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A celebração da vida Grupo Viva Rachid Recife, Pernambuco Lucas Henrique Silva de Assis 5anos Lucas Henrique Silva de Assis tem 5 anos, é saudável e não foi contaminado pelo HIV. Sua mãe, Neide Maria Silva de Assis, de 30, e a irmã Priscila, de 7, convivem com a doença. Neide descobriu que tinha o vírus ao fazer um exame pré-natal, já no fim da gestação da filha. “Quando recebi o resultado, tive vontade de me atirar embaixo dos carros ou de me jogar de uma escada com aquela barriga de sete meses”, recorda. Começou a tomar o antiviral AZT ainda grávida, mas isso não evitou que a menina nascesse contaminada. Não teve mais notícias do pai de Priscila, com quem conviveu por apenas sete meses. Assim que o bebê nasceu, mãe e filha foram encaminhadas à ONG Viva Rachid, fundada em Recife por Alaíde Elias da Silva, uma mulher que, em razão da própria história, tem como missão evitar que outros percam suas referências. Para os que já perderam, torna-se uma. Bom Jardim, Agreste pernambucano, 1958. No meio da madrugada, o barulho de um tiro de espingarda fez a pequena Alaíde despertar dos sonhos que embalavam seu sono para um pesadelo real: seu pai havia sido assassinado por um colega de canavial. Era uma vingança pela discussão boba que assassino e vítima tiveram durante o dia, trabalhando na roça. A bala no ouvido não deu chance de reação ao jovem pai de família de 27 anos e causou a primeira reviravolta na vida de Alaíde. “Minha mãe não tinha condições de cuidar sozinha dos cinco filhos. Dos 4 aos 14 anos, vivi em três orfanatos. E a cada mudança perdia todos os vínculos”, conta. “Minha mãe me visitava, mas toda vez que ela ia embora eu me sentia abandonada de novo”. Alaíde, que não teve permissão da mãe para estudar ou trabalhar, casou-se pela primeira vez com um primo, aos 17 anos. Não foi um casamento feliz, embora tenha durado oito anos e gerado uma criança – Ubiratan tem hoje 35 anos e já lhe deu dois netos. Cinco anos depois,

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A celebração da vida

Grupo Viva RachidRecife, Pernambuco

Lucas Henrique Silva de Assis5anos

Lucas Henrique Silva de Assis tem 5 anos, é saudável e não foicontaminado pelo HIV. Sua mãe, Neide Maria Silva de Assis, de 30, e airmã Priscila, de 7, convivem com a doença. Neide descobriu que tinha ovírus ao fazer um exame pré-natal, já no fim da gestação da filha.“Quando recebi o resultado, tive vontade de me atirar embaixo doscarros ou de me jogar de uma escada com aquela barriga de setemeses”, recorda. Começou a tomar o antiviral AZT ainda grávida, masisso não evitou que a menina nascesse contaminada. Não teve maisnotícias do pai de Priscila, com quem conviveu por apenas sete meses.Assim que o bebê nasceu, mãe e filha foram encaminhadas à ONG VivaRachid, fundada em Recife por Alaíde Elias da Silva, uma mulher que,em razão da própria história, tem como missão evitar que outrospercam suas referências. Para os que já perderam, torna-se uma.

Bom Jardim, Agreste pernambucano, 1958. No meio da madrugada,o barulho de um tiro de espingarda fez a pequena Alaíde despertardos sonhos que embalavam seu sono para um pesadelo real: seupai havia sido assassinado por um colega de canavial. Era uma vingançapela discussão boba que assassino e vítima tiveram durante o dia,trabalhando na roça. A bala no ouvido não deu chance de reação aojovem pai de família de 27 anos e causou a primeira reviravolta navida de Alaíde. “Minha mãe não tinha condições de cuidar sozinhados cinco filhos. Dos 4 aos 14 anos, vivi em três orfanatos. E a cadamudança perdia todos os vínculos”, conta. “Minha mãe me visitava,mas toda vez que ela ia embora eu me sentia abandonada de novo”.

Alaíde, que não teve permissão da mãe para estudar ou trabalhar,casou-se pela primeira vez com um primo, aos 17 anos. Não foi umcasamento feliz, embora tenha durado oito anos e gerado uma criança– Ubiratan tem hoje 35 anos e já lhe deu dois netos. Cinco anos depois,

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de falência múltipla dos órgãos no dia 31 de julho de1993. Tinha 8 anos e 5 meses. No dia 28 de fevereirode 1994, exatamente quando Rachid faria 9 anos, oDiário Oficial de Pernambuco registrou a fundação daONG Viva Rachid. “Foi como um novo registro de nas-cimento para o meu filho. Ele e todos os que tiveramAids naquela época foram mártires. Ele morreu comoherói, como cidadão brasileiro que mostrava o rosto.Graças a isso, hoje discuto saúde, casas de apoio, pátriopoder”, diz Alaíde. “Eu vislumbrava a necessidade deum serviço de apoio, porque eu mesma não tive. Ogrupo surgiu assim”, diz.

