: Atalaya, La Tartana, Bekereke, Arena... Albert Vidal se auto exilou (entre sua Másia de la Plana e a Mongólia) e La Fura dels Baus mudou seu rumo, depois da partida de Antúnez Roca (Andreu Morte tinha partido antes), para se adaptar às novas condições de produção. Somente as companhias catalãs de dança contemporânea sobreviveram à crise graças à manutenção de um acordo duplo (com o Ministério e a Generalitat): assim, Gelabert y Azzopardi, Mudances, Lanónima Imperial, Danat Danza e Mal Pelo, puderam manter seu ritmo de produção, mesmo com seu circuito de exibição reduzindo-se progressivamente, tanto na Espanha como na Europa.

Esse empobrecimento não só afetou a criação independente, mas também a institucional. A ida de Lluis Pasqual do CDN para o Odeón de Paris marcou o fim do período “excepcional”, iniciando uma nova etapa, na qual o Teatro María Guerrero foi se convertendo, com seus vários diretores, em um teatro de repertório de âmbito estadual. Os novos teatros públicos das autonomias pouco puderam contribuir durante esse período.

Foi precisamente a maturidade do desenvolvimento dos estados autônomos uma das causas desta nova situação. A relativa maioria de votos obtida pelo PSOE nas eleições de 1993 obrigou-o a um pacto com os nacionalistas catalães, que forçaram um enfraquecimento do Ministério da Cultura, trazendo evidentes consequências para a política teatral. Somente a Catalunha pode manter uma atividade cênica importante. No resto da Espanha, incluindo-se Madri, a criação contemporânea (tanto a produção, quanto a exibição) empobreceu. A descentralização das autonomias produziu uma desestruturação no sistema, que conduzia ao isolamento. A rede de teatros públicos favoreceu, desde sua criação em 1992, a circulação de grandes produções ou espetáculos com projeção comercial, mas deixou de lado, e não podia ser diferente, as produções mais arriscadas.

Por outro lado, a multiplicação de infraestruturas locais e autônomas possibilitaram a ascensão de gestores, em muitos casos sem experiência e sem formação suficiente, mais

preocupados com números que com estéticas, preferindo o entretenimento ao discurso. Nesta esfera, estenderam-se o desinteresse e a hostilidade às artes cênicas contemporâneas. A má formação não afetava somente os gestores. Na verdade, a pretendida profissionalização do setor tinha sido escassa, com exceção de Madri e Barcelona: os níveis técnicos de muitos que se pretendiam profissionais seguiam baixos e o discurso dos criadores e críticos, por sua vez, eram precários.

O desinteresse pelo discurso se concretizou em 1993, com o desaparecimento da revista que tinha servido de referência durante a década anterior: a revista El Público. Nenhuma outra a substituiu.

A revista Primeiro Ato, que vinha sendo publicada ininterruptamente desde os anos sessenta, precisava de recursos para cumprir a tarefa abandonada pela revista pública. O mesmo se pode dizer da revista da ADE (Asociación de Directores de Escena de España). E a contribuição com material crítico e historiográfico em ocasiões de grande interesse, sucessivas iniciativas periféricas, não serviram, em caso algum, para que a informação e a crítica circulassem por todo o país. A desinformação atingiu, é claro, de forma peculiar, a criação contemporânea. A isto somou-se o desaparecimento de festivais como o de Granada ou o de Valladolid e a diminuição da presença de companhias internacionais na programação de temporada, com duas exceções: Barcelona e Sevilha. Em Barcelona, graças à programação do Mercat de lês Flors em primeiro lugar e da sala Tallers del Teatro Nacional em segundo. Em Sevilha, graças ao trabalho de Manuel Llanes como diretor do Teatro central, levando-se em conta visível irregularidade.

O isolamento internacional não só dificultou o intercâmbio de informações, mas também a promoção dos novos criadores de fora das fronteiras estatais e sua participação em circuitos internacionais. Em geral, na metade da década de noventa, muitos dos que tinham sido protagonistas da eclosão do teatro contemporâneo tiveram que retornar à marginalidade ou que inventar maneiras para sobreviver. Etelvino Vázquez e Ricardo Iniesta recorreram à combinação de docência e criação, tendo o segundo tomado uma exitosa iniciativa, o TNT (Território de Novos Tempos), que lhe permitiu seguir produzindo profissionalmente, mas com a diminuição do risco de seu repertório. Essa fórmula não era muito diferente da que José Luis Gómez (um dos protagonistas da “”normalização” que não sucumbiu à “vulgarização”) elegeu para iniciar seu teatro de arte, o teatro da Abadía, reativando uma fórmula que tinha mais de cem anos.

Aqueles que, fora da Catalunha, esforçaram-se mais em suas propostas tiveram que assumir a necessidade

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de trabalhar com esquemas de produção próprios de um teatro pobre e enfrentar as grandes dificuldades para a apresentação e distribuição dos espetáculos, especialmente quando fora dos limites da própria comunidade autônoma. A escassez deu lugar a produções de pequeno formato. E a impossibilidade de manter grupos profissionais deu lugar a associações instáveis e sem espaços próprios para ensaio.

Sob estas condições, continuaram trabalhando Carlo Manquerie (companhia Lucas Cranach), Sara Molina (Q Teatro), Rodrigo García (La Carnicería), Óskar Gómez (Legaleón T. e L’Alakran), Ana Vallés (Matarile Teatro), e também Olga Mesa, Blanca Calvo, Mónica Valenciano e La Ribot. Perdida a instituição e tendo o acesso à Rede de Teatros Públicos praticamente fechado, esses criadores encontraram apoio em iniciativas pontuais dos governos locais ou nas aulas de teatro e dança nas universidades, das quais é necessário citar a de Salamanca (dirigida por Alberto Martín, um dos primeiros a descobrir o talento das novas coreógrafas madrilenhas), a de Cantábria (que, dirigida por Francisco Valcarce, organizou uma mostra de Teatro Contemporâneo) e a de Málaga (dirigida por Francisco Corpas, que mantém um espaço constante de debate desde 1994).

Contudo, o principal refúgio destes criadores eram as salas alternativas. Algumas começaram a funcionar em meados dos oitenta, como a Triângulo de Madri (1983) e a Fundação de Bilbao (1985), outras foram criadas no final dos oitenta ou início dos noventa, como a sala Beckett de Barcelona (1988), a Galán de Santiago e a Quarta Parede de Madri (criada em 1986 e transferida para a rua Ercilla em 1992). Todas possuíam em comum o fato de terem surgido como expansão da atividade de uma companhia e, com exceções (como La Pradillo e a Beckett), tinham amparado, em seu início, o trabalho dos grupos que encontravam dificuldades para ter acesso a decisões e circuitos internacionais. Obviamente, a precariedade das condições técnicas, a escassa incidência social e os mínimos ou nulos benefícios econômicos, lastrearam a aparição de uma nova geração de criadores.

Discursos alternativosAs novas condições de produção trouxeram

consequências para configuração dos formatos, estéticas e discursos. Para La Ribot, estar num pequeno formato se mostrou cômodo: minimizaram-se ao máximo, de maneira que surgiram as “piezas distinguidas” (1993). Mónica Valenciano tornou produtiva a sua experiência de marginalidade, explorando-a criativamente em seus solos e danças de pequeno formato, algumas em espaços insólitos, como os compartimentos onde encerravam-se os touros antes das corridas, “los chorriles”, na Plaza de Toros

de Madri (Miniaturas, 1994). Olga Mesa abandonou sua tentativa de criar uma companhia e compôs um de seus melhores espetáculos da época da crueldade, “Esto no es mi cuerpo” (1995). Também Óskar Gomez , depois de alguns primeiros espetáculos mais “comportados” em relação ao que havia se denominado teatro contemporâneo espanhol nos anos oitenta, um teatro rítmico e de imagens, decidiu esboçar um espetáculo para bares. Assim surgiu “El silencio de las Xygulas” (1994), a que se seguiu “Mujeres al rojo vivo”, de Eduerne Rodrígues (1995). Nesse mesmo ano, Rodrigo García, depois de várias tentativas, criou um de seus clássicos, “Notas de cocina” (1995), estreando-o no Teatro Pradillo de Madri.

Este teatro, dirigido por Carlos Manquerie, foi o lugar de referência para a criação contemporânea entre 1992 e1996. Quase todos os artistas citados estrearam ou passaram por ali. Em alguns casos, a necessidade deu lugar a formas de comunicação caracterizadas pelo humor e pela urgência, e também por uma estética da mistura, da contaminação. Em outros, o discurso poético ou expressivo se radicalizou, uma vez assumida a impossibilidade de atingir o grande público. Tratava-se sempre de produzir trabalhos fronteiriços, como se estes buscassem escapar de um determinado espaço, o teatro, que na Espanha lhes estava vetado. Uns voltados à ação e às artes visuais. Outros voltados ao cabaré, à rua... O corpo saia reforçado. A escassez de meios obrigava ao trabalho com o mínimo, à volta ao essencial, que favoreceu o encontro do teatro com a dança e da dança com a arte corporal. Os pequenos formatos fizeram mais fluida a comunicação entre os meios e, da disciplina, passaram à transdisciplina, e também à indisciplina.

A evolução foi diferente em Barcelona, onde os teatros públicos não se fecharam à criação contemporânea e onde os apoios da Generalitat às companhias seguiam sendo mais generosos que os de outros governos autônomos. Isso permitiu que alguns criadores, com carreiras já consolidadas, mantivessem suas linhas de produção em formato médio e grande. Não somente os já comerciais Els Joglars (pela aceitação do público), Comediants e o Fura dels Baus (estes dois também pela renúncia ao discurso), mas também criadores mais radicais como Carles Santos, Ángels Margarit, María Muñoz e Pep Ramis, que durante os noventa produziram seus espetáculos de maior formato (entretanto o grande formato nem sempre beneficiou estes criadores e somente Carles Santos foi capaz de crescer em todos os sentidos sem que agora vejamos limites impostos a esse crescimento).

Isso não impediu que Barcelona tivesse uma cena alternativa. O abandono do La Fura dels Baus por parte de Marcel.lí Antunes, em vez de parecer forçado por seus companheiros, tinha a ver com sua discordância

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relacionada à deriva da companhia e à sua necessidade de continuar uma pesquisa de caráter mais radical em formato interdisciplinar. Daí surgiu uma peça de pequeno formato, sem dúvida seu melhor trabalho, chamada “Epizoo” (1994), coincidindo com a data da aposta de criadores madrilenhos em linguagens corporais. Nestes mesmos anos, e com o mesmo interesse pela contaminação e exploração de um discurso marginal, Txiki Berraondo e Magda Puyo dirigiram as montagens de “Metadones:La Bernarda es calva” (1997) e “Medea Mix” (1997). Enquanto isso, Simona Levi abria uma sala clandestina, no bairro do Raval, chamada Conservas (1993) (mas sua influência esperaria alguns anos para fazer-se notar).

O característico do contexto catalão advém do crescimento excessivo das infraestruturas públicas (especialmente nos últimos anos, com a inauguração das três novas salas do Teatro Nacional e das que acolhem a denominada Cidade do Teatro, onde se instalou, junto com o Mercat de lês Flors e o Instituto do Teatro, o novo Teatre Lliure) possibilitou que algumas das produções mais alternativas pudessem ser apresentadas por algum dos teatros públicos ou semipúblicos e, inclusive, produzidas por eles, mesmo com alguns diretores tendo a possibilidade de trabalhar alternativamente na instituição e independentemente.

Enquanto isso, o crescente empobrecimento dos circuitos e dos centros de produção fez com que diretores e coreógrafos fossem obrigados a buscar novas formas de organização. De um lado, as salas alternativas organizaram-se melhor conseguindo maior presença em nível estatal, o que se fez visível pelo aumento de qualidade e de público que atingiu a Muestra Internacional de Teatro La Alternativa de Madrid (dirigida em sua edição de 2000 por Javier Yagüe, antes de ter seu nome mudado para Escena Contemporânea) e também na presença de algumas das produções surgidas dessas salas nos circuitos nacionais e internacionais.

Não obstante, as salas ainda tinham como obstáculo os escassos recursos, a impossibilidade de pagar cachês às companhias fora dos festivais, a limitação dos espaços e a falta de dotação técnica mínima.

Outras formas de organização se faziam necessárias. Em Madri, Blanca Calvo, La Ribot, Mónica Valenciano, Olga Mesa, Ana Buitrago e Elena Córdoba compuseram um encontro de pesquisa denominado U.V.I. (Urgente Vinculación de Iniciativas), ao qual tinha acesso bailarinas, atores e artistas de outras disciplinas, e que oferecia, uma vez por mês, sessões de improvisação abertas ao público. Elas estavam unidas por um mesmo compromisso com a busca de linguagens radicalmente adequadas às necessidades expressivas e comunicativas de nosso tempo e a resistência

a dobrarem-se ante códigos há muito estabelecidos da chamada dança contemporânea. Com menos radicalidade estética, mas com preocupações semelhantes sobre o crescente isolamento da criação coreográfica e a necessidade de fortalecer a comunicação com o exterior e com novas gerações, sete companhias da segunda geração de dança catalã se uniram para alugar um local que tinha se convertido em centro de pesquisa e exibição: La Caldera.

Em 1996, Carlos Marquerie abandonou a direção do Teatro Pradillo e o grupo que tinha fundado a sala La Tartana para fundar uma nova companhia: Lucas Cranach, com a qual aprofundou seus interesses plásticos e dramatúrgicos, além de trabalhar com uma maior proximidade ao trabalho corporal. Em pouco tempo, o Teatro Pradillo deixou de ser referência para a criação contemporânea madrilenha , que encontrou um novo espaço: a sala Cuarta Parede, que surgiu, como o nome indica, com interesses muito distintos daqueles que guiavam os diretores e coreógrafos que foram para lá (Rodrigo García, La Ribot, Blanca Calvo, Olga Mesa, Carlos Marquerie, Antonio Fernández Lera, Mónica Valenciano), mas que conseguiu um público fiel também graças à pluralidade de sua programação.

A consolidação de novas linguagens estéticas criadas nos teatros alternativos exigia a conquista de espaços culturais de maior impacto social e com maior presença no contexto da criação internacional. Foi em 1997 que Blanca Calvo e La Ribot , cansadas do isolamento e da incompreensão e uma vez esgotada a experiência da UVI, decidiram iniciar a realização de “Desviaciones”, um ciclo concebido para contextualizar suas próprias criações , seja mediante à programação de artistas internacionais, seja via organização de conferências e debates, cuja função consistia não em explicar os espetáculos, mas em defender que os espetáculos não eram um lugar de ócio, mas sim um espaço para a experiência artística, o debate criativo... “Desviaciones” começou a funcionar graças à colaboração dos serviços culturais das embaixadas e graças a um tímido apoio institucional, que não foi suficiente para garantir sua continuidade após cinco anos.

Na Catalunha, com certo atraso em relação a Madri, produziram-se, a partir de 1999, reações interessantes, paralelas às de “Desviaciones”, como o projeto de “General Eléctrica” ou o Festival In motion, organizado por Simona Levi, que dava continuidade à programação de “Conservas”, um projeto com o qual Levi tentou responder à falsa incorporação da contemporaneidade às estruturas públicas. Também em 1999 iniciou-se em Cuenca o “Situaciones”, um festival multidisciplinar surgido da Universidade de Castilha-La Mancha, e que, durante três anos acolheu algumas das produções destes últimos anos e que em sua segunda edição

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(2001) organizou um Fórum Internacional de Artes Cênicas, do qual surge um documento chamado “Declaración de Cuenca”.

Salvas estas e outras iniciativas, poucos são os criadores que (fora de Barcelona) têm conseguido manter uma produção de qualidade sem renunciar a seus interesses estéticos e discursivos. Óskar Gómez e La Ribot foram os primeiros a partir (para Genebra e Suíça, respectivamente). Rodrigo García e Olga Mesa têm produzido os seus espetáculos do século XXI com apoio internacional e suas turnês se dão em âmbito Europeu, com escassa presença na Espanha. Maria Muñoz e Pep Ramis, juntos a Toni Cots, optaram pelo exílio interior, criando um centro de pesquisa num pequeno povoado perto de Gerona, “L’Animal a l’esquena”, uma ilha de diálogo interdisciplinar e internacional em meio ao autismo nacionalista. Entretanto, Marta Oliveres, uma das escassas agentes de distribuição e produção que unem profissionalismo e compromisso estético, manteve sua aposta em manter no circuito internacional criadores como Carles Santos, Marcel-lí Antunes ou Roger Bernat, garantindo seu crescimento, mesmo com a precariedade dos circuitos internos.

Tudo isso dificultou enormemente a criação de modelos e de relevância para esta geração. A geração seguinte à dos criadores citados teve poucas oportunidades não de êxito, mas de meramente alcançar uma presença pública. Os que voltaram seus trabalhos para o corpo e para a imagem

(Cuqui Jerez, Ion Munduate, Juan Domínguez...) tiveram

maior facilidade para trabalhar com apoio externo, mas

aqueles que insistem em recorrer à fala (Angélica Liddel,

Marta Galén...) seguem experimentando a ausência de

contextos e de referências adequadas para a apresentação de

seus trabalhos.

Ainda em 2006, registravam-se alguns indícios de

mudança: o novo impulso dado por Magda Puyo e Mateo

Feijoo aos festivais de Sitges e Escena Contemporânea

(Madri), a reincorporação de Andreu Morte ao Mercat

de lês Flors, a criação de novas infraestruturas culturais,

como a Casa Encendida (Madri), e novos festivais como

o Esciena Abierta em Burgos, Valencia Escena Oberta

e Panorama em Olot, o estímulo com que contribuiu o

Festival Mira!La outra España em Toulouse, e o trabalho de

fundo profissional como Laura Etxebarria (La Fundación,

Bilbao) ou Manuel Llanes (Teatro Central de Sevilla). A

tudo isso se une a implementação de novas políticas culturais

como consequência das eleições autônomas e gerais, com

mudanças importantes especialmente na Catalunha e

no governo central. Não podemos ser exageradamente

otimistas, mas sim confiar em uma mínima articulação de

todas essas iniciativas conjuntas que, junto às facilidades

cada vez maiores de mobilidade europeia, contribuísse para o

enriquecimento da criação cênica espanhola.

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angelica Lidell, Perro Muerto en Tintoreria – Los Fuertes (2007)

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angelica Lidell, Perro Muerto en Tintoreria – Los Fuertes (2007)

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Jorge Louraço

O estudo mais abrangente sobre o meio teatral português ainda é um ensaio de Maria Helena Serôdio, datado de 1998.1 Os dados apresentados são, porém preocupantes: enquanto os apoios sobem a partir de 1990 e até 1995, e se concentram num número mais reduzido de projectos, o número de espectadores desce entre 1981 e 1992, de 500 mil para 350 mil espectadores, com o número mais alto na temporada 82/83 (mais de 600 mil espectadores) e o número mais baixo em 89 (cerca de 200 mil). João Teixeira Lopes, do Observatório das Actividades Culturais (OAC), acrescenta noutro artigo 2 os números de 1973 (um milhão) e de 1993 (200 mil).

Entre 1986 e 2001, o investimento dos municípios – as prefeituras – aumentou 600%, segundo José Soares Neves, do OAC, mas sobretudo nas áreas do património e equipamentos, seguidos da música, e à distância, as artes plásticas, as artes cénicas e as artes audiovisuais. 3 Porém, em 1999, nove em cada dez portugueses não viam nenhum

espectáculo de teatro ao vivo, por ano. 4 Será mesmo assim?Os dados estatísticos referentes às actividades culturais

em Portugal são escassos e, destes, os referentes ao teatro ainda mais difíceis de obter. Ainda assim, podem fazer-se algumas especulações cruzando esses dados com outros, e com notícias de jornal, artigos da especialidade e, enfim, conversas de café. Por exemplo, o quadro seguinte, gerado no Pordata (www.portada.pt), mostra a provável relação entre o número de espectadores de teatro («Espectadores por mil hab.») e as despesas do Estado na área da cultura («Artes Cénicas» e «Artes Cénicas 2», as despesas correntes e de capital, neste caso apenas dos municípios). Haverá muitas críticas a fazer a essas despesas e ao resultado delas, claro, mas uma coisa parece certa: mais financiamento público, mais público. Logo, mais República? Talvez.

Outros dados do Pordata revelam que, de 1960 para cá, diminuiu o número médio de espectadores por sessão, mas aumentou o número de sessões, e, desde 1999, o número absoluto de espectadores. Provavelmente, passou a haver mais espectáculos para grupos menores de espectadores,

Sobre o investimento público no teatro em Portugal EStatíStica E contra-EStatíStica

1 SERÔDIO, M. H., «Theatre as a social system:

Portugal», Theatre Worlds in Motion:

Structures, Politics and developments

in the Countries of Western Europe,

Eds. H. Van Maanen & S.E. Wilmer, Amsterdam &

Atlanta: Rodopi, 1998, pp.498-539.

2 LOPES, J. T., «Os públicos do teatro e a inocência dos

criadores», OBS, nº 2, Outubro de 1997,

pp. 15-19.3 NEVES, J. S.,

«Despesas dos municípios com

cultura (1986-2003)», Janeiro de 2005,

OAC4 NEVES, J. S.,

«Práticas culturais dos portugueses

(2): espectáculos ao vivo», OBS, nº 3, Junho de 2001,

pp. 1-8.

Dramaturgo e pesquisador, atuante

em Portugal junto ao grupo Teatrão de Coimbra, e no Brasil

junto ao Grupo Folias em São Paulo.

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isto é, maior diversidade. Estudos mais aprofundados terão de ser feitos.

A ideia de que as artes e a cultura devem ser apoiadas pelo Estado está inscrita na constituição portuguesa desde 19765, embora por vezes pareça ser o único lugar onde essa inscrição foi feita, pelo menos a julgar pelo cancelamento de programas, festivais, espectáculos e exposições este ano. As notícias vindas de Portugal são apocalípticas: queda de 75% do investimento público na cultura, para 0,1% do PIB entre 2002 e 2012; cortes de 40%, 60% e 100% nos apoios quadrienais, bienais e anuais/pontuais, respectivamente, entre 2010 e 2012; extinção do Ministério da Cultura em 2011. Os financiamentos europeus são uma ilusão: nenhum representante da cultura tem assento no conselho interministerial que, este ano, vai reprogramar esses fundos. O dinheiro que se gasta e gastou para salvar a banca daria para manter os teatros abertos e a funcionar até ao fim dos tempos. Em todo o caso, desde os anos setenta, na sequência do 25 de Abril de 1974, os apoios ao teatro são política de Estado. Esse investimento constitui uma grande parte do orçamento dos projectos teatrais em curso, entre 1/3 a 2/3 do total do financiamento que angariam, e uma parte sem a qual é impossível obter o apoio de outras instituições, como sejam fundações e embaixadas, vender espectáculos para o estrangeiro, ou abrir as portas para ter receitas de bilheteira.

Classes de grupos teatraisEm Portugal há dois teatros nacionais, o Dona Maria II,

em Lisboa, e o São João, no Porto (além de um teatro de ópera, o São Carlos, também em Lisboa). Estes dois teatros são normalmente dirigidos por encenadores que alternam as suas criações com convites a outros artistas e, ultimamente, por razões orçamentais, co-produções com companhias independentes, estas beneficiárias de apoios quadrienais ou bienais.

Em Lisboa existem ainda os teatros municipais São Luiz, Maria Matos e Taborda. E no Porto, o teatro Rivoli, municipal, e o Teatro do Campo Alegre, parceria entre universidade e município. Alguns equipamentos apresentam espectáculos de teatro como parte de uma programação cultural de âmbito mais alargado, incluindo artes plásticas, música e dança. Na alçada do Estado Central, o Centro Cultural de Belém. Na esfera semi-privada, a Fundação Gulbenkian e a Culturgest, em Lisboa, e a Fundação de Serralves, no Porto. Este conjunto de espaços acolhe e programa as companhias independentes, com critérios umas vezes sãos, outras não.

As companhias independentes a que me refiro são uma vintena em Lisboa, fundadas entre o final dos anos sessenta e o final dos anos setenta, a maior parte com os seus espaços próprios, e beneficiárias de apoios sustentados, por 4 anos, a

que se candidatam regularmente. As companhias fundadas posteriormente, uma dezena delas, têm normalmente apoio por 2 anos. No Porto haverá uma dezena e meia de companhias, fundadas ou refundadas nos anos noventa. Mesmo tendo sido colectivos artísticos, a maioria destes grupos gira hoje em dia em torno de um encenador ou dupla de criadores.

Na órbita dos grupos independentes, alguns actores têm projectos ocasionais, com apoio anual ou pontual (este último concedido para a montagem de uma obra apenas), onde se juntam por vezes com actores mais jovens, que aí fazem o seu tirocínio. Alguns destes artistas passam depois para grupos mais instituídos, outros vingam graças à dramaturgia própria, outros à originalidade das montagens e dos espaços não convencionais que ocupam.

Existe ainda um afloramento de teatro comercial, em torno de actores que, mesmo vindo do teatro, são hoje vedetas da TV, e de um encenar que, fenómeno, conseguiu obter um grande sucesso no seio do Dona Maria e, com esse empurrão, construir uma carreira de musicais, ora estrangeiros, ora nacionais. Mesmo reclamando não ter subsídios do Estado, estes produtores e criadores sobrevivem graças à venda de espectáculos aos municípios ou à cedência de espaços municipais.

A inclusão numa ou noutra destas formas de trabalho tem a ver directamente com o subsídio, o espaço e a duração dos contratos. Os valores do apoio público podem variar muito, desde os cerca de 600 mil euros de apoio para o período 2005-2009 e 700 mil para 2009-2012 do Teatro da Cornucópia, Teatro Aberto e Companhia de Teatro de Almada, até aos quase 100 mil para 2005-2009 dos Ensemble, Artimagem e Casa Conveniente que se mantiveram no período seguinte. (Foi sobre estes valores, contratualizados, que incidiram cortes de 40%.) Outras companhias, como o Teatro Praga ou o Visões Úteis viram os seus apoios aumentarem de 2 para 4 anos, e de 70 mil e 55 mil, em 2005, para 160 mil e 120 mil euros respectivamente. O Teatrão, de Coimbra, com apoio bienal, subiu de 100 mil para 150 mil entre 2005 e 2009, e recuou (com os cortes de 20% no orçamento do concurso do final de 2010) para 120 mil (sobre o qual incidiram, para o exercício de 2012, cortes adicionais de 40%).

A concessão de subsídios tem vários problemas: a montante, a escolha dos jurados5 depende única e exclusivamente de uma pessoa, normalmente o director ou presidente do organismo governamental responsável pelos apoios; a jusante, a avaliação do uso dos subsídios é incipiente, por falta de recursos humanos, criando um sistema de impunidade geral que favorece os oportunistas e prejudica todos. Mas pior do que isso é o adiamento ou cancelamento da abertura de concursos, a mudança de

5 Mais precisamente no Artigo 78.º (Fruição e criação cultural), que nunca é demais lembrar: 1. Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural. 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio; b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade; c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum; d) Desenvolver as relações culturais com todos os povos, especialmente os de língua portuguesa, e assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro; e) Articular a política cultural e as demais políticas sectoriais.6 Eu próprio fui membro do júri dos apoios pontuais por duas vezes.

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regulamentos, a alteração do orçamento das instituições: este inconstância é a única coisa com que se pode contar. Como dizia recentemente um actor, e sem pinga de auto-comiseração, sobre os efeitos da crise: os artistas de teatro sempre viveram com dificuldades financeiras.

Políticas e políticosLisboa Capital Europeia da Cultura em 1994, a criação do

Ministério da Cultura em 1995, a Expo’98 e o Porto Capital Europeia da Cultura em 2001 foram os marcos fundamentais de uma estruturação do sector das artes e do património cultural feita (em cinco anos) por iniciativa do Estado. Os apoios ao teatro foram aumentando durante os anos noventa. As companhias mais antigas viram os seus montantes duplicar. O número de entidades apoiadas multiplicou por cinco.

