anossantos ferreira -...

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Sonho de bailarina Dayane Santos Ferreira é filha de uma família pobre do interior da Bahia e foi criada pelo avô. Além dela, ele cuidava de mais cinco crianças em Feira de Santana. Não havia nenhum luxo e ainda enfrentavam alguma dificuldade. Dayane passou a adolescência adiando o sonho de ser bailarina. Hoje, aos 35 anos, tem consciência de que seu desejo de menina foi perdido. Misturou-se à realidade das crianças que passam a infância como adultos, brincando apenas nas horas vagas. Acontece que Dayane teve sua segunda chance, digamos assim. Ela é mãe de uma linda menina de 6 anos, Samara, cheia de sonhos e energia. “Quando ela está quieta demais, é porque ficou doente!”, comenta Dayane ao descrevê-la. É por meio de Samara que a mãe realiza seu sonho perdido. “Nunca tive condições financeiras ou qualquer incentivo para fazer balé. Quando vejo minha filha dançando, é como se eu mesma estivesse lá no palco”, conta. “Tenho tantas obrigações: roupa para lavar, comida para preparar... Ela dança por mim!”, orgulha-se. A pequena Samara não parece dançar por obrigação. Longe disso. Ela corresponde ao olhar amoroso da mãe com uma postura elegante de bailarina-mirim e a alegria do sorriso banguela sempre aberto. “Adoro balé, mas quero mesmo é ser modelo”, confidencia a menina. Aos 3 anos, perguntava quase diariamente a Dayane quando começariam as aulas de dança. A insistência levou a mãe a buscar o Galpão de Arte antes mesmo de a menina completar 4 anos, que já seria um a menos do que a idade mínima para começar a dançar. Nessa idade, Samara já calçava sapatilhas, vestia tutu e fazia pose diante do espelho. Galpão de Arte Feira de Santana, Bahia Samara Santos Ferreira 6anos

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Sonho debailarina

Dayane Santos Ferreira é filha de uma família pobre do interior daBahia e foi criada pelo avô. Além dela, ele cuidava de mais cinco criançasem Feira de Santana. Não havia nenhum luxo e ainda enfrentavamalguma dificuldade. Dayane passou a adolescência adiando o sonho deser bailarina. Hoje, aos 35 anos, tem consciência de que seu desejo demenina foi perdido. Misturou-se à realidade das crianças que passam ainfância como adultos, brincando apenas nas horas vagas.

Acontece que Dayane teve sua segunda chance, digamos assim. Elaé mãe de uma linda menina de 6 anos, Samara, cheia de sonhos eenergia. “Quando ela está quieta demais, é porque ficou doente!”,comenta Dayane ao descrevê-la. É por meio de Samara que a mãerealiza seu sonho perdido. “Nunca tive condições financeiras ouqualquer incentivo para fazer balé. Quando vejo minha filha dançando,é como se eu mesma estivesse lá no palco”, conta. “Tenho tantasobrigações: roupa para lavar, comida para preparar... Ela dança pormim!”, orgulha-se.

A pequena Samara não parece dançar por obrigação. Longe disso. Elacorresponde ao olhar amoroso da mãe com uma postura elegante debailarina-mirim e a alegria do sorriso banguela sempre aberto. “Adorobalé, mas quero mesmo é ser modelo”, confidencia a menina. Aos 3 anos,perguntava quase diariamente a Dayane quando começariam as aulasde dança. A insistência levou a mãe a buscar o Galpão de Arte antesmesmo de a menina completar 4 anos, que já seria um a menos do quea idade mínima para começar a dançar. Nessa idade, Samara já calçavasapatilhas, vestia tutu e fazia pose diante do espelho.

Galpão de ArteFeira de Santana, Bahia

Samara Santos Ferreira6anos

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Paixão pela dança

Dizer “não” para uma menina tão decidida apenas porque aindanão havia completado 5 anos iria contra a história do próprio Galpão.A ONG foi criada em dezembro de 2002 por Ana Lúcia Bahia Paixão,bailarina clássica formada pela Royal Academy, de Londres. Depoisde trabalhar em academias, como professora, resolveu ter a própria,mas a iniciativa privada não a completou. “Era uma angústia nãopoder incluir quem não podia pagar. Naquela época, muitas vezesdestinei meu salário para patrocinar crianças em academias, masisso foi indo além do meu limite. Vi crianças talentosas que nãotiveram como seguir adiante”, recorda Ana.

