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Saúde e cidadania Associação Saúde Criança Rio de Janeiro, RJ Giulya Abreu da Silva 2 anos A pequena Giulya, de 2 anos, passou boa parte de sua história internada em hospitais. Logo ao nascer, encarou a primeira batalha pela vida: sua mãe, Luana Emília de Abreu, tinha apenas seis meses e três semanas de gestação quando os médicos decidiram induzir o parto. Ela havia contraído dengue hemorrágica. “A gravidez toda foi complicada. Eu estava fazendo um tratamento de cisto no ovário e só descobri que estava grávida depois de quatro meses”, conta Luana. Durante a cesariana, a mãe perdeu sangue por quase três horas, teve de retirar o útero e o ovário e, mais que isso, sofreu por ver a fragilidade da filha. Giulya também foi contaminada pela dengue. Teve um derrame na pleura, a membrana que reveste os pulmões e a parte interna da parede torácica. Passou 60 dias no Centro de Terapia Intensiva, 12 deles entre a vida e a morte. Chegava a ter seis crises respiratórias por dia. Passada a parte mais crítica, uma série de exames constatou que a menina tinha um sopro no coração e problemas neurológicos que causavam refluxo, problema gástrico que provoca desconforto res- piratório. Voltou a ser internada. Para piorar, descobriu-se que o bebê era alérgico a lactose, corantes e picadas de inseto. Abalada, a mãe entrou em depressão e o marido, que é pai de Giulya e de seus outros quatro filhos, se afastou de casa. “A crise respiratória só atacava durante o sono. Eu praticamente não dormia. Minha vida passou a ficar voltada para ela. Sofri pela Giulya e por eles”, lembra Luana, refe- rindo-se aos outros filhos, que foram distribuídos pelas casas de amigos. Oportunidade Hoje, Giulya está praticamente curada e desde outubro do ano passado não é internada. Sorri e brinca bastante – o que não fazia antes, por causa das recaídas. O que mudou a vida dela? Após uma nova internação no Hospital da Lagoa, a menina foi encaminhada à Asso- ciação Saúde Criança, que funciona dentro do Parque Lage, a poucos metros do Hospital. “Hoje ela bebe um leite especial, o grau de refluxo

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Saúde e cidadania

Associação Saúde CriançaRio de Janeiro, RJ

Giulya Abreu da Silva2anos

A pequena Giulya, de 2 anos, passou boa parte de sua históriainternada em hospitais. Logo ao nascer, encarou a primeira batalha pelavida: sua mãe, Luana Emília de Abreu, tinha apenas seis meses e trêssemanas de gestação quando os médicos decidiram induzir o parto.Ela havia contraído dengue hemorrágica.

“A gravidez toda foi complicada. Eu estava fazendo um tratamentode cisto no ovário e só descobri que estava grávida depois de quatromeses”, conta Luana. Durante a cesariana, a mãe perdeu sangue porquase três horas, teve de retirar o útero e o ovário e, mais que isso,sofreu por ver a fragilidade da filha. Giulya também foi contaminadapela dengue. Teve um derrame na pleura, a membrana que reveste ospulmões e a parte interna da parede torácica. Passou 60 dias no Centrode Terapia Intensiva, 12 deles entre a vida e a morte. Chegava a ter seiscrises respiratórias por dia.

Passada a parte mais crítica, uma série de exames constatou que amenina tinha um sopro no coração e problemas neurológicos quecausavam refluxo, problema gástrico que provoca desconforto res-piratório. Voltou a ser internada. Para piorar, descobriu-se que o bebêera alérgico a lactose, corantes e picadas de inseto.

Abalada, a mãe entrou em depressão e o marido, que é pai de Giulyae de seus outros quatro filhos, se afastou de casa. “A crise respiratória sóatacava durante o sono. Eu praticamente não dormia. Minha vida passoua ficar voltada para ela. Sofri pela Giulya e por eles”, lembra Luana, refe-rindo-se aos outros filhos, que foram distribuídos pelas casas de amigos.

Oportunidade

Hoje, Giulya está praticamente curada e desde outubro do anopassado não é internada. Sorri e brinca bastante – o que não fazia antes,por causa das recaídas. O que mudou a vida dela? Após uma novainternação no Hospital da Lagoa, a menina foi encaminhada à Asso-ciação Saúde Criança, que funciona dentro do Parque Lage, a poucosmetros do Hospital. “Hoje ela bebe um leite especial, o grau de refluxo

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apenas a ponta de um iceberg. A miséria leva à doença,que leva ao hospital – e aí está um infindável círculovicioso. “A Associação Saúde Criança tem como objetivotransformar miseráveis em pobres. O pobre pode vivercom dignidade, mas o miserável, não”, diz Vera.

Depois do atendimento médico no hospital, faz-seuma entrevista, para entender o problema da família, edepois um plano baseado nos quatro pontos. “A famíliaconstrói junto conosco o planejamento estratégico davida deles nos próximos anos”, explica Vera. Se o estadoda casa é um potencial transmissor de doenças, pode-sereformá-la ou mesmo construir outra; todos os membrosda família são orientados a tirar os documentos neces-sários e a buscar os benefícios sociais disponíveis, bemcomo a matricular as crianças na escola. É nesse momento,um dos mais importantes, que o Criança Esperança apoiao Saúde Criança – na fase das visitas domiciliares, emque as equipes do projeto fazem as visitas para diag-nosticar as famílias e traçar as metas do Plano de AçãoFamiliar.

