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10anos Infância dividida Enquanto sobe e desce as ruas estreitas do Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, imortalizado nos sambas de Cartola, Sérgio dos Santos embala sonhos comuns aos garotos de sua idade. Quer ser jogador de futebol e passa horas imaginando vitórias sensacionais do Flamengo, seu time do coração. Olhando mais de perto, a vida do menino não se parece tanto assim com a de outros brasileiros de 10 anos. Ele vive em uma comunidade em guerra, onde a paz é delimitada geograficamente pelos limites da campeoníssima Estação Primeira, que levanta o sambódromo, no carnaval, sob o manto verde e rosa. Miguel Ângelo da Costa, de 12 anos, vive a poucos quilômetros de Sérgio. Quer ser piloto de Fórmula 1. Ambos compartilham o amor pelo rubro-negro, e a diversão que os aguarda quando chegam a suas casas é a mesma: os dois são capazes de passar horas a fio diante de um videogame. Na TV de Sérgio, Ben10 é o desenho animado preferido, enquanto Bob Esponja é o favorito de Miguel. Eles têm mais em comum: moram em comunidades pobres, localizadas na periferia do Rio, que têm muito a contar sobre o samba, a mais genuína expressão da cultura popular carioca. Sérgio vive a poucos metros da quadra da Mangueira. Miguel, no Morro dos Macacos, onde todos torcem pelo sucesso da Vila Isabel, a escola do bairro. As fortes chuvas que caíram no Rio em abril deste ano afetaram as vidas dos dois, com mais ou menos intensidade. Apesar de todas as semelhanças, os dois meninos estão dramaticamente separados pela violência na cidade. Se nada mudar, Sérgio e Miguel vão crescer como inimigos, um de cada lado do muro invisível – porém intransponível – da intolerância. As quadrilhas que usam as favelas como esconderijos impõem rígida determinação: quem vive na Mangueira não atravessa para os Macacos e vice-versa. Os morros vivem em guerra. Sérgio dos Santos Casa da Arte de Educar Rio de Janeiro, RJ

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10anos

Infância dividida

Enquanto sobe e desce as ruas estreitas do Morro da Mangueira, noRio de Janeiro, imortalizado nos sambas de Cartola, Sérgio dos Santosembala sonhos comuns aos garotos de sua idade. Quer ser jogador defutebol e passa horas imaginando vitórias sensacionais do Flamengo,seu time do coração. Olhando mais de perto, a vida do menino não separece tanto assim com a de outros brasileiros de 10 anos. Ele vive emuma comunidade em guerra, onde a paz é delimitada geograficamentepelos limites da campeoníssima Estação Primeira, que levanta osambódromo, no carnaval, sob o manto verde e rosa.

Miguel Ângelo da Costa, de 12 anos, vive a poucos quilômetros deSérgio. Quer ser piloto de Fórmula 1. Ambos compartilham o amor pelorubro-negro, e a diversão que os aguarda quando chegam a suas casasé a mesma: os dois são capazes de passar horas a fio diante de umvideogame. Na TV de Sérgio, Ben10 é o desenho animado preferido,enquanto Bob Esponja é o favorito de Miguel.

Eles têm mais em comum: moram em comunidades pobres,localizadas na periferia do Rio, que têm muito a contar sobre o samba,a mais genuína expressão da cultura popular carioca. Sérgio vive apoucos metros da quadra da Mangueira. Miguel, no Morro dos Macacos,onde todos torcem pelo sucesso da Vila Isabel, a escola do bairro. Asfortes chuvas que caíram no Rio em abril deste ano afetaram as vidasdos dois, com mais ou menos intensidade. Apesar de todas assemelhanças, os dois meninos estão dramaticamente separados pelaviolência na cidade.

Se nada mudar, Sérgio e Miguel vão crescer como inimigos, um decada lado do muro invisível – porém intransponível – da intolerância.As quadrilhas que usam as favelas como esconderijos impõem rígidadeterminação: quem vive na Mangueira não atravessa para os Macacose vice-versa. Os morros vivem em guerra.

Sérgio dos Santos

Casa da Arte de Educar Rio de Janeiro, RJ

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Os dois meninos de realidade tão próxima e tão distantefrequentam a mesma ONG, a Casa da Arte de Educar, que, paraatender a população dos dois morros, tem dois polos, um em cadabairro. Uma das casas fica no limite da Mangueira com asfalto; aoutra, em Vila Isabel, bem pertinho do Morro dos Macacos.

Mangueira e Macacos são próximos um do outro. No ponto ondea “fronteira” é mais estreita, os lados opostos podem ser alcançadospor uma bola de futebol jogada com um pouquinho mais de força.

Recomeço

É na Casa que, pelas mãos de Sérgio, Marcelle, de 26 anos, a mãedele, tem a chance de recomeçar. A garota tinha 16 anos ao engra-vidar. Mãe solteira, seguiu os passos de milhares de meninas Brasilafora e largou a escola no 6º ano para cuidar do bebê. Passados dezanos, voltou a ter contato com os livros e a ter o filho como compa-nheiro de atividades. “Vi o quanto ele se desenvolveu e segui oexemplo“, conta ela, que trabalha como faxineira em uma loja detintas. Marcelle faz supletivo e diz “correr atrás do tempo perdido”;Sérgio cursa o 4º ano e ambos têm as mesmas disciplinas. Na Casa,fazem aulas de Artes e Música.

