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André Figueiredo Rodrigues* A ocupação e o usufruto da terra nas propriedades do inconfidente José Aires Gomes na Borda do Campo Minas Gerais, 1775-1796 Resumo Pretende-se analisar a ocupação e o usufruto da terra nas propriedades do inconfidente José Aires Gomes na região da Borda do Campo. Com o intuito de vasculhar o universo econômico e as dinâmicas internas mineiras, abordaremos as estruturas de produção e as formas de acesso e legitimação da terra, através do estudo das atividades agrário-pastoris desenvolvidas nas principais propriedades desse inconfidente, a partir do exame de cartas de sesmarias e relatos de posse e usurpação de terras, de depoimentos à devassa aberta para julgar o crime de Inconfidência em Minas Gerais (1788-1792), do seqüestro de bens e de borradores contendo as listagens de rendimentos e a produção agrícola predominante nas fazendas desse grande proprietário, homem rico e de negócios das Minas setecentistas. Palavras-chave/ Minas Gerais, Ocupação da terra, Borda do Campo, Inconfidência mineira, José Aires Gomes. Abstract It is discussed the occupation and usufruct of land in José Aires Gomes' properties in Borda do Campo, Minas Gerais. With the intention of searching through the economical universe and the mining internal dynamics, it will be analyzed the production structures and the forms of land access and legitimation by means of the study of the agrarian-pastoral activities developed in the main properties of this man who participated in the Inconfidência Mineira (1788-1792). The documents under scrutiny are the sesmarias' letters and reports on ownership and usurpation of lands, inquiries about the crime of disloyalty, and reports about the seizing of goods and "borradores" containing the lists of incomes and data concerning the predominant agricultural production in José Aires Gomes'farms. Keywords: Minas Gerais, Land occupation, Borda do Campo, Inconfidência Mineira, José Aires Gomes. ' Doutorando cm História/FFLCH-USP. 126

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André Figueiredo Rodrigues*

A ocupação e o usufruto da terra nas propriedades do inconfidente José Aires Gomes na Borda do Campo Minas Gerais, 1775-1796

Resumo Pretende-se analisar a ocupação e o usufruto da terra nas propriedades do inconfidente José Aires Gomes na região da Borda do Campo. Com o intuito de vasculhar o universo econômico e as dinâmicas internas mineiras, abordaremos as estruturas de produção e as formas de acesso e legitimação da terra, através do estudo das atividades agrário-pastoris desenvolvidas nas principais propriedades desse inconfidente, a partir do exame de cartas de sesmarias e relatos de posse e usurpação de terras, de depoimentos à devassa aberta para julgar o crime de Inconfidência em Minas Gerais (1788-1792), do seqüestro de bens e de borradores contendo as listagens de rendimentos e a produção agrícola predominante nas fazendas desse grande proprietário, homem rico e de negócios das Minas setecentistas. Palavras-chave/ Minas Gerais, Ocupação da terra, Borda do Campo, Inconfidência mineira, José Aires Gomes.

Abstract It is discussed the occupation and usufruct of land in José Aires Gomes' properties in Borda do Campo, Minas Gerais. With the intention of searching through the economical universe and the mining internal dynamics, it will be analyzed the production structures and the forms of land access and legitimation by means of the study of the agrarian-pastoral activities developed in the main properties of this man who participated in the Inconfidência Mineira (1788-1792). The documents under scrutiny are the sesmarias' letters and reports on ownership and usurpation of lands, inquiries about the crime of disloyalty, and reports about the seizing of goods and "borradores" containing the lists of incomes and data concerning the predominant agricultural production in José Aires Gomes ' farms. Keywords: Minas Gerais, Land occupation, Borda do Campo, Inconfidência Mineira, José Aires Gomes.

' Doutorando cm História/FFLCH-USP.

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A ocupação e o usufruto da terra nas propriedades do inconfidente José Aires Gomes na Borda do Campo Minas Gerais, 1775-1796

André Figueiredo Rodrigues

A partir da primeira metade do século XVIII, com a ocupação do interior de Minas Gerais, as áreas surgidas em função da mineração, tanto a do ouro quanto a do diamante, exerceram forte atração sobre os segmentos dedicados à agricultura, gerando mercados e servindo como pólos de redistribuição de produtos devido aos seus vínculos com a cidade do Rio de Janeiro e com as vilas que se tornaram prósperas ao longo do setecentos.

André João Antonil, em Cultura e opulência do Brasil (1711), deixou-nos registrado a presença da agricultura nos caminhos que levavam à região mineradora e os atrativos que ela e o comércio proporcionavam como forma de acumulação de riquezas e de obtenção, de forma indireta, de ouro.

A concentração de população em torno das cidades ligadas à extração aurífera se deveu à natureza mercantilizada da pequena produção, voltada para o abastecimento urbano e da população cativa. Os proprietários de médios e grandes plantéis de escravos dependiam da proximidade ou do fácil acesso aos portos e centros de comércio para escoarem sua produção e poderem realizar a compra de outros escravos.

A necessidade dos produtores manterem-se o mais próximo possível dos centros urbanos ou das vias que lhes davam acesso gerou um mercado de terras, devido à abertura de novas frentes de expansão. As unidades mineratórias, independentemente de abrigarem ou não em seu interior roças de mantimentos, buscavam as fazendas para se suprirem dos produtos que lhes faltavam. Em razão disso, parte do setor escravista agrário consolidou uma produção agrícola e pastoril voltada para o abastecimento dos gêneros demandados pela maioria dos núcleos mineradores1.

No momento em que a produção mineratória entra em retração, a partir da década de 1760, com o recolhimento cada vez menor dos quintos, todas as atividades dependentes do ouro sofrem diminuições, tal o caso, por exemplo, da entrada de novos produtos em Minas Gerais, levando à queda no rendimento dos contratos de entradas2.

A cidade do Rio de Janeiro assumiu, ao longo do setecentos, papel de mantenedora do principal fluxo de comércio para Minas Gerais com a construção do Caminho Novo, encurtando a distância entre a região mineradora e o litoral, além de possibilitar à metrópole maior controle sob a região aurífera. Mafalda Zemella lembrou-nos que "depois que se deu a abertura do 'caminho novo' região alguma pôde disputar com o Rio de Janeiro o desempenho do papel de 'boca das minas'. Extraordinariamente curto, o 'caminho novo' fez com que se escoassem para o Rio de Janeiro os maiores lucros do comércio com as Gerais"3.

A partir deste comércio surgiram, ao longo do Caminho Novo, várias povoações, roças e logradouros para suprirem de bens agrícolas os viandantes que se deslocaram para as Minas. Para alimentar toda a massa humana que se encaminhou para as Gerais, bem como seus animais, lembrando que o transporte do ouro e de outros gêneros era feito por muares, desenvolveram-se plantações, destacando-se a cultura do milho e do feijão4. A agricultura e a pecuária desenvolveram-se precocemente naquele território. Isto porque, com a concessão das sesmarias, ao longo do caminho, foi possível ao sesmeiro obter "renda através da prestação de serviços, bem como o escoamento de sua produção agro-pastoril"5.

As demais capitanias também se beneficiaram do comércio com as Minas Gerais, principalmente as que se especializaram no fornecimento de certos produtos. O abastecimento de gado era feito a partir do Rio Grande de São Pedro, Pernambuco e Bahia, no vale do São Francisco. A capitania de São Paulo, que dominava o comércio com Minas antes da abertura do Caminho Novo, como as demais, não conseguiu competir com o Rio de Janeiro no transporte do ouro, e mesmo no abastecimento de escravos e bens alimentares, nela restando apenas um comércio marginal e o papel de via de passagem do gado ao Sul da América portuguesa6.

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Nas fazendas da comarca do Rio das Mortes, devido às ligações que essas propriedades possuíam com áreas externas à capitania mineira, notadamente o Rio de Janeiro, não se sofreu com os percalços da retração mineratória, decorrente da menor disponibilidade de moeda circulante, isto é, do ouro em pó. Dentro dessa perspectiva, a constituição da agricultura na região Sul de Minas Gerais independeu da exaustão das lavras. Surgiu da possibilidade de abastecer o Rio de Janeiro que, ao longo do século XVIII, foi se tornando cada vez mais um mercado emergente, beneficiado pela condição de porto mais importante para a região das Minas.

A produção agrícola dessas fazendas caracterizou-se pela diversificação. Grandes propriedades, como as pertencentes ao inconfidente José Aires Gomes, tinham produções variadas, desde lavras auríferas até engenhos, plantações de milho, feijão, arroz e trigo, criações de gado, canaviais, entre outras culturas. Os grandes senhores de terras, com suas propriedades rurais horizontalmente integradas (fazendas mistas), eram particularmente capazes de absorver o choque das transformações ocorridas após a exaustão do ouro aluvial. As suas propriedades tinham capacidade para corresponderem ao estímulo recebido da economia interna, quanto do amplo comércio exterior que fluía pela estrada que ligava a região aurífera mineira ao Rio de Janeiro.

I I

José Aires Gomes nasceu em 1734. Era o filho mais novo de João Gomes Martins e Clara Maria de Melo. O casal, após casamento em 1725, no Rio de Janeiro, transferiu-se para a freguesia de Nossa Senhora da Assunção do Engenho do Mato (atual distrito de Paula Lima, Barbacena), no caminho que ia do Rio de Janeiro a Vila Rica. No local, fixou-se na fazenda (atual cidade de Santos Dumont, antiga Palmira), primitivamente designada João Gomes, onde erigiu capela sob a proteção de São Miguel e Almas. A propriedade, nomeada como Roça de João Gomes, Sítio de João Gomes ou Rocinha do Gomes era pequena e não tinha meios para se desenvolver, apesar do rancho de passageiros e de tropa ali instalados.

