força -...

6
Força de raiz Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher Rio de Janeiro, capital Dayane e Dayana Conceição 20anos As gêmeas Dayane e Dayana Conceição, de 20 anos, já fizeram de tudo um pouco. Em 2006, trabalharam na novela “Cobras & Lagartos”, da TV Globo. Na trama de João Emanuel Carneiro, viveram as vizinhas fofoqueiras de “Foguinho”, o personagem interpretado por Lázaro Ramos. Na vida real, as duas irmãs falam bastante também, é verdade; mas o discurso delas é cheio de conteúdo e muito bem articulado. Elas fazem parte da ONG Coisa de Mulher, no Rio de Janeiro, que, como diz o nome, é formada por mulheres e atua contra a discriminação, espe- cialmente das que são pobres e negras, como as gêmeas. “Quem cala consente”, explica Dayane, cheia de razão. Ainda meninas, as gêmeas conheceram a ONG, criada em 1994, pela professora Neusa das Dores Pereira. “A ideia é trabalhar a autoestima e o protagonismo feminino juvenil, por meio de oficinas de dança, mú- sica, teatro, percussão e canto”, explica Neusa, que completa: “Enquanto frequentam as aulas, não estão só tocando tambor ou dançando, mas também conversando sobre o gênero e a cor”. É o caso de Dayana e Dayane, que saem de lá espalhando o discurso para casa, para a escola e para a vida. As irmãs foram criadas pela mãe na favela Vila Aliança, um dos lugares mais pobres e violentos do Rio de Janeiro, em Bangu, na zona oeste. Em comparação com as histórias que se ouvem por lá, a vida das gêmeas não tem contornos assim tão dramáticos. “Não sofremos vio- lência, além de uns tapas”, descreve Dayane, embora tenham enfren- tado todas as dificuldades de terem sido criadas apenas pela mãe, em uma comunidade marcada pela violência, onde a juventude não vê perspectiva além daquela oferecida pelo tráfico. Desde sempre, chamou a atenção das gêmeas a grande quantidade de adolescentes grávidas na favela. “A conscientização virou uma ques- tão central para nós. Entendemos prevenção como a única forma de solucionar isso”, diz Dayane. Enquanto para as crianças, em geral, a fase dos 10, 11 anos, é um período de descobertas, elas já ensinavam a vizinhança inteira, e a própria mãe. “Nossos amigos vinham buscar in-

Upload: lamdat

Post on 21-Jan-2019

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Força de raiz

Centro de Documentação e Informação Coisa de MulherRio de Janeiro, capital

Dayane e Dayana Conceição20anos

As gêmeas Dayane e Dayana Conceição, de 20 anos, já fizeram detudo um pouco. Em 2006, trabalharam na novela “Cobras & Lagartos”,da TV Globo. Na trama de João Emanuel Carneiro, viveram as vizinhasfofoqueiras de “Foguinho”, o personagem interpretado por LázaroRamos. Na vida real, as duas irmãs falam bastante também, é verdade;mas o discurso delas é cheio de conteúdo e muito bem articulado. Elasfazem parte da ONG Coisa de Mulher, no Rio de Janeiro, que, como dizo nome, é formada por mulheres e atua contra a discriminação, espe-cialmente das que são pobres e negras, como as gêmeas. “Quem calaconsente”, explica Dayane, cheia de razão.

Ainda meninas, as gêmeas conheceram a ONG, criada em 1994, pelaprofessora Neusa das Dores Pereira. “A ideia é trabalhar a autoestimae o protagonismo feminino juvenil, por meio de oficinas de dança, mú-sica, teatro, percussão e canto”, explica Neusa, que completa: “Enquantofrequentam as aulas, não estão só tocando tambor ou dançando,mas também conversando sobre o gênero e a cor”. É o caso de Dayanae Dayane, que saem de lá espalhando o discurso para casa, para aescola e para a vida.