Entre Mangueira e Vila Isabel, a Casa da Arte de Educar atende 490crianças, jovens e adultos, em três turnos. “Infelizmente, as duas casasnão podem conviver entre si, por isso não há atividades conjuntas”,diz Lola Trindade de Azevedo, coordenadora pedagógica do projeto.

As atividades dividem-se em cinco núcleos: Pesquisas Artísticas,Pesquisa de Memória, Pesquisas para a Escola, Vi-Vendo a Cidadee Educação para Ciências. Por meio de diferentes estratégias, estesgrupos têm o mesmo objetivo: dar um significado real ao conhe-cimento e, dessa forma, construir uma ponte entre a escola e acomunidade. “Trabalhamos para que a escola seja valorizada pelosadolescentes e a educação seja de fato percebida como umcaminho de transformação e de desenvolvimento pessoal ecoletivo”, diz Sueli de Lima, fundadora da Casa.

O pessoal das Artes lida com música, dança, capoeira, colagem,samba; o de Ciências, com lunetas, microscópios etc. O grupo do Vi-Vendo desafia a dicotomia morro-asfalto e sai para visitar shoppingcenter, assiste a espetáculo de teatro e a sessões de cinema,apropria-se de uma cidade dividida e faz que os meninos do morrose integrem no todo dessa cidade conhecida pelo nome de“Maravilhosa”. “Este é um núcleo que fala de paz”, explica Lola, acoordenadora. “Eu tinha receio até de ir a shopping. Depois, comeceia pensar: ‘ôpa, isso aqui é meu também!”, confirma Carol, ex-alunae hoje coordenadora da Casa que funciona na Mangueira.

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Depois de 11 anos de atuação na Mangueira e sete anos na Vila, a ONG conseguiu diminuir consideravelmentea evasão escolar nas duas comunidades. Nas salas de aula mantidas pela Prefeitura, de 20 a 30% dos estudanteslargam os estudos a cada ano letivo. Nas Casas da Arte de Educar, o número é até 50% menor.

Trauma

Além dos 20 professores contratados pela Casa, duas psicólogas fazem atendimento voluntário, focado nostraumas causados pela violência. “Uma vez, eu já estava pertinho de casa, quando a polícia chegou de helicóptero,já dando tiro. Tive que entrar num sacolão [mercado] para escapar”, lembra Sérgio, contando sobre a rotina domedo com a naturalidade de quem fala sobre o tempo. “Outra vez eu estava andando com minha prima e ficamospresos entre as balas dos bandidos e os revides que vinham do caveirão”, relata o menino, descrevendo o blindadousado pela PM do Rio.

Miguel, que vive em Vila Isabel, sem saber da existência de Sérgio, passa medos semelhantes. “Quando começao tiroteio, chamo minhas irmãs e vamos para o quarto dos meus pais. Ficamos agachados até passar”. Sua famíliamudou-se há pouco. Antes, o barraco era vizinho à área onde operava o chamado micro-ondas do tráfico – pneusempilhados em que os bandidos queimam vivos seus adversários.

A Casa decidiu enfrentar o problema. Criou encontros para discutir com os alunos situações emergenciais oude risco. “Nas últimas chuvas, as três casas coladas à nossa desabaram, e a nossa foi interditada”, conta Marcelle,mãe de Sérgio, que se mudou com o filho para longe da área afetada. Lola conta que foi feita uma espécie demanual de sobrevivência para lidar com as chuvas. “Aproveitamos as chuvas para falar de como elas se formam,quais as suas consequências, e para ensinar como se proteger em situações de risco”, descreve.

Apesar de a Casa não ter o poder de abolir guerras entre traficantes ou de impedir desastres provocados pelaschuvas, transformar horas ociosas em produção intelectual tem efeitos na vida prática e pode, no futuro, realizarum pequeno milagre: que Sérgio e Miguel compartilhem os mesmos espaços, como cidadãos. Quem sabe...como amigos.

Na Casa das Artes, crianças e adolescentes convivem com a realidade que transformou comunidades pobres do Rio em zonas de guerra.

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A sucessão presidencial trouxe mudanças

significativas para a área da infância. Os mi-

nistérios da Integração Regional e do Bem-

Estar Social, do qual faziam parte a Legião

Brasileira de Assistência (LBA) e o Centro

Brasileiro para a Infância e a Adolescência

(CBIA), foram substituídos pelo Ministério

da Previdência e Assistência Social (MPAS).

No mesmo ano, foi criada a Comunidade So-

lidária, definida como uma estratégia para

promover a participação cidadã e novas for-

mas de diálogo entre o Estado e a sociedade.

Seu principal objetivo era contribuir para o

combate à pobreza. Em outubro, o Conselho

Nacional dos Direitos da Criança e do Ado-

lescente (Conanda) aprovou as diretrizes

nacionais para a política de atenção integral

à infância e à adolescência.