Na fazenda João Gomes, o casal teve os seguintes filhos: Francisco Gomes Martins (o mais velho), Manuel Gomes Martins, Ana Joaquina de Melo e José Aires Gomes (o mais jovem).

Durante o período colonial, as famílias, principalmente as mais abastadas, mantinham a prática de encaminhar ao menos um de seus filhos ao sacerdócio. Em Minas Gerais, as famílias recém-enriquecidas organizavam uma estratégia quanto ao destino dos filhos, segundo o qual aos primogênitos cabiam as regalias do nome, do cabedal e da posição; aos secundogênitos, o doutorado em Coimbra; aos terceiros, o serviço da Igreja e, aos demais, para casamentos clânicos, à base de parentesco e interesses7.

Coube ao primeiro - o varão da família - continuar os empreendimentos do pai. Aos demais, seguir o estado eclesiástico: José Aires Gomes, aos 35 anos de idade, foi encaminhado aos estudos religiosos em 1769.

Francisco Gomes Martins, após a morte de seu genitor, tornou-se o responsável pela manutenção da fazenda João Gomes (a principal propriedade da família) e de outras terras que tinham na região do Caminho Novo. Por motivos que desconhecemos, José Aires Gomes interrompeu a carreira eclesiástica e retornou à região paterna na década de 1770, quando passou a administrar alguns bens familiares e a gerir negócios próprios na serra da Mantiqueira.

Ill

José Aires Gomes gabava-se perante os juízes da alçada aberta para julgar os crimes de Inconfidência (1788-1792), proclamados na capitania de Minas Gerais, de ser o maior fazendeiro de Minas Gerais em extensão de terras. Será que tinha razão para vangloriar-se tanto?

O pesquisador interessado em estudar a história da Conjuração Mineira tende repetidamente a encontrar escrito que José Aires Gomes devia as posses de terras que o colocavam entre os maiores proprietários das Gerais ao casamento que realizou com Maria Inácia de Oliveira, em 1785, de quem lhe adveio a fazenda da Borda do Campo, pois seu sogro era o dono da histórica herdade8.

Será que estão corretas as notas que indicaram isso? Será que deveu realmente ao casamento a

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formação de seus grandes domínios territoriais na serra da Mantiqueira? Afinal de contas, era ou não o maior proprietário de terras de Minas Gerais, no último quartel do setecentos?

Pouco antes de partir em degredo, após receber a confirmação real de que seria banido das terras brasileiras por ser inconfidente, escreveu, a 6 de maio de 1792, instruções endereçadas à sua mulher e filhos para que tomassem conhecimento de suas dívidas e as pagassem, pois devia seguir para o presídio de Inhambane (Moçambique), podendo ali morrer, sem acertar os seus negócios:

Primeiro que declaro, é que comprei a fazenda da Borda do Campo ao coronel Francisco Gomes Martins por 24:000$000 [24 contos de réis], A fazenda era do tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira, que a vendeu ao dito coronel Francisco Gomes Martins para se pagar aos seus credores e herdeiros, [que] era e é o doutor José Lopes de Oliveira e a minha mulher dona Maria Inácia de Oliveira, dos bens do dito Manuel Lopes. Eu, José Aires Gomes, só fiz pagamentos do que constar na escritura que me passou dona Clara Maria, viúva do dito Francisco Gomes Martins, salvo erro de trinta mil cruzados [ou] o que constar da mesma escritura - Para desencargo de minha consciência, declaro que a fazenda está por pagar, e o herdeiro a reivindicará se quiser, e se se rematar em praça pode requerer a Sua Majestade para haver a si a fazenda, porque o coronel Francisco Gomes não pagou a primeira escritura, que eu sempre tive este receio que o dito doutor José Lopes, como herdeiro, viesse contender comigo para tirar a fazenda e as sesmarias que tudo entrou na dita compra9.

Para explicar que a fazenda ainda não estava totalmente paga, pois havia sido vendida por Manuel Lopes de Oliveira, futuro sogro do inconfidente, a Francisco Gomes Martins, seu irmão mais velho, José Aires Gomes apontou, em seguida, que a anotação se destinava aos herdeiros "para saberem das minhas dívidas e pagasse[m] as minhas dívidas até onde chegar o valor dos meus bens, para desencargo de minha consciência", e terminou afirmando: "Feito esta licença e assento neste livro em 6 de maio de 1792, que como vou degredado para Moçambique, para o presídio de Inhambane, e poderei morrer para se saberem arrumar e ainda que fiquem sem nada, paguem a todos"10.

Na certidão de compra e venda da fazenda da Borda do Campo e de todos os seus logradouros e terras anexas, que se encontra anexada à carta precatória movida contra João Ribeiro Gomes, filho mais velho e fiel depositário dos bens seqüestrados a seu pai - Aires Gomes - , encontra-se a indicação de que a transação comercial efetivada entre o tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira e o tenente-coronel Francisco Gomes Martins ocorreu no dia 2 de fevereiro de 1768, no valor de 24 contos de réis, o mesmo do apontado por José Aires Gomes em seu livro de dívidas".

Quanto à compra da fazenda da Borda e adjacências, o tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira recebeu a quantia de 2:625$000 réis à vista, faltando o restante - 21:375$000 réis que foi dividido em 15 parcelas a serem pagas ao longo de 15 anos, sendo que cada débito deveria ser quitado no final de cada ano, que teria seu princípio na data da assinatura da escritura, sendo os dois primeiros pagamentos no valor de 1:300$000 réis cada um e, os três últimos, no de 1:925$000 réis. Os valores restantes, na ordem de 13:000$000 réis, deveriam ser pagos em 10 anos.

José Aires Gomes ao comprar a fazenda da Borda de seu irmão, pelo mesmo valor dos 24 contos de réis, quitou uma parcela inicial de 12 contos, o que lhe garantiu condicionalmente o título de proprietário da fazenda. O pagamento parcelado criou um vínculo entre o comprador e o vendedor, possivelmente até maior do que os laços familiares que os uniam, pelo menos até a quitação plena da dívida.

A compra em parcelas daquela herdade nos ajudar a elucidar o que a historiografia vem recentemente mostrando acerca da temática da posse de terras na América portuguesa: que não havia uma ampla disponibilidade de terras, pois a maior parte do território da colônia constituiu-se, durante séculos, em áreas temidas pelos colonos; e que o pagamento parcelado surge como uma forma transitória de transação em um mercado ainda não plenamente constituído, não porque funcione imerso em relações pessoais, mas porque o objeto que o constituiu, a terra, se vê indisponível, principalmente nos locais mais bem situados geograficamente e com terrenos mais férteis. Nos sertões, por exemplo, grandes extensões estavam povoadas por índios, por negros alforriados ou por pardos forros. O monopólio da terra por parte de uma elite senhorial escravista e o fechamento ou abertura da fronteira agrícola são os elementos básicos da formação do mercado na América portuguesa12.

Se houvesse vastas áreas desabitadas na freguesia da Borda do Campo, não teria José Aires Gomes comprado a fazenda da Borda do Campo, por tão avultada quantia. Poderia, através da posse pura e simples de qualquer área daquela região, legitimar uma propriedade rural no futuro, desde que demonstrasse conseguir cultivá-la. Talvez, não seriam somente as benfeitorias existentes na propriedade o grande atrativo que o estimulava a adquirir a dívida do irmão e a pagar o restante do valor estipulado na venda da herdade e das terras adjacentes a ela.

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A fazenda da Borda do Campo tinha localização privilegiada no Caminho Novo, que era a principal rota de ligação entre a cidade do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A partir da primeira metade do século XVIII, com a interiorização do território mineiro, os centros urbanos surgidos a partir da mineração exerceram forte atração sobre os segmentos dedicados à agricultura, gerando mercados e servindo como pólos de redistribuição de produtos vindos do litoral. Com a retração aurífera, sentida a partir de meados daquela centúria, começou-se a inverter as posições, passando o Rio de Janeiro a assumir papel preponderante, tanto como mercado consumidor, quanto como mercado fornecedor de créditos e escravos aos produtores mineiros. A aglomeração populacional, ao redor das vilas auríferas, se voltava para o abastecimento urbano e da população escrava, através de uma pequena produção de gêneros alimentícios'3.

Os produtores de alimentos buscavam manter-se o mais próximo possível dos centros urbanos ou das vias que lhes davam acesso, transformando a terra em questão estratégica para o controle da produção e do mercado. Possivelmente a intenção de José Aires Gomes ao adquirir enormes parcelas de terras no Caminho Novo estava na terra em si, pois buscava um bem que o distinguisse dos outros moradores da região. Possuir terras era distintivo social, além de ser reserva de valor. A necessidade de terras descansadas, ainda preservando a cobertura vegetal inicial, era também objetivo do comprador que estava interessado em explorar os seus recursos pelo maior prazo de tempo possível, antes de se ver obrigado a uma nova operação de compra ou de posse de terra nos imbricados sertões da Mantiqueira.

Ao lado da posse, pura e simples, e da compra existiam outras formas de obtenção de terras: com o arrendamento; com a herança; penetrando-se nas matas, nas florestas e nas picadas que se abriam na busca do negro fugido e de índios; na destruição de quilombos; recompensando-se atos heróicos e ações de desbravadores14.