De início, 28 mães faziam parte do grupo. “A deman-da era enorme. Compreendi que tinha um trabalhosurgindo, e que resgatava a minha própria infância”,compara Alaíde. Em vez de confinamento e abandono,como experimentou na meninice, Alaíde ofereceuatendimento a crianças dentro do contexto familiar eapoio às famílias. “Rachid se foi, mas outros, eu eviteique se fossem”, diz Alaíde.

Esperança

“Quando você vai a um hospital e vê as pessoasmagras, secas, acabadas, morrendo, dá um desespero.Mas vir para cá abriu a visão de um novo mundo que eradesconhecido para mim: de tomar medicamento nahora certa, de manter a frequência ao médico e, prin-cipalmente, de o meu segundo filho não ter sido con-taminado”, diz Neide, mãe de Lucas Henrique. Ela

casou-se novamente. Dessa vez, em clima de romance,com um carteiro. Meses depois, nasceu Woody, hojeum rapaz de 26 anos. Um ano mais tarde, veio Rachid –responsável direto, mas involuntário, pela última edefinitiva reviravolta na vida de Alaíde. A ONG quesalvou a vida de Lucas Henrique tem seu nome emhomenagem a ele.

Pequeno Rachid

Quando Rachid completou 1 ano e 3 meses, precisouser internado em um hospital público de Recife, ondea família morava. Por causa do sarampo, o meninorecebeu uma transfusão de sangue. Ninguém des-confiava ainda, mas a criança estava sendo conta-minada pelo vírus HIV. Era 1990, o ano em que o Brasilperdeu Cazuza e a palavra “Aids” vinha sempre asso-ciada à palavra “preconceito”. Depois de desenvolvervárias doenças oportunistas, Rachid teve sua sentençade morte decretada aos 4 anos e 9 meses, quando sedescobriu o real motivo da fraqueza imunológica dacriança. Com Rachid no colo, transformado embandeira, Alaíde resolveu colocar seu rosto e o do filhonos jornais e na televisão, chamando atenção para oabsurdo da situação. “Pela primeira vez, alguémdenunciou e entrou com uma ação para garantir que oEstado custeasse um tratamento de Aids”, lembra.

O processo judicial foi rápido para os padrões bra-sileiros, mas o definhamento de Rachid foi aceleradodemais. Teve toxoplasmose, ficou paralítico e morreu

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tomou AZT durante toda a segunda gravidez e fez cesariana, evitando assim mais riscos de contágio. “Umacriança doente, além de mim mesma, já é difícil o suficiente”.

Além da doença, Neide enfrenta o preconceito. Em sua família, apenas a mãe sabe que ela e Priscila têmAids. “O preconceito maior vem dos vizinhos que eram meus amigos. Você sente que eles se afastam”, avaliaNeide. Com tanta gente falando, ficou difícil conseguir emprego como faxineira. “Depois que a notícia se espalha,fica difícil de arrumar trabalho”. O pai de Lucas aparece de vez em quando, mas não ajuda financeiramente.Neide e as duas crianças vivem com R$ 60,00 mensais de um programa de transferência de renda e mais umaajuda pequena, que varia de R$ 30,00 a R$ 40,00 por mês, da mãe de Neide. Do Grupo Viva Rachid, recebemalimentos e alguns produtos de higiene pessoal, além de passagens de ônibus para que possam frequentar asatividades da casa – terapia ocupacional, arte-educação, biblioteca e brinquedoteca.

Enquanto isso, o levado Lucas, brincalhão e sorridente, é salvo da tristeza pela ingenuidade que protege ascrianças sobre o que se passa ao seu redor. Ele aguarda que a vida lhe proporcione uma reviravolta, assimcomo tantas por que passou Alaíde, que o conduza a uma vida feliz.

Organização ajuda famílias e pacientes com HIV a vencer, no dia a dia um sentimento muito doloroso: o preconceito.

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O ano de 1990 é, talvez, o mais simbólico

na luta em defesa dos direitos da infância no

Brasil. A aprovação do Estatuto da Criança e

do Adolescente e a revogação do Código de

Menores representaram a mudança de para-

digma em relação à infância. O Código era

destinado somente àqueles em “situação irre-

gular” ou “inadaptados”, por isso muitos es-

pecialistas afirmam que o texto associava

pobreza à delinquência. O ECA, por sua vez,

dá lugar à doutrina da proteção integral, tra-

tando crianças e adolescentes como sujeitos

dos mesmos direitos – e esse é o fio condutor

de todos os avanços.

Depois da aprovação do ECA, que regula-

mentou o artigo 227 da Constituição Federal,

foi, enfim, revogado o Código de Menores.

Cada adulto passou a ter o dever, assim como

o Estado, de garantir às crianças e aos ado-

lescentes seus novos direitos.