As irmãs foram criadas pela mãe na favela Vila Aliança, um doslugares mais pobres e violentos do Rio de Janeiro, em Bangu, na zonaoeste. Em comparação com as histórias que se ouvem por lá, a vida dasgêmeas não tem contornos assim tão dramáticos. “Não sofremos vio-lência, além de uns tapas”, descreve Dayane, embora tenham enfren-tado todas as dificuldades de terem sido criadas apenas pela mãe,em uma comunidade marcada pela violência, onde a juventude nãovê perspectiva além daquela oferecida pelo tráfico.

Desde sempre, chamou a atenção das gêmeas a grande quantidadede adolescentes grávidas na favela. “A conscientização virou uma ques-tão central para nós. Entendemos prevenção como a única forma desolucionar isso”, diz Dayane. Enquanto para as crianças, em geral, a fasedos 10, 11 anos, é um período de descobertas, elas já ensinavam avizinhança inteira, e a própria mãe. “Nossos amigos vinham buscar in-

20.:Layout 1 10/4/10 7:50 PM Page 138

20.:Layout 1 10/4/10 7:50 PM Page 139

140

acostumadas a isso. Em geral, reunir três numa casa jáé multidão”, diz Neusa, com a experiência de ter convi-vido com mais de trezentas jovens que já passarampelo projeto desde 1999.

Michele Jeane Ferreira de Souza, de 21 anos, é amigae vizinha das gêmeas. Ela conta que, muitas vezes, o quefalta na periferia é informação. “Na época em que come-cei a dançar, era só a dança da garrafa que estava namoda. Lembra disso? Resolvemos, então, apresentaroutras formas de exibir o corpo, sem ser tão vulnerável,sem se desvalorizar”. Ela tinha quase 12 anos. Hoje éprofessora do Ensino Fundamental e fez intercâmbiocultural no Canadá e de balé na Rússia. Também deu aulade dança em escolas particulares e de coreografia naPortela, a escola de samba. Como instrutora do projeto,já deu reforço escolar, inglês básico e, é claro, aula dedança. “O que a gente faz é multiplicar o que aprendeu,para que as crianças que passam pelo projeto nãoachem que os bandidos são os heróis, ou que a droga éuma opção interessante”, diz Michele.

Multiplicação

Além do trabalho com as jovens de Quintino e Bangu,a ONG Coisa de Mulher mantém outros três projetos,voltados para mulheres com o mesmo perfil. A ideia demultiplicar conceitos e valores é abraçada por trintalíderes comunitárias, que são capacitadas e levam infor-mação para suas comunidades. Lá se reúnem em suascasas ou nas igrejas. A cada semana, um tema diferente

formações, e até preservativos, com a gente. Poucas me-ninas do nosso grupo engravidaram sem planejar”, or-gulha-se Dayane.

O mais complicado, lembra, foi falar de sexualidadedentro de casa. “Como duas meninas de 10 anos devemfalar de sexualidade com a mãe? Era isso que acontecia,e não foi fácil. Conscientizar-se é uma coisa, passar issopara uma pessoa mais velha é bem mais complicado”,diz Dayane. Hoje, depois de ter passado pelo projetocomo aluna, ela é instrutora de dança, enquanto estudapara entrar na faculdade de Ciências Sociais. Sua irmã éa responsável pelas aulas de teatro. “É possível dançar,atuar e se politizar ao mesmo tempo”, avalia Dayana.

“Aqui o que se vê são histórias de superação. Temosmeninas que não têm pai ou mãe, moram em lugarespaupérrimos, a mãe é prostituta... É uma vitória a cadadia, a vida desses baixinhos não é fácil”, diz Neusa, afundadora da ONG.