José Aires Gomes não se apoderou da fazenda da Borda do Campo por esta ser herança de sua mulher, como até agora se pensava. No momento da transação comercial, a nossa personagem estava ingressando no seminário de Mariana, tentando seguir a carreira eclesiástica. Naquele instante não existia nenhum acordo de casamento firmado entre Aires Gomes e Maria Inácia de Oliveira, filha de Manuel Lopes de Oliveira e que tinha pouco mais de 10 anos de idade. O moço já contava com mais de 30. O futuro inconfidente só veio a adquirir as terras da Borda do Campo quando as comprou de seu irmão mais velho, Francisco Gomes Martins, e da esposa deste, Clara Maria de Jesus, que venderam, "sem reserva alguma, [todos] os bens comprados ao capitão Manuel Lopes de Oliveira, ao tenente-coronel José Aires Gomes, por escritura de 8 de agosto de 1765" (deve ser 1775!), por enfrentarem dificuldades financeiras em honrar a dívida contraída15.

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Além da fazenda da Borda do Campo, José Aires Gomes adquiriu outras propriedades, entre elas, vale destacar as fazendas Calheiros e Mantiqueira, que foram seqüestradas pela devassa da Inconfidência em 1791. Apesar de longa, deixemos que a "escritura de venda do alferes Francisco Gomes Martins ao tenente-coronel José Aires Gomes" demonstre a grandiosa transação:

(...) da fazenda chamada a Cachoeira, com casas de vivenda, engenho de pilões, moinho corrente, casas de vivenda, rancho de passageiros, casas de morada do capitão, capela com invocação de Nossa Senhora da Piedade, quatro moradas de casas que se costumam alugar, dois ranchos mais em que mora o pardo Guilherme de Matos e Inácio alfaiate, paióis, olaria e todos os mais pertences, tudo coberto de telha e as senzalas de capim; o sítio chamado do Narciso, com casa e paiol de telha; o sítio do Quilombo, com todos os seus [pertences]; o sítio do Pinheirinho, com suas casas de vivenda, engenho de pilões, tudo coberto de telha e seus pertences, como consta da escritura de compra que de tudo fez o tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira a João Domingues da fazenda nova da Ponta da Serra da Mantiqueira, cabeceiras do rio da Rocinha e a mesma que parte com o dito sítio do Pinheiro e com terras do herdeiro do defunto Cruz, digo do defunto Constantino da Silva; o sítio e fazenda do Calheiros, que consta de casas de vivenda e ranchos cobertos de telhas com todos os mais pertences e do mesmo direito e ação que tinha seu antecessor dito tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira; a fazenda da Mantiqueira pelo agendamento que fez ao padre Agostinho Figueiredo e a viúva dona Inês Maria de Jesus cm escritura e todos os mais sítios em que moram os agregados que todos pertencem a mesma fazenda; uma sesmaria nos matos do Zapato [Xopotó!] que partem de uma banda com terras da sesmaria de Pedro de Oliveira Madeiros e do reverendo vigário Feliciano Pita de Castro, e com a que foi a Francisco Jose dos Santos como consta de seu título da medição e todos os ditos sítios com terras, de matos, de logradouros e capoeiras e todas as terras que por sesmaria possuía nos gerais o dito tenente-coronel tirados cm nome do mesmo e de várias pessoas

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que por todas são dezesseis ou as que mais aparecerem as quais constarão de seus títulos dos quais terão também algumas se acham tituladas com títulos minerais como delas constam assim nas vizinhanças da dita fazenda da Cachoeira com outras partes, e todos os mantimentos e plantas que acharem nas ditas fazendas; uma morada de casas assobradada coberta de telha com seu quintal e olaria, citas no arraial da Borda do Campo, que partem de uma banda com terras de João de Freitas e da outra com os chãos de Manuel Teixeira e com todos os seus pertences, oitenta e oito escravos por nomes (...), vinte e sete machos [bois]; dezesseis cavalos, todos arriados com cangalhas, cabrestos, selas, sobrecargas e todos os mais pertences da mesma tropa; seis éguas e duas crias; dezesseis cabeças de ovelhas; seis cabeças de cabras; trezentas cabeças de gado vacum, pouco mais ou menos, c todas as mais que se acharem do que ficou do sobredito tenente-coronel do qual a maior parte se acha marcada em um dos quartos traseiros com a letra = L = cinqüenta cabeças de porcos, entre grandes e pequenos; entram os bois de carro que servem nas ditas fazendas; seis carros ferrados, dos quais se acham quatro quebrados; dois carretões usados, tudo com seus preparos e arreios; mais três cavalos selados e enfreados com selas usadas"; [a partir daqui, ocorre a descrição dos utensílios domésticos, dos objetos utilizados na lavoura e na ferraria, além das peças do vestuário]16.

Francisco Gomes Martins vendeu oito propriedades territoriais e mais uma morada de casas no arraial da Borda do Campo (atual Solar dos Andradas, em Barbacena) ao seu irmão. Mesmo comercializando grande quantidade de terras restaram-lhe, ainda, algumas outras posses.

Ao comprar a fazenda da Borda do Campo e as propriedades adjacentes a ela, que compreendiam perto de 10 léguas de terras, e ao administrar alguns bens patrimoniais que foram de seu irmão (e anteriormente de seu pai), como a fazenda João Gomes, José Aires Gomes tornou-se senhor de um grande domínio territorial na serra da Mantiqueira. No último quartel do século XVIII, já era o maior potentado da Mantiqueira. Posição que será endossada, cada vez mais, com futuras ampliações de terras (ora comprando, ora tomando posse) e constituindo extenso círculo de amizades e rede de compadrio.

São os laços de família, prestígio e poder político, que nos ajudam a desvendar o perfil concentrador da propriedade de terras na freguesia da Borda do Campo e nas áreas contíguas àquela divisão espacial. A doação de uma gleba de terra para uma mesma pessoa era prática condenada repetidamente pelas autoridades e observadas na legislação. Mesmo assim, o conjurado e seus parentes conseguiram tornar-se concessionários de grande quantidade de terras em torno da principal propriedade de José Aires Gomes e o Caminho Novo - a fazenda da Borda do Campo. Através desse mecanismo surgiu um imenso senhorio fundiário.

Para manter o poder e os fatores de produção das terras que possuía na serra da Mantiqueira, empreendeu constantemente aquisição de novas propriedades e a expansão de seus domínios rumo aos sertões, expandindo a fronteira. Quando os ajudantes de ordens e o governador dom Rodrigo José de Meneses penetraram em 1781 nas áreas proibidas daquela serra, observaram a ação de José Aires Gomes e dos homens ligados a ele na produção e na exploração agrícola e mineral daqueles espaços fronteiriços. Comandar os caminhos e os meios de transporte que cruzavam aquele quinhão mineiro, assim como monopolizar as terras mais acessíveis, à beira e ao longo dos rios, permitiu que se formassem, ao redor do poder de um grande proprietário, parcelas de dependentes que estabeleceram um mercado de arrendamento de terras.

Para se receber uma sesmaria, o solicitante precisava comprovar possuir família e poder desenvolver práticas agrícolas nas terras pedidas, o que significava, antes de qualquer coisa, possuir escravos para lavrar o chão, tornando-o produtivo. Como muitos roceiros que residiam na freguesia da Borda do Campo não dispunham de mão-de-obra escrava para trabalhar na lide diária do campo, eram ajudados em suas roças por seus familiares ou agregados. Normalmente, os roceiros não plantavam em terras próprias, e sim, "por favor", em terras alheias. Alguns pagavam foro ou uma renda para poder explorar uma determinada área, dentro da propriedade de um grande senhor.

Para Eni de Mesquita Samara, o estabelecimento de uma estrutura econômica de base agrária, latifundiária e escravocrata associada a fatores como a desarticulação administrativa, a excessiva concentração de terras nas mãos de uma pessoa ou de uma família e a acentuada dispersão populacional provocaram a instalação de uma sociedade paternalista, em que as relações de caráter pessoal assumiam vital importância. Este seria o modelo que deu origem aos agregados, que durante toda a nossa fase colonial assumiram diferentes posições junto à família patriarcal17.

Indivíduos livres e sem terras, "tanto podiam ser considerados agregados os parentes (filhos, filhas solteiras ou viúvas, genros, mães, tias, irmãos, irmãs, etc.), como amigos e estranhos que vinham congregar-se ao grupo familiar"18.

A medida que o tamanho das terras ultrapassava as necessidades de produção e de crescimento em face

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da demanda do mercado, havia a possibilidade de acomodar moradores (agregados) ou meeiros (ou parceiros) nas terras excedentes ou subutilizadas. Os agregados poderiam assegurar tanto a defesa da propriedade, quanto o plantio de mantimentos. Quando não havia essa possibilidade, os agregados dirigiam-se às vilas, onde passavam a morar com as famílias locais, ajudando nos diversos tipos de ofícios urbanos19.

As grandes extensões de terras concentradas nas mãos de uma família ou de uma pessoa podiam ser exploradas diretamente pelos donos e seus escravos ou por outros que plantavam em terras alheias, pagando foro. Na fazenda da Borda do Campo, distante duas léguas da vila de Barbacena, foram contabilizados no ano de 1837, segundo anotações do português Raimundo José da Cunha Matos, 163 fogos e 967 almas, residindo e trabalhando na propriedade2".

O que distinguia o agregado do posseiro que se embrenhava nos sertões da Mantiqueira e que muitas vezes entrava em terra alheia era a permissão do proprietário para morar e explorar a gleba ou um pedaço dela, pagando uma renda anual, independente do mercado e das variações de preço que o produto agrícola plantado pudesse receber. Essa situação criava entre esses dois elementos, o dono e o agregado, vínculos de serviços mútuos e de solidariedade.