Durante três anos, Ana buscou caminhos. “Eu saía chorando deórgãos públicos, cansei de ouvir não, não, não”. Obstinada, viu ocasamento chegar ao fim. Os amigos mais próximos diziam queestava louca, mas assim nasceu o Galpão de Arte. O depósito deuma fábrica de cigarros, com dois mil metros quadrados, foidesativado. O chão era de cimento – péssimo para aulas de balé –,não havia banheiro, era tudo misturado num só ambiente. Oproprietário do imóvel liberou dois meses de aluguel e, em doisdias, Ana conseguiu inscrever 300 crianças no projeto e recebeu oapoio de vizinhos, comerciantes, amigos. “Coloquei papelão no chão,para não machucar os pés das crianças. Um voluntário se ofereceupara dar aulas de violão, outro de capoeira, e mais um de teatro”,recorda. Para um professor não atrapalhar o outro no ambientecoletivo sem divisórias, as aulas de dança eram dadas sem música.

A força das parcerias

Certa vez, Ana teve a ideia de pôr uma urna para que as criançasdissessem o que esperavam do futuro. A mensagem que maischamou sua atenção foi a de uma menina de 5 anos, a idade deSamara, com um desenho. Um boneco, uma casa com as janelasabertas, uma pipa no céu, o sol, tudo muito vivo. Como não sabiaescrever, pediu que um adulto acrescentasse a legenda: “Meu sonhoé ser feliz”. “Desabei ao ver isso, e me senti incapaz de decifrar oque seria a felicidade para aquela criança”, lembra Ana.

Aos poucos, com trabalho árduo, as parcerias foram-se conso-lidando. Uma multinacional abraçou o projeto, em troca de incen-tivos fiscais. Com o apoio do Criança Esperança, o Galpão profis-sionalizou as oficinas de dança e teatro. “As portas se abriram”, dizAna. O programa também financiou viagens do grupo de dançapara fora do país e oficializou a música no projeto, com salas einstrumentos preparados para isso. No terceiro ano, uma nova salacom máquinas de costura foi inaugurada, para a confecção dos

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figurinos da turma e cursos profissionalizantes de mães de alunos, que tinham aulas enquanto aguardavam seusfilhos; e, este ano, uma cozinha semi-industrial será inaugurada, para suplementar a alimentação. “Aqui tivemosalunos que chegaram a desmaiar de fome”, conta Ana. No Galpão, os 800 alunos vivem em famílias com rendamédia mensal de até três salários mínimos e precisam estar matriculados na escola”.

Quanto mais altos os obstáculos, maiores têm sido as conquistas. Atualmente, três alunos estão dançando noCanadá, com bolsas de estudo, e o diretor da escola de Vancouver planeja uma visita ao interior baiano para colhernovos talentos. “A ideia é a profissionalização”, vislumbra Ana. “O trabalho é árduo, mas não impossível. Ver oresultado, as transformações, tudo isso é fantástico. Meninas que não tinham nenhum objetivo na vida hoje estãofazendo faculdade. E não tivemos nenhum caso de gravidez precoce até hoje”, constata dona Mercedes, mãede Ana e assistente da filha na direção do Galpão.

Talvez Samara, que lembra a personagem do filme “Pequena Miss Sunshine”, nossa estrela deste capítulo, mudede ideia no futuro e não queira mais ser modelo. Tampouco bailarina. Mas terá aprendido a fazer desenhos queretratem o que é a felicidade. Mais do que isso: aprenderá com a equipe do Galpão a tirá-la do papel e transformá-laem realidade.

No Galpão, os 800 alunos vivem em famílias com renda de até três salários mínimos. Pesquisa feita entre eles revelou seu maior sonho: “ser feliz”.

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Uma imagem está marcada na memória de

todos os que assistiram ao especial CriançaEsperança em 1991: a de Renato Aragão bei-

jando a mão direita do Cristo Redentor. O

humorista tinha muito que agradecer. Na-

quele ano – o quinto à frente do especial –, ele

comemorava o 25o aniversário de Os Trapa-lhões e assumia a função de Representante

Especial do UNICEF para as Crianças Brasi-

leiras. Emocionado, jogou pétalas de flores

do alto do maior símbolo do Rio de Janeiro:

“Que essas rosas caiam no coração das pes-

soas para que amparem mais as crianças”.

Naquele ano, o principal objetivo dos mi-

litantes em prol da infância era tirar o Esta-

tuto da Criança e do Adolescente do papel –

efetivar os direitos da infância, torná-los

reais, para que o ECA não se tornasse uma

dessas “leis que não pegam”. Foram criados

o Conselho Nacional dos Direitos da Criança

e do Adolescente (Conanda), o Pacto pela In-

fância e o Centro de Defesa da Criança e do

Adolescente Yves de Roussan, o Cedeca – BA,

que inspirou a rede nacional dos centros de

defesa e recebeu apoio do Criança Espe-

rança.