Corpo e consciência

As sessenta meninas do projeto Dançando o Presen-te e Cantando o Futuro, apoiado pelo Criança Esperança,têm entre 10 e 18 anos e reúnem-se cinco vezes porsemana, durante quatro horas. Às sextas-feiras, partici-pam de oficinas que tratam de temas diversos, quefazem parte do cotidiano, como racismo, violência, ques-tões de saúde e sexo. Os temas são sugeridos pelas pró-prias jovens, que uma vez por mês recebem a visita demães e pais em torno da conversa. “Elas não estão

20.:Layout 1 10/4/10 7:50 PM Page 140

141

é tratado por convidadas – advogadas, psicólogas, assistentes sociais. Este ano, o tema principal das conversas éa prevenção à violência doméstica.

Coisa de Mulher coordena ainda o Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (Colerj), o mais antigo do gênero noestado, onde, além de discussões sobre o combate à discriminação, há muita informação sobre saúde, educaçãoe autoestima.

Como a pobreza e a violência no Brasil têm cor – a negra –, a ONG atua junto às mulheres negras que estãopresas no Rio. O projeto Abrindo Algemas envolve detentas e agentes penitenciárias. “Em 2004, no início doprojeto, ouvi de uma diretora de presídio: ‘Eu não entro em pavilhão que tem aidético’. Depois do primeiroseminário, ela mudou totalmente e hoje acolhe as soropositivas. Se tivesse sido só esse resultado, já teria validoà pena”, avalia Neusa. Felizmente, ela tem mais motivos para se orgulhar. Basta olhar para o sorriso vencedor deDayana, Dayane e de outras tantas mulheres.

ONG treina mulheres que replicam em diversas comunidades da periferia do Rio conceitos de ética, cidadania evalores. Atua em presídios e tem grupos de dança.

20.:Layout 1 10/4/10 7:50 PM Page 141

14 2

No ano em que o Estatuto da Criança e

do Adolescente completou quinze anos, os es-

pecialistas na área da infância perceberam

que o desafio era ampliar a participação da

sociedade civil na garantia dos direitos da

criança e do adolescente. Era preciso inserir

a população no controle social e incentivar

os adolescentes a participarem desse processo.

Na VI Conferência do Conselho Nacional

dos Direitos da Criança e do Adolescente (Co-

nanda), o controle social da situação da in-

fância foi o principal tema.

Em outras palavras, constatou-se que de

nada adianta estar escrito no ECA que crian-

ças e adolescentes são sujeitos de direitos,

se, na vida real, jovens infratores em liber-

dade assistida (programas específicos para

os que acabaram de sair da internação), que

se encontram em situação de extrema vul-

nerabilidade, têm muita dificuldade de con-

seguir vagas em escolas públicas e, mais

ainda, de obter emprego. Entre 2000 e 2001,

em São Paulo, a cada dia um jovem egresso da

Liberdade Assistida cometia um novo crime e

voltava para uma das unidades da Fundação

Casa de São Paulo (então Febem), responsável

pelo maior grupo de jovens infratores do país.

A quantidade de adolescentes nessa situação

aumentou 119% no período.

Educação

Uma pesquisa realizada pela Febem em

2006, com 1.190 internos, mostrou que 41%

dos adolescentes não estavam matriculados

2005

Sociedade civil

cria movimento

Todos pela Educação

Equipe da UNESCO que coordena o Criança Esperança

reúne-se com especialistas na sede da organização, em Paris,

para ratificar os critérios de seleção de ONGs

na escola antes da internação. O percentual

daqueles matriculados, mas não assíduos,

foi de 29%. A principal razão apontada pelos

entrevistados foi falta de interesse (37%) e

necessidade de ajudar a família (17%). Envol-

vimento com drogas e crime também foram

citados por 12% dos entrevistados.

Preocupados especialmente com os rumos

que a educação nacional vinha tomando,

diferentes segmentos sociais, entre eles, edu-

cadores, empresários, diferentes atores da

sociedade brasileira, como a TV Globo e a

UNESCO, uniram-se para criar o movimento

Todos pela Educação, que visa a mobilizá-la

para a importância da educação como ferra-

menta de mudança social. Entre outras con-

sequências da baixa qualidade de ensino,

verificou-se que ela se refletia, de forma nega-

tiva, na capacidade competitiva e de desenvol-

vimento do país.