A distribuição geográfica desse investimento tem sido desde sempre regionalmente assimétrica, favorecendo Lisboa em detrimento do resto do país: segundo dados da Plateia (Associação de Profissionais das Artes Cénicas), 50% do dinheiro ia para uma área com apenas 25% da população (em 2009). É nesta região, Lisboa e Vale do Tejo, que se concentram 50% dos grupos.

Nos anos noventa, o Ministério da Cultura promoveu a criação de Centros Regionais das Artes do Espectáculo, seguindo um modelo comum em outros países europeus, tendo tido sucesso na implementação de um em Viseu e outro em Évora, além da refundação do TNSJ. Os centros projectados para outras cidades não chegaram a ver a luz do dia, porém. Uma rede nacional de cine-teatros tem estado nos projectos governamentais desde então, assente nos teatros que foram construídos e equipados de raiz ou remodelados pelos municípios (com financiamento europeu),

mas aos quais nunca foram atribuídos meios suficientes para, depois de concluídas as obras de construção civil, funcionarem como teatros, com equipas de técnicos, artistas residentes ou associados, e programação regular. Um caso exemplar é o do Teatro Aveirense, municipal, que acabou por abrir falência.

No lugar destes Centros e desta Rede continuaram as chamadas companhias da descentralização, radicadas no interior a partir de 1974, e que foram em crescendo até 1984, quando os apoios foram concentrados numas poucas, segundo Maria Helena Serôdio. Estas companhias terão beneficiado, sobretudo a partir do fim dos anos oitenta, do maior apoio da autarquia local.

A política de grandes eventos culturais, o investimento na construção de equipamentos sem criadores e a municipalização da actividade teatral, entre outros aspectos, consagraram a programação em espírito de festival, ou, de outro modo, o império dos programadores culturais, com espectáculos a serem ensaiados durante meses para fazerem menos de uma semana de representações, pouco mais do que faz um espectáculo em digressão internacional vindo de fora do país. Quando as pessoas fora do ciclo imediato de aficionados ouvem falar do espectáculo e consideram uma ida ao teatro, já a peça ficou fora de cartaz.

A maior parte das companhias pôde sobreviver com os apoios do Estado central e local, cada indivíduo complementando o seu vencimento mensal com filmagens de cinema ou TV, dobragens, publicidade, dando aulas ou participando em projectos de animação de rua e eventos. Mas agora, como será?

Se pensarmos nos espectadores, nos artistas e nos governantes como os vértices de um triângulo amoroso (ou melhor dizendo, de amor/ódio) é entre o público e o teatro que esse vínculo está mais enfraquecido. A reduzida carreira da grande maioria dos espectáculos limita severamente o número de espectadores possíveis de cada obra e o número de representações por ano de dada sala de teatro, companhia, grupo, actor, etc.

A imprensa ajuda e não ajuda. A crítica foi sendo substituída pelos artigos de antevisão. Com carreiras curtas, aos jornais interessa garantir o carácter noticioso do que publicam, e aos grupos a promoção dos espectáculos para programador e financiador ver. Obras com 3 a 6 apresentações ocupam o mesmo espaço, entre notícias, publicidade e cartazes, que as outras, poucas, que se arriscam a ficar mais tempo em cena e, logo, a poderem constituir sucessos ou fracassos. (Em boa verdade, um espectáculo que fica menos de uma semana em cena, subtrai-se à apreciação da classe, do público e da crítica.)

Até há pouco tempo, a reposição de espectáculos era uma miragem. Os cortes, porém, não só estão a obrigar

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O teatrão, Dom Quixote 8 (2011)

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as companhias a prolongarem as suas carreiras para aumentarem receitas mas sobretudo estão a libertar os actores de outros compromissos, já que diminuiu o número de produções, e à falta de outras propostas, dir-se-ia, mais vale ficar em cartaz. Talvez seja tarde de mais.

A uns correspondem carreiras curtas, grande espaço na imprensa; a outros carreiras mais longas, bilheteira, trabalho semi-profissional, má reputação. Mesmo que a exposição mediática seja grande, o número de espectadores é necessariamente reduzido, limitado que está ao número de récitas. As companhias estão sozinhas, sem aquele que seria o seu maior aliado: o público de teatro.

No Porto, no Dia Mundial do Teatro, os grupos reuniram-se, numa iniciativa promovida pelo Teatro Nacional São João, na tentativa de constituir uma plataforma de grupos para tratar de problemas comuns. Não existe em Portugal uma cooperativa de grupos como em São Paulo, nem uma associação de produtores. Um novo sindicato foi fundando há poucos meses, concorrendo com o mais antigo, pouco representativo; e a Plateia ou a Plataforma do Teatro, organizações do Porto e Lisboa, respectivamente, têm reagido aos desmandos do governo quando se requer, mas fora disso ficado passivas, apesar de haver todo um sector por regulamentar independentemente da iniciativa governamental. A desconfiança entre os pares é muito grande. A competição por recursos que percebem como limitados leva a estratégias de perda mútua e a jogos de soma nula, inibindo a cooperação. A perpetuação do lote de apoiados desencoraja os mais novos. Na hora de contar espingardas, os artistas de teatro só precisarão dos dedos da mão.

O que os governantes parecem querer fazer é voltar ao modelo anterior a 1995. Para o ano que vem anuncia-se a criação de linhas de apoio sem concurso, destinadas às companhias mais antigas. O corte de 100% nos projectos anuais e pontuais quer dizer que estes concursos foram extintos. Informalmente, há anos que é essa a estratégia. Em 2005, podia ler-se, na mesma página de jornal, por uma dessas coincidências que não são meras, uma reportagem sobre cortes aos grupos independentes e uma notícia de reforço ao teatro nacional. Desde o fim de 2001, pelo menos, tem sido essa a lógica: dispersar a produção independente, concentrar os recursos na produção institucional. Será provavelmente essa a solução avançada como a melhor possível, no melhor dos mundos possíveis, para resolver a dita crise.

O túnel ao fundo da luzAo mesmo tempo que chegam estas notícias de

dificuldades, Porto e Lisboa fervilham com actividades espontâneas, mais ou menos off: concertos em antigos

armazéns, edições clandestinas, performances em casas arrendadas, tudo mexe. A produção literária, cinematográfica e arquitectónica portuguesa é premiada internacionalmente. Já para não falar na abertura de bares e discotecas, dos vinhos, têxteis e produtos inovadores, dos hostels urbanos e das paisagens semi-rurais. O que os governos não entendem é que este fervilhar decorre do investimento feito nos anos anteriores. E a pretexto da crise, as actividades culturais estão a ser atiradas para a esfera dos negócios particulares, onde serão submetidas a vistas curtas. É a cigarra que se quer formiga. O lugar da arte e dos artistas é alvo de debate: por um lado, são marginais, por outro são centrais para o processo de acumulação de vantagens necessário para ganhar dinheiro com o turismo, por exemplo. A Capital Europeia da Cultura, este ano em Guimarães, é, mais do que um berço da nação cultural, um ninho de empresas das chamadas indústrias culturais. O mercado é a entidade mítica cuja mão mais ou menos visível tudo moldará. Estão prestes a matar a galinha dos ovos de ouro.

É longa a tradição de patrocínio público das actividades artísticas. No nosso tempo, as práticas de investimento público foram refundadas após a segunda guerra mundial. Vale a pena reler a citação de Joshua Sofaer, em entrevista ao Público: «Logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra quis diminuir os gastos com a cultura, Winston Churchill (não acredito que estou a citar Churchill) perguntou: então para que é que estivemos a lutar?». Ou a de Ariane Mnouchkine, em entrevista à Camarim, recordando que os planos de dinamização cultural da França foram feitos no seio da Resistência, ainda durante a guerra: «na França a situação cultural vem de um sonho, não de uma legítima reivindicação ( ) depois da guerra, pessoas maravilhosas como Jean Dasté, Hubert Gignoux, pegam suas mochilas e suas coisas e vão a Strasbourg, a Saint-Étienne, com suas trupes, com os seus grupos de atores. E de uma certa maneira eles vão civilizar a França.»

O teatro pode fazer-se mesmo num continente em ruínas, devastado pela guerra, desde que tenha um lugar onde. Mas a acrescer a todos estes problemas, há hoje um problema ainda maior, o do espaço, em cidades cujos centros urbanos estão no meio do furacão do negócio imobiliário. No Porto, uma das salas do Teatro Nacional São João, o TeCA, esteve quase a fechar; o Teatro Rivoli foi entregue a privados por, supostamente, dar prejuízo; As Boas Raparigas tiveram de abandonar a sua sala por não conseguirem pagar o aluguer. A austeridade imposta ao teatro por uma crise que teve origem precisamente na especulação financeira sobre a propriedade predial, ataca afinal o mesmo objectivo: o espaço urbano. Talvez seja preciso lutar de novo.

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Silvia Fernandes

O teatro contemporâneo partilha com a dança, as

artes plásticas e o cinema uma crise de identidade e uma

indefinição de estatuto epistemológico. Nesse sentido,

pode-se falar de experiências cênicas com demarcações

fluidas de território, em que o embaralhamento dos modos

espetaculares e a perda de fronteiras entre os diferentes

domínios artísticos é uma constante.

Em resposta à transformação, vários teóricos do teatro e

da performance buscam organizar vetores de leitura dessas

espécies estranhadas de teatro total que, ao contrário da

gesamtkustwerk wagneriana, rejeitam a totalização, e cujo

traço mais evidente é a freqüência com que se situam em

territórios híbridos de artes plásticas, música, dança, cinema,

vídeo e performance, além da opção por processos criativos

avessos à ascendência do drama para a constituição de sua

teatralidade e seu sentido.

Os aparatos conceituais que enfrentam essa produção

heterogênea, de um modo ou de outro reincidem nos

conceitos de teatralidade e performatividade, que têm se

revelado instrumentos preferenciais de operação teórica

das experiências de caráter eminentemente cênico, que

manejam múltiplos enunciadores em sua produção.

Ao mesmo tempo em que os dois conceitos definem

campos de estudo específicos, chegam a confundir-se

em determinadas abordagens, dependendo da filiação do

ensaísta a uma ou outra tendência de análise do fenômeno

cênico. De qualquer forma, usadas metaforicamente

ou como conceito operativo, de modos divergentes ou

até mesmo contraditórios, as noções são recorrentes

não apenas na teoria teatral, mas em disciplinas como

teatralidade e performatividade na cena contemporânea

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ação

Bob Wilson, A Última Gravação de Krapp

Professora e pesquisadora do

Departamento de Artes Cênicas da

ECA-USP

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a antropologia, a sociologia, a filosofia, a política, a psicanálise e a economia.1

A partir da freqüência com que são utilizadas, é possível especular em que medida os estudos contemporâneos sobre teatralidade e performatividade são uma resposta conceptual à dissolução de limites entre obra e processo, ficcional e real, espaço cênico e espaço público, ator e performer. A hipótese que se considera aqui é que ambos os conceitos podem funcionar como operadores de leitura da cena de fronteira criada não apenas por uma parcela significativa do teatro contemporâneo mundial, mas também por artistas brasileiros.

Um bom exemplo do procedimento é o esboço de teatralidades plurais que Patrice Pavis projeta no texto “A teatralidade em Avignon”, publicado há dez anos.2 No ensaio, discrimina a idéia do especificamente teatral a partir de práticas cênicas concretas, em geral divergentes, apresentadas no Festival de Avignon de 1998. Na instigante operação de leitura dos espetáculos da mostra, prova que é possível dissociar o termo de qualidades abstratas ou essências inerentes ao fenômeno teatral para trabalhá-lo com base no uso pragmático de certos procedimentos cênicos e, especialmente, da materialidade espacial, visual, textual, corporal e expressiva de escrituras espetaculares específicas. Sustenta que, para um espectador aberto às experiências da cena contemporânea, a teatralidade pode ser uma maneira de atenuar o real para torná-lo estético; ou um modo de sublinhar esse real com um traçado cênico obsessivo, a fim de reconhecê-lo e compreender o político; ou um embate de regimes ficcionais distintos que impede a encenação de construir-se a partir de um único ponto de vista, e abre múltiplos focos de olhar em disputa pela primazia de observação do mundo. De acordo com o ensaísta, a teatralidade pode ser também o canteiro de obras de um work in progress teatral, ou uma categoria que se apaga sob formas diversas de performatividade, revelando campos extra-cênicos, culturais, antropológicos e éticos.

Como se vê, segundo Pavis a teatralidade é um termo polissêmico, que inclui a performatividade, e depende da leitura do espectador para se constituir.

teatralidade e anti-teatralidadeSe para o ensaísta francês o conceito de teatralidade

é operacional, para o teórico americano Martin Puchner a teatralidade deve ser investigada a partir das correntes tradicionais que a ela se opõe ou que a defendem, representadas exemplarmente, na história do teatro, pelas proposições de Stéphane Mallarmé e Richard Wagner, não por acaso dois artistas ligados ao simbolismo.3 Enquanto para o poeta francês o que importa é o “teatro do verbo” e a cena mental do leitor, o conceito wagneriano de obra de arte total baseia-se exatamente na materialidade da encenação, já que a gesamtkusntwerk propõe a teatralidade

como meio privilegiado de fusão do drama, da música, da poesia e do gesto.

Puchner elege as posições antagônicas dos artistas como balizas de demarcação de diversas questões teóricas ligadas ao problema, que analisa exemplarmente em seu já clássico stage Fright, a partir da vertente que considera anti-teatralista. O argumento avançado por Puchner, defendido anteriormente por estudiosos como Jonas Barish e Evlyn Gould, começa por indicar a gênese platônica do anti-teatralismo.4 A partir dos diálogos da república, projeta a extensa linhagem dos opositores à “arte do engano”, demonstrando que a suspeita contra a representação é tão antiga quanto a defesa da ação teatral concreta, que opõe as concepções de Platão e Aristóteles já na nomeação do ator – hypocritès e prattontes, o fingidor e o atuante.5

Mas para Puchner, o antagonismo só adquire foros de luta estética a partir do modernismo, quando um assalto avassalador desestabiliza o fundamento dominante da enunciação teatral – a representação da realidade sustentada pela coerência da personagem e da narrativa ficcional do drama. No contexto de quebra de paradigmas que definiu o teatro moderno, a dinâmica anti-teatral funcionou a partir de um processo de resistência acionado no interior do próprio teatro, e foi responsável pela definição de mudanças substantivas no texto dramático, na concepção das personagens e também no trabalho do ator.

Nesse sentido, o anti-teatralismo, mais que uma oposição, foi uma força produtiva de criação de experiências radicais de outro tipo de teatralidade. Vista desse ponto de vista, a anti-teatralidade de criadores como Maurice Maeterlinck, Stéphane Mallarmé, Gertrude Stein e mesmo Antonin Artaud, que Puchner alinha à tendência, pode ser vista como oposição ao paradigma teatral em vigor.

A esse respeito, é interessante constatar que a corrente definida por Puchner como oposta à teatralidade em geral

1 Nas áreas da teoria e da história do teatro, aparecem especialmente nos ensaios de Bernard Dort, Patrice Pavis, Erika Fischer-Lichte, Jean-Pierre Sarrazac, Marvin Carlson e Josette Féral; em relação à abordagen específica da corporeidade, são freqüentes nos estudos de Eli Rozik, Susan Leigh Foster e Virginie Magnat; na área dos estudos culturais recebem atenção especial de Joachim Fiebach; nos trabalhos ligados à ciência cognitiva são analisados por Malgorzata Sugiera; nos estudos culturais sobre a performance são esmiuçadas por Richard Schechner, Judith Butler, Freddie Rokem e Janelle Reinelt, ensaístas que promovem a migração da noção de teatralidade para a de performatividade. Também é recidivo o uso dos termos nas análises da cena pós-moderna e do teatro pós-dramático, empreendidas por Johannes Birringer, Timothy Murray e Hans-Thies Lehmann, compondo uma cartografia expandida de pontos de vista que demarcam os principais focos de reflexão crítica sobre o tema. Na bibliografia são arrolados os principais títulos. 2 Patrice Pavis, Voix et images de la scène, Paris, Septentrion, 2007, p. 317-337. 3 O movimento simbolista tem sido reavaliado por vários teóricos, que passaram a considerá-lo a primeira vanguarda. Ver a respeito o excelente estudo de Frantisek Deak Symbolist Theater. The formation of an avant-garde, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press,1993. 4 O livro de Puchner foi publicado em 2002 pela Johns Hopkins University Press. O professor da Universidade de Columbia retorna ao tema na coletânea Against Theatre, que organiza com Alan Ackerman e edita pela Palgrave em 2006, em que reúne ensaístas como Arnold Aronson, Elinor Fuchs e Herbert Blau. Jonas Barish é autor do estudo The antitheatrical prejudice, Berkeley: University of California Press, 1981. 5 Para uma discussão aprofundada do tema, consultar Denis Guénoun, Actions et acteurs. Raisons du drame sur scène, Paris, Belin, 2005, especialmente “La face et le profil” e “Entre poésie et pratique”, p.7-52.

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funcionou como rejeição à arte do ator, concebido como centro do fenômeno teatral. Os artistas mencionados foram considerados anti-teatralistas por contestarem especialmente a atualização cênica do drama pela metamorfose do ator em personagem, entrando em franca oposição aos princípios vigentes no teatro do princípio do século XX. Vale lembrar que Maurice Maeterlinck, o dramaturgo mais representativo do simbolismo, dirige críticas ácidas ao trabalho do ator individual, que acredita ser um dos maiores responsáveis pela impossibilidade de atualização efetiva da poesia dramática. Por paradoxal que possa parecer, a sintonia de princípios em relação ao ator é o vínculo de união entre Maeterlinck e Gordon Craig, tradicionalmente considerados antípodas em suas posições teatrais que, no entanto, aproximam-se na recusa da personificação do ator e na defesa de um teatro abstrato de andróides e super-marionetes. Seja por considerarem os atores incapazes de encarnar obras-primas da dramaturgia, como é o caso de Maeterlink, seja por acreditarem que seres humanos são instrumentos pouco eficazes na definição de uma linguagem cênica rigorosa, tramada por espaço, luz e movimento, como é o caso de Craig, é inegável que a encarnação da personagem pelo ator foi um dos principais alvos de ataque dos anti-teatralistas que, olhados por esse ângulo, podem ser vistos como precursores de uma nova teatralidade, não mais baseada na interpretação de um texto dramático por atores, mas na mobilização de recursos de espaço, luz e movimento, ou da palavra concreta e poética, para sua constituição.6

Também é possível compreender por essa via as objeções mais sérias de Nietzsche à ópera wagneriana. As críticas do filósofo alemão tem como alvo predileto não tanto a concepção de “obra de arte total” com que Wagner inaugura o primado do encenador, mas principalmente a qualidade gestual e mímica da música wagneriana, que associa aos princípios da atuação. É uma crítica semelhante

a que Theodor Adorno fará, bem mais tarde, à música do compositor alemão, considerando-a fruto da “momice” inerente à representação teatral. O azedume crítico de Adorno com intérpretes que lembrariam macacos exibindo-se no zoológico, e o parentesco da atuação com as formas mais primitivas da mimese, são restrições semelhantes às censuras de Maeterlinck e Gordon Craig aos atores de seu tempo. Na verdade, retomando uma longa tradição, Adorno afirma que o sucesso do teatro moderno depende de sua capacidade de resistir à mimese ligada à personalização do ator. Deve-se a essa resistência a admiração do filósofo pelas criações de Brecht e Beckett, por serem artistas que se rebelaram contra a dependência do teatro à individualização. Especialmente o dramaturgo irlandês, melhor sucedido ao transformar as personagens em personas vazias, inviabilizando por completo a possibilidade de imitação de “pessoas reais” no palco.7

teatralidade e encenaçãoNo ensaio mencionado sobre a teatralidade em

Avignon, Pavis discute o termo perguntando-se se é mesmo necessário seu uso nos estudos teatrais, diante da proximidade com a noção de encenação. Segundo o teórico francês, não faz sentido debruçar-se sobre concepções de teatralidade quando a teoria da encenação já descreve, há pelo menos cem anos, o funcionamento dos signos cênicos enquanto objeto empírico, além de contemplar a constituição do sistema de sentido pelo espectador, o que marca a passagem da representação para a encenação.9

6 Ver a respeito o ensaio de Maurice Maeterlinck “Menu propos: um théâtre d’androïdes” in Introduction à une psychologie des songes(1886-1896),Bruxelas: Éditions Labor, 1985. Gordon Craig tem vários estudos sobre a über-marionette, sendo o principal deles “The actor and the über-marionette”, publicado em seu livro On the art of the theatre, New York: Theatre Arts

Books, 1956, p.54-94.7 Friedrick Nietzsche, O caso Wagner; Theodor Adorno, Não é possível tratar neste texto das

várias posições anti-teatralistas presentes em outras áreas artísticas. O crítico de artes plásticas Michel Fried, por exemplo, foi uma das expressões mais marcantes do pensamento teórico anti-teatralista, especialmente representado no livro Absorption and theatricality. Painting

and beholder in the age of Diderot, Chicago e Londres: The University of Chicago Press,1980. No artigo “Art and objecthood”, de 1968, Fried sustenta que a autonomia das artes plásticas no modernismo findou no momento em que a realização de uma obra passou a depender da

recepção do público, de sua capacidade de transformá-la e completá-la com sua leitura. Para o teórico, o inacabamento da obra, afirmado em sua perpectiva relacional, com direção explícita ao

espectador, teria correlatos na interação do ator com o público. Nesse sentido, é paradigmática a afirmação de Fried, de que o sucesso, ou mesmo a sobrevivência das artes, depende de sua

capacidade de resistir ao teatro. Michael Fried, Art and objecthood, 1968. 8 Em ensaio anterior, Patrice Pavis já definira a representação como objeto empírico que abrange

tanto o conjunto de materiais cênicos quanto a atividade do encenador e de sua equipe dentro do espetáculo. Já a encenação é um objeto de conhecimento, um sistema estrutural que só existe

uma vez recebido e reconstituído pelo espectador, cuja leitura, evidentemente, toma por base os sistemas significantes produzidos em cena pelos criadores. Patrice Pavis, “Do texto para o palco,

um parto difícil”, O teatro no cruzamento das culturas, São Paulo, Perspectiva, p. 22-23.9 Patrice Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 372.

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Cia dos atores, A Bao A Qu – Um Lance de Dados (1990)

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Mas o que importa a esta argumentação é refletir sobre a sinonímia que o ensaísta detecta entre os termos encenação e teatralidade, pois esta contemplaria, tanto quanto aquela, os componentes da representação. Em seu dicionário de teatro, Pavis já definira a teatralidade como “aquilo que, na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou cênico)”. Mas ressaltara que a noção teria a desvantagem de se revestir de um traço idealista, remetendo, inapelavelmente, à velha questão da especificidade do teatro puro. Olhada por esse ângulo, estaria condenada a permanecer “não apenas abstrata e metafísica, mas inoperante”, tendo algo de “mítico, excessivamente genérico, e até mesmo idealista e etnocêntrico”.9

É interessante constatar como as reservas não impedem o estudioso de enfrentar o tema, talvez por levar em conta o acirramento das discussões da teoria teatral em torno dessa noção, especialmente nas últimas décadas do século XX. Seguindo sua argumentação, e levando em conta a aproximação entre os conceitos de encenação e teatralidade, é compreensível que a defesa da idéia principie com os encenadores das primeiras décadas do século passado, responsáveis por uma verdadeira mutação de paradigma do teatro, com o deslocamento do ator e do dramaturgo do núcleo central de sua constituição. A celebração sem precedentes da teatralidade, que ficou conhecida como re-teatralização do teatro, sem dúvida é caudatária da emergência desse poderoso criador, que reúne as funções de compositor, poeta, diretor, cenógrafo e teórico da “obra de arte total”. Gordon Craig, Appia e Meierhold são pioneiros no esforço de composição de uma arte cênica relativamente independente do texto dramático, tornando-se os principais modelos da teatralidade centrada no moderno diretor teatral.

Mas de fato, o uso consciente dos conceitos de teatralidade, teatralização e reteatralização do teatro deve-se a Meierhold, que os entende e os pratica como estratégias de distanciamento do familiar pelo emprego de recursos do próprio teatro, de modo a chamar a atenção para seu caráter de jogo e artifício. Procedimentos de atuação como a biomecânica e técnicas de encenação como o construtivismo visavam exatamente a enfatizar a teatralidade que, para Meierhold, supõe a inevitabilidade da forma, como observa Jacó Guinsburg. A nova poética teatral do artista sem dúvida inicia a transição do dramático e literário para o cênico e performativo.

Uma síntese esclarecedora dessa trajetória de independência paulatina da cena em relação ao drama é apresentada por Bernard Dort no ensaio “A representação emancipada”. Partindo das poéticas de Wagner e Craig, Dort propõe que o princípio da afirmação do encenador como autor do espetáculo, na passagem do século XIX para o XX, é o início de um longo percurso que leva o texto dramático a ser

duplicado ou mesmo suplantado pelo texto cênico para gerar, nas últimas décadas do século XX, a uma nova concepção de encenação. Nos trabalhos de artistas como Robert Wilson e Klaus Michael Grüber, por exemplo, a teatralidade não é apenas a “espessura de signos e sensações” a que se referia Roland Barthes, essa espécie de “percepção ecumênica de artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior”, mas uma “polifonia significante” aberta sobre o espectador.10 Para Dort , a teatralidade é “interrogação do sentido” e crítica em ato da significação.11

Jean-Pierre Sarrazac dá continuidade às reflexões de Dort quando observa que a separação entre palco e platéia foi abolida a partir do momento em que os espectadores foram convidados a se interessar pela ocorrência do próprio teatro no seio da representação. O teatro épico de Bertolt Brecht seria um dos marcos dessa transformação, por definir uma mudança de regime do espetáculo e incorporar o espectador à criação do simulacro cênico, e a seu processo produtivo. É evidente que, no caso de Brecht, a mudança visava a objetivos políticos bastante definidos. Mas a partir dela, o que se põe em ação é um mecanismo de revelação da teatralidade pelo esvaziamento do próprio teatro.

É uma visão semelhante à de Denis Guénoun, para quem o teatro contemporâneo confessa o gosto de mostrar e oferece ao espectador a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o efeito de ilusão da representação. Para o filósofo francês, a teatralidade é o “por em jogo”, ou melhor, é o movimento de passagem para o jogo, viabilizado pelo gesto de mostrar a coisa em si, em sua fenomenalidade. De acordo com Guénoun, “o aparecer aí da coisa é a própria teatralidade”.12

Nesse processo, o que passa a determinar o trabalho de construção da cena é o princípio de literalidade, responsável por colocar em confronto a materialidade dos elementos que constituem a realidade específica do teatro. Ao colocar em cena um objeto literal, que não tem por função dramatúrgica e cênica simbolizar, mas simplesmente estar

10 Roland BARTHES, “Le théâtre de Baudelaire”, in Écrits sur le théâtre, p. 123.11 Bernard Dort, La réprésentation émancipée, Paris, 1990, p. 173-173. 12 Denis GUÉNOUN, A exibição das palavras, p. 140.