Devido aos dispendiosos custos em se adquirir mão-de-obra escrava negra para explorar grandes áreas, o proprietário, muitas vezes, recorria ao trabalhador livre como forma de desonerá-lo dos valores a pagar por escravo e propiciar o cultivo da terra, evitando-se assim possíveis demandas com vizinhos. Além disso, terra parada era terra devoluta, passível de ser retomada e distribuída novamente pela coroa portuguesa a quem se comprometesse a torná-la produtiva.

A existência de arrendatários de terras na região indica-nos a formação de mecanismos de mercado, mesmo existindo a possibilidade de se recorrer à fronteira na busca por terras, uma vez que esta estava aberta21. Por que pagar uma renda anual para se usufruir de terras de um proprietário como José Aires Gomes, se podiam apropriar-se legalmente de uma área que estava aberta, como as existentes nos sertões da Mantiqueira? Um pequeno ou médio proprietário de escravos (já que a posse de escravos era imprescindível à obtenção de sesmarias ou data mineral) ou qualquer outro indivíduo que possuísse recursos para desenvolver economicamente aquelas paragens não poderia se aventurar para conseguir terras? Da mesma forma, quem possuía recursos financeiros suficientes para arrendar uma propriedade rural, não poderia comprar parceladamente uma gleba?

Na freguesia da Borda do Campo, a concentração de grande extensão de terras gerou conflitos. Não eram apenas embates de um grande proprietário contra um outro, tampouco a contestação de um arrendatário frente a seu senhorio. As desavenças de terras expressavam uma sociedade complexa, que não era formada apenas pelos binômios senhor versus escravo ou grande proprietário versus pequeno arrendatário. Havia um grande número de homens livres que sonhavam com a possibilidade de conseguir uma parcela de terra: lutavam pela posse de terra que acreditavam lhes pertencer. Esses "miseráveis", livres ou libertos, faziam parte da rede de dependentes de algum grande proprietário, como arrendatários ou moradores. Mas isso não significava estarem submetidos passivamente a uma dominação sem limites. Eles reivindicavam, quando podiam, seu acesso a terra. Questionavam, de uma forma ou de outra, a ocupação desenfreada de um ou mais senhores22.

Esses homens não agiam apenas porque tinham fome ou por se sentirem oprimidos sem acesso a terra, mas, fundamentalmente, porque suas ações tinham a ver com suas experiências na labuta diária para sobreviver nos intrincados matos da Mantiqueira, com seus envolvimentos com outros moradores e com tradições culturais que passavam de pai para filho, de geração para geração. E assim, por exemplo, que Narciso da Costa, "morador na freguesia da Borda do Campo", requereu terras naquela paragem, não se intimidando em solicitar no dia 27 de setembro de 1751 um pedaço de chão no interior das posses que o tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira tinha na serra, pois achava-se no direito de possuir uma gleba naquele emaranhado complexo fundiário23.

Na freguesia da Borda do Campo, ao lado do arrendamento de terras, encontramos a existência de 174 cartas de sesmarias, que se distribuíam da maneira expressa na Tabela 1.

Do total de cartas de sesmarias doadas na freguesia da Borda do Campo, 24 estavam concentradas nas mãos de familiares e/ou de José Aires Gomes, o que equivale dizer que 13,79% de todas as terras legalizadas, ou seja, demarcadas judicialmente, estavam nas mãos de uma mesma família.

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Tabela I Formas de aquisição de sesmarias na freguesia da Borda do Campo

Formas de Aquisição Sesmarias Doadas Porcentagem (%)

Compra 21 12,07 Doação 77 44,25 Herança 1 0,58 Posse 67 38,50 Posse / Compra 6 3,44 Recompensa 2 1,16

Total 174 100,00 Fonte: Arquivo Público Mineiro /Arquivo Histórico Ultramarino/Biblioteca Nacional / Centro de Estudos Mineiros.

Cartas de sesmaria - diversas.

A busca por terras na comarca do Rio das Mortes e, em nosso caso, na freguesia da Borda do Campo, não era acessível a todos. Pelas notas dos ajudantes de ordens do governador dom Rodrigo José de Meneses que penetraram nos sertões da Mantiqueira em 1781 e que prepararam terreno para a viagem do governador àquela paragem, fica demonstrado que as terras estavam ocupadas e produzindo mantimentos24. Condições como terras mais férteis e bem localizadas - uma vez que aquela área era cortada pelo Caminho Novo - levaram a disputas por terras. O motor de todas as discórdias e conflitos agrários na região era o tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira e, a seguir, passou a ser o gemo José Aires Gomes, ambos responsáveis pela ocupação e exploração dos sertões proibidos da Mantiqueira, a partir da segunda metade do século XVIII.

A concentração de terras tinha por base não somente a expansão de seus domínios territoriais, sendo utilizada por José Aires Gomes como instrumento fundamental para sustentar o seu poder de mando local e calçar seu prestígio, além de torná-lo temido e poderoso, eliminando os competidores locais e impedindo a formação de outros domínios vizinhos que pudessem concorrer em poder e prestígio com o seu25.

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Na fazenda da Borda do Campo existiam casas de vivenda coberta de telhas; rancho de tropas, de pedra; rancho de passageiros, um de palha e outro de pedra; um engenho de fazer farinha de trigo, coberto de telhas; um moinho; uma seara de trigo que levaria de semeadura um alqueire (mineiro) e meio de trigo, o equivalente a 72.600 m2; olaria; campos de criar, destinado à cultura extensiva de gado vacum; um estabelecimento comercial (uma venda); 22 escravos e uma capela, entre outros pertences26.

Em outra de suas fazendas, a do Engenho de São Sebastião, que integrava unidades de produção voltadas para as práticas agrícolas e pastoris, encontramos indicada a presença de casas de vivenda e sobrados cobertos de telhas; um engenho de moer cana com bois (engenho de trapiche), moinho, forno de cobre assentado em fornalha, paiol, casas de tropas, monjolo - tudo coberto com telhas; senzala coberta de capim; 51 escravos; alambique de cobre, coberto com telhas, e com produção de 24 barris. Além destes, encontravam-se plantadas duas roças de milho que totalizavam 32 alqueires mineiros (= 1.548.800 m2); uma roça de feijão com 11 alqueires (= 532.400 m2); um canavial que leva de planta de milho uma quarta e meia (aproximadamente 13,5 m2); 20 alqueires de arroz com casca (= 968.000 m2) e, no paiol, encontravam-se estocados cinco carros de milho27.

E interessante notar que os locais ligados à produção, como os engenhos, os moinhos, a casa do monjolo e o paiol, eram cobertos de telhas, enquanto as construções destinadas à moradia escrava eram cobertas por capim. Outro dado deve ser ressaltado: nos lugares em que as fazendas tinham ligações com caminhos e/ou estradas que rompiam o território mineiro, como o Caminho Novo e as vias fluviais, por exemplo, percebemos a ocorrência de fazendas do tipo mistas, onde se desenvolviam a agricultura de abastecimento interno e as práticas mineratórias. Os produtos destas propriedades rurais alimentavam o comércio tanto no interior da capitania como ao longo das rotas para as capitanias vizinhas.

As peculiaridades de cada fazenda e a diversidade de produções agrícolas e minerais podem ser estendidas a outros moradores da comarca do Rio das Mortes e, até mesmo, a outras localidades mineiras

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e da América portuguesa. O símbolo da cozinha mineira, o famoso "feijão tropeiro", mistura de farinha de milho, feijão e carne

de porco, ao lado da mandioca, formava a base alimentar típica do mineiro do setecentos. A agricultura básica de Minas Gerais do século XVIII, além destes produtos, contava ainda com o açúcar, o algodão e o tabaco.

O milho é amplamente consumido pelos mineiros, servindo também de alimentação aos animais. Ao estudar os costumes alimentares dos paulistas em suas áreas de expansão, Sérgio Buarque de Holanda observou o hábito e a preferência dos habitantes do planalto de Piratininga pela produção do milho. Inicialmente esclarece que uma das razões para o seu sucesso era a inadequação da mandioca à atividade predominantemente itinerante do paulista, que se embrenhava nos inóspitos sertões, desde o século XVI, em busca de índios a serem escravizados e de metais e pedras preciosas. Além dessa explicação, havia outra que pensava ser a decisiva:

da preferência dada ao milho sobre a mandioca, há de relacionar-se com a própria mobilidade que, por longo tempo, distinguiu a gente do planalto. Nas primitivas expedições ao sertão bruto seria de todo impossível o transporte das ramas de mandioca necessárias ao plantio nos arraiais situados onde já não existissem tribos de lavradores. Primeiramente porque, além de serem de condução difícil, pois ocupariam demasiado espaço nas bagagens, é notório que essas ramas perdem muito rapidamente o poder germinativo. E depois, porque, feito com bom êxito o plantio, seria preciso esperar, no mínimo, um ano, geralmente muito mais, para a obtenção de colheita satisfatória.

E continua, "O milho, por outro lado, além de poder ser transportado a distâncias consideráveis, em grãos, que tomavam pouco espaço para o transporte, oferecia a vantagem de já começar a produzir cinco e seis meses ou menos depois da sementeira"28.

André João Antonil registrou a existência de roças de milho nos primeiros anos de Minas Gerais. Com o avançar do setecentos, devido aos intricados caminhos, riquezas e a rede comercial que se formou entre as capitanias vizinhas e com os outros reinos, o mineiro viu sobre a sua mesa uma maior oferta e diversidade de produtos, além, é claro, de contar com uma produção local rica e diversificada, como atestam os documentos, respondendo cada vez mais à necessidade e à demanda da população.