Dando continuidade ao movimento ini-

ciado no ano anterior em prol das crianças e

dos adolescentes do sertão, o Selo UNICEF

Município Aprovado foi ampliado para todos

os municípios do Semiárido. A iniciativa,

que monitora a melhoria da qualidade de

vida da população, foi lançada em Juazeiro

(BA) e Petrolina (PE), sob o comando dos

embaixadores do UNICEF Renato Aragão e

Daniela Mercury. Do evento, participaram re-

presentantes de diversos segmentos sociais,

além de ministros, governadores, prefeitos,

representantes de ONGs, artistas, crianças e

adolescentes.

Criança Esperança

A Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais (PUC/Minas) assumiu a gestão

local do Espaço Criança Esperança, de Belo

Horizonte. Em São Paulo, o projeto foi trans-

ferido do distrito Jardim Ângela, periferia da

zona sul da capital, para o distrito da Brasi-

lândia, periferia da zona norte. O Espaço per-

maneceu sob a coordenação do Instituto Sou

da Paz e fez parceria com a Prefeitura de

São Paulo.

A mudança da comunidade do Jardim Ân-

gela para a Brasilândia deveu-se à conclusão

de que o Espaço já havia cumprido seu papel

de ajudar a elevar os indicadores sociais do

bairro da zona sul e era preciso partir em

busca de novos desafios na maior megalópole

da América Latina. Enquanto a taxa de homi-

cídios entre pessoas de 15 a 19 anos é de 140,5

por cem mil na cidade de São Paulo, dados

da Fundação Seade relativos a 2003-2005 in-

dicam que, na Brasilândia, ela alcança 231,6

por cem mil. É a terceira maior taxa da capital.

No ano seguinte ao do estabelecimento da

parceria com a TV Globo, a equipe do setor

de Ciências Humanas e Sociais da UNESCO

no Brasil, que coordena o Criança Esperança,

realizou reunião com especialistas da sede da

Organização, em Paris, para ratificar os crité-

rios desenvolvidos pelo escritório da UNESCO

no Brasil para a seleção de projetos apresentados

anualmente pelas ONGs para apoio do Criança

Esperança em todo o país. O objetivo era reu-

nir contribuições destes especialistas, de modo

a qualificar ainda mais o processo seletivo.

CO

NTEXTO

20.:Layout 1 10/4/10 7:50 PM Page 142

143

“Minha história com o Criança Esperança coincide com os 25 anos do Programa. Desde que asprimeiras campanhas foram ao ar, comecei a acompanhá-las. Via meus pais contribuírem e hoje vejo,com alegria, minha filha Laura também fazê-lo. Sempre acreditei na capacidade do Criança Esperancade transformar vidas. E, como cidadã, participo fazendo minhas doações. Profissionalmente, olhandominha trajetória, foi como se tivesse me preparado para coordenar o maior Programa de mobilizaçãosocial do mundo, um poderoso instrumento de transformação da realidade. Além disso, é um privilégiocomprovar a generosidade do povo brasileiro. É uma emoção diária testemunhar o Brasil bonito queexiste e se espalha por meio do talento e empreendedorismo dos projetos sociais em todo país. Para umorganismo internacional como a UNESCO é uma oportunidade única ser parceira da TV Globo econtribuir para transformar a vida de milhares de crianças e jovens de todas as regiões do Brasil. Eu e aminha equipe trabalhamos com entusiasmo neste Programa que é exemplo de solidariedade emobilização social, pois sabemos que nosso trabalho faz a diferença.”

Foto

: Mila

Pet

rillo

Marlova Jovchelovitch NoletoCoordenadora do Setor de Ciências Humanas e Sociaisda UNESCO no Brasil

20.:Layout 1 10/4/10 7:50 PM Page 143