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teatro da Vertigem, BR3 (2006)

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presente e produzir situações de linguagem, teatros da literalidade, como os de Tadeusz Kantor e Bob Wilson, acionam um gigantesco efeito de estranhamento, posto a serviço da intensificação e da densidade extremas da matéria teatral. Essa exigência de manifestação literal produz uma teatralidade que deixa de fundar-se na obra acabada, para instaurar-se enquanto processo construtivo, cujo sentido nunca é global, mas local e fragmentário, já que o espectador torna-se um parceiro ativo de sua criação.13

As definições de teatralidade de Sarrazac e Guénoun têm relação muito próxima com o conceito de performatividade, como se verá a seguir.

teatralidade e performatividadeO conceito de performatividade é trabalhado hoje,

prioritariamente, no campo de estudos da performance, que se consolidou nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980, especialmente com a equipe liderada por Richard Schechner, da Universidade de Nova York. O pesquisador americano entende

que sua consolidação como área de estudos independente, ligada à antropologia e à sociologia, foi responsável pela criação de um “novo paradigma”, em resposta aos limites dos métodos modernos de análise, que não conseguiam dar conta da radical mudança no panorama cultural e artístico que ocorreu no último terço do século XX. A nova disciplina considera o teatro e a arte da performance como um foco de análise entre outros, já que delimita seu campo de estudo de modo bastante ampliado. Schechner define performance como ação, e propõe-se a explorá-la em diferentes domínios, em que as práticas artísticas aparecem ao lado de rituais, atividades esportivas, comportamentos cotidianos, modos de engajamento social e até mesmo demonstrações de excelência em variados setores de atuação.14 Para estabelecer seu recorte, volta às origens do termo performativo, que surge como conceito definido nos anos 1950, quando Austin o utiliza para designar as locuções verbais que não apenas dizem alguma coisa, mas de fato a realizam.15 Retomado por John R. Searle, o conceito é desenvolvido na teoria dos atos da fala, ou da palavra-ação. Schechner baseia-se nos dois scholars para disseminar a noção de performance em todas as esferas da vida social, incluindo tanto as ações cênicas quanto a vida cotidiana na teoria da performatividade.

Não é o caso de tratar aqui as inúmeras abordagens da performatividade que Schechner desenvolve, pois acredita que “não há nada inerente a uma ação que a torne uma performance ou a desqualifique enquanto tal”, abrindo um campo de estudos cuja amplitude dificulta análises específicas. Para este argumento, interessa apenas reter a afirmação de que a performance nunca é um objeto ou uma obra acabada, mas sempre um processo, por estar ligada ao domínio do fazer e ao princípio da ação.16 Quanto à performatividade, seria ao mesmo tempo uma ferramenta teórica e um ponto de vista analítico, já que toda construção da realidade social tem potencial performativo.17

A dedicação dos estudos da performance a variados aspectos da vida social tem contraponto nas análises voltadas especificamente para a arte da performance, desenvolvidas inicialmente por Rose Lee Goldberg e Jorge Glusberg, e no Brasil, de forma pioneira, por Renato Cohen.18 A despeito de terem emergido simultaneamente,

13 Jean-Pierre SARRAZAC, Critique du théâtre, p. 62.14 Ver a respeito Performance studies. An introduction. New York and London, Routledge, 2006.

15 John Langshaw Austin, Quand dire c’est faire, Paris: Éditions du Seuil, p. 41-43.16 Se levada a efeito a definição de Schecher, pode-se incluir na performance todos os domínios da vida social, já que performar é o resultado das ações de ser (being), comportar-se (behave),

fazer (doing) e mostrar o fazer (showing doing). É evidente que essas categorias podem ser aplicadas a todos os aspectos da vida. “Fazer (doing), é a atividade de tudo que existe, desde os

quarks até os seres humanos”, afirma Schechner. As performances são feitas de comportamentos representados (twice behaved), de comportamentos restaurados ( restored behavior) e

ações ( performed actions) que as pessoas treinam executar, praticam e repetem, observa na apresentação do livro Performance studies. An introduction, completando que o comportamento

é o “primeiro objeto” dos estudos da performance. A idéia de comportamento restaurado é central para as teorias norte-americanas da performance, e seu risco é exatamente o fato de

poder ser aplicada a qualquer ação, uma vez que o comportamento é sempre feito de ações que se repetem ou imitam outras ações. Mostrar fazendo (showing doing) está ligado à natureza de todo comportamento humano, e consiste em performar, em dar-se em espetáculo, exibir ( ou exibir-se), sublinhar a ação. Explicar essa exposição do fazer (explaining showing doing) é o campo dos pesquisadores e dos críticos, que refletem sobre o mundo da performance e o

mundo como performance (a performatividade). Richard Schechner, Performance Studies. An introduction. New York and London: Routledege, 2006.

17 Richard Schecher, op. cit, p. 123, p. 127.18 Glusberg salienta que o corpo do artista é o meio preferencial da performance, e sua

característica de gesto original e inaugural deve ser priorizada. É o mesmo enfoque de Goldberg, para quem a performance é um meio de expressão artística. Também para Renato Cohen,

ela é antes de tudo uma expressão cênica, que existe em função do espaço e do tempo. Para caracterizá-la, é preciso que algo aconteça naquele instante e naquele lugar. Jorge Glusberg, A arte da performance, São Paulo, Perspectiva; RoseLee Goldberg, Performance art. From

futurism to the present, London, Thames and Hudson, 1988; Renato Cohen, Performance como linguagem, São Paulo, Perspectiva, .

div

Ulg

ação

Forced entertainment, Quizoola! (1996)

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no contexto contracultural dos anos 1970, os dois campos de pesquisa diferenciam-se. A performance art detém-se na instância artística, e não pode ser separada das práticas estéticas que passaram a se desenvolver em vários cantos do mundo no período, como o happening, a action painting, a live art, a arte conceitual e a body art. Interessada na experiência corporal e na ação do artista em situações extremas, a arte da performance visa exatamente a desestabilizar o cotidiano por meio da transgressão e da ruptura, promovendo ações artísticas marcadas pela diferença.

A perspectiva ligada à arte da performance é mais produtiva para o estudo da teatralidade pois, seguindo seus pressupostos, pode-se dizer que diversos traços performativos permeiam a linguagem do teatro contemporâneo. É o que defende a teórica alemã Érika Fischer-Lichte, ao considerar a performance uma extensão natural do campo do teatro, e não um novo paradigma, como quer Schechner. A ensaísta trabalha com exemplos extraídos exclusivamente do que se pode considerar a prática artística do teatro e da performance contemporâneos. Seguindo a linha européia de abordagem do tema, focaliza suas análises no trabalho de encenadores e performers como Frank Castorf, Einar Schleef, Romeu Castelucci, Marina Abramovich e Schlingensief, por exemplo. Por outro lado, concorda com ele quando afirma que a performance e o teatro contemporâneo são processos e não obras acabadas.

Para Fischer-Lichte, o teatro experimentou um desvio performativo por volta dos anos 1960, que o transformou em evento, em lugar de obra acabada. A partir daí, não pode mais ser concebido como representação de um mundo ficcional que o público deveria observar, interpretar e compreender. Na verdade, a performatividade elude o escopo da teoria estética tradicional, pois resiste às demandas da hermenêutica de compreender a obra de arte. Para a ensaísta, entender as ações do artista é menos importante do que experimentá-las, fazendo a travessia do evento proposto. A participação nessa experiência provoca uma gama tão ampla de sensações que transcende a possibilidade e o esforço de interpretação e produção de significado, não podendo ser superada nem resolvida pela reflexão. Isso não quer dizer que, numa performance, não haja nada para o espectador interpretar. Mas também não se pode dizer que as ações do artista performativo apenas signifiquem alguma coisa.

É evidente que tanto para a hermenêutica quanto para a semiótica, tudo que é perceptível em cena pode ser definido e interpretado como signo. No entanto, no caso da performance a materialidade das ações e a corporeidade dos atores domina os atributos semióticos. O evento envolve performers e espectadores em atmosfera compartilhada e

espaço comum que os enreda, contamina e contém, gerando uma experiência que ultrapassa o simbólico. O resultado é uma afetação física imediata que, para a ensaísta, causa uma “infecção emocional” no espectador.19

A abordagem de Josette Féral concorda, em muitos aspectos, com a de Fichter-Lichte, especialmente quando faz dialogar os conceitos de teatralidade e performatividade. Em ensaio publicado pela primeira vez em 1988, cujo título é “Teatralidade: sobre a especificidade da linguagem teatral”, recusa-se a definir a teatralidade como uma qualidade no sentido kantiano, pertinente exclusivamente à arte do teatro e pré-existente ao objeto em que se investe.20 Defende a idéia de que ela é conseqüência do processo dinâmico de teatralização que o olhar produz ao postular a criação de outros espaços e outros sujeitos. Esse processo construtivo é resultado de um ato consciente que pode partir tanto do performer no sentido amplo do termo – ator, encenador, cenógrafo, iluminador – quanto do espectador, cuja visada cria a clivagem espacial necessária à sua precipitação. De acordo com a ensaísta, a teatralidade tanto pode nascer do sujeito que projeta um outro espaço a partir de seu olhar, quanto dos criadores que instauram um lugar alterno e requerem um olhar que o reconheça. Também é possível que a teatralidade nasça das operações reunidas de criação e recepção. De qualquer forma, a teatralidade não é um dado empírico ou uma qualidade, mas uma operação cognitiva ou ato performativo daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que faz (o ator). Tanto ópsis quanto práxis, é um vir a ser que resulta dessa dupla polaridade.

Em ensaio anterior, “Performance e teatralidade: o tema desmistificado”, Féral opunha o conceito de teatralidade ao de performatividade.21 O texto apresenta a performance como uma força dinâmica cujo principal objetivo é desfazer as competências do teatro, que tende a inscrever o palco numa semiologia específica e normativa.22 Caracterizado por estrutura narrativa e representacional, o teatro maneja códigos com a finalidade de realizar determinada inscrição simbólica do assunto, ao contrário da performance, expressão de fluxos de desejo que tem por função desconstruir o que o primeiro formatou. Ainda que oponha os dois conceitos, percebe-se que uma das principais intenções do estudo de Féral é considerar a teatralidade a resultante de um jogo de forças entre duas realidades em oposição: as estruturas simbólicas específicas do teatro e os fluxos energéticos – gestuais, vocais, libidinais - que se atualizam na performance e implicam criações em processo, inconclusas, geradoras de lugares instáveis de manifestação cênica. Por recusar a adoção de códigos rígidos, como a definição precisa da personagem e a interpretação de um texto, o performer apresenta-se ao espectador como um sujeito desejante, que em geral se expressa em movimentos

19 Érika Fischer-Lichte, The transformative power of performance, New York: Routledge, 2008, p.36.20 Josette Féral, “Theatricality: on the specificity of theatrical language”,Substance, n.2, p. 3-12.21 O texto “Performance et théâtralité, le sujet desmistifié”, foi publicado no livro Théâtralité, écriture et mise en scène, .22 Josette Féral, op.cit.23 Jean-François Lyotard, “La dent, la paume”,in Des dispositifs pulsionnels, p. 91-98.

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autobiográficos e tenta escapar à representação e à organização simbólica que domina o fenômeno teatral, lutando por definir suas condições de expressão a partir de redes de impulso. A condição de um evento não repetível, que se apresenta no aqui/agora de um espaço, é outro princípio de separação entre performance e teatro. Em certo sentido, a performatividade, nessa acepção, aproxima-se do conceito de teatro energético de Jean-François Lyotard, um teatro de intensidades, forças e pulsões de presença, que tenta esquivar-se à lógica da representação.23

Voltando a Féral, em texto recente, a ensaísta atenua a oposição estabelecida nesse ensaio inicial, sustentando que a performatividade é um dos elementos da teatralidade e todo espetáculo é uma relação recíproca entre ambos. Sublinha que a performatividade é responsável por aquilo que torna uma performance única a cada apresentação, enquanto a teatralidade é o que a faz reconhecível e significativa dentro de um quadro de referências e códigos.24 O que varia é exatamente o grau de preponderância de uma ou de outra.

Féral avança uma nova etapa dessa discussão em último ensaio sobre o assunto, em que projeta o conceito de “teatro performativo”.25 Discordando de Hans-Thies Lehmann a respeito do termo pós-dramático, que considera excessivamente genérico e, por isso mesmo, pouco efetivo, a autora analisa algumas das experiências enfocadas pelo ensaísta alemão como o resultado da contaminação radical, que acontece no teatro contemporâneo, entre procedimentos da teatralidade e da performance. 26

A despeito da distinção de abordagem, Lehmann já havia observado a emergência de um campo de fronteira entre a performance e o teatro, à medida que este se aproxima cada vez mais de um “acontecimento e dos gestos de auto-representação do artista performático”.27 É exatamente o que Féral ressalta quando afirma que o teatro contemporânea beneficiou-se amplamente de algumas conquistas da arte da performance. A principal delas é deslocar a ênfase para a realização da própria ação, e não sobre seu valor de representação. Segundo Féral, essa mutação é responsável por uma ruptura epistemológica de tal ordem que é necessário adotar a expressão teatro performativo para qualificá-la.

teatros performativos, teatros do real

Há uma série de grupos e criadores brasileiros que assumem as práticas diversificadas do teatro performativo. É possível destacar vários trabalhos, em especial as criações de Enrique Diaz com Companhia dos Atores, como A bao a qu, A morta, melodrama e Ensaio hamlet, ou mesmo as encenações sem a companhia, como A paixão segundo Gh e Gaivota, tema para um conto curto, além das práticas atuais com o Coletivo Improviso, como otro.

Mas em lugar das várias manifestações cênicas que se poderia relacionar aqui, como os trabalhos de Beth Lopes, Michel Melamed e Christiane Jatahy, o interesse maior é aproximar os teatros performativos do que vem sendo chamado de teatros do real. Pois é visível que uma parcela considerável das práticas cênicas de hoje não visa apenas à criação de uma peça, ou do que se poderia considerar um produto teatral acabado e comercializável no mercado da arte. Uma parte significativa desse teatro, especialmente quando opta pelo trabalho colaborativo, é reconhecida pelo envolvimento em longos projetos de pesquisa que, ainda que visem, em última instância, à construção de um texto e de um espetáculo, parecem distender-se na produção de uma série de eventos pontuais. Talvez se pudesse caracterizar essas breves criações apresentadas em ensaios públicos ou produzidas em workshops internos como teatralidades contaminadas de performatividade, cujo caráter instável explicita-se no traçado processual e na recusa à formalização. Essas experiências em geral aparecem de modo mais urgente que o desejo de finalização num objeto/teatro – a produção de uma dramaturgia e de um espetáculo -, e em geral se processam numa relação corpo a corpo com o real, entendido como a investigação das realidades sociais do outro e a interrogação dos muitos territórios da alteridade e da exclusão social no país.

Talvez por isso invadam territórios de natureza política, antropológica, ética e religiosa por meio de pesquisas de campo que, aparentemente, deixam em segundo plano tanto as investigações de linguagem quanto a militância explícita. Na verdade, são os próprios processos que se desdobram em mecanismos recidivos de intervenção direta na realidade e funcionam como micro-criações dentro de um projeto maior de trabalho. Essas intervenções performativas sinalizam a multiplicação de práticas criativas pouco ortodoxas, cuja potência de envolvimento no território da experiência social tende a superar a força da experimentação estética.

24 Josette Féral, “Theatricality:

on the specificity of theatrical

language”,Substance, n.2, p. 3-12.

25 Josette Féral, “Entre performance

et théâtralité: le théâtre performatif,

Théâtre/Public, n. 190, p. 28-35.

26 Como se sabe, para Lehmann a

ausência do drama e a quebra da ilusão de

realidade compõem as linhas divisórias

entre o teatro dramático e o pós-

dramático. É apenas quando os meios

teatrais se colocam no mesmo nível do

texto, ou podem ser concebidos sem o

texto, que se pode falar em teatro pós-

dramático, um modo novo de utilização

dos significantes no teatro, que exige

mais presença que representação,

mais experiência partilhada que

transmitida, mais processo que

resultado, mais manifestação que significação, mais

impulso de energia que informação.

Hans-Thies Lehmann,Teatro

pós-dramático. São Paulo, Perspectiva,

2007, p. 143.27 Hans-Thies

Lehmann, op. cit., p. 223.

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Ueinzz, Finnegans Ueinzz (2008)

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Em texto recente, Jean-Claude Bernardet observa movimento semelhante no cinema, que associa a procedimentos da crítica genética em seu empenho de compreender o itinerário das produções. Nessa visada, as etapas de elaboração não constituem os momentos de um processo que antecede um objetivo final, a obra, ou uma mera preparação que deve necessariamente ser superada por ela. “Nas obras que me inspiram estas reflexões, tendencialmente não há obra. Ou então, a obra é outra coisa. A obra não é o resultado de um processo de elaboração superado por uma finalização, ela é o próprio processo de criação”, afirma Bernardet, vendo nesse traçado processual, que aqui se considera performativo, uma atitude de resistência à obra definitiva e significativa.28

Para o filósofo francês Jacques Rancière, a dimensão política dos coletivos se evidencia em práticas processuais como essas, em que modos de discurso misturam-se a formas de vida e em que cabe aos artistas criar condições para que uma experiência comunitária se exteriorize, atuando de modo a tornar pública determinada realidade política, cultural e econômica. Rancière considera os artistas coletivos “relacionais”, por desenharem esteticamente as figuras da comunidade, ou melhor, recomporem não apenas a paisagem do visível, mas favorecerem sua evidenciação. E conclui que essas práticas artístico-sociais não são a simples ficcionalização do real, pois encontram seu conteúdo de verdade na mescla entre a “razão dos fatos” e a “razão da ficção”. 29

Um bom exemplo dessas práticas são as intervenções em espaços públicos que os coletivos organizam por meio de exaustivas pesquisas de campo dedicadas à coleta de depoimentos dos mais diversos cidadãos, de viagens exploratórias a bairros de periferia das grandes metrópoles brasileiras, de convívio em zonas urbanas de tráf ico, criminalidade e prostituição, de ocupação teatral de albergues de moradores de rua, hospitais psiquiátricos

e prisões, de of icinas, debates e ensaios públicos abertos à opinião dos espectadores e, principalmente, de processos colaborativos altamente socializados, que fazem questão de incluir interlocutores tradicionalmente alijados da criação teatral e buscam uma aproximação com o espectador não restrita ao momento de apresentação do espetáculo.

Daí a teatralidade complexa que resulta de alguns trabalhos de grupo, contaminada pela performatividade de vozes, saberes e culturas marginais, em que se explicita uma fragmentação da enunciação que funciona como mimese exata da fratura social brasileira. Pode-se mencionar casos exemplares desse tipo de produção, como o espetáculo Br3 do Teatro da Vertigem, as Bastianas da Companhia São Jorge de Variedades e ueinzz -viagem a Babel, da Companhia Teatral Ueinzz.

Não por acaso, dois dos grupos mencionados – o Vertigem e a Companhia São Jorge - buscam espaços urbanos de uso público para suas apresentações, em geral contaminados de alta carga política e simbólica, além de apresentarem um desvio geográfico de interesses, do centro para as periferias urbanas e nacionais e, especialmente, recusarem-se a funcionar em circuitos fechados de produção e recepção teatral. Em seus trabalhos, o que aparece em primeiro plano é a vontade explícita de contaminação com a realidade social mais brutal, em geral explorada em um confronto direto com o outro, o diferente, o excluído, o estigmatizado.

Na maioria das vezes, o trabalho que resulta dessas longas trajetórias de pesquisa não consegue dar conta do intrincado percurso que o precedeu. Um bom exemplo é Br-3, do Teatro da Vertigem, fruto de um processo de mais de dois anos, que envolveu criadores de várias áreas e foi apresentado em curta temporada de dois meses no leito do rio Tietê, em São Paulo, em 2006. Independente da qualidade do trabalho final, a comparação entre a brevidade da temporada e a extensão da pesquisa é um dos índices de uma mudança radical de foco, do produto para o processo, do espetáculo teatral para performances inacabadas, que se distanciam das formalizações canonizadas pela tradição crítica, para dar vazão a uma performatividade extrínseca e híbrida. 30

A psicanalista Maryvonne Saison observa que outra face do mesmo processo é a opção recidiva por mecanismos de confronto do teatro com escritos testemunhais, como depoimentos, cartas e entrevistas, que hoje proliferam nas cenas de teatro e cinema, como comprova a explosão de documentários ou a tensão entre realidade e ficção recorrente em alguns filmes, como os de Eduardo Coutinho. O “depoimento pessoal” dos processos colaborativos talvez seja mais um sintoma da necessidade de encontrar

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ação

Volksbuhne, Die Massnahme, direção de Frank Castorf (2008)

28 É interessante notar que Jean-Claude Bernardet comenta nesse texto, “O processo como obra”, a exposição “A respeito de situações reais”, realizada no Paço das Artes de São Paulo em maio de 2003. O artigo foi publicado na Folha de S. Paulo – Caderno Mais! em 13 de julho de 2003.29 Jacques Rancière, A partilha do sensível: estética e política, São Paulo, Ed. 34, 2005, p. 52-54.30 Jean-Claude Bernardet, op. cit.

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experiências “verdadeiras”, “reais”, colhidas em práticas performativas vivenciadas na exposição imediata do performer diante do espectador, como observa Óscar Cornago em palestra recente, em que recorre a Giorgio Agamben para creditá-las ao déficit de experiência que está na base da modernidade.31 Nos casos mais radicais, essa experiência é transplantada para a cena em estado bruto, gerando manifestações extremamente incômodas para o espectador, que podem acontecer por várias vias. Um dos casos exemplares, por sua radicalidade, continua sendo Apocalipse 1,11, do Teatro da Vertigem, estreado há mais de dez anos. Algumas cenas do trabalho, de brutalidade desconcertante, pareciam, à primeira vista, modos realistas de remissão ao contexto social brasileiro. No entanto, um observador atento percebia uma alteração de estatuto nessas intervenções de realidade. A impressão que se tinha era que os criadores procuravam anexar fragmentos do real ao tecido teatral que se apresentava. Era visível, por exemplo, que os traumas da mobilização inicial para o espetáculo, como a queima de um índio pataxó, em Brasília, e o massacre de cento e onze detentos no presídio do Carandiru, em São Paulo, ganhavam analogias brutais, como a cena de um corredor polonês, em que os espectadores, pressionados contra a parede, no escuro, eram roçados pelos corpos que os atores carregavam sob rajadas de metralhadora; ou a vivência do ator crucificado, suspenso pelos pés de uma altura alarmante; ou a da atriz escancarando o sexo ou sofrendo agressões físicas reais, depois que um ator urina em seu corpo diante de espectadores perplexos.

A sofrida experiência do elenco e a exposição de sua intimidade em estados extremos, em que os corpos manifestavam o estado de guerra urbano, parecia funcionar como fragmento do horror da vida pública brasileira das últimas décadas. Era como se a violência dessa teatralidade, contaminada de performatividade, abrisse frestas para a infiltração de sintomas da realidade. Nesses momentos de intensa fisicalidade e auto-exposição, a representação parecia entrar em colapso, interceptada pelos circuitos reais de energia desses vários sujeitos.

Como Apocalipse 1,11, também Br3 era um teatro performativo. No trabalho, Antonio Araújo projetava uma espécie de cena migratória de exploração do “Brasil profundo” e das grandes metrópoles do país, conturbadas pela violência e pela desigualdade social. O trabalho processual esboçava a identidade dos protagonistas de forma móvel e questionável, respondendo ao primeiro objetivo do

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Cia. são Jorge de Variedades, As Bastianas (2003)

31 Óscar Cornago, “Actuar de verdad. La confécion como estrategia escénica”. Ver também o artigo de Ana Bernstein “A performance solo e o sujeito autobiográfico” publicado no primeiro número da revista Sala Preta, 2001, p.91-103. Maryvonne Saison faz as observações mencionadas no livro Les théâtres du réel, Paris, L’Harmattan, 1998.

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projeto, de investigar possíveis identidades brasileiras com base na cartografia de três lugares do país, unidos pelo radical de nacionalidade e por localizações em pontos-limite físicos e imaginários. Em todos os sentidos, Brasilândia, bairro da periferia de São Paulo, Brasília, capital do país, e Brasiléia, pequena cidade da fronteira do Acre com a Bolívia, formam territórios de exceção, em que a idéia de país é posta em xeque. A cidade planejada, a cidade de fronteira e a cidade periférica projetam territórios em que a idéia de pertencimento nacional é enfraquecida por noções de borda, margem e travessia, e identidades instáveis, processuais e híbridas, substituem os sujeitos seguros da brasilidade.

Os lugares inventariados pelo grupo na longa trajetória de pesquisa entrelaçavam-se na saga familiar de três gerações envolvidas em tortuoso percurso de situações, temporalidades e geografias, que partia da construção de Brasília, em 1959, passava pelas décadas de 80 e 90 em Brasilândia, chegava a Brasiléia na atualidade e retornava a Brasília para fechar um ciclo distendido temporal e espacialmente.

A trama de lugares compunha uma teatralidade expandida, que se espraiava no leito e nas margens do rio Tietê. A identidade provisória do protagonista, Jonas, conformava-se a partir das relações do ator Roberto Áudio com o espaço, quer fosse circundado pelos espectadores no barco/cena, quer navegasse solitário as águas poluídas do Tietê, para atuar em voadeiras, debaixo dos viadutos ou

nas margens, em meio a detritos e ratos. Em viagem real e ficcional, Áudio apresentava Jonas na travessia das ruínas do Brasil das favelas, do narcotráfico, dos agronegócios, do culto dos evangélicos e do Vale do Amanhecer, dos índios depauperados e da Virgem de Copacabana, no terreno movediço e pantanoso do rio, flagrantemente real com seus despojos flutuantes. As sucessivas experiências das cidades eram vividas pelo espectador em situação inédita de imersão, rodeado pelo trânsito intenso das marginais, a pobreza das favelas e a riqueza ostentatória das sedes dos conglomerados financeiros. Dentro do rio, era obrigado a suportar o mau cheiro e a confrontar-se com a realidade das águas mortas que atravessam São Paulo.

Ao mesmo tempo, o espectador mergulhava numa espécie de heterotopia. Os espaços imaginários de Brasília, associada ao monumental e aos viadutos, de Brasilândia, abrigada sob a pontes, e de Brasiléia, dispersa nas margens, forçados a conviver no mesmo leito instável, tornavam-se absolutamente outros em relação às cidades reais que apresentavam. Filtrados pelo olhar coletivo e deformados por essa modalidade contemporânea de teatro do real, performativa e fragmentária, eram lugares de “desvio”, irreconhecíveis em sua identidade original. Br3 proporcionava ao espectador experiências sociais e existenciais, poéticas e políticas, processuais e espetaculares, reais e ficcionais, destinadas ao reconhecimento de sua cidade e de seu país.

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the Wooster Group, House-Lights (1997)

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1 Este texto é uma nova versão de

artigo publicado no livro “Leio

teatro: dramaturgia brasileira

contemporânea, leitura e publicação”,

organizado por André Luiz Gomes (São Paulo: Editora

Horizonte, 2010).

PublicaçõES do tEatro Político braSilEiro

Engrenagem de uma forma de produção contra-hegemônica1

Rafael Litvin Villas Bôas

Ced

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FU

nar

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augusto Boal (1975)

Professor da Universidade

de Brasília. Coordenador do

grupo de pesquisa Modos de produção

e antagonismos sociais.

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A reflexão sobre o estágio atual das publicações sobre o teatro político brasileiro implica tomar como objeto o conjunto do meio teatral como forma de produção. A avaliação, em perspectiva histórica, dos ensaios, artigos, entrevistas, manifestos, teses – publicados em revistas e livros, sobretudo sobre o período de meados da década de 1950 até o final da década de 1960, e na década de 2000, como no caso dos materiais da Cia do Latão e da Brigada Nacional de Teatro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – indica que essa esfera de atuação compõe parte da engrenagem de uma forma de produção potencialmente contra-hegemônica. Para maior eficácia da análise da questão proposta no atual contexto é necessário pensar em perspectiva comparativa, cotejando a experiência contemporânea com a produção do teatro político da década de 1960, momento decisivo para o amadurecimento e tenacidade da linguagem teatral brasileira.

Década de 1960: auge da produção e regressão marcada pelo golpe

Em 1964 o crítico Décio de Almeida Prado publicou o livro “Teatro em progresso”, que reúne as críticas de espetáculos que escreveu para o jornal “O Estado de São Paulo”, no período de 1955 a 1964. Na apresentação o autor explica que um dos sentidos da palavra “progresso” do título é relacionado ao crescimento quantitativo do teatro brasileiro, exemplificado com a situação da infra-estrutura dos aparelhos teatrais de São Paulo, que chegou a ter apenas duas salas de espetáculos em 1946 e que dezoito anos depois contava com cinco companhias estáveis e pequenos teatros eram construídos.

