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Maré de campeão Clube Náutico Belém Novo Porto Alegre, Rio Grande do Sul Maikou André Brunhera 14anos O bairro de Belém Novo, às margens do rio Guaíba, no sul de Porto Alegre, preserva o estilo de vida pacata, como se fosse uma cidade do interior. O local, que sediou no século XIX uma colônia de pescadores, já no início de sua ocupação teve uma forte cultura náutica. Hoje essa tradição é resgatada pelo projeto Vela Social, ação que traz ventos de renovação para a vida de muitos adolescentes da comunidade. Maikou André Brunhera, de 14 anos, conta que, desde sua entrada no projeto, há dois anos, sente que sua vida progrediu: “Meu comportamento me- lhorou em casa e na escola. Antes ficava só dormindo de tarde, não fazia nada de bom”. Preocupada com tantas horas vagas, a mãe de Maikou direcionou-o para a vela, mas o garoto não encarou isso como castigo. Ao contrário. Abraçou a oportunidade – afinal velejar é um esporte de elite e poucos adolescentes de comunidades pobres têm a chance de praticá-lo. Vela, para essa garotada das periferias, é esporte que se vê na televisão. “Aprendi muito e fiz amigos”, diz ele. Para Sérgio Benatto Pacheco, de 49 anos, ex-competidor da categoria Laser e criador do projeto instalado no Clube Náutico Belém Novo, a vela ajuda no desenvolvimento dos meninos. “Velejar faz a criançada pensar com precisão e tomar decisões o tempo todo; não dá para parar”. Na escola, Maikou é um dos alunos mais velhos da turma. Está no 7º ano do Ensino Fundamental. “Mas agora sou cobrado pelo Benatto e preciso ficar mais esperto nas aulas”, diz o menino. O empenho, ele mesmo explica: “Quero ser velejador profissional”. Independentemente de vir a ser um medalhista, Maikou já coleciona ensinamentos campeões. Aprendeu a nadar no Guaíba e a pescar, duas atividades fundamentais para meninos que são vizinhos de um rio. “Hoje, velejo, nado e pesco. Sei costurar uma rede e tirar o peixe de lá, sei jogar essa mesma rede no rio. Aprendi até os nomes dos peixes que já fizemos de almoço e que já levei pra casa”, orgulha-se o garoto, integrado ao meio ambiente do bairro em que vive.

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Maré de campeão

Clube Náutico Belém NovoPorto Alegre, Rio Grande do Sul

Maikou André Brunhera14anos

O bairro de Belém Novo, às margens do rio Guaíba, no sul de PortoAlegre, preserva o estilo de vida pacata, como se fosse uma cidade dointerior. O local, que sediou no século XIX uma colônia de pescadores, jáno início de sua ocupação teve uma forte cultura náutica. Hoje essatradição é resgatada pelo projeto Vela Social, ação que traz ventos derenovação para a vida de muitos adolescentes da comunidade. MaikouAndré Brunhera, de 14 anos, conta que, desde sua entrada no projeto, hádois anos, sente que sua vida progrediu: “Meu comportamento me-lhorou em casa e na escola. Antes ficava só dormindo de tarde, não fazianada de bom”.

Preocupada com tantas horas vagas, a mãe de Maikou direcionou-opara a vela, mas o garoto não encarou isso como castigo. Ao contrário.Abraçou a oportunidade – afinal velejar é um esporte de elite e poucosadolescentes de comunidades pobres têm a chance de praticá-lo. Vela,para essa garotada das periferias, é esporte que se vê na televisão.“Aprendi muito e fiz amigos”, diz ele.

Para Sérgio Benatto Pacheco, de 49 anos, ex-competidor da categoriaLaser e criador do projeto instalado no Clube Náutico Belém Novo, a velaajuda no desenvolvimento dos meninos. “Velejar faz a criançada pensarcom precisão e tomar decisões o tempo todo; não dá para parar”.

Na escola, Maikou é um dos alunos mais velhos da turma. Está no 7ºano do Ensino Fundamental. “Mas agora sou cobrado pelo Benatto epreciso ficar mais esperto nas aulas”, diz o menino. O empenho, elemesmo explica: “Quero ser velejador profissional”. Independentementede vir a ser um medalhista, Maikou já coleciona ensinamentos campeões.Aprendeu a nadar no Guaíba e a pescar, duas atividades fundamentaispara meninos que são vizinhos de um rio. “Hoje, velejo, nado e pesco.Sei costurar uma rede e tirar o peixe de lá, sei jogar essa mesma redeno rio. Aprendi até os nomes dos peixes que já fizemos de almoço e quejá levei pra casa”, orgulha-se o garoto, integrado ao meio ambiente dobairro em que vive.

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volva o turismo náutico por aqui, e que esse projetotenha atividades capazes de gerar emprego e rendapara os meninos”. Para isso, há aulas de marinharia,noções de navegação e carpintaria náutica. Outro obje-tivo, diz Benatto, é formar campeões de vela. “E por quenão?”, pergunta-se, orgulhoso.