Nas propriedades do coronel José Aires Gomes se produzia milho em apreciável quantidade. Em suas fazendas seqüestradas pela devassa da Inconfidência (maio de 1791), encontramos as seguintes referências à produção do milho: na fazenda do Engenho, cuidada por 51 escravos, existiam duas roças que totalizavam 32 alqueires (= 1.548.800 m2), além de um moinho e um paiol com cinco carros do cereal estocados; na fazenda Passa Três, com três léguas de extensão de terra e localizada no "caminho do mato do Rio de Janeiro", existia "um paiol bom coberto de telha com 16 carros de milho dentro", tudo assistido pelo agregado José da Cruz Alves, homem pardo, e por mais dois escravos. Entre os papéis seqüestrados pela devassa, encontrava-se "um bilhete de Joaquim Batista Rodrigues em que diz recebi por conta de meu amo o capitão Antônio Gomes Mafra em vinte e três de outubro próximo [?], seis alqueires de milho a preço de doze vinténs" [= 240 réis ou 40 réis cada alqueire]29.

Na fazenda Acácio, também de Aires Gomes, há indicação de uma roça que já sofrera a colheita de sete alqueires, "que apenas poderá render 12 ou 14 carros de milho em espiga" e um "monjolo de socar milho", estando toda a manutenção da propriedade a cargo de Manuel da Silva Espíndola - que era "sócio" de Aires Gomes no empreendimento - e sua família. A colheita era estocada em um paiol coberto de telhas e que fora assolado por um incêndio em um dos seus cantos. Possivelmente a causa de tal tragédia foi o prolongamento de alguma das queimadas feitas na mata auxiliar para limpar e fertilizar o solo no ano de 1790 ou antes30. O seqüestro dos bens do conjurado deu-se em maio de 1791, época da colheita do grão. Auguste de Saint-Hilaire transmitiu-nos maiores detalhes acerca da cultura do milharal:

Toda a sabedoria do lavrador consiste em queimar as matas e semear na época favorável. Pelo mês de setembro, quer dizer, pelo fim da seca, fazem-se, na terra coberta de cinzas, buracos afastados de três ou quatro pés, e põe-se em cada um deles alguns grãos de milho. (...) Pelos fins de janeiro, um pouco depois da fecundação do milho, plantam-se ordinariamente os feijões entre as estipes dessa gramínea; limpa-se ainda uma vez a terra entre a plantação do milho e o tempo da colheita, e, pelo mês de abril, faz-se a colheita do milho e do feijão ao mesmo tempo ou com poucos dias de intervalo31.

No inventário de Ana Maria dos Santos (1747), sogra de José Aires Gomes, localizado por Ângelo Alves Carrara no Arquivo do Museu Regional de São João dei Rei, percebemos a prosperidade das fazendas localizadas nas paragens dos sertões da Mantiqueira e que foram incorporadas ao patrimônio do futuro 134

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conjurado. A fazenda da Cachoeira era "fabricada por quarenta e nove escravos, com seu engenho de fazer farinha [de milho], dez ovelhas, sessenta e cinco porcos, treze cavalos, oitenta e seis cabeças de gado vacum, e três mil mãos de milho" empaiolados [= 29.100 litros, o que equivale a 29,1 m3 de milho armazenado em área pouco maior que três metros de comprimento, por três de largura e três de altura]32. O engenho na propriedade era essencial para o tipo de atividade que esta fazenda desempenhava: atender a passageiros, já que possuía ranchos.

A grande utilidade do milho pelos mineiros pode ser explicitada pela grande versatilidade da produção, pela diversidade culinária e pelo consórcio dessa cultura com outras vegetais e animais, tais como as aves e os suínos. Afora servir de alimento para seres humanos, o milho também é utilizado como ração animal.

Além da "civilização do milho", aludida por Sérgio Buarque de Holanda, Minas Gerais verá desenvolver sem contradição uma "civilização da mandioca", como prefigurou Waldemar de Almeida Barbosa.

O sesmeiro, ao se estabelecer em uma determinada região, tinha, como preocupação, depois de aprontar o rancho, plantar algumas ramas de mandioca, para garantir a sua família e criações a farinha que era o "pão comum em todo o Brasil ou América". Várias podem ser as suas utilidades: alimento, bebida, medicamento, entre outras. Apesar de a durabilidade da farinha de mandioca ser inferior à da farinha de milho, seu valor nutritivo é considerado superior ao deste cereal33.

Ambas as culturas - milho e mandioca - ajudam-nos a representar a dualidade existente na economia mineira colonial: a primeira, exprime-se como mineratória e itinerante, como expressou Sérgio Buarque; a segunda, agrícola e sedentária, como se depreende de Waldemar Barbosa.

Ao lado destas culturas destaca-se também a produção de arroz. O ajudante de ordens Francisco Antônio Rebelo percorreu os sertões proibidos da Mantiqueira a mando do governador dom Rodrigo José de Meneses, e lá encontrou não só as esperadas lavras auríferas, mas também caminhos que se estendiam por léguas em todas as direções, e de uma e outra parte viu casas e roças que se dedicavam às práticas agrícolas e algumas aos serviços minerais. Nas imediações do ribeirão de Santa Rita, por exemplo, girou umas seis léguas por "caminhos cultivados de arroz"34.

A fazenda da Mantiqueira, de uma légua de extensão e propriedade de José Aires Gomes, tinha 13 escravos que se revezavam na cultura do trigo e do arroz. Os trigais compreendiam apenas meio alqueire de terra plantada, o equivalente a 24.400 metros quadrados e se destinavam ao abastecimento dos animais da fazenda, que eram 60 porcos e dois cavalos e dos moradores da propriedade, além de seus excedentes serem comercializados no mercado local. A produção de arroz com casca abrangia uma área de 12 alqueires (= 580.800 m2). Na fazenda Acácio, a produção de arroz chegava a 20 alqueires (= 968.000 m2)35.

Muitas vezes, o arroz era plantado no mesmo campo do milho. Possivelmente, devido a isso, não encontramos em nenhum outro seqüestro de bens de inconfidentes residentes na comarca do Rio das Mortes, qualquer referência individual à plantação desse cereal; constatamos apenas a presença nos seqüestras de pilões, que tinham múltiplas utilidades, como limpar o arroz e o café e, no caso do milho, preparar a canjica. Nos pilões também eram preparados o azeite de mamona, indispensável para a iluminação, assim como a paçoca (tanto a feita de carne seca, quanto a de amendoim torrado), a massa da mandioca cozida, utilizada na preparação da broa e no beneficiamento do café em pó.

Outro produto indispensável e facilmente verificado no horizonte agrário mineiro era o feijão. A sua cultura na comarca do Rio das Mortes, nas paragens dos sertões da Mantiqueira, estava presente, por exemplo, na fazenda da Laje do coronel José de Resende Costa, que continha 28 escravos, uma roça de milho de 20 alqueires e uma roça de feijão de oito alqueires (= 387.200 m2), além de engenho de fazer farinha, moinho, um forno de torrar farinha assentado na fornalha, uma oficina de ferreiro, entre outros bens. O padre Carlos Correia de Toledo e Melo tinha uma fazenda na paragem da Lage, vizinha à propriedade do tenente-coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, primo de Maria Inácia de Oliveira - esposa de José Aires Gomes - , trabalhada por 16 escravos, com seis bois, um moinho, um engenho, quatro alqueires de milho plantado e quatro de feijão (= 193.600 m2 cada). Aires Gomes não ficava para trás, pois na fazenda Engenho eram cultivados 11 alqueires de feijão (= 532.400 m2)36.

A produção de milho e feijão, que configurava o lado agrícola da unidade produtiva, se voltava tanto para o abastecimento interno, quanto para o mercado constituído pela sociedade mineira. Na relação dos pagadores de dízimos da freguesia da Borda do Campo (de 1751 a 1753) foram listados 180 moradores que colocaram algum tipo de produto agrícola no mercado. Esta listagem, entretanto, não exprimia toda a produção agrária da região, pois deixava de fora a pequena produção destinada ao autoconsumo.

Entre as várias localidades indicadas na relação dos pagadores de dízimo, uma se destacava, a "Capela do Coronel", comandada pelo tenente-coronel José Lopes de Oliveira, tio do tenente-coronel Manuel Lopes

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de Oliveira. Ambos desenvolviam, possivelmente em sociedade, práticas agrícolas na fazenda da Borda do Campo37. A importância devida por José Lopes, o responsável pelos valores a serem pagos a Fazenda Real, no triénio, era de 300 oitavas de ouro (= 360$000 réis). Entre todos os moradores da região, somente sete tinham que pagar valores iguais ou superiores a 100 oitavas. Destes, apenas três igualavam ou ultrapassavam as 200 oitavas e, unicamente José Lopes de Oliveira chegou à casa das 300 oitavas de dívida, a maior de todas38.

O alto valor a ser pago pelo tenente-coronel José Lopes de Oliveira referia-se, principalmente, à cultura do milho e do feijão que plantava na fazenda da Borda do Campo39. José Aires Gomes, a partir da década de 1770, já em posse das propriedades e empreendimentos que foram originalmente de seu sogro e no comando das ações familiares na região, continuará a desenvolver a agricultura no local e, conseqüentemente, a pagar avultadas quantias de dízimos. Os dados que nos chegaram sobre os seus atrasos no pagamento deste tributo dizem respeito principalmente à década de 1780, como se verá adiante.