Apesar do ritmo irregular do crescimento da atividade, que o crítico atribui à dinâmica mais geral do país, é destacado também o salto qualitativo nas esferas da encenação e dramaturgia, e o momento marcado por certa “reação nacionalista, que, de programa teórico e algo polêmico, transformou-se aos poucos em realidade inteiramente aceita pelo público”2. Ainda segundo Prado:

Ao mesmo tempo, acentuou-se a inclinação política

para a esquerda, nos textos e por vezes até mesmo nas

encenações, provocada tanto pela situação interna do país

como pela influência das idéias de Bertolt Brecht, as mais

vivas e atuantes no panorama do teatro universal moderno,

principalmente, é curioso observar, nos países não comunistas,

em que há ampla liberdade para receber e discutir qualquer

inovação estética. O teatro brasileiro repetia dessa forma,

com algum atraso histórico, a mesma linha da evolução sofrida

pela poesia e pelo romance na década de 1930.3

A atividade de Décio de Almeida Prado é exemplar do momento em que o exercício da crítica de jornal estava organicamente vinculado à organização do corpus

historiográfico da experiência teatral em progresso, conforme sugere o título da obra.

No artigo “O novo teatro brasileiro” publicado no emblemático caderno especial nº 2 da Revista Civilização Brasileira, em 1968, Nelson Werneck Sodré compartilha de impressão semelhante sobre o amadurecimento do teatro brasileiro e atribui a essa linguagem, juntamente com o cinema, o protagonismo artístico do período:

Partindo do geral para o particular, é preciso, antes de

tudo, situar historicamente o problema: o avanço do teatro,

no Brasil, não surgiu de circunstâncias fortuitas, está

vinculado ao extraordinário esforço da cultura nacional no

sentido de superar a alienação, de integrar a manifestação

artística no conjunto da realidade brasileira. Esse esforço

corresponde à etapa histórica que estamos vivendo e a que

se convencionou conhecer como Revolução Brasileira, título

antes recusado com veemência pelas áreas tradicionais, mas

já aceito, agora, pela impossibilidade em negá-lo.4

Cabe frisar que os dois modelos de publicação tomados como objeto de análise da produção da década de 1960 não existem mais da mesma maneira no período atual. Não vai nessa constatação nenhum juízo de valor ou saudosismo, o intuito é constatar que no caso de um livro como o de Décio de Almeida Prado, não há mais espaço aberto na grande imprensa para o exercício permanente da crítica teatral, e sem essa rotina de trabalho dificilmente é possível a formação de críticos e público da área. A atividade teatral do circuito comercial aparece nos jornais apenas no espaço publicitário ou da agenda cultural, sem vínculo com a reflexão sobre o trabalho realizado. As raras críticas que aparecem geralmente não têm sentido de processo e parâmetro de julgamento para além dos detalhes tecnicistas ditados pelo roteiro padrão da crítica principiante. E a produção dos coletivos de teatro político que correm à margem do mercado, exatamente por isso, são invisíveis para a grande imprensa. Todavia, a atuação coletiva engendrou na década de 2000 outras formas de reflexão e registro crítico da experiência, conforme abordamos adiante.

Década de 1970: ônus da censura e início da memória do teatro comercial

A década de 1970 viveu a situação paradoxal do período extremo do controle da censura do poder ditatorial – após a decretação do AI-5 – e da retomada do financiamento público para publicações de obras dramatúrgicas e para revistas do meio teatral.

Um dos exemplos é a revista “Cadernos de Teatro”, patrocinada pelo Conselho Nacional de Cultura e pelo Serviço Nacional de Teatro, órgão ligado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). O grupo responsável pela redação e produção do material era “O tablado”, do Rio de

2 PRADO, Décio de Almeida. Teatro em progresso (1955-1964). São Paulo: Martins, 1964, p. 8.3 PRADO, Décio de Almeida. Teatro em progresso (1955-1964). São Paulo: Martins, 1964, p. 8.4 SODRÉ, Nelson Werneck. O novo teatro brasileiro. Revista Civilização Brasileira, ano 4, caderno especial nº 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 110.

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Janeiro, que tinha como diretor responsável pela publicação João Sérgio Marinho Nunes e Maria Clara Machado como diretora executiva. A título de exemplo, a edição de nº 44, do primeiro trimestre de 1970, traz a tradução do célebre ensaio “Que é teatro épico?”, de Walter Benjamin, um texto de Jerzi Grotowski sobre sua concepção de Teatro Pobre, explicações de técnicas vocais, de jogos teatrais, do mecanismo da sombra chinesa, dois textos teatrais de dramaturgos brasileiros – o entremez para mamulengo “Torturas de um coração” de Ariano Suassuna, e o entreato de Artur Azevedo “Entre o vermute e a sopa” -, a sessão “Dos jornais” com tradução de reportagens de veículos estrangeiros sobre festivais e turnês de grupos famosos.

Na sessão “Movimento teatral”, destinada ao registro e breve comentário sobre a repercussão de peças apresentadas nos teatros do Rio de Janeiro, fica evidente o esvaziamento do sentido político da palavra “movimento”. Não há senso de unidade política, afinidade de segmento de classe... A palavra “movimento” se refere à freqüência da atividade teatral comercial. Todavia, o que aparenta ser apenas indício da regressão política que o meio sofreu em decorrência do golpe, pode ser também uma ação de sobrevivência negociada no universo da censura. O que alimenta essa hipótese é a presença crescente de textos teóricos e dramatúrgicos do teatro político estrangeiro e brasileiro no conjunto eclético da publicação carioca. Peças didáticas de Bertolt Brecht, como “Aquele que diz sim, aquele que diz não” (ed. 41) e “A exceção e a regra” (ed. 61) aparecem em meio a peças sobre auto de natal, como “Auto de Natal”, de Octávio Lins (ed. 14), “Vamos festejar o Natal”, de Hilton Araújo (ed. 17), e o auto de natal para crianças “Os Viajantes” (ed. 19) de Maria Clara Machado.

Outra suspeita que podemos levantar a partir de observação arbitrária de alguns exemplares – e que por isso só poderia ser confirmada com o estudo detalhado das edições dessa publicação – é que há uma dinâmica de progressiva politização dos artigos e textos dramatúrgicos publicados no caderno, que anda no mesmo compasso da distensão da ditadura e da luta pela redemocratização do país. Evidência disso é o conjunto de textos publicados na edição de número 61 do caderno, publicado no segundo trimestre de 1974, que conta com textos de Brecht – “O mundo de hoje pode ser representado pelo teatro?”, um recorte de sua reflexão sobre a relação entre emoção e razão no teatro épico, e um artigo bastante didático “Maneira de representar” que instrui os atores sobre a forma de interpretação dialética, outro artigo sobre o efeito de distanciamento, a peça didática “A exceção e a regra” e uma peça em ato único de Machado de Assis, “Lição de Botânica”.

Um marco dessa década foi o lançamento, em 1974, do livro “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas”, de Augusto Boal. Publicado em 1978 no Brasil, por um gesto

de coragem e ousadia de Ênio da Silveira, editor da revista Civilização Brasileira, o livro é a primeira sistematização do trabalho que consagrou Boal no mundo inteiro, com a proposta do Teatro do Oprimido. A composição por partes do livro expressa, a seu modo, as diferentes providências teóricas e práticas que o autor empreendeu para organizar sua proposta de trabalho. De um lado, uma releitura didática e original, que paga o preço da ausência do rigor teórico, da origem do efeito da catarse aristotélica e das formas de superação, como o teatro brechtiano, que existiram até o momento em que Boal coloca sua proposta na vanguarda da linha de continuidade e tradição cosmopolita. Os impasses do argumento – que aqui não cabem ser explorados dado a proposta outra do artigo – são, em certa medida, compensados pela ousadia da atitude do autor, que sugere uma inversão geopolítica para a ação do fazer teatral. Seu pressuposto é o de que todos podem fazer teatro e que o teatro é uma arma a serviço dos oprimidos, e pode ser usada como uma espécie de instrumento a serviço do treinamento, ou, preparação para a revolução.

Guiado por essa convicção, Boal faz de seu exílio um campo fértil de experimentação de táticas de contra-comunicação na América Latina e Europa, como o teatro invisível e o teatro jornal, já usadas em outros contextos em décadas passadas por grupos socialistas de agitação e propaganda ligados a partidos de esquerda. Além disso, ele reúne e dá unidade de conjunto a uma quantidade imensa de jogos e exercícios teatrais, organizando o material num método que pode ser usado por atores e não-atores.

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Oficina do teatro de narradores, com a Brigada de Cultura-mst (2004)

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A atitude editorial de Ênio da Silveira aproximou Boal da luta pela redemocratização do país – ainda que ele estivesse fisicamente distante do país – com as táticas de combate à hegemonia do poder midiático, militar e político e com a proposta do Teatro Fórum, por meio da qual é possível ativar coletivamente a discussão sobre temáticas de ordem subjetiva e objetiva de difícil discussão, e em decorrência, provocar a iniciativa de organização popular. O estudo das conexões entre o desenvolvimento do conjunto da obra teatral de Augusto Boal – que reúne as peças, o romance, o livro de contos, e os livros de caráter teórico e metodológico – com o desenvolvimento do processo histórico é material para fértil pesquisa.

Atualmente, o legado de Augusto Boal é alvo de inúmeras polêmicas, e muitas vezes é apropriado por grupos com finalidades antagônicas aos propósitos revolucionários com que foi desenvolvido. No dossiê sobre o trabalho de Augusto Boal organizado pela Companhia do Latão, publicado no sétimo número da revista Vintém, Sérgio Audi aborda a questão no texto “Para uma introdução à prática do Teatro do Oprimido”:

A consecução desta prática está, sobretudo, subordinada

ao princípio básico: a busca da emancipação através de

uma postura ética, através da estética e da solidariedade,

gerando ações concretas. Portanto, é fundamental não

encarar o TO simplesmente como um “método” ou

um mero arsenal de procedimentos que poderiam ser

utilizados em quaisquer situações. Esta, aliás, é a grande

impostura de grupos e entidades que se utilizam das

técnicas de TO para meramente pacificar conflitos e

amenizar contradições onde estas, por coerência política e

compromisso ético, deveriam ser aguçadas.5

As diversas propostas estéticas que Boal defendeu como diretor e teórico de teatro renderam-lhe produtivas polêmicas, por exemplo, com o crítico Anatol Rosenfeld, que apontou a regressão dramática na opção pela figura do herói como protagonista das peças organizadas de acordo com o sistema curinga. Em 1982, foi publicado “O mito e o herói no moderno teatro brasileiro” que reuniu, dentre outros ensaios, “Heróis e Coringas”, que discute a poética de Boal e sua proposta de sistema.

No texto “Opressão: o mito oculto do teatro do oprimido”, publicado por Edélcio Mostaço no sexto número da revista Arte em Revista (1981) o autor sugere que a proposta do Teatro do Oprimido é parte do problema da utopia de participação criada com a indústria cultural e os meios de comunicação de massa, “o democratismo informacional, o triunfo do kitsch e a pulverização de todos os estilos”. A conclusão do autor é taxativa: “A partir do Teatro do Oprimido Boal deixou, na prática, de fazer teatro para fazer diretamente política. Mas não renunciou ao rótulo de teatro para suas especulações, o que nos

leva à outra conclusão, então, de ser o jogo viciado e autoritário do Teatro do Oprimido o Teatro da Opressão” .6

Releituras mais sofisticadas sobre o significado do trabalho e da trajetória teatral de Boal começam a aparecer no meio teatral, como por exemplo, no ensaio de forte pegada dialética de Sérgio de Carvalho “Notas sobre a prática dialética de Boal” publicado no dossiê do sétimo número da revista Vintém, em que o autor faz menção ao limite idealista da formulação teórica de Boal:

Talvez haja um recuo necessário nas reflexões de Boal

contidas no mais famoso de seus livros, “Teatro do Oprimido

e outras poéticas políticas”, publicado pela Civilização

Brasileira, de Enio da Silveira, em 1974. É uma compilação

de trabalhos críticos ligados aos anos anteriores do Teatro de

Arena, reorientados por uma idéia que seria decisiva para ele

a partir de então: a tradição do drama ocidental se baseia na

intimidação poética e política do espectador. Seria, portanto,

preciso ir além e ativar literalmente o público: “O espectador,

ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-

humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua

plenitude”. Em outros termos, é preciso que alguém diga stop

e o próprio espectador suba ao palco e conte a sua versão da

história, como ocorre na técnica que Boal batizou depois de

Teatro Fórum.

A simplificação teórica está em dizer que o ato de espectação

é necessariamente passivo. E que o público, por estar sentado,

é desde sempre vítima do consumo das imagens. Como bom

dialético, Boal sabe que exercer a imaginação, o senso crítico

e a sensibilidade são atividades produtivas. Depende do modo

como a relação teatral se configura. Mas como em outras

ocasiões, esse limite idealista da teoria é autonegado pelas

demonstrações práticas que surgem nos livros posteriores,

todos manuais de prática teatral (...).7

Década de 1980: início da avaliação crítica e da memória dramatúrgica

Nos anos iniciais da década de 1980 foi publicado parte relevante da obra de Vianinha, desde suas peças até seus textos de intervenção, a saber: o primeiro volume do que seria a coletânea das peças do autor, “Teatro de Oduvaldo Vianna Filho: v. 1”, organizado por Yan Michalski e publicado pela Editora Ilha/Muro, em 1981; a coletânea de ensaios, artigos, textos de intervenção e entrevistas organizada por Fernando Peixoto, chamada “Vianinha: teatro, televisão e política”, publicada pela Brasiliense, em 1983; e em 1984, Michalsky organiza e publica pela Global “O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho”.

Cabe ainda destacar a publicação da revista “Arte em revista”, pela editora paulista Kairós. O material deu vazão à produção de um grupo de pesquisa da USP, coordenado pela professora Otília Arantes, cujo objeto de análise era a

5 AUDI, Sérgio. Para uma introdução à prática do Teatro do Oprimido. In Vintém n° 7. São Paulo: Cia do Latão, 2009, p.57.6 MOSTAÇO, Edélcio.. Opressão: o mito oculto do teatro do oprimido. In Arte em Revista nº 6. São Paulo: Kayrós, 1981, p. 29.7 CARVALHO, Sérgio de. Notas sobre a prática dialética de Boal. In Vintém, nº 7. São Paulo: Cia do Latão, 2009, p. 64.

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articulação entre as esferas da política e cultura na década de 1960, no Brasil. Esse periódico empenhou-se na avaliação crítica do processo de engajamento artístico da fase pré e pós golpe de 1964, e refutou as auto-críticas reacionárias e análises precipitadas que abordaram a questão de modo insuficiente e estereotipado. Na segunda edição, por exemplo, Carlos Estevam Martins, ex-presidente do CPC, dá relevante depoimento sobre a trajetória desta organização. E a sexta edição é inteiramente dedicada ao teatro.

Em 1989 foi publicado “O melhor teatro do CPC da UNE” com seleção de oito peças produzidas por integrantes dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Foram selecionadas peças de agitprop e outras de caráter épico, de duração mais longa e abordagem mais aprofundada dos temas selecionados. Os problemas discutidos são de ampla envergadura – petróleo, questão agrária, imperialismo, reforma universitária, questão operária, etc – e dão depoimento de um período em que o teatro atuou na trincheira de vanguarda do debate sobre aspectos estruturais relativos ao destino do país.

Década de 1990: a guinada radical da historiografia

A publicação de algumas pesquisas de pós-graduação foram fundamentais para a revisão crítica da experiência do teatro político brasileiro das décadas anteriores. É o caso dos trabalhos de Silvana Garcia, Iná Camargo Costa e Maria Sílvia Betti, entre outras.

“Teatro da militância”, obra resultante da pesquisa de mestrado de Silvana Garcia, publicada em 1990, faz ampla abordagem da história do teatro de agitação e propaganda, desde os experimentos da revolução russa, aborda a experiência brasileira do CPC e estende a análise para a atuação dos grupos da década de 1970. Um dos grandes méritos da pesquisa é disponibilizar para o público brasileiro, pela primeira vez, partes da coletânea “Lê théâtre d agit-prop de 1917 à 1932”, organizada por uma equipe de pesquisa francesa, que contém textos analíticos, registros historiográficos, peças teatrais e documentos relativos à experiência do teatro de agitação e propaganda em diversos países da Europa e dos EUA naquele recorte histórico. A coletânea é o principal suporte da revisão bibliográfica que a autora faz para abordar a origem e o desenvolvimento do teatro de agitprop, e a versão brasileira da experiência, protagonizada pelo CPC.

Em prefácio à segunda edição, publicada em 2004, a autora afirma que o material permanece atual, mesmo quase vinte anos depois, porque as questões que ensejaram a escritura da obra reapareceram na pauta da luta política e cultural. Garcia faz menção ao ressurgimento, desde a década de 1990, de grande quantidade de novos grupos que trabalham de modo coletivo. A diferença seria o ambiente mais propício, diverso

do contexto repressivo da ditadura. No caso de São Paulo, há conquistas inclusive no âmbito legal, como a Lei Municipal de Fomento, fruto da organização e pressão coletiva dos grupos. A pesquisadora sugere que “o que talvez aproxime as duas gerações, mais do que o modo de produção, seja o interesse revivido, por parte dos jovens que integram os novos coletivos, pelo teatro como instrumento de reflexão e ação política. Há claramente manifesta, em parte desses grupos, a busca por formas atuais de engajamento”.8

O livro A hora do teatro épico no Brasil (1996), resultado da pesquisa de doutorado de Iná Camargo Costa revisa criticamente o momento de engajamento teatral da fase anterior ao golpe de 1964, e atribui acento qualitativo às atividades desenvolvidas nesse período, mostrando o rumo regressivo do teatro pós-1964, divergindo do senso comum que atribui a fase de 1964 a 1968 os anos mais produtivos do teatro político brasileiro. Ao analisar, por exemplo, a peça Revolução na América do Sul (1960), mostrando como a elaboração da forma estética pode apreender a dinâmica do processo social, expondo a contra-revolução em andamento – quando o clima geral era de certeza quanto ao desfecho da revolução –, a autora deixa evidente que, no caso do teatro, engajamento e crítica negativa não são pólos excludentes, antes pelo contrário9.

O livro de Maria Sílvia Betti sobre Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1997) colabora para o aprofundamento teórico da discussão sobre a obra do autor, pois procura analisar seu trabalho de modo integral, considerando a produção dramatúrgica, a atuação política e militante do agitador cultural, e dimensionando a ação do indivíduo na complexidade sócio-cultural das décadas de 1960 e 1970. A autora trabalha com o conceito de práxis militante, o que permite a ela uma visão articulada das interfaces entre teoria e prática, e dos impactos da produção de Vianinha para os rumos do teatro brasileiro. Na tessitura de sua narrativa, ela aborda inicialmente a proposta de configuração para um projeto nacional para o teatro, comenta a experiência do CPC como a possibilidade de um modelo nacional de ação cultural, e logo após trata nos dois últimos capítulos – “Repensando os projetos” e “O autor dividido” – do período de desarticulação do projeto e recuo de perspectiva.

Podemos considerar que não se trata de um fator aleatório a produção e publicação de pesquisas de forte pegada crítica sobre a história do teatro brasileiro da segunda metade do século XX. Não à toa essa guinada acontece no momento de reorganização da luta do meio teatral, agora enfrentando as circunstâncias mercantis e desagregadoras do neoliberalismo. A releitura crítica do período anterior e posterior ao golpe e dos impactos da ditadura militar para a produção do teatro político brasileiro começava a ser feita com precisão, ensejando a possibilidade do diagnóstico dos traumas, hiatos e deficiências que, na medida em que percebidos, poderiam ser superados.

8 GARCIA, Silvana. Teatro da militância.

São Paulo: Editora Perspectiva, 2004,

p. XI.9 Cabe registrar,

ainda que o limite de espaço do artigo não permita maior aprofundamento,

a publicação seguinte de Iná

Camargo Costa, o livro de ensaios

Sinta o Drama, pela Editora Vozes,

em 1998, que teve igual ressonância

e contribuição em diversas frentes da

pesquisa teatral.

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Década de 2000: a retomada “vigorosa” do fluxo de publicações

Boa parte dos grupos que tem conseguido prolongar sua existência e garantir financiamento para seus trabalhos, pesquisas e apresentações por meio de parcerias com o poder público municipal – como é o caso da lei do Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo –, estadual ou federal tem priorizado, no momento da elaboração dos projetos e convênios, a publicação de um caderno, ou revista, ao final do processo de trabalho subsidiado. Em boa parte dos casos a iniciativa vai muito além da auto-propaganda.

As publicações dos grupos trazem artigos reflexivos sobre aspectos relativos aos processos de trabalhos e às montagens em andamento, com textos de aprofundamento teórico ou recuperação histórica da linguagem teatral, trabalhos voltados para a discussão do fazer teatral enquanto ato coletivo, de segmento de classe, que exige a auto-organização de seus integrantes, e espaços para entrevistas com gente de teatro e intelectuais de outras áreas de conhecimento, e em alguns casos – como nos materiais da Cia do Latão (SP), do Centro do Teatro do Oprimido (RJ), do Ói nóis aqui traveiz (RS) e do Teatro de Narradores (SP) – contam com depoimentos de dirigentes ou descrições de ações dos movimentos sociais de massa.

Na apresentação do “Caderno de ensaios 1-2” do grupo Teatro de Narradores, publicado em 2006, o coletivo informa que o material traz momentos da reflexão do grupo e parceiros acerca do trabalho teatral e suas exigências. Na

apresentação, nominada como “Notícias de combate” o grupo informa que naquele período participava da ocupação do prédio da Casa do Politécnico, pertencente ao grêmio estudantil da Escola Politécnica da USP: “Sintomático é o fato de que artistas e estudantes estejam juntos, e cada vez mais próximos de movimentos de moradia na região. Fazer teatro ali é disputar idéias e ações”.10 O grupo adentrava então território de complexa imbricação geopolítica: o centro esvaziado da cidade mantinha a presença dos judeus (embora mais vigorosa no passado), a intensidade do comércio barato dos coreanos e a superexploração do trabalho dos bolivianos, fora a tensão entre os pobres sem teto e o capital especulativo do mercado imobiliário, sempre amparado pelas forças repressoras do Estado.

A despeito dos evidentes indícios da tensão de classes, e da percepção de que a ação de um coletivo teatral ali poderia jogar pólvora no paiol, o empenho da publicação era, muito antes de comemorar a posição em linha avançada, refletir sobre o risco da ação, dado seu caráter isolado, em termos de segmento, e os riscos da reificação de seus objetivos. Iná Camargo Costa aponta para isso no texto “Teatro de Intervenção?” ao abordar a necessidade de construção de uma estratégia e táticas do movimento de teatro político de São Paulo:

Se nós não tivermos uma estratégia, qualquer intervenção

nossa pode ser apropriada ou esvaziada pelos beneficiários

do atual estágio de coisas. Para ficar num exemplo bem

próximo, a intervenção dos Narradores aqui na Cadopo pode

ser transformada num recurso do tipo ponta de lança. E

10 NARRADORES, Teatro de. Caderno de ensaios 1–2. São Paulo: Teatro de Narradores, 2006, p. 6.

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Homenagem a augusto Boal, Companhia do Latão (2011)

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estou usando terminologia bélica de propósito. Ponta de lança

numa estratégia de “gentrification” que está em andamento

aqui na região da Luz. O trabalho de vocês pode transformar

a Cadopo num ponto “cult”, e vocês, nesta miséria em

que estão e estão trabalhando, podem contribuir para a

valorização dos terrenos do entorno.11

O contra-exemplo ao risco apontado pela pesquisadora estaria, segundo ela, na adesão tática do Setor de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao projeto dos pontos de cultura do Ministério da Cultura, longe do mesmo risco por estar vinculada a uma estratégia pré-determinada. Nesse texto de intervenção no debate político do meio teatral, Iná traça um panorama crítico das providências táticas desenvolvidas até ali pelo segmento dos grupos de teatro político de São Paulo, que passa pela organização do Movimento Arte contra a Barbárie, pela conquista da Lei Municipal de Fomento ao Teatro, e pela retomada do jornal Sarrafo, como veículo unitário do movimento. Logo após aponta que o principal limite desse coletivo é a falta de uma estratégia comum, que a seu ver, deve ser a destruição do sistema capitalista e a construção do socialismo, que norteie as táticas. Na ausência do horizonte de classe comum, as reivindicações não rompem o limite coorporativo do segmento e restringem os grupos a lutarem com os instrumentos consentidos pela sociedade liberal, ajustados às fronteiras da social-democracia. Em chave programática, Iná aponta quais providências deveriam ser tomadas: estudar a dinâmica do sistema capitalista tal como ele aparece no campo de trabalho da gente de teatro, com o intuito de dar combate à indústria cultural, por exemplo, desmoralizando seus pressupostos; pautar-se pela disputa dos meios de produção cultural, enfrentando a aliança entre Estado e Indústria Cultural e denunciando a privatização dos espaços públicos; e travar a batalha ideológica contra a idéia liberal / burguesa de arte.

A Brigada Nacional de Teatro do MST marca posição no caderno com o texto “Contra a mercantilização: a dinâmica da produção teatral do MST”. Eles assim definem o caráter produtivo da parceria:

Acreditamos que essas parcerias proporcionam benefícios de

mão dupla: para os grupos do MST, os procedimentos cênicos

e conhecimentos teóricos municiam a contra-artilharia e

potencializam nossa meta de qualificar nossas formas de

representação estética, e para os grupos urbanos, o contato

com uma dinâmica de organização de um movimento social

de massa pode abrir outras dimensões de atuação, e novos

horizontes de reflexão sobre suas próprias contradições).12

Fato de extrema relevância para o teatro político brasileiro foi a publicação de três livros da Companhia do Latão, hoje um dos principais coletivos de pesquisa sobre teatro dialético do

país. “Companhia do Latão 7 peças”, publicado em 2008 pela Cosac Naify, com prefácio de Iná Camargo Costa, apresenta sete obras resultantes do trabalho coletivo da companhia ao longo de uma década de atuação ininterrupta. Na apresentação, o diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho cita o seguinte comentário de José Antônio Pasta Jr. num dos programas do grupo: “É contra este estado de coisas que a Companhia do Latão ensaia: contra o fetiche do produto, mesmo suas peças mais acabadas se expõem como trabalhos, aproximações. Acho que nisso se exprime tanto sua vontade de reorientar a dramaturgia para as questões que de fato interessam, quanto a consciência de que esse objetivo, o mais simples e difícil de todos, é inimigo jurado das mistificações”.13 Nos agradecimentos são lembrados Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Francisco de Oliveira, além da prefaciadora, pela inspiração de uma perspectiva da dialética brasileira que se manifesta nos trabalhos do grupo. Nota-se daí uma das relevantes providências desse coletivo: manter permanente diálogo crítico com intelectuais da restrita tradição crítica brasileira, cuja marca é a reflexão da experiência brasileira em chave negativa, que busca compreender a lógica de inserção do país, em condição periférica, no sistema capitalista.