Previsto pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente e criado pela Lei nº 8.242/1991,

o Conanda tornou-se o principal órgão de

garantia de direitos. Em seu âmbito, go-

verno e sociedade civil definem as diretrizes

para a Política Nacional de Promoção, Pro-

1991

Militantes mobilizam-se para tirar

o ECA do papel e efetivar os direitos

da infância e juventude

Renato Aragão escala o Cristo Redentor para agradecer o apoio dos

brasileiros à causa da infância; personalidades vão ao show e

declaram seu apoio a crianças e adolescentes em situação de risco

teção e Defesa dos Direitos de Crianças e

Adolescentes. São também atribuições do

Conanda, entre outras, fiscalizar as ações

executadas pelo poder público no que diz

respeito ao atendimento da população

infanto juvenil e gerir o Fundo Nacional da

Criança e do Adolescente (FNCA).

Um dos maiores movimentos realizados

até então em prol dos direitos das crianças

e dos adolescentes, o Pacto pela Infância –

iniciativa inspirada pela Cúpula Mundial –

contou com a adesão de mais de 100 repre-

sentantes da sociedade civil organizada e de

instituições públicas. Os brasileiros, coorde-

nados por UNICEF, CNBB, OAB, Ministério

Público e pelo sociólogo Herbert de Souza,

o Betinho, comemoraram o efeito prático da

mobilização: foi realizada a primeira Reu-

nião de Governadores de Estado. No evento,

os representantes de cada unidade federa-

tiva e do governo federal traçaram planos de

ação e definiram parceiros para alcançar

seus objetivos – foi quando os agentes de

saúde se tornaram “combatentes” contra a

mortalidade infantil.

Enquanto isso, a Comissão Parlamentar de

Inquérito, aberta no ano anterior para inves-

tigar o extermínio de meninos que viviam

nas ruas, estava em curso no Congresso Na-

cional. Em Duque de Caxias, no Rio de Ja-

neiro, uma chacina ganhou destaque na

mídia: na favela Nova Jerusalém, cinco ado-

lescentes foram assassinados. Baleada na ca-

beça, uma sobrevivente de 16 anos, dada

como morta por seus algozes, sobreviveu e

denunciou-os. A jovem contou com apoio de

personalidades, inclusive da apresentadora

Xuxa, um dos ícones da campanha Criança

Esperança, e tornou-se um símbolo da resis-

tência à violência.

Reação organizada

Em Salvador, 31 entidades criaram o Cen-

tro de Defesa da Criança e do Adolescente

Yves de Roussan (Cedeca – BA), organização

não governamental que se propõe defender

juridicamente crianças e adolescentes víti-

mas de violência. Naquele ano, a Bahia

ocupava o terceiro lugar em número de ex-

termínios de pessoas nessa faixa etária.

No especial Criança Esperança de 1991, es-

tiveram atletas consagrados. Roberto Pupo

Moreno, Maurício Gugelmin e Nelson Piquet

doaram seus macacões; Ayrton Senna, seu

capacete. As relíquias foram objeto de leilão

e a renda, destinada à causa. Ao longo do

show, a saúde foi o tema-chave, com destaque

para a vacinação, o soro caseiro, a desidrata-

ção e os cuidados essenciais durante a gravi-

dez. As mensagens do show estavam em

sintonia com o que diziam milhares de

agentes de saúde espalhados Brasil afora.

CO

NTEXTO

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“O Criança Esperança surgiu no momento de redemocratização do país. Na época, o MovimentoNacional de Meninos e Meninas de Rua, do qual fui um dos fundadores, foi procurado para realizar umaparceria na realização de um programa que mobilizasse a sociedade para a doação de recursos. Víamosali a oportunidade para também sensibilizar a população para uma nova visão sobre a infância e aadolescência. O programa foi fundamental para conquistarmos avanços na legislação brasileira, paraa divulgação de práticas inovadoras e para o fortalecimento do compromisso com os direitos humanos.As empresas também foram se engajando e participando da construção de um futuro melhor para onosso país. O Criança Esperança passou e passa a mensagem de que é possível se reinventar, de queuma chance pode fazer a diferença na vida de uma pessoa e de que, afinal de contas, todos nóstransformamos ao longo desses anos, ao nos juntarmos em torno desse programa. Um país melhorprecisa do Criança Esperança.”

Foto

: Piti

Reali

Reinaldo BulgarelliFundador e Coordenador adjunto do Movimento Nacional deMeninos e Meninas de Rua de 1985 a 1991

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