Para ampliar o debate, o Conselho orga-

nizou, em novembro, a I Conferência Nacio-

nal dos Direitos da Criança. Entre os temas de-

batidos em Brasília estava o fortalecimento da

articulação entre o Conanda e os conselhos es-

taduais e municipais. Apesar disso, o nó da

questão ainda era o mesmo dos últimos anos:

como fazer os direitos assegurados no Esta-

tuto da Criança e do Adolescente saírem do

papel de norte a sul do país, levando-se em

conta as dimensões continentais do Brasil.

Ainda nesse mês, também na capital fe-

deral, cinco mil pessoas reuniram-se na 1ª

Conferência Nacional de Assistência Social,

que foi precedida por conferências munici-

pais e estaduais em todo o país. A participação

cidadã prevista na Constituição Federal de

1995

Conanda cria diretrizes para a infância;

Bahia lança campanha contra

exploração sexual infantil

Daniela Mercury reforça a mobilização em prol da infância. No morro Dona Marta, Rio de Janeiro,

surge o Comitê para a Democratização da Informática que, nos próximos anos,

levará tecnologia a meio milhão de crianças e adolescentes pobres

1988 ganhou vida, não só nos conselhos deli-

berativos, mas também nos processos das

conferências. As discussões sobre as sinergias

entre o ECA e a Lei Orgânica de Assistência

Social espalharam-se por todo o Brasil.

Força baianaA cantora baiana Daniela Mercury foi

nomeada Representante Especial do UNICEF

para as Crianças Brasileiras e passou a exercer

a função com Renato Aragão, reforçando as

ações de mobilização em favor da infância.

Do morro Dona Marta, o Brasil viu nascer

um projeto que se tornaria o pioneiro no

movimento de inclusão digital na América

Latina: o Comitê para a Democratização da

Informática (CDI), que pouco depois contou

com apoio do Criança Esperança. Com o mote

de levar tecnologia às comunidades, o CDI

chegou a todas as regiões do Brasil e a oito

países.

Outra iniciativa importante partiu da

Fundação Abrinq, que lançou o programa

Empresa Amiga da Criança, identificado por

um selo distribuído às empresas que aderis-

sem à causa da infância. Ainda hoje, por meio

dessa identificação visual em produtos que

estão no mercado, o consumidor sabe quem

são as empresas comprometidas com a causa.

Escola

No IV Encontro Nacional dos Meninos

e Meninas de Rua, “escola” foi a palavra de

ordem. Com o lema “Quero educação para ser

cidadão”, o evento reuniu em Brasília 906

crianças e adolescentes, além de educadores,

autoridades e especialistas brasileiros e es-

trangeiros.

O debate dos direitos chegou à população

ainda mais marginalizada do que os meninos

que vivem nas ruas: os menores infratores.

Discutia-se a redução da maioridade penal,

que teve como importante porta-voz o Fórum

Nacional dos Direitos das Crianças e dos

Adolescentes, entidade com representação

em todos os estados brasileiros. No centro

da discussão, estava a transformação da antiga

Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem),

Centro Brasileiro para a Infância e a Adoles-

cência, e o debate sobre a internação como

medida excepcional.

Na Bahia, foi lançada pelo Cedeca Bahia

a Campanha contra a Exploração Sexual In-

fanto Juvenil. Com o slogan “Quem cala con-

sente”, a iniciativa apresentava a figura do

explorador como a de um criminoso comum.

A campanha ganhou visibilidade em todo o

Brasil e foi adotada pelo governo federal,

passando a repetir-se anualmente.

Estava claro que o ano era de mudanças:

ONGs focadas no atendimento a crianças e

adolescentes surgiam quase mensalmente e

personalidades juntavam-se ao debate; mas a

realidade de meninos e meninas em situação

de risco social – especialmente em relação à

comercialização sexual e ao trabalho infantil –

ainda era conhecida de forma superficial

pelas classes média e alta.

CO

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“Quando comecei o trabalho do Instituto Ayrton Senna, levei ao Criança Esperança uma réplica docapacete do Ayrton, para ser leiloada em prol das crianças. Na edição de 2000, recebi homenagens emnome do Instituto, e me senti profundamente tocada pela solidariedade. Meu sentimento em relação àcampanha é de uma corresponsabilidade democratizada, que abre espaço para qualquer pessoa fazerdiferença, independentemente do gênero, da raça, da classe social, da crença religiosa... Olhar para ainfância e a juventude de forma ativa – ou seja, entendendo o que ainda estamos devendo às novas gerações –pode, com certeza, gerar uma conscientização maior sobre a importância de cuidarmos desses cidadãosque estão aqui hoje para começarmos a plantar um país diferente, menos desigual. O papel da TV nessamobilização é relevante, pois envolve desde o telespectador, emocionado e motivado a fazer algumacoisa, até o empresário que sabe o quanto é fundamental ao desenvolvimento social e econômico,jovens conscientes, participativos e inseridos em um mercado de trabalho qualificado e competitivo.”

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Foto

: Jua

n Gu

erra

Viviane SennaPresidente do Instituto Ayrton Senna

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