Em 90% das famílias atendidas, o chefe é a mulher,sem qualificação profissional. Por isso, sua renda é baixademais. Nesses casos, a Associação oferece um curso, deculinária ou de beleza, ambos com diplomas fornecidospelo Serviço Social da Indústria (SESI). Os pais nãoparticipam financeira ou afetivamente.

Em caso de displicência com o programa, a família édesligada do projeto, mas normalmente o que aconteceé o contrário: depois de dois anos de atendimentocontínuo, a família “recebe alta”.

melhorou, usa um repelente de uso contínuo e umainjeção aquosa contra as alergias”, conta Luana. “E tam-bém segue uma dieta feita por uma nutricionista, já queela tem restrição a vários alimentos”, diz.

A associação não realiza um trabalho meramenteassistencialista que, no caso de Giulya, não apenas entre-ga leite, repelente e vacinas. O trabalho da ONG baseia-seno Plano de Ação Familiar, o PAF, uma metodologia simplese revolucionária, criada em 1991 pela médica Vera Cordeiro.

Intrigada com a alta reincidência de pacientes napediatria, ela criou o departamento de Psicossomáticano Hospital da Lagoa, de onde era funcionária, e pes-quisou os efeitos dos fatores sociais e psicológicos sobreos pacientes e a relação disso com as doenças. “Existeuma interface grande entre os aspectos psicossomá-ticos e as doenças. Se a pessoa virou adulto, é porquesobreviveu. Mas, entre crianças, é vida ou morte, o tempointeiro”, diz Vera, de 60 anos.

Prêmios

O projeto recebeu, em 2003, o Global DevelopmentNetwork Award – prêmio de Projeto Social mais Inovadordo Mundo, em um concurso do qual participaramoutras 400 instituições de vários países. O Plano deAção Familiar compreende, além do combate direto àdoença, outros quatro pontos: educação, moradia, pro-fissionalização e cidadania. “Na verdade, eu não inventeinada novo: os filósofos pré-socráticos já diziam quesaúde é isso”, diz Vera. Resumindo: o ato médico não fazsentido sozinho, pois chegar doente ao hospital pode ser

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Resultados

Uma pesquisa realizada pela própria ONG com 370 famílias atendidas indicou que, nos últimos três anos, arenda média mensal delas subiu 32%. Outra amostra, feita com 147 famílias, verificou que as internações reduziram66%. Todos os dados da Associação Saúde Criança são auditados anualmente pela Delloite, uma consultoriainternacional.

O economista indiano Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz em 1996, conheceu o projeto durante eventorealizado pela Organização das Nações Unidas e declarou que o Saúde Criança é “uma poderosa ferramenta deinclusão social”. O escritor David Bornstein, por sua vez, dedicou um capítulo de seu livro “Como mudar o Mundo”ao projeto, que atendeu 36 mil pessoas ao longo dos 19 anos.

A metodologia do Plano de Ação Familiar foi exportada para 23 hospitais públicos (18 no Rio, dois em São Paulo,um em Florianópolis, um em Recife e um em Goiânia), que utilizam o selo Saúde Criança. A unidade catarinensetornou-se a primeira “franquia social” e outras sete devem aderir até o fim do ano. Ainda em 2010, a rede municipalde Belo Horizonte vai ganhar 26 centros semelhantes, assim como a favela do Pavão-Pavãozinho, no Rio.

Para manter-se, a Associação Saúde Criança tem um escritório de captação em Nova Iorque – o Brazil Children Health–, dois quiosques em shoppings cariocas, que vendem produtos confeccionados lá mesmo e recebe doações depadrinhos a partir de R$ 30. Uma doação de R$ 5 milhões do empresário Eike Baptista permitiu a criação de umfundo de investimentos da associação, gerenciado pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga.

Se deixasse de receber doações hoje, a ONG conseguiria sustentar-se por dois anos – e isso porque gastaR$ 615 mensais com cada uma das 250 famílias atendidas atualmente. “Temos uma fila de voluntários paratrabalhar. A frase que mais ouvi nos últimos 19 anos foi: ‘Recebi muito mais do que doei’. É preciso incluir os ricosno processo. Temos a terceira pior distribuição de renda mundial”, lembra Vera.

Para quem recebe atendimento, como Luana, o Saúde Criança é uma alternativa: “Cheguei a pensar em mematar, não via solução. O projeto foi uma janela no céu que se abriu para mim”.

O projeto trabalha com o conceito de saúde integral. Por meio de visitas domiciliares, assistentes sociais conhecem arealidade das famílias atendidas.