De um lado, a fonte da acumulação teórica, de outro o contato com movimentos sociais de massa que mantêm forte confrontação com a dinâmica transnacional do capitalismo no país, como o MST. A junção das providências de apropriação do legado teórico e prático é operada pelo trabalho coletivo do grupo na sala de ensaio, na elaboração de trabalhos cênicos que visam desnudar os padrões ideológicos de representação e as formas atuais da mercantilização. Betti sugere em texto em que analisa as publicações recentes do Latão, publicado na revista Vintém nº 7, que o exercício da crítica da companhia é apoiado no “diálogo com frentes historicamente anteriores de ação cultural, como as do Centro Popular de Cultura nos anos 1960, ou contemporâneas, como as em atividade dentro do Movimento dos Sem Terra, no contexto nacional, e no Berliner Ensemble no contexto europeu”.15 A autora formula bem o modus operandi que configura a dimensão da práxis da Cia do Latão: “a pesquisa teórica ativa discussões, improvisações e experimentos proto-cênicos de criação dramatúrgica; a dramaturgia por sua vez, fruto dos debates e das estratégias de figuração desenvolvidas, estimula a elaboração de análises críticas e arrola interlocutores externos provindos ligados às esferas de trabalho artístico, intelectual e político da sociedade”.15

Para além do eixo São Paulo/Rio de Janeiro que concentra a maior parte do investimento público e privado na atividade teatral, a retomada da produção coletiva e da existência de grupos de teatro político tem se fortalecido em outras regiões, com repercussão nas publicações. É o caso de publicação recente do grupo Teatro do Concreto, de Brasília, “Entrelinhas

11 COSTA, Iná Camargo. “Teatro de Intervenção?”,

in: Caderno de ensaios 1–2. São Paulo: Teatro de

Narradores, 2006, p. 16.

12 Brigada Nacional de Teatro do

MST. “Contra a mercantilização:

a dinâmica da produção teatral do MST”, in: Caderno de ensaios 1–2. São

Paulo: Teatro de Narradores, 2006,

p. 66.13 CARVALHO,

Sérgio de; MARCIANO,

Márcio. Companhia do Latão 7 peças. São Paulo: Cosac

Naify, 2008, p. 11.14 BETTI, Maria

Silvia. Companhia do Latão 7 peças

e Introdução do teatro dialético – experimentos da

Companhia do Latão. In Vintém n° 7. São Paulo: Cia do Latão, 2009, p. 76.

15 Idem, p. 80.

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e Concreto: teatro brasiliense contemporâneo” (2009) que abre espaço para a publicação de trabalhos de três grupos que optam pela produção coletiva dos espetáculos – Teatro do Concreto, Companhia B de Teatro e Grupo de Teatro Celeiro das Antas – e para textos críticos sobre as obras. Ao refletir sobre a incipiência da produção de teatro de grupo em Brasília o jornalista e crítico teatral Sérgio Maggio avalia:

Brasília, assim como o Brasil, foi ceifada de liberdade e

de expressão cultural com o golpe militar de 1964. Os

anos de exceção, que paralisaram um país de quase 500

anos, aqui imobilizaram uma cidade-bebê. Brasília só teve

três anos de liberdade. De 1961 a 1964. Depois, tudo foi

suspenso. A Universidade de Brasília (UnB),que nasceu

como modelo de ensino livre, foi sucessivamente invadida

na década de 1960. Em pesquisa recente, que acompanhei

como orientador na Faculdade de Artes Dulcina de

Moraes (FADM) da monografia de conclusão de curso da

estudante Nara Silva, constatou-se que a UnB estava cheia

de coletivos teatrais.16

A passagem aponta para o papel que pode cumprir a crítica em termos de prestação de contas com o passado autoritário e combate aos estereótipos sem lastro histórico, como o que alega que a falta de tradição do teatro político de Brasília se deve ao caráter recente da cidade e a falta de identidade cultural da população local – suprimindo o impacto traumático da ditadura militar.

No âmbito da continuidade da revisão teórica da historiografia do teatro brasileiro cabe ainda ressaltar o trabalho de Diógenes Maciel e Valéria Andrade, pesquisadores e organizadores do livro “Por uma militância teatral: estudos de dramaturgia brasileira do século XX” (2005). A dupla integra o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia, sediado na UFPB, que tem como foco a representação das classes subalternas na literatura dramática do Brasil. O livro em questão apresenta doze ensaios de pesquisadores de vários estados brasileiros, e versa sobre os seguintes assuntos:

A produção “revisteira” dos inícios do século, o

aproveitamento da cultura popular na dramaturgia de Ariano

Suassuna, alguns aspectos da formação do drama moderno

no Brasil nas obras de Jorge Andrade, Gianfrancesco

Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, a presença do trágico na

obra de Dias Gomes, a representação do feminino em Nelson

Rodrigues, a dramaturgia de Maria Jacintha escrita sobre a

égide do Golpe de 1964, as narrativas do exílio presentes no

Show Opinião, a influência da indústria cultural na escritura

de obras de Chico Buarque e Vianinha, as categorias de

gênero e suas dinâmicas numa peça de Plínio Marcos e a

dramaturgia como espaço de resistência democrática nos

duros anos da Ditadura Militar”.17

Ainda deste coletivo de pesquisa paraibano cabe destacar outras produções relevantes para o aprofundamento da compreensão sobre a experiência do teatro político das décadas de 1960 e 1970, como a publicação da tese de doutorado de Diógenes Maciel “Ensaios do nacional-popular no teatro brasileiro moderno” (2004) que analisa a época do nacional-popular no teatro brasileiro moderno e, em detalhe, a peça “Gota d´água” (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes. “Teatro de Lourdes Ramalho: 2 textos para ler e/ou montar” (2005), que traz as peças “As velhas” e “O trovador encantado” da dramaturga nordestina. E a publicação de “Dramaturgia fora da estante” (2007) fruto de nova parceria de Maciel e Andrade como organizadores, que traz um dossiê sobre a dramaturga nordestina Lourdes Ramalho, uma seção de artigos sobre dramaturgia brasileira e outra sobre dramaturgia e estudos comparados.

Correndo por fora do circuito comercial de publicações, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conseguiu viabilizar a publicação dos trabalhos de diversos grupos e coletivos teatrais espalhados pelos assentamentos e acampamentos da reforma agrária nas cinco grande regiões do país, por meio de parcerias com institutos de pesquisa e cooperativas que atuam no campo brasileiro, com linhas de atuação na esfera da cultura, arte e comunicação.

O “Caderno das Artes nº 01 do MST – Teatro” foi publicado em 2005. Escrito coletivamente pelos integrantes da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré, o intuito didático do material é registrar e socializar a experiência em andamento. É apresentado o breve histórico da Brigada Nacional de Teatro, são apresentadas as formas teatrais com as quais os grupos ligados à Brigada trabalham, é explicado o método de construção coletiva das montagens e o texto de duas peças do coletivo, construídas em parceria com o CTO, foram publicadas – “A peleja de boi bumba contra a águia imperiá” e “Privatleite”. Prevalece o tom descritivo ao analítico, ainda que os textos já dêem notícia da fértil discussão travada internamente sobre a potencialidade e os impasses da proposta do Teatro Fórum, por exemplo.

Em função da demanda de lidar com temas que se

desdobram por grandes períodos do processo histórico –

como é o caso do tema da ameaça à soberania alimentar

causado pelo monopólio que as empresas multinacionais

detém das técnicas de transgenia – e da exigência de

abordagem conexa em diversas frentes, no momento da

construção de nossas peças muitas vezes sentimos falta de

recursos teatrais capazes de lidar com essas questões, como

é o caso dos procedimentos narrativos, comuns ao teatro

épico, sistematizado enquanto método por Bertolt Brecht.

Esses procedimentos em geral não são compatíveis com

a forma dramática de representação da realidade, suporte

corrente para a construção das peças de Teatro Fórum.18

16 MAGGIO, Sérgio. ENTRELINHAS E CONCRETO: teatro brasiliense contemporâneo. Ano I – Set 09 – nº 1. Brasília: Grupo Teatro do Concreto e Alpha Gráfica Editora, 2009, p. 7.17 MACIEL, Diógenes André Vieira. ANDRADE, Valéria (orgs). Por uma militância teatral: estudos de dramaturgia brasileira do século XX. João Pessoa: Idéia, 2005, p. 14.18 MST, Coletivo Nacional de Cultura do. Caderno das Artes n° 01: Teatro. São Paulo: MST, 2005, p. 16.

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Por meio dos desafios da experiência prática a Brigada do MST percebeu a demanda pela teoria no mesmo momento em que emborcava numa polêmica produtiva do teatro brasileiro, sobre a pertinência crítica e o potencial emancipatório do Teatro Fórum. Iná Camargo Costa, no texto “Lembranças de Boal” publicado no dossiê de homenagem a Augusto Boal pela revista Vintém nº 7, aborda a questão pelo viés do potencial crítico que percebeu ao assistir uma sessão de Teatro Fórum apresentada por um grupo do MST na 3ª Semana Nacional da Cultura Brasileira e Reforma Agrária, realizada em Recife, em 2004:

Eles descobriram, pela experiência e pela metodologia, que

eles têm algumas questões que, se não for pelo teatro fórum,

não dá pra enfrentar. Sobretudo o problema do machismo

dentro do movimento e as questões que colocam a luta pela

igualdade de gênero em todos os planos, inclusive no que

diz respeito à titulação de propriedade nos assentamentos e

tal. Isto vai muito longe, mas vou encerrar este depoimento

com um pequeno relato: eu assisti, num encontro cultural

do movimento em Recife, a uma sessão de teatro fórum.

Ali eu descobri o segredo do teatro fórum: se ele for feito

com um número reduzido de pessoas, ao apresentar uma

provocação que chega ao âmago do problema, põe todos os

presentes em questão e eles têm que se mexer, porque são

diretamente interpelados. A outra vantagem que eu descobri

com esta experiência é que, quando o teatro fórum é feito

entre companheiros, ele acontece de maneira mais animada

e divertida do que numa situação em que os presentes não

se conhecem nem sabem muito bem o que está rolando.

Porque a interpelação é uma interpelação de companheiro:

“Ô, meu, você viu?, Vem aqui ver. Como é que você

resolve este problema? É uma encrenca familiar. Na sua

família, como é que vocês fazem?” Era nessa base. Eles não

adotaram uma fórmula ortodoxa de teatro fórum, eles foram

desenvolvendo.19

Note-se que com a entrada em cena da produção teatral dos movimentos sociais de massa como o MST, que encaram a articulação entre cultura e política como um dos eixos fundamentais de sua práxis, o debate sobre teoria e prática teatral encontrou outro motor de propulsão, para além das salas de espetáculo dos teatros comerciais, reduto a que o teatro político brasileiro foi coagido a permanecer desde o golpe de 1964. O reencontro da gente de teatro e dos pesquisadores com o teatro feito pelos de baixo, organizados politicamente, já evidenciou a reviravolta que pode promover no debate político e na produção teatral do país.

O prefácio escrito por Augusto Boal, bastante didático, demonstra que o Centro do Teatro do Oprimido não apenas transferiu seus conhecimentos para os militantes do MST, mas que o inverso também ocorrera. Como a parceria de trabalho permitiu a Boal e sua equipe o conhecimento

profundo da dinâmica de trabalho do MST, isso tornou possível a ele sintetizar alguns aspectos que lhe parecem avanços qualitativos para a esquerda brasileira. Por exemplo, ao explicar o caráter democrático, expansivo e solidário da organização, Boal compara o movimento com seu equivalente da década de 1960, as Ligas Camponesas:

Ao contrário das antigas Ligas Camponesas, que se

formaram sobretudo no Nordeste até 1964, lideradas ou

comandadas por um só líder, o MST tem vários, e sua meta

é a de que sejam líderes todos os seus integrantes. O MST

é democrático. Dentro de uma estratégia decidida para o

país inteiro, cada setor do MST, em cada região do país,

inventa as suas táticas. Esse fato cria maior responsabilidade

e maior flexibilidade de ação. (...) Não contente em se limitar

à atividade social e política, o MST compreende que não

basta conquistar um pedaço de terra e fazê-la produzir: é

necessário que cada camponês seja consciente do país e do

mundo em que vive, consciente da família e da sociedade às

quais pertence, que estude Filosofia e História, e que suas

reivindicações não se reduzam aos slogans e às frases feitas,

mas que se tornem poesia, pintura, música – Arte. 20

Em 2007 a Brigada Nacional de Teatro do MST publicou o livro “Teatro e transformação social” em dois volumes: o primeiro destinado para as peças de teatro fórum e agitprop e o segundo destinado para as peças de teatro épico. Ao todo foram publicadas dezenove peças dos grupos ligados a Brigada Nacional. Segundo o texto de apresentação dos dois volumes, assinado coletivamente pela Brigada: “Uma vez constituídos os primeiros grupos, a percepção efetiva de que a produção cultural pode assumir formas de intervenção política nos levou a orientar nossas produções neste sentido: de confronto na luta de classes” (2007, p. 10). No prefácio “Ações contra-hegemônicas exemplares” Iná Camargo Costa sintetiza a gama de questões abordadas pelas peças:

Boa parte delas mostra os meios de comunicação produzindo

mentiras sobre o MST, apenas a versão do latifúndio sobre os

enfrentamentos e a justiça como arma adicional da dominação

de classe. Outras mostram a escola pública como lugar de

transmissão de mentiras de todos os tipos e, pior, como

um lugar onde se praticam vários tipos de discriminação,

a começar por aquele de que são vítimas as crianças do

MST, as sem-terrinha. Tratam ainda da persistência da

incompreensão do papel da mulher e do exame crítico das

relações de poder no próprio interior do movimento, do papel

do imperialismo nos países latinoamericanos e das várias

táticas, todas violentas, do latifúndio e do agronegócio na luta

encarniçada por seus próprios interesses.21

Até o momento observamos que esses materiais têm cumprido o importante papel de registrar, descrever e

19 COSTA, Iná Camargo.

Lembranças de Boal. In Revista

Vintém, nº 7. São Paulo: Companhia do

Latão, 2º semestre de 2009, p.54.

20 BOAL, Augusto. MST, Coletivo

Nacional de Cultura do. Caderno das

Artes n° 01: Teatro. São Paulo: MST,

2005, p. 7.21 COSTA, Iná C.

MST, Coletivo Nacional de Cultura

do.. Teatro e transformação social.

São Paulo: Cepatec, 2007, p. 5.

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refletir sobre uma experiência teatral que corre à margem dos interesses de mercado, e ainda não foi incorporada, ou narrada, devidamente pela historiografia oficial do teatro brasileiro. As tiragens são pequenas, por dificuldade econômica, e a distribuição é voltada para as áreas de reforma agrária, para coletivos urbanos e bibliotecas de universidades públicas. Um grande salto de qualidade na circulação desses materiais poderá ocorrer quando uma editora de expressão nacional e com política de preço acessível organizar uma coletânea que faça um apanhado de conjunto dessa produção.

Limites e desafiosAs experiências e publicações, a despeito da relevância

e impacto local dos trabalhos, estão longe da abrangência nacional almejada. O foco de maior ressonância da produção segue concentrado em São Paulo, seguido um pouco atrás por Rio de Janeiro. São recentes as iniciativas de troca de experiência entre os coletivos de diversos estados com o intuito de construir uma estratégia unificada e eleger táticas apropriadas para a ampliação das condições de trabalho permanente para os coletivos de teatro político.

A publicação de estudos que analisem criticamente os avanços e limites de experiências localizadas poderá contribuir bastante para a socialização do legado acumulado, em termos nacionais. Um exemplo é o livro “A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao teatro” (2009), de Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho, rigoroso trabalho de organização historiográfica da luta dos grupos de São Paulo organizados no Movimento Arte contra a Barbárie, empenhados pela ampliação da conquista da Lei do Fomento, com competente análise da relação entre coletivo de trabalhadores do teatro, financiamento público e iniciativa privada.

Ao compararmos o debate do meio teatral contemporâneo com aquele travado na década de 1960 podemos observar que os grupos atuais não estão colados

com o nacional-desenvolvimentismo que marcou o debate político do meio teatral da década de 1960, ainda que o mesmo discurso esteja presente, como uma espécie de recalque histórico, em alguns partidos de esquerda. Há certo pessimismo em relação aos rumos do progresso do país, o que muitas vezes rende em formalização estética do problema, com forte acuidade crítica e potencial desideologizante. Todavia, o gume afiado do trabalho artístico não tem paralelo na organização política do segmento, que encontra extremas dificuldades para se articular com perspectiva de classe, em vinculação com outros setores, com pauta unificada de luta, ações programáticas, e organicidade de movimento social. No estágio atual, os coletivos que conseguem superar esses impasses são exceções; dão exemplo pela iniciativa isolada, mas não marcam o ritmo e a forma de organização do segmento.

Embora seja louvável que os impasses estéticos do realismo dramático, que tanto mobilizavam o debate da década de 1960, tenham sido superados pela qualidade da intervenção estética dos coletivos atuais, o empenho da gente de teatro daquela época na consolidação de um projeto popular e radicalmente democrático de país – que se manifestava na atitude de tomar todos os pontos de pauta da luta política como temas urgentes para o trabalho teatral – não encontra correspondente atualmente. Se é certo que o momento de agora é diverso de outrem, é evidente também que herdamos o fardo de derrotas históricas sucessivas cujo efeito na capacidade de organização se evidencia na situação paradoxal da multiplicação de focos aglutinados pela identidade setorial que, entretanto, não convergem para uma ação estratégica que tenha como alvo a totalidade do sistema ao qual pretendem se contrapor. O que talvez permaneça, das lutas da década de 1960, como potencial aprendizado ainda não absorvido e refuncionalizado pelos coletivos e movimentos atuais é a perspectiva da práxis.

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Lucienne Guedes

Luís Alberto de Abreu é um reconhecido

dramaturgo, pensador e professor. Ele se tornou

referência para grande parte dos dramaturgos,

diretores e atores contemporâneos em atividade. Em

parte, essa importância se dá por conta do interesse

dele em compartilhar seu conhecimento, adquirido

em anos de prática e estudos. Ao longo de 32 anos

de carreira, Luís Alberto de Abreu realizou vários

tipos de estudos e processos de criação, responsáveis

por todo o arcabouço de conhecimento que compõe

sua trajetória. Entre os trabalhos dele estão a longa

parceria com o Grupo Mambembe, com a Fraternal

Cia. de Artes e Malas-Artes, a passagem pela

coordenação do Núcleo de Dramaturgia do CPT de

Antunes Filho, o processo colaborativo, a Escola Livre

de Teatro de Santo André, a parceria com o diretor

de cinema e TV Luiz Fernando Carvalho, entre

tantos outros. Ao longo de todas essas experiências

é que Abreu vai amadurecendo uma “maneira” muito

própria de fazer e pensar dramaturgia e processo

criativo, desenvolvendo aquilo que podemos chamar

de seus “princípios”.

As experiências pedagógicas de Abreu são o

terreno em que esses “princípios” se esclarecem e

vêm à tona de maneira clara e contundente, para

além de sua obra dramatúrgica, na medida em que

luís alberto de abreu, artista e pedagogo

arn

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Fraternal, Eh, Turtuvia! (2004)

Lucienne Guedes é dramaturga, atriz e

professora. Integra o Núcleo Argonautas,

atua como artista colaboradora do Teatro de

Narradores. Em 2011 terminou sua

pesquisa de mestrado (CAC-ECA/USP) a partir da obra e Luís

Alberto de Abreu (no prelo).

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na pele” os entraves da criação. Mais do que isso, nesta experiência revelou-se também um importante posicionamento de Abreu quanto à dramaturgia e aos processos criativos: se, para um dramaturgo, Aristóteles sem dúvida é leitura fundamental, assim como a leitura dos clássicos do teatro e da literatura e os estudos das formas de pensamento, fazer dramaturgia não se resume a isso. Não existe uma quantidade de coisas que você precisa saber para ser um bom dramaturgo. Para ele, o trabalho se faz na obra. Cada obra específica necessita da melhor expressão que se possa dar a ela como dramaturgia. Para Abreu, um bom dramaturgo não é alguém que conseguiu um bom nível de conhecimento sobre a linguagem; o bom dramaturgo é a boa obra que ele fez, ele existe na obra. Não se chega a um estágio de “bom dramaturgo” ou de “dramaturgo ruim”. “O grande mestre é o próprio processo. Ele é quem ensina; a gente aprende se quiser”, disse Abreu ao final de um dos encontros com a Cia. dos Dramaturgos.2

Num dos encontros com a Cia. dos Dramaturgos surgiram as questões: Que importância tem hoje a dramaturgia? Está ligada a quê? Será que estamos num mundo no qual os valores não são claros e por isso a dramaturgia também não sabe em que se f iar? Será que a dramaturgia sofre numa época sem valores? A resposta de Abreu:

Será que estes valores pelos quais lutamos agora

(a não violência, por exemplo) eram respeitados na

Grécia antiga? Não eram. Se fossem, aquelas peças,

as tragédias, não fariam sentido para eles. Aquilo

era uma carnificina, havia muita violência. Por que a

necessidade de Eurípides, por exemplo, de escrever

As Troianas?!? Ele viu alguma coisa errada; as coisas

não estavam bem por lá, não! Imaginem se hoje um

americano tivesse que escrever uma peça sobre as

mulheres iraquianas, para apresentar na Broadway...

por que seria diferente? Ele foi escrever sobre os

inimigos, e foi levantar a covardia dos gregos na guerra!

Quem infundiu o valor da não violência, por exemplo,

foram esses escritores, como Eurípides. E estas

obras têm valor até hoje. Portanto, eu não vejo muita

diferença entre ele e nós, a não ser o grau da violência,

a violência globalizada, a expansão da violência física

e também a cultural em que nós estamos... Falar que

hoje nós não temos valores, é adotar o valor de nossa

época que tanto criticamos, dizer que “o homem

acabou”, que os valores não existem mais...3

E então, outra pergunta: por que então a dramaturgia f ica onde ela está, como se não

1 Os integrantes da Cia. dos Dramaturgos que participaram do projeto Escrita Aberta foram, em ordem alfabética: Ana Roxo, Carlos Canhameiro (estagiário), Cássio Pires, Claudia Pucci, Fábio Torres, Jonas Golfeto (estagiário), Lina Agifu, Lucienne Guedes , Marcos Gomes, Paula Chagas e Valmir Pavam.2 Trecho transcrito a partir de registros de gravação e filmagem.3 Trecho transcrito a partir de registros de gravação e filmagem.

o artista-pedagogo, em situação de coordenador, se esforça para se comunicar, na medida em que expõe seus desejos e inquietações ainda não realizados, aqueles que nem conseguiram encontrar expressão artística plena e, portanto, ainda são perguntas e questionamentos para o próprio Abreu.

A atividade pedagógica é o lugar por excelência no qual todas essas discussões se realizam. É no encontro com o aluno que o professor se revê, se prepara, se expressa plenamente como artista e como pessoa. E faz parte da inquietação de Abreu o interesse por ter esses alunos, por ter interlocutores para seu próprio trabalho, sempre tão solitário, como o de todo dramaturgo. Dinâmicas coletivas de criação sempre f izeram parte da história de Abreu, desde o início, assim como as aulas; com certeza num âmbito coletivo essas questões são mais compartilhadas. Mas o dramaturgo, alijado do contato constante com o público, permanece ainda desesperado para que sua ação no mundo tenha sentido.

Foram muitas as experiências pedagógicas de Abreu, entre elas o Oficinão do Galpão Cine Horto, a Escola Livre de Teatro, oficinas e encontros com grupos de teatro em processo de criação. Eu estive presente em algumas delas, a partir das quais escrevo alguns comentários.

abreu com uma companhia de dramaturgos

Abreu esteve com a Cia. dos Dramaturgos, companhia que em 2005 e 2006 teve o projeto Escrita Aberta1 contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Esse projeto previa a escritura em processo aberto de nove peças, dos nove dramaturgos integrantes da Cia., além de outras duas peças de dois estagiários selecionados para o projeto. Abreu foi convidado a coordenar uma sequência de encontros com este grupo, para falar de dramaturgia e de processo criativo, além de poder estimular, criticar e acompanhar os projetos.

Como Abreu estava em companhia de dramaturgos ou de dramaturgos em formação, todos com um interesse claro na escritura de peças teatrais, a abordagem trazida por Abreu contemplou aspectos bastante próprios a esta situação. À medida que discorria sobre os pontos encontrados nos projetos de cada um, surgiam perguntas às quais Abreu ia respondendo com suas referências teóricas e, sobretudo e principalmente, com sua própria experiência. Grande parte de suas respostas carregavam um aspecto “vivo”, de quem “sofreu

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conseguisse acompanhar as necessidades dos nossos tempos? Por que a trajetória do herói hoje é banalizada? Abreu respondeu:

Eu, como dramaturgo, tenho que conseguir fazer

interessante, tenho que tentar arrastar as pessoas de

fato, com o que escrevo. Isso tudo é um problema nosso,

de nós dramaturgos. [...] Eu não concordo quando se diz

que o melodrama é a “tragédia possível”, a tragédia dos

tempos atuais. Considero isso um raciocínio pequeno.

Outra coisa equivocada é ver o mundo de uma forma

progressiva tão somente, como se essa nossa época fosse

fundamentalmente diferente da época dos gregos, como

se agora estivéssemos melhor aquinhoados para algumas

coisas, ou pior aquinhoados... essa é uma visão muito

etnocêntrica, europeia, do século XIX e principalmente

do século XX. E essa ideia nos faz pensar a cultura

primitiva como precária. Não acreditamos nem mesmo

que os antigos possam ter tido tecnologia para construir

o que construíram, a exemplo das pirâmides do Egito. E

essa visão também pode estar relacionada às técnicas

teatrais. [...] Não sei se o mundo antigo é tão diferente

do nosso, em termos de valores. Isso é a nossa questão,

a nossa responsabilidade como artistas. E não podemos

colocar a responsabilidade no público, como se ele

devesse estar preparado para nós. Ele tem capacidade

para reconhecer o que é forte. A responsabilidade é

nossa, de sintonizar e tocar este público, independente

da mídia, da força da TV. A questão é não ficar

reproduzindo os modelos que beneficiam o sistema.4

abreu convidado da Cia. LivreOutra experiência pedagógica de Abreu aconteceu

recentemente. No primeiro semestre de 2010, a Cia. Livre começou a realizar a série de estudos que iniciaram seu projeto África-Brasil, contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Logo após uma sequência de atividades abertas à população, mais focadas em aspectos históricos e antropológicos da relação entre o nosso país e o continente Africano, Luís Alberto de Abreu foi convidado a trazer questões relativas a processo de criação. O desejo expresso da Cia. Livre, ao convidá-lo, era discutir a possibilidade de potencialização dos atores para questões dramatúrgicas, numa dinâmica coletiva de criação. “Se há aperfeiçoamento e treino de corpo e de voz, por que não há o mesmo com a dramaturgia?”, foi a pergunta que motivou o convite.

Abreu coordenou, para tanto, uma série de encontros com a Cia. Livre, em junho e julho de 2010, nos quais estavam presentes todos os integrantes da Cia., além de artistas convidados, como eu. Apesar da

participação de pessoas de tantas áreas diferentes do fazer teatral naqueles encontros, já que a abordagem previa o foco no trabalho propositivo somente dos atores, houve uma parte prática, além das exposições e discussões.

De maneira semelhante à experiência com a Cia. dos Dramaturgos, a presença de Abreu se colocou como possibilidade de troca e interlocução, e menos como um professor que dará a “aula”. Chamou as aulas de “troca de inquietações”. Abreu se interessou por esta troca porque há objetivos de estudo comuns entre ele a Cia. Livre: as linguagens, a construção da dramaturgia, a estrutura da mitologia, os mitos, as histórias, o entendimento de porque eles permanecem ativos no tempo desde o período neolítico. Interessa saber, também, como se pode “saltar” da estrutura mitológica para a contemporaneidade com a mesma “simplicidade” dos mitos, com uma estrutura semelhante.

Abreu concorda que, num processo coletivo ou colaborativo, quanto mais o ator conhecer dramaturgia melhor será o diálogo, assim como quanto mais o dramaturgo souber da interpretação, do “material do ator”. O entendimento da cena pelo ponto de vista do ator é muito diferente. Entre o diretor e o dramaturgo já existe a diferença, mas do ator ao dramaturgo ela é muito maior. Para o ator, a dramaturgia sai dele mesmo, na ação. Além disso, a relação ator-diretor é muito diferente daquela ator-dramaturgo, na opinião e nas experiências de Abreu.