Os valores dos dízimos cobrados aos moradores da freguesia da Borda do Campo exprimiam apenas a produção destinada ao mercado. Esses índices congregavam, de forma genérica, toda a produção agrária que era lançada sob o nome de um lavrador, ao qual era colocado um valor correspondente à décima parte da produção agrícola comercializável. "As suas cifras exprimem essencialmente a produção de caráter escravista. Essencial mas não exclusivamente, já que comportava também a participação - eventual ou permanente - de alguns lavradores com produção familiar lançada ao mercado, com ou sem o recurso à mão-de-obra escrava ou de outro tipo"40. Os valores a serem pagos em oitavas de ouro devidos por cada morador devem ser lidos como os gêneros produzidos pelas unidades escravistas ou pelos poucos lavradores que felizardamente participaram do mercado naquele momento, ou seja, os valores dos dízimos correspondiam aos valores da produção agrária mercantilizada.

No caso da freguesia da Borda do Campo, os sete maiores pagadores proporcionaram aos cofres reais rendas no valor de 1.180 oitavas ou 1:416$000 réis. A soma das dívidas dos 180 lavradores listados rendeu pouco mais de 4:917$000 réis, ou seja, praticamente um terço de todos os dividendos vinha dos sete maiores produtores e, entre eles, o tenente-coronel José Lopes de Oliveira se destacava. Em 1775, José Aires Gomes contraiu núpcias com a sobrinha deste, Maria Inácia de Oliveira, e comprou a fazenda da Borda e adquiriu terras na freguesia e nas áreas adjacentes a ela, como a Mantiqueira, além de participar da rede mercantil mineira, ora como agricultor e estalajadeiro, ora como minerador.

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1797: pouco antes de receber os seus bens partilhados pela devassa, Maria Inácia de Oliveira - viúva do conjurado José Aires Gomes, que morrera no ano anterior - teve que prestar contas ao fisco da Fazenda Real dos rendimentos das roças de milho, feijão e arroz existentes nas fazendas da Borda do Campo, da Mantiqueira, do Confisco e do Engenho, correspondentes ao período de 1791 a 1796, época em que estas propriedades estavam confiscadas pelo estado colonial português.

Em meio a infortúnios com a devassa, sentidos com as apreensões e as arrematações de seus bens em praça pública, assim como o aparecimento quase que anual de novos e "interessantes" papéis seqüestrados, contendo novos objetos, novos escravos e novas listas de créditos, terras e dívidas do inconfidente, Maria Inácia de Oliveira viu-se obrigada ainda a esclarecer as contas dos rendimentos das fazendas confiscadas e também as suas despesas.

Foi graças à existência de oito diários, conhecidos como borradores, em que se registravam as anotações financeiras dessas quatro fazendas, que a devassa pôde vasculhar um pouco da produção agrária que se praticava nas paragens da Borda do Campo. As principais culturas indicadas nas suas folhas esverdeadas e escritas com caligrafia impecável se referem ao milho, ao feijão e ao arroz. Além destas, outras aparecem sem especificação de nome, apenas indicando o quanto renderam.

O volume da produção agrária da Borda do Campo permite-nos confirmar, ou pelo menos assim pensar, a sua inserção nos quadros da economia mineira. Essa produção agrícola, ora voltada para a própria subsistência, ora o seu excedente para comercialização, possibilita a movimentação de um amplo mercado integrado ao circuito de um comércio local e ínter-regional.

A localização das propriedades de Aires Gomes à margem do Caminho Novo, principal rota de entrada e saída dos produtos manufaturados e agrícolas que se dirigiam às Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, e os constantes investimentos em terras determinavam o seu nível de riqueza. Entretanto, possuir expressivas 136

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extensões de terras era o ponto de partida para quem desejasse ocupar lugar de destaque na sociedade setecentista colonial. A produção agrícola de seus domínios na Mantiqueira e em áreas de seu sertão permitiu-nos vislumbrar um pouco de seu universo agrário.

As listagens dos rendimentos da fazenda da Borda do Campo - sede e propriedade principal - dividem-se em duas partes. Na primeira são apresentadas as rendas advindas de atividades ligadas à terra: a produção do milho, do arroz e do feijão:

Tabela II Rendimentos - Fazenda da Borda do Campo

(2 de junho de 1791 a 12 de novembro de 1796) 1791 1792 1793 1794 1795 1796 Rendimentos

(em réis)

Outras Rendas

165$292 270$656 % 240$357 290$798 !/2 314$475 300$000 1: 581 $578 3/4

Milho 255$000 190S975 199$400 202$400 198$900 207$000 1:2535675 Feijão 66$000 55$000 48$500 40$975 43$640 41S525 295$640 Arroz 24$600 26S300 19S575 21$950 20$400 19$740 132S565

3:263$458 3/4 Fonte: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires

Gomes", fls. 294-294v.

O documento apontou o milho como o principal produto agrícola da fazenda. Em 1791 - ano da prisão de José Aires Gomes como inconfidente e o de seqüestro de seus bens, entre eles a fazenda da Borda - foi anotada pela devassa a existência de uma roça de milho de um alqueire e meio, o que equivale dizer que 72.600 m2 da propriedade eram dedicados a essa cultura. Os seus rendimentos neste mesmo ano chegaram a 255 mil réis, segundo se percebe nas notas anteriores. A área plantada é pouca para o rendimento da lavoura! Para os demais períodos, não existem relatos das áreas plantadas, nem a quantidade de grãos colhidos.

Quanto aos demais produtos listados - o feijão e o arroz - não aparecem relacionados no seqüestro empreendido na fazenda da Borda do Campo, no ano de 1791. Muitas vezes, o arroz era plantado no mesmo campo do milho, daí a sua possível ausência no inventário dos bens confiscados.

A lista dos rendimentos das demais propriedades - Mantiqueira, Engenho e Confisco - não apresenta essa mesma divisão (por culturas plantadas e colhidas) em suas receitas. Só há indicação do quanto as terras renderam com a produção agrícola. O que sabemos (ou o que nos é permitido conjecturar), baseados nos autos de seqüestro praticados nos bens de José Aires Gomes, no ano de 1791, é o seguinte:

Tabela III Rendimentos - Fazenda da Mantiqueira

(2 de junho de 1791 a 12 de abril de 1796) 1791 1792 1793 1794 1795 1796 Rendimentos

Totais (em réis)

243$232 382$786 404S287 461$692 357S976 451 $907 '/2 2:301$880 y2 Fonte: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Traslado de auto de seqüestro feito cm bens do coronel José Aires

Gomes", fl. 295. Tabela IV

Rendimentos - Fazenda do Confisco (2 de junho de 1791 a 12 de abril de 1796)

1791 1792 1793 1794 1795 1796 Rendimentos Totais (em réis)

87$987 323S518 Vi 247$521 275$ 118 3A 199S894 239$412 1:373$ 180 % Fonte: IHGB. "Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires Gomes", fi. 295v.

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Em 1791, a devassa encontrou plantadas nas fazendas da Mantiqueira e do Confisco roças de trigo: cada uma tinha semeado meio alqueire (= 24.200 m2). Na primeira havia plantado ainda 12 alqueires de arroz (= 580.800 m2).

Em ambas propriedades, como na fazenda da Borda do Campo, existiam ranchos de passageiros e de tropas. Na fazenda da Borda, o rancho de passageiros era grande e de pedra; na da Mantiqueira, era "mediano" e composto por varanda, quartos e cavalariças que atendiam aos viandantes. Nas três propriedades, os ranchos de tropas eram grandes e atendiam aos tropeiros que se dirigiam pelo Caminho Novo às áreas mineratórias da comarca do Rio das Mortes e às fazendas localizadas na serra da Mantiqueira.

Na fazenda Engenho do Mato de São Sebastião, a devassa encontrou plantadas duas roças de milho (32 alqueires), uma de feijão (11 alqueires), um canavial (1,5 quarta de milho) e uma de arroz (20 alqueires). Ali existiam ainda casas de vivenda e sobrados cobertos de telhas, um engenho de moer cana-de-açúcar com bois, moinho, paiol, casas de tropa e monjolo, tudo coberto de telhas, senzala coberta de capim e um alambique. Os rendimentos dessa propriedade, declarados por Maria Inácia, foram os seguintes:

Tabela V Rendimentos - Fazenda do Engenho

(2 de junho de 1793 a 12 de novembro de 1796) 1791 1792 1793 1794 1795 1796 Rendimentos

Totais (em réis)

97X412ü_ 38X975 41X082 41S075 218X544 '/2 Fonte: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires

Gomes", fl. 296.

Pelos números apresentados acima, dá para se perceber que a propriedade foi sendo "aparentemente" abandonada pela família ao longo dos anos (ou será que a apresentação de números baixos foi estratégia!). É interessante ressaltar que a grande produção agrícola do ano de 1791 não foi quantificada nas listas de rendimentos elaboradas pela esposa de nossa personagem.

Mais uma vez, o que aconteceu com os dividendos das roças de 1791 ? Será que "esqueceram" novamente de lançar nos documentos essa produção? A "miopia" - "agrária" - dos inquiridores foi impressionante: ora não anotaram o que se plantavam, ora não conferiram o que estava plantado com os dados apresentados pelos fiéis depositários em suas prestações de contas. Novamente, fiquemos com a dúvida...

Os totais apresentados pelas listagens de rendimentos das quatro fazendas, entre 1791 e 1796, foram os seguintes:

Tabela VI Rendimentos Totais das Fazendas da Borda do Campo, da Mantiqueira,

do Confisco e do Engenho (1791 a 1796) Propriedade" Rendimentos (em réis)

rdfr do Campe ¿queira

74 on ti sco o h.ngenho

Total GeraT 7TT57SÜM" Fonte: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires

Gomes", fis. 294-296.