Saúde

No mesmo ano, em Nova Iorque, represen-

tantes de mais de 150 países reuniram-se no

Encontro Mundial de Cúpula pela Criança

da ONU.Na ocasião, eles endossaram uma De-

claração Mundial e um Plano de Ação que

incluem as sete metas para a década, visando

à melhoria da atenção à saúde das crianças.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística, (IBGE) o Brasil ostentava a ter-

ceira maior taxa de mortalidade infantil

da América Latina. Relatório do Fundo das

Nações Unidas para a Infância (UNICEF) da-

quele ano revelou que 350 mil crianças brasi-

leiras com menos de cinco anos de idade

morriam anualmente e que havia, no país, 30

1990

Brasil aprova o Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA);

Código de Menores é revogado

ECA fortalece doutrina da proteção integral; show do Criança Esperança

denuncia violência a crianças e adolescentes que vivem nas ruas

milhões de crianças consideradas pobres –

metade delas vivendo nas ruas.O Criança Esperança, maior parceiro pri-

vado da Pastoral da Criança, investiu paraapoiar o trabalho de redução da mortalidadeinfantil. O objetivo era reduzir em pelo menosum terço a taxa de mortalidade infantilpara crianças com até um ano de idade. NoBrasil, a meta era passar de 47,8 para cadamil nascidos vivos para 31,9, e reduzir em50% a mortalidade infantil em decorrênciade doenças relacionadas à diarreia.

Na Organização Pan-americana de Saúde(OPAS), foi criada a Comissão Internacional paraCertificação da Erradicação da Poliomielitenas Américas, objetivo alcançado pelo Brasilquatro anos mais tarde, com forte apoio da TVGlobo e da campanha Criança Esperança.

Endossando o que a população percebia nocotidiano, um estudo do Banco Mundial con-feriu ao Brasil o terceiro lugar entre os paísescom a pior distribuição de renda do mundo.

Enquanto isso, a Organização das NaçõesUnidas para a Educação, a Ciência e a Cultura(UNESCO) criava o Programa Educação ParaTodos. Por meio de seis metas, o programapretendia melhorar a qualidade da educaçãobásica para as crianças e reduzir o analfa-betismo entre os adultos durante a década, nomundo todo.

Guerra dos Meninos

Ainda em 1990, o Fórum Nacional dos Di-

reitos da Criança e do Adolescente, formado

por diversas entidades estaduais, coordenou o

projeto que resultaria, no mesmo ano, no livro

“A guerra dos meninos: assassinatos de me-

nores no Brasil”. A publicação denunciava a

existência de grupos de extermínio em vários

estados brasileiros. Encarregadas de “manter

a ordem”, essas organizações torturavam mi-

lhares de crianças país afora – e causavam uma

morte por dia. O trabalho transformou-se no

dossiê que resultou na abertura de uma CPI, no

ano seguinte, para a investigação dos crimes.

No show, o Criança Esperança chamou a

atenção para a violência sofrida por meninos

e meninas que viviam nas ruas, o que come-

çava a chocar a população.

Os movimentos de defesa da infância, que

passaram os últimos anos empenhados em

assegurar um arcabouço jurídico de proteção

às crianças e adolescentes, agora precisavam

efetivar esses direitos. Ainda em 1990, foi

criada, com sede em São Paulo e atuação na-

cional, a Abrinq, fundação de direito privado

sem fins lucrativos, que trabalha em defesa

dos direitos da infância, com projetos voltados

para vários segmentos – de gestores públicos

a empresários.

Em Salvador, o italiano Cesare La Rocca,que havia chegado ao Brasil anos antescomo representante adjunto do UNICEF noBrasil e tinha participado do primeiro dese-nho do Criança Esperança, criou o ProjetoAxé. Voltado para o atendimento de meninose meninas que viviam nas ruas, o Axé tornou-se referência nacional, ao transformar gera-ções de meninos e meninas sujos, maltrapilhose pouco escolarizados em bailarinos, músi-cos, gente que brilha. O Axé, que instituiu umaescola de formação e capacitou integrantes deONGs Brasil afora, quando elas “pipocaram”de norte a sul, é uma das organizações apoia-das pelo Criança Esperança ao longo desses25 anos.

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NTEXTO

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“A história da ABMP se confunde com a dos juízes e promotores – e, mais recentemente, defensorespúblicos – dedicados à causa da infância e juventude, que por sua vez se confunde com a história dos direitosda criança no Brasil. Na época da Constituinte e da redação do ECA, essa relação era mediada pelo UNICEF.A parceria mais concreta surgiu com a mediação da UNESCO, quando se passaram a apoiar, além deprojetos de atendimento, projetos estruturantes. A relação se materializou por meio da Associação dosJuízes do Rio Grande do Sul, com o apoio ao Projeto Justiça para o Século XXI – que visa instituir as práticasda Justiça Restaurativa na pacificação de violências envolvendo crianças e jovens. Muito do respeito quemilhares de iniciativas de defesa, promoção e garantia dos direitos da criança conquistaram se beneficiou daaura do Criança Esperança, que une compromisso, credibilidade e animação. É a prova do quanto a sociedadebrasileira ‘corre pro abraço’ quando chamada para uma boa causa por pessoas em quem pode confiar.”

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Leoberto BrancherJuiz de DireitoPresidente da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância de 1999 a 2001

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