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Bella Ciao, direção de roberto Vignati, 1982

4 Trecho transcrito a partir de registros de gravação e filmagem.

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A partir dessas primeiras considerações é que Abreu propôs que fosse feito um trabalho prático, para onde todas as ref lexões pudessem convergir. Os participantes realizaram um micro processo de criação, saindo da escolha de um material inicial que necessariamente contivesse uma experiência humana e começando a processa-lo através da narratividade e depois alcançando a cena.

Abreu sabe que as respostas que podem ser obtidas para essas questões são transitórias, são inconsistentes; portanto, ele “desiste” de encontrar as respostas definitivas e decide continuar perguntando, o que em sua opinião se mostra uma postura muito mais interessante para a criação. As respostas acontecem e duram enquanto determinado trabalho está sendo realizado. Depois de terminado, essas respostas não necessariamente irão servir ao próximo trabalho.

Essa opinião de Abreu vai além de si própria. Considerar as respostas que obtemos como “válidas por enquanto” é parte de sua maneira de ver a pedagogia da dramaturgia. Ou seja: por mais que se tenham informações e experiências sobre dramaturgia, cada novo material teatral a ser organizado pelo dramaturgo trará novas e outras questões, sobretudo àquele dramaturgo que se interessa em não somente reproduzir o tipo de teatro que já existe e existiu, mas, e antes, procura estar com as antenas ligadas na contemporaneidade. Dessa forma não há, para Abreu, quem seja “bom dramaturgo”, “bom artista”. O que há é a obra de arte que resultou potente. Ser um bom dramaturgo não é, para Abreu, um lugar seguro e adquirido ou um título que se possa ostentar, mas uma qualidade a ser conquistada com cada trabalho, esse sim considerado bom no encontro com o público, sua f inalidade máxima. Essa ideia está de acordo com a maneira de Abreu de pensar a criação como processo do material.

Dessa maneira, os estudos e a pesquisa servem muito mais ao material do que ao dramaturgo ou ao ator. Não é o dramaturgo que “se torna melhor”. Para que o processamento do material e a organização da cena possam ser potentes, todas as informações a respeito da linguagem e de processos criativos estarão à disposição desse dramaturgo, que poderá reconhecê-las e utilizá-las a seu favor, para um ótimo processamento, para que o encontro da peça com o público alcance as intenções que o motivaram.

eLt e os narradores de PassagemQuando Luís Alberto de Abreu aceitou o convite

de Maria Thaís Lima Santos para estar no projeto

original da Escola Livre de Teatro de Santo André, em 1990, não imaginava quantos anos f icaria ligado à escola e nem como se modif icariam as características de seu trabalho por ali. Várias e diferentes foram as aulas que coordenou na ELT. Também foram muitos anos de dedicação a ela: no início, Abreu coordenou núcleos de dramaturgia, depois um núcleo de pesquisa de comédia popular, entre tantas participações como dramaturgo para as montagens das turmas de formação de atores. Num processo mais recente, que começou em 2002, Abreu coordenou um núcleo de dramaturgia voltado para processos colaborativos. Este núcleo de Abreu funcionou em consonância com um núcleo de direção, coordenado por Antonio Araujo. Entre outros trabalhos, houve uma adaptação do romance Crime e Castigo, de Dostoievski, feita pelos dois núcleos unidos, na qual Antonio Araujo coordenou os diretores e eu, Lucienne Guedes, os atores. Nesse caso específ ico, Abreu tratou de estimular e inquietar os alunos-dramaturgos sobretudo em relação a aspectos específ icos daquele tipo de trabalho: uma adaptação de um romance, em processo colaborativo. Como desdobramento desta experiência, a Escola Livre acolheu uma proposta de continuidade diferente para o que eram os núcleos distintos. No ano de 2004, portanto, dramaturgia, direção e interpretação se uniriam num núcleo de estudos sobre Dinâmicas Coletivas de Criação.

Embora essas experiências trouxessem a riqueza de um processo colaborativo com cerca de 50 pessoas, do mundo de Dostoievski e de outros temas trazidos pelos participantes, de novos estudos e nova bibliografia para processos coletivos, essas experiências diziam respeito, ainda, a coisas que Abreu conhecia bem, dominava muito bem. Será na formação do Núcleo de Narradores de Passagem, em 2005, que o artista se porá à prova, por si mesmo.

Por mais que possamos ver o trabalho de um artista como um material objetivo, que vem de “fora dele” e vai para “fora dele”, Abreu acredita que sempre se parte da dimensão sensível de um sujeito que olha o mundo e se espanta com ele. Assim foi com o Núcleo de Narradores de Passagem. Foi ideia do próprio Abreu que este Núcleo se constituísse, e esta ideia alcançou abrigo na ELT. Movido por uma experiência concreta, na qual notou quão grande era a solidão e a incompreensão de quem estava em tratamento em ambientes hospitalares, e também dos acompanhantes, tomou a iniciativa de formação do Núcleo. A impessoalidade destas relações se revelou enorme, para ele: na sua grande maioria, os doentes

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não têm um nome sequer para serem chamados pelos médicos e enfermeiros. A falta de preparo humano é de todos, diante da proximidade da morte. Sabemos: a doença e a morte, em nossos tempos, são vistas como algo que deve ser escondido, que nem deve ser visto. Com este impulso, Abreu sentiu a necessidade de levar a cabo o projeto com os narradores. Tornou-se explícita a necessidade e a possibilidade de usar a narrativa na relação com esse “novo” público.

Embora há muito tempo Abreu já se interessasse pelo uso da narrativa no teatro, no projeto do Núcleo de Narradores de Passagem era necessário reconhecê-la de outra maneira. A ideia era (e ainda é, pois o núcleo continua em atividade, embora como organização independente da Escola Livre de Teatro) criar um grupo de pessoas para escrever narrativas e formar/preparar narradores que pudessem ir a hospitais e casas de tratamento para doentes terminais. Esses narradores, de posse de suas narrativas de passagem, teriam a incumbência de estabelecer um vínculo com trabalhadores do hospital, família ou com o próprio doente, trazendo a elas tais narrativas, na crença de que, através deste contato, as narrativas pudessem fazer parte do imaginário daquele momento difícil, e ajudar a reintegrar o doente e sua família a uma sensação de pertencimento maior, da humanidade, que é aquela composta por todos os que já se foram e todos a aqueles que sofreram perdas e continuaram vivos.

Abreu propôs, portanto, que a função da narrativa antiga, essencialmente épica, com alto teor de oralidade, fosse restaurada nos dias de hoje. Sem dispor de elementos teatrais outros que não a voz e, sobretudo, a própria narrativa, público e narrador se encontram para que a fala se dê não como representação, mas como contato no qual o ouvinte (e não mais espectador tradicional de teatro) acessa seu próprio imaginário, tornando-se tão ativo quanto o narrador no fenômeno f iccional. Para Abreu, longe de tais coisas serem certezas precisas, o Núcleo de Narradores de Passagem era o início de uma busca.

O narrador desejado por Abreu é um narrador contemporâneo. Ele precisará corresponder ao nosso presente, de acordo com as necessidades do presente. É aí que se fundamentará a busca do Núcleo Narradores de Passagem, no esforço de recriar a experiência como f icção, como síntese, e trazê-la ao envolvimento e vínculo com o público ouvinte.

Uma das integrantes do Núcleo de Narradores de Passagem, Isabella Terra, realizou uma entrevista com Luís Alberto de Abreu. Cito aqui um trecho da

entrevista5, no qual ele explicita o que pensa a respeito da diferença entre o narrador contemporâneo e aquele desenvolvido por Walter Benjamim6:

Pergunta de Isabella: Em sua caminhada, Abreu,

você já encontrou algum tipo de narrador que se

aproximasse muito daquele descrito por Benjamin?

Resposta de Abreu: Muitos. Muitos, mesmo.

Principalmente com relação à técnica da narração.

São pessoas que começam a contar histórias,

não tem jeito; as pessoas se juntam para ouvir.

Minha mãe era uma delas. Não tinha jeito de

não ouvir. Geralmente são pessoas idosas. Tem

um narrador que é muito bom, de Tiradentes,

ele tem umas imagens lindíssimas, ele senta,

começa a contar... não tem jeito. Você para o

que está fazendo para ouvir. Isso é uma técnica

muito ref inada. É uma técnica muitas vezes

intuitiva, pois ninguém aprende isso na escola.

Quando a gente ouve uma vez, duas vezes, três

vezes, a gente nota uma determinada estrutura.

É uma técnica que ele desenvolveu. Então ele

se aproxima muito do narrador benjaminiano

pela técnica, pela transmissão da tradição. Mas

o que não existe hoje é a preocupação com a

função, que era agregadora, transmissora de uma

experiência humana. Isso não existe mais porque

a sociedade industrial utilizou um outro meio de

comunicação: baseado na informação, ou na venda

de histórias. O cinema, por exemplo, é o grande

narrador da sociedade industrial. Porque é um

meio de comunicação que atinge várias pessoas,

mas é um meio de comunicação pertencente a

um grupo, um meio privado, que muitos não têm

acesso. Os antigos narradores não tinham acesso

a isso. Então eles começaram a transmitir f icção

cada vez mais dissociada da comunidade. Por

exemplo, as comunidades todas, do Brasil inteiro

começaram a receber “narrações” cinematográf icas

de Hollywood, que muitas vezes nem transmitiam

a realidade da comunidade norte-americana. Isso

não transmitia valor algum, pois era f iccional ao

extremo, ou melodramas que não tinham relação

alguma com a comunidade brasileira. Não que isso

não deva existir, deve sim, mas a agravante é que

houve uma desqualif icação de todos os narradores

da comunidade. Um f ilme Hollywoodiano entra

nas comunidades muito mais fortemente que

qualquer narrador, pois vem acompanhado da

força da tecnologia, da modernidade e o narrador

é essa f igura interpessoal, que deve ser resgatada

em primeiro lugar. Depois a função desta f igura,

5 SARAIVA, Isabella Cristina Terra.

Um Novo Olhar à Figura do Narrador:

Narradores de Passagem. 2009.

Dissertação (Mestrado em Artes) Unicamp, Campinas.

6 BENJAMIN, Walter. O Narrador

– Considerações sobre a obra de Nikolai

Leskov. In:________. Magia e Técnica, Arte

e Política: Ensaios sobre literatura e

história da Cultura. Trad. por Sergio

Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,

1994.

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desse narrador, teria que ir para todos os meios de

comunicação: cinema, TV, etc. Então o cinema

teria que expressar aquela comunidade, e a partir

daí sim estabelecer uma relação de troca com as

comunidades do outro lado do mundo.

Se o campo de ação do narrador contemporâneo pode ser todos os meios de comunicação, mesmo os de massa, a função principal da narrativa, como proposta por Abreu, é comunicar uma “experiência”.

Mas um acontecimento, um fato testemunhado, uma notícia, não são necessariamente “experiência humana”. Nem todo fato presente na informação é experiência; nem toda memória é experiência; nem toda lembrança corresponde à “verdade”. Como salienta Beatriz Sarlo numa entrevista7, frequentemente não são os protagonistas de determinado tempo histórico aqueles que detém a lembrança, até porque muitos deles já estão mortos. Quem narra é um sobrevivente, um sobrevivente que muitas vezes sofre a condição de narrador daqueles que se foram, carregando enorme carga de fazer justiça com suas palavras. Walter Benjamim também chegou a af irmar o esgotamento do relato, pois o choque diante das guerras teria destruído completamente a possibilidade da “experiência transmissível”.

A notícia é um resto, um resíduo do que pode ter sido a experiência humana. Enquanto a descrição do fato pode nos paralisar de horror ou nos deixar perplexos, a natureza da experiência compartilhada é outra. Ela já sofreu a ação do tempo e, portanto, já selecionou aquilo de mais importante. Não que não haja sentimento envolvido no ato de narrar. O narrador, ao transmitir seu relato, revive uma dor que aconteceu há muito tempo, reorganiza a memória, recompõe seus valores; mas ele não mais grita de desespero. Não se trata de deixar com que o fato se enfraqueça pela ação do tempo, mas de resgatar a sua importância em outra síntese, síntese feita pelo tempo, no corpo do narrador; trata-se de colocar o ser humano (narrador) entre o fato e o outro ser humano (ouvinte). A narrativa, vista dessa maneira, permite a reorganização da experiência humana, da pessoa que narra e também da pessoa que a ouve. Se isso for aceito como uma problemática também pertencente ao teatro contemporâneo, podemos dar razão a Abreu quando afirma:

Talvez o artista tenha renunciado a ser o meio de

expressão das variadas experiências humanas para

expressar a si próprio. Talvez o artista tenha aberto mão

de expressar o mundo e a vida para expressar o próprio

mundo e os próprios sentimentos8.

Na experiência com os Narradores, Abreu cuida de seu próprio projeto. Foi necessário que ele próprio descobrisse caminhos, mudasse de direção, “inventasse” procedimentos e trabalhasse especialmente para aquelas pessoas que estavam interessadas em participar do grupo.

artista e pedagogoAlém dessas três experiências pedagógicas, Abreu

coordenou muitas outras. Tem sido professor de toda uma geração de artistas e de pessoas ainda em formação. Além disso, foi parceiro de trabalho de muitos artistas da contemporaneidade. Apesar dessa vasta experiência, o material de referência disponível ainda não acompanha essa importância.

Podemos notar é que o interesse pedagógico de Abreu está em consonância com o artístico. Ao se interessar por compartilhar seu conhecimento, pesquisas, experiências e estudos, se mostra como artista que quer a troca, que precisa receber em troca algo que o faça caminhar, que possa problematizar e melhorar seu trabalho. Sua atitude pedagógica e sua criação artística revelam-se um ao outro. Abreu também participou de muitas dinâmicas coletivas de criação, para as quais carrega sobretudo a pergunta “o que o indivíduo tem a dar ao coletivo?” e não “o que eu tenho a ganhar com isso?” O artista-pedagogo cria enquanto ensina e ensina enquanto cria, além de desejar aprender, seja criando ou ensinando.

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Companhia estável, O Auto do Circo (2004)

7 Entrevista concedida por Baetriz Sarlo ao jornal o Estado de S. Paulo, dia 01/04/2007, intitulada Passado que Condena.8 ABREU, Luís Alberto de. A Restauração da Narrativa. In: NICOLETE, Adélia (Org.). Luís Alberto de Abreu: um teatro de pesquisa. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 605.

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Lucienne – Podemos dizer que o seu trabalho no teatro reflete, em alguma medida, o seu posicionamento político?

Abreu – Acho que sim. É a minha formação, a expressão simbólica da minha formação de migrante, de quase operário. A expressão simbólica foi mesmo essa visão de esquerda, lá no começo. Sim, isso ficou de alguma forma. Mas as outras coisas também definem o meu trabalho. A formação popular é importante. Eu nasci numa cidade muito pequena, numa cidade muito comunitária na minha infância. Estes elementos populares, toda uma influência popular, isto vai ter uma presença marcante. E vai ser marcante também toda a ruptura estética da década de 70, 80... São estas duas coisas: esta tradição popular e esta ruptura. Eu sempre convivo com isso. O meu trabalho não é um trabalho de um sujeito que está sempre querendo “quebrar a forma”, mas também não é sempre a coisa da tradição. Por formação, eu gosto de trabalhar com as duas coisas.

Lucienne – Se pode notar que em seu trabalho existe o desejo de alcançar o público, independentemente de que suporte ou forma você utiliza para a dramaturgia. Estou certa?

Abreu – Com certeza. Alcançar o público, dialogar, encontrar o público: isto pra mim é um presente. Mesmo quando eu dialogo com uma forma mais complexa, ou menos usual, o objetivo é sempre esse. Quando eu comecei a trabalhar o verso no meu teatro, na Guerra santa ou n’o Livro de Jó, entre outras coisas, era pra buscar isso. Comecei a trabalhar o verso porque achei que naquele momento o poder de eloquência que ele trazia poderia atingir melhor o público.

Lucienne – E como se pode saber o que se precisa para atingir melhor o público?

Abreu – É estar atento. Eu li uma frase (me esqueci onde...) em que perguntaram para o Louis Jouvet: o que há nas peças de Claudel, por que elas empolgavam tanto o público? O que havia nas peças do Claudel era a eloquência. A poesia de Claudel é eloquente. E, neste sentido, atinge as mais variadas faixas de público. A poesia é eloquente, é

música. Isso eu fui mesmo pesquisar, porque era uma época de crise minha com a dramaturgia e com o teatro que estava sendo feito.

Lucienne – Tudo isso por conta do desejo de atingir melhor o público?

Abreu – É. Eu nunca me “filio”; nunca quis me “filiar”, nunca tentei seguir a essas rupturas que às vezes existem no teatro, as rupturas das formas. Isso não me interessa, não. Me interessa, sim, a forma enquanto encontro.

Lucienne – A forma como potência de outra coisa?

Abreu – Potência de encontro, qualidade do encontro. Da mais simples, até a mais sofisticada possível. Talvez isso tenha alguma coisa com a minha formação; talvez tenha a ver com essa coisa de filho de migrante. Filho de migrante não tem território, não tem cidade, não tem cidade mítica, não tem unidade. O migrante tem enaltecida a comunidade do pai e da mãe, que estão lá longe. O migrante não reconhece o lugar para onde vai, nem onde está. Esse dilema do filho do migrante talvez tenha influenciado de alguma forma; uma necessidade de comunicar. É muito complexo, tudo isso... muitas coisas vão formando a gente.

Lucienne – Você acha que, no teatro, tudo o se cria será, inevitavelmente, material pessoal?

Abreu – Mesmo porque a gente é o proponente. A gente propõe, propõe a conversa, a partir de elementos pessoais, a partir de possibilidades de encontro; é uma necessidade pessoal. Eu não sou artista porque eu amo o “coletivo”, mas sim tenho a necessidade de dialogar com o coletivo, com as outras pessoas. Eu respeito muito o coletivo. A aferição da minha colocação, da minha proposta, é no coletivo que eu vou ter. Os meios estéticos - é no coletivo que eu vou ter. A língua é coletiva, poesia. Escrever é uma coisa: vou escrever, em princípio em português. Meu motivo, na coletividade, parte de falar esta língua. E vou ter que encontrar os melhores elementos para isso. Não é só comunicar. É comunicar em nível mais profundo, porque senão eu prefiro conversar. A gente quer se comunicar em

Em 2010, luciEnnE GuEdES Encontrou luíS albErto dE abrEu na SEdE doS narradorES dE PaSSaGEm. a SEGuir, trEchoS da convErSa SobrE dramaturGia, formação, ProcESSoS dE criação E outroS aSPEctoS do trabalho do dramaturGo.

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outra esfera. Agora: acho muito importante a ligação entre o subjetivo, o pessoal, o individual. Nessa época mesmo, não me é muito cara a ideia de subserviência ao coletivo, inclusive na questão da produção artística, sabe? “O coletivo tem que ter isso...”, essas “verdades” que se tem que ter sobre o coletivo... Não me interessam muito, não. A mim interessam muito mais as contribuições que os indivíduos têm que dar ao coletivo.

Lucienne – Acho que vivemos num tempo em que a ideia de coletivo e de indivíduo estão bem confusas mesmo.

Abreu – Sim. Chegamos a um ponto...! Se num determinado momento do passado o coletivo, a ideia do coletivo, tinha uma força muito grande, agora ela está bastante prejudicada, de certa maneira.

Lucienne – E a ideia do sujeito criador individual também está desgastada, não?

Abreu – De certa forma, sim.

Lucienne – Eu lembro que você me ajudou muito uma vez, até mesmo sem querer. Eu estava fazendo a dramaturgia para o Núcleo Experimental do SESI, a partir da obra de Caio Fernando Abreu, com direção do Francisco Medeiros, e você me perguntou como estava indo. Eu estava sofrendo um pouco com a grandiosidade de toda a obra dele; não sabia muito como lidar com isso. E você me disse: “encare isso como parte do desconhecido; caminhe pela tua visão do material. Se você não coloca a tua visão sobre o Caio Fernando Abreu, você não vai conseguir escrever”. E ao final eu consegui, um pouco por conta disso.

Abreu – Isso eu aprendi quando eu estava fazendo o Lima Barreto. Porque ele tinha 17 livros, publicações, uma biografia excelente, muito material a respeito dele. Eu fiquei completamente perdido. E eu ali, tentando fazer a biografia dele. Até que um dia eu tive um insight: se eu fosse perguntar para a mãe dele “quem foi Lima Barreto?”, ela iria falar uma coisa; o pai iria falar uma coisa completamente diferente. A irmã dele iria falar uma terceira coisa. Então: não existe biografia única possível. Aí eu relaxei e fiz a minha versão. Porque eu estava com muito medo de enfrentar o Lima Barreto, com toda uma biografia excelente que tinha sido feita. Como é que eu vou fazer isso? A resposta foi: com a minha versão.

Lucienne – Voltemos à questão do sujeito criador, com isso. O que é subjetivo pode

interessar por ser um ponto de vista possível de ser criado, “ficcionado”, e não por ser autobiográfico.

Abreu – O subjetivo não tem nada a ver com a própria vaidade, com a egotrip. Subjetivo sou eu; eu sou o subjetivo, com todas as manifestações do meu subjetivo, com todo o mundo também, com a minha visão de mundo e com o que eu consigo apreender do mundo. Essa ideia de que “subjetivo não pode ser subjetividade”... isso não é “egóico”. O subjetivo nunca é “egóico”. Eu crio dentro da minha subjetividade, mas tendo como objetivo atingir o outro. Até que ponto as minhas questões batem com as questões do outro? Como é que eu comunico ao outro as minhas questões sobre o mundo, e como é que eu empolgo o outro com estas questões? Eu tenho uma paixão, e eu acho esta paixão importante, então quero comunicar esta paixão, esta verdade. Como é que eu faço para empolgar a outra pessoa, pra mantê-la interessada? E aí eu vou lançar mão da comedia, lançar mão da poesia, lançar mão da cena, vou lançar mão de tudo. De todo o meu aparelho estético. O cômico entra aqui: o tratamento cômico, o bom humor pra estas questões. São elementos estéticos.

Lucienne – Na entrevista que você deu ao Rubens Brito, que está na tese de doutorado dele1, você falou da escritura da sua peça Foi Bom, Meu Bem?. O texto traz o sexo como tema, as experiências sexuais e afetivas, desde a infância. Você disse na entrevista que era uma coisa importante, isso: todo o público é especialista no assunto, todo mundo tem o que dizer a respeito. O dramaturgo já sai “na vantagem”. É assim com a comédia também?

Abreu – Assim é a comédia, não tem jeito. A gente não cria fora do nosso imaginário. E o nosso imaginário é coletivo. O imaginário de uma cultura são as ideias que a coletividade pensa. Você pode até criar imagens novas, que não estão no imaginário ainda, mas a partir da coletividade. Você observou, você sabe que ali tem alguma coisa aportando, alguma imagem nova aportando, você joga para o imaginário. Mas quem chancela isso é o coletivo.

Lucienne – Como, então, um artista escolhe o que ver no mundo? Como é o processo de criação, desde esse olhar até a criação da dramaturgia?

Abreu – Isso é parte daquela questão anterior, sobre o “individual”. Eu vou priorizar apenas o que me toca? Mas aquilo que me toca, este saber sensível, não é o único componente da criação. Existem outros componentes; existe o componente ideológico, existe o componente filosófico... Eu privilegio no processo de criação este aspecto sensível. O que me toca, como princípio gerador. A imagem geradora, a

1 BRITO, Rubens. Dos peões ao rei:

o teatro épico-dramático de Luís Alberto de Abreu. Tese (Doutorado

em Artes Cênicas) - Escola de

Comunicações e Artes, Universidade

de São Paulo. São Paulo, 1999.

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imagem daquilo que me toca. Aí vêm uma série de camadas: a camada ideológica, a camada filosófica... elas vão se colocar por cima desta primeira imagem. Isso eu considero importante. Não vou apenas no aspecto sensível, não. Este aspecto sensível me toca, toca a minha sensibilidade. Por exemplo: de repente eu vejo uma criança. Esta criança está numa situação qualquer. Esta situação me toca, me toca sensivelmente. Por quê? É o princípio básico. O que significa isso? Que relação tem isso? Por que esta cena existe? Com essas perguntas eu já estou operando racionalmente a criação, em cima de uma coisa sensível.

Lucienne – Quando você esteve com a Cia. dos Dramaturgos2, este assunto surgiu, em um dos encontros. E você falou da necessidade que o dramaturgo tem de alimentar esta imagem inicial potente, desdobrá-la. Mas que isso significa também correr o risco de se perder.

Abreu – Com certeza. É muito possível que esta sensibilidade, que o que gerou o trabalho, se disperse numa tese. No final das contas você pode estar escrevendo uma cena que não é uma cena. É uma “ideia desenvolvida”, até porque você esqueceu aquilo que anima a todo mundo, que é a sensibilidade. Talvez a ideologia não seja comum ao público todo, mas o fato sensível é. A arte é estruturada a partir disso, na minha opinião.

Lucienne – Às vezes, nas experiências pedagógicas que coordenamos, nos deparamos com alunos muito interessados em teatro e dramaturgia, mas que não sabem o que escrever. Eles têm vontade de escrever, mas não têm nada que os toque, digamos assim. Isso já aconteceu com você, de ter o trabalho de professor que tem que despertar o olhar do aluno?

Abreu – Sim, acontece muitas vezes. Querer fazer dramaturgia imaginando que ela seja uma matéria curricular. Pensar que o aluno vai entrar na sala, que o professor vai ali dar a ele algumas regras e que, se aprender aquilo direitinho, ele vai sair fazendo. As pessoas não percebem que a dramaturgia começa nelas. Começa no material sensível que elas têm, na capacidade, na sensibilidade delas em relação a escolher, em relação ao mundo, em relação a si próprio. Em geral os alunos não percebem isso. Mistifica-se tudo, que “dramaturgia é isso”, é “aquilo”, que é “inspiração”. Dramaturgia é muito mais um processo de paciência e atenção pra que você possa se perceber, neste sentido. Perceber na verdade o que o toca. Dramaturgia não é colocar personagens dialogando. O aprendizado da dramaturgia está na sensibilidade, no “centrar-se”. Aquilo te tocou? Tocou. E então se começa a processar daí.

Lucienne – É o que você propõe como processo de criação de narrativas, nos Narradores de Passagem3.

Abreu – Sim, e aqui isso é mais explícito, mais concentrado. Mas mesmo em outros trabalhos de dramaturgia, que não sejam criação de narrativas, em geral estou pedindo para que as pessoas tragam coisas, acontecimento importantes da vida delas, pra começar a partir da sensibilidade. Começar a “desenterrar” a sensibilidade. As pessoas acham que dramaturgia é uma técnica. Quando as pessoas falam de “carpintaria” elas falam do modelo clássico aristotélico. É não é assim. Há inúmeras as maneiras de se trabalhar. E, então, fundamental mesmo é esta sensibilidade. Pra mim, continua sendo ela. Quando eu comecei lá no CPT de Antunes Filho, ainda em 1987, foi que me veio esta ideia da imagem sensível começar a gerar, ser o princípio do trabalho gerador da dramaturgia. E isso continua até hoje.

Lucienne – Nas suas aulas de dramaturgia, muitas vezes você fala sobre o processo de criação. Entre outras tantas coisas, você diferencia o que seria um processo indutivo e um processo dedutivo. O que você pode me esclarecer sobre isso?