Ecossistema

O rico ecossistema da região é outro viés de for-mação para os meninos de Belém Novo. Quem conta éAmaniú Fetter, 31 anos, educador ambiental. Ele ex-plica que, na época das cheias, as mudas da vegetaçãoque brotam durante a seca ficam cobertas de água eacabam se afogando. Por isso, os futuros velejadoressão instruídos a retirá-las e replantá-las na ocasiãoapropriada, recuperando a mata ciliar das margens daregião, onde há belos exemplares de sarandis, ingás,corticeiras e jacarandás, a árvore-símbolo de Porto Alegre.

Nos últimos meses, os alunos do projeto abraçaramnovo desafio: começaram entre a vizinhança um projetode educação ambiental, para evitar que o rio fossepoluído gradativamente por óleo de cozinha usado. Umlitro de óleo usado é capaz de contaminar um milhão delitros de água.

A missão era convencer os vizinhos a não mais jogaróleo usado nas águas do rio. Hoje, 100 litros de óleousado por mês deixaram de poluir as águas e sãoredirecionados para uma empresa que faz a transfor-mação em biodiesel. “Repetimos tantas e tantas vezes

“Mesmo que Maikou não seja um campeão, certa-mente vai ter muito que ensinar a outros meninos aquido projeto, que, no futuro, serão seus alunos”, dizLimeidior Oreste Barcelos, de 20 anos. Ele mesmo é umexemplo disso. Fez parte da primeira turma develejadores-mirins, quando tinha 14 anos, e hoje éinstrutor. “Éramos uma turminha de bagunceiros. OBenatto deve os cabelos brancos a nós”, lembra, rindo.“Hoje pego no pé dessa turma para que tenhamdisciplina. Aqui nos divertimos, e o ambiente é muitodescontraído, mas tem a hora de falar sério”.

Tradição

Maikou, Limeidior e os outros garotos do projetoaprendem que a história da comunidade é toda ligadaàs águas do Guaíba. Na praia, há uma canoa, talhada emtimbaúba, que pertenceu a um lendário pescador local,conhecido como Bagre, bisavô de “seu Pituca”, aindavivo e morador da comunidade. Reza a lenda que, em1961, a imponente embarcação de cinco metros com-pletou 100 anos e que foi reformada naquela ocasião.Uma nova operação de restauro está marcada para esteano para simbolizar o renascimento da cultura náutica,que passou anos desvalorizada.

Inspirado no Instituto Rumo Náutico, projeto doscampeões de vela dos irmãos Grael, em Niterói, no Riode Janeiro, que também contou com o apoio do CriançaEsperança, Benatto enxerga além do horizonte atual deBelém Novo. “Nossa intenção é que, no futuro, se desen-

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que o rio é único e que estas são as águas que eles usarão a vida inteira deles para velejar e para pescar, que elesfinalmente entenderam o conceito de que o rio é um patrimônio”, diz Amaniú.

Os alunos também velejam até praias distantes para recolher o lixo que, sem a participação dos meninos, seriatrazido para o rio pelas marés. “Tudo vira brincadeira, a gente não vai só recolher lixo. Para chegar até lá, a gentefaz um velejo, segue uma trilha”, conta Maikou.

Para grande parte dos oitenta alunos do projeto, as práticas ambientais misturam-se ao sonho de subir aopódio. Com os oito barcos da categoria Open BIC – um intermediário entre o Optimist e o Laser – comprados comrecursos do Criança Esperança, os meninos de Belém Novo já dominam a categoria no Rio Grande do Sul. Entrenovembro e dezembro deste ano, três deles irão a Porto Rico disputar o Mundial. Nosso personagem Maikou estábrigando pela vaga.

É aí que entra a garra de tantos Maikous Brasil afora. Mesmo no inverno rigoroso de Porto Alegre, que, alémde frio, é úmido, nenhum deles se esquiva de se lançar às águas com temperatura de até 3 graus. “Para quemnasce nas periferias das grandes cidades, o esporte surge como uma opção de vida”, diz Benatto, ressaltando agarra dos meninos. Bons ventos na água e na vida!

Projeto une esporte a atividades de conservação ambiental. Objetivo é evitar que óleo de cozinha usado seja despejadonas águas do rio, causando ainda mais poluição.

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Esse foi o ano em que institutos de pesquisa,

fundações e organizações internacionais co-

meçaram a divulgar estudos sobre a realidade

dos jovens brasileiros. A ideia de que a edu-

cação é capaz de transformar uma sociedade

começava a ser debatida no Brasil – os jornais

de circulação nacional, como Folha de S. Paulo,O Estado de S. Paulo e O Globo dedicaram es-

paço ao tema em sua cobertura diária. A Rede

Globo e suas afiliadas criaram o programa

Amigos da Escola, com o objetivo de contri-

buir para o fortalecimento da educação e da

escola pública de educação básica.