Além dos rendimentos, apresentaram-se também listagens contendo as despesas de custeio que cada uma daquelas fazendas teve entre os anos de 1791 e 1796. Os números apresentados a seguir foram anotados a partir de oito borradores. Somente no primeiro se percebe o quanto cada uma das propriedades gastou com sua manutenção. Os dados coligidos do segundo até o oitavo caderno foram anotados como se fossem um único.

No borrador n° 1, os dados respectivos às fazendas da Borda do Campo, Mantiqueira, Calheiros e Engenho foram os seguintes:

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Tabela VII Borrador n° 1

Fazendas da Borda do Campo, da Mantiqueira, do Confisco e do Engenho (2 de junho de 1791 a 12 de novembro de 1796)

Propriedade Despesas (em réis)

Fazenda da Borda do Campo 1:840$616 Fazenda da Mantiqueira 733$080 Fazenda Confisco 153S453 Fazenda Engenho 166$547 '/2

Outras despesas de custeio 260$303 '/4 Fonte: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires

Gomes", fl. 297.

Tabela VIII Borradores n" 2 ao 8

Fazendas da Borda do Campo, da Mantiqueira, do Confisco e do Engenho (2 de junho de 1791 a 12 de novembro de 1796)

Borrador Despesas (em réis)

N° 2 637$051 % N° 3 660$095 3/4

N° 4 487$105 % N° 5 179$258 % N° 6 313$083 3/4 N° 7 411 $231 y2

N° 8 1:736$547 V4 Fonte: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires

Gomes", fl. 297-297v.

O valor total das despesas expressas nos borradores foi de 7:578$373 réis, o que equivale dizer que esta quantia foi maior do que a registrada nos créditos (7:157$064 réis). A diferença entre ambos, ou seja, o déficit, foi de 421 $309 réis.

Por tudo o que foi apresentado, José Aires Gomes pode ser considerado o maior proprietário de terras da região da Borda do Campo.

Notas 1 Estudos como os de G U I M A R Ã E S , Carlos Magno; REIS, Liana Maria. Agricultura e caminhos de Minas (1700/1750). REVISTA D O

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 4, p. 85-99, 1987; CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999; FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e familia no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999; M E N E Z E S , José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento al imentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça, 2000; SILVA, Flávio Marcus da. Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo Horizonte, 2002. 241 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas , Universidade Federal de Minas Gerais; entre outros, vão por esse caminho.

2 Conferir : CHAVES, op. cit. Virgílio Noya Pinto apresentou-nos as seguintes médias qüinqüenais da cobrança dos quintos sobre o ouro:

1745-1749 = 1.889,3 kg 1765-1769 = 1.297,2 kg 1785-1789 = 685,6 kg

1750-1754= 1.708,8 kg 1770-1774 = 1.203,9 kg 1790-1794 = 656,4 kg

1755-1759 = 1.560.4 kg 1775-1779 = 1.076,0 kg 1795-1799 = 623,2 kg

1760-1764= 1.440,3 kg 1780-1784 = 953,3 kg

Fonte: PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1979, p. 65.

3 Z E M E L L A , Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1990, p. 65. 4 Quanto a questão do milho, ver o estudo "Uma civilização do milho", da obra de H O L A N D A , Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras.

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3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 181-189, que detalha essa cultura. Anterior a este estudo, Caio Prado Júnior já chamava a atenção para a utilização do milho na subsistência em Minas Gerais. Conferir: P R A D O JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo - colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, p. 157-169.

5 G U I M A R Ã E S ; REIS, op. cit., p. 91. 6 Sobre detalhes acerca do abastecimento de Minas Gerais, vale a pena conferir o terceiro capitulo "Os mercados abastecedores das Gerais",

em Z E M E L L A , op. cit. p. 55-114. Outro estudo importante é o de ELLIS, Myriam. Contribuição ao estudo do abastecimento das zonas mineradoras do Brasil no século XVIII. REVISTA DE HISTÓRIA, São Paulo: DH/FFCL/USP, n. 36, p. 429-467, 1958. Além destes, o abastecimento interno mineiro pode ser observado, por exemplo, nos estudos de LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da corte na formação política do Brasil: 1808-1848. 2. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes; Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural; Divisão de Editoração, 1993; MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: C E D E P L A R , 1982; Idem. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego a escravidão em uma sociedade não-exportadora. ESTUDOS E C O N Ô M I C O S , São Paulo: IPE-FEA/USP, v. 13, n. 1, p. 181-209, 1983; Idem. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra ve:. Belo Horizonte: U F M G / C E D E P L A R , 1994, e nos indicados na nota n. 1.

7 CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais: notas sôbre a cultura da decadência mineira setecentista. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1968, p. 74.

s Idéia presente em, por exemplo, SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da Conjuração Mineira, 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, tomo I, p. 94; SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Uma fazenda histórica - Borda do Campo. REVISTA DO INSTITUTO H I S T Ó R I C O E G E O G R Á F I C O BRASILEIRO, Rio de Janeiro, t. 72, n. 120, p. 127-151, 1909; BASTOS, Wilson de Lima. A fazenda da Borda do Campo e o inconfidente José Aires Gomes. Juiz de Fora: Paraibuna, 1992; JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio dc Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989, p. 163; VIEIRA, José Crux Rodrigues. Tiradentes: a Inconfidência diante da história. Belo Horizonte: 2° Clichê Comunicação & Design Ltda., 1993, tomo II, v. 2, p. 461; SOUZA, Laura de Mello e Souza. Famílias de sertanistas: expansão territorial e riqueza familiar em Minas na segunda metade do século XVIII. 17 f. Mimeografado, p. 6; OLIVEIRA, Tarquinio José Barbosa de. Notas. In: Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial do G o v e m o do Estado de Minas Gerais, 1978, v. 2, p. 399; S C H N O O R , Eduardo. Os senhores dos caminhos: a elite na transição para o século XIX. In: PRIORE, Mary dei (Org.). Revisão do paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 201.

9 C E N T R O DE E S T U D O S MINEIROS. Acervo da Família Andrada. Propriedade da Família, Caixa 3. P3. "Livro de dívidas", fl. 1. Doravante: CEM/AFA/PF.

10. Ibidem, fl. I.

" . A carta precatória, movida pelo desembargador e juiz dos feitos do contencioso da Real Fazenda, Antônio José Duarte de Araújo Gondim, datada de 1816, e contrária a João Ribeiro Gomes, foi ocasionada por pendências financeiras deixadas por José Aires Gomes, na importância de 660$ 143 réis, quando foi fiador nos contratos de dízimos da capitania de Minas Gerais, arrematados pelo rendeiro João Rodrigues de Macedo. Para cobrir o déficit, foram-lhe seqüestradas duas sesmarias e dois escravos, postos à venda em leilão. Conferir: Idem, Caixa 3. P17. Carta precatória.

12 A disponibil idade de terras foi estudada por M O N T E I R O , John Manuel . Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 113-128; FARIA, op. cit., p. 121-134.

13 A diferenciação social e económica entre os setores proprietários fluminenses no princípio do século XIX, a dinâmica e a dimensão atingidas pelo mercado interno que teve o Rio de Janeiro como centro e seus enraizamentos pelo eentro-sul da América portuguesa, a partir de meados do setecentos, podem ser observados em OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista: EDUSF; ícone, 1999. Com enfoque teórico-metodológico diferente desta autora, João Luís Fragoso, com base em ampla bibliografia e em vastas fontes primárias, tais como inventários, registros de tropeiros, hipotecas, escrituras de compra e venda e termos de entradas de embarcações no porto do Rio de Janeiro, analisou as formas de acumulação da economia mercantil e escravista fluminense, que englobava as regiões Sudeste e Sul. O tema dos escravos e camponeses no complexo agropecuário mineiro, voltados ao abastecimento interno e aos vínculos mercantis entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, pode ser examinados em F R A G O S O , João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 123-134; F R A G O S O , João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, C.1790-C. 1840. 3. ed. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

1 4 Por exemplo, o sertanista e inconfidente Inácio Correia Pamplona notabilizou-se entre os anos 1760 e 1780 como grande exterminador de índios e qui lombolas , o que lhe valeu prestígio e sesmarias. Conferir: SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 115-128; BARBOSA, Waldemar de Almeida. A decadência das Minas e a fuga da mineração. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1971, p. 117-137. Ver também FARIA, op. cit., p. 121-127.

15 CEM/AFA/PF, Caixa 3. P17. "Carta precatória", fl. 50. Não sabemos ao certo como José Aires Gomes adquiriu dinheiro para comprar aquelas terras, mas podemos supor que parte do dinheiro tenha vindo da herança / do dote que recebeu para ingressar na carreira eclesiástica; outra parte, poderia ter vindo dos negócios que, desde o início da década de 1770, passou a administrar e a gerir na serra da Mantiqueira.

16 CEM/AFA/PF, Caixa 3. P17. "Carta precatória", fls. 32v-36. Itálico nosso. 17 S A M A R A , Eni de Mesquita. O papel do agregado na região de Itu: 1780 a 1830. COLEÇÃO MUSEU PAULISTA. São Paulo: Fundo de

Pesquisa do Museu Paulista da USP, 1977, p. 13-16; 41-42. 18 Ibidem, p. 41. 19 Ibidem, p. 43. O que distingue o meeiro (ou parceiro) de um agregado é que este "morava de favor" em território de terceiros e não pagava

aluguel (foro) pela terra, sendo-lhe permitido uma pequena agricultura de subsistência, só que em troca prestava os mais variados serviços ao proprietário, como, por exemplo, impedir invasões nas terras ou furtos de madeira e animais. Conferir: ARAUJO, Emanuel. Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o sertanejo nos tempos coloniais. In: PRIORE, Mary dei (Org.). Revisão do paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 71.