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A declaração de Elie Wiesel é apenas um

dos exemplos que ilustra um fato: o problema

dos meninos e meninas que viviam nas

ruas do Brasil não ficaria restrito ao debate

nacional. Prêmio Nobel da Paz em 1986, o

escritor romeno sobrevivente dos campos de

concentração nazistas fez um alerta dramático

sobre a situação social brasileira, escanca-

rando para o mundo a dimensão de um

drama que muitos aqui pareciam não notar:

“Sete milhões de crianças desabrigadas é um

holocausto por dia. É incompreensível que

nada se faça e que as pessoas não percebam o

potencial de explosão social dessa situação”.No Brasil, para parte da sociedade, esse

debate era novo e trazia aspectos complexos.O fato é que, após o pontapé inicial dado em1986, os cidadãos ouviram e leram, estar-recidos, declarações de gente importante sobreos meninos e meninas que viviam pelas ruasdo país. Os problemas não se restringiam àfalta de um teto – que, por si só, já tornavasub-humanas as condições de vida dos pe-quenos brasileiros que faziam parte dessesmilhões citados por Wiesel.

Compromisso público

De acordo com o antropólogo inglês Luke

Dowdney, que anos depois acabou se mu-

dando para o Rio de Janeiro para trabalhar

1987

Nobel da Paz compara crianças

que vivem nas ruas brasileiras

a Holocausto

Criança Esperança faz parceria com a Pastoral da Criança,

ONG que ajudou a reduzir a mortalidade infantil

em 50% entre 1990 e 2005

com violência e juventude, aqueles meninos

e meninas deixavam de ser apenas pólos

passivos da violência para se tornar agentes

armados da guerra urbana – e, obviamente,

vítimas dela. “Nos anos 1970, as crianças po-

diam estar no tráfico, mas não era de forma

armada. O menino era um mensageiro, um

aviãozinho. A partir de 1987 é que elas come-

çaram a se armar”. Segundo o especialista,

havia vários motivos para tal mudança.

“Um deles é a proliferação de armas leves,

que foi bem alta nessa época, com as guer-

ras civis na América Central. São armas de

grande porte, mas que as crianças podem

manipular”, relata o autor de “Crianças no

tráfico: um estudo de caso de crianças em

violência armada organizada no Rio de Ja-

neiro”.

Mais do que números e declarações, uma

tragédia anunciada foi o que mais abalou

a sociedade brasileira: em 1987, morreu

Fernando Ramos da Silva, que, seis anos

antes, havia protagonizado o filme “Pixote:

a lei dos mais fracos”. Aos 19 anos, o rapaz

foi morto a tiros por policiais militares du-

rante uma operação em uma favela de Dia-

dema, São Paulo. O final trágico do menino

que saiu das ruas para rodar o mundo nas

telas do cinema encerrou uma história

cheia de altos e baixos: após o sucesso do

longa-metragem do diretor Hector Babenco,

Fernando tentou, em vão, fazer sucesso com

outros papéis. Três anos após se tornar co-

nhecido pelos brasileiros, ainda semianalfa-

beto e desiludido, foi preso por participar de

um assalto. Em meio a tantas notícias difíceis,

os movimentos em defesa dos direitos da

infância fervilhavam em todo o Brasil. O

foco principal era mudar a legislação para

assegurar mais direitos às crianças e aos

adolescentes. Com as sessões da Assembleia

Constituinte iniciadas em fevereiro daquele

ano, há muito não se t inha uma oportu-

nidade tão palpável de atuar de forma legí-

tima e organizada.

Em 1987, em vez de um programa es-

pecífico, a TV Globo introduziu em sua pro-

gramação, entre os dias 4 e 12 de outubro, a

campanha Criança Esperança, e firmou o

que viria a ser uma parceria histórica: asso-

ciou-se à Pastoral da Criança. Num ano em

que a ameaça das crianças pela violência pas-

sou a ser mais evidente e num cenário em

que a desnutrição e a desidratação de-

vastavam a infância brasileira, a união de

esforços fazia renascer a esperança de que

a situação iria melhorar. Isso, de fato, veio

a ocorrer: a Pastoral da Criança é hoje a

maior organização não governamental

da América Latina e ajudou a reduzir em

50% a mortalidade infantil no país entre

1990 e 2005.

CO

NTEXTO

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“Participar do Criança Esperança por mais de 20 anos e ser testemunha privilegiada de um momentohistórico muito especial para o reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros foium privilégio de valor inestimável. Convivi com um verdadeiro batalhão de idealistas e voluntários quededicaram boa parte de suas vidas ao bem de nossas crianças. TV Globo, UNICEF, UNESCO, CNBB/Pastoralda Criança, Anatel, empresas, governo, ONGs, doadores, empresas de telefonia, Conselho Superior dePropaganda e muitos outros solidários unidos em torno de um mesmo ideal. Trabalhamos  para criar osistema 0500 de recepção de doações, participamos da elaboração dos critérios para melhor utilizar osfundos gerados pelas  doações  e acompanhamos o dia a dia de centenas de projetos. Hoje, com orgulho,quando alguém ainda me pergunta se o programa é bom e se o dinheiro é bem empregado, respondo:me aposentei, mas continuo doando como qualquer cidadão.”

Foto

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Jair GravaDiretor de Mobilização de Recursos do UNICEF no Brasil de 1990 a 2005

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