O Brasil viu a taxa de analfabetismo cair

22,6% em relação a 1992, passando de 17,2%

para 13,3%. Entre os adolescentes de 15 a 17

anos, a queda foi de 54,8%, passando de 8,2%

para 3,7%. A despeito disso, a gravidez pre-

coce, sinal de falta de projeto de vida entre as

jovens e uma das maiores causas de evasão es-

colar, mostrava-se um problema de grandes

proporções: 27% dos partos realizados em

1999 no Sistema Único de Saúde (SUS) eram

de jovens entre 10 e 19 anos, o que, em núme-

ros absolutos, significava aproximadamente

705 mil adolescentes.

Homicídios

Enquanto isso, cresceu no país o número

de homicídios que tinham os jovens como

protagonistas – na condição de autor ou vítima –

e o trabalho infantil consolidou-se como uma

das principais mazelas da infância no país. A

UNESCO lançou a segunda edição do “Mapa

da Violência”, revelando o envolvimento dos

jovens em episódios de mortes violentas e

1999

Jovens elegem violência e

desemprego como principais

problemas do país

A TV Globo e suas afiliadas lançam o programa Amigos da Escola

com o objetivo de contribuir com o fortalecimento da escola pública

aprofundando a discussão sobre o tema.

As publicações, com ampla visibilidade na

mídia, contribuíram para que a sociedade

passasse a refinar sua percepção sobre os di-

reitos das crianças e dos adolescentes. As vio-

lências sexual e doméstica, até então tratadas

como assuntos de esfera privada, deixavam de

ser vistas como “parte da ordem natural das

coisas”, para se enquadrar em questões de

natureza criminal.

No mesmo ano, a UNESCO publicou a pes-

quisa “Gangues, galeras, chegados e rappers”,

um estudo de caso sobre os jovens nas cida-

des-satélite de Brasília. O trabalho demons-

trou a realidade de meninos e meninas, a forma

como se organizavam e suas constatações

acerca da violência e da exclusão social. Era o

início de uma série de estudos que passariam

a ser feitos tendo a escola como centro.

Novembro ficou marcado pela Campanha

Nacional do Registro Civil, com o objetivo de

registrar todas as crianças logo depois do

nascimento. À época, mais de um milhão de

meninas e meninos brasileiros não tinham as-

segurado seu direito a um nome.

Desemprego

Em dezembro, pesquisa realizada pela

Fundação Perseu Abramo em nove regiões

metropolitanas do país revelou que a maioria

dos jovens de 15 a 24 anos afirmou estar

trabalhando ou procurando algum tipo de

ocupação profissional. O desemprego e a vio-

lência foram considerados por eles como os

principais problemas do país, seguidos de

administração política, fome e miséria, edu-

cação e drogas. A maior preocupação tinha

razão de ser: de 1989 a 1999, o número de

óbitos por homicídios de jovens aumentou

51,6% – taxa em muito superior ao aumento

de homicídios na população total, que foi

de 45,5%. Os rapazes foram as maiores víti-

mas desse tipo de crime (em apenas 7% dos

homicídios registrados em 1998 nessa faixa

da população, a vítima era do sexo feminino).

Trabalho

Ainda em 1999, foi lançado o Plano Nacio-

nal de Enfrentamento do Trabalho Infantil e da

Violência Sexual. Mais de 618 mil meninas e

adolescentes eram empregadas domésticas

no Brasil, trabalhando em casas de famílias

de classe média. A exploração, em muitos

casos, começava bem cedo: 18,6% dessas bra-

sileiras tinham de 10 a 15 anos, enquanto

27,9% tinham 16 e 17 anos. Além disso, milha-

res de crianças trabalhavam na coleta de lixo

ou diretamente nos lixões.

Quando o UNICEF lançou a campanha

Criança no Lixo, Nunca Mais – pela erradi-

cação do trabalho infantil nos lixões e na coleta

de lixo nas ruas –, 15 crianças que viviam essa

realidade passaram a participar do Programa

de Erradicação do Trabalho Infantil, com pa-

gamento de bolsa-escola para suas famílias.

Era só o começo. O especial Criança Esperança

denunciou a violência contra a criança, o aban-

dono e a presença delas em lixões. Com o clima

do Brasil 500 Anos, participaram do evento os

atletas da equipe brasileira de ginástica rítmica,

ganhadora da medalha de ouro nos Jogos Pan-

Americanos de Winnipeg, no Canadá.

CO

NTEXTO

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“Ao longo dos últimos anos como diretor geral adjunto da UNESCO, em Paris, conheci diversasiniciativas de mobilização de muitos países do mundo.  O Criança Esperança me impressiona pelo seupotencial para transformar a realidade. Um dos meus primeiros contatos com o Programa foi quandoassisti a uma apresentação de dança do Grupo Edisca, ONG apoiada pelo Criança Esperança. Quandoouvi a história daquelas meninas – muitas haviam se prostituído nas ruas de Fortaleza, e estavam alicheias de orgulho, se apresentando na França –, fiquei encantado. O contato com os beneficiários medeu a dimensão e a importância do Criança Esperança. A parceria entre a TV Globo e a UNESCO vemamadurecendo muito e é um modelo de sucesso que pode perfeitamente ser replicada em outros paísesdo mundo.”

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Foto

: Arq

uivo

UN

ESCO

Márcio BarbosaDiretor-geral adjunto da UNESCO de 2001 a 2010 

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