Abreu – No processo dedutivo você tem tudo. Você tem todo um arsenal de raciocínio mental, você estudou, você conhece algumas coisas do material que você vai trabalhar. Então você entra em contato com o material que você vai trabalhar, na forma que você vai trabalhar. Você entra em contato com o material, com a imagem. Viu a imagem, ela te tocou? A partir daí você começa a deduzir coisas, vai deduzindo até formar todo um esquema a partir daquela imagem. A imagem está em determinada pessoa, em determinada situação, que se relaciona com outras situações, cria outra cena... Conseguiu estabelecer o protagonista, a personagem, as relações dos personagens todos... Isso é o processo dedutivo. Ou seja, todo o processo foi feito por você, teve apenas um estímulo de fora e disse “não, deixa comigo!”. Deixa comigo que eu vou trabalhar. Isso talvez não seja o melhor. É muito potente? Sim, é muito potente. Mas talvez sozinho não seja o melhor.

Já o processo indutivo: você teve aquela imagem inicial, você vai pro material. Vai pro mundo, vai procurar este tipo de imagem. Vai procurar na literatura, vai procurar na vida real mesmo. Ou seja, vai reunir um material muito grande. Então você vai encontrar uma imagem, e outra que vai se contrapor contra aquela. No material; está lá no material. Quando você reúne tudo, aí você vai se relacionar com este material, e o processo também. Você vai se relacionando com este material e deixando que o material te conduza. Aí vai chegar num momento em que você vai falar: “isso

2 De outubro de 2005 a junho de 2006, a Cia. dos Dramaturgos realizou um projeto de pesquisa e estudo, intitulado Escrita Aberta. Os objetivos do projeto, contemplado com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, centravam-se na escritura da onze peças teatrais, uma de cada dramaturgo participante, em processo aberto de discussões.3 O grupo Narradores de Passagem iniciou seus trabalhos como um núcleo da Escola Livre de Teatro de Santo André, em 2005, por ideia e iniciativa do próprio Abreu. Depois, em 2008, se transformou numa OSCIP, ganhando autonomia da escola. Narradores de Passagem não é um grupo de teatro, entendido como tal. Hoje é um grupo de voluntários, pessoas que narram, que levam narrativas para hospitais, casas de repouso, centro de recuperação e apoio, além de escolas. Os Narradores de Passagem permanecem em atividade. Sua página na internet é http://www.narradoresde passagem.org.br.

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aqui não dá! Vai ter dois protagonistas? Como é que eu faço isso?” Se você respeitar mesmo o material, você vai ouvir isso. Quem disse que tem que ter um protagonista só? Deixa os dois protagonistas. Não interessa se este protagonista é desta história e este outro é desta outra história. Percebe? Então, o material vai indicando pra você. O objeto nos induz a raciocinar a partir dele.

Lucienne – Esta ideia de processo criativo surgiu estimulada por algum autor?

Abreu – M. Bakhtin trabalha muito com isso. Ele vai falar de Dostoievski, que cria uma obra diferente dos romances da época. Madame Bovary, por exemplo, é um processo todo dedutível, perfeito, perfeito! A poética está presente. Está muito bem engendrado. E então vem o Dostoievski, aquilo é um mar de coisas acontecendo, e você vai vendo: “quem é o personagem aqui..?”, “qual é o principal...?”. Você não sabe qual é o principal. Não precisava de tanto. Precisa tanto personagem?

Lucienne – Não, acho que não. São muitos mesmo.

Abreu – Muito, muito, e você fica naquele “mar”... Madame Bovary tem os amantes dela e tem o Carlos, que é o marido dela; pronto. Acabou. Agora, no crime e castigo, você fala “meu Deus do céu...!”. Já no final, o romance está acabando, aí entra aquele Svidrigáilov... De onde ele veio?! É genial, isso. Esse é o processo indutivo. Dostoiévski respeitou o material. Imagine se chegasse o tal Svidrigáilov, quer entrar no romance e você diz: “não dá. Segundos os cânones do que eu aprendi não pode e...”. Mas ele entra. Se quer entrar, entra. É interessante? É significativo? Então, entra. “Como é que eu vou fazer isso? Não sei, me trouxeram um grande problema!” Azar o nosso. Azar do público também; vai ter que se virar com isso. Isso é material indutivo.

Lucienne – No Idiota tem também uma coisa parecida. Já num capítulo bem adiantado do romance o autor escreve que esqueceu de um personagem lá atrás, de uma família inteira, se não me engano, e agora vai traze-la de volta. Mas já passou mais da metade do livro...!

Abreu – Eu não sei por que isso. Talvez porque ele tinha que trabalhar muito, muito rápido, estava sempre sem dinheiro, sempre tendo que escrever pra pagar conta. Então o material “ia tomando” o Dostoievski. E ele ia trabalhando, porque na verdade este processo indutivo tem muito também a ver com a antiga literatura. Ela trabalhava em cima dos outros escritos. Decameron, por exemplo, trabalha em cima de outras histórias, que já estavam feitas. Dante fazia a mesma coisa. Ele vai trabalhar em cima do

Ovídio. Cervantes, com Dom Quixote, a mesma coisa. Sempre trabalhando em cima de outros escritores, sempre em cima de outro material. Ele está organizando os materiais antigos. Não é um processo tão dedutível como a gente vai ter lá na modernidade, essa ideia de que a pessoa tem uma ideia e começa a articular o processo dela. A articulação na literatura antiga era outra. Era articular os materiais. Não era articular a forma pro “meu” material.

Lucienne – Isso fica claro na sua peça Rosa de Cabriúna. O jeito de falar das personagens é muito próprio, mas não é só forma. O linguajar está a serviço do imaginário daquele território. Não adiantaria ter esse linguajar se não fosse decorrência das imagens. É isso?

Abreu – Esse é o universo maior. Ele é maior do que a estética. A estética é um componente. Não dá pra eu começar a “criar fora”, tomar, por exemplo, a estética como valor em si. A estética é um valor cultural, então temos que levar em consideração a cultura. É um valor social, então temos que levar em consideração a sociedade.

Lucienne – Por que você se interessou em dar aulas, em compartilhar seus estudos e inquietações? Por que você acha que alguém se interessa em dar aula?

Abreu – Acho que, pra mim, isso teve muito a ver com essa “solidão de dramaturgo”. É uma coisa bastante solitária. Até hoje eu tenho dificuldade de ter interlocutores, para discutir questões de estética, de dramaturgia. Com os grupos, foi sempre uma relação de não pertencimento. Porque tem os atores e tem o diretor... e aí também tem o dramaturgo. O que o dramaturgo faz? O dramaturgo escreve o texto. Depois que ele escreveu o texto, acabou. Ele está alijado de um convívio que é muito legal, que é o convívio com os atores, o convívio com o diretor, com o processo de criação... E é por causa disso, também, que o dramaturgo se tornou um escritor separado da cena; também por causa disso. Mas, pra mim, acho que dar aula que vem dessa necessidade mesmo, desta necessidade de partilhar. Eu lembro que antes disso eu fiz parte de um grupo de estudo, grupo de três: eu, o Calixto (de Inhamuns) e o Ednaldo (Freire). Comecei a estudar; acho que ficamos estudando uns seis meses. Estudamos A Poética, o Bentley, etc. E eu nunca tinha dado curso de dramaturgia. Então, o Antunes Filho me chamou pra organizar um núcleo de dramaturgia - acho que isso foi em 86 - e então tudo começou. Eu percebi que ali, com o pessoal que estava se interessando por dramaturgia, havia uma possibilidade de interlocução. Era interessante, porque eu poderia estudar e também porque eu era questionado. O próprio fato de você ter que ministrar uma aula, por exemplo, te obriga a estudar,

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a entender o que você estudou, o que é muito importante. E ainda ter que comunicar isso. E chegam os questionamentos, as questões. Com o pessoal de dramaturgia eu começo a ter um grupo, um trabalho coletivo mais ágil, de estudo, de pesquisa, de investigação. Eu acho que eu comecei a gostar a partir daí, deste processo mesmo de coletivo, do desenvolvimento em forma do coletivo.

Lucienne – Mesmo aí as questões são subjetivas, não?

Abreu – Até aí é subjetivo. Acho que é um interesse nosso, de todos, de conhecimento, uma coisa básica. Um grupo de dramaturgia é o lugar onde eu poderia adquirir conhecimento. Poderia reciclar meus conhecimentos, poderia ser questionado nos meus conhecimentos, e deste jeito poder avançar. Eu nunca tive quem me ensinasse. Isso é uma coisa de que eu também me ressentia. Não dá pra ficar cada um isolado num canto. Isso é uma razão, digamos assim, mais política, com este grupo de dramaturgia. Eu senti que, se eu ficasse sozinho, eu iria desaparecer. O fim do dramaturgo é desaparecer. Precisa ter uma dramaturgia forte, ter muito dramaturgo de uma forma forte para a dramaturgia continuar existindo, e os dramaturgos dentro dela. Acho que foi assim. Em 20 anos a gente pode ver quanto dramaturgo tem por aí; está sobrando...!

Lucienne – Sim, existe mesmo muita gente escrevendo dramaturgia. Mas eu percebo que a grande maioria dos dramaturgos não têm nenhuma relação de afinidade artística com alguém. Não que se deva ter isso para ser igual, não. Mas os dramaturgos não vêm de nenhuma “linha”, não reconhecem nenhuma herança. Parece que todo mundo está descobrindo sozinho as coisas, que ninguém tem aliança com ninguém, que se descobre tudo sozinho, originalmente. Será que ainda se tem a ideia de dramaturgo como gênio?

Abreu – O dramaturgo ainda não conseguiu superar a maldição de ser um criador, um ser dependente da musa inspiradora, da inspiração. O dramaturgo não conseguiu se desvencilhar disso: de não ser um trabalhador da cena e nem um escritor. As pessoas não entendem que o dramaturgo não é escritor. É outro tipo de criador, que tem que estar ligado à cena, que tem que estar ligado à construção do espetáculo. Fora disso, ele não é. Ele é enquanto espetáculo. Ele pode até guardar o sucesso dele ali, mas isso é registro. Não é espetáculo. Não é teatro. Shakespeare é um grande poeta, mas ele não é “teatro”. Suas peças são teatro quando são montadas. Há muitas montagens de Shakespeare que são muito ruins. “Mas é Shakespeare... !”, todo mundo diz. Sim, é Shakespeare, mas não foi feito adequadamente. Shakespeare só existe mesmo enquanto teatro. As pessoas acham que dramaturgo é escritor. Como disse, é por causa disso essa coisa isolada. Tem muito da mítica burguesa, da mítica da tradição romântica, do que é isolado.

Lucienne – Existe o problema da propriedade, da autoria, também.

Abreu – Esta questão da propriedade é própria do criador burguês. “A inspiração me foi dada. Eu sou o original, eu sou a origem das coisas”. E então tudo se desfaz: a história da linguagem, do social, da cultura. Tudo vai embora porque ele se apropriou da verdade, como é básico da sociedade burguesa. O dramaturgo se apropriou destes valores todos: “eu sou, me apropriei de tudo”. Elementos que são comuns, que são do coletivo, ele se apropria e fala: “é meu!”. Como faz qualquer pessoa, pra se apropriar da mais valia da cultura.

Lucienne – Há também um aprendizado que não vem de professores “vivos”. Quais autores estimularam seus estudos, sua dramaturgia, suas aulas? Quais são suas influências?

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ação

teatro da Vertigem, O Livro de Jó (1995)

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Abreu – São aqueles que estão lá na base de minha formação. Depois vieram a mitologia, o Joseph Campbell, o Vladimir Propp, o Mircea Eliade... Estes tiveram uma função posterior pra mim, muito importante na criação. Mas para falar de dramaturgia, Aristóteles e Bentley são muito interessantes. É complicado citar outros autores para falar especificamente da criação, sobre processos de criação. Porque não existem outros, sinto muito! Não existem pessoas que trabalharam tanto como estes dois. Claro, existe a Renata Pallottini, que teve uma investigação bastante significativa sobre estes aspectos, mas em geral não há outros especificamente sobre a criação, sobre o processo de criação. O que existe é muita informação de como determinado autor trabalha, como determinado autor faz, o que ele faz, o que ele fez, como ele fez, que elementos... Percebe? Sobre o processo de criação você tem pouquíssima coisa. Quando eu li Aristóteles pela primeira vez, eu percebi elementos formais importantíssimos, muitos aspectos, por exemplo, de criação. Uma personagem se cria de caráter e de pensamento: talvez isso fosse de fato importante, pensei. Eu passo a vida inteira referenciado nestes dois elementos; é importante mesmo. Já Bentley vai pegar todos esses elementos aristotélicos, reelaborar o raciocínio de uma forma contemporânea, com uma série de citações, de peças, de exemplos, que os ligam contemporaneamente. É um excelente trabalho. Um trabalho como o dele, com aquela qualidade: que outra pessoa foi capaz de fazer? Podemos

começar a discussão pelos gêneros: melodrama, drama, drama burguês, tragédia... Se aprende muito com isso.

Lucienne – Eu me lembro quando estávamos juntos no processo de adaptação do Crime e Castigo, na Escola Livre de Santo André, e você estimulou os alunos-dramaturgos da seguinte forma: “Vamos estudar tudo, os heróis, a estrutura poética do Aristóteles, todos os gêneros. Vamos estudar tudo e então podemos, depois, reconhecer as coisas estudadas no trabalho feito.”

Abreu – É assim mesmo, não tem jeito. O conhecimento só se torna criação quando ele passa por você e ele surge de maneira criativa. Não adianta você ler A Poética e querer sair por aí escrevendo tragédias. Isso vai demorar muito tempo, até ela entrar e voltar como material de criação. Esse processo nem sei quanto tempo demora. A gente estuda para isso, mas na hora da criação isso tudo não conta. Conta a maneira como você consegue organizar estas coisas. (Isso também não é o processo dedutivo; é o processo indutivo, o do teu corpo.) Como é que teu corpo vai responder? Não adianta você tentar deduzir a organização dessas histórias todas.

Lucienne – Os estudos não oferecem um modelo, portanto.

Fraternal, Sacra Folia (1996)

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Abreu – Não tem modelo. O material é muito é muito maior. Se nós próprios nos entendermos como material também será interessante. E então eu posso perguntar: que tipo de peça está se gerando aqui dentro de mim? Que tipo de peça eu estou pronto para gestar agora? Não adianta falar: “eu estou querendo escrever uma peça sobre isso”. Será necessário me ouvir, para saber que tipo de material está se gerando, dentro de mim. Será necessário ouvir o material, e este material é sensível. Isso é claríssimo! Dou sempre esse exemplo: se eu escrever um enredo, um projeto, guardá-lo numa gaveta e retirar este mesmo enredo depois de 10 anos, e daí começar a escrever uma peça, o que vai acontecer? Com certeza vai ser uma peça completamente diferente daquela que eu teria feito ali na hora, 10 anos antes. Concorda? O que mudou ali? Mudou o material, mudou a gente, mudou o que vai elaborar aquilo. Necessariamente sempre será preciso ouvir o material, aquilo que chega de fora e o material que está dentro do sujeito. Às vezes a gente fica brigando, querendo escrever uma peça “assim”, e a cena não sai. A cena não sai, a cena não sai, a cena não sai, a cena não sai... O que é isso? Em geral é porque, no processo de criação, a gente não está respeitando o material, que está dizendo que a cena é outra cena. Não é a cena que a sua cabeça quer, é outra coisa.

Lucienne – E a respeito dos heróis? E quanto a querer buscar uma universalidade possível na dramaturgia?

Abreu – Acho que é preciso buscar a universalidade e o subjetivo. O princípio das coisas é subjetivo também, como já falamos. Não tem como. O criador é aquele que vai criar. É a visão do mundo, mas está sempre em conflito, está sempre em crise. Se você pegar aquilo que é subjetivo e cair numa ideia de fazer uma escrita tão somente intuitiva, ficaria muito próximo de chegar a uma escrita espontânea ou a uma escrita espírita. Precisa haver comunicação, a relação com a sua cultura, com as outras pessoas. E também há essa necessidade de chegar na universalidade. Este é um mito muito contemporâneo. A teoria da relatividade já explicou muita coisa, buscou a teoria do unificado, que pudesse unificar todas as teorias... isso é próprio do homem. Nessa ideia de universalidade eu vou ter que buscar aquilo que nos é comum. Não só aquilo que eu sinto, embora o que eu sinto seja verdade. Eu vou ter que buscar aquilo que eu tenho em comum com o outro. Aí sim será um material ótimo pra se trabalhar, porque já estão resolvidas algumas questões básicas, como a da comunicação.

Lucienne – Já está garantida a comunicação.Abreu – Já está garantida a comunicação, já está

garantido o primeiro contato. E se eu sei que Aristóteles,

por exemplo, escreve que o enredo é elemento fundamental, estruturador da dramaturgia clássica, e se eu também sei que o personagem tem uma força muito poderosa - tanto que Aristóteles gasta muito tempo pra falar de personagem - e o teatro Nô organiza suas peças a partir do personagem, é imediato passarmos daí para questões de mito e arquétipo. Trabalhar com as questões das estruturas que se repetem, que são próprias do mito, e trabalhar com estas figuras arquetípicas, com estas configurações que são reconhecíveis por qualquer ser humano: o caminho da universalidade, de uma certa maneira, já está indicado. Vou trabalhar o enredo, a personagem, mas vou fazer isso a partir da estrutura mítica, dos arquétipos. Vai resolver? Sim, em parte. Porque tanto os mitos quanto os arquétipos são infinitos. As estruturas são infinitas, e as possibilidades daqueles personagens também são infinitas. Mas de qualquer maneira eu estou “no chão”, num lugar onde eu posso pisar. Eu tenho uma estrutura na qual as pessoas se reconhecem. Eu tenho onde trabalhar, onde começar a minha organização do enredo, de uma forma comunicável.

Mas isso pode ser uma prisão, se o dramaturgo acreditar muito nisso. Temos que duvidar sempre. Esta é uma estruturação básica, as pessoas gostam desta estruturação, se reconhecem nisso, mas... ela é a única? Tem estes arquétipos aqui, mas são só esses? Não pode haver a inclusão de um arquétipo perdido na poeira da história? Então, ampliamos o campo de pesquisa. O que estava fechado em Aristóteles de repente começa a se ampliar muito mais, no campo da pesquisa da dramaturgia. Isso pra mim foi fundamental. A teoria arquetípica é fundamental como material para o meu trabalho. E então eu começo a passar essa teoria para os alunos mesmo, para que eles possam reconhecer que não existem diferenças entre escrever uma peça em dramaturgia e a vida que eles levam, os acontecimentos que eles veem e aqueles que encontram. Isso pode ser expressado! Isso é dramaturgia! Esse olhar um pouco mais apurado para a síntese do ser humano é que faz a dramaturgia.

No começo da minha carreira eu dava aulas; depois que saí do CPT eu fui dar cursos de dramaturgia na Oficina Cultural Três Rios (hoje, oficinas culturais oswald de Andrade), na época áurea da Três Rios. Lá eu encontrava gente muito boa, que havia saído da USP, etc. Eram pessoas muito bem preparadas para aquilo. Muito tranquilamente, eu começava as aulas com os pré-socráticos, depois eu entrava com Aristóteles, entrava em Hegel, facilmente. Então me convidaram para dar um curso de dramaturgia numa oficina cultural que abriu em São Miguel Paulista. E lá fui eu, todo munido de Aristóteles e os filósofos todos. Chegando lá eu vejo: meus alunos eram uma molecada da periferia, que não sabia nada... Nada! Meu Deus do céu, como é que eu vou

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começar a falar da Poética...? Eles não sabiam nem o que era dramaturgia. Devia ter umas vinte pessoas. “O que eu vou fazer com este grupo?!”, pensei. Bom, tira Aristóteles, tira Hegel, tira todo mundo. Vamos falar de mitologia. Comecei a falar de mitologia para aquela molecada. E eles se “acenderam”, porque se reconheceram naquilo, tiveram o reconhecimento de imediato. Reconheceram suas próprias questões através da mitologia. Isso é um bom caminho: falar de coisas comuns.

Lucienne – De coisas que já se pode saber, sem saber que se sabe.

Abreu – Sem saber que se sabe. Reconhecem-se no próprio mito. Isso aconteceu ali, e o curso foi ótimo, neste sentido. Isso é uma outra via do processo indutivo. Se fosse processo dedutivo seria assim: “Vou ensinar A Poética de Aristóteles, pois é assim que se ensina dramaturgia”. Mas o meu material estava ali: não tinham ouvido falar de Aristóteles, não conheciam e nem queriam conhecer Aristóteles, não estavam preparados de fato para aquilo. Essas pessoas me induziram, e meu trabalho mudou este conceito. Isso foi uma coisa legal também, porque a estética se tornou uma coisa útil. Socialmente, quando você vai falar pro moleque de mitologia, são coisas que ele está vivendo ali, no dia a dia; são questões fundamentais. Tudo se faz a partir das funções que cada uma dessas pessoas ocupa: política, economia..., percebe? É uma análise bastante interessante. Por sobre essa percepção você pode colocar o que você chama de ideológico, filosófico, etc.

Lucienne – Quando nós falamos de mitologia, de arquétipos, de universalidade, nem todo mundo concorda. Existem posições que exigem que vejamos a cultura sempre como fruto de um sistema político de dominação, de jogo de poder, e que todo o sistema cultural vai se afirmando, se perpetuando com valores que, na verdade, deveriam ser mudados.

Abreu – É verdade porque, como a nossa sociedade se desenvolveu, todas essas questões religiosas e ideológicas, do século XVIII pra cá, foram bastante reduzidas, completamente reduzidas, em função de “vencer”. A única verdade é vencer. Neste sentido a mitologia começou a ser tratada como algo muito próximo do misticismo religioso. O que não é verdade, não tem muito sentido. Quando falo de mitologia, as pessoas torcem o nariz porque acham que eu estou falando de elementos políticos e sociais conservadores. Muito pelo contrário! Quando a gente vê a ideia de um personagem, de um herói, é exatamente o contrário. É um sujeito que vem para trazer a revolução. É o herói, o revolucionário. Para que ele exista, vai ter que

derrubar o totem, quebrar a tradição. É ao contrário do que se imagina: o mito marcado como material e representação do conservador...! Não sei por que isso. A única verdade revolucionária mesmo é a ciência. Mas isso tem mudado bastante.

O problema não é os trágicos. O problema é nosso, depende da maneira como a gente vai olhar aquele material.

Lucienne – Em relação à função de professor, essa ideia de trabalhar a partir do que o outro reconhece deve ser muito potente.

Abreu – Com certeza. Partir do material que eles, alunos, trazem, é muito potente. Isso é base para o meu trabalho. Eles trazem o material, e a partir do material é que eu vou analisar o ponto de vista. Se aquele material abre uma discussão do ponto de vista aristotélico, ótimo. Se não, não. Se é dramaturgia de unidades independentes, de uma forma muito mais épica, então será isso. Dois protagonistas? Vamos ver o que a gente ganha com isso?! Sim, vamos ver o que a gente ganha e o que a gente perde. Os alunos trazem muitos materiais que são inacreditáveis, também. Eu falo: “Ok. Você quer fazer isso mesmo? Você vai ter problemas, mas vamos lá.” Eu, como orientador, não vou facilitar o trabalho, muito pelo contrário; não tenho que facilitar nada. Senão o projeto será meu. O meu projeto eu já faço fora da sala de aula, o meu projeto pessoal.

Lucienne – E a respeito da estrutura? Você insiste bastante em questões de estruturação, nas aulas, a respeito do enredo, do Canovaccio...

Abreu – Eu acho que não dá pra deixar aberto, não. A não ser que o aluno insista, e eu sinta nele uma firmeza, porque está procurando outra estrutura e rejeitando essa. Isso é diferente de uma pessoa que não sabe e não quer. Aí é diferente.

Lucienne – Entre outras coisas, trabalhar com uma estrutura pode permitir que o dramaturgo não se perca e não perca o desenvolvimento da imagem inicial.

Abreu – Por isso que eu acho que é interessante a estrutura. Você tem um chão, e aí pode voar... Aqui entra novamente o raciocínio dedutivo. Ou seja, primeiro você tem uma estruturação, algo que é do teu raciocínio pra chegar “àquele lugar”. Muito cuidado: a estrutura já está lá; mas agora você vai ter que ver o material. Aí entra o processo indutivo: você tem o material, você o está ouvindo e ele não está cabendo nesta estruturação. Então você vai ter que modificar um pouco a estrutura. Eu trabalho muito com a estrutura mítica porque é uma estrutura muito permeável. Você pode colocar Deus e o Olimpo, dentro daquilo. A

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estruturação básica é só para que se saiba onde está. Temos que ter “jogo de cintura”, ter conhecimento, saber aonde se quer chegar, conhecer o material, o caminho...

Lucienne – Você pode ter uma ideia maluca, mas o chão da estrutura está ali pra dialogar com a escritura.

Abreu – Por exemplo: você diz “eu vou por aqui, porque eu acho que vai dar certo.” Pode dar errado, mas tem muita chance de dar certo. Ouvir a intuição é importante também.

Lucienne – Agora uma pergunta a respeito do personagem. Podemos dizer que ele é feito essencialmente de ação? Vejo que, ultimamente, a palavra toma cada vez mais conta de qualquer tipo de coisa que possa ser conhecida como ação. O que você poderia dizer sobre isso?

Abreu – Isso tem bastante da ideia de que teatro é diálogo. Não é verdade. Isso vem do século XIX e do século XX, e chegou até aqui. As pessoas falam mais e agem menos. As pessoas articulam muito mais o discurso e menos a ação. Isso não é um problema só do teatro, é um problema da vida também. Parece que estamos numa sociedade de falastrões. A gente fala demais. Eu tenho a impressão disso. A gente conseguiu chegar no século XXI com a articulação do discurso muito elaborada, e com baixo nível de articulação de ação. Tem uma dissintonia que está próxima do ser humano. Mas isso tem uma razão de ser: a fala talvez seja a coisa que a gente aprende desde pequeno. E de novo se confunde teatro com fala. Teatro é uma síntese comum e total das coisas. Este é um problema muito apontado no teatro, do personagem expressar muito mais um discurso (ou uma retórica discursiva, o que é pior ainda) do que uma ação. Isso é uma dificuldade fundamental, porque o teatro é uma arte extremamente sintética. Num curto espaço de tempo a gente tem toda uma trajetória humana, específica, clara, uma síntese bastante grande. No entanto, o teatro se expressa, desde seu nascimento, através das palavras. É uma arte oral. E aí vai gerar toda esta confusão. Se a gente aprende, por exemplo, que no melodrama o diálogo tem mais importância que os elementos narrativos e poéticos, a gente vai percebendo que o teatro começa a se aproximar perigosamente da fala. É só juntar isso com a televisão, que é uma arte naturalista, do diálogo e das falas por excelência: não existe nada mais “anti-teatro” do que isso. São personagens desprovidos de ação. Mas personagem é o que ele faz, não o que ele fala. Pode ser o discurso, mas desde que por trás deste discurso a gente perceba exatamente o que ele faz. Essa é uma questão difícil de ser resolvida, mas se pode “limpar a área”. Diálogo não é conversa, isso já

elimina muita coisa. Não é este diálogo fático do “bom dia”, “boa tarde”, “tudo bem?”. Não, este diálogo não. Seria muito mais expressão. O personagem fala – e isso que eu acho legal no teatro! - ele fala aquilo que não pode mais conter. Há uma ebulição tão grande nele que o obriga a falar. Mesmo quando, na verdade, ele queria ser mudo. Se o personagem fala demais, se ele tem uma compulsão a falar, para que ele seja um personagem ativo o público logo vai identificar que a quantidade das coisas que ele fala não tem importância nenhuma. O que é importante é que está sendo obrigado a falar. Isso, sim, pode ser interessante. Gosto de construir o personagem sempre a partir da ação, nunca a partir do diálogo. O diálogo tem uma potência bastante grande, tem força. Mas é necessário primeiro saber trabalhar isso. Depois fazer com que o diálogo não seja desconectado do personagem; o personagem não pode ser desconectado da ação. Essa é uma questão fundamental.