2 0 MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da província de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, v. l , p . 128.

2 1 Essa idéia foi extraída do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner (1861-1932), que atribuiu particular importância à fronteira aberta (fronteira móvel) na formação da sociedade e da personalidade do povo norte-americano, resultando no desenvolvimento que percorreu o território, desde a costa do oceano Atlântico até o oceano Pacífico. O pioneiro do Oeste caracterizava-se pela grande mobilidade geográfica e social e um grande desejo de liberdade e democracia, associado à idéia de fronteira móvel. Estava sempre em mudança, sempre sonhando que no próximo lugar conseguiria a prosperidade pessoal. Não aceitava limites a sua mobilidade. Os "homens da fronteira", como se chamavam os pioneiros, habituaram-se ao autogoverno, elegendo todos os funcionários dos municípios como servidores do povo. Os eleitos, em geral, eram homens bem-sucedidos, tanto social, quanto economicamente. Essa democracia do Oeste apoiava-se em princípios básicos. Um deles era o individualismo, segundo o qual o pioneiro achava que não devia haver intromissão do governo nos direitos de propriedade c que cada indivíduo se juleava um capitalista em potencial, já que podia apropriar-se dc imensidões de terras, fosse comprando ou simplesmente ocupando.

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O outro era na igualdade entre os homens, desde que não fossem mexicanos, negros ou indígenas. Além disso, o " h o m e m da fronteira" era nacionalista e estava certo que ao adentrar rumo ao interior do continente, estava levando a democracia e a civilização aos povos indígenas, t idos como bárbaros. Em suas reflexões, Frederick Turner omitiu a luta pela terra e a invasão dos territórios indígenas. O homem da fronteira que criou não corresponde à idílica suposição de que a fronteira é o lugar de autogestão e liberdade, à medida que o homem que lá reside estaria menos sujeito aos constrangimentos da lei e do Estado, e mais sujeito à própria iniciativa na defesa de sua pessoa, de sua família e de seus bens. Conferir: T U R N E R , Frederick Jackson. The significance o f t h e frontier in American history. In: The frontier in American history. New York: R. E. Krieger Publishing Company, 1976, p. 1-38.

1 1 MOTTA, Márcia Maria Mcnendes. Nas fronteiras do poder, conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura; Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 45.

2 3 Requer imento de Narciso da Costa, solicitando a D. João V a mercê de lhe confirmar a doação, em sesmaria, de meia légua de terra em quadra, na freguesia da Borda do Campo. 27/09/1751. A R Q U I V O HISTÓRICO ULTRAMARINO, Caixa 58, doe. 79. (microfi lme - ARQUIVO P U B L I C O MINEIRO). A temática de luta por direitos nas áreas agrícolas pode ser observada no belo estudo de MOTTA, op. cit. e na análise que Edward Palmer Thompson realizou sobre o setecentos inglês, traçando um painel histórico dos costumes, da noção de direitos, dos motins de fome, das alterações trazidas pelo capitalismo ao tempo de trabalho c as manifestações de cultura popular. Conferir : T H O M P S O N , E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosana Eiseniberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 150-266. Por exemplo, as análises de Carla Anastasia sobre os motins nos primeiros anos das Minas Gerais vão por esse caminho. Ver: ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XV111. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.

2 4 Sobre a viagem do governador dom Rodrigo José de Meneses aos sertões da Mantiqueira, conferir: RODRIGUES, André Figueiredo. Os sertões proibidos da Mantiqueira: desbravamento, ocupação da terra e as observações do governador dom Rodrigo José de Meneses. REVISTA B R A S I L E I R A DE HISTÓRIA, São Paulo, v. 23, n. 46, p. 253-270, 2003.

2 5 Estas idéias estão presentes em LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Terra prometida: uma história da questão agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 48.

2 6 CEM/AFA/PF, Caixa 3. P12. Escritura de compra e venda da fazenda da Borda do Campo; INSTITUTO H I S T Ó R I C O E G E O G R Á F I C O BRASILEIRO (de agora em diante IHGB). Traslado de auto de seqüestro feito em bens do coronel José Aires Gomes. Igreja Nova (Barbacena). Maio / junho de 1791, fls. 4v-10.

2 7 1 H G B , op. cit., fls. 19-22. 2 8 H O L A N D A , op. cit., p. 186. 2 9 IHGB, op. cit., fls. 20-21v [fazenda do Engenho]; fls. 24v-25 [fazenda Passa Três]; Sentença cível de formal de partilhas passadas a

favor do desembargador procurador da Real Fazenda desta capitania de Minas Gerais Antônio de Brito Amor im dos autos de seqüestro a que se procedeu dos bens do seqüestrado inconfidente José Aires Gomes. REVISTA DO A R Q U I V O P Ú B L I C O MINEIRO, Belo Horizonte, ano 38, p. 106. Doravante S E N T E N Ç A .

3 0 IHGB, op. cit., ü. 24v. 3 1 SAINT-H1LAIRE, Auguste de. Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi Moreira. Belo Horizonte:

Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p. 106. 3 2 O inventário de Ana Maria dos Santos foi localizado por Ângelo Alves Carrara no Arquivo do Museu Regional de São João dei Rei,

quando pesquisou os horizontes agrários mineiros setecentistas. Conferir: C A R R A R A , Angelo Alves. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807). Rio de Janeiro, 1997. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 107.

33 Códice Costa Matoso. [Engenho de açúcar e aguardente, azeite de mamona e farinhas de mandioca e de milho], ca. 1750. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999, p. 773-777; Idem. Farinha de mandioca ou de pau, ca. 1750, p. 777-782; B A R B O S A , op. cit., p. 216; M A G A L H Ã E S , Beatriz Ricardína de. Notas para um estudo. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG; Fundação João Pinheiro, n. 21, p. 33-41, 1999; p. 37-38.

3 4 A R Q U I V O P Ú B L I C O MINEIRO. Seção Colonial, Códice 224, fl. 38v. 3 5 IHGB, op. cit., fls. 16v-17; 24v. Na Sentença... dos bens de José Aires Gomes, encontramos referência a "uma carta de Caetano José da

Cunha de vinte c oito de janeiro de cinqüenta e nove, pela qual se constitui devedor de cinco libras de farinha de trigo" [= 2,3 quilos], In: Sentença, op. cit., p. 105.

3 6 Auto de seqüestro de bens ao coronel José de Resende Costa. Laje. 20-23/05/1791. In: Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, op. cit., v. 6, p. 426-429; Traslado do seqüestro feito ao vigário Carlos Correia de Toledo. São José do Rio das Mortes. 25/05/1789. In: Ibidem, p. 76; IHGB, op. cit., fl. 21.

3 7 O tenente-coronel José Lopes de Oliveira, natural da freguesia de Santa Maria do Olival da cidade do Porto (Portugal), fundou em 1736 a fazenda do Ribeirão de Alberto Dias, na freguesia da Borda do Campo. Em 1738 contraiu matr imônio com Bernardina Caetana do Sacramento Gonçalves Lage, natural de Simão Pereira (Minas Gerais). Do consórcio nasceram 11 filhos e destes destacam-se o padre José Lopes de Oliveira c o tenente-coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes (ambos participantes da Conjuração Mineira). Dentre as quatro mulheres geradas do casamento, a penúlt ima, Ana Quitéria Joaquina de Oliveira, também nascida na fazenda do Ribeirão de Alberto Dias, casou-se na capela de Nossa Senhora do Rosário c São José, da dita fazenda, em agosto de 1773, com o capitão Luís Alves de Freitas Belo, c levou como dote a fazenda paterna de Alberto Dias e mais 14 mil cruzados (= 5 contos e 600 mil réis) e 12 escravos. A filha de ambos - Bernardina Quitéria - casar-se-ia com Joaquim Silvério dos Reis, e outra - Maria Cândida - com Francisco de Lima e Silva (brigadeiro e regente do Império), pai de Luís Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias. Conferir : BELLO, Luiz A. de Oliveira. Foi da fazenda "A Caveira de Cima" que Joaquim Silvério partiu para denunciar os inconfidentes - A fazenda do "Ribeirão de Alberto Dias" nunca pertenceu a Joaquim Silvério. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E G E O G R Á F I C O DE MINAS GERAIS, Belo Horizonte, v. 4, p. 217-218, 1957; JARDIM, op. cit.. p. 305.

3 8 Depois do tenente-coronel José Lopes de Oliveira, as maiores dívidas foram as de Tomás da Costa Maia, morador no Bom Jardim e que devia 250 oitavas de ouro (= 3005000 réis); Tomás da Silva, residente na fazenda Chiqueirinho, na paragem do Barroso, que devia 200 oitavas (= 240$000 réis); Manuel de Azevedo Matos, proprietário de terras apossadas também na paragem do Barroso, devia 120 oitavas (= 144S000 réis); Antônio de Souza, residente no Facão, entradas de Manuel Teixeira, devia 110 oitavas de ouro (=132$000 réis); José Dutra da Silveira, morador nos matos gerais da Ressaca, na paragem do Palmital da Pedra Menina, e José Martins, morador no Salto da Paraopeba, junto a Conquista, deviam cada um a importância de 100 oitavas (120$000 réis). Conferir: ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Coleção Casa dos Contos de Ouro Preto, Códice 2030, fls. 17; 41; 11; 41; 43; 47.

3 9 A R Q U I V O PÚBLICO MINEIRO. Coleção Casa dos Contos de Ouro Preto, Códice 2030, fl. 19.

4 0 C A R R A R A , op. cit.,p. 129.