Lucienne – Desde janeiro de 2010 existe o DCC (Dramaturgia Concisa Contemporânea), um evento mensal do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, em que os dramaturgos escrevem na hora ou trazem escritas cenas teatrais prontas, para serem lidas. Muitas dessas cenas são estruturadas com diálogos. Como tenho acompanhado estes eventos, percebo que muitos dos textos querem representar ideia de “vazio”, criam personagens que ficam conversando sobre algo indefinido. E o público parece gostar muito disso.

Abreu – Por que é que as pessoas gostam dessas coisas? Eu sempre me pergunto isso. Aristóteles falou muito sabiamente da mimese. A pessoa tem um prazer enorme na mimese. Se você subir a um palco e andar como uma galinha, e o público reconhecer uma galinha, ele vai adorar este tipo de coisa, porque é o milagre da mimese! Isso não quer dizer que você fez teatro. Isso não quer dizer que você fez uma coisa muito importante, que foi uma experiência...! Apenas foi o prazer da mimese. Como um malabarista, que você fica olhando e aplaude no final. Percebe? Mas isso é teatro? Faz parte do teatro, é um elemento teatral, um jogo. Isso pode até quebrar a sisudez do teatro, mas eu sei que é um elemento. São jogos, são brincadeiras que fazem parte do cabedal dos materiais cênicos, mas não é teatro. É necessário fazer o material todo ser potente, como experiência; aí chegamos no teatro, a uma linguagem artística. Material cênico tem de monte.

Lucienne – Muitas cenas espelham o jeito dos diálogos de Esperando Godot.

Abreu – Mas é! Aí é que está a diferença! Mas as pessoas descolam o material. Pode-se escolher aquelas

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mesmas coisas, os mesmos climas, e é uma mimese de um dos elementos que o Beckett usa. Pronto! Mas isso não será uma peça. As pessoas gostam, reconhecem o Samuel Beckett. Trabalhou-se muito, no teatro contemporâneo, esta dificuldade de articulação do discurso. Se você colocar isso em cena, as pessoas reconhecem: “que genial!”. Que genial é o Beckett, que inventou isso, que nos fez olhar pra isso. O público reconhece na vida, na própria casa, esta dificuldade de se articular na fala. Este é o prazer da mimese, que o Beckett vê na família. Mas o drama está na família de quem está vendo, não lá na cena.

Lucienne – Você diz que é necessário, para quem faz teatro, entender o que o público quer, o que precisa, como ele pulsa, e ainda facilitar o encontro com este público. Como podemos saber o que quer o público?

Abreu – Sim, passa por aí, por conhecer a necessidade do público. Eu também sou público. Eu preciso me olhar, olhar pro meu material, saber para onde é que eu estou indo. Ali, puramente, sabe? Eu gosto muito de música erudita, por exemplo. Mas eu sei que eu não posso fazer um espetáculo só de música erudita. Então, este “gostar” não serve. Mas alguns elementos servem, aqueles que me tocam com a sensibilidade. Não aqueles que tocam apenas pelo meu conhecimento de música erudita, mas aquilo que me toca mesmo, que me deixa de boca aberta. Como saber o que toca o público? Este público tem todo um pé na cultura, tanto na mais popular como na mais erudita. É isso que tenho que investigar. O que o público quer a gente nunca vai saber de fato, mesmo. Mas a gente tem bons indicativos. Eu sei, por exemplo, que uma melodia emociona, nos toca. Por mais que seja música dodecafônica contemporânea, a melodia toca. Eu sei que uma bela melodia está tanto numa música sertaneja como em Bach. Ezra Pound diz que a música apodrece quando se afasta da dança, do ritmo. Isso é verdade, apodrece mesmo. É uma equação que a gente vai fazendo: se eu sei que a melodia é um elemento, e a pulsação é outro, é aí que eu vou trabalhando. Sei que dá pra tentar atingir uma universalidade. Eu sei, por exemplo, que poesia não é um monte de palavras difíceis. São imagens potentes, sonoridades interessantes... então eu trabalho nisso. Mesmo em casa, fazendo um trabalho sem pesquisa (sem pesquisa entre aspas, não é?, porque eu estou sempre lendo, estudando, sempre olhando com este olhar para as pessoas e para as coisas. Não pesquiso tanto como eu gostaria de pesquisar, mas tenho este trabalho), eu sei que a qualidade faz diferença, no sentido de tentar dialogar com o público. Percebe? Não é o contrário, não é falta de qualidade. Se eu usar o contrário disso, o público “vai entender”...; se entende muito mais facilmente com uma linguagem tosca. Agora:

uma linguagem elaborada vai segurá-los. Vai propor, talvez, uma experiência em que eles embarquem, uma experiência que a gente precisa partilhar. A elaboração é fundamental. Se a gente pega mesmo a cultura popular, qualquer artefato visual, como por exemplo as vestimentas do Bumba... aquilo é de uma elaboração tão grande...! Dali vão surgir coisas elaboradas; não é qualquer coisa não. Este é o critério pra mim. Muito mais do que os temas, importa é como eu posso trabalhar com qualidade com eles.

Lucienne – Para você, a questão da narrativa e do interesse pelo cinema tem alguma relação com estas necessidades?

Abreu – Com relação ao público esta coisa do cinema tem muito a ver. De dois lados: primeiro porque é uma arte épica, o que gera um prazer muito grande. Eu sempre quis trabalhar com a arte épica; já investiguei a questão da dança muito tempo, quando estava interessado na arte da dança. O cinema tem isso, que me interessa: é a extensão de comunicação que eu posso ter. O cinema pode atingir mais pessoas, de uma forma bastante eficiente. Eu comecei a me questionar no processo com o teatro. Passar por um processo de pesquisa contemplado pelo Programa de Fomento, passar um ano inteirinho pesquisando uma forma, trabalhando esta forma, fazendo uma peça... pra depois a peça ficar dois meses em cartaz de quarta, quinta e sexta, com 60 pessoas em cada sessão, e depois parar com esta peça. É um investimento muito grande pra um número de pessoas muito pequeno. Me esmerei, tentei fazer a coisa melhor possível, com qualidade, e as pessoas não tiveram acesso. Talvez neste momento tenha alguma coisa de errado com o sistema de produção da qual todo mundo vive. O público está alijado. Espere aí: minha questão é com o público! Eu quero me comunicar, não quero ganhar o fomento! Não quero o salário do mês que me pague o próximo texto que eu vou escrever. Meu objetivo não é esse. Meu objetivo é entrar em contato. Dialogar, conversar. Foi aí que eu fui para o cinema. O cinema também não está muito longe disso, eu sei, o sistema de produção do cinema não está muito diferente do teatro. Mas o audiovisual começa a me interessar, e aí passo à TV. E acontece a ótima parceria com o Luiz Fernando Carvalho, que é um grande artista. Ele faz esta coisa de muita qualidade, na TV, para o público. Bastante significativa.

Lucienne – Até muitas pessoas que não gostam de TV assistiram à minissérie.

Abreu – Tem isso também. Na verdade eu fiquei com vontade de investigar muito mais nessa área, de um lado e de outro. Da tecnologia ao extremo, do audiovisual, digital, da TV... E, no extremo oposto, o narrador, esta coisa mais

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artesanal possível. São estes dois caminhos que me interessam agora, e aí tenho centrado meu trabalho: no audiovisual e na questão do narrador. O narrador me interessa muito, porque a narrativa pode ser só uma, pequena, mas os narradores podem ser 200 mil. E não existe aparato nenhum, é muito simplificado. É efetiva e se multiplica. Me interessa restaurar o narrador e multiplicar o narrador por causa disso. Esses canais de comunicação são muito importantes. O teatro foi gradativamente perdendo os seus canais de comunicação com o público. Por muitas razões; foi perdendo. Corre o risco de, se continuar assim, acabar como a ópera, que vai ter uma montagem a cada ano, duas apresentações...

Lucienne – Pra assinantes da temporada... Abreu – Isso se você conseguir, porque eu não tenho

condições de assistir a uma ópera. Eu não vou disputar a tapa o ingresso. Eu adoro ópera, mas eu coloco o CD e pronto. É que eu não adoro ópera; eu adoro é a música da ópera. Porque não tenho acesso. Se eu pudesse eu ficaria no teatro, não ia ficar caçando estas coisas não, porque dá muito trabalho. Chegar aos 50 e tantos anos e falar: “vou começar a aprender cinema”. Dá um trabalhão! Tem que rever tudo, estudar pra caramba, ler muito, é outra embocadura, outro tudo. Mas não tem jeito, porque o teatro foi se fechando, em si. Não é nem por uma classe, é por um pequeno estamento ali. Se fosse por uma classe inteira, até uma classe alta, ou classe média...! Mas é para um público

muito restrito. É muito esforço, e não dá pra repetir o trabalho anterior. Você tem que fazer um trabalho que pelo menos lhe cause algum espanto. E pra ficar dois meses em cartaz... para um público de 500 pessoas, 2000 pessoas, que seja. Dessas 2000 pessoas, quem aproveitou alguma coisa de fato? Não é este tipo de arte que eu quero fazer.

Agora: tem a questão do mercado, a maldita questão do mercado. Tudo bem, a peça é produto. É lógico que é produto, tudo o que a gente faz é produção. Os valores espirituais, metafísicos, mitológicos, religiosos... estão completamente fora porque tudo se reduziu a um produto, a um valor econômico. Até a política se reduziu a um valor econômico. Até a religião se reduziu a um valor econômico! Está tudo reduzido a este valor pequeno, e isso é muito complicado. Esta “objetificação” de todas as coisas, do teatro também... é igual ao cego que... Nas outras áreas eu sinto menos isso do que no teatro. O cinema está batalhando; não é nem pra colocar no mercado, porque sabe que não vai ter mercado, mas está querendo fazer, querendo fazer, isso vai explodir, vai explodir. Não cabe! Neste mercadinho onde estão querendo colocar o ser humano, sua produção toda, suas ideias todas... não está cabendo. O mercadinho é muito pequeno. O mercadinho mundial é um mercadinho muito pequeno. Não cabe a produção significativa do ser humano. Não cabe nem produção material mesmo, os carros já estão... Vai parar tudo mesmo, que nem em 29. Não tem mais... chega de produzir.

Grupo Galpão, Till, A Saga de Um Herói Torto (2009)

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s é

dedi

cado

um

cap

ítulo

com

as

resp

ectiv

as

traje

tória

s co

nden

sada

s, c

ulm

inan

do o

esm

iuça

r de

proc

esso

s cr

iativ

os d

e um

a ou

mai

s ob

ras.

As

voze

s de

ato

res,

dire

tore

s ou

dra

mat

urgo

s sã

o co

stur

adas

à

perc

epçã

o da

pes

quis

ador

a, e

spec

tado

ra p

rivile

giad

a da

mai

oria

das

mon

tage

ns. S

ão a

nalis

adas

a T

ribo

de

Atua

dore

s Ó

i Nói

s Aq

ui T

rave

is, d

e Po

rto A

legr

e, c

om o

es

petá

culo

de

rua

A sa

ga d

e C

anud

os (2

000)

; o L

ume

– N

úcle

o In

terd

isci

plin

ar d

e Pe

squi

sas

Teat

rais

da

Uni

cam

p,

com

Um

dia

... (2

000)

; o T

eatro

da

Verti

gem

, com

sua

tri

logi

a bí

blic

a co

mpo

sta

de O

par

aíso

per

dido

(199

2), O

liv

ro d

e Jô

(199

5) e

Apo

calip

se 1

,11

(200

0); e

por

fim

a

Com

panh

ia d

o La

tão,

com

Aut

o do

s bo

ns tr

atos

(200

2).

O c

otej

amen

to é

per

spic

az n

a re

spos

ta à

prin

cipa

l qu

estã

o qu

e o

mov

e: “

Qua

is s

ão a

s m

udan

ças

de

estru

tura

ção

inte

rna

que

ocor

rem

no

perc

urso

da

cria

ção

cole

tiva

até

o co

labo

rativ

o?”.

O e

stud

o de

Fis

cher

mos

tra

Entr

anha

s do

pro

cess

o co

labo

rativ

o

Jorn

alis

ta e

pe

squi

sado

r de

te

atro

, edi

tor

do s

ite

Teat

rojo

rnal

(ww

w.

teat

rojo

rnal

.com

.br)

que

seria

um

equ

ívoc

o es

tanc

ar e

sses

pro

cedi

men

tos

na li

nha

do te

mpo

, um

a ve

z qu

e el

es s

ão tr

ibut

ário

s um

do

out

ro. E

la p

refe

re, c

orre

tam

ente

, apr

eend

ê-lo

s em

m

ovim

ento

. Com

o na

s pa

ssag

ens

em q

ue a

Trib

o de

At

uado

res

Ói N

óis

Aqui

Tra

veiz

tang

enci

a os

trab

alho

s do

Te

atro

Ofic

ina

ou d

o Te

atro

da

Verti

gem

, int

erse

cçõe

s no

s ím

peto

s lib

ertá

rios

ou n

a re

ssig

nific

ação

dos

esp

aços

o co

nven

cion

al o

u ab

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, con

verti

dos

em te

rritó

rios

cêni

cos

de v

ivên

cia.

Ou

aind

a o

esfo

rço

de c

onsc

iênc

ia

críti

ca d

o Te

atro

de

Are

na e

coan

do n

as p

ropo

siçõ

es n

ão

men

os b

rech

tiana

s da

Com

panh

ia d

o La

tão.

Um

apa

rte

quan

to a

o Lu

me.

Ent

re o

s qu

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exa

min

ados

, o n

úcle

o

Oi n

óis

aqui

tra

veiz

, A S

aga

de C

anud

os (2

000)

O li

vro:

Pro

cess

o co

labo

rati

vo e

exp

eriê

ncia

s de

com

panh

ias

teat

rais

bra

sile

iras.

Ste

la F

isch

er. S

ão P

aulo

: Huc

itec

, 201

0.

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60 • Camarim • nº 46

tem

em

sua

nat

urez

a um

forte

vín

culo

inst

ituci

onal

co

m a

Uni

vers

idad

e Es

tadu

al d

e C

ampi

nas.

Ser

ia

perti

nent

e en

fatiz

ar e

ssa

cond

ição

dec

isiv

a pa

ra a

sua

m

anut

ençã

o, o

que

não

enc

ontra

mos

. M

as é

no

plan

o da

s fu

nçõe

s-ch

ave

da a

vent

ura

teat

ral q

ue id

entifi

cam

os a

mai

or c

ontri

buiç

ão d

o liv

ro.

Ao a

prof

unda

r os

parâ

met

ros

do p

roce

sso

cola

bora

tivo

diss

emin

ado

no p

anor

ama

cont

empo

râne

o do

paí

s,

Fisc

her s

opes

a as

influ

ênci

as d

o di

reto

r, do

ato

r e d

o dr

amat

urgo

no

olho

da

cria

ção.

A d

inâm

ica

inte

rna

do

grup

o ex

põe

acor

dos

por m

eio

dos

quai

s as

par

ceria

s se

dão

con

form

e o

ideá

rio c

olet

ivo

leva

do à

s úl

timas

co

nseq

uênc

ias;

a p

redo

min

ânci

a hi

erár

quic

a in

evitá

vel

de u

m d

os in

tegr

ante

s; o

pro

ativ

ism

o qu

e va

loriz

a as

aut

onom

ias

de c

ada

funç

ão s

em b

orra

r aut

oria

s.

Enfim

, a fe

cund

a e

proe

min

ente

tens

ão d

esde

as

prim

eira

s pr

ospe

cçõe

s va

i enc

ontra

r no

cora

ção

de

cada

núc

leo

o rit

mo

para

pul

sar e

diz

er a

que

vei

o.

Tant

o o

proc

edim

ento

col

etiv

o co

mo

o co

labo

rativ

o nã

o po

ssue

m m

etod

olog

ias

rígid

as; n

ão é

pos

síve

l ap

reen

dê-lo

s co

mo

rece

ituár

io. O

que

num

se

nom

eia

impr

ovis

o no

utro

pod

e se

r wor

ksho

p. O

livr

o in

vest

iga

essa

s ap

roxi

maç

ões

e di

sson

ânci

as p

ara

além

do

esta

tuto

sem

ântic

o. T

rata

-se,

ant

es, d

e um

a ap

uraç

ão

deriv

ada

do c

hão

da s

ala

de e

nsai

os, d

as e

ntra

nhas

do

uni

vers

o la

bora

toria

l dos

arti

stas

env

olvi

dos,

m

anej

ando

arg

umen

tos

conc

eitu

ais

e pr

átic

os q

uant

o às

esc

ritas

cên

icas

e d

ram

átic

as.

O v

olum

e co

rrela

cion

a ou

tros

agru

pam

ento

s lo

ngev

os a

os q

ue e

lege

par

a di

sser

tar,

com

o o

Gal

pão

e o

Tapa

. Com

est

e a

auto

ra c

omet

e um

des

lize

atrib

uído

por

ela

aos

“ba

stid

ores

”. É

redu

cion

ism

o cl

assi

ficar

o T

apa

com

o “t

eatrã

o”, “

com

pou

ca

aber

tura

e v

isib

ilidad

e pa

ra e

xper

imen

talis

mos

”. A

sent

ença

não

con

fere

com

o h

istó

rico

dess

e gr

upo

de c

renç

a in

abal

ável

no

repe

rtório

, atit

ude

rara

em

no

ssos

pal

cos.

Vis

itar B

erna

rd S

haw

, Ant

on T

chék

hov,

O

duva

ldo

Vian

na F

ilho,

Plín

io M

arco

s ou

Nel

son

Rod

rigue

s nã

o qu

er d

izer

, nec

essa

riam

ente

, ign

orar

o

text

o es

peta

cula

r. As

mon

tage

ns a

ssin

adas

em

sua

m

aior

ia p

or E

duar

do T

olen

tino

de A

raúj

o nã

o of

usca

m

tess

itura

s do

inté

rpre

te, d

o en

cena

dor e

do

auto

r; ao

co

ntrá

rio, e

sses

ele

men

tos

pode

m s

e (d

es)e

quilib

rar

em te

atra

lidad

es m

ais

sofis

ticad

as d

o qu

e se

imag

ina.

É se

nsat

o qu

e Fi

sche

r rec

lam

e o

créd

ito

conj

unto

dos

ato

res

e de

mai

s in

tegr

ante

s da

equ

ipe

quan

do in

tera

gem

com

o d

ram

atur

go v

isan

do

o te

xto

final

nos

pro

cess

os c

olab

orat

ivos

. Sem

a

pech

a do

dem

ocra

tism

o vi

gent

e na

s cr

iaçõ

es

cole

tivas

dos

ano

s de

197

0, a

dem

anda

aqu

i é p

or

clar

eza,

dad

a a

veem

ente

retro

alim

enta

ção

entre

as

par

tes

atra

vess

adas

pel

o co

rpo

e pe

la p

alav

ra.

A pe

squi

sado

ra n

ão d

isfa

rça

o en

tusi

asm

o co

m

a ap

ropr

iaçã

o do

pro

cedi

men

to p

elos

arti

stas

de

sua

gera

ção

ou p

or a

quel

es q

ue v

iera

m d

epoi

s,

prov

ocan

do re

elab

oraç

ões

segu

ndo

espe

cific

idad

es

form

ais

e te

mát

icas

. Não

tem

os d

úvid

a de

que

o

teat

ro d

e gr

upo

resp

onde

por

alg

uns

dos

mel

hore

s m

omen

tos

da c

ena

bras

ileira

nas

últi

mas

dua

s dé

cada

s. N

esse

“m

ovim

ento

de

reto

mad

a”, c

omo

defin

e o

pref

acia

dor A

ntôn

io A

raúj

o, é

not

ória

a

ampl

iaçã

o do

olh

ar d

o pú

blic

o pa

ra e

ssa

arte

; a

desc

entra

lizaç

ão g

eogr

áfica

do

teat

ro d

e pe

squi

sa

no p

aís,

tran

scen

dend

o o

cham

ado

eixo

Rio

-São

Pa

ulo.

A c

ultu

ra d

e gr

upo

tem

con

segu

ido

reiv

indi

car

prog

ram

as g

over

nam

enta

is e

atra

ir pr

ogra

mad

ores

de

fest

ivai

s na

cion

ais

e in

tern

acio

nais

. Até

a in

icia

tiva

priv

ada,

trad

icio

nalm

ente

atre

lada

a e

spet

ácul

os

artis

ticam

ente

med

iano

s e

mer

amen

te p

ublic

itário

s,

vem

se

apro

xim

ando

lent

amen

te. A

filo

sofia

co

labo

rativ

a pe

rmei

a cu

rsos

técn

icos

, gra

duaç

ões

e pó

s-gr

adua

ções

vol

tada

s às

arte

s cê

nica

s. H

oje,

id

entifi

cam

os u

m g

rau

de m

atur

idad

e na

açã

o ar

tístic

a co

letiv

izad

a, a

mes

ma

que

tam

bém

nos

per

mite

di

stin

guir

as c

ontra

diçõ

es d

o m

odis

mo

redu

cion

ista

br

andi

do e

m n

ome

do p

roce

sso

cola

bora

tivo,

o

“des

gast

e” d

iagn

ostic

ado

por F

isch

er. N

o bo

jo

dess

e pr

oced

imen

to p

aira

just

amen

te a

étic

a da

qu

al q

ualq

uer c

idad

ão n

ão d

ever

ia p

resc

indi

r. E

a so

cied

ade

anda

mai

s de

sejo

sa d

e tra

nspa

rênc

ia n

as

suas

face

s co

letiv

a e

indi

vidu

al, s

em q

ue u

ma

anul

e a

outra

.

Lum

e, U

m d

ia...

(200

0)

tina Coêlho

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VII mostra latino

americana de teatro

de grupo

La banda de las recodas Las Reinas Chulas (México/DF)

Las tribulaciones de Virginia Cia Hnos Oligor (Navarra/Espanha)

Historias Descubiertas Impronta Teatro e Cia do Quintal (Montevideo/Uruguai e São Paulo/SP-BR)

Delirio habaneroTeatro de la luna (Havana/Cuba)

As Dom QuiXotas em defesa dos Direitos Humanos enfrentando os cafuçus Loucas de pedra lilás (Recife/PE-BR)

As três irmãs Traço Cia de Teatro (Florianópolis/SC-BR)

La edad de la ciruela Las Chicas del Blanco (Buenos

Aires/Argentina)

Filhas da mata Cia O Imaginário (Porto Velho/RO-BR)

As Clarianas Grupo Clariô de Teatro (Taboão da Serra/SP-BR)

Kamouraska Inversa Teatro (Galícia/Espanha)

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VII mostra latino

americana de teatro

de grupo

Programação

4 espetáculo

4 demonstração de trabalho

4 oficina

4 encontro

terça, 244 15h • Encontro: Intercâmbios ibero-americanos de Artes Cênicas • Oficina Cultural Oswald de Andrade (OCOA) – Anexo

4 20h30 • Espetáculo de Abertura: La banda de las recodas • Saguão (OCOA)

quarta, 254 9h30 • Oficina de Guillermo Heras • Sala 2 (OCOA)

4 14h • Demonstração de trabalho da Cia. Las Reinas Chulas • Anexo (OCOA)

4 20h • Delirio Habanero • SESC Bom Retiro

4 20h30 • Las tribulaciones de Virginia • Sala 3 - (OCOA)

quinta, 264 9h30 • Oficina de Guillermo Heras • Sala 2 (OCOA)

4 14h • Demonstração de trabalho do Teatro de La Luna e Cia Hnos Oligor • Anexo (OCOA)

4 18h • Historias descubiertas • Sala 3 (OCOA)

4 20h • As Três Irmãs • SESC Bom Retiro

sexta, 274 9h30 • Oficina de Guillermo Heras • Sala 2 (OCOA)

4 14h • Demonstração de trabalho da parceria Impronta Teatro / Cia do Quintal e Traço Cia de Teatro • Anexo (OCOA)

4 17h • As Dom QuiXotas em Defesa dos Direitos Humanos Enfrentando os Cafuçus • Estação Tiradentes do Metrô

4 20h • As Filhas da Mata • Saguão (OCOA)

sábado, 284 14h • Demonstração de trabalho do Grupo Loucas de Pedra Lilás e O Imaginário • Anexo (OCOA)

4 18h • La Edad de la Ciruela • Sala 3 (OCOA)

4 20h • Kamouraska • Saguão (OCOA)

domingo, 294 14h • Demonstração de trabalho do Grupo Las Chicas del Blanco e da Inversa Teatro • Anexo (OCOA)

4 18h • As Clarianas • Saguão (OCOA)

4 Ao final do espetáculo • Demonstração de trabalho do Grupo Clariô • Anexo (OCOA)

2012de 24 a 29 de abril

entrada francaOficina Cultural Oswald de Andrade

Rua Três Rios, 363

SeSC Bom RetiroAlameda Nothmann, 185

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DIRETORIA:

Presidente Ney Luiz Piacentini ([email protected])

Vice-presidenta Maysa Lepique ([email protected])

Secretário Paulo Celestino Mendes Campos ([email protected])

Segunda Secretária Fernanda Azevedo Correia de Souza ([email protected])

Tesoureiro Aiman Hammoud ([email protected])

Segundo Tesoureiro Osvaldo Pinheiro da Silva ([email protected])

Vogal Dorberto Rocha Carvalho ([email protected])

CONSELHO FISCAL:

[email protected]

Aurea Karpor Franchi Elizabeth Moreira Rizzo

Cinthia Maria Zaccariotto Ferreira Francisco Edilson N. Batista da Silva

Leandro Lago da Silva Selma Cristina Pavaneli

FUNCIONÁRIOS:

Gerente administrativo Carlos Eduardo Cruz

Assistente da Diretoria Neanddra Lopes

Coordenador administrativo Makoto Nishimoto

Supervisora de Setor Rosana de Oliveira Maciel

Encarregados de Setores Ederson Olimpio Kishimoto, Eliana Albieri da Silva, Fernanda Cristina de Araújo,

Paula Barros de Oliveira, Tatiane Aragão de Andrade, Thiago Henrique Seixas Olimpio,

Vania Maria Longuinho de Souza, Wladimir dos Santos Baptista

Financeiro Andrea Veneziani, Diego Geraldo Nunes, Elienai Lopes de Moraes, Miriam Jaqueline Palombo,

Paula Fernanda Gomides Casagrande, Priscila Mendes de Sá

Assistente administrativo Filipe Caue de Freitas

Atendimento/Recepção Aline Aparecida Jerônimo, Daniela Geroncio de Oliveira, Lidiane de Oliveira Sovires,

Stephanie da Silva Barbosa

Prestação de Contas Bruna Caroline Teixeira Bernardes Santos, Michele dos Santos Beltran, Priscila Pamela da Silva

Faturamento Angelica Yukimi Noda, Cristina Gomes da Silva, Maria Helia de Aguiar Gomes

Gestão de cooperados Wellington Hoffman

Assistente administrativo jurídico Karina de Oliveira Minetto

Serviços administrativos Douglas de Carvalho, Lucas Beltran de Assunção, Luiz Guilherme Floro dos Santos

Copa e limpeza Ivone Maria Soares Rodrigues

INFORMÁTICA

Webmaster Fabiano Antonio Moreira

Manutenção de equipamentos e rede Carlos Alberto Gouvea

DEPARTAMENTO CONTÁBIL

Service Keep Ass. Cons. Contábil Hitoshi Nizhimoto

Almeida & Costa Ass. Cons, Contábil Gerisvaldo Dias da Costa e Jose Magnaldo de Oliveira

DEPARTAMENTO JURÍDICO

Advogados Alvaro Paez Junqueira

Martha Macruz de Sá

Vittor Vinicuis Marcassa de Vitto

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64 • Camarim • nº 46

Entrada francaOfi cina Cultural Oswald de

Andrade Rua Três Rios, 363

SESC Bom RetiroAlameda Nothmann, 185

VII mostra latino

americana de teatro

de grupo

apresentam

de 24 a 29 de abril2012Mais informações:

www.cooperativadeteatro.com.brwww.mostralatinoamericana.com.br

Realização

Apoio Promoção